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Dedico este trabalho a todos aqueles que insistem em acreditar que, apesar de tudo, algo ainda pode e deve ser realizado em prol da construção, no mundo real, de uma sociedade brasileira livre, justa e solidária, onde cada policial venha a ser mirado não com a desconfiança e o medo suscitados pelo guerreiro, que apenas acena com a morte e a destruição, mas sim divisado com o apreço e a admiração despertados pela benevolência e pela segurança que irradiam os verdadeiros artífices da paz. Assim, nomeadamente, à memória do Professor Sérgio Marcos de Moraes Pitombo, exemplo de homem e jurista, que não apenas sonhou, mas muito laborou na busca desse feliz amanhã. Não levantarás falso boato, e não pactuarás com o ímpio, para seres testemunha injusta. Não seguirás a multidão para fazeres o mal; nem numa demanda darás testemunho, acompanhando a maioria, para perverteres a justiça; nem mesmo ao pobre favorecerás na sua demanda. Se encontrares desgarrado o boi do teu inimigo, ou o seu jumento, sem falta lho reconduzirás. Se vires deitado debaixo da sua carga o jumento daquele que te odeia, não passarás adiante; certamente o ajudarás a levantá-lo. Não perverterás o direito do teu pobre na sua demanda. Guarda-te de acusares falsamente, e não matarás o inocente e justo; porque não justificarei o ímpio. Também não aceitarás peita, porque a peita cega os que têm vista, e perverte as palavras dos justos. Êxodo 23, 1-8. E a obra da justiça será paz; e o efeito da justiça será sossego e segurança para sempre. Isaías 32,17. Bem-aventurados os que têm fome e sede de justiça porque eles serão fartos. Mateus 5, 6. SUMÁRIO CAPÍTULO 1. A POLÍCIA HISTÓRICA E ATUAL : UMA VISÃO PANORÂMICA 1.1. Polícia : abordagem semântica ............................................................................... 18 1.2. A polícia e suas origens .............................. ........................................................... 23 1.2.1. A polícia antiga ............................................................................................. 23 1.2.2. Séculos de transição ...................................................................................... 28 1.2.3. A polícia moderna ......................................................................................... 31 1.3. A polícia no Brasil .................................................................................................. 38 1.3.1. Período colonial .......................................................................................... 38 1.3.2. Período imperial ......................................................................................... 39 1.3.3. Período republicano .................................................................................... 47 1.4 A polícia judiciária ................................................................................................ 55 1.4.1. A investigação criminal : antecedentes históricos ........................................ 55 1.41.1. Os primeiros passos ....................................................................... 56 1.41.2. Roma .............................................................................................. 58 1.41.3. Inquisição ....................................................................................... 60 1.4.2. A polícia investigativa ................................................................................ 62 1.4.2.1. Intróito ........................................................................................... 62 1.4.2.1.1. Lei de 3 do Brumário do ano IV : a certidão de nascimento da polícia judiciária .................................... 63 1.4.2.1.2. Reforma napoleônica : a polícia judiciária no processo penal ................................................................................ 65 1.4.2.2. A polícia judiciária no Brasil ......................................................... 66 1.4.2.3. Um relance sobre a hodierna polícia judiciária no mundo ocidental ........................................................................................ 70 1.4.3. A polícia judiciária e sua classificação jurídica : uma nova visão ............. 72 CAPÍTULO 2. A EVOLUÇÃO ESTATAL COMO FATOR DETERMINANTE DA TRAJETÓRIA POLICIAL PELOS SÉCULOS 2.1. Considerações preliminares ................................................................................... 83 2.2. A gênese estatal ...................................................................................................... 85 2.3. Os fins do Estado .................................................................................................... 86 2.4. O Estado absoluto ................................................................................................... 88 2.5. O Estado de direito ................................................................................................. 90 2.5.1. O Estado liberal de direito .......................................................................... 92 2.5.2. O Estado social de direito ........................................................................... 94 2.5.3. O Estado democrático de direito ................................................................. 97 CAPÍTULO 3. O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO BRASILEIRO, A REALIDADE NACIONAL E O PAPEL RESERVADO À POLÍCIA 3.1. Antelóquio ............................................................................................................... 103 3.2. A tradição autoritária e a difícil transição para a democracia ................................. 105 3.3. As origens e os rumos do Estado democrático brasileiro......................................... 111 3.4. A democracia brasileira ........................................................................................... 114 3.5. O Estado democrático de direito brasileiro e o princípio da dignidade da pessoa humana .................................................................................................................... 118 3.5.1. A dignidade da pessoa humana e o direito fundamental à segurança .......... 122 3.5.2. A dignidade da pessoa humana, o direito à segurança e o devido processo legal ................................................................................................................................. 131 Capítulo 4. A POLÍCIA JUDICIÁRIA NA CONSTITUIÇÃO BRASILEIRA DE 1988 E A SUA FIDELIDADE AOS PARADIGMAS DEMOCRÁTICOS. 4.1. Introdução ................................................................................................................ 138 4.2. A institucionalização da segurança pública : mera acomodação constitucional ou um passo necessário à defesa da ordem democrática ? ......................................... 139 4.3. O artigo 144 da Constituição e a Polícia Judiciária : um duplo equívoco ............... 143 4.4. A Segurança Pública como razão de ser ou causa de degeneração da Polícia Judiciária ? ............................................................................................................. 146 4.4.1. Necessárias reflexões .................................................................................... 146 4.4.2.O discurso político do crime ......................................................................... 148 4.4.3. Polícia Judiciária : função essencial à Justiça Criminal................................ 152 4.5. Polícia Judiciária democrática ................................................................................. 157 4.5.1. A Polícia Judiciária e a defesa das instituições democráticas ...................... 157 4.5.2. Da teoria à prática .........................................................................................158 4.5.3. Os novos paradigmas ético-culturais da Polícia Judiciária ........................... 160 4.5.3.1. A lei da força revogada pela força da lei ......................................... 163 4.5.3.2. Dignidade x corrupção...................................................................... 168 4.6. O futuro da Polícia Judiciária brasileira ................................................................. 173 4.6.1. Considerações iniciais ................................................................................ 173 4.6.2. Por uma nova e democrática arquitetura estatal ......................................... 174 4.6.3. A polícia judiciária e sua efetiva incorporação ao mundo jurídico: o necessário respeito à premissa constitucional.............................................. 182 Conclusão ....................................................................................................................... 190 Referências Bibliográficas ............................................................................................ 198 INTRODUÇÃO 1. Apresentação do tema: justificativa e limites. Anos de observações, de estudos e especialmente de vivência nesse meio permitiram-nos concluir que, no Brasil, a polícia judiciária é uma ilustre desconhecida, conformando-se, no mais da vezes, quase uma ficção, aos moldes do que já é possível inferir de uma análise mais atenta da vigente ordem constitucional - que a seu favor, neste ponto, conta apenas com o fato de haver perfeitamente reverberado a ignorância e o desinteresse geral sobre a matéria. Na verdade, não somente em nosso País, como em boa parte do mundo, e não de hoje, o tema polícia perfaz-se um tabu. De fato, o assunto dificilmente consegue suscitar interesses circunspectos, sendo invariavelmente confinado no lúdico ambiente cinematográfico - que no mais das vezes nenhum contato guarda com a realidade, máxime com a brasileira -, ou explorado, também impropriamente, pela imprensa, principalmente por aquela chamada marrom – e que não por acaso se confunde com o denominado jornalismo policial, dedicado tão-somente à divulgação, quase sempre apriorística e parcial, de toda sorte de catástrofes, brutalidades e pseudo-escândalos destinados a alimentar o sensacionalismo mórbido na opinião pública -, restando, por essa via, igualmente marginalizado no recinto científico, e notadamente no âmbito jurídico. A busca das razões justificadoras dessa generalizada insciência, que certamente refletem o maior obstáculo à configuração de uma polícia judiciária vocacionada e capacitada à defesa das instituições democráticas, condição sine qua non ao cumprimento dos objetivos inerentes ao nosso novel e também ignoto, senão despercebido, Estado Democrático de Direito, pareceu-nos, destarte, medida relevante, da qual pudemos nos ocupar regressando no tempo, em direção às origens da sempre ambivalente organização policial, que pelos séculos vem gerando, contraditoriamente, fascínio e repulsa, medo e segurança, opressão e libertação. Assim foi-nos dado visualizar, e de forma muito clara, dois interessantes aspectos nesse desenvolvimento histórico : primeiro o seu absoluto enredamento com o processo de maturação estatal, e depois, nada obstante tamanha proximidade, o fato de que um persistente retardamento tem caracterizado a progressão policial nessa comum senda transmutativa – coisa de muitos passos atrás -, perfazendo essa paradoxal distância exatamente aquela que misteriosamente afasta a prática da teoria, que separa a Constituição real da Carta de papel. Surgem, pois, as imagens apresentadas sob prisma policial como a única projeção fidedigna, e realizada em tempo real, acerca da realidade composta pelas concretas e complexas relações havidas, ao longo dos séculos, entre a autoridade do soberano e a dignidade dos súditos-cidadãos. Nesse diapasão, porquanto depositária da força monopolizada pelo Estado, enquanto milenar mecanismo de repressão utilizado pelos detentores do poder contra as massas, certamente exsurge a polícia, em seu exercício diuturno, sobre e ao largo dos discursos, como o parâmetro perfeito para se levar a cabo a aferição não só da distância que solidamente medeia os apresentados termos, mas também – e neste ponto pretendemos nos fixar – da real e efetiva possibilidade de aproxima- los e harmoniza-los. Para tanto, cuidando da polícia judiciária no Estado Democrático de Direito brasileiro, buscaremos primeiro clarificar a polícia histórica, mantendo o Estado como pano de fundo. Na seqüência, em pauta algo mais célere, mas sem perder de vista esse entrelaçamento, miraremos o Estado de Direito, até construir as bases de sua formatação contemporânea. Estabelecidas tais premissas, tão memoriais quanto científicas, poder-se-á, então, divisar o presente Estado pátrio, graficamente definido, já há quinze anos, como democrático de direito, mas que insiste permanecer, no plano da realidade, ainda hoje arraigado à sua cultura e tradições autoritárias, ensejando, pois, paradoxalmente, graves disfunções a contaminar a atividade policial judiciária, que resta necessariamente exercida às margens das fórmulas legitimadas pelos fundamentos e objetivos verdadeiramente democráticos. E o diagnóstico dessas impropriedades aponta diretamente para a Constituição da República, imprecisa, infeliz e ineficaz em sua programação policial, e que dentre tantos erros e equívocos relegou a previsão acerca da função policial judiciária para o capítulo da segurança pública, fazendo-a encargo de órgãos policiais civis da União e dos Estados (art. 144, §§ 1 o , I e IV, e 4 o ), mediante pífia menção, posta à mingua de definição ou conteúdo, ou de texto que favoreça a sua acendrada compreensão e, especialmente, sua conformação como efetivo instrumento de defesa e promoção da dignidade da pessoa humana. Com efeito, e literalmente inovando, a nossa Lei Fundamental, em gritante descompasso histórico e jurídico universais, cindiu – embora cuidadosamente em favor de órgãos únicos ! - as inextricáveis atividades policial judiciária e investigativa, conquanto represente esta o próprio cerne daquela, sua razão de ser, tanto aqui quanto alhures, há cerca de duas centúrias. Essa inicial imprecisão, que por si só já denota o acerto da conclusão inaugurativa, serve para evidenciar, outrossim, e em face dessa topografia constitucional, não apenas o desconhecimento sobre o real significado que a função policial judiciária deve assumir no Estado Democrático de Direito, mas, também, e o que parece ainda pior, a falta sequer de suspeita sobre a essencialidade de sua purificada prestação à realização da justiça criminal nesse qualificado modelo estatal. 1 De efeito, no seio do citado Estado deve a polícia judiciária ser tão-somente identificada como a atividade de pesquisa, necessariamente desenvolvida dentro de 1 Não se descurará, neste trabalho, de procurar “transmitir” este Brasil que se pretende democrático “em tempo real”, ou seja, precisamente como “funciona” no seu dia a dia, com suas vicissitudes e mazelas, notadamente políticas e jurídicas, a principiar pela elaboração de sua vigente lei constitutiva – sempre permeada por muito oportunismo, casuísmo, e quase nenhuma leal convicção. Busca-se estabelecer, com essa sistemática, um debate entre o poder real e o poder constituído, aliás, mal constituído, como o cotidiano presta o obséquio de afiançar. parâmetros garantidores de isenção e de justiça, voltada à elucidação da verdade sobre fatos considerados transgressores às leis penais, assim mirando, e em caráter restritivo, proporcionar condições excelentes ao Poder Judiciário para a aplicação do direito em face do aclarado caso concreto. No Estado Democrático de Direito, o exercício policialjudiciário somente se fará legitimo quando balizado por um único e exclusivo compromisso, firmado não com a administração e/ou a segurança públicas, mas sim, e cogentemente, com os fins da justiça criminal. Outro não é o magistério de Colomer, para quem a escorreita compreensão do papel destinado à polícia judiciária num Estado de Direito efetivamente democrático, exige o entendimento de dois cruciais pontos, a saber : 1 o ) o processo penal ao qual se subordina - “como o produto de um compromisso público entre eficácia da persecução penal e respeito à dignidade humana” - deve absoluto respeito à Constituição, velando, simultaneamente, pelos direitos fundamentais dos cidadãos e pela maior eficiência possível da investigação criminal; e, 2 o ) a sua função (da policía judicial), que não pode ser confundida com a dos órgãos acusador e julgador, se apresenta, mesmo assim, de extrema importância para a instrução da causa 2 . E arremata enfático : “Dito isso, a perspectiva de análise jurídica do significado da Polícia Judiciária parte de uma afirmação inegável : O Estado (...) está obrigado a articular uma Polícia Judiciária agilmente organizada e tremendamente efetiva na averiguação do delito e determinação da pessoa ou pessoas que tenham podido cometê-lo, fixando taxativamente os limites de suas possibilidades de atuação, porque isso é o que quer a sociedade (...). De modo que se pode dizer, sem exagero algum que, dado que nem o Juiz nem o Ministério Público podem investigar materialmente os delitos, pois não tem possibilidade, nem conhecimentos técnicos, nem devem estar especialmente capacitados para isso, sem a Polícia Judiciária o desenvolvimento adequado do processo penal é impossível”. 3 2 COLOMER, Juan-Luís Gómes. Estado de Derecho y Policía Judicial democrática : Notas sobre el alcance e y límites de la investigación policial en el proceso penal, con consideración especial de los actos de mayor relevancia. El proceso penal en al Estado de Derecho (Diez estudios doctrinales), p. 95 e 97. 3 Ibidem, p. 97-98. Para tanto, reclamam-se salvaguardas de proficiência e efetividade, devendo, nesse sentido, ser a polícia judiciária imunizada contra a influência típica do Executivo, ou melhor ainda, do Governo, cujos integrantes, invariavelmente envolvidos pelas contingências do jogo eleitoral travado em torno da eternização no Poder – e por vezes a qualquer custo, como a história sobejamente comprova -, nem sempre partilham desse nobre desiderato, chegando por vezes mesmo a impedir o seu alcance. Mister ponderar, além disso, em relação à vigente Constituição pátria, que assim como é verdade que a eficácia da atuação policial judiciária pode propiciar bons frutos à segurança individual e coletiva, emerge não menos correto afirmar que esse fato, que se repete com a boa prestação dos serviços de educação, com a ampliação do mercado de trabalho, dentre tantas outros fatores próximos, não induz à automática e/ou compulsória inserção dos responsáveis pelas listadas atividades no rol de organismos que respondem, a teor do “caput” do art. 144 da Constituição da República, pela “preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio”. Importa aqui considerar, e em três sintéticos lanços, que no Estado Democrático de Direito brasileiro: 1 o ) a segurança pública assoma-se como responsabilidade de todos; 2 o ) a investigação criminal avulta como função especializada, eminentemente técnico-jurídica, cujo único compromisso deve ser com a verdade sobre um fato aprioristicamente tido por criminoso; e, 3 o ) a realização dessa tarefa deve assim visar um único resultado : a realização de justiça, incessantemente buscada através de procedimentos imparciais, honestos, competentes, inteligentes e diligentes. Descaberá, portanto, à polícia judiciária, sob qualquer pretexto, tomar parte do combate contra a criminalidade, diuturnamente prometido pelos donos do poder, como luta sem trégua e quartel, ou a qualquer outro exercício de índole repressiva, que sempre pode importar em prejulgamentos e partidarismos : vide, por exemplo, o clássico “os bons versus os maus” (inimigos). Com efeito, na defesa das instituições democráticas, e conseqüentemente comprometidos com o respeito e a promoção da dignidade da pessoa humana, e assim de todos os valores que lhe são inseparáveis, será devido aos seus operadores, noutra mão de direção, defender a liberdade, sustentando com firmeza e consciência jurídica, com fulcro nas provas eficiente e legitimamente coligidas, as excepcionais e inelutáveis hipóteses a sua restrição. Aí estão as bases da polícia judiciária democrática, consentâneas ao processo penal constitucional do Estado Democrático de Direito, como pontua José Jairo Baluta, em sua atilada percepção da doutrina de Ferrajoli : o desenvolvimento de um processo de modo respeitoso dos direitos fundamentais, encontra-se intimamente ligado com a busca da verdade acerca de uma hipótese delitiva, a qual impõe-se – diante de um Estado de Direito – como indispensável requisito a dar guarida à dignidade humana constituindo-se, na ótica do precursor, da “teoria do garantismo”, em verdadeiro princípio garantista a salvaguardar os direitos humanos, que aparecem – particularmente no processo penal – altamente comprometidos diante das conseqüências danosas que lhes pode acarretar. 4 Com fidelidade a essas premissas, cumpre, agora, e em respeito a vontade da Constituição, que somente pode ser depreendida dos postulados fundamentais do Estado Democrático de Direito por ela criado 5 , adotar-se entendimento desse jaez, garantindo-se, por necessário, uma nova e compatível conformação também orgânica ao escorreito labor policial judiciário, valorizando-se, primacialmente, o elemento humano incumbido desse exercício, uma vez que o seu depurado e eficaz desempenho afigura-se condição essencial à ultimação de justiça. 2. Plano de Trabalho. À comprovação da pertinência do tanto aduzido, reservamos o capítulo inicial desta dissertação para o registro de uma breve história da polícia, desde que 4 BALUTA, José Jairo. O Juiz garantidor e o processo como meio respeitoso de garantir os direitos individuais, p. 10. 5 Consoante a douta dicção de Cleber Francisco Alves : “no constitucionalismo aberto da pós-modernidade, livre das amarras de um reducionismo inerente a uma perspectiva jurídico-positivista, abre-se um novo horizonte para a compreensão dos princípios gerais do direito, que ao contrário do caráter supletivo e secundário que inicialmente lhes era conferido, passam a ocupar uma posição de proeminência jurído- normativa, presidindo e vivificando todo o ordenamento constitucional”. O Princípio Constitucional da Dignidade da Pessoa Humana : o Enfoque da Doutrina Social da Igreja, p. 177. vislumbrada como órgão estatal diretamente envolvido com a lida criminal. Desse marco, percorrendo caminho milenar, acompanhar-se-á, em seus principais passos, o desenvolvimento da atividade policial nos principais centros da cultura ocidental, mediante a análise crítica dos modelos assim forjados, e que acabaram reproduzidos em todo o mundo. Por essas veredas avistaremos o hesitante despontar da polícia judiciária, denominação francesa para uma especializada polícia investigativa, que não tardaria a surgir também na Inglaterra, em conjuntura tão mais técnica quanto civilizada, para além de imperativos políticos ocasionais. Idêntica marcha será reservada à apreciação do específico panorama pátrio, regredindo-se, para tanto, ao período colonial. Procurar-se-á evidenciar, nessa trajetória, a distância que sempre marcou, e infelizmente ainda marca, o desígnio oficial das corporações, sedimentadas durante séculosde autoritarismo, e a preocupação com o respeito aos direitos fundamentais dos cidadãos, justamente a marca registrada do nosso Estado, donde ressairá inconteste a imprescindibilidade de contarmos com uma nova estrutura policial neste País, desta feita assentada em paradigmas atuais, democráticos, consoante clarifica a vigente Constituição da República, ainda do recente ano de 1988. Ao cabo dessa leitura histórica, ao meio da qual desfar-se-ão certos mitos e evidenciar-se-ão falsas ufanias, poder-se-á atinar para as raízes de diversos erros e acertos que se refletem, para mal ou para bem, na realidade policial hodierna, inclusive brasileira, tudo servindo de norte às devidas e indispensáveis correções de rumo. Conseqüentemente, no Capítulo II, dar-se-á vez à dissecação do Estado, privilegiando, em face dos interesses específicos deste estudo, a construção do Estado de Direito, desde o seu nascimento, vincando o ocaso do absolutismo real, até sua versão contemporânea, de matiz democrática. De efeito, para a melhor visão da polícia judiciária democrática que já esboçamos, impõe-se retornar, ainda que rapidamente, às origens do Estado, para, daí seguindo atentamente o processo de transformação político-social - de fundo igualmente filosófico, histórico, jurídico e econômico - que conduziu à maturação de sua versão hodierna, em meados do último século, perfeitamente compreende- lo, mediante a identificação de seus fundamentos e finalidades. Não se olvidará, nessa linha evolutiva, de se produzir as consentâneas intersecções com o plano policial histórico, obedecendo às diretivas anteriormente desveladas. Depois, na seqüência desse pretendido descortino - certamente enxuto, porquanto cingido às raias próprias deste trabalho -, chegará o momento do esquadrinhamento do Estado Democrático de Direito brasileiro, de gênese ainda atual, buscando em seu âmago, com o apoio, uma vez mais, nas proposições precedentemente contextualizadas, os genes do devido processo penal, de origem constitucional, garantista, jungido à preservação da dignidade da pessoa humana. Nesse ponto, enfrentando fortemente a questão do autoritarismo, inexorável padrão cultural pátrio, tenciona-se destacar as enormes dificuldades que se somam contra a edificação do Estado Democrático constitucionalmente desenhado há pouco mais de quinze anos. Desde a falta de entendimento popular, resultante da ignorância generalizada, que não pode ser apartada dessa entranhada cultura arbitrária responsável pelo acentuado complexo de inferioridade nas massas, tarda a democracia escrita a ecoar no plano fático. Não se fazendo assim, pois, presente em nossas cidades, ruas, praças, em meio ao povo, como haveria de vivificar a existência e a atuação do Estado e dos seus organismos ? Como os seus valores poderão - há então de ser indagado -, por via de conseqüência, determinar o exercício policial judiciário ? As respostas para essas e outras correlatas indagações prestar-se-ão para impulsionar a discussão corrente, toda dedicada ao cotejo do ser e do dever-ser no ambiente estatal brasileiro, sem nunca perder de vista, como já enfatizado, o ideal da dignidade da pessoa humana, ponto fulcral dessa caminhada, referencial absoluto da nova polícia judiciária, democrática, divisada, sob pano de fundo constitucional, e sob renovado substrato ético, no subseqüente Capítulo IV. Na última parte do trabalho, como acima exposto, tratar-se-á exclusivamente da compatibilização policial judiciária aos expendidos cânones do Estado Democrático de Direito brasileiro, mediante o estabelecimento de apropriada dialética com o texto e o espírito da Constituição da República, perpassando a teoria em direção aos atos. Ao delineamento teórico dessa polícia judiciária democrática aliar-se-á a preocupação de desmistificar – tanto no plano dos (pré) conceitos jurídicos, quanto, objetivamente, no âmbito igualmente implicante da realidade sensível e comprovável - a muito difundida crença (que mais se assemelha a um complexo de ordem cultural ou até mesmo a um despeito, de índole francamente elitista) na impossibilidade da existência, e ainda no terceiro mundo, de um organismo dotado de denominação policial, exclusivamente responsável pela a investigação criminal, volvido ao patrocínio dos ideais de liberdade, de justiça e de dignidade humana. Nessa toada, e coerentemente à crítica reservada ao constituinte em face da forma e conteúdo finais dados ao capítulo constitucional dedicado à Segurança Pública, que revelam o despreparo e/ou o desprezo de seus autores em relação a essa crucial temática, buscar-se-á patentear os tantos equívocos e erros que a permeiam. Tratando-se de questão genuinamente política, atinente a determinação da função social da investigação criminal no Estado Democrático de Direito, efetivamente há de se deplorar a opção, pouco consciente e consistente ao que se percebe, configurada através da inclusão da polícia judiciária no elenco de funções inerentes à segurança publica, conforme estabelecido no art. 144 da Constituição. Por essa via de escolha, logrou-se inviabiliza-la, na incipiente realidade democrática pátria, como função essencial à justiça, deixando-se conseqüentemente de cerca-la com cuidados e prerrogativas afins, largamente difundidos em título (IV) e capítulo (IV) diversos da Lei Magna. Antes que uma vã alegação, os objetivos eleiçoeiros, plenamente evidenciados em sua expressão fundamentalmente carreirista que bem caracteriza as relações de poder também neste País, plenamente visíveis no aborrecido e antropofágico “discurso político do crime”, endossam totalmente, na prática, essa firme ilação, cujo reverso, entrementes, servirá perfeitamente como farol a indicar um porto seguro para a polícia judiciária inapelavelmente democrática, consentânea ao Estado brasileiro, e que ainda há de ser implantada. Essa nova polícia judiciária, que espera para ser normativa e materialmente moldada, foi, dentro desses lindes, o objeto da parte derradeira deste finalizador capítulo, onde buscou-se tracejar os contornos éticos da investigação criminal no Estado Democrático de Direito, secundada pela caracterização orgânica de seus executores, que antes de qualquer outra coisa haverão de vencer os grilhões do preconceito que impedem o seu ingresso no mundo jurídico. Enfim, dentre as tantas idéias que permeiam este trabalho, crê-se que uma em especial chame a atenção, qual seja aquela que aduz a íntima e direta identificação da polícia judiciária não mais como missão de segurança pública, mas sim como inelidível pressuposto de justiça criminal. Independente de sua originalidade, o vertente conceito procura ousar em um campo no mais das vezes desvalorizado pelo dogmatismo jurídico e desprezado pela prática política: a efetividade. Eis o imo desta pesquisa, centrada no Estado Democrático de Direito, e voltada ao patrocínio de uma específica mudança que a sua implantação está rigorosamente a exigir, a da polícia judiciária, compreendendo a implementação da efetividade ética e jurídica da investigação criminal. 18 CAPÍTULO 1 – A POLÍCIA HISTÓRICA E ATUAL: UMA VISÃO PANORÂMICA 1.1. Polícia: abordagem semântica. O vocábulo “polícia” emana, etimologicamente, da raiz grega polis, que em sua trivial conversão para a língua portuguesa, adquire o sentido de cidade autônoma ou Estado. Já a sua derivação politeia, tendo por base as acepções extraídas das mais abalizadas leituras e traduções dos clássicos 1 , vem a denotar, dentre tantos significados de expressões próximas, “qualidade e direitos de cidadão, direito de cidadania, modo de vida do cidadão, vida e administração de homem de Estado, participação nos negócios públicos, medidas de governo, forma de governo, regime político em geral, constituição do Estado; autogovernodos cidadãos”. 2 Em Roma, a latinização do vocábulo grego politeia levou ao surgimento do termo politia 3 , que inicialmente se prestou a comunicar, de forma bastante genérica, o entrelaçamento de duas idéias : a de coisa pública - res publica com a de civitas - os negócios da cidade. Com o tempo, porém, deixou de ter um sentido tão abrangente, passando melhor a servir ao dogmatismo político. É o que explica Monet, reportando-se à idealização jurídica de 1 LÊ CLÈRE, Marcel. História breve da polícia, p. 89. Afirma esse autor que, para Aristóteles, a polícia, “que assegura a ordem e o governo da cidade”, é “o maior e o primeiro de todos os bens”. 2 CRETELLA JÚNIOR, José. Do poder de polícia, p. 25. 3 Nesse sentido Antonio Houaiss : “polícia: do latim polìtia, ae 'organização política, governo, sistema governativo' < gr. politeía, as 'qualidades e direitos de cidadão, vida de cidadão; o conjunto de cidadãos; vida e administração de homem de Estado'; em sentido coletivo: 'medidas de governo; forma de governo, regime político; governo dos cidadãos por eles próprios; constituição democrática'; ver polit-; fontes históricas Séc. XV: policia, Séc. XV: policia, Séc. XV: pollicia” (Dicionário eletrônico Houaiss da língua portuguesa). Idem De Plácido e Silva: “Polícia: derivado do latim politia, que procede do grego politeia, originariamente traz o sentido de organização política, sistema de governo e, mesmo, governo. Assim, por sua derivação, em amplo sentido, quer o vocábulo exprimir a ordem pública, a disciplina política, a segurança pública, instituídas, primariamente, como base política do próprio povo erigido em Estado” (Vocabulário jurídico, edição eletrônica). 19 um conteúdo e um lugar específicos à noção de “polícia”, em construções teóricas que visam a justificar a soberania absoluta do Estado imperial sobre os seus súditos. Nessa concepção, o imperium constitui o fundamento último do poder coercitivo do Estado – a potestas – e aquele que se manifesta concretamente através da ação administrativa, judiciária e policial. A essência da função governamental consiste em definir as fronteiras entre o público e o privado, através da produção de normas cujo respeito é assegurado por órgãos administrativos específicos, que utilizam, se necessário, o constrangimento físico. Em Roma, o praefectus urbis – o “prefeito da cidade” – dispõe tanto do poder de editar regulamentações referentes a todos os aspectos da vida social quanto da autoridade sobre os corpos de polícia especializados. 4 Na Europa medieval, coincidindo com o período de redescobrimento do direito romano, a palavra polícia ganhou primordial projeção ao particularizar as atividades exercidas pela autoridade temporal, distinguindo-as das imposições morais advindas das instâncias religiosas. Com o tempo, passou a designar, de modo ainda mais claro, o feixe de poderes e de cuidados, que ao príncipe e aos seus barões, socorria como meio de garantir a ordem entre seus súditos e servos, até finalmente exprimir, num conceito que logo se difundiu pelo continente, “toda a atividade da Administração, quer dirigida a prevenir os males e as desordens da sociedade, quer a zelar através dos serviços públicos pelo bem-estar físico, econômico e intelectual da população”. Do jus politae, acrescenta Cretella Júnior, apenas excluíam-se os exercícios estatais relacionados às administrações financeira e militar. 5 Nesse compasso, e no contexto da afirmação teórica do absolutismo real, chegou a palavra polícia a identificar e a qualificar o próprio Estado. O denominado Estado de Polícia ou Estado Policial (Polizeistaat) soergueu-se firmemente alicerçado na doutrina romana do imperium, e em pleno século das luzes não titubeou em se apoderar das preocupações filosóficas então em voga a justificar sua gestão, hoje reconhecidamente arbitrária. Com efeito, ao Estado caberia, segundo a 4 MONET, Jean-Claude. Polícias e sociedades na Europa, p. 20-21. 5 CRETELLA JÚNIOR, José. Op. cit., p. 25-26. 20 ideologia dominante, a adoção de todas as iniciativas e providências tendentes a perseguir e a garantir o bem-estar da população, ou, como desvenda Monet, “a moralidade superior desse objetivo justifica a extensão dos poderes do Estado (...) pois só ele dispõe do poder de definir a felicidade de seus súditos, cujos meios de realizar só ele detém, inclusive pelo exercício da coação física ...”. 6 7 Esse Estado atribuía-se o papel de promotor da felicidade e do bem-estar social. Em situação de proeminência em relação ao Direito, o soberano – um “déspota esclarecido” – é quem ponderava e dizia o que era bom e o que era mau para seus súditos, que assim remanesciam privados de tudo, exceção feita ao direito de acatar e respeitar a ordem estabelecida. Explica Pierangelo Scheira que o qualificativo polícia, assim dotado de sentido pejorativo, traduzindo idéia contraposta e degenerativa em relação ao direito, serviu inicialmente para qualificar a Prússia de Frederico II, cognominado “O Grande”, como um Estado de índole absolutamente paternalista e extremamente intervencionista, e que ganhou notoriedade especialmente por se constituir numa potência militar. 8 Somente a partir do Estado de Direito, comenta Scheira, é que o vocábulo polícia deixou, pouco a pouco, de delinear a administração estatal em seu todo, com sua gama quase infinita de atribuições, especialmente a molde de uma verdadeira panacéia pública, passando, assim, gradativamente, a especificar, em linguagem corrente e leiga 9 , contudo impregnada de um sentido remanescente, o “setor 6 MONET, Jean-Claude. Op. cit., p. 22. 7 Lembra Maria Sylvia Zanella Di Pietro que, com o Estado de Polícia, o “direito público ficou na penumbra”, atuando as monarquias absolutas por força de duas idéias fundamentais, “a de soberania e a de polícia, ambas chegando ao seu apogeu com o iluminismo”. E citando Vinício Ribeiro emenda: “os príncipes passam a ser agora os soberanos esclarecidos – daí a designação por volta da segunda metade do século XVIII de despotismo esclarecido – que não prestam contas a ninguém a não ser a Deus. A polícia é preocupação de desenvolvimento, de elevação de nível, de brilho, de grandeza. Há para os homens do século XVIII uma preocupação enorme de civilização. O príncipe vai utilizar a sua ausência de limites não para o seu engrandecimento pessoal, mas com a intenção de se tornar possesso da idéia de progresso do seu país; torna-se o primeiro funcionário; ele é o único portador dessa idéia de racionalidade, é capaz de definir a organização racional do Estado e realizar uma nação culta” (Discricionariedade administrativa na constituição de 1988, p. 12). 8 BOBBIO, Norberto; MATTEUCCI, Nicola; PASQUINO, Gianfranco. Dicionário de política, p. 413. 9 BANDEIRA DE MELLO, Celso Antonio. Curso de direito administrativo, p. 697. É certo que o termo polícia, em linguagem técnico-juridica, prossegue a conceituar, no âmbito do Direito Administrativo, e mais precisamente sob o prisma da polícia administrativa, “o conjunto de intervenções da Administração que tende impor à livre ação dos particulares a disciplina exigida pela vida em sociedade”, consoante magistério de 21 subsidiário da atividade do Estado, visando, sobretudo, à prevenção e punição dos ilícitos, mediante o emprego de um aparelho rígido e autoritário de investigação e intervenção” 10 . “A polícia não tem mais de se encarregar de tudo que é necessário à felicidade dos indivíduos, mas apenas garantir a sociedade contra riscos que é preciso situar e definir de maneira legal”, asseverou Monet 11 . Superado, pois, o Estado absoluto, o termo polícia, como detalha Sérgio Bova, ganhou um novosignificado: [...] no início do século XIX, passou a identificar-se com a atividade tendente a assegurar a defesa da comunidade dos perigos internos. Tais perigos estavam representados nas ações e situações contrárias à ordem pública e à segurança pública. A defesa da ordem pública se exprimia na repressão de todas aquelas manifestações que pudessem desembocar numa mudança das relações político-econômicas entre as classes sociais, enquanto que a segurança pública compreendia a salvaguarda da integridade física da população, nos bens e nas pessoas, contra os inimigos naturais e sociais. 12 Na França, a Revolução de 1789 patrocinou, dentre seus principais corolários, a separação das funções do Poder, demandando, por essa via, a Jean Rivero apresentado por Celso Antonio Bandeira de Mello. De efeito, impende ao Estado criar barreiras de contenção ao exercício abusivo dos direitos individuais e coletivos, assim como salvaguardar o interesse público. Daí, impor-se a todos os setores da Administração Pública – e também, portanto, aos órgãos responsáveis pela segurança pública – o cogente exercício, na exata medida de suas atribuições legais, do “Poder de Polícia”, ou seja da atividade “que, limitando ou disciplinando direito, interesse ou liberdade, regula a prática de ato ou a abstenção de fato, em razão de interesse público concernente à segurança, à higiene, à ordem, aos costumes, à disciplina da produção e do mercado, ao exercício de atividades econômicas dependentes de concessão ou autorização do Poder Público, à tranqüilidade pública ou ao respeito à propriedade e aos direitos individuais ou coletivos”, conforme define o “caput” do art. 78 do Código Tributário Nacional. Portanto, e a servir de exemplo, cumpre, em linhas gerais, à polícia sanitária, como manifestação da administração estatal no setor da saúde pública, laborar, com baldrame em suas atribuições legais e regulamentares, mirando a prevenção e a contenção da propagação de doenças transmissíveis. Derradeiramente, é conveniente assinalar que a expressão em tela, inegavelmente relacionada ao Estado de Polícia, e assim contaminada pela idéia de arbítrio àquele peculiar, encontra-se sob a generalizada e veemente crítica dos mais doutos tratadistas, esclarecendo o mesmo Bandeira de Mello que na Europa, excetuada a França, “o tema é tratado sob a titulação ‘limitações administrativas à liberdade e à propriedade’, e não mais sob o rótulo de ‘poder de polícia’” (Op. cit., p. 696). Ainda acerca da ambivalência e imprecisão da expressão, vide, dentre tantos outros, Lúcia Valle Figueiredo (Curso de direito administrativo, p. 195), Antonio A. Queiroz Telles (Introdução ao direito administrativo, p. 280-282), e Odete Medauar (Direito administrativo moderno, p. 403-404). 10 BOBBIO et al. Op. cit., p. 413. 11 MONET, Jean-Claude. Op. cit., p. 22. 12 BOBBIO et al. Op. cit., p. 944. 22 especialização das atividades estatais. Assim, em 1791, a Assembléia Geral Francesa definiu que em suas relações com a segurança pública, impenderia à polícia preceder a ação da justiça; a vigilância deve ser o seu principal caráter; a sociedade considerada em massa é o objeto essencial de sua solicitude. 13 Dessa forma, o vocábulo polícia passou a ser cada vez mais utilizado para identificar as atividades estatais voltadas a prevenir e reprimir, no seio da sociedade, as ações capazes de abalar a paz e de violar os interesses de seus membros, consoante específica previsão legal. Com o passar do tempo esse sentido foi sendo progressivamente popularizado, a ponto de se conformar, hodiernamente, e em praticamente todo o mundo civilizado, como a melhor senão a única expressão leiga para o termo, servindo a denominar o órgão ou o conjunto de órgãos do Estado encarregados de garantir a segurança na comunidade, protegendo, especialmente, a incolumidade pessoal e patrimonial dos indivíduos 14 , ou, na precisa dicção de Maria Helena Diniz, a “corporação governamental que deve manter a ordem pública, prevenir e descobrir crimes, fazendo respeitar as leis e garantindo a integridade física ou moral das pessoas”. 15 16 13 MENDES JÚNIOR, João. O processo criminal brasileiro, p. 245. 14 Aos moldes do que dispõe, por exemplo, a Constituição da República Federativa do Brasil, promulgada em 1988, que por seu art. 144 prescreve: “A segurança pública, dever do Estado, direito e responsabilidade de todos, é exercida para a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio, através dos seguintes órgãos: I - § 1º - A polícia federal, instituída por lei como órgão permanente, estruturado em carreira, destina-se a: I - apurar infrações penais contra a ordem política e social ou em detrimento de bens, serviços e interesses da União ou de suas entidades autárquicas e empresas públicas, assim como outras infrações cuja prática tenha repercussão interestadual ou internacional e exija repressão uniforme, segundo se dispuser em lei; II - prevenir e reprimir o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, o contrabando e o descaminho, sem prejuízo da ação fazendária e de outros órgãos públicos nas respectivas áreas de competência; III - exercer as funções de polícia marítima, aeroportuária e de fronteiras; IV - exercer, com exclusividade, as funções de polícia judiciária da União. § 2º A polícia rodoviária federal, órgão permanente, organizado e mantido pela União e estruturado em carreira, destina-se, na forma da lei, ao patrulhamento ostensivo das rodovias federais. § 3º A polícia ferroviária federal, órgão permanente, organizado e mantido pela União e estruturado em carreira, destina-se, na forma da lei, ao patrulhamento ostensivo das ferrovias federais. § 4º - às polícias civis, dirigidas por delegados de polícia de carreira, incumbem, ressalvada a competência da União, as funções de polícia judiciária e a apuração de infrações penais, exceto as militares. § 5º - às polícias militares cabem a polícia ostensiva e a preservação da ordem pública; aos corpos de bombeiros militares, além das atribuições definidas em lei, incumbe a execução de atividades de defesa civil. (...)”. 15 DINIZ, Maria Helena. Dicionário jurídico, p. 623. A autora insere tal definição no rol de significados correntes do verbete polícia – de sua vez aduzido como pertencente ao âmbito do Direito Administrativo –, a ainda compreender: “Segurança pública. Conjunto de normas que garantem a segurança da coletividade. Guarda policial ou membro daquela corporação. Profilaxia”. 16 Coteje-se, a título de ilustração, a “policia” difundida entre os países de língua espanhola e portuguesa, a “police” comum aos países de influência inglesa, a “polizia” italiana, a “police” francesa, e a “polizei” alemã. 23 1.2. A polícia e suas origens. 1.2.1. A polícia antiga. Insta ponderar que ainda não possuindo a denominação “polícia” ou mesmo à míngua de qualquer epíteto específico, as atividades anteriormente versadas, destinadas a assegurar, no mínimo, alguma ordem na comunidade, induvidosamente sempre permearam a história humana, fazendo-se visível em todas as civilizações. Lê Clère registra, por exemplo, atuação policial já no antigo Egito, por volta de 3.000 a.C., à época do faraó Menés 17 . Nos livros de história 18 e de literatura universal 19 , e também naqueles que compõem a Bíblia 20 , encontramos inúmeras referências às forças com as quais contavam os soberanos – guardas, soldados, guardiões - para assegurar a concretização de seus éditos e o cumprimento de seus comandos. Longe, entrementes, de se apresentarem como organismos estruturados, instruídos e disciplinados para promover, máxime em caráter permanente, a mantençada ordem, tais corpos de guardas, ao que se percebe, faziam-se indistintos em face dos respectivos exércitos, sendo naturalmente integrados pelos mesmos soldados ou funcionários análogos empenhados na defesa da cidade contra o inimigo externo ou, 17 Op. cit., p. 12. 18 BAYLEY, David. Padrões de policiamento: uma análise internacional comparativa, p. 51. Anota ainda esse autor que : “Detetives, espiões e mantenedores da ordem pública são encontrados nos registros imperiais dos Mauryas (c. 321 - c. 184 a.C.), dos Guptas (c. 320 - c. 535) e dos Moguls (1526-1858) na Índia, dos Mings (1368-1644) na China e dos Heyans (794-1185) no Japão”. 19 Basta a lembrança das menções reservadas aos guardas na tragédia Antígona, de Sófocles (p. 90-95 e 108- 111). De efeito, ora relatando ao soberano a ocorrência de um crime, ora conduzindo à sua presença a protagonista, tão-logo da realização de sua prisão, bem como, e por derradeiro, promovendo a execução da sumária sentença proferida por Creonte, os guardas da trama ensejam uma boa idéia acerca do corriqueiro proceder das forças que, desde a mais remota antiguidade, eram constituídas pelos reis a garantir efetividade ao seu poder, em diapasão absolutamente independente de alguma idéia de legitimidade e talvez até mesmo de uma apurada organização. 20 Dentre tantas, avultam bastante expressivas as seguintes passagens: Gênesis 12,20: “E Faraó deu ordens aos seus guardas a respeito dele, os quais o despediram a ele, e a sua mulher, e a tudo o que tinha”. Cântico dos Cânticos 3,3: “Encontraram-me os guardas que rondavam pela cidade; eu lhes perguntei: Vistes, porventura, aquele a quem ama a minha alma?”; idem 5,7: “Encontraram-me os guardas que rondavam pela cidade; espancaram-me, feriram-me; tiraram-me o manto os guardas dos muros”. João 7,32: “Os fariseus ouviram a multidão murmurar estas coisas a respeito dele; e os principais sacerdotes e os fariseus mandaram guardas para o prenderem”; Idem 18,12 “Então a escolta, e o comandante, e os guardas dos judeus prenderam a Jesus, e o maniataram”; Idem 19,6 “Quando o viram os principais sacerdotes e os guardas, clamaram, dizendo: Crucifica-o! Crucifica-o! Disse-lhes Pilatos: Tomai-o vós, e crucificai-o; porque nenhum crime acho nele”. Atos 5,26-27: “Nisso foi o capitão com os guardas e os trouxe, não com violência, porque temiam ser apedrejados pelo povo”. 24 então, e apenas, na escolta pessoal do rei e na proteção direta de seus interesses pessoais e familiares. Fazendo rápida referência à polícia ateniense dos séculos V e IV a.C. – cuja principal função consistia em vigiar, tanto os escravos, quanto a ociosa e ambiciosa aristocracia rural, indistintamente engajados em conspirações e prontos às sedições – Monet afirma, em posição não contestada, que somente em Roma pode ser encontrada uma organização policial algo similar àquelas modernas, ou seja, instituída e planejada com o fim de propiciar especificamente segurança e tranqüilidade aos cidadãos. Destaca o autor, nessa esteira, que a história romana do último século a.C. foi inteiramente marcada por um terrível caos político e social, que naturalmente se desdobrou numa era de extrema violência, qual perpetuado pelo poeta Juvenal, que através de gracejo, não menos sinistro do que revelador, afiançou à posteridade: “só um insensato sairá na cidade após o jantar sem ter redigido seu testamento” 21 . E não desejando contar com os préstimos de seus militares – eis que as legiões, sabiamente tidas como um risco às liberdades públicas, não eram regularmente admitidas no interior de suas muradas –, Roma, chegando a contar, na época de Augusto, com população já próxima a um milhão de habitantes, optou pela criação de um corpo policial adequadamente estruturado como a solução mais razoável ao enfrentamento desse grave problema. Segundo Casal de Nís, essa primitiva polícia romana dispunha, em organização hierarquizada, de “comissário, inspetores, lugares-tenentes, capitães e sete mil homens”. 22 23 O chefe de polícia, completa David Bayley, era o praefectus vigilium – o prefeito de vigilância, em tradução livre – um dos integrantes da equipe do prefeito 21 MONET, Jean-Claude. Op. cit., p. 34. 22 CASAL DE NÍS, Emílio. La policia y sus mistérios (biologia criminal), p. 18. 23 Mister aqui esclarecer que essa não se apresentou como a única medida adotada pelo governo romano a refrear a violência. Relata Monet que, em atividade assistencial e complementar, passou a promover, nessa mesma época, freqüentes distribuições graciosas de trigo para o povo, chegando-se assim a beneficiar uma população de miseráveis, estimada em algo próximo a duzentos mil almas, formada por infelizes que de todas as partes do mundo fluíam à capital do Império em busca de benesses e oportunidades, quiçá exatamente desse naipe (Op. cit., p. 35). Posteriormente, cabe acrescentar, veio a referida gestão paternalista a ganhar corpo, dando vazão à celebre política do “pão e circo”, consoante expressão cunhada por Juvenal. 25 da cidade, o praefectus urbe. Eis, de fato, a primeira polícia pública da qual se tem incontroverso conhecimento histórico, composta por “agentes executivos da coerção física, pagos e dirigidos pela autoridade pública suprema” 24 . Nesse sentido mais nos esclarece João Mendes Júnior: O praefectus vigilium, creado por Augusto, para substituir os triumvirus, era o chefe de polícia preventiva e repressiva dos incêndios, escravos fugidos, furtos, roubos, vagabundos, ladrões habituaes, em summa, das classes perigosas, recomendando-se-lhe principalmente a policia nocturna (Dig., de off. praef. vigilum). Conhecia, pois, dos crimes não punidos com pena capital, por isso que os delinqüentes de taes crimes, depois de presos, eram postos à disposição do praefectus urbi (Dig. cit. L. 3 § 1 o Cód., eod. tit., L um). (Sic) Subordinados a estes praefecti, principalmente ao praefectus vigilum, estavam os irenarche, os curiosi, os stationari, agentes policiais incumbidos de percorrer incessantemente todas as partes do território, com a missão especial de investigar os crimes, prender os indiciados, interrogal-os, colligir esclarecimentos, proceder a buscas e apprehensões, fazer em summa, o inquérito com todas as diligencias, reduzir tudo a autos escriptos, e remeter ao prefeito ou á autoridade judiciaria competente (Dig., de cust. reor., L 6 § 1 o ). 25 (Sic) Fora da cidade, nos campos próximos e mesmo nas províncias, a tarefa de manutenção da ordem incumbia às milícias formadas por legionários, postadas, em regra, de légua em légua, pelas estradas romanas. Nas cidades maiores, os cuidados com a segurança em geral recaíam, no estilo da metrópole, aos prefeitos, depois titulados, notadamente na França, condes ou comites no original. É exato afirmar que, mergulhando em fatal decadência e sucumbindo ao avanço bárbaro, o império romano não tardou em se ver multifacetado, dando origem a um grande número de novos reinos, aos quais, dentro das raias de seus territórios, passou a incumbir as tarefas de manutenção da ordem, de contenção da violência e do julgamento dos criminosos. Portanto, sopesadas as correspondentes necessidades e possibilidades, cada governante teve que tratar da implementação, 24 BAYLEY, David. Op. cit., p. 41. 25 MENDES JÚNIOR, João. Op. cit., p. 33. 26 em seus domínios, de algum tipo de policiamento, incumbindo-o quer a militares profissionais, quer a corpos de guardas ou, até mesmo, a vigilantes-cidadãos. Desse período, e das principais cidades européias, remanescem registros sobre os feitos públicos em prol da segurança dos cidadãos, nada, contudo, que possa ser comparado aos grandiosos e complexos empreendimentosjungidos à edificação e manutenção da tranqüilidade naquela que foi vista como a capital do mundo antigo. A tendência, à época, não se centrava na constituição de organismos policiais, mas sim, como demonstra Lê Clère, na delegação, pelo rei, de poderes a certos funcionários para o desempenho das responsabilidades na área da segurança interna. Assim, por exemplo, Clotário II, em 615, instituiu, em Paris, os “comissários-inquiridores ou examinadores”, primitivamente conformados como um misto de oficial de polícia e juiz. Igualmente na França, já ao tempo de Carlos Magno, cerca de duzentos anos depois, delegados ambulantes – os missi dominici – foram nomeados para auxiliar os condes nas suas missões de promover a ordem, de investigar abusos e apurar crimes, de interrogar os “delinqüentes em acção (Sic)” (aqueles presos em flagrante delito) e de vigiar os estrangeiros 26 . Todas essas iniciativas restringiam-se, de fato, às principais cidades, remanescendo a proteção aos campônios e a todos aqueles que viviam em pequenas aldeias absolutamente negligenciada, a cargo tão-somente de agentes reais itinerantes, que em momento algum da história lograram se sobressair pela eficiência, e muito menos pela confiabilidade. Observa Monet, que em face de tantas deficiências não restou aos frágeis suseranos opção outra além de anuir com a transferência de suas cuidadas obrigações aos seus vassalos. Com isso, e na prática, cada barão passou a dispor de sua própria justiça, que impunha aos servos da gleba, sempre em nome do rei, porém, ao seu inconseqüente alvedrio. 26 LÊ CLÈRE, Marcel. Op. cit., p. 15-18. 27 Evidentemente falho, quando não mesmo inexistente, o sistema de segurança das aldeias acabou sendo desenhado e executado por seus próprios beneficiários, ou seja, através de milícias de configuração comunitária, que na vaza desse improviso, sob a indiferença, ou por vezes até mesmo com o apoio da autoridade, invariavelmente também se encarregavam de fazer justiça, sempre de forma sumária e simétrica em relação aos sentimentos e ressentimentos experimentados em face de cada caso concreto. 27 Essas polícias locais, não profissionais, grassaram também por toda Inglaterra, todavia sob a rigorosa tutela estatal, aos moldes do medieval sistema denominado Frankpledge. Lá, Tythings e Hundreds exerciam, em regime forçado, as tradicionais funções policiais de manutenção da ordem e de prisão de criminosos, sob a supervisão de um sheriff, que em sua missão recebia o auxílio dos constables. Embora ostentasse a qualidade de preposto real, não recebia o sheriff remuneração alguma proveniente do tesouro público 28 . Tão-somente, na primeira metade do século XVIII, é que nesse país surgiram as primeiras milícias mantidas total ou parcialmente por impostos, inauguradas, e apenas em nível experimental, em algumas poucas paróquias da capital do reino. 29 27 MONET, Jean-Claude. Op. cit., p. 35-38. Malgrado o fato dessas organizações escaparem da esfera de interesse imediato deste trabalho, parece-nos de bom alvitre ao menos referenciá-las, apresentando-as como grupos de aldeões armados que voluntariamente tomavam para si a tarefa de propiciar segurança às suas comunidades, decerto protegendo seus próprios interesses, como foram os notáveis casos, por exemplo, dos “encapuzados” de Puy-em-Velay, que para o resguardo dos peregrinos e do comércio circundante caçavam e dizimavam os assaltantes que infestavam o caminho de Santiago de Compostela, e das “Hermandades”, também espanholas, que se voltaram ferozmente contra o arbítrio dos barões. 28 Os Tythings eram formados pelos homens livres, saudáveis e maiores de doze anos provenientes de dez famílias, ao passo que a reunião de dez Tythings compunha um Hundred. Estruturados de acordo com o sistema Frankpledge, incumbia-lhes, de forma compulsória, reprimir quaisquer delitos, bem como o encaminhamento dos criminosos – mesmo sendo um de seus integrantes – a julgamento. O descumprimento desse dever sujeitava os omissos ao pagamento de impostos, aplicados à guisa de sanção, cabendo percentual dos valores pertinentemente recolhidos ao sheriff (palavra composta por “shire” e “reeve”, a designar, literalmente, o “prefeito do distrito”), que apenas assim, a par de semelhantes cobranças realizadas aos criminosos, encontrava os meios necessários para a subsistência. Bayley anota, como fato histórico, o persistente protesto formulado pelos Hundreds contra os sheriffs, os quais acusavam de rotineiramente imputar-lhes falsas omissões, obviamente com o fim deliberado de se locupletarem com a parte das multas que em decorrência haver-lhes-ia de reclamar (cita como exemplo o romance Robin Hood). O constables, inicialmente eleitos pelo próprio Hundred, tinha por obrigação prestar auxílio ao sheriff, especialmente no que tange à fiscalização das aldeias. Ainda conforme Monet (op. cit., p. 38-39), sistemática próxima pode ser observada também nos países do norte da Europa, cabendo ao Lensman, na Noruega, Suécia e Dinamarca, desempenhar funções símiles àquelas exercidas pelo constable e pelo sheriff ingleses. 29 Ibidem, p. 37 e 41-42. 28 1.2.2. Séculos de transição . 30 Consideram os autores, em aparente unanimidade, que o primeiro embrião de uma polícia profissional, arregimentada, organizada e paga pelo Estado, somente despontou na Europa do século XIII, sediada na França, mais precisamente em Paris. Criada por Luís IX, a polícia parisiense era dirigida por um superintendente, o preboste 31 , ao qual, informa Lê Clère, foram facultados “poderes excepcionais” para “o exclusivo cuidado de dirigir a polícia e julgar os processos-crimes”. Compunha- se, ademais, de comissários investigadores e sargentos, além de contar com os serviços de uma patrulha que, sob a divisa vigilat ut quiescant (pela vigia para que eles repousem), incumbia-se da guarda noturna da cidade, integrada por cavaleiros militares e por todos os citadinos válidos, engajados de forma compulsória ao serviço do chamado Guet 32 . Pelos anos e séculos seguintes, esse modelo inicial sofreu inúmeras reformas, todas intentadas não apenas com o fito de lapidar esse novel organismo, mas também com o inequívoco intuito de conter a contumaz criminalidade que nunca deixou de assolar a capital francesa 33 . Nessa senda progressista, foram adotados 30 Muito embora o desenvolvimento do tema leve à abordagem exclusiva do histórico policial europeu, cabe aqui – aos moldes do que já foi en passant realizado através da nota de nº 18 – o registro atinente à natural existência, ao longo dos tempos, de corpos propriamente policiais, dotados de razoável organização, também em outros centros culturais mundiais, como observado no grandioso Cairo do século XIV. Nesse capital do sultanato islâmico mantinha-se, sob as ordens do seu governador militar, o wali, uma vigorosa e notoriamente corrupta força policial, incumbida de combater o crime, controlar o toque de recolher, verificar a hora de abrir e fechar as lojas e o acatamento dispensado aos regulamentos de saúde, além de patrulhar as ruas, especialmente as áreas de má reputação, tavernas e antros de haxixe. A espionagem, levada a efeito por agentes dissimulados, principalmente nos mercados e visando os estrangeiros, também compreendia função comezinha dessa polícia, que, de quebra, ainda se prestava à execução das sentenças emitidas pelos juízes religiosos, que variavam desde as penas de prisão até as capitais, como a decapitação, o garrote e a crucificação (A evolução das cidades, p. 73). 31 LÊ CLÈRE, Marcel. Op. cit., p. 21-23. De proepositus, o preposto. A instituição do prebostado, criada em 1032 por Henrique I, tratava-se de uma magistratura, comjurisdição sobre o viscondado de Paris, encarregada do exercício de inúmeras funções governamentais, dentre as quais, e sem dúvida as mais importantes, apareciam as de juiz, chefe militar e de polícia. Com a reforma empreendida por Luís IX, esse órgão ganhou força e as condições necessárias para realizar o seu novo e exclusivo mister: a direção da polícia e o julgamento dos processos criminais. 32 BAYLEY, David. Op. cit., p. 43. 33 LÊ CLÈRE, Marcel. Op. cit., p. 23, 32, e 38. Registra Lê Clère que já em 1258 “não havia noites sem incêndios, violações, pilhagens, assassínios, até dentro dos muros do Louvre”. Que em 1549 os protestos contra a impotência do governo francês contra a criminalidade eram generalizados, eis que o período ficou conhecido, emblematicamente, como a sinistra época da “pera da angústia”, quando roubadores enfiavam a fruta pela garganta das infelizes vítimas para as impedir de gritar”. E também que, em 1660, Boileau irritava as autoridades versejando: “Mal que da noite as sombras sossegadas / Obrigam a trancar janelas e portadas / 29 todos os tipos de medidas imaginadas válidas e viáveis a garantir a otimização da força parisiense, a contar, dentre as mais comuns, com as reiteradas alterações estruturais, passando por soluções meramente quantitativas, com realce para a criação de novos corpos policiais 34 , ou para a singela majoração dos efetivos já existentes, até chegar àquelas de saudável aspecto qualitativo, como a exigência, fixada por intermédio de leis de 1546 e 1583 respectivamente, de prévia seleção à contratação dos candidatos a postos policiais, mediante exames de conhecimentos e da comprovação de bons antecedentes cívicos e morais, reclamando-se aos pretendentes a dignidade de comissário prévio licenciamento pela faculdade de jurisprudência e a submissão de exame de direito e a processo perante o Parlamento. 35 Dentre todas essas reformas uma mostrou-se inegavelmente a mais relevante, a ponto de cunhar o que seria posteriormente conhecido como o modelo francês de polícia. Em 1667, Luís XIV, o Rei Sol, criou no prebostado o cargo de “tenente da polícia de Paris”, destacando-o do de tenente civil, até então a maior autoridade da cidade, e dotando-o com amplos poderes e competências que transcendiam o plano da segurança pública para abarcar as demais áreas vitais da administração da cidade, percorrendo desde o combate aos incêndios e inundações até a fiscalização sanitária. Cerca de três mil homens totalizaram os contingentes a sua disposição, ao passo que a população dessa capital já passava de meio milhão de habitantes. Entrementes, a mais marcante peculiaridade dessa renovada força pública inegavelmente veio a se constituir a sua polícia secreta – composta por espiões recrutados em todos os meios, de estudantes a criminosos – responsável por manter o rei informado sobre tudo e todos, desde movimentações políticas até particularidades pessoais e morais de seus súditos. Completava esse modelo a ... Nesse instante os ladrões tomam conta da urbe / O mais funesto bosque, o mais deserto e escuro / À vista de Paris é refúgio seguro”. 34 Assim, em 1549 nascia na França a Maréchausée, corpo de polícia militarizado – inicialmente formado para guarnecer as retaguardas do exército – que passou a ter a incumbência de patrulhar os campos, e, correndo de cidade em cidade, manter a ordem e combater os criminosos. Em 1791, essa força foi rebatizada, passando a chamar-se Gendarmarie, denominação que persiste até os dias atuais. 35 LÊ CLÈRE, Marcel. Op. cit., 23-60. 30 castrense Maréchausée, então destinada ao patrulhamento dos campos e cidades interioranas. Prossegue Monet, aduzindo que esse modelo francês logo se irradiou para boa parte da Europa, influenciando a formação de polícias públicas de caráter permanente em vários Estados – notadamente naqueles de governo abertamente despóticos –, como na Rússia, em 1718, na Prússia, em 1742, e na Áustria, em 1751. Já a Inglaterra, país de histórica orientação liberal, rejeitou asperamente esse figurino policial, o qual mereceu, em 1785, no Daily Universal Register, sintomático registro acerca do exasperado sentimento bretão a seu respeito: “Nossa Constituição não pode admitir nada que se pareça com a polícia francesa; e muitos estrangeiros nos declararam que preferiam deixar seu dinheiro com um ladrão inglês à suas liberdades nas mãos de um tenente de polícia”. 36 37 De fato, outros foram os caminhos seguidos nos domínios insulares, colimando o aperfeiçoamento policial. Em 1749, Henry Fielding, com o apoio de seu irmão John, magistrado londrino, lançou-se à construção de uma nova e profícua força policial, baseando-se, de forma inusitada, em prévios estudos desenvolvidos à detecção das causas da criminalidade 38 . Durante suas lucubrações, diagnosticou como o principal responsável pela ineficiência da polícia inglesa o despreparo de seus agentes, historicamente mal selecionados 39 e inadequadamente 36 MONET, Jean-Claude. Op. cit., p. 48. 37 Ibidem, p. 64. A menção reservada à polícia francesa pelo Ministro da Justiça José Alencar, em 1869, torna realmente mais fácil a compreensão acerca dessa invectiva: “Creio que o nome só da polícia tornou-se um oprobrio na França, por causa da natureza mysteriosa dos meios e do caracter pouco moral dos agentes que ella emprega; ao passo que si na Inglaterra a policia é respeitada, póde-se sem hesitação attribuir sua popularidade á franqueza e á dignidade de seus processos” (Sic) (conforme João Mendes Júnior, Op. cit., p. 261). A retidão e o profissionalismo da polícia inglesa foram bem retratados, outrossim, pelo genial francês Júlio Verne naquela que é considerada sua maior obra: A volta ao mundo em oitenta dias, publicada originalmente em 1874. Aproveitando o relato do insucesso do açodado detetive Fix, cuja desarrazoada pretensão detentiva foi prontamente indeferida pelo Chefe de Polícia de Bombaim, Verne fez textual: “Essa severidade de princípios, a observância rigorosa da legalidade são perfeitamente compreensíveis nos costumes ingleses que, em matéria de liberdade individual, não admitem nenhuma arbitrariedade” (p. 64). 38 Publicados em 1751, sob o título “Investigação Sobre as Causas do Aumento dos Roubos”. 39 Monet revela que, na verdade, em toda Europa, raríssimas exceções à parte, os policiais menos categorizados eram selecionados praticamente ao largo de quaisquer exigências, tratando-se essa realidade de uma conseqüência das dificuldades de recrutamento, já que a péssima remuneração dessa atividade não fazia 31 remunerados 40 . Buscou, destarte, priorizar, quando da organização dos Fielding’s Bow Street Runners, sistemas de recrutamento elaborados sobre critérios rígidos e de remuneração regular, efetuada através do pagamento de “prêmios de captura”, sigilosamente patrocinados pelo erário. Coroado de bom êxito, esse sistema permaneceu em funcionamento por oitenta anos, até a derradeira reforma da polícia de Londres. 41 1.2.3. A polícia moderna. Imperioso firmar, neste ponto, um conceito plausível e efetivo para a polícia “moderna”, assim vislumbrada por Monet: Mais que o progresso dos efetivos, é a profissionalização que cava o fosso entre as formas antigas e modernas de polícia. A noção de “polícia moderna” remete, com efeito, a evoluções precisas que constituem a função policial como profissão : estabelecimento de critérios meritocráticos – o concurso – em matéria de recrutamento; elaboração e transmissão de um saber técnico através dos processos de formação; remuneração suficiente para que o oficial policial seja exercido em tempo integral; desenvolvimento, enfim, deuma identidade profissional que se exprime por uma cultura que tem suas normas, valores e ritos. 42 Uma polícia fiel a tais contornos somente pode ser vista, pela primeira vez, em 1829, na extensão da benfazeja experiência dos irmãos Fielding. Coube a Sir Robert Peel fundar a “Polícia Metropolitana de Londres”, ou simplesmente a Met 43 , constituída por um “regimento policial civil, mantido com recursos públicos, grande o bastante para conter e dispensar multidões urbanas”. Forjava-se, desse modo, um novo molde policial, o inglês, que não demorou a se tornar o preferido em boa parte do mundo, refreando, especialmente na Europa, por atrair muitos ou bons interessados. A situação já se apresentava diferenciada em relação aos Chefes de Polícia, dos quais normalmente era exigido, como condição para a ascensão ao posto, o diploma do curso de Direito. 40 CLIFT, Raymond E.. Cómo razona la policía moderna: vista panorámica de actividades policíacas, p. 28. 41 MONET, Jean-Claude. Op. cit., p. 62. 42 Ibidem, p. 61-62. 43 Ibidem, p. 72. Recebeu a Met, outrossim, a glamorosa denominação Scotland Yard, título relacionado ao edifício que primeiro lhe serviu como sede, um palácio que anteriormente abrigava os reis escoceses quando em visita a Londres. 32 num curto espaço de tempo, uma forte tendência de militarização dos corpos policiais existentes. 44 Essa inovadora polícia de Peel – tido por alguns como o pai da polícia moderna – apresentou-se realmente surpreendente sob diversos aspectos, evidentemente porquanto lastreada em uma filosofia absolutamente incomum para o seu tempo, qual hoje se pode inferir das alvissareiras diretrizes estabelecidas pelo seu criador : O constable deve ser civil e cortês com as pessoas de qualquer classe ou condição... Ele deve ser particularmente atento para não interferir desastradamente ou sem necessidade, de modo a não arruinar sua autoridade... Ele deve lembrar que não existe nenhuma qualidade tão indispensável ao policial como uma aptidão perfeita para conservar seu sangue-frio. 45 Nessa esteira, ganhou corpo o processo de especialização das principais forças policiais, que a partir de meados do século XIX iniciaram um gradativo abandono, em favor de outros órgãos da administração estatal, de todas as funções estranhas à tarefa de contenção da criminalidade. Mais do que isso, e para além da 44 BAYLEY, David. Op. cit, p. 56. Registre-se, em sentido contrário, a opinião de Carlos Magno Nazareth Cerqueira, que com supedâneo único e literal na obra de Raymond E. Clift (vide nota nº 53), revela sua crença que “Peel tenha influenciado as polícias mundiais a adotarem o modelo militar”. É bem verdade que Cerqueira reconhece, com base na lição de um oficial da Gerdarmeria francesa, a existência de uma grande diferença entre uma “força de polícia com estrutura militar” e uma polícia militar. Alude à primeira, embora de forma fragmentada, como uma força de caráter até mesmo civil, regida por “normas militares nos aspectos relacionados à organização, instrução e regime disciplinar” (Questões preliminares para a discussão de uma proposta de diretrizes constitucionais sobre a segurança pública, p. 143-147). Ainda assim, o erro de Cerqueira torna-se evidente ao se compulsar os preceitos fundamentadores da Polícia de Pell, eis que logo o primeiro apresentava-a como uma alternativa à força militar (apud Luiz Antonio Francisco de Souza, “Polícia, Direito e Poder de Polícia. A Polícia brasileira entre a ordem pública e a lei, p. 295-319) Registre-se, por oportuno e necessário, a classificação operada pelo professor José Manuel Castells Arteche, catedrático de Direito Administrativo da Universidade do País Basco, contemplando o modelo policial anglo- saxão como “civil e descentralizado, profissional e orientado à investigação criminal”, enquanto apresenta o francês ou napoleônico como “militarizado, ao serviço do Estado e centrado na manutenção da ordem pública” (“La policía judicial como objetivo”, p. 46). Não bastassem as evidencias expostas, o absurdo em se aludir a uma polícia inglesa militar ou militarizada, máxime e especificamente em se tratando da polícia judiciária, se há patente com René David, que em seu célebre O Direito Inglês (p. 49) se pronunciou categórico : “A polícia se apresenta, na França, como um corpo semi-militar, estritamente hierarquizado, por trás do qual se descobre, aos olhos de todos, o poder público com todos os seus privilégios e suas prerrogativas. Na Inglaterra, ao contrário, a polícia, comparável outrora a uma espécie de milícia e representada pelo parish constable (policial do distrito ou comarca), conservou um caráter local, um vínculo com a população, que ainda em nossos dias são uma característica geral da instituição (...) concebida tradicionalmente no âmbito das coletividades locais, a polícia não se apresenta aos ingleses como o braço do poder executivo (...) não se associa à concepção de polícia a idéia de prerrogativas do poder público, menos ainda a da irresponsabilidade, que a existência de uma polícia de estado arraigou no espírito dos cidadãos do continente”. 45 MONET, Jean-Claude. Op. cit, p. 52. 33 prevenção criminal, distinguiram-se as “novas polícias”, que naquela época pululavam na Europa, pelo desenvolvimento de pujante atividade investigativa, inclusive de índole científica. Fundou Londres, em 1863, no seio de sua MET, o Criminal Investigation Departament, sendo rapidamente acompanhada por nações vizinhas. 46 Enquanto isso, na nova França, nascido da vitoriosa revolução de 1789, o recém-fundado Estado de Direito exigia uma nova polícia. A Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão fez proclamar por seu cânone XII: “A garantia dos direitos do homem e do cidadão necessita da força pública; esta força é, pois, instituída pela vantagem de todos e não para a utilidade aos quais foi confiada” 47 . Uma vez definida sua alma, coube à Lei de 3 do Brumário do ano IV (25 de outubro de 1795) traçar a fisionomia dessa nova polícia, de plano bipartida: A polícia é administrativa ou judiciária. A polícia administrativa tem por objeto a manutenção habitual da ordem pública em cada lugar e em cada parte da administração geral. Ela tende principalmente a prevenir os delitos. A polícia judiciária investiga os delitos que a polícia administrativa não pode evitar que fossem cometidos, colige as provas e entrega os autores aos tribunais incumbidos pela lei de puni-los. 48 No plano dos fatos não fez a França, entrementes, por merecer maior destaque, senão negativo, nesta divisada evolução policial. De fato, em meio a incessante turbulência social e política demandada ao longo das décadas que se seguiram, a novel polícia francesa – construída sobre os escombros do terror – não se distanciou muito daquela que a precedeu no ancien regime, assim frustrando as expectativas criadas ao seu redor. Extrai-se de Lê Clère, que a polícia francesa que daí se seguiu, enveredou por uma trajetória absolutamente errática, não conseguindo tomar forma ou rumo 46 MONET, Jean-Claude. Op. cit., p. 60. Em 1856 uma lei uniformizou todo o sistema policial vigente na Inglaterra e País de Gales, excetuada apenas a polícia londrina. 47 Quando reeditada, em 1791, esta Declaração já não mais trazia a vertente assertiva em seu texto. 48 Artigos 19 e 20. 34 que lhe pudesse enquistar um sentido proveitoso de modernidade e muito menos de exemplaridade. Ora estruturada em torno de um ministério específico, ora vinculada singelamente a uma Prefeitura, outra vez subordinada a um órgão ainda de menor expressão, não
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