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Formação de Mediadores de Educação para Patrimônio Yazid Jorge Guimarães Costa Museus e patrimônio para Patrimônio SUMÁRIO 1. Apresentação ............................................................................. 99 2. O que é um museu?.................................................................. 100 3. Pequeno percurso dos museus no Ocidente .......................... 104 4. E no Brasil? .............................................................................. 107 5. Museu é patrimônio! ................................................................ 109 Referências bibliográfi cas ........................................................... 111 SE LIGA! Você se lembra qual foi a primeira vez que visitou um museu? Você sabia que muitos brasileiros nunca visitaram um museu e talvez passem a vida inteira sem vivenciar esta experiência? 1. APRESENTAÇÃO Plataforma MuseusBR do IBRAM (Instituto Brasileiro de Museu) indica a existência de 3.801 museus cadastra- dos no Brasil, entre públicos e privados. Os moradores de São Paulo e Rio Grande do Sul são os estados brasilei- ros que mais possuem uni- dades museológicas no país, com 665 e 465 museus, respectivamente. Quando olhamos para o resto do mun- do, os números surpreendem ainda mais. A 26ª edição da publicação Museums of the World (2019) apresenta informações de mais de 55 mil instituições museológicas espalhadas por 202 países! Faço, então, um convite aos participan- tes do nosso curso: reflitam sobre o que é um museu, a partir da história dessa insti- tuição e de suas transformações, sempre questionando: museu é patrimônio? Ao fim da jornada, quem sabe você não se tor- na também um agente dos museus e do pa- trimônio na sua comunidade? PARA OS CURIOSOS A Plataforma MuseusBR foi implementada em 2015, ampliando o Cadastro Nacional de Museus (CNM). Está interligada ao Mapas Culturais, outra plataforma gerenciada pelo governo federal, com o objetivo de fornecer informações mais detalhadas sobre o setor museológico brasileiro, de modo colaborativo. Acesse a plataforma e veja quais museus há em seu bairro, cidade e estado: http://museus.cultura.gov.br Formação de Mediadores de Educação para Patrimônio 99 2. O QUE É UM MUSEU? m 2019, o Icom (Conselho Interna- cional de Museus, sigla em inglês) buscou dar mais um passo em sua longa tentativa de definir o que é um museu, sem, no entanto, che- gar a um consenso. E isso não é por acaso. Afinal, o mundo dos museus é extremamente vasto, represen- tando pessoas e modos de viver inteiramente diferentes uns dos ou- tros. Vamos trabalhar aqui com a definição disponível desde 2007 pelo próprio Icom: Um museu é uma instituição perma- nente, aberta ao público e sem fins lucrativos a serviço da sociedade e de seu desenvolvimento, que adquire, conserva, pesquisa, comunica e ex- põe o patrimônio tangível e intangível da humanidade e do ambiente para fins de educação, estudo e deleite. Ainda que a definição proposta não tenha um valor legal, pois é elaborado por uma organização internacional não- -governamental, ela tem sido utilizada com fins normativos nos diversos Estados Na- cionais que possuem museus e buscam de- senvolver políticas públicas para tais insti- tuições. É o caso da Lei nº 11.904, de 14 de janeiro de 2009, que instituiu o Estatuto de Museus e deu outras providências relativa ao campo museológico brasileiro. Logo em seu primeiro artigo, afirma-se: 2. 100 FUNDAÇÃO DEMÓCRITO ROCHA | UNIVERSIDADE ABERTA DO NORDESTE SAIBA MAIS Em setembro de 2019, realizou-se em Quioto, Japão, a 25ª Conferência Geral do Icom, quando o debate sobre uma nova definição de museu aconteceu. As discussões foram acaloradas e, por isso, suspensas temporariamente. A proposta discutida foi a seguinte: “Os museus são espaços democratizantes, inclusivos e polifônicos para um diálogo crítico sobre o passado e o futuro. Reconhecendo e enfrentando os conflitos e desafios do presente, eles guardam artefatos e espécimes para a sociedade, salvaguardam diversas memórias para as futuras gerações e garantem direitos iguais e acesso igual ao patrimônio para todos os povos. Os museus não são lucrativos. Eles são participativos e transparentes, e trabalham em colaboração ativa com e para várias comunidades, a fim de coletar, preservar, investigar, interpretar, expor e expandir os entendimentos do mundo, com o propósito de contribuir para a dignidade humana e justiça social, para igualdade mundial e bem-estar planetário”. E você, o que pensa sobre essa definição? Art. 1º. Consideram-se museus, para os efeitos desta Lei, as instituições sem fins lucrativos que conservam, inves- tigam, comunicam, interpretam e ex- põem, para fins de preservação, estudo, pesquisa, educação, contemplação e tu- rismo, conjuntos e coleções de valor his- tórico, artístico, científico, técnico ou de qualquer outra natureza cultural, aber- tas ao público, a serviço da sociedade e de seu desenvolvimento. Parágrafo único. Enquadrar-se-ão nesta Lei as instituições e os processos muse- ológicos voltados para o trabalho com o patrimônio cultural e o território visando ao desenvolvimento cultural e socioeco- nômico e à participação das comunida- des. (BRASIL, 2009) Assim, quando você observa as duas de- finições – do Icom e do Estatuto de Museus – percebe que ambas possuem a mesma raiz, destacando que os museus devem estar a serviço da sociedade e de seu desenvolvi- mento e que tal serviço acontece por meio de processos de conservação, pesquisa e comunicação do patrimônio (material, imaterial ou natural) de uma sociedade, en- tendendo a interpretação, a educação e a exposição como algumas das faces do pro- cesso de comunicação museológica. Formação de Mediadores de Educação para Patrimônio 101 Perguntamos: será que tais definições servem para todos os museus? Será que um museu deixa de ser museu por não cumprir com uma ou mais dessas funções? Você sabia que um museu não deixa de ser museu por estar temporariamen- te fechado? Claro que não, pois inúmeras outras atividades – exceto a visitação do público – permanecem ocorrendo mesmo a portas fechadas, como as ações de con- servação, pesquisa e comunicação, que não se referem especificamente às expo- sições apresentadas na sede do museu. É o caso do Museu do Ceará, em Fortaleza, cujo trabalho interno está preparando a instituição para as obras de restauro no Pa- lácio Senador Alencar, sede da instituição, um bem tombado a nível federal, em 1973. O fechamento temporário também se jus- tifica para permitir a reestruturação de sua exposição de longa duração, realizando assim um conjunto de ações que se enqua- dram na musealização dos patrimônios salvaguardados pela instituição. Um museu não vira uma empresa, ins- tituição que tem por fim o lucro, ao cobrar ingressos ou abrir uma loja de souvenires, pois tais ações são subsidiárias à sua ma- nutenção, como forma de colaborar com o financiamento das diversas atividades que são necessárias para o seu bom desenvol- vimento, já que os custos de conservação dos patrimônios, incluindo a do próprio prédio da instituição, a manutenção do quadro de profissionais envolvidos, assim como os equipamentos e materiais perma- nentes, são elevados. Nem todos os museus estão abertos ao público no momento, no Brasil ou fora dele. Exposição É apenas uma das diversas formas que o museu possui para realizar a comunicação museológica. Pode ser de “curta” ou “longa duração”, “itinerante”, “virtual”, realizada em salas ou a céu aberto. Como meio de comunicação mais tradicional aos museus, é frequentemente associada ao ato de ver, em detrimento dos outros sentidos, mas cada vez mais é possível encontrar exposições interativas nas quais outros sentidos são explorados e o público é sujeito ativo. Musealização Processo científico de valorização do patrimônio que é removido de seu contexto de origem, ganhandoo estatuto de museal, por meio de um conjunto de atividades relacionadas à preservação, pesquisa e conservação. Tal processo é conceitualmente próximo ao de patrimonialização, mas específico ao campo dos museus. Não se deve confundir com museificação, de aplicação pejorativa, visto como uma tentativa de “cristalização” de algo considerado “vivo”. Os objetos que são musealizados tornam- se musealia. 102 FUNDAÇÃO DEMÓCRITO ROCHA | UNIVERSIDADE ABERTA DO NORDESTE Alguns sequer vão voltar a abrir as suas portas para visitação, como aqueles que neste momento estão sendo saqueados ou destruídos em zonas de guerra. Há aqueles vitimados pelas intempéries da natureza, assim como pelo descaso da própria humanidade, mesmo guardando artefatos e referências culturais que um grupo de pessoas resolveu proteger, não apenas para si, mas para os outros membros desse cole- tivo que chamamos humanidade. Os museus podem ser compreendi- dos ainda, como afirma Pierre Nora (1993), como lugares de memória, no sentido de que os grupos organizadores desses espa- ços têm sempre uma intenção de memó- ria, que nunca é neutra. Esses museus são campos de disputa que objetivam o con- trole das representações do pretérito, seja ele mais recente ou muito antigo. Essa chave interpretativa nos permite analisar os museus de história, que buscam refletir so- bre as ações da humanidade no tempo, até os museus de arte contemporânea, que no seu processo de colecionamento ativo vão criando o passado da arte em tempo real, por meio das referências culturais dos gru- pos envolvidos na sua gestão. As definições do que é um museu podem diferir em maior ou menor grau, mas existe um consenso: independente da forma, do meio ou das práticas, tais instituições de- vem cumprir três funções específicas: (1) função científica, relacionada à produção do conhecimento; (2) função educativa, re- lacionada à capacidade de educar por meio do patrimônio e (3) função social, quando a instituição integra essas funções e atua jun- to com a sociedade que o circunda. Formação de Mediadores de Educação para Patrimônio 103 3. PEQUENO PERCURSO DOS MUSEUS NO OCIDENTE s museus que existem hoje têm uma história. Seja lon- ga e gloriosa, mas não sem percalços, como o Museu Nacional, localizado no Rio de Janeiro (RJ), considera- da a mais antiga institui- ção museal brasileira, em atividade, mesmo após o terrível incêndio que o vitimou, em setembro de 2018, ironicamente data em que eram ce- lebrados os seus 200 anos de atividade. Outros já têm uma história mais mo- desta, mas não menos audaciosa e inova- dora, como é o caso do Memorial do Ho- mem Kariri, da Fundação Casa Grande, localizado na cidade de Nova Olinda (CE), na chapada do Araripe. Sediado em um prédio que estava em ruínas há décadas e restaurado em 1992, apresenta em seu acervo – além da própria sede, considerada sua primeira “peça” – acervo lítico e cerâmicas que são relaciona- dos com os aspectos mitológicos da região. Um destaque desse museu é que sua equipe é composta por crianças e jovens que parti- cipam de atividades formativas nas áreas de gestão cultural, arqueologia e museologia. 3. PEQUENO terrível incêndio que o vitimou, em setembro de 2018, ironicamente data em que eram ce- Outros já têm uma história mais mo- desta, mas não menos audaciosa e inova- Memorial do Ho- da Fundação Casa Grande, localizado na cidade de Nova Olinda (CE), Sediado em um prédio que estava em ruínas há décadas e restaurado em 1992, apresenta em seu acervo – além da própria sede, considerada sua primeira “peça” – acervo lítico e cerâmicas que são relaciona- dos com os aspectos mitológicos da região. Um destaque desse museu é que sua equipe é composta por crianças e jovens que parti- cipam de atividades formativas nas áreas de 104 FUNDAÇÃO DEMÓCRITO ROCHA | UNIVERSIDADE ABERTA DO NORDESTE PARA OS CURIOSOS Sobre o Memorial do Homem Kariri, da Fundação Casa Grande, veja: https://www.facebook.com/fcgmhk/ Mas se esses dois museus são tão dife- rentes entre si, há uma característica que os une: um coletivo de pessoas, ao longo do tempo, decidiu que valia a pena preservar algo (material e imaterial) para as futuras gerações, como referência da sua identida- de cultural e o fez a partir de um processo de colecionamento. Assim, independentemente do nome, do tamanho e da história, museu e patri- mônio são temáticas inseparáveis. Essa relação, no entanto, nunca foi linear, ainda que possamos falar das origens do ter- mo museu na Antiguidade (museum, no la- tim; mouseion, no grego). Tais denominações remontam ao Templo dedicado às Musas, sendo o mais famoso deles o Mouseion de Alexandria, fundado aproximadamente no século III a.C., que sobreviveu por quase seis séculos, até ser destruído. Segundo Edward e Mary Alexander (2008), possuía estátuas de pensadores, papiros, instrumentos cirúr- gicos e astronômicos, parque botânico e zo- ológico, com funções próximas àquelas que atribuímos hoje às universidades ou centros de estudo, nos quais importantes pesquisa- dores viviam e estudavam. É interessante observar que apesar do Mouseion apresentar um conjunto de funções diversas daquelas que atribuímos hoje aos museus, já possuíam coleções públicas de objetos valorizados por sua importância his- tórica, estética, religiosa ou mágica, frequente- mente armazenadas e expostas em templos. Durante a Idade Média (entre os séculos X e XV), as igrejas, catedrais e monastérios foram os lugares frequentemente usados para venerar relíquias de santos, pro- duzindo arte em diversos metais e pedras preciosas, manuscritos e outros objetos protegidos por seus fins religiosos, estéticos e históricos. Tais coleções também se bene- ficiaram das ações das Cruzadas (séculos XI a XV), que produziam imensos espólios, tanto para a Igreja, quanto para soberanos do continente europeu, legando aos mu- seus um estado de dormência conceitual. Isto significa que a vontade de memória e prática de colecionamento relacionada a ela permanece como uma característica da sociedade ocidental, mas seus fins, práti- cas, funções e sujeitos envolvidos diferem daquilo que entendemos por museu hoje. No início da Idade Moderna (séculos XV a XVIII) surgem as galerias e os gabinetes de curiosidades ou wunderkammer, com espe- cial representatividade, respectivamente, na Itália e na Alemanha, lugares fruto do huma- nismo do Renascimento, do expansionismo ultramarino europeu e do mercantilismo. As galerias eram lugares específicos para a apresentação de quadros e escultu- ras, compostas por um longo corredor com iluminação proveniente de apenas um lado. Já os gabinetes eram lugares menores, normalmente quadrados, com uma tipolo- gia extremamente diversa de objetos cole- cionados, tais como animais empalhados, exemplares de botânica, joias, curiosidades de outros povos e lugares trazidos pelos navegantes. Tais lugares, porém, eram fre- quentemente restritos aos seus proprietá- rios, fossem eles príncipes, reis, papas ou grandes comerciantes de uma burguesia Formação de Mediadores de Educação para Patrimônio 105 em ascensão. Também é nesse período que surgem os jardins botânicos em universida- des, de modo a possibilitar o estudo siste- mático do mundo vegetal. O ato de colecionar coisas do mun- do natural e da sociedade, por parte dos soberanos, para fins de deleite, pôde ser verificado ainda entre os Aztecas, povo pré-colombiano que vivia no território que atualmente é o México. Um de seus gover- nantes, Montezuma II, mantinha casas de passatempo onde existiam jardins com tanques de água doce e salgada, diversas linhagens de felinos e aves aquáticas da re- gião, além de uma equipe especializada no cuidado com os animais. No século XVII, as coleções, antes de acesso restrito, tornaram-se um modelo mais próximo do que temos hoje, com acer- vos protegidos em prol do interesse público, num movimento vinculadoà criação de leis de proteção ao patrimônio artístico, como em Florença (1602) e Roma (1624 e 1745). Em 1671, é aberto ao público, na Uni- versidade de Basel, Suíça, o Amerbach Kabinett, cuja coleção fora adquirida dez anos antes. Em 1683, na cidade de Oxford, Inglaterra, inaugurou-se o Ashmo- lean Museum, fruto da coleção pessoal de Elias Ashmole, que no ano anterior doara seu acervo para a Universidade de Oxford, instituição que mantém o museu aberto até os dias de hoje, sendo considerado o mais antigo do mundo em atividade. É nesse movimento de abertura das cole- ções, ainda muito restrita aos pesquisado- res e intelectuais, que vai sendo forjada a ideia dos museus públicos. É no século XVIII que se firmam as ba- ses para os Museus de História Natural, que serão influenciados pelo Iluminismo, desejosos de erudição e conhecimento so- bre os mundos da natureza, desenvolven- do técnicas de organização e classificação, aplicando o ideal de Razão em um proces- so de ordenamento do mundo conhecido por meio dos objetos colecionados, cuja prática se associou fortemente ao pensa- mento enciclopédico. As consequências da Revolução France- sa (1789), que marca o início da Idade Con- temporânea, mostram a expansão e conso- lidação, no continente europeu, de políticas de preservação do patrimônio, nas quais se incluem os museus. Em 1793, o Palácio do Louvre é aberto ao público como Museu da República, alte- rando o estatuto dos objetos de valor histó- rico e artístico confiscados junto à realeza, à Igreja e aos emigrados, que se tornam um patrimônio nacional a ser identificado, cata- logado, protegido e exposto aos cidadãos. O século XIX é considerado o século dos museus. Foi o momento no qual se cria- ram redes de museus fundados no período, em diversos países, buscando dar conta da construção de memórias e identidades na- cionais, educação estética e a populariza- ção da ciência. Os acervos, pesquisadores e conhecimentos circulavam sobre o mundo que se conhecia e se ordenava por meio das peças colecionadas e do próprio mundo museal, com seus sistemas sendo desen- volvidos e transformados em cada país, por meio dos intercâmbios científicos. 106 FUNDAÇÃO DEMÓCRITO ROCHA | UNIVERSIDADE ABERTA DO NORDESTE 4. E NO BRASIL? também no século XIX que são fundados alguns dos mais impor- tantes e antigos museus do Brasil, como o Museu Real (hoje Museu Nacional), em 1818; a Pinacote- ca da Escola Nacional de Belas Artes (RJ), em 1851, que deu ori- gem ao Museu Nacional de Belas Artes; o Museu Paraense Emílio Goeldi (PA), em 1866; o Museu Paranaense (PR), em 1876, e o Museu Paulista (SP), em 1895. Tais modelos foram sedimentando uma forma de pensar os mu- seus calcada no cientificismo, protagoniza- do notadamente pela atuação do Império brasileiro, assim como pelos presidentes de província e intelectuais do período. Na história dos museus brasileiros hou- ve também experiências de colecionismo privado, que originaram museus ainda no século XIX, mas que infelizmente não so- breviveram às provas do tempo, como o Museu Simoens da Silva (RJ), em 1879; e o Museu Rocha (CE), em 1894. O primeiro teria uma feição mais pró- xima de um gabinete de curiosidades, in- cluindo obras de arte, armas, móveis, entre outros objetos colecionados por Simoens da Silva, descendente da aristocracia im- perial, que o fundou quando tinha oito anos de idade, com fragmentos de cerâ- mica chinesa e indiana descartados. En- cerrou suas atividades em 1957, quando seu acervo foi à leilão em meio as disputas pelo patrimônio familiar. Já o segundo foi fundado pelo comer- ciante, professor e cientista brasileiro Fran- cisco Dias da Rocha, que colecionou itens da história natural por meio da aquisição e per- muta de peças com outros museus brasilei- ros e estrangeiros. Antes de seu falecimento, em 1960, doou a maior parte do seu acervo para diversas instituições como Gabinete de Zoologia da Escola de Agronomia, o Museu Zoológico de Farmácia e Odontologia e o Sa- lão de História Natural da Escola Normal Jus- tiniano de Serpa, todos em Fortaleza, Ceará. É o século XX, no entanto, a era dos museus no Brasil. 4. Formação de Mediadores de Educação para Patrimônio 107 Segundo dados do IBGE (Instituto Bra- sileiro de Geografia e Estatística), existiam pouco mais de 20 (vinte) museus no início desse século. Na década de 1950 já eram contabilizadas mais de 100 (cem) institui- ções. Em 1967, eram 232 unidades museo- lógicas. O Anuário Estatístico do Brasil dava conta da existência de 1.225 museus em 1988, um aumento de 630% de museus públicos (municipais, estaduais e federais) e 385% no caso dos museus privados. Tal crescimento acompanhou os an- seios da sociedade por lugares de memória, aliado a ações estatais que fomentaram a criação de instituições no país. É de se destacar o impacto da criação, em 1937, do Sphan (Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional), que deu for- ma à atuação do Estado brasileiro peran- te o patrimônio nacional, inspirados pelo ideal modernista. É no conjunto das polí- ticas de preservação do patrimônio histó- rico e artístico nacional que são criados alguns museus federais como o Museu Nacional de Belas Artes (RJ), em 1938; o Museu Imperial (RJ), em 1940; o Museu do Ouro (MG), em 1946; o Museu do Dia- mante (MG), em 1954; o Museu da Repú- blica (RJ), em 1960; o Museu Villa-Lobos (RJ), em 1961; e o Museu Regional de São João Del Rei (MG), em 1963. Letícia Julião (2009) afirma que foram tímidas as ações do Sphan no setor museal comparadas àquelas voltadas para o pa- trimônio edificado. No entanto, destaca o colecionamento ativo do Estado brasileiro, o desenvolvimento de critérios e procedi- mentos técnicos relacionados à identifica- ção, classificação e valorização de objetos adquiridos, além da ressignificação de ve- lhos acervos. É o caso do Museu Histórico Nacional (RJ), que apesar de ter sido criado em 1922, em muito se beneficiou das ações de colecionamento do Sphan. O I Encontro dos governadores de estado, secretários estaduais da área cultural, pre- feitos de municípios interessados, presiden- tes e representantes de instituições culturais, em 1970, teve como tema a Defesa do Pa- trimônio Histórico e Artístico Nacional. Entre várias deliberações, o documento Compromisso de Brasília sugere a criação de museus regionais em todo o país, que deveriam ter seus acervos salvaguardados em prédios já tombados como patrimônio, de modo a dar um bom uso para um grande conjunto de bens arquitetônicos que a des- peito de sua importância patrimonial, não eram utilizados pela sociedade. A adoção de políticas públicas especí- ficas para os museus do país, no entanto, só se consolidou no século XXI, com a ela- boração da Política Nacional de Museus (PNM), em 2003; a criação do Ibram (Insti- tuto Brasileiro de Museus) e do Estatuto de Museus no ano de 2009; e, posterior- mente, o lançamento do Plano Nacional Setorial de Museus 2010-2020. PARA OS CURIOSOS Em agosto de 2019, a Secretaria da Cultura do Ceará, a Universidade Estadual do Ceará e o Museu Nacional assinaram um Protocolo de Intenções que tem como objetivo promover a cooperação técnica de base científica e cultural para a construção do Museu de História Natural do Ceará Professor Dias da Rocha, com base em ações de restauro, pesquisa e divulgação do acervo colecionado por Dias da Rocha, que encontra-se atualmente salvaguardado no Museu do Ceará. 108 FUNDAÇÃO DEMÓCRITO ROCHA | UNIVERSIDADE ABERTA DO NORDESTE 5. MUSEU É PATRIMÔNIO! pesar da democratização dos museus no século XX, com a abertura de diversas institui- ções públicas e privadas, o fo- mento ao colecionismo e os usos educacionais dos mu- seus, tais instituições ainda podem ser analisadas como lugares elitistas, destinados apenas a uma pequena par- cela da população, ao mesmo tempo em que se luta para demarcar o seu potencial para a educação da humanidade e o seupapel no desenvolvimento de uma sociedade plu- ral e respeitosa das diferenças culturais. As décadas de 1960 e 1970 foram parti- cularmente importantes para a história dos museus contemporâneos, quando esses passaram a ser frequentemente criticados em países como a França. Tais críticas evi- denciavam o fato de que a maior parte do acervo das instituições museais tinha sido colecionada por meio de práticas violen- tas, com o extermínio da cultura de povos nativos de diferentes continentes durante os processos de colonização por parte das na- ções europeias. Não à toa, fala-se muito atu- almente em repatriação de objetos, de gran- des museus para os seus lugares de origem. Assim, esse é um momento de transfor- mação nos paradigmas dos museus, cujo foco havia sido, até então, o cuidado rela- cionado aos bens materiais salvaguardados pela instituição, promovendo, entre outros aspectos, uma comunicação museológica na qual apenas os profissionais de museus eram autorizados a produzir conhecimento, enquanto aos visitantes cabia um papel passivo de receptores de informações. Essa mudança de paradigma pode ser observada quando o foco se desloca dos objetos para os sujeitos dos museus. Maria Célia Teixeira Moura Santos (1996) entende esse movimento como a substitui- ção da preservação pela apropriação/re- apropriação do patrimônio cultural. Nesse aspecto, tanto o público interno do museu, quanto o público externo (visitantes, volun- tários, moradores do entorno etc.) devem participar ativamente das tomadas de deci- são da instituição e não apenas a sua Dire- toria. Essa mudança permeia os processos museais numa perspectiva inclusiva, respei- tando e valorizando as diferentes saberes e experiências, tendo como objetivo promover o sentimento de pertencimento, um dos elementos básicos para a valorização dos patrimônios locais, regionais ou nacionais. Afinal, como pensar museus e patrimô- nio, sem tratar das identidades que estão sendo encenadas e reencenadas nos acer- vos, expostos ou salvaguardados nas reser- vas técnicas? O que se pode afirmar é que, ao longo dos últimos trinta anos, buscou-se cada vez mais integrar o público externo nos processos museológicos, desde a coleta de novos acervos, montagem de exposições etc. Mesmo os museus tentando ressigni- ficar suas práticas e seus discursos por meio de ações de inclusão, a matéria sobre a qual este trabalho é realizado – o acervo – foi “colecionado” muito anteriormente. Isso traz algumas complicações quando coloca- mos em destaque a valorização da diversi- dade cultural, como no caso das culturas Reserva Técnica Área do museu destinada à guarda de objetos que estão fora do circuito expositivo. Nela, as peças são devidamente higienizadas e catalogadas, à espera de novas exposições, produção de pesquisas, catálogos e livros. Sua existência parte do princípio de “expor menos” (objetos) para “comunicar mais” informações. 5. Reserva Técnica Área do museu destinada à guarda de objetos que estão fora do circuito expositivo. Nela, as peças são devidamente higienizadas e catalogadas, à espera de novas exposições, produção de pesquisas, catálogos e livros. Sua existência parte do princípio de “expor menos” (objetos) para “comunicar mais” informações. Formação de Mediadores de Educação para Patrimônio 109 afro-brasileiras e indígenas. Afinal, como representar em um museu práticas culturais sobre as quais ele não possui acervo? A primeira possibilidade é a elaboração de uma política de aquisição e descarte de acervos, que é um dos itens necessários do desenvolvimento do Plano Museológi- co de cada instituição, conforme determina o Estatuto de Museus. Por meio dessa po- lítica, o museu pode cada vez mais cumprir sua função social. Uma outra possibilidade é quando o Es- tado – por meio dos governos municipais, estaduais, federais – desenvolve ações prá- ticas de reparação. É o caso do Memorial da Liberdade (SP), criado em 2002. Desde 2009, ele é aberto ao público como Memo- rial da Resistência e trata da resistência à repressão política do Brasil republicano, por meio da musealização de parte do edi- fício que foi sede do Departamento Estadu- al de Ordem Política e Social de São Paulo (DEOPS/SP), uma das polícias políticas mais truculentas do país, principalmente durante o regime militar (1964-1985). Em Fortaleza, desde 2013, no prédio da SecultFOR, antiga sede da Polícia Federal, encontramos o Memorial da Resistência, espaço de memória do período da ditadura militar no Ceará. O Memorial abriga a ex- posição permanente Arquivo das Sombras, destinada a provocar o debate sobre a liber- dade democrática e os direitos humanos. Plano Museológico Documento que, além de registro da história do museu, torna-se um instrumento de planejamento a curto, médio e longo prazo. Pode ser pensado para uma década, ainda que venha a ser modificado, incrementado ou aperfeiçoado ao longo do período programado para a sua execução. Além disso, o Ibram tem fomentado a criação de Pontos de Memória e museus comunitários, cujos focos são a promoção de processos museológicos em pequenas comunidades (como exposições, rodas de conversa, seminários), objetivando a pre- servação da memória e do patrimônio cul- tural local, por meio do protagonismo das comunidades tradicionalmente excluídas de uma narrativa oficial da história, disse- minando assim uma política pública de di- reito à memória e à diversidade cultural. É nesse sentido que a Prefeitura Munici- pal de Fortaleza inseriu a criação, entre as metas do Eixo Cultura e Patrimônio do Plano Fortaleza 2040, em parceria com or- ganizações da sociedade civil, de no mínimo dois museus comunitários e um Centro de Memória dos Bairros em cada Distrito Cultural, além de um Centro de Referência da Memória de Fortaleza, de modo a pos- sibilitar aos munícipes conhecer, reconhecer e difundir as memórias dos diversos grupos sociais que compõe a cidade. SE LIGA! Sobre o Plano Fortaleza 2040 e a formação dos Distritos Culturais, reveja o fascículo nº 2 do curso. PARA OS CURIOSOS O que você achou dessa pequena história dos museus? Percebeu que não há um museu igual ao outro? Houve alguma vez que você foi a um museu e pensou: “Esse lugar não me representa!?” É possível fazer uma campanha, no seu bairro, para a musealização daquilo que identifica os moradores que estão nas imediações da sua casa, escola ou trabalho? Que tal uma visita, agora qualificada, a museus que nunca conheceu? 110 FUNDAÇÃO DEMÓCRITO ROCHA | UNIVERSIDADE ABERTA DO NORDESTE REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ALEXANDER, Edward P.; ALEXANDER, Mary (eds). Museums in Motion: An Introduction to the History and Functions of Museums. Lanham, MD, EUA: AltaMira Press, 2007. BRASIL. Lei nº 11.904, de 14 de jan. de 2009. Institui o Estatuto de Museus e dá outras providências. Brasília, DF, jan. 2009. _____. Plano Nacional Setorial de Museus – 2010/2020. Brasília, DF: MinC/ Ibram, 2010. _____. 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ILUSTRADOR Daniel Dias é ilustrador e artista gráfico, com extensa produção em projetos editoriais, sendo a maior parte destinada ao público infantil e infantojuvenil. Seu trabalho tem como base a pesquisa de materiais e estilos, envolvendo estudo de técnicas tradicionais de pintura, desenho, fotografia e colorização digital. 111Formação de Mediadores de Educação para Patrimônio 111 Este fascículo é parte integrante do projeto Formação de Mediadores de Educação Patrimonial, em decorrência do Termo de Fomento celebrado entre a Fundação Demócrito Rocha e a Secretaria Municipal de Cultura de Fortaleza, sob o nº 02/2019. Todos os direitos desta edição reservados à: Fundação Demócrito Rocha Av. Aguanambi, 282/A - Joaquim Távora Cep 60.055-402 - Fortaleza-Ceará Tel.: (85) 3255.6037 - 3255.6148 - Fax (85) 3255.6271 fdr.org.br fundacao@fdr.org.br EXPEDIENTE: FUNDAÇÃO DEMÓCRITO ROCHA (FDR) João Dummar Neto Presidente André Avelino de Azevedo Diretor Administrativo-Financeiro Marcos Tardin Gerente Geral Raymundo Netto Gerente Editorial e de Projetos Emanuela Fernandes Analista de Projetos UNIVERSIDADE ABERTA DO NORDESTE (UANE) Viviane Pereira Gerente Pedagógica Marisa Ferreira Coordenadora de Cursos Joel Bruno Designer Educacional Thifane Braga Secretária Escolar CURSO FORMAÇÃO DE MEDIADORES DE EDUCAÇÃO PARA PATRIMÔNIO Raymundo Netto Coordenador Geral, Editorial e Revisor Cristina Holanda Coordenadora de Conteúdo Amaurício Cortez Editor de Design e Projeto Gráfi co Miqueias Mesquita Diagramador Daniel Dias Ilustrador Thaís de Paula Produtora ISBN: 978-85-7529-951-7 (Coleção) ISBN: 978-85-7529-959-3 (Fascículo 8) Realização Apoio Universidade Estadual do Ceará
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