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- ~ , ; JONATHAN NED KATZ I I I -A'I •• ,.. INVENÇAO DA-· ./ HETERO· SEXUALIDADE , PREFACIO DE 30RE VIDAL "\ '. -- - ... = /' <J A INVENÇÃO DA HETEROSSEXUALIDADE JONATHAN NED KATZ TRADUÇÃO CLARA FERNANDES PREFÁCIO DE GORE VIDAL ."-, r: ~ t 1I1)~~ÕE':-;I-;·,,·~··,''''-'''''t' ~~.o C/-/"Iyj! l ,3.9~~16 K.,' 5:1" ij :;,> , '3-2nJ I~.(oC: J, 1 Do originalc: 1:=," l.J .2:(--------1· The Invention 01Heterosexuality. PREÇO __ 7.? .DA T A __~~' .. -... opynght © 1995 by Jonathan Ned Katz .~D --PUb~;~~'i~;~~lte por Dutton, um selo de Dutton Signet, uma divisão da 'ZdB @-;Z';-;"'i:iõ- Penguin Books USA Ine. Copyright da tradução © 1996, Ediouro Publicações S.A [ISBN original 0-525-93845-1] Todos os direitos reservados e protegidos pela Lei 5988 de 14/12n3. É proibida a reprodução total ou parcial, por quaisquer meios, sem autorização prévia, por escrito, da editora. Capa Wladimir Melo Projeto Gráfico Ediouro Cip-Brasil. Catalogação-na-fonte Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ. Katz, Jonathan Ned K31i A invenção da heterossexualidade / Jonathan Ned Katz; prefá- cio Gore Vidal; tradução Clara Femandes. - Rio de Janeiro: Ediou- ro,1996 Tradução de: The ili,vention of heterosexuality ISBN 85-00-43198-9 1. Sexo (psicologia) - História. 2. Heterossexualidade - História. 3. Comportamento sexual- História. I. Título. 96-1057. '., CDD 306.7 CDU 392.6 96979899 87654321 EoIOURO PuBUCAÇÕES S.A. SEDE;, DFPTO• DE VENDAS E ExPEDIÇÃO RUA NOVA JERUSAlÉM, 345 - RJ CoRRESPONDJiNtIk CAIXA POSTAL 1880 CEP 20001-970 - RIO DE JANEIRO - RJ 1'EL,(021) 260-6122- F-",,(021) 280-2438 \ SUMÁRIO AGRADECIMENTOS 5 PREFÁCIO de Gore Vzdal 7 A GENEALOGIADE UM CONCEITO SEXUAL Da História Homossexual à História Heterossexual 13 2 AESTRÉIADO HETEROSSEXUAL NA SOCIEDADE Richard VonKrajft-Ebing e os Médicos da Mente 31 3 ANTES DAHETEROSSEXUALIDADE Olhando para Trás 45 4 CRIANDO A MÍSTICA HETEROSSEXUAL Os Conceitos Seminais de Freud 67 5 O HETEROSSEXUAL TORNA-SE CONHECIDO Do Discurso Médico para os Meios de Comunicação de Massa 91 6 QUESTIONANDO A MÍSTICA HETEROSSEXUAL Alguns Veredictos de Feministas Liberais e Radicais 119 7 A AMEAÇA LÉSBICA REVIDA Algumas Críticas de Feministas-Lavanda 143 8 PARA UM NOVO SISTEMA DE PRAZER Olhando para Frente 169 W EPíLOGO de Lisa Duggan 193 NOTAS 197 BIBLIOGRAFIA 233 íNDICE 261 '\ '...• .\ ,. . ..~ '- '~' AGRADECI MENTOS É claro que aqueles a quem sou grato podem concordar ou discordar de algumas ou muitas de minhas formulações. Este livro é dedicado a David Barton Gibson, cuja amizade constante desde junho de 1976 possibilitou a este estudioso independente escrever e pensar fora do siste~a' acadêmico que geralmente apóia o trabalho intelectual. Minha tia, Cecily Brownstone, fez comentários profissionais so- bre partes do original, assim como me prestou um delicioso auxílio ali- mentar.. -, Agradeço muito a Gore Vidal por seu incentivo ao longo dos anos e por ter concordado, antes deste livro ser escrito, em redigir o Prefácio. Também agradeço a Lisa Duggan pelo Epílogo e por sua amizade e leitura crítica de.todo o manuscrito . Meus amigos John D'Emilio, Jeffrey Escoffier, Ed Jackson e Carole S. Vance leram todo o original, e suas críticas construtivas foram muito úteis e apreciadas. Por suas leituras críticas de determinados capítulos e sua amizade, também sou grato a: Robert Benton, Allan Bérubé, Mark J. Blechner, Judith Levine, David Schwartz, Ann Snitow, Sharon Thompson, JeffWeinstein e Gil Zicklin. Por apoiar corajosamente os' meus pedidos de mais subsídios para pesquisar a história heterossexual, sou grato a John D'Emilio, Martin Bauml Duberman, Laura EngeIstein, Estelle Freedman, John Gagnon, Mary P. Ryan, Joan Wallach Scott, Christine Stansell e Catharine R. Stimpson. Obrigado a David Geffen pela contribuição. ~ N. v. reI .~ c: p~~ Df.' I',j I -- u II I\.. 'l 6 A INVENÇÃO DA HETEROSSEXUALlDADE Elizabeth Lobofsky Kennedy também tem apoiado de muitos modos o meu trabalho, Sua amizade e sua própria pesquisa são muito apreciadas. Por seu apoio agradeço a alguns novos e velhos amigos: Ian Birnie, Alan Bray, Madeline Davis, Neil Derrick, Frances Doughty, Allen Ellensweig, Edward Field, Richard Fung, Eric Garber, Myra Goldberg, Greg Gunter, Edna Haber, Bert Hansen, Amber Hollibaugh, Tom Holt, Becky Johnston, • Bob e Carol Joyce, Suzanne Kessler, Gary Kinsman, Tim McCaskell, Wendy McKenna, Joan Nestle, Esther Newton, Marc Ostfield, John Per- reault, David Roggensack, Michael Savino, Judith Schwarz, Ed e Eudice Segal, Barbara Smith, Herb Spiers, Jim Steakley, Ed Strug, David Thomas, Vince Vitali, Tom Waugh, Paula Webster, Jeffrey Weeks, Harold Wells, Albert Wolsky e Mary Wright. Por sua inspiração sou grato a Harry Hay, Jim Kepner e Richard Plant. . Agradeço muito a Herb Freudenberger por seu bom humor e sua ajuda. Sou grato a meu editor em Dutton, Arnold Dolin que, com John Paine, deu muitas sugestões e ótimas orientações relativas à publicação, a Miranda Spencer por preparar a edição e à minha agente, Diane Cleaver, por seus conselhos e seu incentivo. Por suas informações relativas ao computador agradeço a vocês, Beth Haskell e Eric Jennings. Por traduções e cópias, a Michael Lombardi-Nash e Paul Nash. Sou grato aos muitos grupos de estudan tes que, desde o início dos anos oitenta, têm me convidado a falar sobre "A invenção da heterossexualida- de". Seu entusiasmo e apoio me ajudaram a continuar a trabalhar nisso. Os muitos leitores que têm me escrito desde 1976 certamente também me ajudaram a seguir adiante. ..~ IN MEMORIAM , I 11 ~. i II i I PREFÁCIO Gore Vidal Quando o Gulag freudiano (teoria de Freud) finalmente implodir como a antiga Iugoslávia, é animador saber que o culto e por natureza irreverente Jonathan Ned Katz haveria de esfifi]fresente para enfiar uma estaca de madeira em seu coração agonizante. A '\ heterossexualidade, um conceito fatídico de origem recente mas de conseqüências terríveis é, obviamente, fundamental para as noções! muito estranhas da sexualidade humana que Freud e seus discípulos .J nos impuseram durante um século. ,Segundo o Profeta, começa-se nascendo - este viria a ser o último fato facilmente compreensível de que ele tratou; então, o bebê sente uma atração erótica pelo genitor do sexo oposto; em seguida, teme o incesto assim que lhe é explicado o que é isso, portanto reprime o melhor que pode um desejo profundo de copular com o pai ou a mãe; mais tarde na vida, devido a essa repressão, o adulto (o bebê que cresceu) passa a ter asma e caspa ... até se consultar com um discípulo de Freud, que lhe dirá que embora tenha repri- mido os seus impulsos incestuosos básicos (mas isso de fato ocor- reu?) será curado, assim que admitir que desejou praticar o ato sexual com a sua velha mãe, como Édipo. Tipicamente, Freud conseguiu confundir até mesmo aquela alusão clássica: Édipo matou o seu pai e teve relações sexuais com a sua mãe sem saber quem eles eram; por isso, talvez apenas na história freudiana, o rei Édipo não sofria do complexo que tem o seu nome. ,'\! Na intenção de guardar na lembrança alguns amigos e parentes queridos e muitos conhecidos levados pela AIDS, pelo câncer, pelo diabetes e por outras doenças, e para protestar contra o nosso sistema de saúde absurda- mente deficiente, cito Lois Adler, Robert Adler, Dan Allen, Allen Barnett, Vincent Beck, Mike Belt, Bill Bogan, Robert Chesley, Winston Davidson, Ken Dawson, Mike Folsom, James Frazer, Ray Gray, Richard Hall, Mable Hampton.Ben Katz, Phyllis Brownstone Katz, Gary Knobloch, Gregory Kolovacos, Reed Lenti, Michael Lynch, Keith McKinney, Lawrence Mur- phy, Gerard Mutsaers, Bill Neitzel, Jim Owls, Marty Robinson, Craig Rodwell, Vito Russo, Neil Sandstad, Richard Schmiechen, Michael Sher- ker, Gregory Sprague, George Whitmore e Connie Zoff. "" - ~ , ; JONATHAN NED KATZ I I I -A'I •• ,.. INVENÇAO DA-· ./ HETERO· SEXUALIDADE , PREFACIO DE 30RE VIDAL "\ '. -- - ... = ( N. V. Tp;. I~:~\.:11. Df!!'-J I -- u • 11 I I "' ~ 8 A INVENÇÃO DA HETEROSSEXUALlDADE --~ PREFÁCIO 9 Freud foi um pretenso novelista romântico da escola de Nietz- sche e da escola modernista-simbolista (sua visão de Leonardo da Vinci é uma ficção histórica digna deRafael Sabatini) que criou uma estranha doutrina à qual ninguém jamais prestaria atenção se não fosse por seu brilho pessoal e sua megalomania imperturbável. Com o correr do tempo, Freud criou uma teoria sobre o desenvolvimento sexual humano que se baseia, como é comum com ele, em uma série de hipóteses falsas. O bebê passa, se tiver sorte, de desejos inces- tuosos para um desejo por si próprio (masturbação) e depois por outros iguais a ele -a coisa abominável que a Comissão Levítica denunciou na Babilônia - e então, com sorte e talvez com a intervenção de um admirável judeu habitante da antiga Vzena, ele, como adulto, ascenderá ao platô feliz da heterossexualidade em que mamãe e papai fazem o que convém na alegre certeza de que estão seguindo, se não o roteiro de Deus, o mais importante de S. Freud, inventor da psicanálise (sensatamente ele costumava dormir enquanto os seus pacientes tagarelavam no divã a seu lado). Não importa o que estava atormentando uma jovem, ele sempre estava lá para lhe dizer que aquilo era apenas histeria e tocar em seu clitóris era muito desaconselhâvel; já que maturidade significava orgasmo vaginal, algo que não existe mas que ele acreditava que existia, epor isso conseguia até mesmo entender mal a própria anatomia que tão firmemente declarara ser destino. Freud certamente nunca viu coisa alguma na natureza humana que eleprôprio, como um deus desatento,, não colocara lá. Há alguns anos, muito antes da doutrina freudiana começar a \ . desmoronar; Katz questiona sua base essencial: a heterossexuali- dade, como o graal, o máximo em maturidade humana efelicidade. Enquanto eu escrevo essa última palavra, penso nos lapsos ou equívocos freudianos. OPrimeiro Ministro e a Srª Harold Macmil- lan estavam almoçando com o General e a Srª de Gaulle em Paris. Macmillan e de Gaulle falavam sobre o que fariam quando ele não mais governasse o seu país. Ambos disseram que escreveriam um livro. Polidamente, Macmillan perguntou à Srª de Gaulle o que ela queria depois que as luzes se apagassem e as trombetas silencias- sem. O inglês da Sr" de Gaulle não era bom. -Eu gostaria -disse solenemente -de um pênis. ,! l l JI I O inabalável Macmillan assegurou-lhe que aquilo era algo muito sensato a desejar. Contudo, o general, percebendo a gafe de sua esposa, disse, em seu inglês um pouco melhor: -Madame quer dizer app-penis. * Os freudianos nunca conseguiram propor umapalavra adequa- da (em vez de uma híbrida greco-latina) para a heterossexualidade, porque os gregos não sabiam o que era isso. Sabiam sobre a reprodução, a luxúria e o amor. Sabiam sobre a intensidade do desejo sexual entre homens e homens, mulheres e mulheres, mas para eles, Lesbos era apenas uma ilha distante, próxima à costa da Ásia, Menor, enquanto Safo era a sua poetisa digna do Prêmio Pulitzer:Infelizmente, como um burguês vienense do final do século XIX, Freud tinha idéias convincentes saídas do Antigo Testamento sobre o que era comportamento bom e inadequado. Também não era tolo (embora sob muitos aspectos fosse um homem perverso) e por isso aceitou a bissexualidade do comportamento humano. Como um apreciador do clássico, conhecia a história, e a cultura gregas. Não lhe passara despercebida a fúria de Aquiles despertada pela morte de seu amante. Mas, finalmente, o advogado natural do Antigo Testamento que existia nele venceu. Pênis mais vagina é igual a bebê e ponto final. Ele considerou aquilo o fato básico, embora fizesse sexo com a sua cunhada e nenhum dos adúlteros desejasse gerar um bebê. A invenção dapalavra heterossexualidade ocorreu nessa época (deixo a cargo de Katz a data exata). No início, heterossexualidade significava um interesse inconve- niente pelo sexo oposto -em outras palavras, o bebê geralmente era expulso por meio do uso de duchas. Na virada doséculo, a classe média em ascensão praticava o sexo não-seguro e, na ausência de um conceito grego, propôs um neologismo para descrever algo que todas as outras culturas descreviam simplesmente como sexo. Nesse meio tempo, como o cérebro é binário (fonte de nosso um/outro modo de pensar), tinha de haver outra palavra para indicar o oposto e por isso homossexualidade foi inventada e Katz agora mostra como aspalavras se tornaram rígidas em seu uso atual.Grupo bom: * De GaulJe pronunciou mal a palavra happiness, que em inglês significa felicidade. (N.T.) \ - 10 A INVENÇÃO DA HETEROSSEXUALlDADE V. T\. 111I~~\IIDÁ I!'..J ~ I .........., U hetero. Grupo ruim: homo. Homo versus gay. Um ou outro; nenhum Sr. Intermediário. Essa divisão tem criado dificuldades constantes para muitos homens e muitas mulheres, ao mesmo tempo que dá muita alegria para os governantes dos reinos que aceitam essas categorias antinaturais -porque eles podem então banir o grupo ruim, mantendo dessa forma o controle sobre grande parte da população, o objetivo de todo governo em todos os lugares e em todas as histórias que conhecemos. Analisando os estágios pelos quais essas palavras confusas se tornaram conceitos que depois se tornaram fatos, Katz acaba rigorosamente com toda a falsa divisão. Eu tenho, com freqüência - talvez até sucessiva - insistido em que não existem pessoas homossexuais e heterossexuais, apenas atos hetero ou homo, e em que a maioria das pessoas, em um momento ou outro, apesar dos horríveis tabus, faz das suas por at; como costumávamos dizer quando eu era criança, em Washington, D.e. Katz repete o meu refrão monótono, observando que essa também era a opinião geral do Dr. Kinsey, cujo relatório sobre o comportamento sexual do homem foi publicado um mês ou dois depois do meu romance, The City and the PilIar, no qual dois rapazes hetero têm um caso amoroso com conseqüências terríveis, graças ao tempo e lugar em que estavam vivendo: os Estados Unidos, que um dia Spiro Agnew chamou de a mais importante nação_~omundo. F'dçouma certa objeção à reverência com que Katz lida com os pensamentos desse eminente orador e amigo meu, James Baldwin. Em 1949; Baldwin realmente teve algumas çoisas sensatas a dizer sobre oabsurdo de se ver em uma única dimensão apersonalidade humana: 'É absolutamente impossível escrever um bom romance sobre um judeu, um cristão ou um homossexual, porque infeliz- mente as pessoas se recusam a agir de um modo tão regular e unidimensional. Como dizem os franceses, isso subentende-se. Mas então ele critica a minha novela do ano anterior em que o homos- sexual assumido... mata o seu primeiro, único e perfeito amor quando finalmente eles se encontram de novo, porque não suporta em vez disso matar aquele sonho de amor devastador e impossível. Isso deixa de lado oponto principal. The City and the PilIar. Título bíblico. Que cidade? Sodoma. Vida homossexual. Pilar? A esposa I1 1,1 I I d ••. \\l J j \1 ~ I PREFÁCIO I I de Lote poderia ter sido salva da destruição de Sodoma se não tivesse se virado para olhar pela última vez para o esplendor da velha cidade. Ela dá uma espiada. É transformada em umpilar de sal.Meu protagonista, Jim Willard, não é um homossexual assumido - Baldwin não foi o crítico mais atento do nosso tempo -, Willard odiava os efeminados e só tentou ficar vivo até Voltar a unir-se ao seu primeiro, único e perfeito amor. Eu concordo com Baldwin em que isso provavelmente era impossível, mas dificil- mente devastador. Era muito romantismo levado a um grande extremo. Em vez de seguir em frente (não para o misterioso lugar bom e elevado de Freud, a heterossexualidade, em que o ar é rarefeito demais para que muitos respirem), ele passa a vida olhan- do para trás, para uma união perfeita com outro rapaz e, quando o reencontra, acha que o outro agora vive onde o ar é rarefeito. Por isso rejeita-o e, na melhor tradição romântica obsessiva, mata-o. Até mesmo o título do livro é uma advertência sobre o temperamento romântico. Mas Baldwin acha que essa resolução violenta é in- duzida por um pânico que se aproxima da loucura. Essas novelas [está incluída The FalI of Valor, de Charles JacksonJ não dizem respeito à homossexualidade, mas ao perigo sempre presente da atividade sexual entre os homens. Isso poderia ser verdadeiro em relação a Jackson, mas não a mim. Eu afirmo em todo o livro que os atos homossexuais são de fato uma coisa ótima e, para alguns homens e algumas mulheres, sempre preferíveis aos atos heteros- sexuais. Esse era um conceito novo em 1948. Mas os heróis român- ticos geralmente têm finais trágicos, como demonstra Shakespeare com os seus dois adolescentes rebeldes de ~rona. Em todo o caso, alguns anos depois de criticar-me pelo pânico, exatamente a pala- vra errada, Baldwin escreveu Giovanni's Room, um livro ater- rorizante que termina com a cabeça do grande amor decapitada em Paris. Katz não só se diverte com tudo isso, como consegue lançar por terra duas palavras cuja invenção criou categorias falsas, tornando assim possível controlar totalmente as pessoas através de tabus legais que agora devem ser abolidos, como concluirá qualquer leitor seu não supersticioso. ~ .-l II ~; A GENEALOGIA DE UM CONCEITO SEXUAL Da História Homossexual à História Heterossexual No início dos anos 1970, muitos homossexuais começaram a tornar públicas as suas até então secretas vidas. Criando um modo novo e patente de viver as nossas paixões e os nossos amores, passamos de uma norma histórica de homossexualidade para outra. Observando as mudanças que experimentamos, percebemos a homossexualida- de com uma visão dupla - a de nossas vidas amorosas secretas passadas e a de-nossa homossexualidade desvelada presente. Rejei- tando o velho e estático modelo psicológico da homossexualidade, alguns de nós ficaram fascinados com a descoberta da história mutante da homossexualidade - e então, lentamente, sem preme- ditação, da heterossexualidade. Naquele tempo muitos de nós passamos do vergonhoso homos- sexual para o assertivo gay e lésbica, tornando o poder dessas pa- lavras o centro de nosso movimento político. Quinze anos antes, com um novo e grande horror, eu aplicara conscientemente pela primeira vez a palavra homossexual aos meus sentimentos pelos homens - na manhã seguinte em que dormira pela primeira vez com um. Ele era um amigo da escola secundária, estávamos em junho de 1956 e eu era um garoto sensível e ansioso de 18 anos. Mesmo agora, depois de todos esses anos, ainda lembro 1;\ I, ' 14 A INVENÇÃO DA HETEROSSEXUALlDADE do pavor que a palavra homossexual provocou em mim naquela manhã dos conformistas anos 1950. Também me lembro dos posteriores e humilhantes insultos "Bicha!" e "Viado!" que ouvi por ter olhado por um segundo ou dois para o heterossexual errado. Esses insultos representados por palavras explicam, em parte, o estudo que este livro faz da história, do poder e dos usos sociais da linguagem. Primeiro, como uma vítima das palavras, eu me dei conta de sua capacidade de ferir. Aqui, como um historiador, eu as examino minuciosamente e questiono, para compreendê-Ias e anular a sua força. Depois daquela fatídica manhã dos anos 1950, passei os 15 anos seguintes envergonhado e isolado, torturado pela palavra homos- sexual e por meus sentimentos homossexuais. Contudo, profun- damente imbuído de um espírito rebelde, examinei atentamente os Grandes Livros do cânone contrário à ordem preestabelecida. O gabinete de estudo incentivava a leitura. No início dos anos 1960, marchei pela paz no Vietnã, apoiei (do lado de fora) a luta pelos direitos civis dos negros e, mais tarde, o movimento pelo poder negro. Mas no final dos anos 1960, ouvindo relatos ocasionais sobre demonstrações de grupos de homossexuais espalhafatosos que luta- vam por seus direitos, eu me senti profundamente mal. Os homos- sexuais eram anomalia~ psicológicas, aberrações. Por que eles não calavam a boca e guardavam para si próprios o seu problema constrangedor? Não ouvi nada sobre o levante de Stonewall, em junho de 1969 - o gabinete abafava os sons da mudança vindos do mundo lá fora. Em setembro de 1970, a revista H arper:S-publicou "Homo/He- tero: The Struggle for Sexual Identity," de Joseph Epstein, e um simpático hetero com quem eu fazia terapia de grupo me deu uma cópia. O artigo de Epstein teve um profundo impacto sobre mim.' Seu ensaio pode ser estudado agora como um valioso documen- to pessoal sobre a história da heterossexualidade em um momento de nova e consciente autodefesa. Os heterossexuais estavam enfren- tando um desafio ao qual não estavam acostumados: ultimamente os homossexuais parecem ter iniciado um ataque contra a heteros- A GENEALOGIA DE UM CONCEITO SEXUAL 15 sexualidade como um estilo de vida. Entre os novos militantes, ao que parece, estava um certo Elliot, o cabeleireiro de uma amiga minha: Não me falem sobre as glórias e alegrias da vida de casado, diz EIliot. Sei tudo sobre isso pelas mulheres com quem trabalho. E, é claro, em um certo sentido ele está certo. A heterossexualidade não deixa de ter os seus lados negativos. Durante os últimos anos eu vi o meu próprio antes maravilhoso casamento acabar em divórcio. Olho ao meu redor e vejo tão poucos bons casamentos! Sei de muitas pessoas ... que, se pudessem, não voltariam esta noite para a pessoa com quem são casadas? Os muitos heterossexuais de Epstein, obrigados a passar noites tristes e intermináveis ao lado de outros que não representavam muito para eles, são de fato uma visão desalentadora. Contudo, se a vida heterossexual tem parecido praticamente impossível, garantia Epstein a seus leitores - e a si mesmo -, a vida homossexual parece ainda mais impossível. Escrevendo na- quele estilo que faz a aversão parecer sinceridade, Epstein confessou o seu ódio: Eu realmente acho que a homossexualidade é um anátema, e por isso os homossexuais são amaldiçoados ...3 Os homossexuais são amaldiçoados, repetiu Epstein mais tarde, atingi- dos por uni mal não explicado ... cuja origem é tão desconhecida que finalmente setomou um mistério.' O fato de os homossexuais serem atingidos de modo negativo por ensaios como esse era um mistério apenas para o seu autor. Perto do final dessa presunçosa confissão, Epstein declara: . . Se eu tivesse o poder para tanto, desejaria banir a homossexualidade da face da Terra. Agiria assim porque acho que traz muito mais sofrimento do que prazer para aqueles que são forçados a conviver com ela; porque creio que não há fim para esse sofrimento em nossa vida inteira, apenas, para a esmagadora maioria dos homossexuais, mais sofrimento e vários graus de exasperantes ajustes; e porque, de maneira egoísta, sou total- mente incapaz de lidar com ísso.' Lendo as palavras de Epstein em 1970, senti com nova e atordoante força a intensidade do ódio aos homossexuais. Mais tarde, notei que desejar é a única coisa que todos nós sempre pode- Vilela Destacar 16 A INVENÇÃO DA HETEROSSEXUALlDADE mos fazer. Portanto, a confissão de Epstein de que desejaria banir a homossexualidade da face da Terra é uma mentira. Ele de fato desejou banir a homossexualidade (e os homossexuais) da face da Terra, mas não pôde dizer isso. O desejo de praticar o genocídio é constrangedor em um judeu. O ensaio - fomentador do ódio - de Epstein também teve um efeito revelador sobre mim. Eu compreendi: meus sentimentos homossexuais tornavam, a mim e a outros, objetos de preconceito - sujeitos a sermos estigmatizados como grupo, como os negros e as mulheres. É estranho, mas aquela era uma idéia nova. Lentamente, o início da percepção do que se passava em mim me levou para o mundo. Com medo e trêmulo, comecei a freqüentar os grupos de liberação gay recentemente fundados em Nova York. A eloqüência de seus líderes ressoou em meus ouvidos. Vi o mundo com novos olhos. Participei de atos públicos e discussões acaloradas de grupos privados. Marchei segurando um cartaz onde se lia: os HOMOSSEXUAIS ESTÃO SE REVOLTANDO. PODEM APOSTAR QUE SIM! No inverno de 1971, com 33 anos, eu me sentia um pouco mais em paz comigo mesmo depois de anos de psicoterapia com um heterossexual gentil e humano que, quando garoto, observara dire- tamente o ódio dos nazistas. Anos antes, ele não aceitara a minha afirmação inicial de que a homossexualidade era o meu problema. Agora, comecei a ir às ruidosas reuniões semanais da Aliança dos Ativistas Gays de Nova York e, em apenas alguns meses, sofri uma incrível mudança. Voltei para casa de uma daquelas reuniões muito animadas, exausto e atordoado com a mudança profunda e abrupta no meu modo de pensar e sentir pela qual estava passando," Acho que a minha experiência daquela mudança histórica foi típica de muitos homossexuais da classe média que se tornaram adultos antes do levante de Stonewall, em 1969. Passamos por uma mudança básica - de uma imagem de nós mesmos como monstros- aberrações para uma nova e partilhada imagem como opositores ultrajados." No movimento gay eu afirmei a minha afeição e os meus sentimentos eróticos pelos homens, as emoções particulares pelas quais a minha sociedade me rejeitava - e pelas quais, 'durante muitos anos, eu me rejeitara. u I A GENEALOGIA DE UM CONCEITO SEXUAL 17 Embora naquela época eu tivesse casualmente me identificado ximo um gay, em minha mente estava afirmando os meus sentimen- tos pelos homens, não um selfgay. No início dos anos 1970, apesar do fato de não usar esses termos, comecei a adotar uma política de sentimento e prazer, não de identidade," Minha participação no movimento gay logo me levou a imagi- nar algo como uma história homossexual. Em uma reunião do omitê da rnídia da Aliança dos Ativistas Gays falamos sobre modos de descrever o nosso novo movimento e eu resolvi escrever uma peça teatral sobre a vida e a liberação dos gays e das lésbicas. Isso exigiria material histórico e literário americano para mostrar drama- ticamente o processo de mudança por que passava nossa situação, assim como as nossas emoções e o nosso modo de ver as coisas." A pesquisa para a minha peça teatral começou com apenas uma suposição -a de que a História Gay Americana deveria existin'" A idéia da história gay era de fato uma suposição - naquela época a homossexualidade estava bastante reduzida ao psicológico. A peça teatral Coming Out!, bastante divulgada, foi produzida pela Aliança dos Ativistas Gays em junho de 1972 e reapresentada em junho do ano seguinte em um minúsculo teatro de Chelsea." Os comentários de Martin Duberman sobre aquela produção, na primeira página do caderno de teatro do TheNew York Times de domingo, incentivaram um editor a me-conceder um contrato para um livro sobre a história homossexual. Gay American History: Lesbians and Gay Men in the U.SA. foi publicado três anos depois, no final de 1976. Aquele título anunciava um livro apropriado para o seu tempo. Gay declarava o seu ponto de vista liberal,American recolocava em sua terra o homossexual e History proclamava a sua descoberta de um passado desconhecido. Aquele título tinha um apelo emocional e intelectual para os muitos seres humanos ansiosos por descobrir as suas raízes obscuras e afirmar os seus sentimentos homossexuais. O objetivo do livro, imodestamente divulgado por mim do modo "agressivo daquela época, era nada menos que revolucionar o concei- to tradicional da homossexualidade. Eu digo que como esse concei- to é tão pouco histórico, a própria existência da história gay pode ser vista com descrença. 12 Em 1976, a expressão história gay parecia de fato estranha. Embora, revendo o passado, um número surpreen- I IIj 18 A INVENÇÃO DA HETEROSSEXUALlDAQE dente de livros e artigos tivesse começado a mencionar uma mudan- ça de atitudes em relação aos homossexuais na história, a existência da história americana gay ainda era duvidosa. Até mesmo este historiador militante gay achava essa expressão assustadora. Quando o livro estava perto de ser publicado, muito depois de eu ter reunido pilhas de documentos, lembro-me de que me' sentei em um cais às margens do rio Hudson com um antigo namorado e I lhe perguntei se realmente fora ousadia da minha parte dar ao livro o título de Gay American History. Minha preocupação não tinha nada a ver com o efeito de universalização e negação da diferença de referir-me a quatrocentos anos de história como gay. Eu temia que o título Gay American History confirmasse a existência de uma história sobre a qual eu não sabia ao certo se tinha a coragem de fazer tanto alarido. Entre as publicações que faziam a história homossexual parecer possível e menos estranha, havia os novos livros e artigos daquela época sobre a história das mulheres - geralmente, as heterossexuais eram a suposta matéria de estudo. Lembro da enorme excitação que senti quando os problemas encontrados e insights oferecidos por aquelas primeiras e ousadas historiadoras feministas forneceram informações sobre a história lésbica e gay. Além disso, já havia uma desestabilização básica da dicotomia heterossexua1!homossexual. No início dos anos 1970, vários mani- festos de radicais gays e lésbicas previam um futuro em que a distinção heterossexual/homossexual seria rejeitada. 13Em 1970, um grupo de radicais lésbicas declarou: Em uma sociedade em que os homens não oprimissem as mulheres e tossi! permitida a expressão sexual dos sentimentos, as categorias da homossexualidade e hete- rossexualidade deixariam de existir+' Em 1971, em Homosexual Oppression and Liberation, de Dennis Altman, esse professor de política australiano disse: A minha visão da liberação é precisa- mente a que tomaria a distinção homo/hetero irrelevanteP Naquele início auspicioso e estimulante da liberação dos gays e das lésbicas, a abolição da heterossexualidade e o fim da homossexualidade andavam no ar. Ousávamos imaginar um futuro sexual totalmente livre e diferente. Ainda tínhamos de imaginar um passado sexual totalmente diferente. A GENEALOGIA DE UM CONCEITO SEXUAL 19 (,'ay American History menciona rapidamente a idéia de que as 1I1111ÇÓCI; homossexuais e heterossexuais têm características his- 1I"1Ilcnsvariáveis.l'' Mas isso ao ponto em que eu naquela época Itwuva a história heterossexual- não longe. Meu principal objetivo 1'11 demonstrar a existência de grandes quantidades de material 111 lginal, esclarecedor e interessante sobre a história homossexual e íimular a pesquisa e a análise de uma história não contada. ontudo, eu de fato sugiro que não é uma boa idéia encaixar as tvlações passadas em um pólo ou outro da dicotomia hetero-homo tradicional. Um ano antes, a historiadora Carroll Smith-Rosenberg publicara um artigo pioneiro sobre as amizades profundas e cheias de erotismo das mulheres americanas do século XIX, "The Female World of Lave and Ritual". Para entender aquela intimidade, sugeria Ia, precisamos ir além da divisão heterossexual/homossexual e nccitar a idéia de um continuum dessas relações. Esse continuum, imaginava (seguindo o exemplo de Alfred Kinsey, de 1948), tinha urna heterossexualidade praticada em um pólo e uma homos- sexualidade assumida no outro.'? Em 1976, retificando a afirmação de Smith-Rosenberg, eu sugeri que A classificação das relações humanas como homos- sexuais ou heterossexuais deveria ser substituída por pesquisas visando revelar os vários aspectos das relações privadas estuda- das.18 Assim como outros, eu começava a perceber o efeito detur- pador de empregar a distinção heterossexua1!homossexual na aná- lise histórica retrospectiva.!? Como eu e muitos outros víamos aquilo na época, uma homos- sexualidade e uma heterossexualidade universais e eternas assumem formas históricas diferentes. No momento em que estava escreven- do, ninguém que eu conhecia se preocupava muito com o efeito deturpador de formular hipóteses sobre uma essência homossexual eterna. Muito menos ainda eu me preocupava com uma heteros- sexualidade eterna. Hoje, depois de duas décadas de investigação, a idéia de formas históricas variáveis de homossexualidade e heteros- sexualidade essenciais ainda funciona como a tendência dominante, até mesmo de pesquisadores voltados para a história. Por exemplo, em 1988, sob a influência paralisante desse essencialismo, o autor de uma enorme história da construção social da homossexualidade 20 A INVENÇÃO DA HETEROSSEXUALlDADE A GENEALOGIA DE UM CONCEITO SEXUAL 21 se refere à homossexualidade no período Anterior àHomossexuali- dade, sem aparentemente se importar com a contradição.ê' O modo como transcender a noção de uma essência heterossexual (e homos- sexual) imutável é um problema que eu enfrento neste livro. Em 1977, com grande excitação, li avidamente a primeira história social da luta pela emancipação de gays e lésbicas na Inglaterra, Coming Out: Homosexual Politics in Britain, from the Nineteenth Century to the Present, de Jeffrey Weeks. Esse livro confirmou a direção do meu próprio pensamento, estimulando criativamente o meu trabalho.ê' Eu escrevi imediatamente para Weeks, ansioso por comunicar-me com um historiador gay de esquerda que pensava como eu, feliz com o fato de que um pequeno grupo internacional de gays e lésbicas iniciava calmamente um trabalho de recuperação da história da homossexualidade. Uma pesquisa pioneira sobre essa história também estava co- meçando a ser publicada por vários estudiosos, incentivando o desenvolvimento de mais trabalhos sobre esse tema dentro e fora das unívcrsídades.> Em 1980, a renomada University of Chicago Press publicou o monumental Christianity, Social Tolerance, and Homosexuality: Gay People in WestEurope from the Beginning of the Christian Era to. the Fourteenth Century, de John Boswell.P Esse autor exibiu belas notas de rodapé, seu domínio de múltiplas linguagens e uma profusão de dados empíricos sobre um tema de gran,de interesse para muitos. As críticas positivas ao livro e o seu sucesso de vendas foram um fato importante que legitimou o de- senvolvimento da pesquisa da história sexual em geral e da homos- sexual em particular. No ano seguinte, Surpa.~sing the Love of Men: Romafltic Friendship and Love Between Women from the Renais- sancé to the Present, de Lillian Faderman, ratificou mais uma vez o estudo da história do Iesbianismo.ê' Mas em geral ainda não era dada a devida atenção a uma história especificamente heterossexual. Contudo, algumas historiadoras fe- ministas estavam começando a situar a heterossexualidade no tem- po. Uma delas era Mary P. Ryan, que escreveu Womanhood in America: From Colonial Times to the Present.ê No invernode 1977, fiz uma crítica ao livro de Ryan na imprensa gay, fascinado com a inovação conceitual simples dessa historiado- ra. Essa era a sua referência casual às relações heterossexuais e às mulheres heterossexuais, em vez das costumeiras relações sexuais emulheres. Sua especificação da heterossexualidade a distinguiu de um modo novo como um problema. Eu comentei: A existência de uma história da heterossexualidade, bem como de uma história da homossexualidade, em geral ainda não tinha sido reconhecida, e tampouco as suas implicações foram analisadas+ Chamá-Ia de história heterossexual afirmava a existência de tal coisa, um passo necessário para analisá-Ia. No ano seguinte, 1978, em uma conferência na Universidade de Nova York sobre Poder e Sexualidade, meu discurso de abertura se concentrou nos problemas empíricos e teóricos que estavam surgin- do no trabalho recente sobre a história da homossexualidade. Essa pesquisa, disse eu,27 sugere a existência de uma história heterossexual que precisa ser reco- nhecida e investigada, em vez de apenas tida como certa. Entrei em pormenores: . A pesquisa sobre o passado homossexual nos inspira a questionar a necessidade da divisão atual de pessoas, atividades e sentimentos em heterossexual e homossexual. Até mesmo o famoso continuum de Kinsey das atividades sexuais e dos sentimentos mantém a divisão hetero-homo tradicional e agora dominante. A pesquisa sobre as re- lações passadas entre o mesmo sexo questiona a aplicabilidade desse modelo hetero-homo para sociedades que não reconheciam essa pola- ridade. Se tivermos dificuldade em imaginar um mundo sem heteros- sexuais ou homossexuais, uma perspectiva histórica será útil. O termo homossexual só foi inventado em 1869 [agora o ano tem sido recuado para 68]. O primeiro uso de heterossexual incluído no Oxford English Dictionary Supplement data de 1901. [O mais recente Oxford En- glish Dictionary Supplement volta o ano para 1892, mas este também tem sido estabelecido como sendo 1868.]28 Os termos heterossexual e homossexual aparentemente passaram a ser de uso comum apenas no primeiro quarto deste século; antes disso, se as palavras representam conceitos, as pessoas não concebiam um universo social polarizado em heteros e homos. Se não quisermos impor a nossa visão moderna ao passado, teremos primeiro de perguntar que termos e conceitos as pessoas de uma determinada era costumavam aplicar às relações sexuais e afetivas entre mulheres e homens. Teremos de transcender a divisão hetero-homo.ê? 22 A INVENÇÃO DA HETEROSSEXUAL/DADE A GENEALOGIA DE UM CONCEITO SEXUAL 23 Desde a tradução de 1978 do primeiro volume de The History ofSexuality, de Michel Foucault, a obra desse pensador tem influen- ciado muito a interpretação da história sexual por parte dos pesqui- sadores que falam a língua inglesa.ê" Como eu mais tarde deixarei claro, minha análise da história da homossexualidade e da heteros- - sexualidade deve muito a Foucault. Mas, como os estudiosos mais jovens agora freqüentemente escrevem como se Foucault tivesse iniciado a pesquisa sobre a história da sexualidade do alto de sua posição na academia francesa, eu noto que a pesquisa sobre a história da homossexualidade deve o seu principal impulso aos movimentos de gays, lésbicas e feministas, não a este único grande homem." Ainfluência de Foucault está clara no amplamente lido "Sexual Matters: On Conceptualizing Sexuality in History" (1979), de Ro- bert A. Padgug, que avisou: As categorias sexuais que são tão óbvias para nós, as que dividem a humanidade em heterossexuais e homossexuais, não parecem ter sido conhecidas pelos antigos gre- goS.32 Esse autor nos preveniu de que precisamos evitar projetar as nossas categorias atuais sobre as sociedades passadas, que organi- zavam as pessoas e a sexualidade seguindo linhas muito diferentes. Anecessidade de evitar o anacronismo quando se lê ou escreve sobre a história da sexualidade - reiterada por vários autores - indica uma forte tendência a essas projeções retrospectivas enganadoras. Padgug também.crítícou especificamente a noção comum de que a essência sexual define pessoas chamadas de homossexuais e heterossexuais. Na sociedade grega antiga, disse ele, Os homos- sexuais e heterossexuais no sentido moderno não existiam. Essas palavras admitiam que heteros e homos 'em um sentido antigo poderiam ter existido. Ele também questionava, ambiguamente, a aplicação de homo e hetero a atos de gregos antigos. Para os gregos do período clássico, Homossexualidade e heterossexualidade ... eram na verdade grupos de... atos, mas não necessariamente atos intimamente relaciona- dos...33 Esse historiador finalmente negou que heterossexual e homos- sexual tiveram uma existência operante na Grécia antiga: Aquelas próprias categorias ... não tinham significado na Antiguidadeé' Tais formulações incentivaram o meu interesse em questionar essas categorias. Em 1981 eu ouvira uma jovem historiadora feminista e amiga, Lisa Duggan, ler o rascunho de um ensaio sobre as mulheres, a sociedade americana na década de 1920 e a imposição social da heterossexualidade.é Alguns dias depois suas palavras me fizeram ter uma revelação. De repente caí em mim e até mesmo falei em voz alta comigo mesmo: A heterossexualidade não foi apenas 'imposta', foi 'inventada'. Alguns meses depois daquela revelação, li para o nosso pequeno grupo de estudo do sexo na história a primeira versão de um ensaio, "The Invention of Heterosexuality" que explorava a hipótese de que a heterossexualidade, como a homossexualidade, fosse uma construção social e histórica." O grupo me incentivou a ir em frente. O comentário sobre a invenção histórica da heterossexualidade foi incorporado a três ensaios analíticos em meu segundo livro sobre a história americana da homossexualidade. Mas quando Gayll.es- bianAlmanac surgiu em 1983, poucos leitores pareceram tão exci- tados quanto eu com a sua revelação mais surpreendente: o discurso histórico sobre a heterossexualidade era uma invenção moderna. Nosso termo heterossexualidade, que pretendia descrever um sexo- amor mais velho que Matusalém, era de origem bastante recente e linha uma história de definições variáveis e contestadas." Minhas idéias sobre a invenção da heterossexualidade torna- ram-se mais claras no início dos anos 1980, quando li atenta- mente alguns artigos de jornais de medicina da última década do século XIX. Neles, os psiquiatras primeiro descreviam o homos- sexual. Eu comecei a perceber que vários desses médicos também se referiam ao heterossexual- mas como um depravadol'" Obser- vei que apenas gradualmente a palavra heterossexual passou a significar o suposto ideal erótico de sexo diferente que conhecemos hoje. Buscando a formação da homossexualidade ao longo do tempo, eu me deparara inesperadamente com outro episódio pri- mário e não notado, a ocasião em que a heterossexualidade foi concebida. No início dos anos 1980, presumi que os termos heteros- sexualidade e homossexualidade significavam modos historica- u '1,11 I Ilil 24 A INVENÇÃO DA HETEROSSEXUALlDADE ___ o A GENEALOGIA DE UM CONCEITO SEXUAL a invenção histórica da heterossexualidade para contestar direta- mente a nossa admissão comum da hipótese de que a heteros- sexualidade é eterna, para sugerir o status histórico relativo e instável de uma idéia e uma sexualidade que geralmente supomos que foram há muito tempo esculpidas em pedra. Geralmente supomos que a heterossexualidade é tão antiga quanto a procriação e a luxúria de Eva e Adão, eterna como o sexo e a diferença entre os sexos daqueles primeiros seres humanos. Imaginamos que é essencial, imutável e não tem uma história. Essa hipótese é o nosso ponto de partida comum e não examinado quando pensamos sobre a heterossexualidade - se pensamos. Quando contestados, tendemos a apoiar com três argumentos a nossa idéia de uma heterossexualidade antiga: (1) a sobrevivência da espécie humana torna a heterossexuali- dade uma necessidade constante; (2) todas as sociedades reconhecem as diferenças básicas entre os seres humanos dos sexos masculino e feminino - essas diferenças biológicas e culturais são a fonte de uma sexua- lidade perpétua que é hetero; (3) o prazer físico proporcionado pela união entre um homem e uma mulher continua a ser a base imutável de uma heteros- sexualidade eterna. Ao chegar perto do final deste livro espero ter abalado a sua crença em que esses argumentos são simples, óbvios e inques- tionáveis. Apesar do que nos tem sido dito, sugerirei que a heteros- sexualidade não é análoga ao ato sexual reprodutivo dos sexos; não é o mesmo que as diferenças sexuais; não é igual ao erotismo de mulheres e homens. Eu argumento que a heterossexualidade signi- fica um arranjo histórico particular dos sexos e de seus prazeres. Sem dúvida uma necessidade reprodutiva, as distinções e o erotismo entre os sexos existem há muito tempo. Mas a reprodução, a diferença entre os sexos e o prazer sexual têm sido produzidos e combinados em vários sistemas sociais de modos totalmente diver- sos. Afirmo que apenas há cem anos esses modos passaram a ser heterossexuais. Apresento provas de que a diferença entre os sexos (o hetero) e o prazer sexual (o sexual) nem sempre definiram a II mente específicos de dominar, pensar sobre, avaliar e organizar socialmente os sexos e seus prazeres. Este livro mostra as minhas razões. -É perigoso fazer a apresentação deste livro sobre a história da heterossexualidade com a história pessoal de um homossexual, que diz respeito à história da homossexualidade. Posso fornecer muni- ção para aqueles ansiosos por abarê-Io a tiros sob a alegação de que é um discurso tendencioso e extravagante de um interesse especial - como se um escritor heterossexual fosse escrevê-lo do ponto de vista universal. Dada a minha confissão inicial, pode-se pensar que este livro é sobre a homossexualidade. Mas isso não é verdade. Eu concentro esta história na qualidade mundana da palavra heterossexual, porque um debate sobre o erotismo do sexo diferente freqüente e facilmente se transforma em um debate sobre a homos- sexualidade, deixando a heterossexualidade - mais uma vez _ esquecida. Insistindo na palavra heterossexual, tento insistir nesse tema indefinível. O termo heterossexual fornece uma prova concreta de mudanças surpreendentes na idéia e no ideal heterossexual _ nos modos como o sexo e o amor têm sido compreendidos e avaliados.ê? E como, desde o final do século XIX, o heterossexual e o homossexual têm estado intimamente ligados na dialética, refiro- me ao mesmo tempo à história da homossexualidade. ( Também me concentro na aparentemente simples palavra hete- rossexual porque qualquer discussão sobre a heterossexualidade ameaça ampliar-se assustadoramente e incluir tudo sobre os relacio- namentos de mulheres e homens. A nOç&9 intimidadora de que a heterossexualidade engloba tudo que diz respeito à atração e ao erotismo entre sexos diferentes se revela um dos subterfúgios con- ceituais que impede que ela se torne o alvo de uma anãlfse crítica constante. Não se pode analisar tudo. Eu reconheço que muitos leitores podem considerar coisa de maluco o fato de eu me referir à heterossexualidade como "inven- tada". Embora a palavra heterossexual possa ter sido inventada há pouco tempo, ,certamente os sentimentos e atos não o foraun, Ques- tionar a nossa, crença em uma heterossexualidade universal vai totalmente contra o nosso critério atual.t" Ainda assim, eu falo sobre 25 26 A INVENÇÃO DA HETEROSSEXUALlDADE essência ratificada socialmente das uniões entre os sexos. Um ideal erótico dominante de sexos diferentes - uma ética heterossexual - não é de modo algum antigo, mas sim uma invenção moderna. Nossa crença mística em uma heterossexualidade eterna - nossa hipótese heterossexual - é uma idéia que só foi amplamente - partilhada nos últimos três quartos do século XX. . Eu lhes garanto, a idéia de uma heterossexualidade primordial é poderosa em nossa sociedade, um forte sinal sob cuja influência todos nós ainda conduzimos as nossas vidas, não importa o que nos dê prazer," Ao contrário da desacreditada teoria vitoriana de uma masturbação perigosa que representava uma ameaça à vida, um abuso cometido contra a própria pessoa, a hipótese do final do século XIX de um prazer sexual universal masculino-feminino ainda é para amaioria de nós uma verdade eterna. Por isso é muito surpreendente e esclarecedor examinar a história da idéia sexual e hetero. Entretanto, abalar o nosso conceito sexual convencional é uma tarefa difícil. Raramente nos concentramos durante muito tempo no enigma da heterossexualidade - nossa atenção volta-se rapida- mente para oproblema da homossexualidade. Aheterossexualidade resiste bravamente a ser um problema como vários outros modos peculiares de sentir, agir, falar e pensar. - Falamos sobre travestismo (dando-lhe esse nome) problemáti- co; o desejo de vestir roupas do sexo oposto. Geralmente não falamos sobre o forte desejo de vestir roupas do nosso próprio sexo (ou damos a isso um nome ).42 Mas por que a maioria de nós se sentiria profundamente mal vestindo public.amente roupas do sexo oposto? O nossoforte desejo de vestir roupas do próprio sexo não sugere um mistério a ser explicado? Falamos sobre transexualismo (dando-lhe esse nome) proble- mático, a sensação de ser do sexo oposto, o desejo de ter o corpo do outro sexo. Não falamos muito sobre a sensação de ser do próprio sexo (ou damos a isso um nome) - o sexo que acreditamos ser o nosso, o que a maioria de nós deseja conservar. Mas o fato de nos sentirmos relativamente bem com o nosso sexo e o forte desejo de manter a nossa integridade sexual não indicam algo que precisa ser explicado, tanto quanto o transexualismo? A GENEALOGIA DE UM CONCEITO SEXUAL 27 " Falamos sobre raça (dando-lhe esse nome) e muito freqüente- mente especificamos: afro-americanos ou negros, não-brancos. Falamos sobre uma história americana negra, mas raramente sobre uma história americana branca. Ser da raça branca e ter uma tradição cultural branca apenas recentemente foi tornado objeto de um estudo sistemático, do modo como ter uma tradição afro-ameri- cana é agora estudado - depois de uma longa e árdua luta por visibilidade. Embora a maior parte da história tenha sido escrita como a história dos brancos, raramente tem se concentrado em sua organização histórica variável, seus usos e abusos. Essa categoria racial e estrutura de poder dominante continua a ser privilegiada, tornada normal e natural e esquecida, como a heterossexualidade.f Falamos sobre a história das mulheres, mas com muito menos freqüência sobre a dos homens. Porque a história dos homens não tem levantado as mesmas questões que a das mulheres, estimulada recentemente pela pesquisa compensadora das feministas. Como a maior parte da história passada escrita tem se concentrado nas atividades dos homens e ignorado as das mulheres, o impulso inicial das feministas deu ênfase à recuperação da sua história. Somente há pouco tempo a organização social variável dos homens começou a ser alvo do mesmo escrutínio hístórico." A não ser que pressionados por vozes fortes e insistentes, não damos nome à norma, ao normal e ao processo social de normali- zação, muito menos os consideramos desconcertantes, objetos de estudo.f A análise do anormal, do diferente e do outro, das culturas da minoria, aparentemente tem despertado um interesse muito maior. Ainda assim, o forte desejo que muitos de nós temos de vestir roupas do nosso próprio sexo e a convicção profunda de que nos sentimos bem com o nosso sexo - se pensarmos sobre essas emoções - são tão intrigantes e complexas como o travestismo e o transexualismo, Por que normas externas de vestir e ter sexo deve- riam ser repressivas para tantos de nós? Afinal de contas, o que é ser do nosso sexo? Como iremos saber? Realmente achamos que exis- tem emoções específicas de um sexo e não de outro? Quem diz isso? Epor que isso importa, e importa tanto? Parece que precisamos saber mais sobre a produção histórica e social de sentimentos, corpos e roupas de cada sexo. 28 A INVENÇÃO DA HETEROSSEXUALlDADE Acho que um estudo crítico profundo da instituição social e histórica dos brancos e da masculinidade também revelará muito sobre a construção social da supremacia branca e do domínio masculino- tanto quanto o estudo crítico da história erótica do sexo diferente revelará sobre a criação cultural do predomínio heteros- - sexual. O exame dessas normas e desses sistemas institucionaliza- dos socialmente e nunca antes questionados pode proporcionar uma nova e surpreendente visão de um universo social normal anterior- mente invisível que coexiste com o mais estudado mundo diferente - talvez até mesmo mudar para sempre a nossa idéia de regra e exceção. A essa altura, os heterossexuais podem estar nervosos porque um livro que contesta as suposições tradicionais sobre à heteros- sexualidade também questiona a legitimidade de suas emoções, seus comportamentos, seus relacionamentos e suas identidades hete- rossexuais. Por isso, deixem-me dizer: este livro não duvida do valor da heterossexualidade de ninguém. E tampouco representa a vingan- ça do homossexual, uma difamação que opera em sentido contrário. Outro dos motivos de ansiedade que menciono aqui é que a história de uma heterossexualidade construída socialmente pode dar a impressão de que visa desprestigiar a heterossexualidade. Esse medo surge porque os deterministas biológicos têm convencido muitos de nós de que o sentimento sexual real de um indivíduo é estabelecido fisiológica e imutavelmente e portanto natural, normal e bom. De igual modo, alguns sexólogos. têm insistido em que as emoções eróticas de um indivíduo, emboi-a,apenas convergidas para um foco após o nascimento em um processo de interações sociais, são estabelecidas em uma tenra idade e pelo resto da vida - e portanto imaginamos que são autênticas e boas. A idéia de que os sentimentos hetero e homo são legitimados através desses determi- nismos biológicos ou sociais constituiu uma crença popular muito comum nos Estados Unidos do final do século XX. Muitos acham que a idéia de que a heterossexualidade e a homossexualidade são construídas historicamente desafia a reali- dade, a profundidade e o valor de seus desejos. Eu penso que essa percepção é errada. A qualidade emocional, os valores estético, A GENEALOGIA DE UM CONCEITO SEXUAL 29 Iieo, cultural e pessoal de qualquer eros é independente da biologia de suas origens construídas individual e socialmente. Concentro este livro em dois períodos importantes da história da heterossexualidade. O primeiro é o final do século XIX, quando () termo e o conceito foram criados e ainda eram variáveis. O gundo é a época, que teve início nos anos 1960, em que a hete- rossexualidade foi novamente desestabilizada - dessa vez, por fcrninistas e depois liberalistas homossexuais. Também me concentro na influência de vários homens sobre a 'riação da idéia e do ideal heterossexual. Como Karl Maria Kertbe- Ily, Richard von Krafft-Ebing, Sigmund Freud e quase todos os primeiros teóricos da heterossexualidade eram homens, não parece improvável que o ponto de vista particular desse sexo tivesse influenciado muito as suas - e as nossas - idéias sobre a heteros- sexualidade. Por isso, levanto a questão de como as teorias sobre a hcterossexualidade desses médicos (e mais tarde das feministas) influíram em suas idéias diferentes a respeito da heterossexualidade feminina e masculína/? Todos os pais da heterossexualidade eram também brancos, e como a sociedade da Europa Ocidental e a anglo-americana têm insistido em classificar as pessoas de cores e culturas diferentes por raça, o resíduo de uma perspectiva branca também pode ser encon- trado nas teorias sobre a heterossexualidade. A associação freudiana de civilização e heterossexualidade, de primitivo e homossexualida- de vem à mente, e as interseções complexas de raça e heteros- sexualidade são sugeridas."? Este pequeno livro sobre um tema amplo faz uma primeira tentativa exploratória de trazer à luz as implicações de uma heteros- sexualidade historicamente específica." Aqui eu faço um rascunho da história difícil e experimental da heterossexualidade que ainda precisa de pesquisas empíricas detalhadas e de ser mais analisada. Meu objetivo é dar continuidade à análise crítica da heterossexuali- dade que começou a ser feita nos anos 1960 e 1970 pelas feministas e por liberalistas homossexuais. Ficarei feliz se este trabalho es- timular mais investigações históricas sobre a heterossexualidade e novas interpretações baseadas nessa recapitulação extrema - mes- mo se essa pesquisa revisar e alterar as minhas próprias conclusões. lU I '111, 30 A INVENÇÃO DA HETEROSSEXUALlDADE Mas se, como eu disse, a heterossexualidade foi inventada, quem foram os seus inventores? Onde eles empreenderam a sua tarefa? Quando e como ela foi inventada? O que, exatamente, foi inventado? E finalmente - a pergunta mais difícil - por quê? Enquanto procuramos indicações e examinamos algumas res= postas para essas perguntas, peço-lhe que esqueça temporariamente a nossa hipótese de uma heterossexualidade universal. Venha comi- go agora em uma viagem ao passado sexual dos homens e das mulheres para observar e refletir sobre a invenção da heteros- sexualidade. .·l 2 "A ESTRElA DO HETEROSSEXUAL NA SOCIEDADE Richard VonKrafft-Ebing e os Médicos da Mente Nos Estados Unidos, na última década do século XIX, o instinto sexual era geralmente identificado como um desejo de procriação de homens e mulheres. Masaquele ideal reprodutivoestava come- çando a ser contestado, de modo tranqüilo mas insistente, na teoria e na prática, por uma nova ética doprazer do sexo diferente. Segundo aquele padrão totalmente novo, o instinto sexual dizia respeito ao desejo erótico de homens e mulheres uns pelos outros, independente de seu potencial reprodutivo. Aquelas duas moralidades sexuais fundamentalmente opostas inspiraram as primeiras definições ame- ricanas de heterossexuais e homossexuais. Sob a influência do velho padrão reprodutivo, o novo termo heterossexual a princípio nem sempre significou o normal e bom. O primeiro uso conhecido da palavra heterossexual nos Estados Unidos ocorreu em um artigo do Dr. James G. Kiernan, publicado em um jornal de medicina de Chicago em maio de 1892.1 Heterossexual não era equiparado aqui a sexo normal, mas a . perversão - uma tradição que se manteve na cultura da classe média até a década de 1920. Kiernan ligou heterossexual a uma de várias manifestações anormais do apetite sexual - .em uma lista de perversões sexuais - em um artigo sobre perversão sexual. A 32 A INVENÇÃO DA HETEROSSEXUALIDADE breve nota de Kiernan sobre heterossexuais depravados atribuía a sua definição (incorretamente, como veremos) ao Dr. Richard von Krafft-Ebing, de Viena. Aqueles heterossexuais eram associados a uma condição men- tal, hermafroditismo psíquico. Essa síndrome presumia que os sen- - timentos tinham um sexo biológico. Os heterossexuais sentiam a chamada atração física masculina por mulheres e a chamada atração física feminina por homens. Ou seja, aqueles heterossexuais perio- dicamente tinham inclinações para ambos os sexos? O hetero neles se referia não ao seu interesse por um sexo diferente, mas ao seu desejo por dois sexos diferentes. Sentindo um desejo supostamente inadequado para o seu sexo, eram culpados daquilo que agora consideramos um desvio sexual e erótico. Os heterossexuais também eram culpados de desvio reprodu ti- vo. Isto é, eles revelavam tendências a métodos anormais de gratifi- cação - modos de ter prazer sem reproduzir a espécie. Também apresentavam traços do apetite sexual normal- um certo desejo de reproduzir-se. O artigo do Dr. Kiernan também incluiu a mais antiga publi- cação conhecida da palavra homossexual nos Estados Unidos. Ele disse que os homossexuais absolutos eram pessoas com um estado mental geral do sexo oposto. Aqueles homossexuais foram definidos explicitamente como invertidos, pessoas que se rebela- ram contra a própria masculinidade ou feminilidade. Ao contrá- rio, seus heterossexuais contrariavam especificamente as normas eróticas e reprodutivas dos sexos. EB1'§ua estréia na sociedade americana, sua anormalidade pareceu serro triplo da dos homos- sexuais." Embora o artigo de Kieman empregasse os novos termos hete- rossexual e homossexual, seu significado era estabelecido por um velho e absoluto ideal reprodutivo. Seu heterossexual descrevia uma pessoa mista e um impulso complexo - a6 mesmo tempo de sexo .• diferenciado, erótico e reprodutivo. No ensaio de Kieman, o desejo reprodutivo ambivalente dos heterossexuais os tornava totalmente' anormais. Sua primeira definição de heterossexual descreveu um inequívoco pervertido. , A ESTRÉIA DO HETEROSSEXUAL NA SOCIEDADE 33 A PSICOPATIA SEXUAL DE KRAFFT-EBING I ) 1(( )VO termo hetero-sexual apareceu a seguir no início de 1893, na IIIIHH.lirapublicação em inglês, nos Estados Unidos, de Psychopa- IMII Sexualis, with Especial Reference to Contrary Sexual Instinct: A Medico-Legal Study, de Richard von Krafft-Ebing, Professor de I'Hlquiatriae Neurologia na Universidade de Viena." Esse livro seria uxxlitado posteriormente várias vezes nos Estados Unidos, tornan- d()~HC um dos mais famoso textos sobre a sexualidade patolágica? :-1ll11S exemplos perturbadores (e fascinantes) de um sexo considera- do doentio começaram a definir uma nova idéia de um sexo visto rumo sadio." Nesse livro, o instinto sexual patológico e o instinto sexual ronirârio são os mais importantes termos que se referem ao desejo uílo reprodutivo. Seu oposto, chamado simplesmente de instinto sexual. é reprodutivo. Mas aquela velha norma reprodutiva não era mais tão absoluta para Krafft-Ebing quanto o foi para Kiernan. É notável no grande livro do médico vienense sobre todas as varie- dades de sexo doentio a ausência de qualquer referência ao que ulguns outros médicos chamavam de onanismo conjugal, ou fraudes na realização da função reprodutiva - o controle da natalidade? No ardor do desejo do sexo diferente, declara Krafft-Ebing, homens e mulheres geralmente não estão pensando em conceber: No amor sexuàl o verdadeiro objetivo do instinto, apropagação da ispécie, não penetra na consciências Um objetivo reprodutivo inconsciente inspira a sua idéia de amor sexual. Seu instinto sexual é uma predisposição com um objetivo reprodutivo incorporado. Esse instinto é reprodutivo - o que quer que seja que os homens e as mulheres envolvidos em atividades heterossexuais estejam dese- jando. Colocando à parte o reprodutivo, no inconsciente, Krafft- Ebing criou um pequeno espaço obscuro no qual começou a surgir uma nova norma de prazer.' O instinto sexual reprodutivo de Krafft-Ebing, erótico e de sexo diferenciado, estava presente por definição em seu termo hetero- sexual- seu livro apresentou essa palavra para muitos americanos. Um hífen entre o hetero e o sexual de Krafft-Ebing combinou de um modo novo a diferença dos sexos e o erotismo para constituir um prazer definido explicitamente pelos sexos diferentes de suas partes. 11 ~'". ' I: (--' 11 I', r N.!! 34 A INVENÇÃO DA HETEROSSEXUALlDADE A ESTRÉIA DO HETEROSSEXUAL NA SOCIEDADE 35 lI' ql ,v,.! ' ill" Seu hetero-sexual, ao contrário do de Kiernan, não deseja dois sexos, femininos pode ir tão longe a ponto de o homem ser totalmente1(, l\iVI' ,li mas apenas um e oposto. dominado pelas mulheres, avisao Dr. MoU aos seus colegas amea- c: 1',1, ," ' , P~1'" ' O termo hetero-sexual, de Krafft-Ebing, não faz qualquer refe- " çados. 'D li '1,,",1 ' rência explícita' à reprodução, embora implicitamente sempre in- Essa reversão no relacionamento de poder homem-mulher cos- ;~II'IIII' clua o desejo reprodutivo. Por isso, significa da mesma forma- tumeiro poderia não ser desagradável para as mulheres vitorianas u,11I'I1 uma normalidade erótica. Seu termo gêmeo, homo-sexual, sempre que viam a si mesmas - e aos seus lenços - como objetos de um I I' li significa um desejo pelo mesmo sexo, patológico porque não é interesse masculino fetichista. MoUcita uma dessas mulheres: II;I!"" reprodutivo. Ao contrário da conotação anterior de Kiernan, Krafft-Ebing Eu conheço um certo cavalheiro, e quando o vejo a distância somente \ ' li,' preciso puxar o meu lenço um pouco para fora do meu bolso para ter 'li usa constantemente hetero-sexual para referir-se ao sexo normal. I I' ,"I! Por outro lado, para Kiernan e alguns outros sexólogos do final do certeza de que ele me seguirá como um cão segue o seu dono. Onde l'l '::11 I quer que eu vá, ele irá atrás. Mesmo que esteja em uma carruagem ouI século XIX e início do século XX, um simples padrão reprodutivo fazendo algo de importante, ao ver o meu lenço interromperá tudo paraera absoluto: os heterossexuais no texto de Krafft-Ebing pareciam . ., . I 010I II li,,: seguir-me -ISto e, seguir ao meu enç .I culpados de ambigüidade procriativa, e portanto de perversão., . I II :11 t I· Essas distinções entre termos e definições sexuais são his- Nos exemplos acima, o termo hetero-sexual significa um ero- 11" toricamente importantes, porém complexas, e podemos achar difícilI I' tismo normal de sexo diferente, embora intimamente ligado aoI !li,; I'. i entendê-Ias. A norma heterossexual dominante de nossa própria fetichismo e ao desvio não reprodutivo. Nos exemplos que se sociedade também ajuda a formar um bloqueio em nossas mentes a seguem o hetero-sexual de Krafft-Ebing é associado, como fre- outros modos de classificação. ' .. r 11, '1 qüentemente ocorre, à perversão que ele chama de homossexua l- I Leitores como o Dr. Kiernan também poderiam por associação dade e instinto sexual contrário.I t ~ I li considerar os heterossexuais de Krafft-Ebing pervertidos. Porque a II lI,i, palavra hetero-sexual, embora significando normalidade, aparece I freqüentemente no livro do médico vienense ligada ao desvio não :--, SR. Z 11,,1111 reprodutivo - ao instinto sexual contrário, ao hermafroditismo "1"1,, psíquico, à homo-sexualidade e ao fetichismo. A história de um certo Sr. Z, um holandês de 36 anos, tem o título 1,11111 .:» "Contrary Sexual Instinct-with Sexual Satisfaction in Hetero-Se- Por exemplo, o primeiro uso que Krafft-Ebing faz de hetero-I, ,I sexual ocorre em uma discussão de .vários casos de hetero- e xual lntercourse".'! \ homo-sexualidade em que um certo tipo de vestimenta se torna um Por motivos familiares e de negócios, o Sr. Z precisa casar-se e "i ·lil I " fetiche? O hetero-sexual, assim como o homo-sexual, estréiam , consulta Krafft-Ebing, ansioso em relação à sua futura virilidade II como indivíduos que fazem das roupas um fetiche. como marido. A família e as obrigações sociais do Sr. Z estão em 'I I)1 1'11 O fetiche do segundo hetero-sexual apresentado é um lenço. desacordo com as suas inclinações eróticas. Na fantasia, diz o Sr. ZI 11' Krafft-Ebing cita um relatório sobre esse impulso nos heteros- ao médico, o seu maior prazer é abraçar e apertar-se contra um li' , sexuais, de autoria do Dr. Albert MoU, outro famoso e antigo homem da classe operária. ,11'11 sexólogo. O lenço da dama vitoriana aparentemente tinha um forte A beleza da forma feminina, diz Krafft-Ebing, não impres- ::111: apelo.erótico para muitos homens daquela época. Ao que tudo indica siona o Sr. Z. Apesar de sua falha estética, seu paciente aprecia o 11'11, uma forte atração pelos lenços das mulheres poderia, mesmo tem- coito com prostitutas. Ele visita regularmente bordéis - para I porariamente, diminuir o poder patriarcal. Uma paixão pelos lenços curar-se da masturbação e satisfazer totalmente a sua libido. 12 til, ,",', 'I"i '\,. ~(' ~- .-_.~-~. ~.- .. 36 A INVENÇÃO DA HETEROSSEXUALlDADE Através de terapia Krafft-Ebing garante ao Sr. Z que ele é viril e provavelmente o será no sexo conjugal com a sua futura esposa. A autoridade científica patriarcal das exortações desse médico à virilidade são claramente parte da medicina que ele exerce. O Sr. Z é incentivado a declarar guerra aos seus sentimentos eróticos põr homens, abster-se totalmente da masturbação e satisfazeros seus desejos sexuais normais - aparentemente, continuar a freqüentar bordéis. Ele também é incentivado a tentar o hipnotismo, a hidrote- rapia (banhos) e a faradização (a aplicação no corpo de pequenas correntes elétricas). Outros usos que Krafft-Ebing faz de hetero-sexualligam esse termo à forma de perversão chamada de hermafroditismo psíquico - desejo erótico por ambos os sexos." Discutindo possíveis trata- mentos, o médico observa que indivíduos que se sentem atraídos por ambos os sexos são os melhores candidatos à conversão à normali- dade heterossexual. O que havia de óbvio nesse ponto de vista não o impediu de ser repetido como um profundo insight por vários psiquiatras posteriores. No caso dos pacientes com algum claro interesse pelo sexo oposto, os médicos achavam premente enfatizar esse potencial. Por isso, os psiquiatras submetiam os seus pacientes interessados em ambos os sexos a uma censura moral especialmente severa quando eles continuavam, voluntariamente, a satisfazer os seus desejos pelo mesmo sexo. ' SR. voN x Como ele tem sentimentos hetero-sexuais, Krafft-Ebing evidencia para o Sr. von X uma predileção descrita como algo não completo e irremediável (outro nome para homo-sexual). Os problemas sexuais do Sr. von X começaram depois que ele completou 18 anos, quando tornou-se uma fonte de ansiedade para os seus pais muito respeitáveis. Naquela época ele começou a ter um caso amoroso com um escritor, que o enganou e o expôs ao ridículo. Em casa, o Sr. von X tinha relações com criados, livrou-se de uma tentativa de chantagem e, segundo o seu severo terapeuta, continuou a exibir vergonhosas inclinações para os homens. A ESTRÉIA DO HETEROSSEXUAL NA SOCIEDADE 37 Enviado a Krafft-Ebing para ser curado de sua peculiaridade II/fal, o Sr. von X garante ao médico que quer ser curado. Contudo, IIllfoscenta que nunca havia considerado anormal sua inclinação l/ora o seu próprio sexo. O médico tenta convencê-Io do contrário. orno von X mostra rudimentos de emoções hetero-sexuais, rllfft-Ebing dá início à hipnose, sugerindo a seu paciente: 1. Eu tenho horror ao onanismo, porque me repugna e faz com que eu me sinta péssimo. 2. Não tenho mais interesse pelos homens; porque o amor pelos homens é contra a religião, a natureza e a lei. 3. Eu me sinto atraído pelas mulheres; porque a mulher é encantadora, desejável e criada para o homem.l'' Vários anos depois dessa lavagem cerebral, o relatório sobre o paciente: Ele ainda sentia uma certa atração por alguns homens, mas nada parecido com amor. Ocasionalmente tinha prazer no ato sexual com mulheres e agora pensava em casàmento.P Várias das histórias de tratamento de Krafft-Ebing terminavam com sinos de igreja tocando-ou, ao menos, com a idéiade casamento. SR. VON Z Em várias conversões de Krafft -Ebing uma forte pressão social para o casamento tem um 'papel importante. A visita do Sr. vou Z ao psiquiatra é motivada por pressão externa para que ele se case, não pelo próprio desejo do paciente de heterossexualidade exclusiva." O Sr. von Z, de 29 anos, um homem alto e esguio de modos aristocráticos e decididamente másculos, consulta Krafft-Ebing mortificado por seus sentimentos sexuais em relação a outros ho- mens _ e especialmente porque a sua família insiste em que ele se case. O Sr. von Z só se interessa pelas mulheres mentalmente, não fisicamente, e sonha apenas com homens. Sua atividade sexual inclui masturbação passiva oumútua com homens e solitária. O sofrimento do Sr. von Z comove Krafft-Ebing. Com esse paciente, tão digno depena, o médico também tenta a hipnose, sugerindo ao Sr. von Z: 38 A INVENÇÃO DA HETEROSSEXUALlDADE Sempre despreze a masturbação e o amor dos homens; encontre mu- lheres bonitas e sonhe com elas.'? Depois dessas instruções, o Sr. von Z descobre que pode resistir ao desejo homo-sexual. Redirecionando o seu erotismo, o Sr. von Z rapidamente muda de atitude em relação ao seu sexo - e à sua casa, às suas roupas e aos seus livros. Seu antigo boudoir toma-se um escritório; em vez de apreciar adornos e leituras frívolas, ele passou a caminhar pelas montanhas e florestas.18 Como um fiasco prematuro no ato sexual com uma mulher poderia sabotar as perspectivas de tratamento do Sr. von Z, a iniciativa de tentar ter sexo com uma mulher foi deixada para o pacieniet" Depois da décima quarta semana de hipnose, diz Krafft- Ebing, o Sr. von Z aventurou-se a praticar o ato sexual com uma mulher, foi muito bem-sucedido, tornou-se feliz e sadio de corpo e mente e até mesmo pensou em casamento. 20 Sentindo-se perfeitamente normal aopraticar o ato sexual com uma mulher, o paciente parou com o tratamento. Quando Krafft- Ebing o viu, cerca de um ano depois, o Sr. von Z ainda considerava a sua vida sexual perfeitamente normal; porque praticava o ato sexual regularmente com prazer eplena virilidade, sonhava apenas com mulheres e não Úndia mais a masturbar-se. Contudo, depois do ato sexual o Sr. von Z admitiu que freqüen- temente ainda sentia uma atração passageira por homens, embora fosse fácil controlar-se. Ele se consideravâ tkfinitivamente curado, e estava (ainda) ocupado pensando em casamenmã O desejo do paciente de dizer ao médico o que ele queria ouvir certamente está presente em relatórios desse tipo. SR. R O casamento é um resultado fenomenal do tratamento no caso do Sr. R, citado por Kra:fft-Ebing como tendo sido relatado pelo Dr. von Schrenk-Notzing, antigo especialista em hipnose como cura para o desejo sexual não reprodunvo.> Krafft-Ebing diz a respeito do Sr. A ESTRÉIA DO HETEROSSEXUAL NA SOCIEDADE 39 R: Eu considero o instinto hetero-sexual do paciente a criação artificial de seu excelente médico. Embora geralmente considerado inato, ao que parece o desejo heterossexual poderia às vezes ser induzido artificialmente - inventado. A ingenuidade dos médicos não tinha limites. O Sr. R, um oficial de 28 anos, disse: Nas relações sexuais eu me sinto completamente feminino. Sentir-se feminino significava: Desde muito jovem, em meus atos e fantasias sexuais sempre tive diante de meus olhos apenas imagens de homens e órgãos genitais masculinos.ê Aqui, o sentimento é considerado distinto em homens e mulheres. ' Depois de algumas sessões com Schrenk-Notzing, foi induzido o sonambulismo, sendo sugerida uma indiferença pelos homens e um interesse pelas mulheres. O Sr. R passou então a sentir prazer com a visão das mulheres. Na sétima sessão, foi sugerida a consu- mação do ato sexual-o que veio a ocorrer. Contudo, depois de três meses de sexo comandado, o Sr. R teve uma recaída induzida, segundo foi dito, por seu companheiro. Na próxima sessão com o seu médico o Sr. R sentiu remorso e vergonha. Como expiação, mais tarde praticou o ato sexual com uma mulher na presença de seu sedutor. Essa expiação aparente- mente incluiu o prazer homossexual e erótico inconsciente da con- templação deseu companheiro. Após 45 sessões, diz Schrenk-Notzing: o Sr. R considerou-se curado. O tratamento terminou. Ele ficou noivo de uma jovem algumas semanas depois e apresentou-se novamente, após seis meses, como um recém-casado feliz.24 A qualidade mecânica e pouco convincente do ponto de vista psicológico dessas copulações heterotransfiguradas é típica de mui- tas relatadas em textos psicológicos posteriores - uma forma de literatura de conversão. Sem rejeitar a velha norma reprodutiva, Krafft-Ebing introduziu o novo termo heterossexual. No século XX, ele passou a significar uma sexualidade relativa ao sexo oposto totalmentedesvinculada da reprodução. Seu uso do termo heterossexual começou a afastar a sua 40 A INVENÇÃO D~ HETEROSSEXUALlDADE discussão sobre o sexo do ideal reprodutivo vitoriano e a levá-Ia na direção da norma erótica moderna do sexo diferente. Seu texto é de transição, situando-se em um espaço entre o vitoriano e o moderno. O uso de KrafftEbing da palavra hetero-sexual para significar um erotismo normal de sexo diferenciado indicou um primeiro - afastamento histórico da centenária norma reprodutiva. Seu uso dos termos hetero-sexual e homo-sexual ajudou a tomar a diferença entre os sexos e o eros as características distintivas básicas de uma nova ordem social, ~ngüística e conceitual do desejo. Seus hetero- sexual e homo-sexualofereceram aomundo moderno dois erotismos de sexo diferenciado, um normal e bom, outro anormal e ruim, uma divisão que viria a dominar a nossa visão do século XX do universo sexual. Como eu me concentro em Psychopathia Sexualis, de Krafft- Ebing, como um texto básico sobre a heterossexualidade, os leitores podem presumir que a palavra hetero-sexual domina o seu livro. Mas em suas 436 páginas o termo aparece apenas 24 vezes e não é considerado suficientemente importante para ser indexado.> Os heterossexuais são demenor interesse explícito para esse médico do que os pervertidos não reprodutivos nos quais ele se concentra. Esse texto sobre oimpulso sexual patológico começa a apresen- tar uma nova idéia do instinto sexual sadio. Falando sobre apatologia não reprodutiva, ele faz uma distinção entre atos supostamente causados por uma anormalidade inata, biológica - perversão se- xual congênita - e atos voluntários que constituem uma perversão sexual adquirida. Aquela distinção entre "átosdeterminados biologi- camente e atos realizados individualmente serviu como um final ético e legal. Segundo essa teoria moral-biológica, os indivíduos não são responsáveis por sua perversão sexual não reprodutiva inata _ ou, conseqüentemente, por sua atração erótica pelo outro sexo voltada para a procriação e isata. A idéia de uma determinada orientação sexual fisiológica (sadia ou doentia, normal ou anormal) tomou-se uma hipótese dominante da teoria sexual moderna. No século XX, essa bioética deterrninsta afirma que a heterossexualidade é um fato imutável da natureza - uma norma estabelecida naturalmente. A ESTRÉIADO HETEROSSEXUAL NA SOCIEDADE O modelo de transição de Krafft-Ebing da sexualidade foi ambíguo em relação ao prazer - um conflito básico sobre o valor do erotismo é evidente nessee em muitos textos posteriores sobre a heterossexualidade. Por outro lado, na primeira página de Psychopathia Sexualis, Krafft-Ebing se refere bastante positivamente ao prazer associado com a expressão do instintosexual reprodutivo: Na gratificação desse impulso natural são encontrados não apenas o prazer sensual e fontes debem-estar físico, como também uma profunda satisfação por estar-se perpetuando a vida única e não eterna através da transmissão de atributos mentais e físicos para um novo ser.26 A alegria que o sentimento sexual provoca, acrescenta ele, parece incomparável e infinita emcontraste com todas as outras sensações agradâveis/? Mas a sua primeira página também parece ameaçadora: No amor sensual obsceno, no impulso lascivo de satisfazer a esse instinto natural, o homem se coloca no nível do animal. Esse é de fato um nível baixo. Apenas através de muito esforço os seres humanos civilizados se distinguem das bestas sensuais e controlam seus desejos naturais. O natural aqui não é de forma alguma o bom. O homem pode elevar-se a Uma altura em que esse instinto natural não mais o escraviza. Nesse pináculo moral, são despertados sentimentos mais nobres, que apesar de sua origem sensual se expandem para um mundo de beleza, magniftcência e moralidade. Esse médico sugere que controlando os impulsos sensuais o homem supera o seu instinto natural, e de uma fonte inesgotável tira material e inspiração para obter uma satisfação maior, realizar um trabalho melhor e atingir a perfeição.ê A canalização produtiva adequada da sensualidade natural era uma responsabilidade in- dividual e social. Uma hierarquia
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