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Dedico este trabalho a todos aqueles que insistem em acreditar que, apesar de tudo, algo ainda pode e deve ser realizado em prol da construção, no mundo real, de uma sociedade brasileira livre, justa e solidária, onde cada policial venha a ser mirado não com a desconfiança e o medo suscitados pelo guerreiro, que apenas acena com a morte e a destruição, mas sim divisado com o apreço e a admiração despertados pela benevolência e pela segurança que irradiam os verdadeiros artífices da paz. Assim, nomeadamente, à memória do Professor Sérgio Marcos de Moraes Pitombo, exemplo de homem e jurista, que não apenas sonhou, mas muito laborou na busca desse feliz amanhã. Não levantarás falso boato, e não pactuarás com o ímpio, para seres testemunha injusta. Não seguirás a multidão para fazeres o mal; nem numa demanda darás testemunho, acompanhando a maioria, para perverteres a justiça; nem mesmo ao pobre favorecerás na sua demanda. Se encontrares desgarrado o boi do teu inimigo, ou o seu jumento, sem falta lho reconduzirás. Se vires deitado debaixo da sua carga o jumento daquele que te odeia, não passarás adiante; certamente o ajudarás a levantá-lo. Não perverterás o direito do teu pobre na sua demanda. Guarda-te de acusares falsamente, e não matarás o inocente e justo; porque não justificarei o ímpio. Também não aceitarás peita, porque a peita cega os que têm vista, e perverte as palavras dos justos. Êxodo 23, 1-8. E a obra da justiça será paz; e o efeito da justiça será sossego e segurança para sempre. Isaías 32,17. Bem-aventurados os que têm fome e sede de justiça porque eles serão fartos. Mateus 5, 6. SUMÁRIO CAPÍTULO 1. A POLÍCIA HISTÓRICA E ATUAL : UMA VISÃO PANORÂMICA 1.1. Polícia : abordagem semântica ............................................................................... 18 1.2. A polícia e suas origens .............................. ........................................................... 23 1.2.1. A polícia antiga ............................................................................................. 23 1.2.2. Séculos de transição ...................................................................................... 28 1.2.3. A polícia moderna ......................................................................................... 31 1.3. A polícia no Brasil .................................................................................................. 38 1.3.1. Período colonial .......................................................................................... 38 1.3.2. Período imperial ......................................................................................... 39 1.3.3. Período republicano .................................................................................... 47 1.4 A polícia judiciária ................................................................................................ 55 1.4.1. A investigação criminal : antecedentes históricos ........................................ 55 1.41.1. Os primeiros passos ....................................................................... 56 1.41.2. Roma .............................................................................................. 58 1.41.3. Inquisição ....................................................................................... 60 1.4.2. A polícia investigativa ................................................................................ 62 1.4.2.1. Intróito ........................................................................................... 62 1.4.2.1.1. Lei de 3 do Brumário do ano IV : a certidão de nascimento da polícia judiciária .................................... 63 1.4.2.1.2. Reforma napoleônica : a polícia judiciária no processo penal ................................................................................ 65 1.4.2.2. A polícia judiciária no Brasil ......................................................... 66 1.4.2.3. Um relance sobre a hodierna polícia judiciária no mundo ocidental ........................................................................................ 70 1.4.3. A polícia judiciária e sua classificação jurídica : uma nova visão ............. 72 CAPÍTULO 2. A EVOLUÇÃO ESTATAL COMO FATOR DETERMINANTE DA TRAJETÓRIA POLICIAL PELOS SÉCULOS 2.1. Considerações preliminares ................................................................................... 83 2.2. A gênese estatal ...................................................................................................... 85 2.3. Os fins do Estado .................................................................................................... 86 2.4. O Estado absoluto ................................................................................................... 88 2.5. O Estado de direito ................................................................................................. 90 2.5.1. O Estado liberal de direito .......................................................................... 92 2.5.2. O Estado social de direito ........................................................................... 94 2.5.3. O Estado democrático de direito ................................................................. 97 CAPÍTULO 3. O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO BRASILEIRO, A REALIDADE NACIONAL E O PAPEL RESERVADO À POLÍCIA 3.1. Antelóquio ............................................................................................................... 103 3.2. A tradição autoritária e a difícil transição para a democracia ................................. 105 3.3. As origens e os rumos do Estado democrático brasileiro......................................... 111 3.4. A democracia brasileira ........................................................................................... 114 3.5. O Estado democrático de direito brasileiro e o princípio da dignidade da pessoa humana .................................................................................................................... 118 3.5.1. A dignidade da pessoa humana e o direito fundamental à segurança .......... 122 3.5.2. A dignidade da pessoa humana, o direito à segurança e o devido processo legal ................................................................................................................................. 131 Capítulo 4. A POLÍCIA JUDICIÁRIA NA CONSTITUIÇÃO BRASILEIRA DE 1988 E A SUA FIDELIDADE AOS PARADIGMAS DEMOCRÁTICOS. 4.1. Introdução ................................................................................................................ 138 4.2. A institucionalização da segurança pública : mera acomodação constitucional ou um passo necessário à defesa da ordem democrática ? ......................................... 139 4.3. O artigo 144 da Constituição e a Polícia Judiciária : um duplo equívoco ............... 143 4.4. A Segurança Pública como razão de ser ou causa de degeneração da Polícia Judiciária ? ............................................................................................................. 146 4.4.1. Necessárias reflexões .................................................................................... 146 4.4.2.O discurso político do crime ......................................................................... 148 4.4.3. Polícia Judiciária : função essencial à Justiça Criminal................................ 152 4.5. Polícia Judiciária democrática ................................................................................. 157 4.5.1. A Polícia Judiciária e a defesa das instituições democráticas ...................... 157 4.5.2. Da teoria à prática .........................................................................................158 4.5.3. Os novos paradigmas ético-culturais da Polícia Judiciária ........................... 160 4.5.3.1. A lei da força revogada pela força da lei ......................................... 163 4.5.3.2. Dignidade x corrupção...................................................................... 168 4.6. O futuro da Polícia Judiciária brasileira ................................................................. 173 4.6.1. Considerações iniciais ................................................................................ 173 4.6.2. Por uma nova e democrática arquitetura estatal ......................................... 174 4.6.3. A polícia judiciária e sua efetiva incorporação ao mundo jurídico: o necessário respeito à premissa constitucional.............................................. 182 Conclusão ....................................................................................................................... 190 Referências Bibliográficas ............................................................................................ 198 INTRODUÇÃO 1. Apresentação do tema: justificativa e limites. Anos de observações, de estudos e especialmente de vivência nesse meio permitiram-nos concluir que, no Brasil, a polícia judiciária é uma ilustre desconhecida, conformando-se, no mais da vezes, quase uma ficção, aos moldes do que já é possível inferir de uma análise mais atenta da vigente ordem constitucional - que a seu favor, neste ponto, conta apenas com o fato de haver perfeitamente reverberado a ignorância e o desinteresse geral sobre a matéria. Na verdade, não somente em nosso País, como em boa parte do mundo, e não de hoje, o tema polícia perfaz-se um tabu. De fato, o assunto dificilmente consegue suscitar interesses circunspectos, sendo invariavelmente confinado no lúdico ambiente cinematográfico - que no mais das vezes nenhum contato guarda com a realidade, máxime com a brasileira -, ou explorado, também impropriamente, pela imprensa, principalmente por aquela chamada marrom – e que não por acaso se confunde com o denominado jornalismo policial, dedicado tão-somente à divulgação, quase sempre apriorística e parcial, de toda sorte de catástrofes, brutalidades e pseudo-escândalos destinados a alimentar o sensacionalismo mórbido na opinião pública -, restando, por essa via, igualmente marginalizado no recinto científico, e notadamente no âmbito jurídico. A busca das razões justificadoras dessa generalizada insciência, que certamente refletem o maior obstáculo à configuração de uma polícia judiciária vocacionada e capacitada à defesa das instituições democráticas, condição sine qua non ao cumprimento dos objetivos inerentes ao nosso novel e também ignoto, senão despercebido, Estado Democrático de Direito, pareceu-nos, destarte, medida relevante, da qual pudemos nos ocupar regressando no tempo, em direção às origens da sempre ambivalente organização policial, que pelos séculos vem gerando, contraditoriamente, fascínio e repulsa, medo e segurança, opressão e libertação. Assim foi-nos dado visualizar, e de forma muito clara, dois interessantes aspectos nesse desenvolvimento histórico : primeiro o seu absoluto enredamento com o processo de maturação estatal, e depois, nada obstante tamanha proximidade, o fato de que um persistente retardamento tem caracterizado a progressão policial nessa comum senda transmutativa – coisa de muitos passos atrás -, perfazendo essa paradoxal distância exatamente aquela que misteriosamente afasta a prática da teoria, que separa a Constituição real da Carta de papel. Surgem, pois, as imagens apresentadas sob prisma policial como a única projeção fidedigna, e realizada em tempo real, acerca da realidade composta pelas concretas e complexas relações havidas, ao longo dos séculos, entre a autoridade do soberano e a dignidade dos súditos-cidadãos. Nesse diapasão, porquanto depositária da força monopolizada pelo Estado, enquanto milenar mecanismo de repressão utilizado pelos detentores do poder contra as massas, certamente exsurge a polícia, em seu exercício diuturno, sobre e ao largo dos discursos, como o parâmetro perfeito para se levar a cabo a aferição não só da distância que solidamente medeia os apresentados termos, mas também – e neste ponto pretendemos nos fixar – da real e efetiva possibilidade de aproxima- los e harmoniza-los. Para tanto, cuidando da polícia judiciária no Estado Democrático de Direito brasileiro, buscaremos primeiro clarificar a polícia histórica, mantendo o Estado como pano de fundo. Na seqüência, em pauta algo mais célere, mas sem perder de vista esse entrelaçamento, miraremos o Estado de Direito, até construir as bases de sua formatação contemporânea. Estabelecidas tais premissas, tão memoriais quanto científicas, poder-se-á, então, divisar o presente Estado pátrio, graficamente definido, já há quinze anos, como democrático de direito, mas que insiste permanecer, no plano da realidade, ainda hoje arraigado à sua cultura e tradições autoritárias, ensejando, pois, paradoxalmente, graves disfunções a contaminar a atividade policial judiciária, que resta necessariamente exercida às margens das fórmulas legitimadas pelos fundamentos e objetivos verdadeiramente democráticos. E o diagnóstico dessas impropriedades aponta diretamente para a Constituição da República, imprecisa, infeliz e ineficaz em sua programação policial, e que dentre tantos erros e equívocos relegou a previsão acerca da função policial judiciária para o capítulo da segurança pública, fazendo-a encargo de órgãos policiais civis da União e dos Estados (art. 144, §§ 1 o , I e IV, e 4 o ), mediante pífia menção, posta à mingua de definição ou conteúdo, ou de texto que favoreça a sua acendrada compreensão e, especialmente, sua conformação como efetivo instrumento de defesa e promoção da dignidade da pessoa humana. Com efeito, e literalmente inovando, a nossa Lei Fundamental, em gritante descompasso histórico e jurídico universais, cindiu – embora cuidadosamente em favor de órgãos únicos ! - as inextricáveis atividades policial judiciária e investigativa, conquanto represente esta o próprio cerne daquela, sua razão de ser, tanto aqui quanto alhures, há cerca de duas centúrias. Essa inicial imprecisão, que por si só já denota o acerto da conclusão inaugurativa, serve para evidenciar, outrossim, e em face dessa topografia constitucional, não apenas o desconhecimento sobre o real significado que a função policial judiciária deve assumir no Estado Democrático de Direito, mas, também, e o que parece ainda pior, a falta sequer de suspeita sobre a essencialidade de sua purificada prestação à realização da justiça criminal nesse qualificado modelo estatal. 1 De efeito, no seio do citado Estado deve a polícia judiciária ser tão-somente identificada como a atividade de pesquisa, necessariamente desenvolvida dentro de 1 Não se descurará, neste trabalho, de procurar “transmitir” este Brasil que se pretende democrático “em tempo real”, ou seja, precisamente como “funciona” no seu dia a dia, com suas vicissitudes e mazelas, notadamente políticas e jurídicas, a principiar pela elaboração de sua vigente lei constitutiva – sempre permeada por muito oportunismo, casuísmo, e quase nenhuma leal convicção. Busca-se estabelecer, com essa sistemática, um debate entre o poder real e o poder constituído, aliás, mal constituído, como o cotidiano presta o obséquio de afiançar. parâmetros garantidores de isenção e de justiça, voltada à elucidação da verdade sobre fatos considerados transgressores às leis penais, assim mirando, e em caráter restritivo, proporcionar condições excelentes ao Poder Judiciário para a aplicação do direito em face do aclarado caso concreto. No Estado Democrático de Direito, o exercício policialjudiciário somente se fará legitimo quando balizado por um único e exclusivo compromisso, firmado não com a administração e/ou a segurança públicas, mas sim, e cogentemente, com os fins da justiça criminal. Outro não é o magistério de Colomer, para quem a escorreita compreensão do papel destinado à polícia judiciária num Estado de Direito efetivamente democrático, exige o entendimento de dois cruciais pontos, a saber : 1 o ) o processo penal ao qual se subordina - “como o produto de um compromisso público entre eficácia da persecução penal e respeito à dignidade humana” - deve absoluto respeito à Constituição, velando, simultaneamente, pelos direitos fundamentais dos cidadãos e pela maior eficiência possível da investigação criminal; e, 2 o ) a sua função (da policía judicial), que não pode ser confundida com a dos órgãos acusador e julgador, se apresenta, mesmo assim, de extrema importância para a instrução da causa 2 . E arremata enfático : “Dito isso, a perspectiva de análise jurídica do significado da Polícia Judiciária parte de uma afirmação inegável : O Estado (...) está obrigado a articular uma Polícia Judiciária agilmente organizada e tremendamente efetiva na averiguação do delito e determinação da pessoa ou pessoas que tenham podido cometê-lo, fixando taxativamente os limites de suas possibilidades de atuação, porque isso é o que quer a sociedade (...). De modo que se pode dizer, sem exagero algum que, dado que nem o Juiz nem o Ministério Público podem investigar materialmente os delitos, pois não tem possibilidade, nem conhecimentos técnicos, nem devem estar especialmente capacitados para isso, sem a Polícia Judiciária o desenvolvimento adequado do processo penal é impossível”. 3 2 COLOMER, Juan-Luís Gómes. Estado de Derecho y Policía Judicial democrática : Notas sobre el alcance e y límites de la investigación policial en el proceso penal, con consideración especial de los actos de mayor relevancia. El proceso penal en al Estado de Derecho (Diez estudios doctrinales), p. 95 e 97. 3 Ibidem, p. 97-98. Para tanto, reclamam-se salvaguardas de proficiência e efetividade, devendo, nesse sentido, ser a polícia judiciária imunizada contra a influência típica do Executivo, ou melhor ainda, do Governo, cujos integrantes, invariavelmente envolvidos pelas contingências do jogo eleitoral travado em torno da eternização no Poder – e por vezes a qualquer custo, como a história sobejamente comprova -, nem sempre partilham desse nobre desiderato, chegando por vezes mesmo a impedir o seu alcance. Mister ponderar, além disso, em relação à vigente Constituição pátria, que assim como é verdade que a eficácia da atuação policial judiciária pode propiciar bons frutos à segurança individual e coletiva, emerge não menos correto afirmar que esse fato, que se repete com a boa prestação dos serviços de educação, com a ampliação do mercado de trabalho, dentre tantas outros fatores próximos, não induz à automática e/ou compulsória inserção dos responsáveis pelas listadas atividades no rol de organismos que respondem, a teor do “caput” do art. 144 da Constituição da República, pela “preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio”. Importa aqui considerar, e em três sintéticos lanços, que no Estado Democrático de Direito brasileiro: 1 o ) a segurança pública assoma-se como responsabilidade de todos; 2 o ) a investigação criminal avulta como função especializada, eminentemente técnico-jurídica, cujo único compromisso deve ser com a verdade sobre um fato aprioristicamente tido por criminoso; e, 3 o ) a realização dessa tarefa deve assim visar um único resultado : a realização de justiça, incessantemente buscada através de procedimentos imparciais, honestos, competentes, inteligentes e diligentes. Descaberá, portanto, à polícia judiciária, sob qualquer pretexto, tomar parte do combate contra a criminalidade, diuturnamente prometido pelos donos do poder, como luta sem trégua e quartel, ou a qualquer outro exercício de índole repressiva, que sempre pode importar em prejulgamentos e partidarismos : vide, por exemplo, o clássico “os bons versus os maus” (inimigos). Com efeito, na defesa das instituições democráticas, e conseqüentemente comprometidos com o respeito e a promoção da dignidade da pessoa humana, e assim de todos os valores que lhe são inseparáveis, será devido aos seus operadores, noutra mão de direção, defender a liberdade, sustentando com firmeza e consciência jurídica, com fulcro nas provas eficiente e legitimamente coligidas, as excepcionais e inelutáveis hipóteses a sua restrição. Aí estão as bases da polícia judiciária democrática, consentâneas ao processo penal constitucional do Estado Democrático de Direito, como pontua José Jairo Baluta, em sua atilada percepção da doutrina de Ferrajoli : o desenvolvimento de um processo de modo respeitoso dos direitos fundamentais, encontra-se intimamente ligado com a busca da verdade acerca de uma hipótese delitiva, a qual impõe-se – diante de um Estado de Direito – como indispensável requisito a dar guarida à dignidade humana constituindo-se, na ótica do precursor, da “teoria do garantismo”, em verdadeiro princípio garantista a salvaguardar os direitos humanos, que aparecem – particularmente no processo penal – altamente comprometidos diante das conseqüências danosas que lhes pode acarretar. 4 Com fidelidade a essas premissas, cumpre, agora, e em respeito a vontade da Constituição, que somente pode ser depreendida dos postulados fundamentais do Estado Democrático de Direito por ela criado 5 , adotar-se entendimento desse jaez, garantindo-se, por necessário, uma nova e compatível conformação também orgânica ao escorreito labor policial judiciário, valorizando-se, primacialmente, o elemento humano incumbido desse exercício, uma vez que o seu depurado e eficaz desempenho afigura-se condição essencial à ultimação de justiça. 2. Plano de Trabalho. À comprovação da pertinência do tanto aduzido, reservamos o capítulo inicial desta dissertação para o registro de uma breve história da polícia, desde que 4 BALUTA, José Jairo. O Juiz garantidor e o processo como meio respeitoso de garantir os direitos individuais, p. 10. 5 Consoante a douta dicção de Cleber Francisco Alves : “no constitucionalismo aberto da pós-modernidade, livre das amarras de um reducionismo inerente a uma perspectiva jurídico-positivista, abre-se um novo horizonte para a compreensão dos princípios gerais do direito, que ao contrário do caráter supletivo e secundário que inicialmente lhes era conferido, passam a ocupar uma posição de proeminência jurído- normativa, presidindo e vivificando todo o ordenamento constitucional”. O Princípio Constitucional da Dignidade da Pessoa Humana : o Enfoque da Doutrina Social da Igreja, p. 177. vislumbrada como órgão estatal diretamente envolvido com a lida criminal. Desse marco, percorrendo caminho milenar, acompanhar-se-á, em seus principais passos, o desenvolvimento da atividade policial nos principais centros da cultura ocidental, mediante a análise crítica dos modelos assim forjados, e que acabaram reproduzidos em todo o mundo. Por essas veredas avistaremos o hesitante despontar da polícia judiciária, denominação francesa para uma especializada polícia investigativa, que não tardaria a surgir também na Inglaterra, em conjuntura tão mais técnica quanto civilizada, para além de imperativos políticos ocasionais. Idêntica marcha será reservada à apreciação do específico panorama pátrio, regredindo-se, para tanto, ao período colonial. Procurar-se-á evidenciar, nessa trajetória, a distância que sempre marcou, e infelizmente ainda marca, o desígnio oficial das corporações, sedimentadas durante séculosde autoritarismo, e a preocupação com o respeito aos direitos fundamentais dos cidadãos, justamente a marca registrada do nosso Estado, donde ressairá inconteste a imprescindibilidade de contarmos com uma nova estrutura policial neste País, desta feita assentada em paradigmas atuais, democráticos, consoante clarifica a vigente Constituição da República, ainda do recente ano de 1988. Ao cabo dessa leitura histórica, ao meio da qual desfar-se-ão certos mitos e evidenciar-se-ão falsas ufanias, poder-se-á atinar para as raízes de diversos erros e acertos que se refletem, para mal ou para bem, na realidade policial hodierna, inclusive brasileira, tudo servindo de norte às devidas e indispensáveis correções de rumo. Conseqüentemente, no Capítulo II, dar-se-á vez à dissecação do Estado, privilegiando, em face dos interesses específicos deste estudo, a construção do Estado de Direito, desde o seu nascimento, vincando o ocaso do absolutismo real, até sua versão contemporânea, de matiz democrática. De efeito, para a melhor visão da polícia judiciária democrática que já esboçamos, impõe-se retornar, ainda que rapidamente, às origens do Estado, para, daí seguindo atentamente o processo de transformação político-social - de fundo igualmente filosófico, histórico, jurídico e econômico - que conduziu à maturação de sua versão hodierna, em meados do último século, perfeitamente compreende- lo, mediante a identificação de seus fundamentos e finalidades. Não se olvidará, nessa linha evolutiva, de se produzir as consentâneas intersecções com o plano policial histórico, obedecendo às diretivas anteriormente desveladas. Depois, na seqüência desse pretendido descortino - certamente enxuto, porquanto cingido às raias próprias deste trabalho -, chegará o momento do esquadrinhamento do Estado Democrático de Direito brasileiro, de gênese ainda atual, buscando em seu âmago, com o apoio, uma vez mais, nas proposições precedentemente contextualizadas, os genes do devido processo penal, de origem constitucional, garantista, jungido à preservação da dignidade da pessoa humana. Nesse ponto, enfrentando fortemente a questão do autoritarismo, inexorável padrão cultural pátrio, tenciona-se destacar as enormes dificuldades que se somam contra a edificação do Estado Democrático constitucionalmente desenhado há pouco mais de quinze anos. Desde a falta de entendimento popular, resultante da ignorância generalizada, que não pode ser apartada dessa entranhada cultura arbitrária responsável pelo acentuado complexo de inferioridade nas massas, tarda a democracia escrita a ecoar no plano fático. Não se fazendo assim, pois, presente em nossas cidades, ruas, praças, em meio ao povo, como haveria de vivificar a existência e a atuação do Estado e dos seus organismos ? Como os seus valores poderão - há então de ser indagado -, por via de conseqüência, determinar o exercício policial judiciário ? As respostas para essas e outras correlatas indagações prestar-se-ão para impulsionar a discussão corrente, toda dedicada ao cotejo do ser e do dever-ser no ambiente estatal brasileiro, sem nunca perder de vista, como já enfatizado, o ideal da dignidade da pessoa humana, ponto fulcral dessa caminhada, referencial absoluto da nova polícia judiciária, democrática, divisada, sob pano de fundo constitucional, e sob renovado substrato ético, no subseqüente Capítulo IV. Na última parte do trabalho, como acima exposto, tratar-se-á exclusivamente da compatibilização policial judiciária aos expendidos cânones do Estado Democrático de Direito brasileiro, mediante o estabelecimento de apropriada dialética com o texto e o espírito da Constituição da República, perpassando a teoria em direção aos atos. Ao delineamento teórico dessa polícia judiciária democrática aliar-se-á a preocupação de desmistificar – tanto no plano dos (pré) conceitos jurídicos, quanto, objetivamente, no âmbito igualmente implicante da realidade sensível e comprovável - a muito difundida crença (que mais se assemelha a um complexo de ordem cultural ou até mesmo a um despeito, de índole francamente elitista) na impossibilidade da existência, e ainda no terceiro mundo, de um organismo dotado de denominação policial, exclusivamente responsável pela a investigação criminal, volvido ao patrocínio dos ideais de liberdade, de justiça e de dignidade humana. Nessa toada, e coerentemente à crítica reservada ao constituinte em face da forma e conteúdo finais dados ao capítulo constitucional dedicado à Segurança Pública, que revelam o despreparo e/ou o desprezo de seus autores em relação a essa crucial temática, buscar-se-á patentear os tantos equívocos e erros que a permeiam. Tratando-se de questão genuinamente política, atinente a determinação da função social da investigação criminal no Estado Democrático de Direito, efetivamente há de se deplorar a opção, pouco consciente e consistente ao que se percebe, configurada através da inclusão da polícia judiciária no elenco de funções inerentes à segurança publica, conforme estabelecido no art. 144 da Constituição. Por essa via de escolha, logrou-se inviabiliza-la, na incipiente realidade democrática pátria, como função essencial à justiça, deixando-se conseqüentemente de cerca-la com cuidados e prerrogativas afins, largamente difundidos em título (IV) e capítulo (IV) diversos da Lei Magna. Antes que uma vã alegação, os objetivos eleiçoeiros, plenamente evidenciados em sua expressão fundamentalmente carreirista que bem caracteriza as relações de poder também neste País, plenamente visíveis no aborrecido e antropofágico “discurso político do crime”, endossam totalmente, na prática, essa firme ilação, cujo reverso, entrementes, servirá perfeitamente como farol a indicar um porto seguro para a polícia judiciária inapelavelmente democrática, consentânea ao Estado brasileiro, e que ainda há de ser implantada. Essa nova polícia judiciária, que espera para ser normativa e materialmente moldada, foi, dentro desses lindes, o objeto da parte derradeira deste finalizador capítulo, onde buscou-se tracejar os contornos éticos da investigação criminal no Estado Democrático de Direito, secundada pela caracterização orgânica de seus executores, que antes de qualquer outra coisa haverão de vencer os grilhões do preconceito que impedem o seu ingresso no mundo jurídico. Enfim, dentre as tantas idéias que permeiam este trabalho, crê-se que uma em especial chame a atenção, qual seja aquela que aduz a íntima e direta identificação da polícia judiciária não mais como missão de segurança pública, mas sim como inelidível pressuposto de justiça criminal. Independente de sua originalidade, o vertente conceito procura ousar em um campo no mais das vezes desvalorizado pelo dogmatismo jurídico e desprezado pela prática política: a efetividade. Eis o imo desta pesquisa, centrada no Estado Democrático de Direito, e voltada ao patrocínio de uma específica mudança que a sua implantação está rigorosamente a exigir, a da polícia judiciária, compreendendo a implementação da efetividade ética e jurídica da investigação criminal. 18 CAPÍTULO 1 – A POLÍCIA HISTÓRICA E ATUAL: UMA VISÃO PANORÂMICA 1.1. Polícia: abordagem semântica. O vocábulo “polícia” emana, etimologicamente, da raiz grega polis, que em sua trivial conversão para a língua portuguesa, adquire o sentido de cidade autônoma ou Estado. Já a sua derivação politeia, tendo por base as acepções extraídas das mais abalizadas leituras e traduções dos clássicos 1 , vem a denotar, dentre tantos significados de expressões próximas, “qualidade e direitos de cidadão, direito de cidadania, modo de vida do cidadão, vida e administração de homem de Estado, participação nos negócios públicos, medidas de governo, forma de governo, regime político em geral, constituição do Estado; autogovernodos cidadãos”. 2 Em Roma, a latinização do vocábulo grego politeia levou ao surgimento do termo politia 3 , que inicialmente se prestou a comunicar, de forma bastante genérica, o entrelaçamento de duas idéias : a de coisa pública - res publica com a de civitas - os negócios da cidade. Com o tempo, porém, deixou de ter um sentido tão abrangente, passando melhor a servir ao dogmatismo político. É o que explica Monet, reportando-se à idealização jurídica de 1 LÊ CLÈRE, Marcel. História breve da polícia, p. 89. Afirma esse autor que, para Aristóteles, a polícia, “que assegura a ordem e o governo da cidade”, é “o maior e o primeiro de todos os bens”. 2 CRETELLA JÚNIOR, José. Do poder de polícia, p. 25. 3 Nesse sentido Antonio Houaiss : “polícia: do latim polìtia, ae 'organização política, governo, sistema governativo' < gr. politeía, as 'qualidades e direitos de cidadão, vida de cidadão; o conjunto de cidadãos; vida e administração de homem de Estado'; em sentido coletivo: 'medidas de governo; forma de governo, regime político; governo dos cidadãos por eles próprios; constituição democrática'; ver polit-; fontes históricas Séc. XV: policia, Séc. XV: policia, Séc. XV: pollicia” (Dicionário eletrônico Houaiss da língua portuguesa). Idem De Plácido e Silva: “Polícia: derivado do latim politia, que procede do grego politeia, originariamente traz o sentido de organização política, sistema de governo e, mesmo, governo. Assim, por sua derivação, em amplo sentido, quer o vocábulo exprimir a ordem pública, a disciplina política, a segurança pública, instituídas, primariamente, como base política do próprio povo erigido em Estado” (Vocabulário jurídico, edição eletrônica). 19 um conteúdo e um lugar específicos à noção de “polícia”, em construções teóricas que visam a justificar a soberania absoluta do Estado imperial sobre os seus súditos. Nessa concepção, o imperium constitui o fundamento último do poder coercitivo do Estado – a potestas – e aquele que se manifesta concretamente através da ação administrativa, judiciária e policial. A essência da função governamental consiste em definir as fronteiras entre o público e o privado, através da produção de normas cujo respeito é assegurado por órgãos administrativos específicos, que utilizam, se necessário, o constrangimento físico. Em Roma, o praefectus urbis – o “prefeito da cidade” – dispõe tanto do poder de editar regulamentações referentes a todos os aspectos da vida social quanto da autoridade sobre os corpos de polícia especializados. 4 Na Europa medieval, coincidindo com o período de redescobrimento do direito romano, a palavra polícia ganhou primordial projeção ao particularizar as atividades exercidas pela autoridade temporal, distinguindo-as das imposições morais advindas das instâncias religiosas. Com o tempo, passou a designar, de modo ainda mais claro, o feixe de poderes e de cuidados, que ao príncipe e aos seus barões, socorria como meio de garantir a ordem entre seus súditos e servos, até finalmente exprimir, num conceito que logo se difundiu pelo continente, “toda a atividade da Administração, quer dirigida a prevenir os males e as desordens da sociedade, quer a zelar através dos serviços públicos pelo bem-estar físico, econômico e intelectual da população”. Do jus politae, acrescenta Cretella Júnior, apenas excluíam-se os exercícios estatais relacionados às administrações financeira e militar. 5 Nesse compasso, e no contexto da afirmação teórica do absolutismo real, chegou a palavra polícia a identificar e a qualificar o próprio Estado. O denominado Estado de Polícia ou Estado Policial (Polizeistaat) soergueu-se firmemente alicerçado na doutrina romana do imperium, e em pleno século das luzes não titubeou em se apoderar das preocupações filosóficas então em voga a justificar sua gestão, hoje reconhecidamente arbitrária. Com efeito, ao Estado caberia, segundo a 4 MONET, Jean-Claude. Polícias e sociedades na Europa, p. 20-21. 5 CRETELLA JÚNIOR, José. Op. cit., p. 25-26. 20 ideologia dominante, a adoção de todas as iniciativas e providências tendentes a perseguir e a garantir o bem-estar da população, ou, como desvenda Monet, “a moralidade superior desse objetivo justifica a extensão dos poderes do Estado (...) pois só ele dispõe do poder de definir a felicidade de seus súditos, cujos meios de realizar só ele detém, inclusive pelo exercício da coação física ...”. 6 7 Esse Estado atribuía-se o papel de promotor da felicidade e do bem-estar social. Em situação de proeminência em relação ao Direito, o soberano – um “déspota esclarecido” – é quem ponderava e dizia o que era bom e o que era mau para seus súditos, que assim remanesciam privados de tudo, exceção feita ao direito de acatar e respeitar a ordem estabelecida. Explica Pierangelo Scheira que o qualificativo polícia, assim dotado de sentido pejorativo, traduzindo idéia contraposta e degenerativa em relação ao direito, serviu inicialmente para qualificar a Prússia de Frederico II, cognominado “O Grande”, como um Estado de índole absolutamente paternalista e extremamente intervencionista, e que ganhou notoriedade especialmente por se constituir numa potência militar. 8 Somente a partir do Estado de Direito, comenta Scheira, é que o vocábulo polícia deixou, pouco a pouco, de delinear a administração estatal em seu todo, com sua gama quase infinita de atribuições, especialmente a molde de uma verdadeira panacéia pública, passando, assim, gradativamente, a especificar, em linguagem corrente e leiga 9 , contudo impregnada de um sentido remanescente, o “setor 6 MONET, Jean-Claude. Op. cit., p. 22. 7 Lembra Maria Sylvia Zanella Di Pietro que, com o Estado de Polícia, o “direito público ficou na penumbra”, atuando as monarquias absolutas por força de duas idéias fundamentais, “a de soberania e a de polícia, ambas chegando ao seu apogeu com o iluminismo”. E citando Vinício Ribeiro emenda: “os príncipes passam a ser agora os soberanos esclarecidos – daí a designação por volta da segunda metade do século XVIII de despotismo esclarecido – que não prestam contas a ninguém a não ser a Deus. A polícia é preocupação de desenvolvimento, de elevação de nível, de brilho, de grandeza. Há para os homens do século XVIII uma preocupação enorme de civilização. O príncipe vai utilizar a sua ausência de limites não para o seu engrandecimento pessoal, mas com a intenção de se tornar possesso da idéia de progresso do seu país; torna-se o primeiro funcionário; ele é o único portador dessa idéia de racionalidade, é capaz de definir a organização racional do Estado e realizar uma nação culta” (Discricionariedade administrativa na constituição de 1988, p. 12). 8 BOBBIO, Norberto; MATTEUCCI, Nicola; PASQUINO, Gianfranco. Dicionário de política, p. 413. 9 BANDEIRA DE MELLO, Celso Antonio. Curso de direito administrativo, p. 697. É certo que o termo polícia, em linguagem técnico-juridica, prossegue a conceituar, no âmbito do Direito Administrativo, e mais precisamente sob o prisma da polícia administrativa, “o conjunto de intervenções da Administração que tende impor à livre ação dos particulares a disciplina exigida pela vida em sociedade”, consoante magistério de 21 subsidiário da atividade do Estado, visando, sobretudo, à prevenção e punição dos ilícitos, mediante o emprego de um aparelho rígido e autoritário de investigação e intervenção” 10 . “A polícia não tem mais de se encarregar de tudo que é necessário à felicidade dos indivíduos, mas apenas garantir a sociedade contra riscos que é preciso situar e definir de maneira legal”, asseverou Monet 11 . Superado, pois, o Estado absoluto, o termo polícia, como detalha Sérgio Bova, ganhou um novosignificado: [...] no início do século XIX, passou a identificar-se com a atividade tendente a assegurar a defesa da comunidade dos perigos internos. Tais perigos estavam representados nas ações e situações contrárias à ordem pública e à segurança pública. A defesa da ordem pública se exprimia na repressão de todas aquelas manifestações que pudessem desembocar numa mudança das relações político-econômicas entre as classes sociais, enquanto que a segurança pública compreendia a salvaguarda da integridade física da população, nos bens e nas pessoas, contra os inimigos naturais e sociais. 12 Na França, a Revolução de 1789 patrocinou, dentre seus principais corolários, a separação das funções do Poder, demandando, por essa via, a Jean Rivero apresentado por Celso Antonio Bandeira de Mello. De efeito, impende ao Estado criar barreiras de contenção ao exercício abusivo dos direitos individuais e coletivos, assim como salvaguardar o interesse público. Daí, impor-se a todos os setores da Administração Pública – e também, portanto, aos órgãos responsáveis pela segurança pública – o cogente exercício, na exata medida de suas atribuições legais, do “Poder de Polícia”, ou seja da atividade “que, limitando ou disciplinando direito, interesse ou liberdade, regula a prática de ato ou a abstenção de fato, em razão de interesse público concernente à segurança, à higiene, à ordem, aos costumes, à disciplina da produção e do mercado, ao exercício de atividades econômicas dependentes de concessão ou autorização do Poder Público, à tranqüilidade pública ou ao respeito à propriedade e aos direitos individuais ou coletivos”, conforme define o “caput” do art. 78 do Código Tributário Nacional. Portanto, e a servir de exemplo, cumpre, em linhas gerais, à polícia sanitária, como manifestação da administração estatal no setor da saúde pública, laborar, com baldrame em suas atribuições legais e regulamentares, mirando a prevenção e a contenção da propagação de doenças transmissíveis. Derradeiramente, é conveniente assinalar que a expressão em tela, inegavelmente relacionada ao Estado de Polícia, e assim contaminada pela idéia de arbítrio àquele peculiar, encontra-se sob a generalizada e veemente crítica dos mais doutos tratadistas, esclarecendo o mesmo Bandeira de Mello que na Europa, excetuada a França, “o tema é tratado sob a titulação ‘limitações administrativas à liberdade e à propriedade’, e não mais sob o rótulo de ‘poder de polícia’” (Op. cit., p. 696). Ainda acerca da ambivalência e imprecisão da expressão, vide, dentre tantos outros, Lúcia Valle Figueiredo (Curso de direito administrativo, p. 195), Antonio A. Queiroz Telles (Introdução ao direito administrativo, p. 280-282), e Odete Medauar (Direito administrativo moderno, p. 403-404). 10 BOBBIO et al. Op. cit., p. 413. 11 MONET, Jean-Claude. Op. cit., p. 22. 12 BOBBIO et al. Op. cit., p. 944. 22 especialização das atividades estatais. Assim, em 1791, a Assembléia Geral Francesa definiu que em suas relações com a segurança pública, impenderia à polícia preceder a ação da justiça; a vigilância deve ser o seu principal caráter; a sociedade considerada em massa é o objeto essencial de sua solicitude. 13 Dessa forma, o vocábulo polícia passou a ser cada vez mais utilizado para identificar as atividades estatais voltadas a prevenir e reprimir, no seio da sociedade, as ações capazes de abalar a paz e de violar os interesses de seus membros, consoante específica previsão legal. Com o passar do tempo esse sentido foi sendo progressivamente popularizado, a ponto de se conformar, hodiernamente, e em praticamente todo o mundo civilizado, como a melhor senão a única expressão leiga para o termo, servindo a denominar o órgão ou o conjunto de órgãos do Estado encarregados de garantir a segurança na comunidade, protegendo, especialmente, a incolumidade pessoal e patrimonial dos indivíduos 14 , ou, na precisa dicção de Maria Helena Diniz, a “corporação governamental que deve manter a ordem pública, prevenir e descobrir crimes, fazendo respeitar as leis e garantindo a integridade física ou moral das pessoas”. 15 16 13 MENDES JÚNIOR, João. O processo criminal brasileiro, p. 245. 14 Aos moldes do que dispõe, por exemplo, a Constituição da República Federativa do Brasil, promulgada em 1988, que por seu art. 144 prescreve: “A segurança pública, dever do Estado, direito e responsabilidade de todos, é exercida para a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio, através dos seguintes órgãos: I - § 1º - A polícia federal, instituída por lei como órgão permanente, estruturado em carreira, destina-se a: I - apurar infrações penais contra a ordem política e social ou em detrimento de bens, serviços e interesses da União ou de suas entidades autárquicas e empresas públicas, assim como outras infrações cuja prática tenha repercussão interestadual ou internacional e exija repressão uniforme, segundo se dispuser em lei; II - prevenir e reprimir o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, o contrabando e o descaminho, sem prejuízo da ação fazendária e de outros órgãos públicos nas respectivas áreas de competência; III - exercer as funções de polícia marítima, aeroportuária e de fronteiras; IV - exercer, com exclusividade, as funções de polícia judiciária da União. § 2º A polícia rodoviária federal, órgão permanente, organizado e mantido pela União e estruturado em carreira, destina-se, na forma da lei, ao patrulhamento ostensivo das rodovias federais. § 3º A polícia ferroviária federal, órgão permanente, organizado e mantido pela União e estruturado em carreira, destina-se, na forma da lei, ao patrulhamento ostensivo das ferrovias federais. § 4º - às polícias civis, dirigidas por delegados de polícia de carreira, incumbem, ressalvada a competência da União, as funções de polícia judiciária e a apuração de infrações penais, exceto as militares. § 5º - às polícias militares cabem a polícia ostensiva e a preservação da ordem pública; aos corpos de bombeiros militares, além das atribuições definidas em lei, incumbe a execução de atividades de defesa civil. (...)”. 15 DINIZ, Maria Helena. Dicionário jurídico, p. 623. A autora insere tal definição no rol de significados correntes do verbete polícia – de sua vez aduzido como pertencente ao âmbito do Direito Administrativo –, a ainda compreender: “Segurança pública. Conjunto de normas que garantem a segurança da coletividade. Guarda policial ou membro daquela corporação. Profilaxia”. 16 Coteje-se, a título de ilustração, a “policia” difundida entre os países de língua espanhola e portuguesa, a “police” comum aos países de influência inglesa, a “polizia” italiana, a “police” francesa, e a “polizei” alemã. 23 1.2. A polícia e suas origens. 1.2.1. A polícia antiga. Insta ponderar que ainda não possuindo a denominação “polícia” ou mesmo à míngua de qualquer epíteto específico, as atividades anteriormente versadas, destinadas a assegurar, no mínimo, alguma ordem na comunidade, induvidosamente sempre permearam a história humana, fazendo-se visível em todas as civilizações. Lê Clère registra, por exemplo, atuação policial já no antigo Egito, por volta de 3.000 a.C., à época do faraó Menés 17 . Nos livros de história 18 e de literatura universal 19 , e também naqueles que compõem a Bíblia 20 , encontramos inúmeras referências às forças com as quais contavam os soberanos – guardas, soldados, guardiões - para assegurar a concretização de seus éditos e o cumprimento de seus comandos. Longe, entrementes, de se apresentarem como organismos estruturados, instruídos e disciplinados para promover, máxime em caráter permanente, a mantençada ordem, tais corpos de guardas, ao que se percebe, faziam-se indistintos em face dos respectivos exércitos, sendo naturalmente integrados pelos mesmos soldados ou funcionários análogos empenhados na defesa da cidade contra o inimigo externo ou, 17 Op. cit., p. 12. 18 BAYLEY, David. Padrões de policiamento: uma análise internacional comparativa, p. 51. Anota ainda esse autor que : “Detetives, espiões e mantenedores da ordem pública são encontrados nos registros imperiais dos Mauryas (c. 321 - c. 184 a.C.), dos Guptas (c. 320 - c. 535) e dos Moguls (1526-1858) na Índia, dos Mings (1368-1644) na China e dos Heyans (794-1185) no Japão”. 19 Basta a lembrança das menções reservadas aos guardas na tragédia Antígona, de Sófocles (p. 90-95 e 108- 111). De efeito, ora relatando ao soberano a ocorrência de um crime, ora conduzindo à sua presença a protagonista, tão-logo da realização de sua prisão, bem como, e por derradeiro, promovendo a execução da sumária sentença proferida por Creonte, os guardas da trama ensejam uma boa idéia acerca do corriqueiro proceder das forças que, desde a mais remota antiguidade, eram constituídas pelos reis a garantir efetividade ao seu poder, em diapasão absolutamente independente de alguma idéia de legitimidade e talvez até mesmo de uma apurada organização. 20 Dentre tantas, avultam bastante expressivas as seguintes passagens: Gênesis 12,20: “E Faraó deu ordens aos seus guardas a respeito dele, os quais o despediram a ele, e a sua mulher, e a tudo o que tinha”. Cântico dos Cânticos 3,3: “Encontraram-me os guardas que rondavam pela cidade; eu lhes perguntei: Vistes, porventura, aquele a quem ama a minha alma?”; idem 5,7: “Encontraram-me os guardas que rondavam pela cidade; espancaram-me, feriram-me; tiraram-me o manto os guardas dos muros”. João 7,32: “Os fariseus ouviram a multidão murmurar estas coisas a respeito dele; e os principais sacerdotes e os fariseus mandaram guardas para o prenderem”; Idem 18,12 “Então a escolta, e o comandante, e os guardas dos judeus prenderam a Jesus, e o maniataram”; Idem 19,6 “Quando o viram os principais sacerdotes e os guardas, clamaram, dizendo: Crucifica-o! Crucifica-o! Disse-lhes Pilatos: Tomai-o vós, e crucificai-o; porque nenhum crime acho nele”. Atos 5,26-27: “Nisso foi o capitão com os guardas e os trouxe, não com violência, porque temiam ser apedrejados pelo povo”. 24 então, e apenas, na escolta pessoal do rei e na proteção direta de seus interesses pessoais e familiares. Fazendo rápida referência à polícia ateniense dos séculos V e IV a.C. – cuja principal função consistia em vigiar, tanto os escravos, quanto a ociosa e ambiciosa aristocracia rural, indistintamente engajados em conspirações e prontos às sedições – Monet afirma, em posição não contestada, que somente em Roma pode ser encontrada uma organização policial algo similar àquelas modernas, ou seja, instituída e planejada com o fim de propiciar especificamente segurança e tranqüilidade aos cidadãos. Destaca o autor, nessa esteira, que a história romana do último século a.C. foi inteiramente marcada por um terrível caos político e social, que naturalmente se desdobrou numa era de extrema violência, qual perpetuado pelo poeta Juvenal, que através de gracejo, não menos sinistro do que revelador, afiançou à posteridade: “só um insensato sairá na cidade após o jantar sem ter redigido seu testamento” 21 . E não desejando contar com os préstimos de seus militares – eis que as legiões, sabiamente tidas como um risco às liberdades públicas, não eram regularmente admitidas no interior de suas muradas –, Roma, chegando a contar, na época de Augusto, com população já próxima a um milhão de habitantes, optou pela criação de um corpo policial adequadamente estruturado como a solução mais razoável ao enfrentamento desse grave problema. Segundo Casal de Nís, essa primitiva polícia romana dispunha, em organização hierarquizada, de “comissário, inspetores, lugares-tenentes, capitães e sete mil homens”. 22 23 O chefe de polícia, completa David Bayley, era o praefectus vigilium – o prefeito de vigilância, em tradução livre – um dos integrantes da equipe do prefeito 21 MONET, Jean-Claude. Op. cit., p. 34. 22 CASAL DE NÍS, Emílio. La policia y sus mistérios (biologia criminal), p. 18. 23 Mister aqui esclarecer que essa não se apresentou como a única medida adotada pelo governo romano a refrear a violência. Relata Monet que, em atividade assistencial e complementar, passou a promover, nessa mesma época, freqüentes distribuições graciosas de trigo para o povo, chegando-se assim a beneficiar uma população de miseráveis, estimada em algo próximo a duzentos mil almas, formada por infelizes que de todas as partes do mundo fluíam à capital do Império em busca de benesses e oportunidades, quiçá exatamente desse naipe (Op. cit., p. 35). Posteriormente, cabe acrescentar, veio a referida gestão paternalista a ganhar corpo, dando vazão à celebre política do “pão e circo”, consoante expressão cunhada por Juvenal. 25 da cidade, o praefectus urbe. Eis, de fato, a primeira polícia pública da qual se tem incontroverso conhecimento histórico, composta por “agentes executivos da coerção física, pagos e dirigidos pela autoridade pública suprema” 24 . Nesse sentido mais nos esclarece João Mendes Júnior: O praefectus vigilium, creado por Augusto, para substituir os triumvirus, era o chefe de polícia preventiva e repressiva dos incêndios, escravos fugidos, furtos, roubos, vagabundos, ladrões habituaes, em summa, das classes perigosas, recomendando-se-lhe principalmente a policia nocturna (Dig., de off. praef. vigilum). Conhecia, pois, dos crimes não punidos com pena capital, por isso que os delinqüentes de taes crimes, depois de presos, eram postos à disposição do praefectus urbi (Dig. cit. L. 3 § 1 o Cód., eod. tit., L um). (Sic) Subordinados a estes praefecti, principalmente ao praefectus vigilum, estavam os irenarche, os curiosi, os stationari, agentes policiais incumbidos de percorrer incessantemente todas as partes do território, com a missão especial de investigar os crimes, prender os indiciados, interrogal-os, colligir esclarecimentos, proceder a buscas e apprehensões, fazer em summa, o inquérito com todas as diligencias, reduzir tudo a autos escriptos, e remeter ao prefeito ou á autoridade judiciaria competente (Dig., de cust. reor., L 6 § 1 o ). 25 (Sic) Fora da cidade, nos campos próximos e mesmo nas províncias, a tarefa de manutenção da ordem incumbia às milícias formadas por legionários, postadas, em regra, de légua em légua, pelas estradas romanas. Nas cidades maiores, os cuidados com a segurança em geral recaíam, no estilo da metrópole, aos prefeitos, depois titulados, notadamente na França, condes ou comites no original. É exato afirmar que, mergulhando em fatal decadência e sucumbindo ao avanço bárbaro, o império romano não tardou em se ver multifacetado, dando origem a um grande número de novos reinos, aos quais, dentro das raias de seus territórios, passou a incumbir as tarefas de manutenção da ordem, de contenção da violência e do julgamento dos criminosos. Portanto, sopesadas as correspondentes necessidades e possibilidades, cada governante teve que tratar da implementação, 24 BAYLEY, David. Op. cit., p. 41. 25 MENDES JÚNIOR, João. Op. cit., p. 33. 26 em seus domínios, de algum tipo de policiamento, incumbindo-o quer a militares profissionais, quer a corpos de guardas ou, até mesmo, a vigilantes-cidadãos. Desse período, e das principais cidades européias, remanescem registros sobre os feitos públicos em prol da segurança dos cidadãos, nada, contudo, que possa ser comparado aos grandiosos e complexos empreendimentosjungidos à edificação e manutenção da tranqüilidade naquela que foi vista como a capital do mundo antigo. A tendência, à época, não se centrava na constituição de organismos policiais, mas sim, como demonstra Lê Clère, na delegação, pelo rei, de poderes a certos funcionários para o desempenho das responsabilidades na área da segurança interna. Assim, por exemplo, Clotário II, em 615, instituiu, em Paris, os “comissários-inquiridores ou examinadores”, primitivamente conformados como um misto de oficial de polícia e juiz. Igualmente na França, já ao tempo de Carlos Magno, cerca de duzentos anos depois, delegados ambulantes – os missi dominici – foram nomeados para auxiliar os condes nas suas missões de promover a ordem, de investigar abusos e apurar crimes, de interrogar os “delinqüentes em acção (Sic)” (aqueles presos em flagrante delito) e de vigiar os estrangeiros 26 . Todas essas iniciativas restringiam-se, de fato, às principais cidades, remanescendo a proteção aos campônios e a todos aqueles que viviam em pequenas aldeias absolutamente negligenciada, a cargo tão-somente de agentes reais itinerantes, que em momento algum da história lograram se sobressair pela eficiência, e muito menos pela confiabilidade. Observa Monet, que em face de tantas deficiências não restou aos frágeis suseranos opção outra além de anuir com a transferência de suas cuidadas obrigações aos seus vassalos. Com isso, e na prática, cada barão passou a dispor de sua própria justiça, que impunha aos servos da gleba, sempre em nome do rei, porém, ao seu inconseqüente alvedrio. 26 LÊ CLÈRE, Marcel. Op. cit., p. 15-18. 27 Evidentemente falho, quando não mesmo inexistente, o sistema de segurança das aldeias acabou sendo desenhado e executado por seus próprios beneficiários, ou seja, através de milícias de configuração comunitária, que na vaza desse improviso, sob a indiferença, ou por vezes até mesmo com o apoio da autoridade, invariavelmente também se encarregavam de fazer justiça, sempre de forma sumária e simétrica em relação aos sentimentos e ressentimentos experimentados em face de cada caso concreto. 27 Essas polícias locais, não profissionais, grassaram também por toda Inglaterra, todavia sob a rigorosa tutela estatal, aos moldes do medieval sistema denominado Frankpledge. Lá, Tythings e Hundreds exerciam, em regime forçado, as tradicionais funções policiais de manutenção da ordem e de prisão de criminosos, sob a supervisão de um sheriff, que em sua missão recebia o auxílio dos constables. Embora ostentasse a qualidade de preposto real, não recebia o sheriff remuneração alguma proveniente do tesouro público 28 . Tão-somente, na primeira metade do século XVIII, é que nesse país surgiram as primeiras milícias mantidas total ou parcialmente por impostos, inauguradas, e apenas em nível experimental, em algumas poucas paróquias da capital do reino. 29 27 MONET, Jean-Claude. Op. cit., p. 35-38. Malgrado o fato dessas organizações escaparem da esfera de interesse imediato deste trabalho, parece-nos de bom alvitre ao menos referenciá-las, apresentando-as como grupos de aldeões armados que voluntariamente tomavam para si a tarefa de propiciar segurança às suas comunidades, decerto protegendo seus próprios interesses, como foram os notáveis casos, por exemplo, dos “encapuzados” de Puy-em-Velay, que para o resguardo dos peregrinos e do comércio circundante caçavam e dizimavam os assaltantes que infestavam o caminho de Santiago de Compostela, e das “Hermandades”, também espanholas, que se voltaram ferozmente contra o arbítrio dos barões. 28 Os Tythings eram formados pelos homens livres, saudáveis e maiores de doze anos provenientes de dez famílias, ao passo que a reunião de dez Tythings compunha um Hundred. Estruturados de acordo com o sistema Frankpledge, incumbia-lhes, de forma compulsória, reprimir quaisquer delitos, bem como o encaminhamento dos criminosos – mesmo sendo um de seus integrantes – a julgamento. O descumprimento desse dever sujeitava os omissos ao pagamento de impostos, aplicados à guisa de sanção, cabendo percentual dos valores pertinentemente recolhidos ao sheriff (palavra composta por “shire” e “reeve”, a designar, literalmente, o “prefeito do distrito”), que apenas assim, a par de semelhantes cobranças realizadas aos criminosos, encontrava os meios necessários para a subsistência. Bayley anota, como fato histórico, o persistente protesto formulado pelos Hundreds contra os sheriffs, os quais acusavam de rotineiramente imputar-lhes falsas omissões, obviamente com o fim deliberado de se locupletarem com a parte das multas que em decorrência haver-lhes-ia de reclamar (cita como exemplo o romance Robin Hood). O constables, inicialmente eleitos pelo próprio Hundred, tinha por obrigação prestar auxílio ao sheriff, especialmente no que tange à fiscalização das aldeias. Ainda conforme Monet (op. cit., p. 38-39), sistemática próxima pode ser observada também nos países do norte da Europa, cabendo ao Lensman, na Noruega, Suécia e Dinamarca, desempenhar funções símiles àquelas exercidas pelo constable e pelo sheriff ingleses. 29 Ibidem, p. 37 e 41-42. 28 1.2.2. Séculos de transição . 30 Consideram os autores, em aparente unanimidade, que o primeiro embrião de uma polícia profissional, arregimentada, organizada e paga pelo Estado, somente despontou na Europa do século XIII, sediada na França, mais precisamente em Paris. Criada por Luís IX, a polícia parisiense era dirigida por um superintendente, o preboste 31 , ao qual, informa Lê Clère, foram facultados “poderes excepcionais” para “o exclusivo cuidado de dirigir a polícia e julgar os processos-crimes”. Compunha- se, ademais, de comissários investigadores e sargentos, além de contar com os serviços de uma patrulha que, sob a divisa vigilat ut quiescant (pela vigia para que eles repousem), incumbia-se da guarda noturna da cidade, integrada por cavaleiros militares e por todos os citadinos válidos, engajados de forma compulsória ao serviço do chamado Guet 32 . Pelos anos e séculos seguintes, esse modelo inicial sofreu inúmeras reformas, todas intentadas não apenas com o fito de lapidar esse novel organismo, mas também com o inequívoco intuito de conter a contumaz criminalidade que nunca deixou de assolar a capital francesa 33 . Nessa senda progressista, foram adotados 30 Muito embora o desenvolvimento do tema leve à abordagem exclusiva do histórico policial europeu, cabe aqui – aos moldes do que já foi en passant realizado através da nota de nº 18 – o registro atinente à natural existência, ao longo dos tempos, de corpos propriamente policiais, dotados de razoável organização, também em outros centros culturais mundiais, como observado no grandioso Cairo do século XIV. Nesse capital do sultanato islâmico mantinha-se, sob as ordens do seu governador militar, o wali, uma vigorosa e notoriamente corrupta força policial, incumbida de combater o crime, controlar o toque de recolher, verificar a hora de abrir e fechar as lojas e o acatamento dispensado aos regulamentos de saúde, além de patrulhar as ruas, especialmente as áreas de má reputação, tavernas e antros de haxixe. A espionagem, levada a efeito por agentes dissimulados, principalmente nos mercados e visando os estrangeiros, também compreendia função comezinha dessa polícia, que, de quebra, ainda se prestava à execução das sentenças emitidas pelos juízes religiosos, que variavam desde as penas de prisão até as capitais, como a decapitação, o garrote e a crucificação (A evolução das cidades, p. 73). 31 LÊ CLÈRE, Marcel. Op. cit., p. 21-23. De proepositus, o preposto. A instituição do prebostado, criada em 1032 por Henrique I, tratava-se de uma magistratura, comjurisdição sobre o viscondado de Paris, encarregada do exercício de inúmeras funções governamentais, dentre as quais, e sem dúvida as mais importantes, apareciam as de juiz, chefe militar e de polícia. Com a reforma empreendida por Luís IX, esse órgão ganhou força e as condições necessárias para realizar o seu novo e exclusivo mister: a direção da polícia e o julgamento dos processos criminais. 32 BAYLEY, David. Op. cit., p. 43. 33 LÊ CLÈRE, Marcel. Op. cit., p. 23, 32, e 38. Registra Lê Clère que já em 1258 “não havia noites sem incêndios, violações, pilhagens, assassínios, até dentro dos muros do Louvre”. Que em 1549 os protestos contra a impotência do governo francês contra a criminalidade eram generalizados, eis que o período ficou conhecido, emblematicamente, como a sinistra época da “pera da angústia”, quando roubadores enfiavam a fruta pela garganta das infelizes vítimas para as impedir de gritar”. E também que, em 1660, Boileau irritava as autoridades versejando: “Mal que da noite as sombras sossegadas / Obrigam a trancar janelas e portadas / 29 todos os tipos de medidas imaginadas válidas e viáveis a garantir a otimização da força parisiense, a contar, dentre as mais comuns, com as reiteradas alterações estruturais, passando por soluções meramente quantitativas, com realce para a criação de novos corpos policiais 34 , ou para a singela majoração dos efetivos já existentes, até chegar àquelas de saudável aspecto qualitativo, como a exigência, fixada por intermédio de leis de 1546 e 1583 respectivamente, de prévia seleção à contratação dos candidatos a postos policiais, mediante exames de conhecimentos e da comprovação de bons antecedentes cívicos e morais, reclamando-se aos pretendentes a dignidade de comissário prévio licenciamento pela faculdade de jurisprudência e a submissão de exame de direito e a processo perante o Parlamento. 35 Dentre todas essas reformas uma mostrou-se inegavelmente a mais relevante, a ponto de cunhar o que seria posteriormente conhecido como o modelo francês de polícia. Em 1667, Luís XIV, o Rei Sol, criou no prebostado o cargo de “tenente da polícia de Paris”, destacando-o do de tenente civil, até então a maior autoridade da cidade, e dotando-o com amplos poderes e competências que transcendiam o plano da segurança pública para abarcar as demais áreas vitais da administração da cidade, percorrendo desde o combate aos incêndios e inundações até a fiscalização sanitária. Cerca de três mil homens totalizaram os contingentes a sua disposição, ao passo que a população dessa capital já passava de meio milhão de habitantes. Entrementes, a mais marcante peculiaridade dessa renovada força pública inegavelmente veio a se constituir a sua polícia secreta – composta por espiões recrutados em todos os meios, de estudantes a criminosos – responsável por manter o rei informado sobre tudo e todos, desde movimentações políticas até particularidades pessoais e morais de seus súditos. Completava esse modelo a ... Nesse instante os ladrões tomam conta da urbe / O mais funesto bosque, o mais deserto e escuro / À vista de Paris é refúgio seguro”. 34 Assim, em 1549 nascia na França a Maréchausée, corpo de polícia militarizado – inicialmente formado para guarnecer as retaguardas do exército – que passou a ter a incumbência de patrulhar os campos, e, correndo de cidade em cidade, manter a ordem e combater os criminosos. Em 1791, essa força foi rebatizada, passando a chamar-se Gendarmarie, denominação que persiste até os dias atuais. 35 LÊ CLÈRE, Marcel. Op. cit., 23-60. 30 castrense Maréchausée, então destinada ao patrulhamento dos campos e cidades interioranas. Prossegue Monet, aduzindo que esse modelo francês logo se irradiou para boa parte da Europa, influenciando a formação de polícias públicas de caráter permanente em vários Estados – notadamente naqueles de governo abertamente despóticos –, como na Rússia, em 1718, na Prússia, em 1742, e na Áustria, em 1751. Já a Inglaterra, país de histórica orientação liberal, rejeitou asperamente esse figurino policial, o qual mereceu, em 1785, no Daily Universal Register, sintomático registro acerca do exasperado sentimento bretão a seu respeito: “Nossa Constituição não pode admitir nada que se pareça com a polícia francesa; e muitos estrangeiros nos declararam que preferiam deixar seu dinheiro com um ladrão inglês à suas liberdades nas mãos de um tenente de polícia”. 36 37 De fato, outros foram os caminhos seguidos nos domínios insulares, colimando o aperfeiçoamento policial. Em 1749, Henry Fielding, com o apoio de seu irmão John, magistrado londrino, lançou-se à construção de uma nova e profícua força policial, baseando-se, de forma inusitada, em prévios estudos desenvolvidos à detecção das causas da criminalidade 38 . Durante suas lucubrações, diagnosticou como o principal responsável pela ineficiência da polícia inglesa o despreparo de seus agentes, historicamente mal selecionados 39 e inadequadamente 36 MONET, Jean-Claude. Op. cit., p. 48. 37 Ibidem, p. 64. A menção reservada à polícia francesa pelo Ministro da Justiça José Alencar, em 1869, torna realmente mais fácil a compreensão acerca dessa invectiva: “Creio que o nome só da polícia tornou-se um oprobrio na França, por causa da natureza mysteriosa dos meios e do caracter pouco moral dos agentes que ella emprega; ao passo que si na Inglaterra a policia é respeitada, póde-se sem hesitação attribuir sua popularidade á franqueza e á dignidade de seus processos” (Sic) (conforme João Mendes Júnior, Op. cit., p. 261). A retidão e o profissionalismo da polícia inglesa foram bem retratados, outrossim, pelo genial francês Júlio Verne naquela que é considerada sua maior obra: A volta ao mundo em oitenta dias, publicada originalmente em 1874. Aproveitando o relato do insucesso do açodado detetive Fix, cuja desarrazoada pretensão detentiva foi prontamente indeferida pelo Chefe de Polícia de Bombaim, Verne fez textual: “Essa severidade de princípios, a observância rigorosa da legalidade são perfeitamente compreensíveis nos costumes ingleses que, em matéria de liberdade individual, não admitem nenhuma arbitrariedade” (p. 64). 38 Publicados em 1751, sob o título “Investigação Sobre as Causas do Aumento dos Roubos”. 39 Monet revela que, na verdade, em toda Europa, raríssimas exceções à parte, os policiais menos categorizados eram selecionados praticamente ao largo de quaisquer exigências, tratando-se essa realidade de uma conseqüência das dificuldades de recrutamento, já que a péssima remuneração dessa atividade não fazia 31 remunerados 40 . Buscou, destarte, priorizar, quando da organização dos Fielding’s Bow Street Runners, sistemas de recrutamento elaborados sobre critérios rígidos e de remuneração regular, efetuada através do pagamento de “prêmios de captura”, sigilosamente patrocinados pelo erário. Coroado de bom êxito, esse sistema permaneceu em funcionamento por oitenta anos, até a derradeira reforma da polícia de Londres. 41 1.2.3. A polícia moderna. Imperioso firmar, neste ponto, um conceito plausível e efetivo para a polícia “moderna”, assim vislumbrada por Monet: Mais que o progresso dos efetivos, é a profissionalização que cava o fosso entre as formas antigas e modernas de polícia. A noção de “polícia moderna” remete, com efeito, a evoluções precisas que constituem a função policial como profissão : estabelecimento de critérios meritocráticos – o concurso – em matéria de recrutamento; elaboração e transmissão de um saber técnico através dos processos de formação; remuneração suficiente para que o oficial policial seja exercido em tempo integral; desenvolvimento, enfim, deuma identidade profissional que se exprime por uma cultura que tem suas normas, valores e ritos. 42 Uma polícia fiel a tais contornos somente pode ser vista, pela primeira vez, em 1829, na extensão da benfazeja experiência dos irmãos Fielding. Coube a Sir Robert Peel fundar a “Polícia Metropolitana de Londres”, ou simplesmente a Met 43 , constituída por um “regimento policial civil, mantido com recursos públicos, grande o bastante para conter e dispensar multidões urbanas”. Forjava-se, desse modo, um novo molde policial, o inglês, que não demorou a se tornar o preferido em boa parte do mundo, refreando, especialmente na Europa, por atrair muitos ou bons interessados. A situação já se apresentava diferenciada em relação aos Chefes de Polícia, dos quais normalmente era exigido, como condição para a ascensão ao posto, o diploma do curso de Direito. 40 CLIFT, Raymond E.. Cómo razona la policía moderna: vista panorámica de actividades policíacas, p. 28. 41 MONET, Jean-Claude. Op. cit., p. 62. 42 Ibidem, p. 61-62. 43 Ibidem, p. 72. Recebeu a Met, outrossim, a glamorosa denominação Scotland Yard, título relacionado ao edifício que primeiro lhe serviu como sede, um palácio que anteriormente abrigava os reis escoceses quando em visita a Londres. 32 num curto espaço de tempo, uma forte tendência de militarização dos corpos policiais existentes. 44 Essa inovadora polícia de Peel – tido por alguns como o pai da polícia moderna – apresentou-se realmente surpreendente sob diversos aspectos, evidentemente porquanto lastreada em uma filosofia absolutamente incomum para o seu tempo, qual hoje se pode inferir das alvissareiras diretrizes estabelecidas pelo seu criador : O constable deve ser civil e cortês com as pessoas de qualquer classe ou condição... Ele deve ser particularmente atento para não interferir desastradamente ou sem necessidade, de modo a não arruinar sua autoridade... Ele deve lembrar que não existe nenhuma qualidade tão indispensável ao policial como uma aptidão perfeita para conservar seu sangue-frio. 45 Nessa esteira, ganhou corpo o processo de especialização das principais forças policiais, que a partir de meados do século XIX iniciaram um gradativo abandono, em favor de outros órgãos da administração estatal, de todas as funções estranhas à tarefa de contenção da criminalidade. Mais do que isso, e para além da 44 BAYLEY, David. Op. cit, p. 56. Registre-se, em sentido contrário, a opinião de Carlos Magno Nazareth Cerqueira, que com supedâneo único e literal na obra de Raymond E. Clift (vide nota nº 53), revela sua crença que “Peel tenha influenciado as polícias mundiais a adotarem o modelo militar”. É bem verdade que Cerqueira reconhece, com base na lição de um oficial da Gerdarmeria francesa, a existência de uma grande diferença entre uma “força de polícia com estrutura militar” e uma polícia militar. Alude à primeira, embora de forma fragmentada, como uma força de caráter até mesmo civil, regida por “normas militares nos aspectos relacionados à organização, instrução e regime disciplinar” (Questões preliminares para a discussão de uma proposta de diretrizes constitucionais sobre a segurança pública, p. 143-147). Ainda assim, o erro de Cerqueira torna-se evidente ao se compulsar os preceitos fundamentadores da Polícia de Pell, eis que logo o primeiro apresentava-a como uma alternativa à força militar (apud Luiz Antonio Francisco de Souza, “Polícia, Direito e Poder de Polícia. A Polícia brasileira entre a ordem pública e a lei, p. 295-319) Registre-se, por oportuno e necessário, a classificação operada pelo professor José Manuel Castells Arteche, catedrático de Direito Administrativo da Universidade do País Basco, contemplando o modelo policial anglo- saxão como “civil e descentralizado, profissional e orientado à investigação criminal”, enquanto apresenta o francês ou napoleônico como “militarizado, ao serviço do Estado e centrado na manutenção da ordem pública” (“La policía judicial como objetivo”, p. 46). Não bastassem as evidencias expostas, o absurdo em se aludir a uma polícia inglesa militar ou militarizada, máxime e especificamente em se tratando da polícia judiciária, se há patente com René David, que em seu célebre O Direito Inglês (p. 49) se pronunciou categórico : “A polícia se apresenta, na França, como um corpo semi-militar, estritamente hierarquizado, por trás do qual se descobre, aos olhos de todos, o poder público com todos os seus privilégios e suas prerrogativas. Na Inglaterra, ao contrário, a polícia, comparável outrora a uma espécie de milícia e representada pelo parish constable (policial do distrito ou comarca), conservou um caráter local, um vínculo com a população, que ainda em nossos dias são uma característica geral da instituição (...) concebida tradicionalmente no âmbito das coletividades locais, a polícia não se apresenta aos ingleses como o braço do poder executivo (...) não se associa à concepção de polícia a idéia de prerrogativas do poder público, menos ainda a da irresponsabilidade, que a existência de uma polícia de estado arraigou no espírito dos cidadãos do continente”. 45 MONET, Jean-Claude. Op. cit, p. 52. 33 prevenção criminal, distinguiram-se as “novas polícias”, que naquela época pululavam na Europa, pelo desenvolvimento de pujante atividade investigativa, inclusive de índole científica. Fundou Londres, em 1863, no seio de sua MET, o Criminal Investigation Departament, sendo rapidamente acompanhada por nações vizinhas. 46 Enquanto isso, na nova França, nascido da vitoriosa revolução de 1789, o recém-fundado Estado de Direito exigia uma nova polícia. A Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão fez proclamar por seu cânone XII: “A garantia dos direitos do homem e do cidadão necessita da força pública; esta força é, pois, instituída pela vantagem de todos e não para a utilidade aos quais foi confiada” 47 . Uma vez definida sua alma, coube à Lei de 3 do Brumário do ano IV (25 de outubro de 1795) traçar a fisionomia dessa nova polícia, de plano bipartida: A polícia é administrativa ou judiciária. A polícia administrativa tem por objeto a manutenção habitual da ordem pública em cada lugar e em cada parte da administração geral. Ela tende principalmente a prevenir os delitos. A polícia judiciária investiga os delitos que a polícia administrativa não pode evitar que fossem cometidos, colige as provas e entrega os autores aos tribunais incumbidos pela lei de puni-los. 48 No plano dos fatos não fez a França, entrementes, por merecer maior destaque, senão negativo, nesta divisada evolução policial. De fato, em meio a incessante turbulência social e política demandada ao longo das décadas que se seguiram, a novel polícia francesa – construída sobre os escombros do terror – não se distanciou muito daquela que a precedeu no ancien regime, assim frustrando as expectativas criadas ao seu redor. Extrai-se de Lê Clère, que a polícia francesa que daí se seguiu, enveredou por uma trajetória absolutamente errática, não conseguindo tomar forma ou rumo 46 MONET, Jean-Claude. Op. cit., p. 60. Em 1856 uma lei uniformizou todo o sistema policial vigente na Inglaterra e País de Gales, excetuada apenas a polícia londrina. 47 Quando reeditada, em 1791, esta Declaração já não mais trazia a vertente assertiva em seu texto. 48 Artigos 19 e 20. 34 que lhe pudesse enquistar um sentido proveitoso de modernidade e muito menos de exemplaridade. Ora estruturada em torno de um ministério específico, ora vinculada singelamente a uma Prefeitura, outra vez subordinada a um órgão ainda de menor expressão, nãoteve essa polícia nenhum traço de constância além de sua persistente utilização política. Assim, quer sob a batuta do controverso e poderoso Ministro Fouché, cujos auxiliares lograram reconhecimento apenas porque “versados na arte das confissões”, quer sob os comandos de Pietri e Lagrange, quando atingiu os fastígios da sua atuação violenta e inescrupulosa, manteve-se a polícia francesa em execrável senda. Sob aspecto positivo parecem apenas merecer alguma menção o Ministério Martignac, talvez o primeiro a investir solidamente na execução das obrigações criminais a que efetivamente se prendia a função policial, e, nessa mesma mão de direção, a gestão do Prefeito Gisquet, que igualmente preteriu os serviços de informação em favor da reorganização e do saneamento dos corpos policiais, em especial da brigada de Segurança 49 , antecessora da atual Polícia Judiciária. Rendendo-se à eficiência britânica, a Polícia Municipal de Paris acabou por adotar, em 1854, o modelo da Met de Robert Peel. Quanto a Gendarmaria – denominação dada pela Revolução, em 1791, à antiga e militarizada Maréchausée – pouco em verdade há para ser considerado, especialmente porque essa força policial permaneceu ausente do cenário parisiense, onde unicamente se desenrolaram as mais importantes e decisivas passagens da história francesa. A seu respeito, destarte, apenas vale ser registrada sua utilização, por Napoleão, em campanhas militares, especialmente para funcionar como exército 49 Dentre os expungidos dos quadros dessa polícia investigativa achava-se o lendário e controverso Vidocq, um ladrão supostamente convertido, considerado por alguns, como atesta CASAL DE NIS (Op. cit., p. 25), como um agente extraordinário, um mestre dos disfarces, enquanto que para outros, como alerta LÊ CLÈRE, não mais que um bandido, que apenas mácula e desonra carreia à polícia toda vez que tem o seu nome a ela associado (p. 94). 35 de ocupação dos territórios invadidos, e a sua característica reprodução, nessa variante, por vários países europeus (Prússia, Piemonte e Grécia, por exemplo). 50 Pronunciando-se acerca do incremento policial durante esse período, marcantemente aquele relacionado ao Estado liberal, Luigi Ferrajoli classificou-o como “um crescimento completamente desordenado e, por assim dizer, subterrâneo, que se manifestou em uma imponente legislação pontual, ao lado, como um direito inferior e complementar, das grandes codificações penais e processuais”. E subindo o tom, nessa mesma escala de percuciência crítica que o tema suscita, especificou: As linhas de desenvolvimento e as matérias deste direito policialesco são essencialmente três: antes de tudo, a prevenção especial ante delictum contra as “classes perigosas”, em geral os “sujeitos perigosos; em segundo lugar, as funções cautelares ante iudicium e/ou de polícia judiciária contra os “suspeitos”, auxiliares ao processo e tanto mais favorecidas nos ordenamentos continentais pelo caráter misto do processo; em terceiro lugar, o direito de exceção extra legem, de várias maneiras informado pela razão de Estado, ou ainda mais contingentemente por razões políticas de controle social. A este desenvolvimento crescente e persuasivo contribuiu – já se disse – também a cultura jurídica com seu explícito aval e, mais freqüentemente, com sua indiferença e o seu desinteresse. 51 Não resta dúvida alguma, todavia, que os encimados sistemas policiais – certamente por suas divisadas virtudes e mesmo por aquilo que hoje se nos afigura cristalinamente como o seu revés – serviram a inspirar ou mesmo a moldar praticamente todas as forças e departamentos policiais criados no mundo civilizado a partir do século XIX. Na verdade, em que pesem as marchas e contramarchas consignadas, o aduzido processo de assimilação deveu-se natural e primordialmente à colonização levada a efeito por França e Inglaterra – em alguns casos até meados do século passado – sobre um enorme número de povos em extensa área do planeta. De resto, como inerente às potências mundiais, esses dois países funcionaram, por um longo tempo, como grandes pólos culturais internacionais, atraindo aos seus 50 LÊ CLÈRE, Marcel.. Op. cit., p. 63-103. 51 FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal, p. 616. 36 obséquios, e consectariamente impregnando com seus standarts de dominação, mormente políticos e jurídicos, praticamente todos os demais Estados nominalmente livres, porém sempre periféricos e dependentes. 52 Os Estados Unidos da América, embora inicialmente presos ao desenho policial inglês, acabaram desenvolvendo, em fidelidade à história e as demais particularidades que se lhe afiguraram únicas, o seu próprio sistema de policiamento, no qual, hoje, apenas e exatamente por força da mesma dependência cultural supra-exposta, muitos países pretendem se espelhar quando da conformação ou reestruturação de seus organismos policiais. Relata Clift que, a princípio, consoante o padrão bretão herdado, a mantença da ordem nas colônias inglesas localizadas em terras norte-americanas foi confiada aos tradicionais sheriffs e constables, eleitos dentre os cidadãos de cada comunidade. Nesses primeiros tempos, mas somente em cidades mais populosas, também existiram rondas noturnas, cujas preocupações, porém, centravam-se basicamente na prevenção contra hipotéticos ataques indígenas. Somente no século XIX, ou seja, após a independência, e à vista de uma crescente criminalidade, especialmente de origem juvenil, começaram a ser organizados corpos policiais profissionais. Nova York, por exemplo, criou, em 1844, a primeira polícia municipal civil americana, composta por 800 homens, no que foi paulatinamente sendo imitada por outras cidades de porte próximo. O surgimento, em 1835, dos famosos Texas Rangers, constituídos com a finalidade de reprimir o roubo de gado, marcou o estabelecimento das polícias estaduais. Depois, com a intensificação da violência no campo e proliferação dos assaltos a bancos, 52 BAYLEY, David. Op. cit., p. 45-56-76. Assim, por exemplo, a Índia, mesmo após o período colonial, optou por manter o sistema inglês, evidentemente adotado no passado e solidamente estruturado quando da independência do país, enquanto que ao Japão pode organizar sua primeira força policial, em 1878, em linhas ocidentais, tomando livremente por modelo a França e a Prússia Registre-se, outrossim, as palavras de entusiasmo do Visconde do Uruguai – Paulino José Soares de Souza – , contidas logo no preâmbulo de sua clássica obra, Ensaio Sobre o Direito Administrativo, editada em 1862: “Na viagem que ultimamente fiz à Europa não me causaram tamanha impressão os monumentos das artes e das ciências, a riqueza, força e poder material de duas grandes nações: França e Inglaterra, quanto aos resultados práticos e palpáveis da sua administração” ( p. 5). 37 essas forças foram rapidamente multiplicadas, ganhando presença em vários outros estados, como Connecticutt, Massachusetts, Pensilvânia etc. Entretanto, já desde 1829, contavam os EUA com agentes policiais federais, cabendo a primazia aos inspetores instituídos para dar eficácia aos preceitos da então recém-editada Lei Postal. Nessa mesma senda, a legislação voltada ao combate ao crime de falsificação de moeda, datada de 1842, deu origem à Divisão de Serviço Secreto. Em 1874, como repartição do Departamento de Justiça, nasceu o hoje renomado FBI (Federal Bureau of Investigation), talvez o maior paradigma contemporâneo de polícia investigativa em todo o mundo. 53 Graças a essa sistemática, e como produto lógico de uma progressão aritmética, milhares são as organizações policiais atualmente existentes e operantes naquele queé o mais rico e poderoso Estado do planeta. Na Europa, atualmente, encontramos uma profusão de polícias, existindo geralmente mais de uma em cada país, vinculadas, ademais, a diversificados órgãos de tutela (Ministérios da Justiça, da Defesa, do Interior, das Finanças, governos autônomos e locais etc.). Essas forças, preponderantemente civis, ainda hoje ostentam sinais claros de seus modelos de origem, sempre francês ou inglês, e uma razoável adequação aos regimes políticos nacionais. Observa Johnston que diante dessa diversidade, surge uma insuperável dificuldade de se estabelecer, no presente, um padrão verdadeiramente europeu de policiamento público, máxime quando essa atividade volta a perder terreno, em face de uma copiosa oferta de proteção privada, esta sim, em pujante processo de internacionalização. Alude o autor a uma “‘salada’ (Euro-mélange) de agências de policiamento público e privado”, as quais brevemente se somará a Agência Policial 53 CLIFT, Raymond E. Op. cit., p. 31-35. 38 Européia, a EUROPOL, conforme previsão ínsita no art. K.19 do Tratado de Maastricht. 54 1.3. A polícia no Brasil. 1.3.1. No período colonial. Em Portugal, conta Lê Clère, desde 1383, época do reinado de D. Fernando, tem-se o registro da edição de instruções e regimentos policiais, tendentes a ordenar a atuação dos “quadrilheiros” nas atividades de guarda das cidades, de controle sobre os estrangeiros e de repressão aos criminosos. Assim como ocorrera na França, o desenvolvimento da polícia portuguesa também foi alavancado pela grita popular, provocada por um banditismo em constante evolução. O termo polícia, entretanto, somente ganhou uso corrente em terras lusitanas após 1760, quando, sob a mão forte do futuro Marquês de Pombal, foram redobrados os esforços governamentais destinados a refrear os ataques criminosos amiúde sofridos pela população, pois como demonstram os versos do cancioneiro popular: “a segurança era nenhuma em Lisboa, todas as noites se cometiam tantas mortes e roubos que, pelo hábito, já passava que matar era cortesia e furtar modéstia”. 55 Já no Brasil, mera colônia, as forças alocadas visavam apenas resguardar os interesses da Coroa, tardando-se, também por esse motivo, o aparecimento de apontamentos sobre a atuação genuinamente policial. 56 Sabe-se que por longo 54 Johnston, Lês. Como reconhecer um bom policiamento, p. 243. Segundo o autor, a Europol, a princípio, limitar-se-á a facilitar e viabilizar a troca de informações de interesse policial entre os países-membros da Comunidade Européia, quiçá estabelecendo, com esse propósito, um organismo analítico centralizado. 55 LÊ CLÈRE, Marcel. Op. cit., p. 145-148. 56 Segundo o ex-parlamentar Elói Pietá, “no Brasil-Colônia toda a população masculina livre era obrigada a se inscrever nos corpos militares sob as ordens de Portugal. Aqueles que iam para as unidades pagas (em geral, os solteiros) exerciam o serviço militar permanente, principalmente localizado no litoral. Formavam o que era chamado de Tropas de Primeira Linha ou Corpos Permanentes. O restante da população livre (os escravos eram maioria) era obrigada a inscrever-se gratuitamente nas Tropas de Segunda Linha (chamadas de Corpos Auxiliares ou Milícias) ou nas Tropas de Terceira linha (chamadas de Ordenanças). Eram excluídos das tropas de segunda linha apenas os velhos, os doentes e alguns que exerciam funções administrativas, como escrivães e meirinhos (oficiais de justiça), raros funcionários civis da época. Os Corpos Auxiliares ou Milícias e as Ordenanças, além de forças auxiliares das tropas regulares para a defesa externa ou para a guerra de fronteiras, eram as principais forças de polícia da Colônia. Eles cuidavam da manutenção da lei e da ordem dentro de cada província, capturando escravos fugitivos, atacando quilombos e tribos hostis, 39 tempo as atividades jurídico-policiais, a par daquelas de índole político- administrativas, incumbiram às Câmaras Municipais, cabendo aos capitães-mores, aos alcaides, aos quadrilheiros e aos almotocés auxiliar os Juízes Ordinários e de Fora, além dos Corregedores e Ouvidores, na faina criminal 57 . A primeira organização policial surgida nesse período data de 10 de maio de 1808, quando, por Alvará de D. João VI, foi criada a Intendência Geral de Polícia da Corte e do Estado do Brasil, posta sob a direção de um Desembargador do Paço e sob a representação de um Delegado de Polícia em cada província. Mais tarde a essa estrutura foram acrescentados os Comissário, um em cada distrito. 1.3.2. No Brasil imperial. Não obstante se tratasse de exigência naturalmente decorrente da emancipação política havida em 1822, e principalmente da Constituição outorgada em 25 de março de 1824, cujo oitavo título foi totalmente consagrado às “garantias dos direitos civis e políticos dos cidadãos brasileiros”, demorou um bom tempo até que alguma modificação tomasse maior vulto no proscênio policial pátrio. De fato, com a independência ficou praticamente mantida a antiga estrutura policial herdada do período colonial, encabeçada pela Intendência Geral de Polícia, fundada, anos antes, pelo rei de Portugal. A responsabilidade final pela execução dos misteres policiais – desde a manutenção da ordem, promovida com vistas à ação de “ébrios, vadios, mulheres escandalosas, turbulentos”, até a comunicação dos crimes havidos aos juízes territoriais, para a adoção das providências cabíveis - logo recaiu, em termos de novidade, aos comissários 58 , cidadãos honrados e reconhecidamente patriotas, compulsoriamente designados pelo Intendente ou por afugentando índios, sufocando rebeliões ou desordens, prendendo aqueles considerados criminosos ou quem desobedecesse às ordens superiores ou desertasse”. Prossegue informando que os chefes militares, e necessariamente policiais, eram os coronéis e capitães, constituídos sempre entre os ricos donos de terra, que dessa forma perpetuavam seu poder sobre as regiões postas sob sua influência (Crime e polícia, p. 78-81). 57 KFOURY FILHO, Abrahão José. A polícia à luz do direito, In : A polícia civil e sua institucionalização no direito brasileiro, p. 26. 58 Estabelecidos por Portaria, de 4 de novembro de 1825, da Intendência Geral de Polícia. 40 seus Delegados, para, e pelo prazo de dois anos, fazer respeitar as leis do Império nas respectivas áreas distritais 59 . Somente em 1832, com a promulgação do Código de Processo Criminal (Lei de 29 de novembro, regulamentada por Decreto de 29 de março de 1833), foi o primitivo desenho totalmente abandonado, havendo, na Corte, a substituição do Intendente Geral por um Chefe de Polícia – necessariamente um magistrado 60 –, figura essa também prevista para as cidades mais populosas. Contudo, as prestações marcadamente policiais, que então se estendiam desde o campo da segurança até os demais planos da administração voltados à garantia do sossego público, foram concentradas nas mãos dos Juízes de Paz 61 , eleitos símiles e paralelamente aos vereadores, com competência para agir no âmbito de seus distritos 62 . A auxiliá-los no desempenho de suas atribuições, tanto policiais – quer de manutenção da ordem, quer de elucidação de crimes – quanto 59 A esse fim, ao menos teórico, deveriam contar com o auxílio das tropas da Guarda Nacional, órgão formado após a independência para a contenção de rebeliões e combate à criminalidade, além de servir à defesa externa quando necessário. Integrada tão-somente pelos eleitores (proprietários dotados de recursos), tendo sido seus comandantes e alta oficialidade,designados pelo Imperador, decerto que essa nobre instituição pouco fez para cumprir com suas obrigações, logo entregues às Guardas Municipais e congêneres, formadas a partir de 1831 (Elói Pietá, op. cit., p. 78-81). 60 O que rendeu o repúdio de muitos. Nesse sentido João Mendes Júnior fez registrar as fortes críticas formuladas, ainda que em tempos diferentes, pelo Senador Alves Branco e pelo Deputado Moura Magalhães à essa previsão, concernente à investidura de Juízes de Direito em cargos policiais, coincidindo também por desmerecer, em escala residual, a figura e a atuação dos Juízes de Paz. Op. cit., p. 170-176. Nesse mesmo sentido, ainda ressaltou o Ministro da Justiça Paulino de Souza: “Releva observar, pois, que um abuso muito arraigado tem tornado as autoridades eletivas mais políticas que judiciárias”. E em arremate: ‘Todo o favor, toda a proteção para aqueles que os ajudam a vencer, toda a perseguição aos vencidos” (Cf. PIERANGELLI, José Henrique. Processo penal: evolução histórica e fontes legislativas, p. 138). 61 MENDES JÚNIOR, João. Op. cit., p. 156. Na realidade, os Juízes de Paz já existiam no Brasil desde 1827, criados por Lei de 15 de outubro, com as atribuições policiais e criminais que o Código do Império apenas lhes confirmou. Já a partir de 1829 os comissários de polícia passaram a ser substituídos em suas funções por essas autoridades híbridas, às quais cabia, para além de proceder às investigações, julgar alguns crimes, submetendo, posteriormente, sua decisão à ratificação do Juiz Criminal. 62 O art. 2 o do Código especificava: “Haverá tantos Districtos quantos forem marcados pelas respectivas Camaras Municipaes, contendo, cada um, pelo menos, setenta casas habitadas”. (Sic) 41 judiciais 63 , a lei previu o concurso de Escrivães de Paz, Inspetores de Quarteirões e Oficiais de Justiça. 64 Porém, esse protótipo de sistema policial “à brasileira”, inspirado na Lei francesa de 3 do Brumário, não teve longa carreira, sendo, pouco tempo depois, desfigurado por iniciativa de conteúdo controverso, encetada sob o signo do sofisma, qual desnudado por José Frederico Marques: O período de agitações políticas e movimentos revolucionários que assolou o país, em 1830 e 1840, provocou a reação monárquico-conservadora, notadamente na esfera da organização judiciária e policial, visto que o sistema adotado pelo Código de 1832 se apresentava pouco eficiente para restaurar, definitivamente, a ordem e a tranqüilidade. Daí a promulgação da lei de 3 de dezembro de 1841 e o seu reg. 120, de 31 de janeiro de 1842, – com instrumentos e meios para o Governo Imperial debelar a desordem e impor a autoridade em todos os quadrantes da nação. A lei de 3 de dezembro procurou, por isso, criar um aparelhamento policial altamente centralizado e armar, assim, o Governo de poderes suficientes para levar a bom termo a tarefa a que se propunha, de tornar efetiva a autoridade legal. Todavia, como bem observa um de nossos mais lúcidos historiadores, a reação contra o judiciarismo policial dos liberais de 1832, com as funções policiais entregues a juízes 63 Consoante o disposto no § 7 o do art. 12 do “Codex”, aos Juízes de Paz competia : “Julgar: 1 o . as contravenções ás Posturas das Camaras Municipaes; 2 o . os crimes, a que não esteja imposta pena maior, que a multa de cem mil réis, prisão, degredo ou desterro até seis mezes com multa correspondente á metade do tempo, ou sem ela, e trez mezes de Casa de Correção, ou Officinas Publicas, onde as houver”. (Sic) 64 Informam Hermes Vieira e Oswaldo Silva, que em 1831 foi criada na Corte um corpo de Guardas Municipais para auxiliar nas atividades judiciais. No ano seguinte, o Brigadeiro Tobias de Aguiar, como o Presidente da Província, organizou na Capital a primeira Guarda Municipal Permanente de São Paulo (segundo alguns o germe da futura Força Pública no Estado). Para o interior da Província foi formada, em 1834, a denominada Guarda Policial, composta por nativos não recrutados pela Guarda Nacional (História da polícia civil de São Paulo, p. 160-162). Certamente já tendo em mira essa pioneira iniciativa, a regência Feijó, por decreto de 9 de dezembro de 1835, dirigiu aos Presidentes das províncias uma série de instruções voltadas à execução do Ato Adicional editado no ano anterior, delas se destacando, no parágrafo de número onze, recomendação com o seguinte teor: “Outra instituição de suma vantagem será a organização de um Corpo Policial, composta de todas as pessoas excluídas, por falta de meios, da Guarda Nacional, e que, não concorrendo de ordinário para as despesas do Estado, devem ao menos prestar com as suas pessoas o contingente de serviço, que a Sociedade tem direito de exigir de todo cidadão que goza de seus benefícios. Esse Corpo Policial, distribuído por turmas, poderá sem vexame guardar as cadeias, prestar auxílio à justiça e servir às autoridades no expediente dos negócios públicos. As Câmaras Municipais, dando sustento e quartel a estes pequenos destacamentos, pouco aumentarão sua despesa, ao mesmo passo que com isso concorrerão muito para a segurança e comodidade geral dos municípios. Este Corpo, que formará parte da força pública, deve ser organizado pelo presidente, e ficar debaixo da sua direção ou da dos seus Delegados, sobre as bases que decretar a Assembléia Provincial”. 42 de paz eletivos, foi certamente excessiva com a inversão operada – o policialismo judiciário, confiadas às autoridades policiais, funções nitidamente judiciárias. A lei de 3 de dezembro, no seu policialismo exagerado, foi além do que exigia a situação do país, fortalecendo, com isto, o reacionarismo político. 65 66 Efetivava a Lei nº 261, de 1841, e seu Regulamento, de nº 120, uma nova organização policial: haveriam Chefes de Polícia na Corte e em cada Província, os quais seriam auxiliados pelos Delegados e Sub-delegados de polícia necessários ao profícuo desempenho das obrigações afins. A escolha e a nomeação dessas autoridades – os Chefes de Polícia dentre Desembargadores ou Juízes de Direito, e os Delegados e Sub-delegados de Polícia entre Juízes de Direito ou exemplares 65 FREDERICO MARQUES, José. Elementos de direito processual, p. 101-102. 66 Como a história retrata, as agitações e sedições inicialmente aludidas não se apresentavam recentes, eis que por um bom tempo viveu o Império em meio à completa cizânia, diretamente decorrente da ordem constitucional imposta, eminentemente despótica. Ou no dizer de Paulo Bonavides e Paes de Andrade: “A Constituição do Império, ao contrário do que ordinariamente se supõe, foi em seu texto primitivo – o da outorga de 1824 – causa de graves transtornos políticos e origem de dificuldades para lograr-se a paz e a normalidade institucional durante o período de consolidação da Independência, assinalado pela ditadura militar do Imperador e depois, desde a instalação e funcionamento do legislativo ordinário em 1827 até a Abdicação, pelo menosprezo que o autor da Carta parecia devotar ao ramo representativo do poder – as duas Casas da Assembléia Geral. Tinha a Carta um potencial de autoritarismo e irresponsabilidade concentrado na esfera de arbítrio do Poder Moderador que, sem dúvida, inibia o exercício regular das competências harmônicas dos três Poderes. Sem a reforma no período regencial – o chamado Ato Adicional - a Constituição teria sido um desastre ou tão somente uma fachada ornamental, qual o fora já nas mãos do primeiro Imperador”. (História constitucional do Brasil, p. 109). Ainda com a abdicação de Dom Pedro I os ânimos não se serenaram, como demonstram os autores através do impressionante quadro pintado por Justiniano José da Rocha: “Na manhã de 7 de abril de 1831, a Nação brasileira achou-se em perfeita anarquia: o imperador,a bordo de uma nau inglesa, havia abandonado sua jovem família à magnanimidade da Nação; o Ministério não podia governar, pois contra ele fora dirigida a revolução; as Câmaras representativas ausentes, pois o movimento se fizera no intervalo das sessões; ao pé do trono, em torno do poder, ninguém, nem um príncipe, nem um cidadão que tivesse alguma popularidade, que sobre si pudesse assumir a responsabilidade pela governança. O exército que tomara parte ativa no pronunciamento, entregue às mil direções de insubordinação, nem sequer tinha a unidade necessária para poder dar uma autoridade à revolução vencedora. Os corpos policiais, ainda mais eivados do princípio de insurreição que os corpos de linha, nem ao menos ofereciam um ponto de apoio material necessário à mantença da ordem pública” (p. 33- 34). Como era inevitável, o caos se instalou, fazendo pipocar rebeliões Brasil afora, como a Cabanagem no Pará, a Sabinada na Bahia, a Balaiada no Maranhão e a Revolução Farroupilha no Rio Grande do Sul, a compor aquelas de maior expressão. No plano político, onde se formara um vácuo de autoridade, sucederam- se renhidas disputas e uma infinidade de crises, com vantagem ora para liberais, ora para conservadores. Nesse contexto, o Código de Processo Penal de 1932 projetou-se como um de trunfo dos primeiros. Sua edição marcou apenas a vitória de uma batalha, jamais da guerra. O melhor momento liberal, contudo, ainda estava por vir com a Lei nº 16, de 12 de agosto de 1934, o Ato Adicional, cujo maior feito tratou da criação de Assembléias Legislativas nas Províncias, dotando-as de extenso rol de competências, a assegurar uma grande dose de autonomia regional. Porém, em 1840, com a Lei nº 105, de 12 de maio, a chamada Lei da Interpretação, os conservadores equilibraram a luta, volvendo-a a seu favor logo no ano seguinte, quando levaram a termo a reforma do Código de Processo Criminal. 43 cidadãos – sujeitava-se tão-somente ao talante do Imperador 67 . Na Corte de forma direta, ao passo que nas Províncias por intermédio dos correspondentes Presidentes, todos, de suas partes, igualmente designados pelo Monarca. Toma destaque, pois, e logo num primeiro plano, o caráter absolutamente centralizador da novel legislação, que submeteu aos desígnios exclusivos do Imperador todas as forças policiais do País, postas sob a supervisão do seu Ministro da Justiça. A reação foi imediata. 68 Dentre as inovações produzidas pela Lei nº 261 com relação à polícia, releva destacar, como anotou Antonio de Paula, “o fato de haver a mesma estabelecida a verdadeira estrutura jurídico-administrativa do instituto nos moldes da organização do Código do Brumário” 69 . Na verdade, essa estruturação policial, que em seus fundamentos remanesce até os dias correntes no Brasil, foi promovida pelo Regulamento de 1842, que, segundo lição de Pimenta Bueno, não apenas classificou a polícia em administrativa e judiciária, como também subdividiu a última em criminal e correicional 70 . 67 MENDES JÚNIOR, João. Op. cit, p. 188. Eis um dos pontos que maiores reclamos geraram contra a reforma, qual afiança-nos o discurso, de 1845, do Deputado Rodrigues dos Santos: “A Lei de 3 de dezembro offende a Constituição, porque entrega o direito de processar o cidadão brazileiro a delegados de policia amoviveis, e portanto, inteiramente dependentes do governo”. (Sic) 68 Essa, na verdade, sempre foi a manifesta intenção da vertente reforma legislativa. Pouco antes da sua aprovação, em 3 de dezembro de 1941, o então Ministro da Justiça Paulino de Souza, o futuro Visconde de Uruguay, compareceu ao Parlamento para defendê-la, no que tange à seara policial, com desvelada argumentação, pronunciada nos seguintes termos: “É um princípio de que ha muito estou convencido (e que ainda mais se arraigou em meu espírito depois que estudei a organisação política dos Estados Unidos), que ha certos ramos de serviço em que a centralisação é indispensável: tal é a polícia” (Sic) (Cf. João Mendes Júnior, op. cit., p. 180). Não obstante a cuidada transparência, a versada centralização policial, implementada pela Lei nº 261, não se afigurou objeto de pacífica aceitação, recebendo, exatamente ao contrário, violenta rejeição política que eclodiu não apenas nas tribunas parlamentares, mas também no campo militar. De fato, como reconheceu José Pereira Lira, serviu a modificação do Código de Processo Criminal, passada em meio a outras medidas imperiais de idêntica conotação concêntrica, a fomentar a sublevação paulista de 1842 (Cf. BONAVIDES, Paulo, ANDRADE, Paes de. Op. cit., p. 105), protagonizada pelo Brigadeiro Rafael Tobias de Aguiar, então aclamado o Presidente da Província. Ganhando a adesão do Padre Diogo Feijó, a denominada “Revolução Liberal” espalhou-se por algumas cidades de São Paulo, chegando até Minas. Não tardou-lhe, contudo, a fragorosa derrota, havida em batalha próxima de Campinas, quando a “Coluna Libertadora” foi esmagada pelas “forças da Legalidade”, comandadas por Luís Alves de Lima. Sorocaba, que havia sido a capital dos revolucionários, foi libertada em 20 de junho, fugindo Tobias de Aguiar para o sul do País (GAGINI, Pedro. Fragmentos da história da polícia de São Paulo, p. 43). 69 PAULA, Antonio de. Do direito policial, p. 19. Na verdade o referido diploma ajustava-se muito mais ao espírito do Código de Instrução Criminal imposto por Napoleão em 1808, que reformou uma série de disposições do liberal diploma de 1794. 70 PIMENTA BUENO, José Antonio. Apontamentos sobre o processo criminal brasileiro, p. 3. 44 À polícia judiciária de então, quase sempre exercida por Magistrados togados, competia mais que a apuração das infrações penais (função criminal), cabendo-lhe também o processo e o julgamento dos chamados “crimes de polícia” (função correicional). Assim dispunha o art. 3 o , § 4 o , daquele édito: “São de competência da polícia judiciária, a de julgar os crimes a que não esteja imposta pena maior que a multa de 100$000, prisão, degredo ou desterro até seis meses com multa correspondente á metade do tempo, ou sem ela, e trez meses de casa de correção, ou officinas públicas, onde houver” (Sic). Falhou a reforma, destarte, precisamente por não realizar a separação, já há tempo veementemente reclamada, entre as funções judiciais e policiais (executivas), que continuaram, como visto, concentradas em mãos únicas, de modo a representar, como pontificou João Francisco da Cruz, um verdadeiro e sempre latente risco ao resguardo dos direitos individuais 71 . Quase três decênios de protestos e inúmeros projetos legislativos foram necessários para reverter os excessos perpetrados por meio das mudanças em comento. Nesse sentido, logo em 1845, o próprio governo imperial reconheceu, através do Ministro da Justiça Manuel Alves Galvão, a necessidade de uma nova e mais equilibrada legislação processual penal. A partir de então, e consectariamente, uma série de projetos foram encaminhados ao Legislativo, principiados pela proposta do deputado Álvares Machado, que entre seus principais objetivos defendia a definitiva ruptura entre polícia e justiça e a adequação do processo criminal aos cânones constitucionais. Em 1854 foi a vez do Ministro da Justiça Nabuco de Araújo, membro do “Gabinete da Conciliação“, apresentar projeto de reforma configurado como um meio termo entre as orientações liberais e conservadoras, e que antes de tudo tencionava, na citação de Pierangelli, “armar a sociedade contra a criminalidade, 71 CRUZ, João Francisco da. Tratado de polícia, p. 58. 45 contra a impunidade, que gerava efeitos aterradores, pois o exclusivismo partidário determinava uma confusão de polícia com política” 72 . Imperioso constar que nem todas as proposituras seguiam por umamesma mão de direção, persistindo inúmeras divisões entre os responsáveis pela construção dos novos modelos policial e judicial brasileiros. Nessa refrega, em 1869, o Ministro José de Alencar foi ao parlamento para tentar derribar as teorias que procuravam sustentar que, a bem do interesse coletivo, os juízes não deveriam ser desvestidos de suas incumbências policiais. E, ao encerrar seu pronunciamento, asseverou: Senhores, este princípio constitucional da separação da policia com a judicatura, eu considero um princípio salutar e fecundo. Está reservado para nós dar execução plena a este princípio: nem a Inglaterra, nem a França, ainda o conseguiram; mas, as causas disto não nos são desconhecidas. A Inglaterra, senhores, é um paiz essencialmente descentralisador, é um Estado formado de parochias, é uma associação de freguezias, que, de remota antiguidade, foram creando o seu governo privativo; as autoridades judiciarias locaes abersoveram alli, em larga escala, as attribuições administrativas. Em Inglaterra não ha ministro da justiça; a justiça se administra por si mesma; nada mais natural que absorver a polícia. (Sic) A França, ao contrário, é um paiz centralisador; parece que a civillisação daquelle povo não tem trabalhado para crear uma nação, mas sim para crear uma capital. D’ahi resulta que, em França, não só se creou uma administração da justiça, mas creou-se um monstro jurídico, uma instituição hibrida, denominada – polícia judiciária. 73 (Sic) No ano seguinte, presente ao Legislativo então na condição de parlamentar, José de Alencar voltou à tribuna para insistir: 72 PIERANGELLI, José Henrique. Op. cit., p. 148. A respeito vale trazer à colação o sempre precioso escólio de Frederico Marques: “Se o policialismo era fonte de arbitrariedade, constituía também um fator de afrouxamento na punição, pois a justiça policial ficava a mercê da política para perseguir os adversários das situações governamentais e proteger os seus apaniguados; por outro lado, a chamada justiça popular, sempre comprometida pelas ligações sentimentais e partidárias, afastava de todos o sentimento de confiança na Justiça, bem como a consciência e segurança de seus direitos” (Op. cit., p. 103). 73 MENDES JÚNIOR, João. Op. cit., p. 266. 46 A polícia judiciaria é um monstro jurídico, filho dessa confusão do poder judiciário com o poder executivo, é um dos inventos francezes que a influencia exercida pela civilização daquele paiz, chefe da familla latina, tem infelizmente transplantado para outros paizes, e sobretudo para o Brazil. (Sic) Não ha policia judiciária, toda a policia é administrativa, toda policia tem funcção meramente executiva. É verdade que há uma policia economica, destinada a velar na comodidade publica e uma policia perscrutadora e repressiva, que trata de prevenir e reprimir os delictos; mas, esta, no exercicio de sua missão, não pode exercer a menor attribuição judiciaria. Deve a policia coligir os vestigios dos crimes, reunir as provas e indicios, preparar os elementos de accusação e mesmo activar essa accusação; mas, tudo isso sem usurpar funcção do poder judiciário, sem proferir qualquer julgamento, sem forma de juizo. 74 (Sic) Confirmando essa tendência “anti-policialista”, a Lei nº 2.033, de 20 de setembro de 1871 - com seu regulamento de 22 de novembro, o Decreto nº 4.824 - tornou realidade a tão perseguida cisão das funções judiciais e policiais. De fato, a novel legislação não se preocupou em promover mutações de ordem estrutural, fixando-se ferreamente na composição dos novos papéis que deveriam ser desempenhados pelos protagonistas do drama criminal brasileiro, em cartaz naquele que seria o último quarto da história imperial. Festeja-a José Frederico Marques: A reforma de 1871, além de pôr cobro ao policialismo reacionário da lei de 3 de dezembro, separando Justiça e Polícia, ainda trouxe algumas inovações que até hoje perduram, como, v. gratia, a criação do ‘inquérito policial’, uma das instituições mais benéficas de nosso sistema processual, apesar de críticas infundadas contra ele feitas ou pela demagogia forense, ou pelo juízo apressado de alguns que não conhecem bem o problema da investigação criminal. 75 Os novos preceituários preservaram o antigo Chefe de Polícia com seus Delegados e Sub-delegados no comando dos trabalhos policiais. Essa chefia deixou de ser de ocupação exclusiva por Desembargadores e Juízes de Direitos, passando a 74 Ibidem, p. 270. 75 FREDERICO MARQUES, José. Op. cit., p. 104. 47 ser igualmente acessível a doutores e bacharéis em Direito, desde que contassem com no mínimo quatro anos de exercício forense ou administrativo. Às autoridades policiais foi vedado o julgamento de quaisquer crimes ou contravenções, restando-lhes, destarte, como tarefa principal, conforme disposto no segundo item do art. 11 do regulamento, “proceder ao inquérito policial e a todas as diligências para o descobrimento dos factos criminosos e suas circumstancias, inclusive o corpo de delicto” (Sic). De conteúdo judicialiforme, apenas coube-lhes desencadear o preparo do processo nos crimes policiais (aqueles que hoje mereceriam o rótulo de pequeno potencial ofensivo), aos moldes do processo sumário que, embora inócuo desde 1988, permanece estampado nos arts. 531 “usque” 540 do Código de Processo Penal em vigor. Convém salientar, finalmente, que com o intuito de evitar ambigüidades, as expressões polícia judiciária e polícia administrativa foram simplesmente abolidas dos novos textos legal e regulamentar. 1.3.3. Período republicano. Com o advento da República, em 1889, algumas alterações foram introduzidas no quadro anteriormente delineado. A Constituição de 24 de novembro de 1891, com seu estatuto federalista, incumbiu os Estados de fundar e dirigir suas forças policiais, restando à União a tarefa de legislar apenas sobre a polícia do Distrito Federal (art. 34, nº 30). Aos corpos policiais locais, os únicos então existentes, tornou-se compulsória a prestação de todo o auxílio requerido pelos funcionários a serviço da magistratura federal (art. 60, § 2 o ). Havendo imposto aos recém-criados Estados a obrigação de compor suas próprias legislações penais adjetivas, o primeiro ordenamento constitucional republicano – que no geral se restringiu a arremedar a organização política norte- americana – coerentemente deixou a cargo desses entes a estruturação de suas polícias. Inexistindo lineamentos prévios e comuns voltados a assegurar algum padrão e qualidade mínima aos serviços em testilha, despontaram pelo Brasil afora 48 instituições policiais bastante distintas, porquanto moldadas sempre ao gosto pessoal dos diversos governadores. Nessa conjuntura, merece sobressair a criação, em São Paulo, através da Lei nº 979, de 23 de dezembro de 1905, de uma polícia pretensamente profissional e eficiente, edificada a fazer efetiva a carta de direitos da República. Seu idealizador o Presidente do Estado, Jorge Tibiriçá, assim a justificou: para melhorar o funcionamento das instituições policiais, urgia estabelecer a polícia de carreira, incumbindo do serviço o pessoal escolhido, de aptidões especiais, mediante um regular sistema de promoções, que permita obter, nos cargos superiores, o concurso de auxiliares experientes, conhecedores, pela prática, de todas as particularidades do importante ramo da administração pública, destinado a manter a segurança individual e da propriedade. 76 Logo, a chamada polícia de carreira tornou-se uma forte tendência, eis que na verdade constituía-se o único antídoto ao “mandonismo do interior, animado pela figura clássica do ‘coronel’, que encarnava o poder local da polícia política” 77 . Por outro lado, essepoder de fato, cuja presença e potência caracterizaram aquela que ficou conhecida como a República das Oligarquias, apresentou-se exatamente como o maior obstáculo à efetiva implementação dessa novidade, eis que fugia completamente do seu interesse a existência de uma polícia profissional, dotada de condições de se fazer imparcial e impermeável às conveniências políticas. Ainda assim, em que pesem as resistências, essa polícia de carreira, cunhada em padrões modernos, com atuação essencialmente jurídica, não tardou ser formalmente reproduzida em diversos Estados brasileiros, invariavelmente mantendo-se, a exemplo do modelo paulista, toda autoridade policial concentrada na tradicional figura dos Delegados de Polícia. Em São Paulo, de acordo com o arranjo original, foram os Delegados, como chefes de polícia, gradualmente 76 VIEIRA & SILVA. Op. cit., p. 201. A proposta, esmiúça Heloísa Rodrigues Fernandes, citada por Bismael B. Moraes (Direito e polícia: uma introdução à polícia judiciária, p. 28), visava uma “Polícia sem política e, portanto, imparcial; remunerada e, por conseqüência, podendo aplicar toda a sua atividade à prevenção e repressão dos delitos; com competência profissional, isto é, com conhecimentos especiais de Direito e de Processo indispensáveis em quem tem que garantir e assegurar a liberdade, a honra, a vida e a propriedade”. 77 VIEIRA & SILVA. Op. cit., p. 202. 49 espalhados, pelas diversas circunscrições territoriais, obedecendo a um racional organograma. 78 Nem tudo, porém, podia exsurgir perfeito na polícia de carreira, valendo aqui destacar que a sistemática inicial previa os Delegados de Polícia como mero ocupantes de cargos de confiança, de livre nomeação e exoneração pelo Presidente do Estado. Nessa incipiente carreira policial garantia-se somente que a ascensão aos níveis mais elevados estaria reservada aos Delegados já nomeados e investidos nos cargos de categoria imediatamente inferior. O bacharelado em Direito ostentava-se como exigência para o provimento somente dos cargos de direção superior, devendo, ademais, servir apenas como título preferencial para o recrutamento 79 . Lembra Cruz que para a execução de suas funções os Delegados contavam com o concurso da Força Pública, que lhes servia como órgão auxiliar, e, posteriormente, também com o apoio da Guarda Civil, criada no Estado em 1926, sob inspiração da polícia londrina. 80 Registra a história que essa novel polícia estadual atuava com bastante liberdade, praticamente ao largo de qualquer controle judicial, inclusive no que tange às detenções e prisões que realizava, especialmente na repressão à vadiagem. Koerner informa que esse, aliás, era o pretexto utilizado, mormente pelas polícias paulista e carioca, para “limpar as cidades”, encarcerando, em larga escala, suspeitos de qualquer coisa. Acusados de “anarquismo” – então considerado grave crime social – ou simplesmente de afrontarem os subjetivos “interesses da segurança nacional ou da ordem pública”, consoante já dispunha o Decreto nº 6.486 de 1907, líderes operários estrangeiros eram presos e expulsos do país, tão-somente com fulcro na investigação policial realizada 81 . A partir da década de vinte essa espécie de coação intensificou-se, recaindo em São Paulo ao DOPS, e no Rio de Janeiro à 4 a Delegacia Auxiliar a tarefa de 78 Especialmente após a edição do Decreto 4.405-A, de 17.4.1928, que aplicou o Regulamento Policial no Estado. 79 VIEIRA & SILVA. Op. cit., p. 205. 80 CRUZ, João Francisco da. Op. cit., p. 62-63 81 KOEMER, Andrei. Poder judiciário, política e sociedade em São Paulo na primeira república, p. 292. 50 proteger os industriais contra os agitadores e integrantes em geral dos movimentos operários, então temidos não mais como anarquistas, mas sim como perigosos comunistas. Enquanto os estrangeiros continuavam sendo deportados, os brasileiros que de qualquer forma pudessem ser enquadrados como inimigos da ordem pública eram, na mesma época, desterrados para insalubres colônias penais localizadas em pontos distantes do território pátrio. 82 A Constituição promulgada em 16 de julho de 1934, não introduziu alterações significativas nesse panorama, limitando-se a estabelecer, através do seu artigo 5 o , V e XI, a reserva das atividades de polícia das fronteiras, marítima e portuária à União, mantendo-se as demais atribuições policiais com os Estados, e pelo art. 39, 8, “b”, a competência legislativa da União para dispor sobre medidas voltadas a facilitar, entre os Estados, a prevenção e a repressão da criminalidade e assegurar a prisão e extradição dos acusados e condenados. Já o art. 167 prescrevia as polícias militares como forças reservas do Exército. E não a toa. É fato histórico que, aos poucos, as corporações militares estaduais, constituídas aos moldes de verdadeiros exércitos à disposição dos Governadores, passaram a se constituir em motivo de grande preocupação para as Forças Armadas, que, em 1932, viu-se combatendo os batalhões revolucionários da Força Pública de São Paulo 83 . No Rio Grande do Sul, o Governador Flores da Cunha apoiou-se, por vários anos, no peso de sua poderosa Brigada Militar, fortemente armada e bastante numerosa, para arrostar Getúlio Vargas, até que, com a federalização da corporação, em 1937, sentindo-se enfraquecido, acabou por renunciar. A terceira Constituição dos Estados Unidos do Brasil, outorgada por Getúlio Vargas em 10 de novembro de 1937, trouxe, na esteira desses fatos, certeiras 82 PINHEIRO, Paulo Sérgio. A Polícia e os movimentos sociais no Brasil, in : O papel da polícia no regime democrático, p. 23-24. Registra o autor, que essas práticas prosseguiram durante o longo período getulista, sendo deportados ou desterrados todos aqueles que faziam oposição ao governo (p. 25). 83 Já em 1906 o governo de São Paulo contratara uma missão de instrutores do Exército francês para treinar a sua Força Pública. Em 1924, sob o comando de Miguel Costa, essa mesma corporação policial serviu aos militares insurrectos, que fizeram eclodir a chamada “Revolução do Isidoro”, tornando-se assim, conseqüentemente, os responsáveis, pela grande destruição que sobreveio à capital de São Paulo, provocada pelo intenso bombardeiro das forças governistas. 51 novidades acerca da polícia. Assim a obrigação de legislar sobre a organização, instrução, justiça e garantia das forças policiais dos Estados e sua utilização como reserva do Exército passou para o âmbito de competência da União (art. 16, XXVI). Nesse compasso o Decreto-Lei nº 1.202, de 8 de abril de 1939, estabeleceu que a fixação do efetivo da força policial, da guarda civil, corpo de bombeiro e corporações de natureza semelhante, seu armamento, despesa e organização pelos Interventores ou Governadores, dependia de prévia aprovação do Presidente da República, bem como que também se vinculariam à aquiescência do Chefe do Executivo Federal todos os decretos-leis estaduais relacionados ao bem estar, a ordem, a tranqüilidade e a segurança pública (art. 6 o , III, e 32, I e XI). Todavia, para muito além de qualquer previsão contida na “Polaca” e, ainda menos, em diplomas de natureza infraconstitucional, o elemento propulsor dos mecanismos de atuação do Estado Novo, como inerente às ditaduras, nada tinha de jurídico, resumindo-se no exercício de volição do déspota, que manifestou contraditória devoção à dignidade humana. Com efeito, sob o vertente prisma a “Era Vargas” representou um grande retrocesso no desenvolvimento policial nacional, pois o que melhor a caracterizou nessa área foi a nefasta polícia política comandada por Felinto Muller, responsável por toda a sorte de abusos e violações aos direitosfundamentais de “subversivos”, “comunistas” e “suspeitos de qualquer natureza” 84 , cometidos em nome de uma falaciosa segurança do Estado. 85 86 A Constituição promulgada em 18 de setembro de 1946, recriando o Estado de Direito, não se houve diretamente empenhada em otimizar os serviços policiais 84 Impõe-se registrar que as prisões políticas se tornaram rotineiras a partir de 1935, quando foi decretado o Estado de Sítio como uma resposta ao levante militar que ficou conhecido como a “Intentona Comunista”, e que serviu ao endurecimento do regime. Presa nessa época, Olga Benário, a mulher de Luiz Carlos Prestes, foi entregue pelo governo brasileiro à Gestapo, a polícia política da Alemanha nazista, vindo a morrer, anos após, em um campo de concentração. 85 Comentava Afonso Arinos de Melo Franco: “Há um fosso intransponível entre a Constituição de 1937 e o regime do Estado Novo. Juridicamente e rigorosamente, uma nada teve a ver com o outro”. (Direito constitucional: teoria da Constituição e as Constituições do Brasil, p. 170). 86 Lembra Oscar Pilagallo que a deposição de Getúlio Vargas, pelos militares, em 1945, teve por fato propulsor, à guisa de gota d’água, “a nomeação de Benjamim Vargas, irmão de Getúlio, para o cargo estratégico de chefe de polícia do Distrito Federal. Figura sinistra, Bejo, como era conhecido, substituiria João Alberto, demitido após proibir um discurso queremista no Rio” (O Brasil em sobressalto. 80 anos de história contados pela Folha, p. 64) 52 no Brasil. Ensejou, no entanto, por força de sua aura democrática, a reconstrução policial pelos Estados, porventura interessados nessa empreitada. Assim, por exemplo, pode São Paulo resgatar sua antiga dívida com a isenção, promovendo, em obediência ao comando ínsito no art. 144 do seu Estatuto Político de 1947, a reorganização da carreira de Delegado de Polícia, tornando, dentre as principais medidas encetadas, o provimento aos cargos iniciais obrigatoriamente dependente de aprovação em concurso público de provas e títulos. 87 Por outro lado, e em consonância ao ideário internacional da época, persistia em funcionamento a polícia política, cuja atividade se viu pretensamente legitimada com o cancelamento, em 7 de maio de 1947, do registro do Partido Comunista Brasileiro, através da Resolução nº 1.841 do Tribunal Superior Eleitoral. Aos moldes do macarthismo, e ao influxo da guerra fria, o policiamento ideológico logo ganhou corpo e expressão através dos órgãos e agentes incumbidos de velar pela ordem política e social. Autor de um manual oficial sobre a polícia política, Luiz Apolônio, em 1954, introduzia o leitor ao tema através de premissa absolutamente maniqueísta: O mundo, inegavelmente, atravessa um dos momentos mais graves e agitados de sua História. Dividiu-se em dois grupos : um, que ama a liberdade, os bons costumes e as tradições milenárias, e o outro que, desprezando tudo, pretende derrubar os alicerces que o Criador implantou há milênios, criando a humanidade sã e cônscia de seus deveres de fraternidade e amor. 88 O golpe militar levado a efeito em 1964 não trouxe, “a priori”, mudanças significativas a essa já desfavorável conjuntura, como também não as provocou a Constituição da República que veio à luz em 24 de janeiro de 1967, em cujo texto 87 Lei Estadual nº 199, de 1 o de dezembro de 1948. 88 APOLÔNIO, Luiz. Manual de polícia política e social, p. 9. Indispensável aqui registrar o conceito do autor acerca da Polícia Política: “A Polícia do Estado, que tem por finalidade máxima exercer atividades preventivas, indagando e combatendo os fatores da desordem social, a bem da ordem!” E arremata: “A Polícia Política exerce a missão em um largo raio de ação. Dentro do País zela pela manutenção da ordem político-social, pela segurança das instituições, da forma de governo e da segurança da autoridade, prevenindo e reprimindo as greves, atentados, agitações, conspirações, conjurações, revoluções, a propaganda e a disseminação das ideologias subversivas e dissolventes. Utiliza em larga escala agentes secretos em todos os setores onde eles se fizerem necessários” (p. 145). 53 apareceu, pela primeira vez, a Polícia Federal, como órgão responsável pelos serviços de polícia área, marítima e de fronteiras; pela repressão ao tráfico de entorpecentes; pela apuração de infrações penais contra a segurança nacional, a ordem política e social, ou em detrimento de bens, serviços e interesses da União, assim como aquelas de interesse interestadual, e também pela censura das diversões públicas. Esse cenário transformou-se, entrementes, com a edição do Ato Institucional nº 5, o famigerado AI-5, em 13 de dezembro de 1968, dando início aos “anos de chumbo”. Desde então, embora atuando através de frações mínimas de seus contingentes, lotadas em unidades especializadas, ou por vezes em órgãos das Forças Armadas, as polícias estaduais tomaram a linha de frente na repressão aos “subversivos”. Tais seguimentos, normalmente concentrados nos Departamentos de Ordem Política e Social, tinham como alvos os integrantes de partidos e grupos políticos de orientação comunista, em suas variegadas correntes, alguns até engajados em ações armadas contra o regime. À desarticulação dos “vermelhos”, passando pela inibição de seus supostos simpatizantes, essas forças policiais envolveram-se num ilimitado vale-tudo, desenvolvido, indefectivelmente, à margem da legalidade. Prisões arbitrárias e clandestinas, perpetradas mediante seqüestros, a tortura como expediente rotineiro nos porões, e o extermínio banalizado, foram as piores marcas desse desventurado período 89 . Os organogramas policiais também foram em regra modificados. Em São Paulo, por exemplo, a estrutura policial que se mantinha harmonizada desde os idos da 1 a República, sofreu abrupta alteração, passada ao largo de qualquer motivação técnica, em 8 de abril de 1970. No auge do período de exceção foi criada, pelo Decreto-Lei nº 217, e com expresso esteio no AI-5, a Polícia Militar do Estado, que 89 Pilagallo, com base no livro Brasil: nunca mais, da Arquidiocese de São Paulo, reporta-se aos seguintes números : “144 foram assassinadas sob tortura, em fugas simuladas ou no ato da detenção; outras 125 ‘desapareceram’” (op. cit., p. 129). Com efeito, na aludida obra encontram-se registros de torturas até mesmo de crianças, mulheres e gestantes. Referindo-se a São Paulo, faz remissão ao DOPS (depois DEOPS), onde um grupo de policiais, sob o comando do delegado Sérgio Paranhos Fleury, “além de torturar e matar inúmeros oposicionistas, eram simultaneamente integrantes de um bando autodenominado ‘Esquadrão da Morte’. Esse ‘Esquadrão’, a pretexto de eliminar criminosos comuns, chegou a assassinar centenas de brasileiros, muitos dos quais não registravam qualquer tipo de antecedentes criminais” (p. 43-50 e 74). 54 imediatamente incorporou aos seus quadros os componentes da Força Pública e boa parte dos integrantes da Guarda Civil. 90 91 A Emenda Constitucional nº 1, de 17 de outubro de 1969, fez outorgada, na realidade, uma nova Carta, absolutamente irrelevante do ponto de vista jurídico, eis que à oportunidade o arbítrio já havia sido instalado. Afonso Arinos é quem garante: Tal como a de 1967, a Constituição de 1969 é de tipo instrumental. Visa somente a dar fisionomia jurídica a um regime de poder de fato. Há, dentro dela, uma parte, por assim dizer, tradicional que reconhece as realidades históricas e políticas da formação nacional, e, por isso mesmo, é a sua parte duradoura. Afora isso o texto é de escassa, ou, mesmo, nenhuma importância. Não poderá ser aplicado em um sistema de Estado de direito, nem foi criado paratal. 92 Mesmo com o fim dos constrangimentos até então sistematicamente operados sobre opiniões e consciências, como corolário da “abertura política” deflagrada pelo governo Geisel, as práticas policiais disseminadas durante o focalizado período de trevas – ou seja, durante todo o tempo em que a polícia simplesmente serviu aos ilegítimos propósitos dos governantes e jamais à proteção dos lídimos direitos dos governados – não puderam ser, de pronto, erradicadas. De 90 A opção deixada aos guardas civis, por força do art. 7 o desse édito, consistia na permanência em um “quadro em extinção (...) sem direito a promoções ou à obtenção de qualquer outra vantagem decorrente da carreira ou da função que exercia”. 91 Até então, por expressa disposição da Lei Orgânica da Polícia, Lei nº 10.123, de 27 de maio de 1968 – três eram os órgãos policiais no Estado: “Delegados de Polícia e demais carreiras policiais civis, Força Pública e Guarda Civil” (art. 2 o) . Em 1969, essa composição começou a ser alterada. Aproveitando-se do período de exceção para legislar por ato administrativo autônomo, o Governador do Estado promoveu, através do Decreto nº 52.213, de 24 de julho, reforma administrativa em cujo bojo, simplesmente olvidados os ditames legais, substituiu a previsão atinente à existência de “Delegados de Polícia e demais carreiras policiais civis” simplesmente por “Polícia Civil”. Com a criação da Polícia Militar, no ano seguinte, o antagonismo restou, para além de estabelecido, claramente evidenciado. Assim como pouco ou nada havia em comum entre a sociedade civil oprimida e a ditadura militar opressora, logo se formou uma malsã rivalidade entre essas duas forças policiais tão inomogêneas, a principiar uma história de conflitos, e, conseqüentemente, de inelutável falta de cooperação, qual faticamente prossegue até os dias atuais. Além de afiançar esses fatos, públicos e notórios, o Coronel José Vicente da Silva Filho ainda comenta sobre a gênese política da Polícia Militar : “Sagas e mitos desse exército policial em rebeliões e revoluções passaram a ser mais que lembranças históricas, marcando a estrutura organizacional da PM de hoje, influenciando suas decisões estratégicas e seu comportamento institucional. Pouco preocupadas com os direitos e a liberdade dos cidadãos, as autoridades viam na PM uma força militar para a manutenção da ordem social, através de uma ostentação militar repressiva, até hoje um traço marcante das Polícias Militares” (A polícia no século 20, p. 2). 92 MELLO FRANCO, Afonso Arinos de. Op. cit., p. 179. 55 efeito, até hoje ainda fervilham notícias acerca de violências e suplícios a contaminar os expedientes policiais, notoriamente utilizados como ilegítimos instrumentos de investigação. É inegável, pois, que a Constituição Cidadã, ruidosamente promulgada em 5 de outubro de 1988, ainda persiste quase como uma obra de ficção, qual ocorre, outrossim, com o Estado Democrático de Direito por ela fundada. Não obstante sua inédita abordagem da temática policial, essa Constituição de todas as matizes, que funcionou como albergue para todas as tendências, decerto precisa, e urgentemente, ganhar presença e efetividade no cotidiano, assim forjando uma nova Polícia, conformada, em que pese o tosco enunciado e os adversos contornos ínsitos no seu artigo 144, segundo os valores democráticos ora prevalentes. 1.4. A polícia judiciária. 1.4.1. Antecedentes históricos: a investigação criminal. 1.4.1.1. Os primeiros passos. Como a ninguém escapa, todas as sociedades humanas, desde as mais antigas, sempre reprovaram determinadas condutas, vedando-as aos seus integrantes, sob ameaça de severas conseqüências a todos àqueles que as praticassem, assim por vislumbra-las ora como simplesmente injustas e/ou contrárias à ordem ético-religiosa aceita pelo grupo, ora, e em corolário mais prático, como de alto risco para a harmônica subsistência da comunidade. A primeira expressão concreta dessa realidade social pôde ser detectada no século XXIII A.C., quando Hammurabi, o rei da Babilônia, decretou o “talião”, buscando criar uma correlação proporcional entre o crime – entendido como o descumprimento do dever de se abster da prática de conduta proibida – e a reação ou vingança do ofendido. Dessa forma, se eventualmente uma casa desabasse e matasse o seu morador, haveria o construtor também de ser morto. Caso o acidente vitimasse o filho do morador, o rebento do construtor é que deveria perecer. Eis o 56 “olho por olho e dente por dente” logo assimilado por outras legislações da antiguidade, como foi o caso do Código Mosaico. 93 94 Mas se com Hammurabi a execução da vindita tornou-se um encargo oficial, o certo é que a antecedê-la devia o ofendido, e, somente ele, convencer um juiz a declarar a culpa do alegado ofensor. Essa tarefa, contudo, à vista do que prescrevia o Código Babilônico, emergia de alta responsabilidade e risco, pois de acordo com o § 1 o desse preceituário, “se um avilum 95 acusou um (outro) e lançou sobre ele (suspeita de) morte mas não pode comprovar: o seu acusador será morto”(sic). Comentando a regra, Emanuel Bouzon informa que a morte, no caso, decorreria da simples falta de provas pelo acusador, ao qual, assim, recaía integralmente o dever de demonstrar o tanto que alegara. Se a imputação fosse a respeito da prática de magia negra, eventual dúvida seria dirimida através do “juízo divino”, devendo o acusado ser mergulhado nas águas de um rio. Sobrevivendo, não apenas assistiria a morte de seu delator, como também ganharia a propriedade da residência daquele. 96 A busca de justiça, portanto, aparecia nos primórdios como um empreendimento arriscado, quiçá inviável se o criminoso tivesse agido com bastante discrição, não deixando evidenciada a sua autoria. Tratava-se de atividade absolutamente privada, cuja viabilidade era ditada exclusivamente pela capacidade de produção da prova. Nada muito diverso se passou no antigo Egito, onde o trabalho de acusar e de provar a autoria delituosa competia a todos os que tivessem, então, a infelicidade de 93 Êxodo, 21:22. Se alguns homens brigarem, e um ferir uma mulher grávida, e for causa de que aborte, não resultando, porém, outro dano, este certamente será multado, conforme o que lhe impuser o marido da mulher, e pagará segundo o arbítrio dos juízes; 23. mas se resultar dano, então darás vida por vida, 24. olho por olho, dente por dente, mão por mão, pé por pé, 25. queimadura por queimadura, ferida por ferida, golpe por golpe. Levítico 24:17. Quem matar a alguém, certamente será morto; 18. e quem matar um animal, fará restituição por ele, vida por vida. 19. Se alguém desfigurar o seu próximo, como ele fez, assim lhe será feito: 20. quebradura por quebradura, olho por olho, dente por dente; como ele tiver desfigurado algum homem, assim lhe será feito. 21. Quem, pois, matar um animal, fará restituição por ele; mas quem matar um homem, será morto.“. 94 NORONHA. E. Magalhães. Direito penal, p. 29. 95 Um cidadão, homem livre e titular de direitos em face da comunidade. 96 BOUZON, Emanuel. O código de Hamurabi, p. 46-48. 57 testemunhar o fato-crime, aos quais ainda restava, de quebra, sob pena de sofrer o flagelo das bastonadas, a obrigação de patentear a impossibilidade de evitar o crime e/ou de prestar o devido socorro à vítima. Caso a imputação fosse desacreditada, a pena incidente era transferida para cumprimento por esses compulsórios acusadores. 97 Entre os judeus a denúncia do homicida era atribuição do mais próximo parente da vítima, cabendo-lhe a partir desse ato prosseguir no processo. Nesse caso, lembra João Mendes Júnior, a lei instituía prévias formalidades à elaboração do corpo de delito 98 . Porque fundamentalmentedependente dessa espécie de prova para o estabelecimento da verdade, o processo hebreu mantinha regras rígidas sobre o testemunho, também se precipitando sobre o comprovado assacador as penas as quais antes estivera sujeito o acusado. 99 Em Atenas impendia, em regra, aos cidadãos provocar a ação dos juízes e dos tribunais contra os autores de crimes. Caso o delito fosse da classe privada, que compreendia aqueles que pouco ou nada ameaçavam a segurança geral, então a tarefa acusatória era concedida exclusivamente ao ofendido. À vista dos delitos públicos, que atentavam contra a própria cidade e à ordem pública, a denúncia 97 MENDES JÚNIOR, João. Op. cit., p. 8. 98 Deuteronômio 21: 1. Se na terra que o Senhor teu Deus te dá para a possuíres, for encontrado algum morto caído no campo, sem que se saiba quem o matou; 2. sairão os teus anciãos e os teus juízes, e medirão as distâncias dali até as cidades que estiverem em redor do morto; 3. e será que, na cidade mais próxima do morto, os anciãos da mesma tomarão uma novilha da manada, que ainda não tenha trabalhado nem tenha puxado na canga; 4. trarão a novilha a um vale de águas correntes, que nunca tenha sido lavrado nem semeado, e ali, naquele vale, quebrarão o pescoço à novilha; 5. Então se achegarão os sacerdotes, filhos de Levi; pois o Senhor teu Deus os escolheu para o servirem, e para abençoarem em nome do Senhor; e segundo a sua sentença se determinará toda demanda e todo ferimento; 6. e todos os anciãos da mesma cidade, a mais próxima do morto, lavarão as mãos sobre a novilha cujo pescoço foi quebrado no vale; 7. e, protestando, dirão: As nossas mãos não derramaram este sangue, nem os nossos olhos o viram; 8. Perdoa, ó Senhor, ao teu povo Israel, que tu resgataste, e não ponhas o sangue inocente no meio de teu povo Israel. E aquele sangue lhe será perdoado; 9. Assim tirarás do meio de ti o sangue inocente, quando fizeres o que é reto aos olhos do Senhor. 99 Deuteronômio 29: 15. Uma só testemunha não se levantará contra alguém por qualquer iniqüidade, ou por qualquer pecado, seja qual for o pecado cometido; pela boca de duas ou de três testemunhas se estabelecerá o fato; 16. Se uma testemunha iníqua se levantar contra alguém, para o acusar de transgressão, 17 então, aqueles dois homens que tiverem a demanda se apresentarão perante o Senhor, diante dos sacerdotes e dos juízes que houver nesses dias. 18. E os juízes inquirirão cuidadosamente; e eis que, sendo a testemunha falsa, e falso o testemunho que deu contra seu irmão, 19. far-lhe-ás como ele cuidava fazer a seu irmão; e assim exterminarás o mal do meio de ti. 20. Os restantes, ouvindo isso, temerão e nunca mais cometerão semelhante mal no meio de ti. 21 O teu olho não terá piedade dele; “vida por vida, olho por olho, dente por dente, mão por mão, pé por pé“. 58 pertencia a todos os cidadãos, e em alguns casos dotados de maior gravidade a magistrados específicos, previamente designados para policiar as atividades relacionadas. As acusações aceitas eram tornadas públicas, junto com a convocação da apresentação, na data do julgamento, de todos aqueles que pudessem ofertar provas confirmando ou desnaturando a imputação. No mais, acusado e acusador, cada um per si, colecionavam tudo que pudessem servir à confirmação de suas teses. Vencida a acusação, seu autor é que era posto em juízo. Se tivesse amealhado o convencimento de ao menos um quinto dos juízes, sua denúncia era tida por fundada e nenhuma conseqüência lhe seria acarretada. Se não conseguisse esse feito, a acusação poderia ser considerada temerária ou caluniosa, tendo por efeito a obrigação do pagamento de altas multas, a perda do direito de acusar, dentre outras de maior gravidade. 100 1.4.1.2. Em Roma. Em princípio os romanos também demonstraram pouca preocupação com as condições sob as quais se travavam as disputas levadas a cabo perante seus juízes e tribunais criminais. As atividades acusatória e probatória, por meio de sistema muito próximo àquele desenhado na Grécia, eram relegadas aos cidadãos interessados, que as exerciam por sua própria conta e risco. 101 Iniciava-se o processo com a acusação, formulada por qualquer pessoa, já excluídas as mulheres e excetuados menores, magistrados, indigentes e aqueles julgados caluniadores. Conhecendo a denúncia, o pretor fixava uma data para o julgamento (diei dictio). Nesse interlúdio, informa João Mendes Júnior : o proprio accusador, investido de uma commissão (legem), que lhe era conferida pelo pretor, procedia ás investigações, a todos os actos da instrucção, dirigia-se aos lugares, apprenendia documentos, notificava e inquiria testemunhas, sendo que, para effectividade, a commissão consignava penas contra os que recusassem obedecer. Por seu lado, o accusado, 100 MENDES JÚNIOR. João. Op. cit., p. 17. 101 A respeito vide o escólio de José Rogério Cruz e Tucci sobre a “Responsabilidade Penal pelo Exercício Irregular da Acusação Durante o Principado”, in Contribuição ao estudo histórico do direito processual penal (Direito Romano I), p. 25-32. 59 que já tinha sido notificado da accusação, ficava com o direito de seguir o accusador, fiscalisar seus actos, fazel-o acompanhar de um agente que vigiasse suas diligenciais, assistir ao exame das testemunhas, interrogal-as e contradictl- as. Esta phase era a da inquisitio, que deveria estar terminada no dia fixado para a audiencia ou sessão de julgamento. 102 (Sic) Ao final da República o direito popular de acusação passou a ser pouco a pouco restringido 103 , sendo a fase de inquérito também reformulada. Dessarte, primeiramente nos casos de flagrante delito e de criminosos reincidentes, e depois em face de qualquer hipótese criminal, a inquisitio passou à incumbência de agentes da polícia imperial – os irenhachae, os curiosi, os stationarii – aos quais, para o desempenho a contento da função investigativa, foram conferidos amplos poderes, como o de prisão dos indiciados e de seus parceiros, além daqueles necessários à colheita da prova. Com as diligências registradas por escrito, ao policial cabia então encaminhar o indiciado à autoridade judicial. Não aparecendo nenhum acusador, designava-se o próprio irenarcha para formular a acusação. Mais tarde, a par da especialização da inquisitio, definitivamente fixada em momento anterior à accusatio, passou esta a cumprir ao accusator designado, o que se parece com o nascedouro do sistema processual penal misto hoje vigente entre nós. 104 Tornagui alude à inquisitio generali como o germe da polícia judiciária, por se tratar de “indagação feita pelo próprio Estado e não deferida a particulares e que não visava ninguém em especial, mas a todos em geral. O encarregado dela “inquirit in genere, non contra certam personam”. Uma vez elucidada a autoria do crime, ao final do inquérito, tinha vez então a inquisitio especialis, ou seja, a instrução judicial, principiada pela correspondente acusação. 105 102 Ibidem, p. 24. Tratava-se, segundo o autor, de instrução contraditória, com a produção da prova na presença daquele contra quem já pendia uma acusação. 103 Tais restrições, completa o autor, levaram ao abandono do focalizado direito e, por via de conseqüência, à “indifferença do espírito policial do povo” (Sic). Ibidem, p. 40. 104 MENDES JÚNIOR, João. Op. cit., p. 40. Comenta ainda o autor: “Das circumstancias surgiram o procedimento ex-officio, e incumbencia de de accusar e seguir os processos, preludios do ministerio publico; alem disso, houve necessidade de organizar uma policia official fortemente centralisada, policia que foi pouco a pouco accumulando funcções judiciarias”(Sic). 105 TORNAGUI, Hélio. Instituições de processo penal,p. 95-96. 60 Em suma, como concluiu J. Canuto Mendes de Almeida, foi por esse caminho “que se organizou uma polícia oficial fortemente centralizada, com funções cada vez mais judiciárias, enquanto o espírito policial do povo foi desaparecendo”. 106 1.4.1.3. A Inquisição. Na esteira da propalada conversão do Imperador Constantino, o cristianismo logo se transformou na religião oficial de Roma. A Igreja, até então perseguida e obrigada a permanecer refugiada nas catacumbas, pode despertar para a vida pública, passando a influir em todos os setores da cidade e da vida social. A partir do século V, fez-se presente também na jurisdição criminal, através de seus bispos, designados para executar relevantes tarefas correcionais : inspecionar prisões e processos, sindicar as razões das detenções, advertir e denunciar os magistrados relapsos. E dessas práticas surgiram as formas “canônicas do processo penal”. 107 Antes, mas já sob inspiração cristã, o processo ganhara em Roma formas mais humanas, primeiro com Deocleciano e Graciano, na repressão dos tormentos, constituídos até então comezinhos meios de prova; depois, com Valentiniano, inaugurando sistema de anistia e perdão dos condenados. Graças a esse contexto, a queda do Império romano não pode ser focalizada como uma fragorosa derrota, pois ao preliminar infortúnio militar logo se seguiu a maiúscula subjugação cultural e especialmente religiosa dos conquistadores, alcançada inegavelmente pela autoridade e afã dos bispos cristãos. Assim, como antes se dera em Roma, o Clero expandiu sua influência por quase toda a Europa, levando aos povos ignaros as luzes do conhecimento romano, já burilado sob os princípios cristãos. Com o mundo ocidental mergulhado na Idade das Trevas, apenas a Igreja prosseguiu a esgrimir com os costumes bárbaros, registrando a história, como 106 ALMEIDA, J. Canuto Alves de. Princípios fundamentais do processo penal, p. 48. 107 TORNAGUI, Hélio. Op. cit., p. 38. 61 exemplo, o incansável combate oferecido pelo Papa Estevão V contra a prática das ordálias e dos tormentos no século IX. 108 A partir do quarto Concílio de Latrão, em 1216, a Igreja iniciou sua luta contra os movimentos heréticos, fixando as bases do processo que futuramente seria empregado pelos Tribunais de Inquisição, criados somente em 1252, pela Bula papal “Ad extirpanda”, de Inocêncio IV. Antes, contudo, Inocêncio III já havia fixado, com nítido fulcro no modelo romano, o sistema processual inquisitório ou inquisitivo, compreendendo uma fase de inquérito e outra de denúncia. A denúncia foi o refugio dos fracos contra a prepotencia dos senhores feudaes. Estava assim aberto o meio de evitar a formalidade da inscripção da accusação e estancada uma fonte de vinganças e oppressões; mas, o mesmo Innocencio III, para reformar os costumes do clero, indicou outro meio: a inquisitio antes de qualquer procedimento. 109 (Sic) Melhor delineando-a, João Mendes Júnior apresentou a inquisitio como uma pesquisa ou investigação levada a cabo pelo juiz ou inquiridor, sempre antes da acusação, segundo certas regras e pautando-se pela cautela, máxime no exame das testemunhas. E fez-se cabal : A inquisitio, conforme era indicada por Inocêncio III, não teria a extensão e não produziria os abusos depois occorridos, si os Papas posteriores e os Reis, na lucta contra os Mouros, Judeos e os outros hereges, se contivessem nos limites dos cânones daquelle grande pontifice. 110 (Sic) Com efeito, as preocupações que conduziram à formação do processo inquisitivo não tardaram em ser abastardadas, especialmente quando da atuação dos Tribunais de Inquisição na península Ibérica, oportunidade em que todos os princípios regenciais do sistema foram simplesmente olvidados, de modo a conferir- lhe imagem e conceito finais justificadamente pejorativos, porquanto distorcidos. 111 108 ALMEIDA, J. Canuto Mendes de. Op. cit., p. 49. 109 MENDES JÚNIOR, João. Op. cit., p. 66. 110 Ibidem, p. 72. 111 De fato, diversamente do objetivado por Inocêncio III, o sistema inquisitório passou a significar, segundo Vélez Mariconde, “pesquisa que se cumple por escrito y secretamente, y al término de la cual se dicta a sentencia”. Jacinto Nelson de Miranda Coutinho, que nos traz essa citação, esmiúça: “A característica 62 Infelizmente, dessa forma última e corrompida foram extraídas as fórmulas processuais adotadas por inúmeras legislações – com destaque para as ordenações do reino português –, perfazendo ilegitimamente o sistema inquisitório contemplado e unanimemente rejeitado nos tempos correntes. De outra parte, deve ser assinalado que exatamente os abusos que se avolumaram impropriamente nesse modelo ao menos serviram para provocar, como sublinhou Antonio Magalhães Gomes Filho, a “reação iluminista”, através da qual “institutos fundamentais do sistema penal e processual do ancien régime, como a pena de morte e a tortura, passaram a ser contestados, em nome de uma nova concepção das relações entre o Estado e o cidadão” 112 . Nesse novo clima afloraram novas, e por vezes profundas, reformas legislativas por toda a Europa, valendo destacar, acompanhando-se a óptica de Mittermaier, a lei promulgada por Leopoldo, grão-duque da Toscana, em 1786, e a Ordenança de José II da Baviera, em 1788, ambas plasmadas, como aduziu, sob o “espírito universal de Beccaria” 113 . Porém, a maior reforma patrocinada pelas idéias e ideais iluministas manifestou-se por meio de mentes e de mãos francesas, em meio à conjuntura revolucionária, verificada na passagem dos séculos XVIII para XIX. 1.4.2. A polícia investigativa. 1.4.2.1. Intróito . fundamental do sistema inquisitório, em verdade, está na gestão da prova, confiada essencialmente ao magistrado que, em geral, no modelo em análise, recolhe-a secretamente”. E acentua: “O trabalho do juiz (...) afastado do contraditório e sendo o senhor da prova, sai em seu encalço guiado essencialmente pela visão que tem (ou faz) do fato” (In O papel do novo juiz no processo penal. COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda (Coord.). Crítica à teoria geral do direito processual Penal, p. 23-24). Comenta Leonardo Boff, no prefácio do Manual dos inquisidores : “A confissão é tudo na Inquisição, não as provas, contrariamente ao senso do direito universal, pois, sabemos, a confissão pode ser extorquida sob coação” (p. 19). Comprova seu raciocínio com revelador trecho da obra, escrita por Nicolau Eymerich em 1376, e ampliada por Francisco de La Peña em 1578: “Diante do tribunal da Inquisição basta a confissão do réu para condená-lo. O crime de heresia é concebido no cérebro e fica escondido na alma: portanto, é evidente que nada prova mais do que a confissão do réu” (p. 138). E noutro elucidativo trecho: “o papel do advogado é fazer o réu confessar logo e se arrepender, além de pedir a pena para o crime cometido” (p. 139). 112 GOMES FILHO, Antonio Magalhães. O direito à prova no processo penal, p. 25. 113 MITTERMAIER, C. J. A. Tratado da prova em matéria criminal, p. 23-24. 63 A Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 14 de agosto de 1789, estabeleceu, à configuração do Estado de Direito duas condições básicas: a garantia dos direitos fundamentais e a separação dos poderes. Assim sendo, todos os franceses, a partir de então, deveriam poder desfrutar suas liberdades, nos limites estabelecidos pela lei (expressão da vontade geral, sempre pronunciada ao proveito geral), sem serem impedidos pelo arbítrio estatal. Aos órgãos do Poder passaria a caber, doravante e imperiosamente, o exemplar acato às leis e o respeito aos direitosde todos os homens e cidadãos. Primando por tal espírito, os revolucionários logo tripartiram as funções do Poder – tornando teoricamente impossível que voltassem a se concentrar sob um único cetro –, encarregando novéis órgãos públicos do exercício de misteres especializados, como se deu com a polícia. 1.4.2.1.1. Lei de 3 do Brumário do ano IV: a certidão de nascimento da polícia judiciária. Assim, em 1795, como já visto, criou-se na França uma polícia especializada, voltada exclusivamente para a investigação dos crimes havidos, a ponto de merecer a expressa denominação de “judiciária”. De fato, sua razão de existir consistia na descoberta e comprovação da autoria dos delitos não evitados pela polícia administrativa, a fim de possibilitar ao Poder Judiciário a aplicação, por meio dos seus tribunais, da “punição” (original) devida aos criminosos. Independente de uma nomenclatura específica, o certo é que a cuidada função investigativa preexistia a versada inovação, restando, ao longo dos tempos, a certos órgãos e funcionários o seu genérico, hesitante e impreciso desempenho. Com efeito, encontramos na história francesa uma série de instituições que podem ser consideradas como os embriões dessa polícia judiciária, a começar pela criação, no início do século XVI, do cargo de tenente de “robe” – um misto de magistrado e militar – ao qual se fez afetas a pesquisa e a captura de criminosos em Paris. Com idêntico propósito observa-se a constituição dos denominados “isentos”, por Mazarino, em 1634, a guisa de oficiais de polícia especializados, adidos aos comissários com a missão de proceder às investigações e operações consideradas 64 mais difíceis. Idem com a criação, em 1750, da Repartição de Segurança de Paris, por Berryer de Ravenoville, com a tarefa de diligenciar com vista à elucidação das queixas registradas pelos comissários nos bairros. Esse órgão, inclusive, contava, de maneira incipiente, com arquivos repletos de nomes e endereços de ladrões e suspeitos, cada qual identificado segundo a natureza das condenações que já carregava. 114 Destarte, o fator que poderia e deveria diferenciar esse novo órgão policial – gerado sob influxo revolucionário – daqueles que o antecederam no tempo, coincidia, a par de sua especialização, com a sua teoricamente incondicional obrigação de se subordinar à lei, fonte única de todas as ações, inclusive estatais, que no recém-fundado Estado de Direito, somente haveriam de aflorar com o fito de fazer concreta a vontade geral expressa através da norma. Faustin Helie, transcrito por João Mendes Junior, melhor ilustra o raciocínio: A polícia judiciária é o olho da justiça; é preciso que o seu olhar se estenda por toda a parte, que os seus meios de actividade, como uma vasta rede, cubram o território, afim de que, como a sentinella, possa dar o alarma e advertir o juiz; é preciso que os seus agentes, sempre promptos aos primeiros ruidos, recolham os primeiros indícios dos factos puníveis, possam transportar-se, visitar os lugares, descobrir os vestigios, designar as testemunhas e transmittir á autoridade competente todos os esclarecimentos que possam servir para a instrucção ou formação da culpa; ella edifica um processo preparatorio do processo judiciário; e, por isso, muitas vezes, ella possa tomar as medidas provisórias que exigirem as circumstancias. Ao mesmo tempo ela, deve apresentar em seus actos algumas das garantias judiciárias : que a legitimidade, a competência, as habilitações e as attribuições dos seus agentes sejam definidas, que os casos de sua intervenção sejam previstos, que seus actos sejam autorisados e praticados com as formalidades prescriptas pela lei; que, emfim, os effeitos destes actos sejam medidos segundo a 114 LE CLÈRE, Marcel. Op. cit., p. 29, 33 e 52. Vale registrar que a despeito dessa e de outras proficientes medidas adotadas por Berryer, sua gestão ficou marcada apenas pela intensa bisbilhotice, que lhe garantiu tal chefia por dez anos. É ainda Lê Clère que conta que a esse mister, mesmo granjeando a irritação de toda população parisiense, não titubeava Berryer , ao largo de qualquer escrúpulo, em recrutar “para o seu serviço os infelizes maridos surpreendidos em galante companhia ou os que se entregavam à pederastia”. Fatos próximos a esse, que com bastante freqüência podem ser detectados na história da polícia francesa, parecem servir a explicar e justificar o porquê de sua péssima reputação. 65 natureza dos factos e a autoridade de que são investidos os agentes. 115 (Sic) Essa polícia judiciária, nascida com e no Estado de Direito, vocacionada à legalidade, não logrou, entretanto, celeremente representar esse papel, tendo, como tudo mais na França da época, permanecido muito tempo perdida entre as vagas do maremoto político que naquele país tanto perdurou. 1.4.2.1.2 A reforma napoleônica: a polícia judiciária no processo penal. Promulgado em 17 de novembro de 1808, e vigorando a partir de 1 o de janeiro de 1811, o Code d’Instruction Criminelle logo se tornou paradigmático, influenciando, até mesmo moldando, a legislação processual penal de quase toda Europa e praticamente do resto do mundo 116 . Nesse diploma a polícia judiciária foi tratada ao longo dos capítulos 1 o a 5 o do Livro 1 o , perdendo, em relação ao Código do Brumário, competências instrutórias, em decorrência da forte campanha desencadeada em favor da separação das funções policiais e judiciais 117 . Restaram, pois, aos agentes da polícia judiciária, específicas atribuições, a saber : receber as denúncias das infrações cometidas, ouvindo testemunhas e procedendo com os poderes inerentes ao Procurador do Rei 118 , quer nos casos de flagrante delito, quer quando solicitado por qualquer chefe de família, de tudo preparando processo para final transmissão ao Ministério Público. Embora com grande vagar, essa instituição investigativa foi adquirindo as credenciais técnicas e de especialista exigidas para o eficiente desempenho de sua função. Assim, em 1882, passou a fazer uso de métodos antropométricos para a identificação de suspeitos, reservando aos reincidentes a possibilidade de 115 MENDES JÚNIOR, João. Op. cit., p. 246.Grifo não original. 116 TORNAGUI, Hélio. Op. cit., p. 99. 117 MENDES JÚNIOR, João. Op. cit., p. 247. 118 Ibidem, p. 232. Poderes que referiam-se à capacidade de praticar os denominados atos de poursuite, próprios ao procurador público e, excepcionalmente, pelo comissário de polícia e seus auxiliares. Tais atos compreendiam: as requisições dirigidas ao juiz de instrução, certos atos de execução, especialmente de expedir notificações e cumprir os despachos desse magistrado, assistindo-o na realização de exames e diligências. Nos casos de flagrante delito, o agente de polícia judiciária sempre assumia competências especiais, normalmente reservadas ao juiz de instrução, procedendo ao corpo de delito e realizando buscas e apreensões até na residência do delinqüente. Apenas para diligências em moradias de terceiros é que se fazia indispensável à prévia autorização judicial. 66 reconhecimento fotográfico. Em 1888, sob os aplausos de Pasteur, inaugurou seu laboratório, demorando então poucos anos para incorporar a identificação datiloscópica a sua rotina de trabalho, servindo, por meio de todo esse itinerário, como exemplo às instituições congêneres. Tal como de resto se houve, durante muito tempo, em relação a todas as novidades geradas pela rica cultura francesa, essas criações foram mundialmente propagadas, ganhando a polícia judiciária, então já engendrada como arquétipo, presença em diversas regiões do planeta, inclusive no Brasil. 1.4.2.2. A polícia judiciária no Brasil. Após a independência, já em 15 de outubrode 1827, sob inspiração francesa, a lei reproduziu, em versão brasileira, a figura do juiz investigador, cometendo ao Juiz de Paz competência de apuração criminal, especialmente para a elaboração do auto de corpo de delito. Ainda mitigada, foi essa mesma tendência confirmada pelo Código de Processo Penal de 1832, que manteve nas mãos desses magistrados eletivos a investigação criminal. Não obstante a influência francesa, essa legislação apresentava-se bem mais liberal, eis que no modelo original, pontifica Pierangelli, “o acusado era colocado em uma situação de inferioridade em relação ao acusador oficial e o juiz exercitava uma atividade de produção de provas, valendo-se, para esse fim, até mesmo da tortura” 119 , proscrita entre nós, ao lado de quaisquer penas cruéis, pela Carta de 1824 (art. 179, XXIV). Na França, apenas em 1897 a instrução secreta foi absolutamente abandonada, ficando, de resto, e somente a partir dessa oportunidade, defeso ao Juiz da instrução, ou seja, ao investigador, julgar a causa. 120 A polícia judiciária, naturalmente não desconhecida, não demorou a ser suscitada, fazendo-se literalmente presente na denominada Lei de Interpretação, a de nº 105, de 12 de maio de 1840, cujo texto, em disposição preliminar, dirimiu dúvida surgida em face do conteúdo do art. 10, § 4 o , do Ato Adicional de 1834 – a 119 PIERANGELLI, José Henrique. Op. cit., p. 103. 120 MENDES JÚNIOR, João. Op. cit., p. 237. 67 Lei nº 16, de 12 de agosto de 1834 – que transferiu a atribuição de legislar sobre polícia às “Assembléas Provinciaes” (Sic). Esclareceu o diploma superveniente, e de modo expresso, que a referida competência não abrangia a polícia judiciária, que prosseguiu assim vinculada exclusivamente aos provimentos imperiais. Já em 1842, o Regulamento nº 120, disciplinando a “execução da parte policial e criminal da Lei nº 261”, publicada no ano anterior, oficializou, através de seu art. 3 o , a criação da Polícia Judiciária entre nós, confiando-lhes, como já visto, atribuições não apenas investigativas como também judiciais. Esse fato logo ensejou uma justificada revolta geral, exatamente como antes se passara na França, onde, dentre outras razões, levou-se à edição do Código de Instrução Criminal de 1808. Frederico Marques aludiu, neste ponto, a uma deplorável inversão, com a transposição do “judiciarismo policial” de 1832, para o “policialismo judiciário” de 1842. O equilíbrio somente pôde ser alcançado trinta anos depois, com a Lei nº 2.033, de 20 de setembro de 1871, e seu regulamento, o Decreto nº 4.824, de 22 de novembro subseqüente. Como reflexo do afastamento de toda e qualquer atribuição estritamente judicial do rol de funções da polícia, ou seja, como produto da requestada separação desses papéis dantes confundidos na legislação pátria, a qualificação “judiciária” foi eliminada dos mencionados textos normativos. Todavia, remanesceu às autoridades policiais, como expressão maior do exercício da atividade de polícia judiciária, a incumbência de perquirir as infrações penais, e distintamente da matriz francesa - nesse plano já totalmente abandonada – como protagonistas, e não como coadjuvantes de um juiz instrutor. Com efeito, a execução da investigação criminal, reservada à exclusiva alçada dos Chefes, Delegados e Sub-delegados de Polícia, foi confinada às lindes do inquérito policial, definido pelo precitado regulamento como o conjunto das diligências necessárias para a verificação da existência do crime, descobrimento de todas as suas circunstâncias e respectiva autoria (arts. 11, § 2 o , c.c. 38 e ss). Esse 68 quadro restou praticamente inalterado, exceção feita a alguns poucos Estados, pelos setenta anos seguintes. Em 1941, a polícia judiciária reapareceu na legislação nacional – explicitada pelo art. 4 o do Código de Processo Penal, promulgado em 3 de outubro (Decreto-lei nº 3.689) – como a atividade própria das autoridades policiais, concernente à apuração das infrações penais e o conhecimento dos seus autores, em diapasão absolutamente linear à precedente normatização. O inquérito policial, que nominou o Título II do Livro I do novo Código, foi mantido a título de instrumento da polícia judiciária, suplantados os defensores da instituição, no Brasil, do Juizado de Instrução, cujo mais auspicioso momento remanesceu em 1935, quando o projeto Vicente Ráo foi rejeitado. Em favor do inquérito, e independente das vicissitudes inerentes ao juizado, a exposição de motivos do CPP de 1941 arrolou estas vantagens: (...) é ele uma garantia contra apressados e errôneos juízos, formados quando ainda persiste a trepidação moral causada pelo crime ou antes que seja possível uma exata visão de conjunto dos fatos. Por mais perspicaz e circunspeta, a autoridade que dirige a investigação inicial, quando ainda perdura o alarma provocado pelo crime, está sujeito a equívocos ou falsos juízos a priori, ou a sugestões tendenciosas. Não raro é preciso voltar atrás, refazer tudo, para que a investigação se oriente no rumo certo, até então despercebido. Por que, então, abolir-se o inquérito preliminar ou instrução provisória, expondo-se a justiça criminal ao azares do detetivismo, às marchas e contra-marchas de uma instrução imediata e única? Pode ser mais expedito o sistema de unidade de instrução, mas o nosso sistema tradicional, com o inquérito preparatório, assegura uma justiça menos aleatória, mais prudente e serena. Contudo, em plano Estado Novo, não foi o inquérito policial utilizado apenas e exatamente a proporcionar suas relacionadas benesses, servindo, doutra forma, e espuriamente como instrumento de repressão política, segundo os cânones dos Decretos-lei nº 88, de 20 de dezembro de 1937, e nº 431, de 18 de maio de 1938, que disciplinaram o procedimento perante o fascista Tribunal de Segurança 69 Nacional, instituído pela Carta de 1937, como “órgão permanente e autônomo da justiça especial”, ao qual atribuía o processo e julgamento dos crimes contra “a existência, a segurança e a integridade do Estado, a guarda e o emprego da economia popular” (art. 122, nº 17 c.c. arts. 172 e 173, com redação dada pela Lei Constitucional nº 7, de 30 de setembro de 1942 ). 121 Exprobrando veementemente essa legislação, que realçou como a mais ilegítima de toda história processual penal brasileira, Frederico Marques registrou a extraordinária degeneração então sofrida pelo inquérito, que nesses processos prestava-se, para além da formação da culpa – sempre produzida sigilosa e arbitrariamente – a valer como peça de acusação, pois gozando de uma incrível presunção de veracidade, gerava, incontinenti ao seu término e, mesmo à vista de temerárias conclusões, um estado de culpabilidade, do qual o “investigado-acusado” somente poderia se subtrair comprovando sua inocência, mercê da arbitrária inversão do ônus da prova. 122 Superada essa fase de exceção, o labor policial judiciário passou longo tempo à margem de quaisquer inovações ou mudanças, tendo, ao que parece, mergulhado numa grande pasmaceira, pois não se encontram registros de lucubrações capazes de patrocinar-lhe visíveis e efetivos progressos nos planos ético, técnico e jurídico. Durante o período do governo militar, quando uma inconsistente, mas férrea política de segurança nacional logrou eclipsar, a despeito dos ditames presentes tanto na Lei Fundamental de 1967, como no “Emendão” de 1969, as preocupações em torno do interesse e do serviço genuinamente públicos, a atividade policial, como um todo, pode ser vista submergindo – sob crítica a priori velada, porém, depois generalizada sob os auspícios da redemocratização – quase que por completo na obscuridade, como expressão pronunciada do arbítrio e da ineficiência.121 Extinto pela Lei Constitucional nº 14, de 17 de novembro de 1945. CAMPANHOLE, Hilton Lobo. CAMPANHOLE, Adriano. Constituições do Brasil – compilação e atualização de textos, notas revisão e índices. 122 FREDERICO MARQUES, José. Op. cit., p. 109. 70 Nesse compasso, em 1988, pela primeira vez na história brasileira, a polícia judiciária tornou-se tema constitucional, malgrado inserto no Estatuto Político promulgado em 5 de outubro como um feixe de inespecíficas funções, estranha e gramaticalmente dissociadas do exercício da investigação criminal, atribuídas, contudo, conjuntamente com aquelas, a órgãos policiais civis da União e dos Estados. Tudo em nome da segurança pública, constitucionalizada a bem da defesa das instituições democráticas (conforme capítulo III do Título V da Constituição da República). 1.4.2.3. Um relance sobre a hodierna polícia judiciária no mundo ocidental. Enfatiza Monet que “nas representações do público e na dos próprios policiais, a verdadeira polícia é a que visa aos comportamentos criminais”. Depois, aludindo à polícia criminal, como é designada a polícia judiciária na Europa do Norte 123 , apresenta-a como aquela responsável pela execução de “todas as atividades que fornecem à justiça penal a matéria-prima necessária ao seu funcionamento”. Fixando o atual quadro europeu, pode o autor identificar, basicamente em todos os países, a existência de corpos policiais encarregados do exercício da função em comento, desempenhada em níveis de excepcional complexidade, por intermédio de órgãos altamente especializados, treinados e equipados, notadamente para atuar na apuração das atividades patrocinadas pela criminalidade transnacional e organizada. 124 No mais, registrando apenas duas parciais exceções, fez destacar que no Velho Continente as atividades de investigação se encontram maciçamente concentradas em mãos civis. Apenas na França e na Itália, sob determinadas 123 MONET, Jean-Claude. Op. cit., p. 113-114. Acerca das nomenclaturas esclarece o autor que o uso da expressão polícia judiciária é corrente na França, Itália, Espanha e Bélgica, enquanto que nos países anglo- saxônicos a referência é antes uma forma de ação, pelo que se reporta ao Criminal Investigations ou de Law Enforcement. 124 Ibidem, p. 114 e 118. 71 circunstâncias, equipes específicas, respectivamente da Gendarmeria e dos Carabineiros, podem se encarregar da realização de investigações. E sobre esse desvio guardou terminativo escólio: Em compensação, a natureza militar dessas polícias suscita um problema particular em matéria de cooperação internacional, tal como a que funciona no quadro da Interpol. A presença de policiais militares é aqui mal percebida, pois se choca com as tradições anglo-saxônicas e escandinavas nas quais a polícia é uma função de essência civil. Em todos os países europeus, os correspondentes da Interpol que povoam os escritórios centrais nacionais fazem parte de polícias judiciárias civis. 125 Do outro lado do Atlântico, nos Estados Unidos, encontramos um sem- número de polícias, todas, entrementes, civis. A atividade investigativa é tratada como faina especializada, atribuída, ao menos nos departamentos de polícia maiores e/ou melhores organizados, aos agentes mais experientes e melhor qualificados, invariavelmente lotados em órgãos específicos e adequadamente estruturados à finalidade perseguida, em nível municipal, estadual ou federal. No que pertine, contudo, à decantada eficácia da polícia criminal norte- americana, impõe-se uma ressalva, pois, se por um lado é verdade que os EUA hoje contam, aos moldes do FBI, com unidades extraordinariamente capacitadas para proficuamente promover o deslinde criminal, é igualmente autêntico, de outro, o fato de que um abismo se projeta entre a atividade ordinária dessa mesma polícia, enquanto genericamente focalizada, e a inverossímil imagem de absoluta competência que a seu respeito se vê amiúde acalentada e propalada no Brasil, quase sempre singelamente fundada em testemunhos cinematográficos, qual resolutamente desmistificam Bayley e Skolnick, consoante a seguinte conclusão, alcançada em alentado estudo realizado sobre as polícias americanas : Os crimes não são solucionados – no sentido de delinqüentes serem presos e julgados – pelas investigações criminais conduzidas pelos departamentos de polícia. Geralmente, os crimes são resolvidos porque os criminosos são presos em 125 Ibidem. Op. cit., p. 119. 72 flagrante ou porque alguém os identifica especificamente – um nome, um endereço, a placa de um carro. Os estudos mostram que, se nenhuma dessas coisas acontece, as chances de solucionar algum crime caem para menos de uma em dez. Apesar de que, a televisão nos tem levado a pensar, que os detetives não trabalham a partir de pistas para chegar aos criminosos: seu trabalho é feito com base em suspeitos conhecidos a fim de corroborar as provas. Os detetives são importantes para a acusação de infratores identificados e não para descobrir delinqüentes desconhecidos. 126 Destarte, em que pese toda exposição holywoodiana, inexistem corpos policiais perfeitos, prontos e acabados, simplesmente esperando para ser copiados. Poucas, em verdade, afiguram-se as peculiaridades policiais e mesmo judiciais alienígenas passíveis de idônea reprodução em face da atípica realidade sócio- econômico-cultural brasileira. Ao contrário, como se procurará mais à frente trabalhar, talvez mais frutuoso seja a percepção e o conseqüente reconhecimento dos muitos defeitos e imperfeições que, direta ou indiretamente, incidem sobre as nossas e também sobre outras polícias e sistemas investigativos, a fim de eficientemente procurar evitá-los e/ou eliminá-los em nosso meio. 1.4.3. A polícia judiciária e sua classificação jurídica : uma nova visão. Como visto, o Estado de Direito despojou a polícia da amplitude que lhe foi conferida pelo jus politiae, desde os fins do século XIV até o crepúsculo do século XVIII, para passar a apresenta-la, singelamente, como “uma função administrativa típica de prevenção de perigos e de manutenção da ordem pública”, peculiar, ainda segundo Canotilho, àquele propriamente denominado “Estado guarda-nocturno”. 127 Nesse contexto, e na França, essa “nova polícia”, primeiramente sistematizada, em sua relações com a segurança, pela Lei de 3 do Brumário do ano IV, logo se viu bipartida: de um lado, a polícia administrativa, incumbida “principalmente a prevenir os delitos” (art. 19), e, de outro, a polícia judiciária, investigativa, responsável pela colheita das provas necessárias para a decretação, 126 BAYLEY & SKOLNICK. Nova polícia: inovações na polícia de seis cidades norte-americanas, p. 19- 20. Aludem estes autores ainda aos estudos de Peter W. Greenwood & Joan Petersilia, The criminal investigation process, Washington, D. C.: Law Enforcement Assistance Administration, 1976. 127 CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito Constitucional e a Teoria da Constituição, p. 88. 73 pelos tribunais, da punição dos autores dos crimes não evitados pela primeira (art. 20). Contudo, essa diferenciada polícia, finalisticamente judiciária, não logrou encontrar, no atribulado ambiente da época, e muito menos nas décadas seguintes, condições mínimas, principalmente de exercício eficiente e imparcial, para cedo vingar como função pública especializada, que no serviço à jurisdição 128 possuía sua exclusiva e verdadeira razão de ser. Ao contrário, o que se pode ver, através das práticas coetâneas, foi a plena desconsideração estatal da dimensão operativa dessa novel polícia, com o desprezo de sua natureza investigativa, manifestado com o engajamento dos órgãos nominalmenteencarregados de sua execução na mantença, a qualquer custo, da ordem pública 129 de plantão. Dessarte, como mero apêndice do Poder Executivo, não mereceu a polícia judiciária, e por muito tempo, atenção senão orgânica, restando, pois, no âmbito jurídico, relegada, no mais das vezes, aos estudos circunscritos às estritas raias de um ainda incipiente Direito Administrativo, que jamais foi capaz de dedicar ao tema enfoque e ordenação adequadas. 128 A justificar a célebre sentença de Velez Mariconde, na qual reputa à polícia judiciária a relevantíssima tarefa de administração da fase primária da Justiça Penal (Apud Fernando da Costa Tourinho Filho. Processo Penal, p. 162). 129 José Afonso da Silva define abstratamente a ordem pública como “uma situação de pacífica convivência social, isenta de ameaça de violência ou de sublevação que tenha produzido ou que supostamente possa produzir, a curto prazo, a prática de crimes” (Curso de Direito Constitucional Positivo, p. 754). Observe-se que Sérgio Marques de Moraes Pitombo, referindo-se ao Estado Democrático de Direito, e pondo-se a luz dos direitos individuais, diz melhor “cogitar-se da paz pública, emergente do binômio : tranqüilidade social, não artifical, e ordem social, entendida como harmonia na comunidade” (Emprego de Algemas – Notas em prol de sua regulamentação, in Inquérito Policial : Novas Tendências, p. 81). Refletindo, percebe-se que há uma boa diferença a marcar essas duas vertentes, surgindo a ordem pública - como realçava esse grande e saudoso processualista em suas palestras - como conceito impositivo, que não possui raízes na tranqüilidade e na harmonia sociais, mas sim na pretensão de produzi-las mediante expedientes de força, artificiais, restritivos, aptos a inviabilizar ações e a coibir posturas passíveis de ensejarem práticas criminosas, como, por exemplo, implantando-se toque de recolher, que hipoteticamente serviria para manter desordeiros afastados das ruas durante determinados períodos do dia ou da noite. Assim, por meio da limitação dos direitos de parte ou de todos os membros da coletividade, visa tornar inexeqüível a quebra da ordem legalmente estabelecida. 74 Deveras, não se pode deixar de reconhecer, com Sérgio Marcos de Moraes Pitombo, que “a polícia, enquanto judiciária, e o inquérito que ela faz , exsurgem administrativos, por sua atuação e forma, mas judiciários, nos seus fins” 130 . Como há muito cifrado por Masagão, ao Direito Administrativo somente pode interessar o estudo da polícia administrativa, eis que a polícia judiciária, conforme concebida originalmente, e segundo a autonomia que lhe foi idealizada e concedida pelo Código do Brumário, somente deveria atuar, e decerto no plano da colheita das provas, após o cometimento do crime, já então sob as normas do “direito judiciário penal”. 131 Curial a aceitação, pois, de conclusão extremamente símplice, condizente ao fato do Direito Administrativo se ostentar intrinsecamente falho ao realizar a tarefa de moldar a polícia judiciária, ao menos enquanto entendida, como neste trabalho, como função estatal jungida singularmente aos fins da Justiça Criminal, e que apenas suplementarmente se dedica à prestação de serviços ou à imposição de limitações à população. Ademais, sob esse ponto de vista, acresce entender a necessidade de seu distanciamento, com a desvinculação hierárquica, do Poder Executivo, sob pena de inquinamento, qual com profundidade trataremos no Capítulo 4, mediante abordagem puramente constitucional. Crê-se de bom alvitre, entretanto, desde este ponto proceder a desmistificação de determinadas crenças provindas de lições ministradas na órbita do telado ramo do Direito, a começar pelas caracterizações, certamente azadas em decorrência da mencionada e primitiva dicotomização legal, que projetam a polícia administrativa responsável por exercício de atividade preventiva, e a polícia judiciária incumbida do desempenho de função repressiva. Tal classificação, malgrado imprecisa, manteve-se em voga por bastante tempo, não deixando, ainda hoje, de merecer a atenção e os escólios de nossos 130 Arquivamento do Inquérito Policial – Sua Força e Efeito, in Inquérito Policial : Novas Tendências, p. 22. 131 MASAGÃO, Mário. Curso de Direito Administrativo, p. 191-192. 75 administrativistas, mesmo quando apenas para efeito de crítica. Eis a síntese promovida por José Cretella Júnior : A polícia administrativa tem por escopo impedir as infrações das leis (sendo nesta parte preventiva) e sustentar a ordem pública em cada lugar, bem como em toda a parte do reino (JUSTINO ANTÔNIO DE FREITAS, Instituições de Direito Administrativo Português, 2 a ed., 1861, p. 192); assegurar a ordem e segurança públicas, a proteção dos direitos concernentes à liberdade, à vida e à propriedade, e bem assim, a prevenção dos delitos, por meio de ordens e determinações conducentes a tal fim (MATOS DE VASCONCELOS, Direito Administrativo, 1936, vol. I, p. 224). À polícia administrativa ou preventiva incumbe, em geral, a vigilância, proteção da sociedade, manutenção da ordem e tranqüilidade pública, bem assim, assegurar os direitos individuais e auxiliar a execução de atos e decisões da Justiça e da Administração (MATOS DE VASCONCELOS, Direito Administrativo, 1936, vol. I, p. 225). 132 (...) A polícia judiciária é também denominada repressiva, nome que merece um reparo porque esse organismo não aplica apenas aos delitos, mas funciona como auxiliar do Poder Judiciário nesse mister. No mesmo sentido, escreve JUSTINO ANTONIO DE FREITAS : “Polícia judiciária é a que procura as provas dos crimes e contravenções e se emprenha em descobrir os seus autores, cujo caráter a torna por isso essencialmente repressiva” (Instituições de Direito Administrativo Português, 2 a ed., 1861, p. 192). 133 Com o passar tempo, mais e mais vozes foram se elevando para protestar contra a desatualização e a impropriedade dessa vetusta distinção, assim como para propor, em sentido inverso, a sua substituição por outras e divergentes segmentações, baseadas em critérios diversos. Di Pietro, de sua parte, alinha alguns desses novos arranjos, dentre os quais vale destacar aquele propugnado por Álvaro Lazzarini, que aduz “a linha de diferenciação” entre as polícias administrativa e judiciária situada “na ocorrência ou 132 Op. cit., p. 45. 133 Ibidem, p. 46. 76 não de ilícito penal”. Assim, “quando atua na área do ilícito puramente administrativo (preventiva ou repressivamente), a polícia é administrativa. Quando o ilícito penal é praticado, é a polícia judiciária que age”. 134 E mais ou menos nessa linha, aquela autora pontua : Outra diferença : a polícia judiciária é privativa de corporações especializadas (polícia civil e militar), enquanto a polícia administrativa se reparte entre diversos órgãos da Administração, incluindo a própria polícia militar, os vários órgãos de fiscalização, aos quais a lei atribua esse mister, como os que atuam nas áreas de saúde, educação, trabalho, previdência e assistência social. 135 Não se mantendo muito distante desse último raciocínio, mas também não abandonando a tradicional doutrina francesa, Cretella Júnior prega a existência, entre nós, de uma polícia que titula mista ou eclética, “que acumula ou exerce, sucessiva e simultaneamente, as duas funções, a preventiva e a repressiva, como é o caso da polícia brasileira, em que o mesmo órgão previne e reprime”. 136 Gasparini parece também perfilhar esse posicionamento, ensinando que “o exercício da polícia administrativa está disseminado pelos órgãos e agentes da Administração Pública, ao passo que o da polícia judiciária é privativode certo e determinado órgão (Secretaria da Segurança)”. 137 Sem embargo do pronto e pleno reconhecimento da proverbial autoridade dos citados tratadistas, cremos que a óptica da qual parecem comungar, porque fiel apenas às tímidas perspectivas do Direito Administrativo, não permite a escorreita identificação da forma, e ainda menos do conteúdo, que se impõe imperativos a propriamente consubstanciar a função policial judiciária, máxime no Estado Democrático de Direito. Com efeito, todas as teses encimadas, que miram a polícia em suas relações com a segurança pública, descrevem-na como atividade monolítica e indistinta, 134 Apud DI PIETRO, Maria Silvia Zanella. Direito Administrativo, p. 112. 135 Ibidem, p. 113. 136 CRETELLA JÚNIOR, José. Op. cit., p. 47. 137 GASPARINI, Diógenes. Direito Administrativo, p. 123. 77 sempre evidenciada a partir de aspectos francamente secundários, de ordem temporal e orgânica. Renunciam, desse modo, perscrutá-la tal como hoje efetivamente se apresenta, jurídica e faticamente, a compor um conjunto de diversificadas e inconfundíveis funções, explicitado pelo art. 144 da vigente Carta Magna. Aí se encontra insculpido quadro discriminatório de atividades que, incontestavelmente, não podem ser tomadas como únicas ou coincidentes, tocantes a cada órgão e corporação elencados, qual adiante destacado: § 1º A polícia federal, instituída por lei como órgão permanente, organizado e mantido pela União e estruturado em carreira, destina-se a: I - apurar infrações penais contra a ordem política e social ou em detrimento de bens, serviços e interesses da União ou de suas entidades autárquicas e empresas públicas, assim como outras infrações cuja prática tenha repercussão interestadual ou internacional e exija repressão uniforme, segundo se dispuser em lei; II - prevenir e reprimir o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, o contrabando e o descaminho, sem prejuízo da ação fazendária e de outros órgãos públicos nas respectivas áreas de competência; III - exercer as funções de polícia marítima, aeroportuária e de fronteiras; IV - exercer, com exclusividade, as funções de polícia judiciária da União. § 2º A polícia rodoviária federal, órgão permanente, organizado e mantido pela União e estruturado em carreira, destina-se, na forma da lei, ao patrulhamento ostensivo das rodovias federais." § 3º A polícia ferroviária federal, órgão permanente, organizado e mantido pela União e estruturado em carreira, destina-se, na forma da lei, ao patrulhamento ostensivo das ferrovias federais." § 4º - às polícias civis, dirigidas por delegados de polícia de carreira, incumbem, ressalvada a competência da União, as funções de polícia judiciária e a apuração de infrações penais, exceto as militares. § 5º - às polícias militares cabem a polícia ostensiva e a preservação da ordem pública; aos corpos de bombeiros militares, além das atribuições definidas em lei, incumbe a execução de atividades de defesa civil. 78 Parece claro, destarte, que não devem restar dúvidas sobre qual órgão ou corporação deve desenvolver essa ou aquela função policial, assim como não mais se pode admitir, em conformidade a pretensão de alguns, manifestadas no isolado âmbito do Direito Administrativo, que todas venham a se resumir na polícia judiciária. Aos adeptos de expedientes classificatórios parece melhor, à vista do transcrito texto da Lei Fundamental, e como já se faz corriqueiro, referir-se, como gênero, e perfazendo denominação temática, a uma polícia de segurança, conformada, no entanto, por particularizados órgãos e corporações, cada qual detentor de distintas funções. Em todo o caso, face às consignadas disposições constitucionais, certamente não se ostenta razoável asseverar, por exemplo, que à polícia ferroviária federal ou às polícias militares dos Estados impende o exercício das atividades de polícia judiciária, ou seja, como adiante será patenteado, de investigação criminal, tanto quanto deve se ter por despropositado desejar que as polícias civis estaduais se ocupem do patrulhamento ostensivo. Cumpre observar, ademais, que esse desconhecimento generalizado acerca da verdadeira polícia judiciária repousa, também, no fato que, entre nós, em tempo algum foi ela efetivamente implantada. Ou seja, nunca existiu, como atualmente continua inexistindo no Brasil - malgrado sua imprescindibilidade à depurada e eficiente realização de uma justiça criminal que possa ser qualificada como democrática - uma polícia investigativa, estritamente dedicada, em consonância à sua verdadeira especialização, ao esquadrinhamento das infrações penais, e a se configurar apenas num segundo plano proveitosa também à segurança pública (direito e responsabilidade de todos, ex vi art. 144, “caput”, CR). Essa realidade - fruto induvidoso da pouca intimidade brasileira com a democracia e seus valores - tem levado alguns exegetas a confusão, e daí a apontar como inerentes ao exercício policial judiciário determinadas ações, amiúde praticadas por órgãos e corporações integrantes da referida polícia de segurança, 79 exclusiva e constitucionalmente designados ao desempenho da polícia ostensiva e de preservação da ordem pública. Di Pietro, nessa conjuntura, arrola a apreensão de uma arma de fogo indevidamente utilizada ou ainda da licença do motorista infrator como exemplos da comezinha atuação repressiva 138 desses órgãos e corporações, que por essa razão ganhariam status policial judiciário. Nessa linha, Hely Lopes Meirelles afirmou que, “em circunstâncias excepcionais, pode a Polícia Militar desempenhar função de polícia judiciária”, circunscrevendo, porém, essa possibilidade, a determinadas ações de força, “tal como na perseguição e detenção de criminosos, apresentando-os à Polícia Civil para o devido inquérito a ser remetido, oportunamente à Justiça Criminal”. 139 Essencial, nessa vaza, ponderar que as mencionadas atividades, e até mesmo a prisão de alguém surpreendido em flagrante delito, bem podem ser ultimadas por qualquer cidadão, até mesmo, v.g., pela vítima, que em sua reação consegue desarmar e imobilizar o seu agressor, conduzindo-o, incontinenti, a presença da autoridade policial, para as providências de atribuição exclusiva dos órgãos constitucionalmente incumbidos do insofismável exercício policial judiciário . Denotam, pois, as focalizadas colocações, que a grande maioria daqueles que se mantém distantes da lida policial judiciária pouco consegue guardar além de uma pálida noção acerca do seu concreto desenvolvimento, costumando imaginar, com inelutável diletantismo, que as atividades investigativas sempre tem por elemento propulsor um fato incontroverso, sobejamente caracterizado - fática e juridicamente 138 Ressalte-se o erro que carrega a idéia de que mera atuação repressiva possa automaticamente impingir feição e natureza policial judiciária aos feitos da polícia administrativa. É cediço, consoante lições tiradas à saciedade do Direito Público, que a polícia administrativa também age repressivamente, qual precisamente aclara Carlos Ari Sundfeld : “Entre as competências da Administração ligadas aos condicionamentos de direito, insere-se a de repressão da sua inobservância. A atividade repressiva é veiculada por instrumentos com variada finalidade e intensidade. Dentre eles, devem-se distinguir três, especialmente relevantes : a) a ordem para correção de irregularidades; b) a medida cautelar; e c) a sanção” (Direito Administrativo Ordenador, p. 77). 139 MEIRELLES, Hely Lopes. Polícia de Manutenção da Ordem Pública e suas Atribuições, in Direito Administrativo da Ordem Pública, p. 92. Negrito não original. 80 - como crime, azando ilação fácil e inequívoca,lastreada por um abundante e induvidoso rol de provas. Longe, entrementes, acha-se essa suposição de se conformar minimamente com a realidade, uma vez que parte considerável das notitia criminis que chegam aos órgãos policiais judiciários dizem respeito a fatos por vezes até induvidosamente ilícitos, porém carentes de comprovação quanto à sua efetiva natureza, se civil ou criminal, como ocorre, e com grande freqüência, em face de casos permeados por hipotéticos descumprimentos de obrigações, normal e insistentemente interpretados como estelionatos e apropriações indébitas, mercê da tênue linha que demarca a fronteira das aludidas espécies. À polícia judiciária cabe, nesses e em tantos outros casos semelhantes - que refogem ao pouco criativo imaginário daqueles que se cingem à perquirição telescópica do seu rústico cotidiano -, laborar com vistas não à descoberta do autor dos fatos que se lhe são apresentados - invariavelmente de forma sintética e parcial por um irado reclamante -, mas, sim, e antes de mais nada, com o escopo de desvendar se esses fatos subsumem-se ou não a alguma hipótese delituosa. Toda essa intensa e especializada atividade investigativa, noutras vezes desencadeada à persecução da autoria de um crime já patenteado e/ou do aclaramento das circunstâncias em que foi cometido, revela-se como pesquisa de índole técnico-jurídica, totalmente balizada por preceitos processuais- constitucionais, e que, portanto, não pode ser confundida, mormente em termos de extensão, complexidade e importância, com breves e singelos atos de força, de caráter meramente dissuasório e emergencial, que fundem a breve práxis da polícia ostensiva e de preservação da ordem pública. Salta à vista, desse modo, que o exercício eventual, contido, circunstancial e limitado de certos e diminutos expedientes coativos, geralmente facultados a qualquer um do povo, e que se baldariam à míngua das hábeis, tempestivas e sentenciosas providências confirmatórias da exclusiva alçada da autoridade policial judiciária, devem necessariamente circunscrever-se tão-somente dentro das 81 expectativas de preservação da ordem pública, constituídas com vistas ao asseguramento do primado da ordem jurídica, que restaria ao desabrigo, condenado ao perecimento, se aqueles que a infringissem pudessem continuar o seu curso sem ser obstado por quaisquer corporações, órgãos ou agentes do Estado, quando em condições de faze-lo. Diogo de Figueiredo Moreira Neto, buscando bem diferenciar as polícias administrativa e judiciária, explica justamente que: (...) o uso da força pela Polícia Judiciária se volta à coação legal de pessoas singularmente consideradas (indiciados e acusados) absolutamente necessária à sua condução às barra dos tribunais, que faz a repressão a posteriori. O uso da força pela Polícia Administrativa, preventiva e repressivamente, se dirige contra a ação de pessoas, singularmente ou coletivamente consideradas, que, na prática de ações, criminais ou não, ocasionem perturbação da ordem pública, fazendo a repressão no momento em que ela ocorra, até restabelecê-la. 140 Não vai longe, ademais, o magistério de Celso Antonio Bandeira de Mello: O que efetivamente aparta polícia administrativa de polícia judiciária é que a primeira se dispõe unicamente a impedir ou paralisar atividades anti-sociais, enquanto a segunda se preordena à responsabilização dos violadores da ordem jurídica. Renato Alessi, sempre preciso, não desconheceu o caráter eventualmente repressivo da polícia administrativa e realçou seus vários traços ao defini-la como “a atividade administrativa preordenada à proteção do todo social e de suas partes, mediante uma ação, ora de observação, ora de prevenção, ora de repressão contra os danos que a elas poderiam ocorrer em razão da atividade dos indivíduos”. 141 Diante do todo exposto, parece inexorável o reconhecimento que consiste um enorme exagero procurar igualizar funções e atuações tão distintas como aquelas, de um lado, encomendadas à polícia ostensiva e de preservação da segurança pública, e de outro, cabíveis à polícia judiciária. À primeira somente cabe agir 140 MOREIRA NETO, Diego de Figueiredo. Direito Administrativo da Segurança Pública, in Direito Administrativo da Ordem Pública, p. 73. 141 BANDEIRA DE MELLO, Celso Antonio. Op. cit., p. 710. 82 esporadicamente após o crime, jamais com sentido investigatório, mas apenas, e de forma continengial, buscando o restabelecimento da ordem rompida, quando fática e temporalmente possível. Mesmo quando eventualmente chegar a colher um determinado elemento de prova (o que também pode ocorrer pelas guardas municipais, seguranças de um estabelecimento público ou privado etc.), não deixa de representar um minus, em nada comparável ao plus em que se assoma a atividade investigatória consolidada pela segunda no inquérito. A identifica-las, e quando muito, apenas a pertença a um mesmo gênero, qual seja o da polícia de segurança, que José Afonso da Silva assim delineia : A atividade da polícia realiza-se de vários modos, pelo que a polícia se distingue em administrativa e de segurança, esta compreende a polícia ostensiva e a polícia judiciária. A polícia administrativa tem “por objeto as limitações impostas a bens jurídicos individuais” (liberdade e propriedade). A polícia de segurança que, em sentido estrito, é a polícia ostensiva tem por objetivo a preservação da ordem pública e, pois, “as medidas preventivas que em sua prudência julga necessárias para evitar o dano ou o perigo para as pessoas”. Mas, apesar de toda vigilância, não é possível evitar o crime, sendo pois necessária a existência de um sistema que apure os fatos delituosos e cuide da perseguição aos seus agentes. Esse sistema envolve as atividades de investigação, de apuração das infrações penais, a indicação de sua autoria, assim como o processo judicial pertinente à punição do agente. É aí que entra a polícia judiciária, que tem por objetivo precisamente aquelas atividades de investigação, de apuração das infrações penais e de indicação de sua autoria, a fim de fornecer os elementos necessários ao Ministério Público em sua função repressiva das condutas criminosas, por via de ação penal pública. 142 Porém, sequer essa idéia nos agrada, já que se nos parece impositivo afastar da polícia judiciária, a bem de seus súperos objetivos, a responsabilidade direta pela realização da segurança pública, ou ainda pela execução de qualquer prestação inerente à função administrativa do Estado, pelas razões que adiante serão discorridas. 142 SILVA, José Afonso. Curso de Direito Constitucional Positivo, p. 754-755. 83 CAPÍTULO 2 – A EVOLUÇÃO ESTATAL COMO FATOR DETERMINANTE DA TRAJETÓRIA POLICIAL PELOS SÉCULOS 2.1. Considerações preliminares. Como natural consectário da exposição efetuada no capítulo anterior, dedicado integralmente à focalização e ao esquadrinhamento da polícia em seu desenvolvimento histórico, resta agora, a toda evidência, tacitamente patenteada a sua relação de plena imanência com o Estado. Imperioso, com esse sentido, reconhecer que se hoje soa comezinha a assertiva que a segurança da comunidade, enquanto condição da segurança individual, compreende “a razão de ser do Estado” 143 , a realidade antes dissecada demonstrou que a polícia, ainda que existente e presente, nem sempre funcionou com o intuito de concretizar tão importante sina. De há muito, como já visto, tem a polícia se apresentado, em praticamente todo o mundo, como a face mais visível e imperativa do Estado, ordenando e proibindo. De outra parte, como também já salientado, a sua ausência, e ainda a insuficiência ou a inadequação de suas prestações, exsurgem comoeloqüentes e inelutáveis indicativos da omissão ou mesmo da inépcia estatal. Porém, é exato e necessário frisar que, por conta disso tudo, tanto aqui como alhures, o termo polícia sempre encontra dificuldades para adquirir uma conotação positiva, feliz, para no mais das vezes potencialmente traduzir algo próximo a uma idéia de constrangimento, carreando particularmente à nossa população brasileira, não raras vezes, mais inquietação e medo que tranqüilidade e segurança. 143 FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Aspectos do direito constitucional contemporâneo, p. 148. 84 No que concerne aos porquês dessas graves dissonâncias, insta atentar diretamente para a diversidade de variáveis fáticas e notadamente políticas encontradas a permear, no tempo e no espaço, as diversas sociedades. Por óbvio que não poderia ser avistada em um Estado totalitário uma força policial talhada a proceder dentro de padrões peculiares aos Estados democráticos. Mesmo quanto a esses, e nessa mesma linha, expressivas variações de condutas poderão ser igualmente detectadas, bastando tomar-se como medida o efetivo grau de cidadania conquistado e vivenciado pelas respectivas populações. Antonio Beristain inclusive propõe: “dize-me que polícia tens e eu dir-te-ei que democracia alcançaste”. 144 Portanto, somente a rigorosa percepção dessa inquebrantável identificação entre Polícia e Estado é que permitirá a satisfatória compreensão dos motivos que determinaram a mencionada diversidade de formações, orientações, posturas e ações que até hoje caracterizam e distinguem essas forças, assim ao revelar a matriz eminentemente política das atividades jungidas à segurança pública e à justiça, enquanto inequívocas manifestações do poder estatal. Vale relembrar, dando melhor sentido à afirmação supra, o conceito weberiano de Estado, anotado por Bobbio como algo próximo a um “clichê da ciência política contemporânea”: “Por Estado deve-se entender uma empresa institucional de caráter político na qual – e na medida em que – o aparato administrativo leva adiante com sucesso uma pretensão de monopólio da força física legítima, tendo em vista a aplicação das disposições”. 145 Acresça-se, por derradeiro, que aqui a voz “política”, seguidamente utilizada, não se abre a qualquer acepção, devendo genuinamente exprimir, segundo a lapidar lição de Diogo de Figueiredo Moreira Neto, a atividade voltada a “impregnar axiologicamente o poder, orientá-lo na prossecução dos fins e estabelecer os meios para alcançá-los”. 146 144 BERISTAIN Antonio. Ética policial segun las Naciones Unidas, p. 24. 145 BOBBIO, Norberto. Teoria geral da política: a filosofia política e a lição dos clássicos, p. 165. 146 MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Teoria do poder (sistema de direito político: estudo juspolítico do poder, p. 28. Interessando a este estudo, prossegue o autor : “Ao Direito, por sua vez, 85 Não haveria a polícia, certamente, de destoar da configuração estatal geral, posto que, em todo tempo e lugar, seu aparecimento no cenário público a outro fim não se prestou além de tornar efetiva a “ordem” ditada pelos titulares do poder (um rei, um grupo, o povo). Portanto, constituída como o braço forte e armado do Estado, sempre teve seus movimentos – ora protegendo, ora agredindo, auxiliando ou sufocando, respeitando ou violando – controlados pela vontade política, segundo os valores circunstancialmente dominantes. Destarte, o conhecimento da alma policial impõe o prévio aclaramento do âmago estatal, sob o qual repousa aquela naturalmente imbricada. E ao deslinde dessa relação surge imprescindível uma breve incursão pela Ciência do Estado. 2.2. A gênese estatal. Informa Dalmo de Abreu Dallari 147 que, acerca do tema, triunfam nos dias correntes aquelas idéias que deduzem o Estado como produto da natural sociabilidade humana, na esteira da arguta conclusão de Aristóteles, que tinha o homem como um animal político. Com efeito, afirmava o eminente estagirita, e para além, que como tal devia o homem viver obrigatoriamente em sociedade, “e que aquele que, por instinto e não por inibição de qualquer circunstância, deixa de participar de uma cidade, é um ser vil ou superior ao homem”. 148 Porém, e de outra ponta, ressoam ainda bastante fortes, como admite o precitado autor pátrio, as idéias contratualistas que professam, através de várias vertentes, haver o Estado surgido de um pacto celebrado entre os homens, qual antevisto por Platão em sua “A República”, onde vislumbrara, por meio do olhar socrático, o Estado como uma construção social racionalmente erigida. 149 incumbe zelar para que isto suceda. E é na confluência constitucional que políticos e juristas se encontram, para poder dar ao poder do Estado sua feição positiva, construtiva e dignificadora” (p. 29). Nessa mesma linha, Bobbio afiança a existência “pelo menos de um fim mínimo da política: a ordem pública nas relações internas e a defesa da integridade nacional nas relações de um Estado com os outros Estados. Esse fim é mínimo, porque é a conditio sine qua non para a realização de todos os outros fins, sendo portanto com eles compatível”.Teoria geral da política: a filosofia política e a lição dos clássicos, p. 167. 147 DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de teoria geral do estado, p. 07 e ss. 148 ARISTÓTELES. Política, p. 14. 149 PLATÃO. A república, p. 55 e ss. Vide diálogo, nº 3691-e, entabulado entre Sócrates e Adimanto. 86 Bobbio afiança que o Estado, ainda na versão absolutista, sempre manteve sua base teórica enraizada nas doutrinas contratualistas, que em síntese fundamentavam o poder estatal num livre acordo realizado pelos homens, que num indeterminado período do seu desenvolvimento decidiram a criação do Estado moderno 150 . De fato, foram exatamente essas teorias que, na vaza do jusnaturalismo 151 , forneceram os argumentos decisivos ao sopesamento da legitimidade e da conseqüente limitação do poder estatal, mormente por reconhecer às partes pactuantes, e assim aos súditos e cidadãos, direitos inalienáveis, cuja contrapartida redundava em deveres governamentais, especialmente no que pertine ao respeito e a proteção aos direitos inatos a todos os membros do Estado Civil. 2.3. Os fins do Estado. Pontifica Bonavides que Kelsen, do alto de seu positivismo, proclamava a questão como imprópria a povoar as preocupações inerentes à Teoria do Estado, na 150 BOBBIO, Norberto. Direito e estado no pensamento de Emanuel Kant, p. 15 e ss. 151 Guido Fassò apresenta o Jusnaturalismo (Dicionário de Política, p. 655-660) como a doutrina “segundo a qual existe e pode ser conhecido um ‘direito natural’ (ius naturale), ou seja, um sistema de normas de conduta intersubjetiva diversa do sistema constituído pelas normas fixadas pelo Estado (direito positivo). Este Direito natural tem validade em si, é anterior e superior ao direito positivo e, em caso de conflito, é ele que deve prevalecer”. Acresce a essa explicação ainda, dois relevantes pontos: I - oposição do jusnaturalismo ao “positivismo jurídico”, como doutrina antiética, que reconhecendo que apenas o direito estabelecido pelo Estado possui validade, retira-lhe completamente qualquer fundamentação ética; II - a existência de diversas concepções jusnaturalistas, por vezes até mesmo conflitantes. Quanto às suas principais vertentes jurídico- políticas, destaca: a) “a de uma lei estabelecida por vontade da divindade e por esta revelada aos homens”; b) “a de uma lei ‘natural’ em sentido estrito, fisicamente co-natural a todos os seres animados à guisa de instinto”e, c) “a de uma lei ditada pela razão, específica, portanto, do homem, que a encontra autonomamente dentro de si”. Ao meio dessas disputas aflorou, com o calvinista holandês Hugo Grócio, em 1625, no célebre “De iure belli ac pacis”, a convicção que o direito natural (não sobrenatural) era ditado exclusivamente pela razão, “independente não só da vontade de Deus como também da própria existência”, servindo tal máxima como o marco de fundação do jusnaturalismo moderno. A esse direito, deveria o Direito Positivo adequar-se, sob pena de ser considerado ilegítimo, azando, em sentido contrário, o direito de desobediência e resistência aos seus destinatários. A característica mais marcante desse moderno naturalismo, já num passo adiante da pregação de Grócio, alude ao “aspecto subjetivo do direito natural, ou seja, os direitos inatos”, vindo a delinear “as doutrinas políticas de tendência individualista e liberal, expondo com firmeza a necessidade do respeito por parte da autoridade política daqueles que são declarados direitos inatos do indivíduo”. Firma-se, a esse ponto, a doutrina contratualista, afirmativa do Estado como organização política voltada exatamente a promover a perfeita tutela e garantia dos Direitos Naturais. Essa providência é que então, e somente, poderia legitimar a existência e atuação estatal, qual pactuado – entre súditos e soberano ou simplesmente entre homens – através do contrato social. As noções jusnaturalistas, dissonâncias e variações inclusas, povoam todos os conceitos de direitos inatos, estado de natureza e contrato social edificados durante os séculos XVII e XVIII. Nessa esteira, a doutrina do direito natural transformou a sociedade jurídica e política do período, podendo ser claramente entrevista, por exemplo, nos textos da Declaração de Independência dos Estados Unidos (1776) e da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão (1789). 87 medida que o ente estatal não podia ser encarado como um fim em si mesmo, mas sim como um meio para todos os fins sociais. Dessa forma concluiu Helfritz que mais adequado seria cuidar das tarefas do Estado, mutáveis, no dizer de Nelson, consoante as concepções vigentes em determinada época histórica. Portanto, enfatiza o autor, “caberia assim à Teoria do Estado averiguar tão-somente ‘quais os fins que, nesta ou naquela época, neste ou naquele Estado, efetivamente se buscaram’” 152 . Tais idéias, contudo, não foram compartilhadas pelos contratualistas, que já nas nascentes do jusnaturalismo, até Kant e Hegel, filiaram-se às teorias dos fins absolutos do Estado. Enquanto Grotius reportava-se ao “impulso social à convivência pacífica”, o qual remetia o indivíduo a vida estatal, Wolf destacava a busca da suficiência de vida, a tranqüilidade e a segurança como o móvel dessa empreitada. Hobbes justificava a existência estatal em face do medo do homem ao próprio homem – homo lupus hominis –, ao passo que Locke, assim como Rousseau, referiam-se à necessidade de proteção da propriedade. Kant, a sua vez, propugnava por um estado jurídico, cujo fim único era o de “estabelecer e manter a ordem jurídica”, através da qual deveria – como um “inspetor de quarteirão ou guarda de trânsito” na ótica de Bonavides – proteger o indivíduo contra a violência interna e externa. 153 Como é possível constatar, cada variante do pensamento contratualista tencionava identificar os reais motivos que teriam levado os homens à realização do pacto social, pois somente assim haveriam de desvendar seus termos e, conseqüentemente, a face, o caráter e a vocação estatais. A partir, destarte, da tipologia estatal que por tais vias se houve desenvolvida – e ainda sem descurar da equação formulada por Nelson – emerge plausível o delineamento da evolução policial na forma antes proposta. 152 BONAVIDES, Paulo. Teoria do Estado, p. 20. 153 Ibidem, p. 30-44. 88 2.4. Estado absoluto. A definir esse Estado, Souza Júnior suscita Jean Bodin e a obra “Os Seis Livros da República”, onde a doutrina da soberania alude a um “supremo poder sobre cidadãos e súditos não limitado pelas leis” 154 . Prossegue o autor demonstrando, através da dicção de Bodin, o Estado Absoluto como aquele que concentrava todo o poder nas mãos do monarca: [...] todas as derivações do monopólio legislativo, como decretar a guerra e tratar a paz; instituir magistrados e funcionários; julgar em última instância, outorgar graças aos condenados, cunhar moedas, suspender derramas e impostos, deveriam ser exercidas pelo titular do poder de dar e suprimir a lei”. 155 Em linha muito próxima, Thomas Hobbes também se ocupou da decomposição desse Estado: Tendo em vista conseguir a paz e através disso sua própria conservação, os homens criaram um homem artificial, ao qual chamamos Estado, assim também criaram cadeias artificiais, chamadas leis civis, as quais eles mesmos, mediante pactos mútuos, prenderam uma das pontas à boca daquele homem ou assembléia a quem confiaram o poder soberano e a outra ponto a seus próprios ouvidos. 156 Sobre o poder do soberano e os direitos dos súditos teorizou: Cedo e transfiro meu direito de governar a mim mesmo a este homem, ou a esta assembléia de homens, com a condição de que transfiras a ele teu direito, autorizando de maneira semelhante, todas as suas ações. Feito isso a multidão assim unida numa só pessoa se chama Estado, em latim civitas. Esta é a geração daquele enorme Leviatã, ou antes – com toda reverência – daquele Deus mortal, ao qual devemos, abaixo do Deus Imortal, nossa paz e defesa. [...] “É nele que consiste 154 Apud SOUZA JÚNIOR, Cezar Saldanha. O tribunal constitucional como poder: uma nova teoria da divisão dos poderes, p.36. 155 Ibidem, p. 36. De bom alvitre registrar que antes o autor já salientara a existência de um certo exagero da expressão “absoluto” que adjetivava o Estado histórico em questão. Pode explicar que o monarca, ao menos no Estado estamental, peculiar ao início do período “absolutista”, mantinha-se preso a uma série de “costumes, tradições, privilégios corporativos e territoriais, a influência temporal da Igreja, a Inquisição, que sobreviviam da época feudal” (p. 33-34). 156 HOBBES, Thomas. Leviatã ou matéria forma e poder de um estado eclesiástico e civil, p. 159. 89 a essência do Estado, que pode ser assim definida: ‘Uma grande multidão institui a uma pessoa, mediante pactos recíprocos uns com os outros, para em nome de cada um como autora, poder usar a força e os recursos de todos, da maneira que considerar conveniente, para assegurar a paz e a defesa comum’. Soberano é aquele que representa essa pessoa. Dele se diz que possui poder absoluto. Todos os outros são súditos. 157 [...] ignoram que as leis não tem poder algum de protege-los, se não houver uma arma nas mãos de um homem ou homens encarregados de por as leis em execução. A liberdade dos súditos, portanto, está apenas naquelas coisas que, ao regular suas ações, o soberano permitiu. [...] Já foi mostrado que nada que o soberano representante faça a um súdito pode, sob qualquer pretexto, ser propriamente chamado injustiça ou injúria. Cada súdito é autor de todos os atos praticados pelo soberano, de modo que a este nunca falta o direito seja ao que for, a não ser na medida em que ele próprio é súdito de Deus, e nesse sentido obrigado a respeitar as leis naturais”. 158 Hobbes, sustentando a ideologia absolutista sobre escora contratual, asseverava, assim, que os indivíduos, para a constituição do Estado, haviam renunciado voluntariamente, com base em um acordo recíproco, aos seus direitos em favor do soberano, a quem, portanto, deveriam, então, submeterem-se à margem de qualquer antagonismo. Em troca, tendo abandonado o estado de guerra inerenteà vida em natureza, recebiam a promessa de paz, somente concretizável no Estado Civil, em cujo seio passariam a gozar da proteção do monarca, segundo a ordem por ele unilateralmente estabelecida (governo dos homens). Nessa conjuntura, o trabalho policial resumir-se-ia ao cumprimento da vontade estatal, a sua feita totalmente contida nos desígnios reais. Em face de um soberano injusto, que somente haveria de instituir uma ordem igualmente destituída de justos predicados, os agentes da polícia real infalivelmente serviriam ao arbítrio. E mesmo quando assim não fosse, naturalmente tenderiam esses prepostos do príncipe a abusar dessa condição, qual inerente àqueles que detém o poder (como desde os gregos já fora assentado). Tomando por exemplo a Inglaterra, 157 Ibidem., p. 131. 158 Ibidem, p. 160. 90 precisamente por ser a pátria de Hobbes, vemos que foram exatamente esses abusos que levaram ao progressivo encolhimento da monarquia inglesa, subjugada pelos súditos, após séculos de lutas intentadas contra seus desmandos totalitários. 159 Ressalta, ademais, Damião da Cunha, que no âmbito da persecução criminal, o Estado Absoluto logo agasalhou o princípio inquisitivo, ensejando o fortalecimento do aparelho policial. Pondera que se é verdade que a investigação competia a um juiz, é igualmente certo afirmar que o magistrado, enquanto mero funcionário real, longe se encontrava de servir aos escopos de justiça, mas sim, e em consonância ao espírito da época e à própria essência estatal, empenhado em garantir, através do exercício do jus puniendi, a “boa-ordem” e o “bem-estar” da comunidade. Alude, nessa esteira, à “policiarização” do processo penal, emprestando a essa expressão conotação indiscutivelmente desfavorável, vinculada a “total administrativização da fase de investigação e das entidades dela encarregadas” 160 , e conseqüentemente a sua desvalia à realização da justiça. 2.5. O Estado de direito. Eis a lição de Duguit : Considerando o poder político fato legítimo, infere-se que as ordens desse poder são também legítimas quando se conformam com o direito; a par com isso, o emprego do constrangimento material pelo poder político é autêntico quando visa assegurar a sanção do direito. Nem uma entidade possui o direito de mandar nos outros sem que suas determinações se conformem com as normas do direito, seja 159 Lembra Bobbio (Direito e estado no pensamento de Emanuel Kant, p. 29-31) que, na realidade, a monarquia inglesa nunca conseguiu se caracterizar como absoluta, mesmo antes da Magna Carta, em 1215. Cortou suas últimas amarras com essa possibilidade quando derrotada na Revolução Gloriosa, iniciada em 1688. Pouco a pouco, o Estado inglês foi conformando-se como um Estado misto, acolhedor dos princípios monárquico, aristocrático e democrático (formas típicas de governo segundo Aristóteles). De fato, essas três forças conviviam no poder, por intermédio do rei e das câmaras alta e baixa. Assim, não havia apenas um órgão soberano, mas três órgãos a partilhar o poder. Ademais, a divisão do poder na Inglaterra guardava outra particularidade, posto que além do poder de governo sempre existiu naquelas plagas o poder jurisdicional, que controlava o primeiro, não em sua ação política, mas em seu relacionamento com os cidadãos, protegidos pelo common law (by law of the land). Assim, o direito comum, para muito além de natural, era verdadeiro direito positivo, garantido e protegido no próprio interior do ordenamento jurídico, a gerar, segundo a dicção de José Afonso da Silva (Curso de direito constitucional positivo, p. 152), “os fundamentos da ordem jurídica democrática do povo inglês”. 160 DAMIÃO DA CUNHA, José Manuel. O ministério público e os órgãos de polícia criminal, pp. 26-30. 91 esta entidade um rei, um parlamento, um imperador, ou uma assembléia popular. Portanto, a discussão acerca do fim a que se destina o Estado, ou poder político, pode ser esclarecida considerando-se que o poder político tem por fim realizar o direito, comprometendo-se em virtude do direito, a realizar tudo o que estiver ao seu alcance para assegurar o reino do direito. O Estado fundamenta-se na força, e esta força legitima-se quando exercida em conformidade com o direito. 161 Fundado com a precípua intenção de servir de antídoto a qualquer pretensão de concentração do poder, o Estado de Direito soergueu-se sobre três postulados básicos, a saber : I) submissão ao império da lei (considerada como expressão da vontade geral reconhecida pelo Poder Legislativo); II) separação dos poderes; e, III) enunciado e garantia dos direitos individuais. 162 Se, por um lado, o seu surgimento deve ser comemorado, tanto por patrocinar o fim da acumulação do poder no âmbito estatal, quanto por equacionar um “governo das leis” em substituição ao antigo e opressor “governo dos homens”, por outro, se faz suscetível à crítica, mercê da imprecisão peculiar ao termo “direito”, o qual, sendo capaz de incorporar as mais diversas concepções, acaba por tornar corolária e inexoravelmente ambígua a vocação do Estado, assim qualificado. Recorrendo-se, por exemplo, ao conceito apenas formal de direito, ter-se-á simplesmente configurado um Estado Legislativo ou Legal, passível de servir a toda sorte de propósitos, inclusive àqueles, como a história registra, de índole paradoxalmente ditatorial. 163 O Estado de Direito, portanto, deverá ser estudado a lume da idéia nuclear sobre o conteúdo e a função do direito predominante em um determinado momento histórico, na forma adiante delineada. 161 DUGUIT, Leon. Fundamentos do direito, p. 51. Ressalta mais à frente esse autor sua crença “que o Estado jamais poderá elaborar uma lei que atente contra direitos particulares naturais. A sua intervenção consiste, pela lei, em restringir os direitos de cada um, visando o equilíbrio da manutenção dos direitos de todas as pessoas” (p. 60-61). 162 SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. Op. cit., p. 112. 163 DUGUIT, Leon. Op.. cit., p. 113-114. Bonavides comenta, que o regime burguês primeiro serviu-se do direito natural para derrotar o absolutismo real, e depois do direito positivo para manter sua hegemonia (Teoria do Estado. Op. cit., p. 224). 92 2.5.1. Estado Liberal de Direito. Pontua Manoel Gonçalves Ferreira Filho, que no século XVIII, “a idéia de direito que então se generalizava, e que inspira as revoluções americana e francesa, é tão marcada pela preocupação com a liberdade, que se tornou conhecida como ‘liberal’”. 164 O Estado Liberal teve em John Locke seu principal formulador. A sua doutrina política contempla o estado civil como uma continuidade do estado natural, no qual o homem ingressa sem necessidade de renunciar a qualquer dos seus direitos inatos 165 , diversamente do que afirmava Hobbes. A existência do estado civil, aliás, somente podia ser justificada e legitimada pela garantia da proteção desses direitos fundamentais. Como representante típico do Estado burguês reconhecia a propriedade como um direito natural, cuja aquisição independia do estado civil, mas sim e apenas do trabalho (concepção contestada à vista da insolúvel questão referente ao trabalho desenvolvido justamente em “propriedade” alheia). Proclamava Locke: A liberdade natural do homem nada mais é que não estar sujeito a qualquer poder terreno, e não submetido à vontade ou à autoridade legislativa do homem, tendo como única regra apenas a lei da natureza. A liberdade do indivíduo na sociedade não deve estar subordinada a qualquer poder legislativo que não aquele estabelecido pelo consentimento da comunidade, nem sob o domínio de qualquer vontade ou restrição de qualquerlei, a não ser aquela promulgada por tal legislativo conforme o crédito que lhe foi confiado. 166 [...] O homem nasce com direito à perfeita liberdade e gozo ilimitado de todos os direitos e privilégios da lei da natureza, tanto quanto qualquer homem ou grupo de homens, e tem, nessa natureza, o direito não só de preservar sua propriedade – isto é, a vida, a liberdade e as posses – contra os danos e ataques de outros homens, mas também de julgar e punir a 164 FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Estado de direito e constituição, p. 1. 165 A Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789, dispunha já em seu art. 1 o : “O fim da sociedade é a felicidade comum. O governo é instituído para garantir ao homem o gozo desses direitos naturais e imprescritíveis”. 166 LOCKE, John. Segundo tratado sobre o governo, p. 35. 93 infração dessas leis pelos outros […] contudo, uma vez que uma sociedade política não pode existir nem manter-se sem ter em si o poder de preservar a propriedade e, para isso punir as ofensas cometidas contra qualquer dos seus membros, só podemos afirmar que há sociedade política quando cada um dos membros abrir mão do próprio direito natural transferindo-o à comunidade, em todos os casos passíveis de recursos à proteção da lei por ela estabelecida. E assim, excluído o julgamento privado de cada cidadão particular, a comunidade torna-se árbitro em virtude de regras fixas estabelecidas. 167 O único modo legítimo pelo qual alguém abre mão de sua liberdade natural e assume laços da sociedade civil consiste no acordo com outras pessoas para se juntar e unir-se em comunidade, para viverem com segurança, conforto e paz umas com as outras, com a garantia de gozar de suas posses, e de maior proteção contra quem não faça parte dela. 168 O maior e principal objetivo, portanto, dos homens se reunirem em comunidades, aceitando um governo comum, é a preservação da propriedade. 169 A liberdade burguesa, contudo, não ia além de uma liberdade negativa, ou seja, consistia apenas na “possibilidade de agir sem ser impedido, ou de não agir sem ser obrigado, por outros sujeitos” 170 , e especialmente pelo Estado. Afora isso, essa primeira versão de Estado de Direito jamais revelou qualquer preocupação emancipatória, emergindo, ao contrário, absolutamente discriminatória, pontuando Silva que o próprio “mandato representativo é criação do Estado liberal burguês, ainda como um dos meios de manter distintos sociedade e Estado, e mais uma forma de tornar abstrata a relação governo-povo”. 171 167 Ibidem, p. 69. 168 Ibidem, p. 76. 169 Ibidem, p. 92. 170 BOBBIO, Norberto. Igualdade e liberdade, p. 48.Esclarece o autor que a essa forma se contrapõe a denominada liberdade positiva, isto é, condizente com a capacidade do indivíduo de autodeterminar-se, e assim agir conforme o seu próprio querer, mirando um objetivo próprio, que não lhe foi imposto por terceiro. Trata-se, pois, de verdadeira “autonomia”, delineada por Rousseau, no Contrato Social : princípios de direito político, como “a obediência às leis que prescrevemos para nós” (p. 51-52). 171 SILVA, José Afonso. Curso de Direito Constitucional Positivo, p 139. Reforça-o Paulo Bonavides : “O Abade de Sieyés, menos um epígono do que uma coluna de sustentação do sistema representativo, fora mais autêntico na defesa desse sistema, porquanto quase lhe retirava o caráter democrático ao asseverar, passional, que, se os cidadãos ditassem sua vontade, já não se trataria de Estado representativo, mas de Estado democrático” (A constituição aberta, p. 25-26). 94 Anote-se, por último, a tese insofismavelmente aristocrática propalada por Montesquieu, que ditava ao povo grande excelência para a escolha de representantes, mas nenhuma capacidade para governar. 172 Fica patente, dessa forma, que na sociedade liberal, a igualdade sofria, na prática, uma verdadeira desconsideração, permanecendo, e quando muito, reverenciada apenas no plano dos discursos. Comenta Celso Ribeiro Bastos que os burgueses almejavam o máximo de bem-estar com a menor presença possível do Estado 173 . Dele se esperava somente a organização do exército, para a proteção contra o inimigo alienígena, e a garantia da tranqüilidade interna, através da polícia e do judiciário, incumbidos de aplicar as leis. 174 À polícia, nessa conjuntura, cabia a defesa da liberdade, porém, como assevera Dallari, exclusivamente da “liberdade do rico, da liberdade de quem tinha patrimônio”, que era quem única e efetivamente contava nessa incipiente sociedade liberal. A polícia devia conter os pobres, aqueles que teoricamente desejavam ou poderiam aspirar a possuir o patrimônio depositado nas mãos dos ricos. A única matéria-prima policial compreendia, destarte, a escória, ou seja, a parte mais desprezível da sociedade, a turba, a massa chula e faminta de sans-culottes, já completamente afastadas da vida política e econômica no estado liberal. Prossegue esse autor : “A Polícia era coisa para usar contra pobres … Por que é que precisa ser boa ? Para isso qualquer coisa serve. O importante é que ela reprima”. 175 2.5.2. O Estado Social de Direito. 172 MONTESQUIEU. O espírito das leis, p. 85-87 173 Conforme a famosa máxima: “Deixai fazer, deixai passar, o mundo caminha por si só” (Laissez faire, laissez passer, lê monde va de lui-même). 174 BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de teoria do estado e ciência política, p. 68-70. Assinala o autor que o Estado assumia-se absolutamente neutro do ponto de vista moral, acreditando até que “o jogo dos diversos egoísmos produziria o bem-estar coletivo”. 175 DALLARI, Dalmo de Abreu. Polícia e as garantias de liberdade, p. 40. 95 Ao encerrar o Livro I da sua principal obra, “O Contrato Social”, Rousseau fez questão de consignar que a busca da igualdade devia “servir de base a todo o sistema social” contratualmente fundado, declarando: Em vez de destruir a igualdade natural, o pacto fundamental substitui, ao contrário, por uma igualdade moral e legítima aquilo que a natureza poderia trazer de desigualdade física entre os homens, e, podendo ser desiguais em força ou talento, todos se tornam iguais por convenção e de direito. 176 Depois, e através de nota de rodapé, explicitou: Sob os maus governos, essa igualdade é apenas aparente e ilusória: serve somente para manter o pobre em sua miséria e o rico em sua usurpação. Na realidade, as leis são sempre úteis aos que possuem e prejudiciais aos que nada tem. Donde se segue que o estado social só é vantajoso aos homens na medida em que todos têm alguma coisa e nenhum tem demais. A verdade é que as caudais frustrações geradas pela absoluta falta de correspondência entre as promessas de justiça e prosperidade formuladas pelas doutrinas liberais e as práticas dos regimes afins azaram múltiplas e, por vezes, até ferozes reações populares. Com efeito, um grave quadro de deterioração social, provocado pelos efeitos da aliança firmada pelo Estado liberal com o capitalismo, reinava na Europa e também nos EUA. Esse sistema, que deitava suas raízes na revolução industrial, levava à concentração das riquezas produzidas nas mãos de poucos empresários ou da burguesia. A classe trabalhadora permanecia, tal como estivera sob o absolutismo, mergulhada numa situação de penúria, espremida entre o desemprego e os baixos salários. Nas fábricas e minas, eram péssimas as condições de trabalho, labutando os operários, e entre eles mulheres e crianças, em condições no mais das vezes insalubres e perigosas. Como natural conseqüência, afloraram, entre tais desafortunados, movimentos de hostilidade dirigidos contra os ricos e poderosos, dentrodo contexto 176 ROUSSEAU, Jean-Jacques. O contrato social: princípios de direito político, p. 29-30. 96 marxista da luta de classes, com episódios revolucionários, de recrutamento de ativistas a terroristas. A funcionar como um paliativo diante dessa cada vez mais efervescente situação, foram sendo paulatinamente concedidos direitos políticos a parcelas cada vez maiores da população desfavorecida. Diante desses novos cidadãos-eleitores, os políticos passaram a acenar com as reformas necessárias a melhoria da vida da classe proletária. De fato, à solução do impasse gerado pela insensibilidade burguesa não havia mais do que duas opções: a reconstrução social, defendida pelo positivismo, pelo socialismo democrático e pelo cristianismo social, ou a revolução, pregada por Marx e seus seguidores, com a extinção das classes exploradoras. 177 “Para enfrentar essa maré social”, comenta José Afonso da Silva, o Estado de Direito - “que já não podia justificar-se como liberal”, mas que prosseguia fiel ao “primado do Direito” – assumiu a forma de Estado Social de Direito, prometendo a “correção do individualismo clássico liberal pela afirmação dos chamados direitos sociais e realização de objetivos de justiça social”. 178 Salienta, porém, esse autor que, historicamente, o Estado Social de Direito nunca foi capaz de promover a justiça social, também jamais tendo alcançado, de outra parte, melhor êxito no que tange ao exercício democrático do poder. Os inúmeros entendimentos possíveis acerca do significado do termo “social”, bem como a dificuldade de se uniformizar a compreensão a respeito das condições que serviriam a genuinamente caracterizar tanto a “justiça” quanto o “bem-estar” àqueles jungidos, ensejaram o aparecimento de Estados que, nada obstante apresentando-se completamente díspares, irrogavam-se a versada qualificação, dentre os quais, e.g., fulguraram, de um lado a Alemanha nazista, a Itália fascista e o Brasil getulista e, de outro, a Inglaterra de Churchill. 179 177 FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Direitos humanos fundamentais, p. 41-45. 178 SILVA, José Afonso da. In Curso de Direito Constitucional Positivo, p. 115. Citação de Elías Días, in Estado de derecho y sociedade democrática, p. 29 e ss. 179 Ibidem, p. 116 e 118. 97 Essa observável tendência de maior identificação do estado social com regimes nitidamente totalitários pôde ser melhor entendida à vista de dois motivos em especial : I) aos moldes do que antes ocorrera no liberalismo em prol da liberdade, o igualitarismo conferiu à igualdade supremacia em relação a todo e qualquer outro valor. A busca e a conquista da igualdade, nesse diapasão, justificariam, por si só, o eventual sacrifício de outros valores que, nessa focalizada escala, ostentam-se menores e secundários, qual historicamente verificado em relação à liberdade individual; e, II) à realização de seus propósitos igualitários, anota Bonavides, o estado social fez do intervencionismo a sua marca registrada 180 . Daí sua instintiva inclinação, mercê da natureza potestativa dessa atividade, ao autoritarismo. É induvidoso, nessa conjuntura, que se porventura exercida fora de certos limites, a intervenção converter-se-ia automaticamente em instrumento de opressão, ferindo, logo em primeiro plano, a liberdade. Num Estado assim configurado a polícia haveria de se revelar inevitavelmente arbitrária, pautando-se pelo desprezo institucional e generalizadamente devotado aos direitos humanos fundamentais. Eis o procedimento comum às temíveis e violentas polícias nazista e fascista e, no Brasil, à polícia getulista, cujos compromissos com as respectivas, e nada democráticas, ordens estatais, levavam, aos moldes antevistos, à repressão daqueles que a elas ousavam de qualquer forma se opor, ainda que no plano do pensamento. 2.5.3. O Estado Democrático de Direito. Diretamente dimanadas dos abusos perpetrados em nome da igualdade e da justiça, as ondas de tensão e de violência irradiadas daqueles Estados nominalmente sociais não tardaram a irromper no âmbito internacional. O mundo convulsionado, ideologicamente esgarçado, foi à guerra. Uma vez cessados os combates, teve início a reconstrução da paz, perseguida pela incipiente Organização das Nações Unidas, como objetivo sólido e perene. Em 1948, como parte da estratégia e dos esforços 180 BONAVIDES, Paulo. Teoria do Estado, p. 227. 98 encetados nesse afã, a Declaração Universal dos Direitos do Homem 181 apresentou a democracia como “a única solução legítima para a organização do Estado”. Com efeito, como prossegue Comparato, focalizando os arts. XXI e XXIX, alínea 2, desse documento, apenas esse regime político pode ser reconhecido como capaz de garantir o pleno respeito aos direitos fundamentais da pessoa humana, promovendo e conservando a dignidade que se lhe apresenta intrínseca 182 . Muito embora boa parte do seu texto tenha apenas repetido disposições já ínsitas em outras declarações que a precederam no tempo, esse diploma trouxe, na óptica de Bobbio, uma decisiva novidade, relacionada ao “âmbito de validade de suas disposições”: os direitos naturais reconhecidos enfim pela Assembléia Geral das Nações Unidas, isto é, pelo mais alto órgão representativo da comunidade internacional, tendem a ser protegidos não apenas no âmbito do Estado, mas também contra o próprio Estado, vale dizer, tendem a uma proteção que podemos considerar de segundo grau, a qual deveria entrar em funcionamento a partir do momento em que o Estado falhasse em suas obrigações constitucionais para com seus sujeitos. 183 A partir daí, a bandeira internacionalmente desfraldada na luta em favor dos direitos humanos, e contrariamente a todas as formas de opressão, passou a ostentar o colorido democrático, que à sua vez, e ainda na dicção desse grande publicista italiano, firmou-se como “uma antítese de todas as formas autocráticas de poder” 184 . É exatamente com base na lição desse notável jusfilósofo que Canotilho proclama: 181 Aprovada pela Assembléia Geral, à guisa de recomendação (consoante o disposto no art. 10 da Carta das Nações Unidas), na sessão de 10 de dezembro. 182 COMPARATO, Fábio Konder. A afirmação histórica dos direitos humanos, p. 234. 183 BOBBIO, Norberto. In Teoria Geral da Política, p. 485. Imperioso abrir espaço, contudo, à advertência de Bonavides: “A Declaração Universal dos Direitos do Homem é o estatuto de liberdade de todos os povos, a Constituição das Nações Unidas, a carta magna das minorias oprimidas, o código das nacionalidades, a esperança, enfim, de promover, sem distinção de raça, sexo e religião, o respeito à dignidade do ser humano. A Declaração será porém um texto meramente romântico de bons propósitos e louvável retórica, se os países signatários da Carta não se aparelharem de meios e órgãos com que cumprir as regras estabelecidas naquele documento de proteção dos direitos fundamentais e sobretudo produzir uma consciência nacional de que tais direitos são invioláveis” (Curso de direito constitucional, p. 531). 184 Ibidem, p. 387. Bobbio lembra, ademais, que até hoje não se tem registro de uma guerra entre dois estados dirigidos por regimes democráticos. E mais: “Existem democracias mais sólidas e menos sólidas, mais invulneráveis e mais vulneráveis, existem diversos graus de aproximação com o modelo ideal, mas mesmo a democracia mais distante do modelo não pode ser de modo algum confundida com um estado autocrático e menos ainda com um totalitário”. O futuro da democracia (uma defesa das regras do jogo), p. 37-38. 99 A democracia distingui-se de todas as formas de governos autocráticos porque secaracteriza por um sistema de regras, primárias e fundamentais que estabelecem: (1) quem está autorizado a tomar decisões colectivas; (2) quais os processos para essa tomada de decisões. De um modo mais informativo, uma decisão mínima de democracia implica: (a) participação de um número tão elevado de cidadãos quanto possível; (b) regra da maioria para a tomada de decisões colectivas e vinculantes; (c) existência de alternativas reais e sérias que permitam opções aos cidadãos de escolher entre governantes e programas políticos; (d) garantia de direitos de liberdades e participação políticas. Esses requisitos mínimos estão reunidos no estado de direito democrático. 185 (Sic) Como precisamente pontua Vieira, a contenção do arbítrio estatal, no contexto democrático, é operada não apenas pela participação política dos cidadãos no jogo do poder, mas, também, graças às “garantias jurídicas efetivas” que permitem, em face do resguardo dos direitos e das liberdades fundamentais, que esse mesmo jogo seja realmente disputado, transcorrendo, o máximo possível, limpo e interessante 186 . Ainda com maior exatidão, Comparato resume a democracia a uma simples e eficaz equação: soberania popular + respeito aos direitos humanos. 187 Congregando todos esses convergentes entendimentos concluiu Silva que a democracia é “meio e instrumento de realização de valores essenciais de convivência humana, que se traduzem nos direitos fundamentais do homem” 188 . 185 CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição, p. 1324. 186 VIEIRA, Oscar Vilhena. A violação sistemática dos direitos humanos como limite à consolidação do estado de direito no Brasil. In DI GIORGI, Beatriz et al (Coords.) Direito, cidadania e justiça: ensaios sobre lógica, interpretação, teoria, sociologia e filosofia jurídicas, p. 189. 187 COMPARATO, Fábio Konder. A polícia e a ética na segurança pública, p. 94. Ressalta, porém, “a democracia que seja só soberania popular pode descambar para a tirania da maioria, que pode ser (e geralmente é) a mais cruenta das tiranias”. 188 SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo, p. 125. De fato, a democracia colima a realização fundamental e harmoniosa dos valores da liberdade e da igualdade, jamais concretizada pelos Estados Liberal e Social. É o que afirma Bobbio: “Liberdade e igualdade são os valores que servem de fundamento à democracia”. Completa ponderando que “a democracia é não tanto uma sociedade de livres e iguais (porque, como se disse, tal sociedade é apenas um ideal-limite), mas uma sociedade regulada de tal modo que os indivíduos que a compõe são mais livres e iguais do que em qualquer outra forma de convivência” (Liberdade e igualdade, p. 8). Aléxis de Tocqueville já bem o dissera: “Pode-se imaginar que todos os cidadãos participam do governo e que cada um deles tem igual direito de participar. Ao não diferir em absoluto dos demais, ninguém pode exercer um poder tirânico; os homens serão perfeitamente livres 100 O Estado de Direito, portanto, quando impregnado de sentido e conteúdo democráticos, abandona sua antiga e criticada postura neutral 189 para se tornar, segundo leciona esse autor, promotor e garante “de um processo de convivência social numa sociedade justa, livre e solidária (...) de um processo de liberação da pessoa humana das formas de opressão que não depende apenas do reconhecimento formal de certos direitos individuais, políticos e sociais, mas especialmente da vigência de condições econômicas suscetíveis de favorecer o seu pleno exercício”. 190 Assim, o Estado Democrático de Direito faz entranhar os valores da democracia – que na dignidade da pessoa humana tem o seu ponto mais alto e de convergência – em todos os elementos conformadores do Estado, dentre os quais se destacam, em consonância ao interesse deste trabalho, a sua ordem jurídica e os seus organismos policiais, que nesse diapasão aparecem absolutamente vinculados na medida em que a legitimidade da atuação policial repousará exclusivamente no exercício: I – levado a efeito em plena conformidade com uma ordem jurídica fulcrada no princípio democrático, e, dessarte, absolutamente comprometida com os direitos fundamentais; II – destinado, única e inalienavelmente, a assegurar a realização desse Direito democrático. Adverte Dallari, que a ordem jurídica somente poderá ser genuinamente democrática quando servir como um instrumento assecuratório da paz entre porque são completamente iguais, e serão perfeitamente iguais porque são completamente livres. Pois bem, tal o ideal a que tendem os povos democráticos” (Igualdade social e liberdade política, p.103). 189 Afirma Celso Ribeiro Bastos: “Diferentemente do Estado de Direito – que, no dizer de Otto Mayer, é o direito administrativo bem ordenado – no Estado Democrático importa saber a que as normas o Estado e o próprio cidadão estão submetidos. Portanto, no entendimento de Estado Democrático devem ser levados em conta perseguir certos fins, guiando-se por certos valores, o que não ocorre de forma tão explícita no Estado de Direito, que se resume em submeter-se às leis, sejam elas quais forem”. Curso de direito constitucional, p. 157. 190 SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo, p. 119-120. O autor, fazendo coro com Canotilho, estrutura o Estado Democrático de Direito sobre os seguintes princípios: da constitucionalidade, referente à irrestrita subordinação do exercício do poder à Constituição rígida e reflexa, à vontade popular; democrático, alusivo à implantação de sistema representativo, participativo e sempre pluralista, como “garantia geral da vigência e eficácia dos direitos fundamentais”; sistema de direitos fundamentais, a saber: individuais, coletivos, sociais e culturais; da justiça social, a alicerçar a ordem econômica e a ordem social; da igualdade, da divisão dos poderes e da independência do juiz; da legalidade e da segurança jurídica (p. 122). 101 “pessoas livres e essencialmente iguais” 191 . Tal ordem, nesse passo, exsurge como “um fator de segurança”, e deve, como pontifica Comparato, proteger os indivíduos e a sociedade “contra os abusos do poder político, contra os crimes dos malfeitores particulares, contra os riscos naturais de acidentes em geral, contra os riscos sociais da ignorância, de doença, de desemprego e de miséria” 192 . E a toda essa gama de atividades, emenda, reclama-se hodiernamente a presença e a firme atuação policial. Assevera Molina, nessa medida, que descabe à polícia ocupar-se apenas do crime, ao mesmo tempo que hoje descabe à sociedade considerá-lo como um tema de interesse exclusivo da polícia. 193 Em resumo, deverá a Polícia, no Estado Democrático, fazer-se efetiva na defesa e na ultimação da dignidade da pessoa humana, não mais podendo, qual se lhe apresentou histórico e comum aos Estados absoluto, liberal e social, servir só e cegamente aos detentores do poder, auspiciando, com a força, os interesses isolados e assim ilegítimos dos grupos momentaneamente dominantes. Particularmente, no que tange à contenção da criminalidade, o grande desafio dessa polícia democrática, como tantas vezes já se proclamou, consiste em sobrepujar o delito sem cometê-lo, ou seja, preservando os direitos de todos aqueles suspeitos de havê-lo perpetrado. É o desafio da eficiência – entendida como uma obrigação de meios e não de resultado (eficácia) – que no Estado de Direito somente haverá de ser reconhecida quando conjugada com a legalidade 194 , já no Estado Democrático de Direito, quando permeada de legitimidade 195 . Ou, como afiança Hassemer:191 Op. cit., p. 47. 192 Op. cit., p. 97. 193 MOLINA, Antonio Garcia-Pablos de. Polícia e Criminalidade no Estado de Direito, .p. 275. 194 Vide a respeito O Princípio da Eficiência no Direito Administrativo, de Antonio Carlos Cintra do Amaral. 195 Atinando para as ciências políticas, De Plácido e Silva (op. cit.) apresenta a legitimidade como qualidade necessária a tornar válida a atuação estatal em face dos cidadãos. José Afonso da Silva, à sua vez, prende a noção de legitimidade à idéia de ordem justa, constituída pelos valores necessários à “existência de uma sociedade livre”, que permeando a legalidade haverão de torna-la, para muito além de seu aspecto formal, instrumento de “realização das condições necessárias para o desenvolvimento da dignidade humana” (op. cit., p. 423). Sobre as contínuas tentativas de volatização desse conceito – abandonando-se a crença na legalidade em favor de uma legalidade sem crença - auspiciadas pelo formalismo jurídico e sob a premência do 102 Não existe nenhum tipo de “igualdade de armas” entre a criminalidade e o Estado que a combate, no sentido de uma permissão aos órgãos estatais para utilizar todos os meios que se encontram ao alcance dos criminosos. O Estado necessita, também em face da população, de uma prevalência moral sobre o delito, que não seja apenas fundamentada normativamente mas que também atue de maneira prático-simbólica. O Estado não deve utilizar métodos criminosos já que perderia essa prevalência e com isso, e a longo prazo, poria em perigo a credibilidade e a confiança da população na ordem jurídica estatal. 196 Tal advertência certamente serve, e até em tom de admoestação, ao Estado Democrático de Direito brasileiro, esse novo e ainda ilustre desconhecido, como a sua própria prática policial insiste em brutalmente afiançar. procedimentalismo sociológico, vide Paulo Bonavides em “A Despolitização da Legitimidade” (A Constituição Aberta, pp. 33-51) 196 HASSEMER, Winfried. Limites del estado de derecho para el combate contra la criminalidade organizada, p. 29. 103 CAPÍTULO 3 - O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO BRASILEIRO, A REALIDADE NACIONAL E O PAPEL RESERVADO À POLÍCIA 3.1. Antelóquio. Em 5 de outubro de 1988, foi promulgada a sétima Constituição brasileira, saudada com o alvissareiro título de “cidadã”, pelo presidente da Assembléia Nacional Constituinte, o deputado Ulysses Guimarães, que com seu peculiar e contagioso otimismo, atribui-lhe um papel inédito na história pátria: o de introduzir “o homem no Estado, fazendo-o credor de direitos e serviços” 197 . Discursando, nessa mesma ocasião, Afonso Arinos também apontou para o futuro, afiançando que a aplicabilidade do texto constitucional aprovado dependeria, “paradoxalmente, da sua aplicação” 198 . A verdade é que a nossa mais nova Constituição já nasceu sob o signo da controvérsia. Mesmo antes de adotada, já suportara o ataque do Presidente da República, que perante a nação declarou-a um risco, prenunciando, e em tom profético, a falência do sistema de seguridade social, a inconseqüente majoração dos gastos públicos, o reinício da guerra fiscal entre os Estados, a desorganização do serviço público, dentre outros malefícios de próxima magnitude. Bradou-a, enfim, esteio da ingovernabilidade, “a chave de frustração para 30 milhões de brasileiros que vivem na pobreza absoluta”. E uma vez mais vaticinou: “muitas categorias podem julgar-se aquinhoadas na Constituição, mas, no fim, não terão condições de receber o que lhes prometeram” 199 . 197 Apud BONAVIDES & ANDRADE. Op. cit., p. 922. 198 Ibidem, p. 927. 199 Ibidem , p. 915. Discurso do Presidente José Sarney à nação, em 26.7.1988. 104 Incontinenti veio a resposta de Ulysses Guimarães. Metafórica, aludindo aos heróicos navegantes lusos de outrora, que destemidamente singraram os oceanos em busca do novo e da glória, serviu a passar a idéia de uma aventura, poeticamente declamada por aquele que dizia aspirar pelo aroma do amanhã como recompensa suficiente por escapar do nauseante cheiro do mofo de ontem. Ingovernáveis, ademais, qualificou a fome, a ignorância e a miséria. Seria essa, pois, a Constituição cidadã, aquela que, na óptica do “Sr. Diretas”, haveria de reabilitar, pela justiça social, os nossos milhões de miseráveis. 200 201 Hoje, quinze anos após, e vendo o texto original mutilado por mais de quatro dezenas de emendas, inteira razão cabe-nos reconhecer a Barroso, que acerca do Estado que nessa senda foi fundado, proclamou enfático: a constatação inevitável, desconcertante, é que o Brasil chega à pós-modernidade sem ter conseguido ser liberal ou moderno. Herdeiros de uma tradição autoritária e populista, elitizada e excludente, seletiva entre amigos e inimigos – e não entre certo e errado, justo ou injusto –, mansa com os ricos e dura com os pobres, chegamos ao terceiro milênio atrasados e com pressa. 202 E assim veio à luz o Estado Democrático de Direito brasileiro, enunciado pelo art. 1 o da pretensamente “cidadã” Constituição de 1988: A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos : I – a soberania; II – a cidadania; III – a dignidade da pessoa humana; 200 Ibidem, p. 916.Discurso de 27.7.1988. 201 Decerto que nem todos partilharam desse entusiasmo, tendo o professor Afonso Arinos denunciado o grave equívoco encerrado nessa empolgação: “É importante insistir neste ponto. A garantia dos direitos individuais é cada vez mais eficaz e operativa nas Constituições contemporâneas, mas a garantia dos direitos coletivos e sociais, fortemente capitulados nos textos, sobretudo nos países em desenvolvimento e, particularmente, nas condições do Brasil, torna-se extremamente duvidosa (para usarmos uma expressão branda), quaisquer que sejam as afirmações gráficas existentes nos documentos, como este que estamos, hoje, comemorando. Afirmar o contrário é ingenuidade, ilusão ou falta de sinceridade, quem sabe de coragem. Direito individual assegurado, direito social sem garantia – eis a situação". Ibidem, p. 927. 202 BARROSO, Luís Roberto. Fundamentos teóricos e filosóficos do novo direito constitucional brasileiro (pós-modernidade, teoria crítica e pós-positivismo), p. 33-34. 105 IV – os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa; V – o pluralismo político. Parágrafo único : Todo poder emana do povo, que o exerce por meio de seus representantes eleitos, ou diretamente, nos termos desta Constituição. 3.2 A tradição autoritária e a difícil transição cultural para a democracia. 203 Malgrado tenha a a Lei Fundamental definido o Estado brasileiro como democrático, afigura-se cediço que, entre essa aclamação normativa e aquilo que a realidade pátria efetiva e cotidianamente pode vivificar, persiste a existir uma grande distância. De fato, tratando-se o Brasil de um Estado de tradições nitidamente autoritárias, impregnado por uma cultura colonialista forjada durante séculos de sujeição a uma matriz indolente e arbitrária, por óbvio que o nosso País não poderia se tornar democrático simplesmente porque e no instante que a lei assim houve por assentar. Na verdade, faltava à grande massa brasileira em 1988, como certamente ainda falta nos dias correntes, ao menos uma noção sobre o autêntico significado da democracia, constantemente confundida, e sem um senso preciso, apenas com um sistema – inócuo, diga-se de passagem – que privilegiaa rotineira realização de eleições. Dessarte, na prática, o tal Estado Democrático de Direito ainda precisa ser construído, a teor da previsão constitucional referente à edificação de uma sociedade justa, livre e solidária. E a realização dessa tarefa passa necessariamente, e portanto, pelo desatar dos nós das amarras cesaristas que impedem o progresso 203 Manuel Gonçalves Ferreira Filho afirma, com base em Almond e Verba, que existem “três tipos básicos de cultura política: a cultura paroquial, a cultura de sujeição e a cultura de participação. A primeira é caracterizada, paradoxalmente, pela despolitização. O indivíduo, o grupo, não toma conhecimento senão do que ocorre na comunidade em que vive. A segunda, pela postura de súdito. O indivíduo, o grupo, apercebe-se do que se passa além dos limites de sua comunidade, mas se considera impotente para influenciá-la. A terceira acresce à compreensão do fenômeno político a disposição de sobre ele atuar: é a do cidadão”. Constituição e governabilidade. ensaio sobre a (in)governabilidade brasileira, pp. 97-98. 106 político e conseqüentemente a prosperidade geral do povo brasileiro. É o que reflete Bonavides: O nosso País traz do fundo da história, quais estigmas indeléveis, as antecedências de um autoritarismo jamais ultrapassado e sempre a renovar-se, em estado crônico de fermentação e perpetualidade. Quando nos arremessam esse argumento sombrio de incompatibilidade profunda da verdade histórica com o sonho das instituições políticas livres e legitimamente atadas ao consentimento dos governantes, realmente, o peso dessas reflexões nos aflige, mas não esmaga nossa fé nem anula nossa esperança de que o futuro há de ser diferente. 204 Inúmeras são as manifestações dessa vil potestade que povoa a vida nacional, reportando-se Maria Victória Benevides àquela que talvez seja a mais comum e sutil de todas, qual seja, a privatização do poder, fato tão nefasto quanto real na vida política brasileira. Referindo-se especialmente à segurança pública, a autora destacou o sentido meramente retórico dessa expressão, servindo-se do testemunho de Victor Nunes Leal, prestado através de sua grande obra “Coronelismo, Enxada e Voto”, para demonstrar que no Brasil, historicamente, “a segurança jamais foi pública; a segurança que existia era a de exércitos particulares, de milícias particulares, a serviço dos coronéis” 205 . Mas é Betinho quem nos mostra a face mais perversa dessa opressão que, como pontuara Bonavides, muitos já fazem por supor atávica, garantindo a perpetuação do coronelismo de ontem: A história da política no Brasil é a história da dominação de alguns grupos sobre a grande maioria. A construção dessa dominação faz com que, hoje, 10 a 20% da população, tenham praticamente tudo, contra 80% que não tem nada. Essa situação leva à exclusão: quem manda subordina e exclui os outros. Trata-se de uma relação complexa, porque não apenas o senhor domina, como também o dominado se deixa dominar pelo senhor. Há uma certa cumplicidade na relação de poder. 204 BONAVIDES, Paulo. Teoria Geral do Estado, p. 194. 205 BENEVIDES, Maria Victoria de Mesquita. A polícia sob controle da sociedade a que serve, p. 82. Vide a respeito nota nº 61, parte final em especial. 107 Muitas vezes o dominado quer a proteção de quem tem o poder, de quem domina. Porque a isso se submete. E, ao se submeter, perpetua a situação de dominação. 206 Embora ponderando que a maior parte da nossa população sequer tem consciência de que se acha submetida a jugo dessa espécie, esse sociólogo, assim como a grande maioria dos juristas, revela uma grande e otimista crença na reversão desse triste quadro. Vislumbra-se a mudança – que “não corre, mas ocorre” –, auspiciada inclusive por parte da elite, que desprezando o apartheid busca a paz social. E concluiu: ”se o modelo ‘casa-grande e senzala’ prevalecer, não haverá outro recurso senão viver numa prisão de ruas fechadas por seguranças privadas, em bunkers residenciais” 207 . Em brilhante síntese, Carmen Lúcia Antunes Rocha expõe o histórico do alheamento popular da vida política nacional, apostando, ao final, num melhor porvir: A importância da Constituição para um povo guarda exata correlação com a importância que a sua história tenha sido refletida, revelada e produzida em forma de um Direito que acompanhe a sua evolução, a sua aspiração e a sua perspectiva. Ora, no Brasil, tanto a Constituição quanto a República, que veio a reboque numa Constituição que se lhe seguiu, não refletiram a história do povo brasileiro, que sempre se passou, na verdade, à margem desse mesmo povo e à margem do Direito criado para direcionar o processo político e a organização estatal. A história política brasileira não foi determinada pelas suas Constituições. Mesmo os seus autores se acorreram em destruí-las ou pelo menos em descumpri-las. E o povo ... ah ! o povo ! esse não conhece as suas Constituições, até porque não foi ele quem as fez ... Também ele tem tido sua vida à margem das Constituições que se sucederam no Brasil. A República, desde a sua proclamação por um golpe de Estado e não por uma revolução popular, não se democratizou em suas origens, senão nos últimos anos, em que, nitidamente, 206 SOUZA, Herbert de, RODRIGUES, Carla. Ética e cidadania. São Paulo: Moderna, 2000, p. 21. 207 Ibidem, p. 32. 108 se verifica uma mudança de comportamento político, um amadurecimento inconteste da cidadania. 208 Portanto, contra todas as formas de autoritarismo que ao longo dos séculos vêm entrevando o desenvolvimento político e social do Estado brasileiro, contra toda a ignorância premeditada e produzida pelos “coronéis” de todas as patentes e colorações, que sempre mandaram e jamais se fizeram obedientes, contra todos os oportunistas que encenam as leis e dilapidam o Direito, contra todos que corrompem a Justiça e se apropriam do poder, hoje, o Estado Democrático de Direito nos é oferecido não como uma meta já alcançada e consolidada, mas sim como um prêmio que somente pode ser entrevisto num plano bem mais alto, esperando para ser conquistado. A atingir tal galardão se nos é oferecida uma escada íngreme a ser vencida, a cidadania a ser avançada, os direitos fundamentais postos como degraus e as suas garantias como uma espécie de corrimão, pelos quais unicamente pode se ascender ao patamar da dignidade humana, o fundamento e a concretização do focalizado Estado. Por certo que tal conquista, diante de teladas vicissitudes, e já emergindo árdua por sua própria natureza, não se nos apresenta facilitada. Ainda muito longe de concretizá-la, e contabilizando um tremendo e histórico déficit de ânimo e de esperança democrática, partimos ao seu encalço, como bem situou Barroso, “atrasados e com pressa”, sem saber direito por onde e como começar. Mas o importante mesmo, como todos ponderam, é que essa jornada seja iniciada, com cada brasileiro reclamando e exigindo o cumprimento responsável da Constituição, 208 ROCHA, Carmen Lúcia Antunes. República e federação no Brasil: traços constitucionais da organização política brasileira, p. 157. Imperioso frisar que nem todos enxergam essa mesma evolução. Manoel Gonçalves Ferreira Filho, por exemplo, entrevê muita demagogia: “A modernização do País tem enfraquecido o autoritarismo, contudo apenas tem mudado a aparência do paternalismo. De fato, os governantes populistas tratam o povo exatamente como faziam os donos de escravos: com uma aparente benevolência, enquanto lhes exploram ao máximo. Tudo isso redunda num ambiente negativo para a democracia. Esta pressupõe uma igualdade que falta aoshábitos nacionais, bem como à experiência histórica do brasileiro em face do governo. De fato, é baldado procurar na vivência passada qualquer laivo democrático, qualquer tradição, ainda que tênue, de tradição democrática”. Constituição e governabilidade: ensaio sobre a (in)governabilidade brasileira, p.100. 109 o acatamento irrestrito ao Direito e ao primado da Ética, denunciando abusos e combatendo todas as formas de corrupção e de mandonismo. A chave, pois, para o Estado Democrático de Direito ressuma na participação ativa dos reais titulares do poder na vida e nos rumos da República, cuja efetiva existência aferir-se-á, então, pela capacidade de realização dos valores que lhe são intrínsecos, consoante as opções, a persistência e o denodo manifestados por seus cidadãos. Caminhar é preciso ... Com total razão define Baracho: “não há cidadãos sem democracia ou democracia sem cidadãos” 209 . A bem da verdade, cabe exclusivamente ao cidadão assenhorear-se do que é seu, reivindicando, requestando, enfim, pelejando com as armas que recebe da própria democracia. Torna-se a todos premente, nesse diapasão, a aquisição de lúcida consciência cidadã, sem a qual sequer haverá disposição para a luta. 210 Como visto, não há democracia sem empenho, sem presença, sem resistência. Ainda mais enérgico preleciona Silva: “que por ser governo do povo, pelo povo e para o povo, só se firma na luta incessante, no embate constante, não raro na via revolucionária, inclusive quanto ao próprio conceito de povo que é essencial à idéia democrática” 211 . Outro não é o diagnóstico de Rocha, expendido sob prisma diferenciado : “O de que nos ressentimos, e muito, é de prática constitucional. É de obediência à Constituição. É de aplicação do Direito. (...) Porque não carece o Brasil de leis, mas de homens com vontade e determinação para submeterem-se ao Direito (preferindo que o direito a eles se submeta) ...” 212 . E arremata incisivamente: A participação política do cidadão é essencial à República, porque esta é apenas uma expressão da cidadania. E a cidadania é a participação política comprometida, responsável e atuante positivamente (...) Aquele que pelos seus direitos não luta, que os seus próprios direitos não reivindica e exige, 209 BARACHO, José Alfredo de Oliveira. Teoria geral da cidadania: a plenitude da cidadania e as garantias constitucionais e processuais, p. 1. 210 Trata-se do despertar da e na consciência geral daquilo que Konrad Hesse denominou “a vontade da Constituição”. A força normativa da Constituição, p. 18-21. 211 SILVA, José Afonso da. Op. cit., p. 132. 212 ROCHA, Carmen Lúcia Antunes. República e “Res Publica”, p. 233. 110 não pode deixar de considerar-se penitente diante de seu próprio pecado quando vê a carência de si mesmo. Direito não se acha na rua. Direito é conquista diária. (...) A República não é presenteada, é conquistada pelo seu cidadão a cada dia. A República é uma construção cidadã interminável. Por isso a cidadania republicana é uma luta patriótica, comprometida e responsável. República órfã de cidadania é ilusão, não é Republica. 213 Deve funcionar a Constituição, dessa forma, como um mapa, autêntico, que indica o caminho até um grande tesouro. Nos oferece o caminho para esse prêmio, mas nenhuma facilidade outra. A busca que a partir desse mapa tem início pressupõe dificuldades, exigindo esforços, enfrentamentos e pertinácia. Com efeito, não se pode esquecer que, não possuindo o texto constitucional teor mágico ou sobrenatural, afigurar-se-ia demasiadamente ingênuo acreditar que a simples e bem intencionada fundação de um novo Estado, mediante a edição de um louvável e irretocável texto constitutivo, bastaria para decretar, como nas fábulas, um indefectível e célere final feliz! Imprescindível considerar, a esse respeito, que uma Constituição não se presta como remédio para todos os males, bem como que o novel Estado brasileiro ainda engatinha, encontrando-se, por ora, apenas no início do processo de afirmação democrática. Ademais, como nos recorda Bonavides: uma criança não aprende andar meramente com lições teóricas ou preparação oral ou didática, senão que faz essa aprendizagem tão-somente se der os primeiros passos, tropeçando, caindo, exercitando-se. Assim também acontece com a democracia. Faz-se mister o movimento, a ação, o duelo, a iniciativa, o combate, a energia. Tudo em clima da mais inteira liberdade, sem o qual o regime democrático se atrofia, fica sufocado, sucumbe. 214 215 213 Ibidem, p. 262-263. 214 BONAVIDES, Paulo. A constituição aberta, p. 20. 215 E tal processo, ensina Victor Alfieri, também se faz fundamental para o sepultamento do autoritarismo: “Só a vontade ou a opinião de todos ou da maioria mantém a tirania: só a vontade ou a opinião de todos ou da maioria verdadeiramente pode a destruir. Mas, se nas nossas tiranias o povo não tem idéia de outro governo, como se poderá infundir em todos ou na maioria este novo desejo de liberdade? Responderei, chorando, que, para produzir de repente tal efeito, meio eficaz nenhum há; e que nos países onde a tirania desde muitas gerações se acha radicada, outras tantas ou mais são necessárias para que a tardia opinião possa desarraigar”. ALFIERI, Victor. O tratado da tirania, p. 181. 111 É necessário reconhecer, a bem da verdade, que nestes últimos quatorze ou quinze anos, a sociedade brasileira pode comemorar, sob a égide do Estado Democrático de Direito, uma série de conquistas, mormente relacionadas ao valor fundamental da liberdade. Muito há, de fato, para ainda ser percorrido nos caminhos da democracia, porém o simples fato de já nos encontrarmos em marcha por tais auspiciosas veredas não pode deixar de ser festejado. Boa parte da nossa população parece ter despertado para a importância dessa caminhada, não obstante, como não podemos olvidar, toda uma longa estrada, morro acima, resta para ser coberta. Caminhar é preciso ... Decididamente, a construção dessa sociedade democrática não pode prescindir da renovação das instituições, e nessa conjuntura deveria ser priorizada – ao contrário da postergação vislumbrada – a conformação de novas instituições policiais, clássicos instrumentos de opressão, historicamente utilizados à promoção e manutenção do arbítrio, qual expressão consagrada do autoritarismo, aqui e alhures, em todos os tempos. Entre nós, dado a versada tradição, não pode restar dúvida alguma sobre a premência dessa regeneração, que precisa ser encetada da forma mais urgente e meticulosa possível, submetendo-se os órgãos policiais, de uma vez por todas, ao império da Ética e do Direito democráticos. 3.3. As origens e os rumos da democracia brasileira. Não obstante esse versado pendor autoritário, o fato é que mesmo antes da convocação da Assembléia Constituinte, cujos trabalhos iniciaram-se somente em fevereiro de 1987, o Brasil já caminhava em direção à democracia, independentemente da existência de uma elevada consciência ou convicção nacional correspondente. De efeito, os horizontes democráticos, e seja lá o que pudessem projetar para a grande massa brasileira e mesmo para os seus líderes políticos, exsurgiam, desde há muito, como a única alternativa para o ciclo militar que durava desde 1964, quando imposto à nação, segundo os padrões político-culturais da época, como expressão inconteste da submissão terceiro-mundista. 112 Coincidindo em alguns pontos isolados – como ao exigirem eleições livres para todos os níveis de governo, qual bem exemplifica o célebre movimento das “diretas já” –, as lideranças políticas do período não apresentavam, todavia, um consenso sobre seus propósitos democráticos. Como é sabido, agrupavam-se, e por vezes até como renhidosadversários, genérica e confusamente, como conservadores e progressistas, numa dicotomia que procurava classificar, de um lado, aqueles que não se interessavam por grandes mudanças, mormente de conteúdo, e do outro, aqueles que desejavam grandes transformações, com alguns até buscando uma grande e radical virada de mesa. Bonavides reconhece na Assembléia Constituinte a preponderância dos primeiros, indicando, porém, estudos que alardeiam exatamente o contrário 216 . Algo indiferente a essas divisões ponderou que, em síntese, prevaleceram os “interesses grupais ou regionais em detrimento do essencial”. 217 Ao final de tantas contradições foi a Constituição promulgada, em 5 de outubro de 1988, tendo contra si o voto da esquerda (Partido dos Trabalhadores) e a censura da direita. Apenas em torno de uma única previsão todos se faziam concordes: o estabelecimento do regime democrático. Embora pacífico e fulcral da nova ordem constituída, tratava-se este, na verdade, apenas de um ponto de partida, pois ninguém podia se iludir – mesmo porque a realidade era alardeada por muitos e em alto e bom som – que o princípio democrático logo viesse a impregnar todos os 216 BONAVIDES, Paulo. História constitucional do Brasil, p. 474-475. Registra o autor, malgrado revelando sua desconfiança nessas contabilidades, que estudos patrocinados pela Universidade de Brasília levaram à classificação dos parlamentares constituintes (487 deputados e 72 senadores), no que pertine às suas aferíveis tendências políticas, em cinco diferentes categorias, onde achavam-se agrupados nas seguintes proporções: direita: 12%; centro-direita: 24%; centro: 32%; centro-esquerda: 23%; esquerda: 9%. De outra parte, outros exames realizados a partir dos perfis traçados pelos próprios constituintes serviriam a revelar realidade oposta, assinalando uma prevalência da centro-esquerda. Demonstra, todavia, que essas possíveis divergências ideológicas não muito representaram na prática, pois, durante a constituinte, “vez por outra, as posições extremas se tocavam, como no sistema de governo (parlamentarista ou presidencialista), para o qual o PT e o PDT adotavam a mesma posição do PDS e do grupo mais conservador da Assembléia. Os extremos representados pelos deputados Cardoso Alves e Amaral Netto, José Lourenço e Delfim Netto estavam na mesma posição de José Genuíno ou de Luiz Inácio Lula da Silva”. 217 Ibidem, p. 487. Informa o autor: “Durante o período constituinte o plenário do colégio soberano não funcionou como um fórum de tribunos atenienses, um salão de debates acadêmicos ou um campo de batalha de idéias abstratas e princípios metafísicos. Foi, em primeiro lugar, uma praça de interesses, uma feira nacional de serviços, uma bolsa de vantagens, onde tudo se disputou palmo a palmo, da forma mais direta, crua e objetiva possível, mas sempre por meios pacíficos e consensuais, mediante decisões majoritárias, todas numericamente expressivas, nunca inferiores a 280 votos no cômputo dos 599 delegados que compunham o efetivo da Constituinte”. 113 rincões do Estado, mediante, quem sabe, uma espécie de positivo contágio, fazendo- se, doravante, pulsante no seio social. É o que ilustra ainda o encimado autor: A promulgação da nova Carta representa, por conseguinte, um marco, mas não representa ainda o coroamento de todo processo de reconstitucionalização ou mudança. Com efeito, estamos unicamente passando de uma a outra transição, a saber, da transição discricionária para a transição constitucional, do governo de um só poder para o governo dos três poderes, do regime do decreto-lei para o regime da Constituição. Não é outro o sentido deste 5 de outubro. Quem julgar o contrário estará alimentando uma grave e perigosa ilusão. Demais, os constituintes mesmos reconheceram que assim há de ser (...) embora as instituições brasileiras com este sistema hajam logrado já uma inteira impregnação das garantias básicas, inseparáveis de um estado de direito, democrático e constitucional. [...] Mas urge lembrar, não sendo despiciendo faze-lo, que a Carta, salvo texto específico e formal, ainda não acabou de ser elaborada. Resta acrescentar-lhe uma parte escrita importantíssima, suplemento mais relevante talvez, num certo sentido, do que tudo quanto já fez a Casa da soberania em um ano e seis meses de reunião: as leis complementares e ordinárias, previstas no texto constitucional. Compõe essas leis a outra metade da Carta, sem a qual ela dificilmente se aplicará, com sua eficácia diminuída a um grau baixíssimo e insuportável, embargando todas as esperanças postas em tão valioso instrumento de direitos e garantias fundamentais. 218 Do acerto dessas afirmações, naturalmente ninguém pode discrepar. Impõe- se aqui consignar, por isso mesmo, a mínima penetração dos valores constitucionais no âmbito da segurança pública, que até hoje prossegue institucionalizada sob a mesma roupagem que vestia antes de 1988. Embora não seja de se pasmar, face a multiplicidade dessas omissões, cabe nesse plano ressaltar que ainda hoje inexiste a regulamentação exigida pelo § 7 o do art. 144 da vigente Constituição, confiada à lei ordinária, concernente à disciplina e organização dos órgãos policiais, “de maneira a garantir à eficiência de suas atividades”. 218 BONAVIDES, Paulo. História Constitucional do Brasil, p. 487-488. 114 Também não foi editada, ainda, a Lei Orgânica Nacional das Polícias Civis, que deveria trazer, a teor do disposto no art. 24, XVI, da Lei Maior, normas gerais, sobre organização, garantias, direitos e deveres referentes aos órgãos e servidores incumbidos do exercício das importantes funções de polícia judiciária 219 . Tais fatos, inquestionáveis, parecem revelar, com clareza meridiana, o caráter absolutamente negligente do tratamento dispensado aos temas segurança pública e polícia em nosso País, invariavelmente relegados às manchetes sensacionalistas de uma mídia insciente e aos discursos-respostas sempre vazios, demagógicos e bravateiros dos nossos políticos, invariavelmente pouco afetos ao cumprimento de suas efetivas obrigações públicas. Como se pode constatar, tarda-se a inserir a polícia no universo democrático criado pela Constituição Cidadã, remanescendo justamente os órgãos responsáveis pela segurança pública à margem dos avanços felizmente constatados em outras searas institucionais, como se tacitamente, e não pela vontade constitucional – expressa, embora timidamente, em sentido diametralmente oposto – interessasse ou fosse de grande proveito ao Estado Democrático de Direito, a obsolescência policial. 3.4 A democracia brasileira. O fato é que, enfim, seguindo a carreira acima delineada, em 1988 o Brasil finalmente se fez democrático. Afinal, como ironizou Ferreira Filho: “O mundo hoje é unanimemente democrático. Todos os governos e todos os povos pretendem 219 Assinala-se que no Estado de São Paulo, ainda hoje, a Polícia Civil é regida por uma lei-complementar, a de nº 207, que data de 1979. Recentemente foi ela parcialmente alterada, tendo a Lei-complementar nº 922/02 introduzido modificações relevantes apenas no seu capítulo referente ao processo disciplinar, assim com vistas a implantar a denominada “via rápida” – como foi difundida junto à imprensa em face do seu suposto poder de defenestrar os maus policiais com ligeireza –, sem tangenciar, por exemplo, e num afã de adequação, atualização e aprimoramento às exigências do Estado Democrático de Direito fundado em 1988, a parte material desse código disciplinar, que elenca os deveres e as proibições que visam garantir o exercício ativo, probo e eficiente dos policiais. Vide a respeito a pontual obra de Carlos Alberto Marchi de Queiroz,Via Rápida : a arte de demitir autoridades policiais ao arrepio da Constituição Federal. 115 ser democráticos. Todos se declaram pela democracia e, não raro, se entredevoram pela democracia”. 220 Sob o impulso da Organização das Nações Unidas, e após a derrocada do comunismo internacional, a democracia vicejou no mundo. Do ocidente ao oriente, o regime democrático foi sendo paulatinamente abraçado, em graus e formas as mais diversas, pela grande maioria dos Estados, ora por convicção, ora por simples conveniência. As sempre emblemáticas eleições livres (mas nem sempre limpas, irrestritas e/ou eficazes) passaram a pulular em quase todos os recantos do planeta, que não obstante esse fato, auspicioso em princípio, não logrou, e isso até os dias correntes, ostentar-se revitalizado, contabilizando o declínio, ainda que pequeno, dos níveis de forme, miséria, violência e injustiça aferidos junto à humanidade. Tal fenômeno, muito embora chocante, pode ser facilmente compreendido, eis que enquanto o epíteto democrático pode ser desembaraçadamente exportado, o mesmo não ocorre, como anteriormente procuramos patentear, com a cultura democrática, que não pode ser assimilada apenas por força de uma entusiasmada e símplice disposição de espírito. Somente o florescimento de uma nova cultura, desenvolvida com base nos exponenciais valores da liberdade, da igualdade e da solidariedade, sintetizada pelo efetivo respeito à dignidade humana, é que autorizará 220 FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Curso de direito constitucional, p. 96. Sarcasmo à parte, assiste razão a esse brilhante autor que bem detecta a banalização da democracia, usada para tudo e por todos na melhor linha do “faça o que eu falo e não faça o que eu faço”. Lembremo-nos, por exemplo, da antiga República Democrática Alemã que fuzilava todos aqueles que buscavam exercitar o direito de ir e vir em direção a Berlim ocidental. Não nos olvidemos, com esse mesmo propósito, da recente invasão americana do Iraque, levada a cabo em nome da redemocratização desse sofrido País. Entre nós abundam exemplos desse persistente cinismo, diariamente auspiciado por uma mídia que, sem se ater aos limites postos à liberdade de imprensa e sem respeitar as balizas democráticas do direito de informação, teima em inconseqüentemente estampar em seus veículos nomes e imagens aprioristicamente obtidos e relacionados com fatos apenas suspeitos e ainda longe do devido aclaramento, assim decretando, irresponsável e perpetuamente, a falência moral de “cidadãos”, violados em seus mais comezinhos direitos. Mas seria necessário indagar mais: quem alimenta a mídia voraz com tais suspeitas ? A quem buscam os holofotes na ribalta democrática? Ora, até quando se aturará, em nome da democracia, tamanhas violações, cometidas segundo um modelo oficial, próximo ao daquela polícia da qual se procura redimir, que primeiro atirava e depois fazia perguntas ? Que democracia é essa que patrocina a inquisição, sempre assegurado o linchamento moral de suspeitos em face de qualquer desconfiança? É inegável, pois, que a democracia ostenta suas mazelas, que em seu nome destrói-se em vez de vivificar-se, que é permeável a abusos, e abusos por vezes perpetrados em nome de heréticas legalidade e moralidade, escudados por um pseudo interesse público, ilegítimo porquanto dissociado do Direito e da Ética verdadeiramente democráticos, que rejeita o raciocínio maquiavélico, em que “os fins justificam os meios”. 116 a legitima aposição do timbre democrático em qualquer sociedade, assim caracterizando, em natural corolário, sua organização política, econômica e social. Socorre, portanto, àqueles realmente interessados, a possibilidade de importar, em processo em que se sobressai a celeridade, determinados paradigmas democráticos que certamente facilitarão a construção político-cultural desejada. E nesse ponto, como de costume, o Brasil não se fez de rogado, logo lançando mão dos modelos constitucionais português (1976) e espanhol (1978), para balizar seu ingresso normativo no universo democrático. Semelhantemente a esses Estados, que ressurgiram de longas e amargas experiências autoritárias, o Brasil optou, como pontifica Cittadinno, por um constitucionalismo “comunitário”, que professa que “o objetivo primordial da constituição é a realização dos valores que apontam para o existir da comunidade”. Assim, uma vez “calcado no binômio dignidade humana-solidariedade social”, caracteriza-se exatamente por buscar, “contra o positivismo, um fundamento ético para a ordem jurídica, e contra o privatismo, a efetividade do amplo sistema de direitos assegurado pela nova Constituição” 221 . E nesse particular, ainda informa a autora, o pensamento comunitário institui seus dogmas: Os direitos fundamentais possuem hoje uma dimensão objetiva em função da integração dos indivíduos no processo político comunitário e da ampliação do chamado espaço público. Ao sistema fechado de garantias da vida privada , eles opõem a idéia de constituição aberta, que enfatiza os valores do ambiente sociocultural da comunidade. 222 221 CITTADINO, Gisele. Pluralismo, direito e justiça distributiva.elementos da filosofia constitucional contemporânea, p. 15-17. Formando os expoentes do pensamento comunitário brasileiro a autora destaca os juristas José Afonso da Silva, Carlos Roberto de Siqueira Castro (o autor da expressão, consignada em sua obra A Constituição aberta e atualidades dos direitos fundamentais do homem), Paulo Bonavides, Fabio Konder Comparato, Dalmo de Abreu Dallari e Eduardo Seabra Fagundes, dentre outros. 222 A partir da lição de Canotilho é possível evitar um equívoco que a presente leitura pode potencialmente suscitar, promovendo a confusão entre a abertura das normas constitucionais (abertura vertical) e a abertura da constituição (abertura horizontal), que reclamam compreensões diversas, dizendo a segunda de constituições históricas ou de cunho não dogmático, que reclamam, à sua efetiva aplicabilidade, atuação plena dos órgãos concretizadores, por vezes do Legislativo, por vezes do Judiciário (Direito Constitucional e Teoria da Constituição, pp. 1106-1107). De qualquer forma, importa enfatizar que a versada abertura das normas jamais poderá conduzir à idéia de libertismo constitucional, pois como bem acentua Eros Roberto Grau (A Ordem econômica na constituição de 1988, p. 106) “inexiste, assim, possibilidade da livre criação do direito, visto que esta se reduz à pesquisa de novos princípios”, cabendo ao juiz, exemplifica, encontrar 117 A expressão direitos fundamentais do homem, (..), designa, no nível do direito positivo, as prerrogativas e instituições que ele concretiza em garantias de uma convivência digna, livre e igual para todas as pessoas. A expressão direitos fundamentais do homem não significa, portanto, esfera privada contraposta à atividade pública, como simples limitação do Estado, mas restrição imposta pela soberania popular aos poderes constituídos do Estado que dela dependem. Enquanto valores constitucionais, o sistema de direitos fundamentais, ao mesmo tempo que se constitui em núcleo básico de todo o ordenamento constitucional, também funciona como seu critério de interpretação. Enquanto direitos positivados, são metas e objetivos a serem alcançados pelo Estado Democrático de Direito. 223 Esse diapasão de grande similitude ideológica justifica a enorme identidade normativa existente entre a nossa Constituição e suas congêneres ibéricas, destacadamente a lei magna de Portugal. Na verdade, e especialmente no que tange aos princípios fundamentais, essas cartas sobremodo se aproximam, conformando- se praticamente concordes. Entrementes, convém dar vulto ao advérbio utilizado, pois embora decorrentede uma sutileza, expressiva diferença se interpõe entre essas duas Constituições, que fundaram Estados Democráticos de Direito (de Direito Democrático na versão lusa) díspares em seus objetivos econômicos. Com efeito, comenta Ferreira Filho que “a expressão ‘Estado Democrático de Direito’ foi cunhada pelo espanhol Elias Diaz, que a empregou no livro Estado de derecho y sociedad democrática, com o significado de Estado de transição para o socialismo”. Na Constituição portuguesa, observa, essa disposição encontra-se textualizada no art. 2 o , por força de emenda revisora aprovada em 1982 224 . Teria, ademais, reconhecido esse mesmo propósito em texto de Silva, que prontamente refuta tal interpretação, proclamando que a lei fundamental pátria não prometeu a transição para o socialismo, mas apenas “perspectivas de realização social profunda nestes o fundamento de suas decisões em face de matéria cuja controvérsia ressai das lacunas do Direito (que há de aplicar, e não apenas a norma). Na mesma linha a censura de Dworkin, transcrita por Canotilho: “o direito – e, desde logo, o direito constitucional – descobre-se , mas não se inventa” (ibidem, p. 1109). 223 CITTADINO, Gisele. Op. cit. p. 14-22. 224 FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Estado de direito e constituição, p. 63 118 pela prática dos direitos sociais, que ela inscreve, e pelo exercício dos instrumentos que oferece à cidadania e que possibilita concretizar as exigências de um Estado de justiça social, fundado na dignidade da pessoa humana”. 225 Quem resolve definitivamente a questão é Miguel Reale, que a respeito do Estado Democrático de Direito aduz: expressão que traduz uma opção para a democracia social, isto é, para uma democracia na qual o Estado é compreendido e organizado em essencial correlação com a sociedade civil, mas sem prejuízo do primordial papel criador atribuído aos indivíduos. É óbvio que a democracia social não deve ser confundida com a social-democracia, que é sempre de cunho socialista, fato esse que só deve impressionar aos que não estão afeitos ao jogo dos valores políticos, onde a mera inversão de uma palavra pode importar em alterações semânticas de fundo ... . 226 Uma vez vincada tal divergência, cumpre então trazer à baila, em mão contrária, aquele que induvidosamente se apresenta como o principal ponto de convergência existente em relação às focalizadas Constituições, bem situado por Alves na “expressa previsão do princípio da dignidade da pessoa humana como fundamento e substrato principal dos demais direitos e garantias individuais e coletivos” 227 . Esse avizinhamento, porém, basta à garantia de uma inelutável 225 SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo, p. 120. 226 REALE, Miguel. O estado democrático de direito e o conflito das ideologias, p. 43. Assevera o autor que o preciso e efetivo sentido ideológico da vigente Constituição brasileira é bem informado por dois princípios da ordem econômica, a saber: “a livre concorrência e a defesa do consumidor”. Dessa forma, a livre iniciativa fica conjugada com os interesses coletivos, ao passo que se garante o respeito a cada consumidor na sua individualidade. Assim o Estatuto Político “não consagra um liberalismo infenso à justiça social, mas sim o social-liberalismo” (p. 44-45). 227 ALVES, Cleber Francisco. Op. cit., p. 129. Dispõe o art. 1 o da Constituição lusa : “Portugal é uma República soberana, baseada na dignidade humana e na vontade popular e empenhada na construção de uma sociedade livre justa e solidária”. Impossível, assim, deixar de aceder com a analogia aduzida. Vale, outrossim, trazer à lume o primeiro artigo da Constituição Federal da Alemanha, que teria, segundo o autor, influenciado fortemente o constitucionalismo português: “Art. 1 o . A dignidade da pessoa humana é intangível. Respeitá-la e protegê-la é obrigação de todo o poder público”. 2 a . parte – O Povo Alemão reconhece, portanto, os direitos invioláveis e inadiáveis da pessoa humana como fundamentos de qualquer comunidade humana, da paz e da Justiça no mundo”. Pedro Serna, com base no magistério de Maihofer, aduz a tripla significação jurídica dada à garantia da dignidade humana pelo direito constitucional tedesco e que, na mesma linha, deve acabar tocando o nosso: “Em primeiro lugar, trata-se de um direito fundamental, a partir do qual se podem deduzir e interpretar todos os demais restantes que compõe o sistema constitucional dos direitos fundamentais. Por outro lado, constitui algo assim como uma norma fundamental dentro da estrutura normativa da ordem jurídica, por intermédio da qual cabe dirimir a validez das outras normas que o compõe. Finalmente, constitui uma das bases materiais sobre as quais se assenta a construção organizativa do 119 identificação entre as focalizadas Cartas, que assim reconhecem e exaltam o valor intrínseco do ser humano e sua primazia em relação ao Estado, compreendendo a coluna mestre do Estado Democrático de Direito. 3.5. Estado democrático de direito brasileiro e o princípio da dignidade da pessoa humana 228 “Um dos poucos consensos teóricos do mundo contemporâneo”, a dignidade humana – ainda como expressão abrangente e por vezes até contraditória – perfaz hoje, no dizer de Barcellos, “um axioma da civilização ocidental, e talvez a única ideologia remanescente”, que afirma “o valor do homem como um fim em si mesmo” 229 . De fato, desde os tratados internacionais – celebrados sob os auspícios quer da ONU, quer das Organizações continentais de Estados – até as constituições nacionais, a dignidade humana impõe-se hodiernamente, na feliz expressão de Delpérée, como o “alfa e omega” do sistema de proteção das liberdades, a base, o Estado (...). A pessoa, em virtude de sua dignidade, constitui-se assim o fim do Estado” (A dignidade humana como princípio de direito público, p. 287-306). Acerca do histórico paralelismo constitucional português e brasileiro vide o interessante estudo de Jorge Miranda sobre “Os Sistemas Constitucionais de Portugal, do Brasil e de Outros Países de Língua Portuguesa”, Teoria do Estado e da Constituição , p. 139- 156. 228 BASTOS, Celso Ribeiro, MARTINS, Ives Gandra. Comentários à Constituição do Brasil (promulgada em 5 de outubro de 1988), p. 425) “A referência à dignidade da pessoa humana parece conglobar em si todos aqueles direitos fundamentais, quer sejam os individuais clássicos, quer sejam os de fundo econômico e social. Em última análise, a dignidade tem uma dimensão também moral. São as próprias pessoas que conferem ou não dignidade às suas vidas. Não foi esse sentido, todavia, o encampado pelo constituinte. O que ele quis significar é que o Estado se erige sob a noção da dignidade da pessoa humana. Portanto, o que ele está a indicar é que é um dos fins do Estado propiciar as condições para que as pessoas se tornem dignas. É de se lembrar, contudo, que a dignidade pode ser ofendida de muitas maneiras. Tanto a qualidade de vida desumana quanto a prática de medidas como a tortura, sob todas as suas modalidades, podem impedir que o ser humano cumpra na terra sua missão, conferindo-lhe um sentido. Esta é uma tarefa eminentemente pessoal. O sentido da vida humana é algo forjado pelos homens. O Estado só pode facilitar esta tarefa na medida em que amplie as possibilidades existências do exercício da liberdade”.. No mesmo sentido José Afonso da Silva: “Em conclusão, a dignidade de pessoa humana constitui um valor que atrai a realização dos direitos fundamentais do Homem, em todas as suas dimensões;e, como a democracia é o único regime político capaz de propiciar a efetividade desses direitos, o que significa dignificar o Homem, é ela que se revela como seu valor supremo, o valor que o dimensiona e humaniza”. Poder constituinte e poder popular (estudos sobre a Constituição, p. 149. 229 BARCELLOS, Ana Paula de. A eficácia jurídica dos princípios constitucionais: o princípio da dignidade da pessoa humana, p. 103-104. 120 objeto e a missão de todos os direitos humanos fundamentais, de todas as gerações. 230 Comprova essa assertiva a Declaração Universal dos Direitos do Homem que, em 1948, e já em seu preâmbulo, proclamou: “O reconhecimento da dignidade inerente a todos os membros da família humana e de seus direitos inalienáveis constitui o fundamento da liberdade, da justiça e da paz no mundo”. E em seu art. 1 o sentenciou: “Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e em direitos. São dotados de razão e consciência e devem agir em relação uns aos outros com espírito de solidariedade”. Também em 1948, foi editada a Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem, tendo em considerando: Que os povos americanos dignificaram a pessoa humana e que suas constituições nacionais reconhecem que as instituições jurídicas e políticas, que regem a vida em sociedade, tem como finalidade principal a proteção dos direitos essenciais do homem e a criação de circunstâncias que lhe permitam progredir espiritual e materialmente e alcançar a felicidade. E sobre esses pilares normativos e consensuais desenvolveu-se uma extensa e complexa teia de instrumentos de proteção e promoção da dignidade humana, todos – alguns há mais tempos, outros recentemente 231 – merecedores da adesão brasileira. 230 DELPÉRÉE, Francis. In O direito à dignidade humana, p. 161-162. Jorge Miranda assevera que “os direitos, liberdade e garantias pessoais e os direitos econômicos, sociais e culturais comuns tem a sua fonte ética na dignidade da pessoa, de todas as pessoas”. Manual de direito constitucional, p. 167. 231 É perceptível que, após a vigência da Constituição de 1988, o Estado brasileiro tomou-se de uma renovada disposição de integrar os sistemas internacionais de proteção dos direitos humanos, vindo, com esse ânimo, a ratificar uma série de instrumentos adotados pela Organização das Nações Unidas e pela Organização dos Estados Americanos já há muito tempo, como é o caso, por exemplo, no âmbito mundial: a Convenção contra a Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos e Degradantes, aprovada em 1984 e retificada em 1989; e os Pactos Internacionais dos Direitos Civis e Políticos, e dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, adotados em 1966 e reconhecidos pelo Brasil somente em 1992. Com relação à ordem interamericana: Convenção Interamericana para Prevenir e Punir a Tortura, de 1985, ratificada em 1989; Convenção Americana dos Direitos Humanos (Pacto de San José da Costa Rica), de 1969, incorporado ao ordenamento jurídico brasileiro apenas em 1992. A respeito vide Flávia Piovesan, Direitos humanos e o direito constitucional internacional, p. 336 e ss. Confira, no mesmo sentido, CANÇADO TRINDADE, Antonio Augusto. A proteção Internacional dos Direitos Humanos. Fundamentos Jurídicos e Instrumentos Básicos. 121 Com efeito, o Estado Democrático brasileiro já nasceu fundado na dignidade da pessoa humana, mediante construção não casual da Constituinte de 1988, que a transformou em princípio maior e principal diretriz constitucional, gravada logo no art. 1 o do nosso Estatuto Fundamental. Daí o asserto de Luiz Antonio Rizzatto Nunes: um verdadeiro supraprincípio constitucional que ilumina todos os demais princípios e normas constitucionais e infraconstitucionais. E por isso não pode o Princípio da Dignidade da Pessoa Humana ser desconsiderado em nenhum ato de interpretação, aplicação ou criação de normas jurídicas. 232 E afirmar a dignidade humana, faz-se incisivo Cardoso da Costa, significa reconhecer: a autonomia ética do homem, de cada homem singular e concreto, portador de uma vocação e de um destino, únicos e irrepetíveis, de realização livre e responsável, a qual há de cumprir-se numa relação social (e de solidariedade comunitária) assente na igualdade radical entre todos os homens – tal que nenhum deles há de ser reduzido a mero instrumento ou servo do “outro” (seja outro homem, seja o Estado). E sublinhar esse principio como fundamento da Republica – isto é, do Estado – é dizer que este se constrói a partir da pessoa, e para servi-la. Ou seja – e numa perspectiva mais acentuada política – que há de ser um Estado de “cidadãos”. 233 Como se pode claramente inferir, a obrigação de respeitar e promover a dignidade de todos as pessoas impende tanto ao Estado como a todo e qualquer cidadão. Ao Estado, porém, recai obrigação absolutamente peculiar, consistente na determinação legal, com fulcro evidentemente constitucional, das condutas inconciliáveis com tal dignidade, proibindo-as, até mesmo criminalizando-as, se 232 RIZZATTO NUNES, Luiz Antonio. O princípio constitucional da dignidade da pessoa humana: doutrina e jurisprudência, p. 48-49. E arremata o autor: “O esforço é necessário porque sempre haverá aqueles que pretendem dizer ou supor que Dignidade é uma espécie de enfeite, um valor abstrato de difícil captação. Só que é bem ao contrário: não só esse princípio é vivo, real, pleno e está em vigor como deve ser levado em conta sempre, em qualquer situação” (p. 51). 233 CARDOSO DA COSTA, José Manuel M. O princípio da dignidade humana na constituição e na jurisprudência constitucional portuguesas, p. 191-192. 122 necessário 234 . Nessa esteira, ainda caber-lhe-á assegurar efetividade às vedações dessa natureza, laborando para que as condutas transgressoras da legislação penal não venham a ser cometidas ou, se porventura perpetradas, sejam seus autores eficazmente tolhidos em suas ações criminosas e responsabilizados por havê-las praticado. É, pois, nessa conjuntura que aparece a Polícia, órgão ou conjunto de órgãos do Estado, estudado no capítulo I, cuja função, muito aquém das imprecisas referências à manutenção de uma amorfa “ordem pública” ou de uma pomposa, mas sempre distante segurança pública, deveria ressumar tão-somente no avivamento e na preservação da dignidade inerente a cada ser humano, procurando, nesse compasso, auxiliar o estabelecimento da paz pública na comunidade, onde os indivíduos vivem, convivem e buscam realizar-se enquanto pessoa humana. Aliás, outra não é a disposição inserta no Código de Conduta para os Funcionários Responsáveis pela Aplicação da Lei – que bem serve como o Código de Ética Policial da ONU –, o qual, em seu art. 2º, prescreve veemente: “No cumprimento do seu dever, os funcionários responsáveis pela aplicação da lei devem respeitar e proteger a dignidade humana, manter e apoiar os direitos fundamentais de todas as pessoas”. 235 3.5.1 – A dignidade da pessoa humana e o direito fundamental à segurança. Ora, não poderá ser definida como digna a existência daquele que vive ao desabrigo de segurança 236 , que se acanha sob o peso da desconfiança, do perigo real 234 PRADO, Luiz Regis. Bem jurídico-penal e constituição, p. 76-77. “A caracterização do injusto material advém da proeminência outorgada à liberdade pessoal e à dignidade do homem na Carta Magna, o que importa que sua privação só pode ocorrer quando se tratar de ataques a bens de análoga dignidade; dotados de relevância ou compatíveis com o dizer constitucional ou, ainda, que se encontrem em sintonia com a concepção de Estado de Direito democrático. Disto se depreende o fato de que eventual restrição de um bemsó pode ocorrer em função da indispensável e simultânea garantia de outro valor também de cunho constitucional ou inerente à doutrina democrática”. 235 Aprovado pela Assembléia Geral das Nações Unidas na sua Resolução 34/169, de 17.12.1979. 236 Importa registrar que segurança, em suas acepções mais comezinhas e próprias, traduz, segundo Houaiss : “ação ou efeito de tornar seguro; estabilidade, firmeza, seguração; ação ou efeito de assegurar e garantir alguma coisa; garantia, fiança, caução; estado, qualidade ou condição de uma pessoa ou coisa que está livre de perigos, de incertezas, assegurada de danos e riscos eventuais, afastada de todo mal; estado, condição ou 123 ou imaginário, visível ou latente, enfim, que tem seu natural desenvolvimento coibido pelo medo opressivo. Ou, como sustenta R. Friede: “evidentemente não resta suficiente para o indivíduo viver e ser livre, sendo também necessário que possua a mínima segurança de que os seus bens corpóreos e incorpóreos não sejam alcançados pelo arbítrio estatal ou privado”. 237 A preocupação com a segurança pessoal, que é aquela que de forma mais direta aqui nos interessa, jamais foi olvidada quando do alinhamento dos fundamentais direitos humanos. Assim, a garantia expressa do direito à segurança e os cuidados concernentes a sua concretização logo ganharam espaço nas proclamações afins. Com efeito, já em 1215, fartos da tirania de soberano de “espírito tacanho e trapaceiro”, os barões e clérigos ingleses marcharam contra Londres e obrigaram João Sem Terra a assinar aquela que ficaria conhecida nos séculos futuros como a grande página das liberdades, a Magna Charta libertatum 238 . Como expressão de repulsa aos desmandos cometidos, foram seus artigos preenchidos com várias garantias contra o abuso do poder real, especialmente contra aquele amiúde perpetrado pelos xerifes, condestáveis e bailios, os funcionários responsáveis pela manutenção da ordem 239 . caráter daquilo que é firme, seguro, inabalável, ou daquele com quem se pode contar ou em quem se pode confiar inteiramente; situação em que não há nada a temer; a tranqüilidade que dela resulta; conjunto de processos, de dispositivos, de medidas de precaução que asseguram o sucesso de um empreendimento, do funcionamento preciso de um objeto, do cumprimento de algum plano etc.; certeza, infalibilidade; convicção; evidência” . 237 FRIEDE, R. Lições objetivas de direito constitucional e de teoria geral do estado, p. 132. 238 ALTAVILLA, Jayme de. Origem dos direitos dos povos. São Paulo: Ícone, 1989., p. 150. Sem superestimar ou subestimar o valor desse documento, o autor ressalta sua posição e seu valor de “molde constitucional”. Deixa entrever, ademais, que da resistência que lhe foi imposta pelo rei João Sem Terra e por seus pósteros imediatos é que teve origem o Parlamento inglês, forjado a partir das assembléias que se reuniam para reivindicar a revigoração da Magna Carta. Foi essa instituição que, ao longo dos séculos seguintes, se bateu numa prolongada e por fim exitosa queda de braço com a Coroa arrogante e caprichosa, logrando afinal submete-la, com a vitória na Revolução Gloriosa, ao jugo da soberania popular (p. 153). Quem com maior requinte expôs essa belíssima saga foi Pontes de Miranda, em sua magistral obra História e prática do hábeas corpus - tomo I: direito constitucional e processual comparado. 239 Vide, dentre outros, arts. 38: “nenhum sheriff’’ ou bailio poderá tomar à força carroças nem cavalos para nossas bagagens, salvo se abonar o preço estipulado...”; 47: “nenhum bailio ou outro funcionário poderá obrigar a quem quer que seja a se defender por meio de juramento ante sua simples acusação ou testemunho...”; 62: “ficará proibido ao sheriff oprimir e vexar a quem quer que seja ...”. 124 Passados quatro séculos, muitas batalhas e inúmeros avanços na luta contra a tirania, uma nova e definitiva Carta de Direitos – Bill of Rights, 1689 – foi conquistada pelo povo inglês, dessa vez não mais subscrita pelo soberano, mas por ele apenas estimulada, eis que declarada pelo Parlamento. Lords e comuns, legaram ao mundo, em suas próprias palavras, “um conjunto de direitos e liberdades incontestáveis”, que jamais poderia ser deduzido em prejuízo do povo. E foi no Novo Mundo que essas palavras mais reverberaram, não tardando a insuflar os puritanos que, desde 1620, desembarcaram na América do Norte, e ali, às duras penas, estabeleceram colônias, a sonhar com a liberdade que na prática lhes negavam as autoridades britânicas. Tendo por exemplo Massachusetts, que já em 1641 promulgara sua Declaração de Direitos, foram as demais colônias paulatinamente desenhando suas Constituições, ao tempo que planejavam suas independências, conquistadas, após vigorosa refrega, em 4 de julho de 1776. Cerca de um mês antes, entretanto, o “bom povo da Virginia”, por seus representantes reunidos em Williamsburg, solenemente afirmou que “gozar a vida e a liberdade com os meios de adquirir e possuir propriedades, de procurar obter a felicidade e a segurança” eram direitos naturais, essenciais e indisponíveis de todos os homens. E mais: que o governo somente seria instituído para a proteção e segurança do povo, sendo nesse sentido elencadas uma extensa série de garantias contra o arbítrio estatal. Com o advento da Federação, a Constituição dos Estados Unidos da América pode ser elaborada, malgrado a míngua de uma Carta de Direitos, mercê da crença que esse espaço restaria bem ocupado pelas pertinentes disposições das Leis Magnas estaduais. A contornar tal omissão, ainda em 1789, várias emendas foram propostas ao recentíssimo texto formulado, sendo dez delas aprovadas em 1791, compreendendo exatamente salvaguardas contra os excessos estatais. 240 240 Vale registrar: 1ª - direitos relativos ao culto religioso, à liberdade de expressão e de imprensa, direito de reunião e de petição; 2ª - possibilidade de instituição de milícia para a segurança estadual e autorização de porte de arma como condição de segurança individual; 3ª - proteção da população contra o arbítrio militar; 4ª - privacidade das pessoas, restando as buscas domiciliares sujeitas a prévio mandado judicial, a ser expedido mediante demonstração de justa causa; 5ª - devido processo legal: princípios processuais fundamentais como 125 Enquanto isso, do outro lado do Atlântico, o revolucionário francês, em 1789, prescreveu, no art. 2 o da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, e de maneira ainda mais específica, que o direito à segurança afigurava-se natural e imprescritível, devendo ser conservado pelo Estado. Reconheceu, ademais, no art. 12, que “a garantia dos direitos do homem e do cidadão necessita da força pública”, ressaltando, entrementes, que “esta força é, pois, instituída pela vantagem de todos e não para a utilidade aos quais foi confiada”. E, como penhor dessa ordem estabeleceu, no art. 6 o : “Os que solicitam, expedem, executam ou fazem executar ordens arbitrárias devem ser punidos”. Em 1793, em nova Declaração, o direito à segurança foi reafirmado – ao lado da igualdade, da liberdade e da propriedade – como fim do governo, pois pressuposto da felicidade. E depois definido: “Art. 8 – A segurança consiste na proteção, concedida pela sociedade a cada um dos seus membros, para a conservação de sua pessoa, de seus direitos e de suas propriedades. Art. 9 – A lei deve proteger a liberdade pública e individual contra a opressão dos que governam”. A Declaração de Direitos e Deveres da Constituição francesa de 1975 bisou a segurança como direito fundamental do homem em sociedade, concebendo-a como o resultado “do concurso de todos, para asseguraros direitos de cada qual” (art. 4). Depois, exigindo que cada um cumpra seus deveres, ordenou : “Ninguém é homem de bem se não observa sincera e religiosamente as leis. Aquele que viola abertamente as leis declara-se em estado de guerra contra a sociedade (...) fere os interesses de todos: se torna indigno da benevolência e da estima geral” (arts. 5 a 7 do rol de deveres). 241 a instituição do júri para crimes mais graves, proibição do bis in idem (double jeopardy) e da auto- incriminação, além do direito de justa indenização em caso de desapropriação; 6ª - outros princípios do fair trial: julgamento rápido por júri do local dos fatos, devendo o réu ser previamente informado sobre a acusação, assegurado-lhes os direitos de contar com advogado e de arrolar e inquirir testemunhas. (para os juristas tratou-se, pois, de a miniature code of criminal procedure); 7ª - júri para as causas cíveis; 8ª - proibição de fiança ou multa excessivas e de penas cruéis e não usuais; 9ª - caráter meramente exemplificativo dos direitos constitucionais; 10ª - competência dos Estados para legislar sobre aquilo que não fora objeto de expressa restrição pela Constituição Federal. 241 Não é nova, pois, essa idéia, que enxergando o (por vezes apenas o suposto) infrator da lei como adversário, propõe-lhe simplesmente o castigo, à guisa de indisfarçável vingança. Hoje, constitucionalmente superada, essa tendência, entrementes, prossegue, segundo A. Lindgren Alves, a permear a realidade, inclusive influindo na formação de policiais, treinados para “travar uma guerra contra o inimigo, portanto, ‘o 126 Já plenamente associado à dignidade da pessoa humana, o vertente direito ressurgiu assegurada na Declaração Universal dos Direitos do Homem, que em seu art. 3 o dispôs : “toda pessoa tem direito à vida, à igualdade e à segurança pessoal”. Reiterando esse comando, o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos cuidou, em seu art. 9 o , de pormenorizá-lo, associando liberdade e segurança pessoal à proteção contra o arbítrio estatal, notadamente no tocante à prisão havida ao largo diferente’, assim facilitando a desumanização ideológica do delinqüente e conseqüente extrapolação da função de combate ao crime na forma de inaceitáveis abusos em tempo de paz”. E conclui: “A guerra, como é sabido, tem regras próprias no direito internacional. E o criminoso comum, por mais ignóbil que nos afigure com sua atuação transgressora, é também um ser humano integral. Cabe ao Estado, portanto, não somente reprimi-lo, mas, ao fazê-lo, procurar respeitar seus direitos. Essa é a única garantia que temos de que os nossos sempre serão respeitados” (A fotografia de um conceito, p. 10). Em que pese o inelutável acerto dessa sentença, notadamente no que tange ao trabalho policial, parece de bom alvitre registrar a preocupação de Volney Corrêa Leite de Moraes Jr., porquanto atine a um segundo exagero, ora consistente na recusa, verdadeiramente radical, de tratar o criminoso como tal, ou seja, de reconhecê-lo como alguém que, diferentemente da esmagadora maioria das pessoas, e através de uma opção racional e voluntária, pisoteou os valores agasalhados pela sociedade, atentando contra os seus integrantes, aos quais inexoravelmente representa um risco e perigo. Alude, com esse sentido, ao laxismo penal, que definiu como a “orientação doutrinária visceralmente em desacordo com os textos clássicos e modernos sobre direitos fundamentais do ser humano”. Completa, afiançando que os adeptos desse pensamento “não votam o menor apreço pelos Direitos Humanos”, pois simpáticos exatamente àqueles que transgridem a lei, até mesmo com violência. A explicar esse credo, o autor reclama da sobreposição dos direitos sociais aos direitos individuais, havida por alguns na vaza do desprezo pela doutrina dos direitos naturais, paradoxalmente aquela que fulcra as declarações históricas dos direitos do homem (Direitos humanos, pp. 45-46). É Michel Foucault que indica o ponto de equilíbrio: “O princípio da moderação das penas, mesmo quando se trata de castigar o inimigo do corpo social, se articula, em primeiro lugar, como um discurso do coração. Melhor, ele jorra como um grito do corpo que se revolta ao ver ou ao imaginar crueldade demais. A formulação do princípio de que a penalidade deve permanecer ‘humana’ é feita, entre os reformadores, na primeira pessoa. Como se exprimisse imediatamente a sensibilidade daquele que fala; como se o corpo do filósofo ou do teórico viesse, entre a fúria e o carrasco do suplicado, afirmar sua própria lei e impô-la finalmente a toda a economia das penas. Lirismo que manifesta a impotência em encontrar o fundamento racional de um cálculo penal? Entre o princípio contratual que rejeita o criminoso para fora da sociedade e a imagem do monstro ‘vomitado’ pela natureza, onde encontrar um limite, senão na natureza humana que se manifesta – não no rigor da lei, não na ferocidade do delinqüente – mas na sensibilidade do homem razoável que faz a lei e não comete crimes”. E depois complementa: “O sofrimento que deve ser excluído pela suavização das penas é o dos juízes ou dos espectadores com tudo o que pode acarretar de endurecimento, de ferocidade trazida pelo hábito, ou ao contrário de piedade indevida, de indulgência sem fundamento. O que se precisa moderar e calcular, são os efeitos de retorno do castigo sobre a instância que pune e o poder que ela pretende exercer” (Vigiar e punir : nascimento da prisão, p. 77). Eis, pois, a opção constitucional pela dignidade da pessoa humana, referência geral e inexcedível no Estado Democrático de Direito. Jorge Miranda, reportando-se ao alcance dado ao princípio pela Constituição portuguesa, em contexto absolutamente próximo ao brasileiro, acaba por afiançar a correção das ponderações ínsitas tanto no pronunciamento de Lindgren Alves, como da advertência de Volney, que buscam distância da radicalização. Afirma o jurista lusitano que “a dignidade da pessoa é da pessoa concreta, na sua vida real e quotidiana; não é de um ser ideal e abstracto (Sic). É o homem ou a mulher, tal como existe, que a ordem jurídica considera irredutível e insubstituível e cujos direitos fundamentais a Constituição enuncia e protege”. Nesse caminhar, em que à cada pessoa é reconhecido valor eminente, aflora naturalmente inaceitável, em qualquer circunstância, a pena de morte ou outras formas de a violação direitos à vida, à integridade física e psíquica e à proteção contra qualquer forma de atentado contra a dignidade individual e social de cada um. Por fim declarou que, por força do focalizado princípio, “a Constituição afasta e repudia qualquer tipo de interpretação transpersonalista ou simplesmente autoritária que pudesse permitir o sacrifício dos direitos ou até da personalidade individual em nome de pretensos interesses coletivos” (MIRANDA, Jorge. Manual de Direito Constitucional, p. 169-170). 127 do processo legal. Quanto aos encarceramentos legítimos, determinou tratamento humano e respeitoso, jamais atentatória contra a dignidade do preso (art. 10). Dessa linha não distaram os correspondentes preceitos estabelecidos nos sistemas regionais de proteção dos direitos humanos, em contexto de grande identidade nos âmbitos interamericano – a Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem (art. 1 o ) e a Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica, art. 7 o ) – e europeu – Convenção Européia para a Proteção dos Direitos Humanos e das Liberdades Fundamentais (art. 5 o ) –, e de forma mais breve pela Carta Africana dos Direitos Humanos e dos Povos (art. 6 o ) e naapenas projetada Carta dos Direitos Humanos e dos Povos do Mundo Árabe (art. 4 o ). No Brasil, o direito à segurança individual retroage à Constituição de 1824, que no “caput” do seu art. 179 ladeou-o à liberdade e à propriedade. E a torná-lo concreto a Carta Imperial consagrou, nos incisos desse dispositivo, a legalidade como parâmetro único para o exercício da liberdade em suas várias formas (consciência, locomoção etc.), diversas ressalvas contra a prisão arbitrária, a proscrição da tortura e de suplícios do gênero, dentre outras medidas assecuratórias da dignidade humana. 242 Com a República nada mudou, permanecendo assegurada, na Constituição de 1891, a inviolabilidade ao direito à segurança individual (art. 72). Idem com a Lei Fundamental de 1934 (art. 113), remanescendo esse direito constitucionalizado mesmo com o advento do Estado Novo e de sua dura Carta em 1937 (art. 122). 242 Comentando a Carta Imperial, José Antonio Pimenta Bueno registrou a respeito: “O direito de segurança é a garantia de liberdade e mais direitos naturais; é o primeiro sentimento do homem e mesmo o instinto dos animais, é a conservação, a defesa de si próprio, é a proteção da existência individual, o direito de viver e não sofrer. Conseqüente, no estado social é o direito que o homem tem de ser protegido pela lei e sociedade em sua vida, liberdade, propriedade, sua saúde, reputação e mais bens seus. É finalmente o direito de não ser sujeito senão à ação da lei, de nada sofrer de arbitrário, de ilegítimo. É a proteção social que substitui a proteção, a força individual do homem, que ele faria prevalecer se não estivesse em sociedade, e que pela natureza das coisas ele conserva quando se acha em circunstâncias tais que não pode pedir ou receber o socorro social para defender-se” (Dos direitos dos brasileiros, p. 698). 128 As Constituições brasileiras seguintes conservaram tal previsão, sempre arrolada entre os direitos e garantias individuais. Em 1946 foi a segurança individual preconizada no art. 141 da Lei Maior. Já sem a especificação “individual”, o direito à segurança foi consignado no art. 150 da Constituição de 1967, sendo nessa forma conservado, então no bojo do art. 153, no texto modificado pela Emenda nº 1, de 17 de outubro de 1969. Nessa senda, e como não poderia se haver de maneira diferenciada ante a fundação de um Estado Democrático de Direito, o direito à segurança despontou, na Constituição da República promulgada em 5 de outubro de 1988, completando – ombreado aos direitos à vida, à liberdade, à igualdade e à propriedade – o rol dos direitos individuais, consolidado no “caput” do seu art. 5 o . Acerca da garantia constitucional da segurança individual comenta Manoel Gonçalves Ferreira Filho: A segurança do indivíduo na comunidade demanda, segundo uma experiência multissecular, o Estado de Direito. Ou seja, um ‘governo de leis e não de homens’. Governo este em que cada um seja livre de fazer o que as leis não proíbem, em que ninguém estará obrigado a fazer senão o que as leis determinam (Constituição art. 5 o , II). Portanto, um governo de que esteja proscrito o arbítrio. Numa palavra, um governo baseado da legalidade e limitado por ela. 243 Releva notar, nesse diapasão, que não basta a positivação constitucional para que o direito à segurança se torne uma realidade. Para a consecução dos objetivos de segurança individual e comunitária, impõe-se que, para muito mais, venham os governantes a pautar suas ações pelos dispositivos concernentes, especialmente ao criar, estruturar, organizar, propiciar e manter o funcionamento dos organismos públicos afins, especialmente dos órgãos polícias, aos quais a Carta Magna confiou a proteção da sociedade. De efeito, e quem nos assegura ainda é Ferreira Filho, os maiores riscos à segurança – a começar pela segurança do próprio Estado 243 FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Aspectos do direito constitucional contemporâneo, p. 151. 129 Democrático, frise-se –, provém exatamente daqueles que governam irresponsável e criminosamente : A principal ameaça é a de uma delinqüecência do poder derivada da desmoralização dos governos por força da corrupção inextirpada e recorrente. Conquanto seja óbvio que nem todos os homens públicos, nem sequer a maioria destes são corruptos, a imagem que se difunde é que toda a “classe política” o é. Resulta isto de escândalos que rebentam em toda parte, em todos os níveis do Poder, quase todos os dias. Tal situação abre oportunidade para a derrubada das instituições em nome da salvação pública. 244 Portanto, é de se indagar: governantes irresponsáveis e corruptos haverão de trabalhar em prol de uma polícia que – porque comprometida com a probidade e a dignidade humana, e além disso eficiente e bem aparelhada – certamente haverá de se voltar contra e coibir as aldabrices do poder político, perpetradas quer por aqueles que ocupam cargos, quer por seus sequazes e aqueloutros favorecidos ? Maria Victória Benevides, tangenciando o tema, identifica como “um dos principais vícios da polícia brasileira (...) a privatização da política, a privatização do poder, em todos os níveis”. E explica: É no nível federal que os governadores se apropriam privadamente do poder e que o fazem em detrimento da sua responsabilidade em relação ao programa de governo, ao atendimento de prioridades públicas; é o representante do Legislativo que usa o seu mandato face aos interesses privados; e pode ser também a privatização dos órgãos policiais, em relação a um determinado governador, em relação a uma determinada corrente política, em relação a determinadas autoridades ou a determinados grupos nos órgãos estatais, em detrimento do interesse público do povo. 245 Qual o governante, se não verdadeiramente honesto, competente e ainda realizador, que concordará, pois, em conferir alguma autonomia – de direito e não apenas faticamente por casuísmo, fraqueza ou inaptidão – aos órgãos policiais, dotando-lhes, ademais, com as condições de reprimir não apenas a criminalidade 244 Ibidem, p. 152-153. 245 BENEVIDES, Maria Victoria de Mesquita, op. cit., p. 81-82. 130 rasteira, mas, também, aquela cometida em detrimento da própria moralidade pública, e que representa o risco maior, como acima evidenciado? Qual governante, senão desse jaez, tolerará ser – ele próprio ou seus parceiros e financiadores – eficientemente investigado por profissionais de alto gabarito técnico e ético, sem enxergá-los como estorvos e meros subordinados? Como, então, com a polícia manietada, poderá a população estar segura em relação àqueles que destroem o Estado Democrático? O que uma polícia inerme poderá contra aqueles que fazem perenes os muitos fatores que conduzem a todas as espécies de criminalidade, quer institucionalizando-os, para proveito próprio e de seus parceiros, quer simplesmente omitindo-se diante dos obstáculos que persistentemente se antepõe à conquista da dignidade humana, como a fome, a ignorância, a corrupção e a injustiça? Contra aqueles que não se acanham em utilizar exatamente essas e outras cadeias para manter as forças policiais incapazes de discernir quem são os verdadeiros e grandes criminosos, empurrando-as cada vez mais para o front nos morros ou periferias, para matar ou morrer, a bem das estatísticas? Todas estas questões e dificuldades haverão de ser convincentemente solvidas antes que o direito à segurança venha a transcender a condição de uma mera promessa gráfica. Lembrando Dallari, ora se nos é lícito afirmar que qualquer modelo de polícia forjado ao largo das vertentes preocupações servirá, tão-somente, como objeto de opressão, prestando-se a reprimir e nada mais: daí, por sorte,atacará aos que se aventuram ao crime, movidos por tendência ou por falta de opção; e falhando, como inevitavelmente mais hora ou menos hora haverá de acontecer, voltar-se-á contra qualquer cidadão, eis que nas trevas eternas que reinam nas mentes repressoras todos os gatos são pardos (e na prática, como afirma o ditado, todos os pardos suspeitos em potencial – culpados até que provem o contrário). É óbvio que essa polícia desserve à efetiva proteção de cada indivíduo, não podendo, pois, ser tomada como aquela que se afigura inerente e foi jurada pela Constituição da República. Essa é a polícia tradicional, a polícia do centenário 131 apartheid brasileiro, aquela que, segundo a sabedoria popular, somente exerce o seu poder contra os desvalidos – pretos, prostitutas e pobres – ou seja, contra o chamado povão! É Bobbio quem categoricamente afirma que o grande e grave desafio dos dias atuais não consiste em dar um adequado fundamento aos direitos do homem, mas sim em efetiva e eficazmente protegê-los 246 . Não resta dúvida que em face da conformação constitucional brasileira, o referido desafio ganha o campo das instituições, perante as quais desenrolam-se as relações sociais. No que pertine à segurança individual, exsurge de toda imperiosa a adequação policial, ora posta em evidência, a fim de que o braço armado do Estado deixe de covardemente representar uma possível ameaça à população para denodadamente defendê-la, consoante o inexorável compromisso do Estado brasileiro com a promoção e a proteção dos direitos humanos fundamentais. 3.5.2. A dignidade da pessoa humana, a segurança pessoal e o devido processo legal. José Afonso da Silva define o direito à segurança como o conjunto de garantias constitucionais que “aparelha situações, proibições, limitações e procedimentos destinados a assegurar o exercício e o gozo de algum direito individual fundamental (intimidade, liberdade pessoal ou incolumidade física ou moral) 247 . Dentre essas garantias destaca-se, sobremaneira, aquela que, em razão de sua relevância histórica, ética e jurídica, constitui-se a maior salvaguarda contra o abuso do poder estatal, e que desde 1998 passou a figurar numa Constituição brasileira, cujo art. 5º, LIV, ineditamente dispõe que “ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal”. Malgrado a recentidade da sua inclusão no ordenamento constitucional brasileiro, é bem verdade que a cláusula do due process of law não se apresenta 246 BOBBIO, Norberto. A era dos direitos, p. 25. 247 SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo, p. 435. 132 nenhuma novidade, sendo, de longa data, familiar, especialmente à nossa doutrina, sempre iluminada, nesse particular, pelo direito alienígena. Realmente, a versada fórmula constitucional aproxima-se de completar os seus oitocentos anos, posto que já em 1215, a Magna Carta prescrevia: “ninguém poderá ser detido, preso ou despojado de seus bens, costumes e liberdades, senão em virtude de julgamento de seus pares segundo a lei do País”. Em 1354, foi a vez de Eduardo III jurar que, na Inglaterra, “nenhum homem, de qualquer estado ou condição que seja, será expulso de suas terras ou posses, nem detido, nem preso, nem indiciado, nem levado à morte, sem que seja chamado para responder (a uma acusação), sob o devido processo legal”. E a força desse princípio, numa cultura em que o amor pela liberdade foi realmente enraizado, pode melhor ser aferida mediante a percepção de sua epopéia transatlântica, pois foi em território norte-americano – onde despontou inicialmente na Lei para as Liberdades do Povo de Maryland de 1639, umbilicalmente ligado à Magna Carta, e depois, como a primeira lei genuinamente americana do gênero, no Corpo de Liberdades de Massachusetts de 1641 – que o devido processo legal firmou-se como a garantia de todos os direitos constitucionalmente reconhecidos. 248 A partir de 1776, a cláusula foi sendo paulatinamente introduzida em praticamente todas as constituições elaboradas a guisa de manifesto de emancipação das ex-colônias, constando, por exemplo, da pioneira Declaração de Direitos do Bom Povo da Virgínia (adotada precedentemente à independência americana), nos termos seguintes : Em todos os processos por crimes capitais ou outros, todo indivíduo tem direito de indagar da causa e da natureza da acusação que lhe é intentada; tem de ser acareado com seus acusadores e com as testemunhas; de apresentar ou requerer a apresentação de testemunhas e de tudo que seja a seu favor, de 248 SCHWARTZ, Bernard. Os grandes direitos da humanidade : the bill of rights, p. 41-44. Comenta o autor, que Sir Edward Coke, em estudos datados do século XVII, concluiu pela equivalência das expressões “pela lei da terra” e “devido processo legal”, compondo ambas, através das correspondentes formulações, “como uma proibição em termos absolutos de toda e qualquer prisão arbitrária; e como um compromisso solene de dispensar a todos uma justiça plena, livre e rápida ... e igual para todos” (p. 16). 133 exigir processo rápido por um júri imparcial da sua circunvizinhança, sem o consentimento unânime do qual ele não poderá ser declarado culpado. Não pode ser forçado a produzir provas contra si próprio; e nenhum indivíduo pode ser privado de sua liberdade, a não ser por julgamento de seus pares, em virtude da lei do país. Sobrevindo a Federação, a Constituição dos Estados Unidos, promulgada em 1789, deixou de apresentar uma carta de direitos, mercê da crença que tudo o que não fora proibido pela Lei Maior restava permitido, mantendo-se dessa forma preservadas todas as garantias arroladas nas declarações estaduais. Todavia, tal situação desde cedo não se apresentou satisfatória, levantando-se, em ressonância ao forte sentimento popular, pronunciado ainda durante o processo de ratificação pelas convenções estaduais, um sem número de altas vozes em favor de uma Declaração Federal de Direitos. Assim, sem qualquer tardança, em 1791 foram aprovadas – com a derradeira ratificação da Virgínia, em 15 de dezembro – dez emendas à Constituição americana, elaboradas por James Madison, com absoluto lastro nas disposições estaduais assecuratórias das liberdades pessoais. Dentre elas, importa destacar a famosa 5 a Emenda: Nenhuma pessoa será obrigada a responder por um crime capital ou infamante, salvo por denúncia ou pronúncia de um grande júri, exceto, em se tratando de casos que, em tempo de guerra ou de perigo público, ocorram nas forças terrestres ou navais, ou na milícia, quando em serviço ativo; nenhuma pessoa será, pelo mesmo crime, submetida duas vezes a julgamento que possa causar-lhe a perda da vida ou de algum membro; nem será obrigada a depor contra si em processo criminal ou ser privada da vida, liberdade ou propriedade sem processo legal regular;[...]. 249 249 Grifo do autor. À perfeita compreensão das dimensões e da efetividade das garantias instituídas em consonância à vontade popular aflora aqui, de todo necessário, proceder à conjugação desse enunciado com as pertinentes salvaguardas nesse mesmo contexto, mas insertas na Constituição Americana – vide nota 245 – dentre as quais sobressaem a 4 a Emenda (Não será infringido o direito do povo à inviolabilidade de suas pessoas, casas, papéis e haveres, contra buscas e apreensões injustificáveis e não se expedirá mandado a não ser mediante indícios de culpabilidade, confirmados por juramento ou declaração, e nele descreverão particularmente o lugar da busca e as pessoas ou coisas a serem apreendidas), a 6 a Emenda (Em todos os processos criminais o acusado terá direito a julgamento rápido e público, por um júri imparcialdo Estado e distrito onde o crime houver sido cometido, distrito esse que será previamente delimitado por lei; a ser informado da natureza e causa da acusação; a ser acareado com as testemunhas de acusação; a dispor dos meios compulsórios para forçar o comparecimento de testemunhas de defesa e a ser assistido por advogado) 134 Sobre a sua magnitude expôs Schwartz : Quando Madison incluiu a expressão “devido processo” no que viria a ser a Quinta Emenda, garantiu à Declaração de Direitos a possibilidade de ser utilizada para atender às condições futuras. Devido processo expressa algo mais que posições restritas do século XVIII; é um reflexo duradouro da experiência com a natureza humana. O conceito de devido processo tem permitido ao Supremo Tribunal dos Estados Unidos atuar virtualmente como uma convenção constituinte permanente, adaptando o texto constitucional às necessidades das épocas posteriores. 250 Mister, pois, atentar para a amplitude da fórmula do due process of law, que abriga dois sentidos, sendo um de ordem objetiva ou formal e outro de ordem subjetiva ou material. Malgrado razão assista a Sampaio Dória ao declará-lo “insuscetível de confinamentos conceituais, que o esvaziariam em seus significados mais fecundos” 251 , o conteúdo substancial do due process pode bem ser compreendido a partir da didática lição do Justice Roberts, que o apresenta como a garantia que “reclama apenas que a lei não seja desarrazoada, arbitrária ou caprichosa e que os meios escolhidos tenham um real e substancial nexo com o objetivo que se menciona atingir”. 252 Já sob o aspecto material, aquele que neste e a 8 a Emenda (Não se exigirão fianças exageradas, não se imporão multas excessivas, nem se infligirão penas cruéis e desumanas). Vide ainda SCHWARTZ, Bernard. Direito Constitucional Americano. 250 SCHWARTZ, Bernard. In Os grandes direitos da humanidade: the bill of rights, p. 193. Com sentido complementar esclareceu o Justice Felix Frankfurter: “Due process não pode ser aprisionado dentro dos traiçoeiros lindes de uma fórmula ... due process é o produto da história, da razão, do fluxo das decisões passadas e da inabalável confiança na força da fé democrática que professamos. Não é um padrão. É um processo. É um delicado processo de adaptação que inevitavelmente envolve o exercício de julgamento por aqueles a quem a Constituição confiou o desdobramento desse processo” (Apud SAMPAIO DÓRIA, Antonio Roberto. Direito constitucional tributário e due process of law: ensaio sobre o controle judicial da razoabilidade das leis, p. 33). 251 SAMPAIO DÓRIA, Antonio Roberto. Op. cit., p. 33. A reforçar tal tese o autor reporta-se à dicção do Chief-Justice Earl Warren: “Due process é um conceito esquivo. Suas exatas fronteiras são indefiníveis e seu conteúdo varia de acordo com os específicos contextos fáticos”. 252 Ibidem, p. 32. Ou na locução menos concisa do Ministro Celso de Mello: “Todos sabemos que a cláusula do devido processo legal – objeto de expressa proclamação pelo art. 5º, LIV, da Constituição – deve ser entendida, na abrangência de sua noção conceitual, não só no aspecto meramente formal, que impõe restrições de caráter ritual à atuação do Poder Público, mas, sobretudo, em sua dimensão material, que atua como decisivo obstáculo à edição de atos legislativos de conteúdo arbitrário ou irrazoável. A essência do substantive due process of law reside na necessidade de proteger os direitos e as liberdades das pessoas contra qualquer modalidade de legislação que se revele opressiva ou, como no caso, destituída do necessário coeficiente de razoabilidade. Isso significa, dentro da perspectiva da extensão da teoria do desvio de poder ao plano das atividades legislativas do Estado, que este não dispõe de competência para legislar ilimitadamente, de forma imoderada e irresponsável, gerando, com seu comportamento inconstitucional, situações normativas de absoluta distorção e, até mesmo, de subversão dos fins que regem o desempenho da função estatal”. 135 momento mais nos interessa, surge o devido processo legal como a exigência constitucional de um processo legalmente ordenado, vincado pelo pleno e irrestrito respeito às garantias necessárias ao regular exercício da defesa contra o arbítrio, especialmente na órbita penal. Ou, na acendrada visão de R. Friede: O conjunto complexo e plural de “diversas garantias constitucionais” que, associados aos parâmetros da ética e da moral, buscam, em última análise, assegurar o correto exercício da jurisdição, ao mesmo tempo que legitimam o próprio poder jurisdicional exercido pelo Julgador e titularizado pelo Estado Juiz. 253 É no Estado Democrático de Direito que, à luz da supremacia constitucional, o processo transforma-se de simples instrumento de justiça em garantia da liberdade 254 . Por essa via, a tutela constitucional do processo define como devido apenas o processo legal que realiza a vontade da Constituição, alcançando os objetivos desse Estado, antes dissecados. Nessa conjuntura, como reconhece Jorge de Figueiredo Dias, o direito processual penal surge, e por excelência, como o “direito constitucional aplicado”, como “sismógrafo” ou “espelho da realidade constitucional”, “sintoma do espírito político-constitucional de um ordenamento jurídico”. 255 Com efeito, servindo como consentâneo termômetro à aferição da importância devotada por um povo ao resguardo dos direitos concretizadores da dignidade humana, o devido processo penal perfaz fidedigna expressão do (ADIn 1.158-8, pleno, em 19.12.1994. Com o mesmo teor: ADIMCQ 1063/DF, pleno, em 18.5.1994, DJ 27.4.01). 253 FRIEDE, R. A garantia constitucional do devido processo legal, p. 49. 254 GRINOVER, Ada Pellegrini. Novas tendências do direito processual: de acordo com a constituição de 1988, p. 15. 255 Apud DOTTI, René Ariel. A reforma do processo penal, p. 500. Osmar Fernando de Medeiros observa que o processo constitucional penal prende-se à preservação da dignidade da pessoa humana, colocando num plano secundário o interesse público, “justamente para defende-lo, na garantia de que diante da dinâmica social e histórica, o homem prevaleça sobre a posição (de réu, testemunha, parte) que ocupa”. E em reforço dessa tese invoca o citado jurista português, o qual enfatiza : “Constitui (o processo penal) um dos lugares por excelência em que tem de encontrar-se a solução do conflito entre as exigências comunitárias e a liberdade de realização da liberdade individual. Apenas podem postular, em verdade, uma ‘agressão’ na esfera desta; agressão a que não falta a utilização de meios coercitivos (prisão preventiva, exames, buscas, apreensões) e que mais difícil se torna de justificar e suportar por se dirigir, não a criminosos convictos, mas a mero “suspeitos” – tantas vezes inocentes – ou mesmo a “terceiros” (declarantes, testemunhas e até pessoas sem qualquer participação processual). Devido processo legal e indevido processo penal, p. 61. 136 garantismo, entendido, enquanto filosofia política, no sistema que “funda o Estado sobre os direitos fundamentais dos cidadãos e que, precisamente do reconhecimento e da efetiva proteção (não basta o reconhecimento!) destes direitos, extrai sua legitimidade e também a capacidade de se renovar, sem recorrer à violência subversiva”. 256 Na mesma linha também aparece Winfried Hassemer, que além de afiançar que “o direito processual penal não é outra coisa senão direito constitucional aplicado” proclama, ainda, com os pés firmes na realidade, que “isto vale com mais ênfase no tocante às medidas de forçado inquérito policial”. 257 Se, porém, é verdade que a referida assertiva emerge inquestionável, exsurge igualmente inatacável, de outra face, o não menos sensato alerta de Ferrajoli : Podemos ter um processo penal perfeito, mas ele será sempre uma pobre realidade se o monopólio judiciário da força contra os cidadãos não for absoluto e exista uma força pública que aja sem vínculos legais. O caso limite e dramático acontece 256 Norberto Bobbio, prefaciando a primeira edição italiana da obra Direito e razão: teoria do garantismo penal, de Luigi Ferrajoli (op. cit., p. 9-10). Já sob o ponto de vista jurídico, como explica o próprio Ferrajoli, o garantismo penal projeta-se “como um sistema de vínculos impostos à função punitiva do Estado em garantia dos direitos do cidadão” (p. 684), o que, sem qualquer margem de dúvida, remete imediatamente ao vislumbre da cláusula constitucional do devido processo penal. Luiz Flávio Gomes, atento às conseqüências conformadoras que dos tratados internacionais ratificados pelo Brasil – in casu observados a Declaração Universal dos Direitos do Homem, o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos e a Convenção Interamericana dos Direitos Humanos (Pacto de San José da Costa Rica) – decorrem ao ordenamento jurídico pátrio, identifica o conteúdo do devido processo penal como uma série de “garantias mínimas”, que em síntese podem ser apresentadas através do seguinte quadro: relacionadas com a jurisdição: garantia de acesso à jurisdição, garantia do juiz natural, garantia do juiz independente e imparcial, garantia da decisão fundamentada secundum ius e secundum petitum, garantia do duplo grau de jurisdição e da proibição da reformatio in pejus e garantia da efetividade das decisões. Relacionadas com as partes: garantia da igualdade de armas ou do tratamento paritário, garantia da ampla defesa (abarcando as garantias da informação pessoal do inteiro teor da acusação, de autodefesa, de audiência, intérprete ou tradutor, de presença nos atos processuais, de participação contraditória ou dialética, mediante reperguntas etc., de comunicação livre e reservada com o seu defensor, de defesa técnica, de prazo razoável para a preparação da defesa com “meios adequados”, de não auto-incriminação, de proibição do cerceamento da defesa). Relacionadas com as provas: garantia de ser tratado como inocente, garantia de legalidade da comprovação da culpa, garantia da judicialidade da comprovação da culpabilidade. Relacionadas com o processo: garantia do modelo acusatório de processo, garantia do contraditório, garantia do processo público, garantia de ser julgado sem demora excessiva, a garantia do non bis in idem processual. Relacionadas com as medidas cautelares: garantias mínimas relacionadas com a prisão cautelar (de ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária competente e outras garantias asseguradas ao preso cautelar). As garantias mínimas do devido processo criminal nos sistemas jurídicos brasileiro e interamericano: estudo introdutório. GOMES, Luiz Flávio, PIOVESAN, Flávia (Coords). O sistema interamericano de proteção dos direitos humanos e o direito brasileiro, p. 182-257. 257 HASSEMER, Winfried. Segurança pública no estado de direito, p. 62. 137 quando a variação entre o nível normativo da legalidade e aquele efetivo da realidade alcança as formas terríveis experimentadas nos regimes militares da América Latina. Mas também nos ordenamentos nos quais o princípio da legalidade é formalmente respeitado o monopólio legal e judiciário pode ser esvanecido pelos poderes paralelos mais ou menos verificáveis em tema de liberdade conferidos pelas mesmas leis às forças policiais. 258 Daí, portanto, a essencialidade da compreensão que a nossa Lei Fundamental, e bem assim o Estado Democrático de Direito por ela constituído, mui dificilmente deixarão o papel e as belas lições da doutrina enquanto na prática, na fria realidade das ruas, durante os dias que indiferentemente se sucedem, a polícia, especialmente a judiciária, permanecer, em regra, negligenciada pelos poderes públicos, manipulada pelos governantes, menosprezada por boa parte dos juristas e dos operadores do direito, e ignorada pela população em geral. Impõe-se, em mão de direção contrária, a fim de que a dignidade humana e o direito à segurança que se lhe ostenta intrínseco possam efetivamente ganhar corpo entre nós, que a polícia judiciária brasileira seja, num primeiro momento, totalmente reestruturada, em afã levado a efeito em obediência aos parâmetros democráticos constitucionalmente cristalizados – consoante explanaremos no capítulo seguinte –, para então, quando já em condições aptas e seguras ao otimizado exercício desse mister purificado, levar a termo a devida investigação criminal, como unicamente se haverá de se conceber a legítima atuação policial judiciária, e que balizada pelas garantias do justo processo encerrará, porquanto próprio do Estado Democrático de Direito, “o respeito absoluto à pessoa humana que, casualmente, é suspeita na investigação”. 259 258 FERRAJOLI, Luigi. Op. cit., p. 614. 259 CHOUKR, Fauzi Hassan. Garantias constitucionais na investigação criminal, p. 185. 138 CAPÍTULO 4 - A POLÍCIA JUDICIÁRIA NA CONSTITUIÇÃO BRASILEIRA DE 1988 E A SUA FIDELIDADE AOS PARADIGMAS DEMOCRÁTICOS 4.1 Introdução. Tendo despontado na França há pouco mais de dois séculos, a novel instituição emergiu dum cenário revolucionário, ao fim do período que ficou conhecido como o Terror, a título de reação às atrocidades patrocinadas pela denominada Lei dos Suspeitos, de 17 de setembro de 1793, que serviu como fundamento para que a municipalidade e o Comitê Geral de Segurança, órgãos puramente administrativos e absolutamente distantes de qualquer ideal de justiça, sumariassem e condenassem à guilhotina todos aqueles dos quais desconfiassem da prática de alguma forma de rebeldia ou de traição. Os abusos, assim perpetrados em larga escala, conduziram à incontinenti reorganização dos órgãos de justiça criminal, olvidados durante a fase anterior 260 . Colimando-se a devida especialização e a adequação às exigências afins, deu-se forma legal, pois, em 25 de outubro de 1795, à polícia judiciária, idealizada como a função estatal encarregada de investigar os delitos que a atividade de polícia administrativa não pode evitar que fossem cometidos, coligindo as provas e entregando os autores aos tribunais incumbidos de puni-los. No Brasil, na forma já vista, a polícia judiciária estruturou-se em 1842, consoante previsão dos arts. 1 o e 3 o do Regulamento nº 120, de 31 de janeiro, tendo por atribuições proceder ao corpo de delito e à formação da culpa aos delinqüentes, prender os condenados, conceder mandados de busca e, ainda, julgar as chamadas infrações policiais. 260 PACHECO, José Maria Tijerino. Policial judicial: una perspectiva latinoamericana, p. 43. 139 Na República, os contornos da polícia judiciária foram moldados pelo art. 4 o do Código de Processo Penal de 1941, que a identificou como a atividade voltada primacialmente à elucidação das infrações penais, mediante constatação da materialidade e apuração de suas circunstâncias e autoria. Em 1967, essa atividade aclaratória ganhou presença constitucional, cometida à Polícia Federal (art. 8 o , VI, “c”, da Constituição promulgada em 24 de maio). Finalmente, em 1988, no bojo da Constituição Cidadã, a polícia judiciária aflorou como função inerente a determinados órgãos estatais encarregados do exercício da segurança pública, qual adiante abordar-se-á. 4.2. A institucionalização da segurança pública: mera acomodação constitucional ou um passo necessário à defesa daordem democrática ? Fazendo-se inédita, a Constituição brasileira de 1988, inseriu em seu Título V, todo dedicado à defesa do Estado e das instituições democráticas, um capítulo (III) específico sobre a segurança pública. Tratou-se, sem dúvida, de uma inovação. Porém, e a bem da verdade, impõe- se atentar para o fato de que sob essa original rubrica coisa alguma, entretanto, foi acrescentado em termos de novidades, eis que o art. 144, o único do capítulo, não serviu, na realidade, para nada além do óbvio : primeiro, enumerando os órgãos policiais responsáveis pela execução da segurança pública - e não indo além daqueles já existentes -, para, em seguida, fixar-lhes as competências, conforme já há muito estabelecidas. E os únicos dispositivos que desservem a esses propósitos permanecem até hoje privados de eficácia, em face da inércia legislativa. É fato que, ainda hoje, inexistem leis a disciplinar a organização e o funcionamento desses órgãos, de modo a garantir-lhes atuação eficiente, consoante desde 1988 reclama o § 7 o desse artigo 261 , e também a regulamentar a atuação das 261 Essa protelação, aparentemente inexplicável, talvez se mostre sintomática quando entendemos, com Tércio Sampaio Ferraz Jr., que se “faz mister uma política nacional de segurança pública, para além da 140 guardas municipais, objeto do subseqüente § 8 o . Por fim, o § 9 o , acrescido pela Emenda Constitucional nº 19, de 4 de junho de 1988, estendeu aos policiais – até hoje inutilmente – a remuneração na forma de subsídios, nos termos do art. 39, § 4 o , do mesmo diploma. Outrossim, é de ressaltar que mesmo no que toca aos órgãos policiais elencados no art. 144, apenas três ainda não possuíam assento constitucional, quais sejam, as polícias rodoviária e ferroviária federais e as polícias civis dos Estados, posto que, como anteriormente demonstrado, tanto a polícia federal como as polícias militares, já se faziam presentes em Cartas anteriores. Do ponto de vista orgânico, ademais, a Constituição de 1988 serviu somente à acomodação de uma situação preexistente, sem nada alterar na realidade policial brasileira d’então. Assim, paradoxalmente, a estrutura de segurança pública, estabelecida ao tempo, e por obra dos governos militares pré-abertura, veio a ganhar concreção constitucional justamente no corpo da Constituição que fundou o Estado Democrático de Direito brasileiro! José Afonso da Silva conta-nos que ainda na Comissão Provisória de Estudos Constitucionais, num primeiro momento, enquanto trabalhava-se com a duplicidade de organismos policiais, aludia-se, a par das Forças Públicas, às Polícias Judiciárias estaduais, as quais incumbiria, assim como à Polícia Federal, “a apuração das infrações penais e a prática de atos administrativos correlatos”. A estruturação dos organismos civis seria objeto de lei complementar. Mais tarde, mas ainda na mesma sede, decidiu-se então pela unificação das polícias, devendo aquelas existentes ser fundidas num só organismo de natureza civil, consoante a tese universalmente aceita que a atividade estatal de polícia é função puramente “paisana” 262 . Atuaria esse novo órgão igualmente no transitoriedade dos governos e arredada de toda instrumentalização clientelista” (Apud MORAES, Alexandre. Direito constitucional, p. 593). 262 Carlos Magno Nazareth Cerqueira aduz que “a estrutura militar da polícia não é incompatível com a democracia, desde que se compreenda a natureza civil da atividade policial e a necessidade da sua submissão ao poder civil”. Op. cit., p. 147. 141 policiamento ostensivo, por meio de corpo uniformizado. Aos Estados restaria a faculdade de conservar suas Polícias Militares, para atuação sempre preventiva, se e quando insuficientes os agentes uniformizados de suas reconfiguradas (se porventura já existentes) Polícias Civis. 263 O que se viu, todavia, à oportunidade da Assembléia Nacional Constituinte, foi o retrocesso desse quadro, azado por um intenso trabalho de lobby que logrou conferir status constitucional a todos os órgãos policiais então existentes, todos mantendo, além disso, suas pretéritas competências. Dessa forma, a função de polícia judiciária permaneceu, no âmbito da União, atribuída à Polícia Federal e, no plano estadual, vinculada às Polícias Civis, exceto, neste último caso, quando o seu exercício se apresentasse relacionado à persecução de crimes militares. A constitucionalização das Polícias Civis, mesmo nessa conjuntura, foi festejada por Abraão José Kfouri Filho, respeitável líder da classe dos delegados de Polícia 264 , como uma verdadeira conquista democrática, e saudada nos termos seguintes: “Institucionalizada, como já foram a Magistratura, o Ministério Público e a Advocacia, teve a Polícia Civil reconhecida sua atividade de polícia judiciária 263 SILVA, José Afonso da. Poder constituinte e institucionalização da polícia civil, p. 231-240. Importa relembrar que em 1997, quando titularizava a Pasta da Segurança Pública em São Paulo, o autor firmou projeto exatamente nesse sentido, o qual foi encampado pelo então Governador do Estado, Mário Covas, e proposto ao Presidente da República, por meio do DEG/Ofício GG.MC. nº 115/97, como uma alternativa do Executivo Federal à reforma parcial do Capítulo III do Título V da Constituição Federal. Consoante apresentação formulada pelo eminente constitucionalista, o projeto fulcrava-se na constatação que a “dicotomia polícia ostensiva e polícia judiciária e investigativa, constitui um empecilho insuperável à consecução de uma polícia preventiva eficiente. Os conflitos, os desajustes, as desarmonias entre as duas polícias constituem graves prejuízos à polícia voltada para a efetiva segurança da população”. Dessa forma, previa que as funções de policiamento preventivo passassem à competência das Polícias Civis Estaduais, que a desempenhariam através de corpos uniformizados, remanescendo às Polícias Militares a chamada polícia de “choque”, o policiamento rodoviário, de trânsito, florestal, escolar e penitenciário, e, pasme-se, o relevante “ exercício de assessorias militares”, certamente útil a revelar dimensão não apenas técnica da medida. Vale registrar que em 21 de setembro de 1998, o jornal O Estado de São Paulo denunciava, por meio de editorial justamente denominado “Segurança para poucos”, que exatamente neste Estado, quase mil policiais militares passavam os dias “abrindo portas, vigiando prédios, servindo de motoristas ou fazendo a segurança pessoal de políticos de São Paulo – muitos deles há tempos fora dos cargos públicos. O cumprimento do papel de ‘maçanetas’ – apelido pelo qual são conhecidos esses PMs, numa referência à função que desempenham – rendem gratificações salariais de até R$ 3 mil, quantia mais de quatro vezes superior ao salário integral recebido pelos soldados que enfrentam os marginais nas ruas” (p. A3). 264 Os dirigentes da polícia civil e, conseqüentemente, da polícia judiciária, segundo o disposto no art. 144, § 4 o , da Constituição da República de 1988. 142 como essencial à realização da Justiça Criminal, integrando o complexo de organismos que a viabilizam”. 265 Todavia, não acomodado como os nossos ufanistas constituintes, logo reconheceu a insuficiência dessa medida, até então de índole meramente simbólica, porquanto havida isoladamente, ao largo do oferecimento, no mesmo texto magno, de consentâneas e mínimas condições a assegurar êxito ao conseqüente labor institucional. A respeito enalteceu : Quanto às prerrogativas, constituem ela um conjunto de garantias que devam possibilitar ao Delegado de Polícia o exercício da titularidadeda polícia judiciária imune às pressões e ameaças de ordem política, administrativa ou econômica. Não se pode mais admitir que a autoridade policial, tal como o Magistrado e o Promotor de Justiça, não disponha de segurança funcional suficiente para exercer com independência a primeira fase da persecutio criminis, preocupado apenas, com os limites da Lei e da Ética. 266 Em que pese, contudo, a irrefutável prudência e o inegável acerto desse requesto, a verdade é que tais garantias, assim como quaisquer outras considerações de ordem jurídica, jamais vingaram, no cenário pátrio, a viabilizar as atividades policiais judiciárias em face da eficiência cidadã exigida pelo Estado democrático de direito fundado em 1988. 265 KFOURI FILHO, Abraão José. Op, cit., p. 25-33. 266 Ibidem, p. 32. Aludia expressamente o autor às garantias de vitaliciedade, inamovibilidade, vencimentos condignos etc. Ainda mais loquaz e claro, o experiente criminalista José Roberto Batóchio antes asseverara: “Todos nós sabemos que entre as franquias e garantias dos juízes e do Ministério Público se encontram a inamovibilidade, a irredutibilidade de vencimentos e a vitaliciedade. Ou seja, um juiz e um promotor podem dar uma sentença que desacate o poderoso de plantão, o Chefe de Estado, o Chefe de Governo do Estado, o Presidente da Assembléia Legislativa, enfim, qualquer autoridade, seja de que grau for, e estas garantias, inscritas no texto constitucional, asseguram que, no dia seguinte, quando este juiz e este promotor voltarem para seus gabinetes de trabalho, o seu gabinete de trabalho vai estar lá e a mesa vai continuar sendo dele. Se isto ocorrer, todavia, em relação a um agente da Polícia Judiciária, a um Delegado de Polícia, provavelmente injunções políticas farão com que este herói da nossa Justiça chegue ao seu gabinete de trabalho e o encontre ocupado por um substituto que vai lhe avisar que a partir daquela data ele não mais funcionará naquela Delegacia, não mais presidirá aquele inquérito. Esta é a realidade. Pensei se devia dizê-la aqui, mas sem me preocupar com o fato de provavelmente atingir ou ferir suscetibilidades, entendi que quem fala a verdade, como diz o velho refrão, não pode merecer punição, nunca merece castigo”. A polícia civil na assembléia nacional constituinte, p. 249-257. Outra não é a opinião de Fábio Konder Comparato, que aponta a função dessas prerrogativas “ é dar ao Delegado de Polícia uma estabilidade, uma independência, que ele deve ter para poder agir, até mesmo, contra aqueles que estão girando na cúpula do Poder”, eis que, como cediço, “a interferência do poder público, por razões puramente políticas ou partidárias na atividade policial, é constante” (in A Polícia e a Ética na Segurança Pública, p. 99). 143 4.3. O artigo 144 da constituição federal e a polícia judiciária: um duplo equívoco. De se observar, logo num primeiro lanço, que já a redação dispensada à caracterização constitucional da polícia judiciária exsurge absolutamente canhestra, induvidosamente imprópria, pois retira do seu conteúdo o exercício da investigação criminal. Realmente, o texto fundamental, nesse aspecto, apresentou-se falho em dois momentos, a saber: primeiro, quando o § 1 o do art. 144 dispõe à polícia federal as competências de apurar as infrações penais – cometidas contra a ordem política e social ou em detrimento de bens, serviços ou interesses da União ou [...] assim como outras infrações penais [...] –, logo no inciso I, e de exercer as funções de polícia judiciária da União, no seqüencial inciso IV; depois, no § 4 o , quando atribuiu às polícias civis “as funções de polícia judiciária e a apuração das infrações penais”. Ora, desde a sua gênese, há mais de duas centúrias, por obra da Lei de 3 do Brumário do ano IV, em solo gaulês, a polícia judiciária caracteriza-se exatamente como a função estatal – e por vezes até nomina o próprio órgão do Estado encarregado do seu exercício – destinada à investigação, promovendo o aclaramento da autoria e das circunstâncias das infrações penais. Trata-se de conceito histórico e mundial, como já restou patenteado, especialmente no capítulo 1, e, especificamente, na seção 1.4. 267 Malgrado seja verdade que impende à polícia judiciária mais do que simplesmente investigar, cabendo-lhe, outrossim, e exemplificativamente, também a 267 Vide, por exemplo, o comezinho conceito veiculado pelo verbete polícia judiciária no conhecidíssimo Vocabulário jurídico de De Plácido e Silva: “Denominação dada ao órgão policial, a que se comete a missão de averiguar a respeito dos fatos delituosos ocorridos ou das contravenções verificadas, a fim de que sejam os respectivos delinqüentes ou contraventores punidos por seus delitos ou por suas infrações. A polícia judiciária é repressiva, porque, não se tendo podido evitar o mal, por não ter sido previsto, ou por qualquer outra circunstância, procura, pela investigação dos fatos criminosos ou contravencionais, recolher as provas que os demonstram, descobrir os autores deles, entregando-os às autoridades judiciárias, para que cumpram a lei” (edição eletrônica). Idem Maria Helena Diniz, com evidente fulcro na legislação processual penal em vigência: “Polícia exercida pelas autoridades policiais, no território de suas respectivas circunscrições, com o intuito de apuração das infrações penais e de sua autoria” (op. cit., vol. 3, p. 624). 144 captura de criminosos condenados pela Justiça e a prestação de informações importantes à faina judicial, avulta igualmente inequívoca a natureza complementar e secundária dessas atividades, desdobramentos óbvios do labor investigativo, que resume-se na própria razão de ser policial judiciária. 268 269 Aliás, entre nós essa concepção também é centenária, decorrente da produção legislativa do Império, pertinente tanto à disciplina processual penal (Regulamento de 1842), quanto à matéria política (Lei de Interpretação – nº 105, de 12 de maio de 1840 – do Ato Adicional de 1834, a Lei nº 16, de 12 de agosto). Pimenta Bueno ensinava que a polícia judiciária é aquela que “tem a seu cargo rastrear e descobrir os crimes, que não puderam ser prevenidos, colher e transmittir ás autoridades competentes os indícios e provas, indagar quaes sejam os seus autores e cumplices, e concorrer efficazmente para que sejam levados aos tribunaes” (Sic). 270 Na mesma linha Canuto Mendes de Almeida advertia que “a polícia judiciária opera depois das infrações, para investigar a verdade e, a respeito, prestar informações à Justiça” 271 . Eis o convergente entendimento de José Frederico Marques: “a polícia judiciária não tem mais do que função investigatória”. 272 273 268 José Lisboa Gama Malcher, afirmando que à polícia judiciária incumbia lida investigatória, alinhava-lhe quatro funções básica, a saber: probatória, definida pelos arts. 6 o , III a VIII, 7 o , 8 o , 11,13 e 14 do Código de Processo Penal; cautelar, prevista nos arts. 6 o , I a III, e 11 desse Diploma; coercitiva, como a prisão em flagrante delito, a decretação do sigilo ou as medidas assecuratórias da indenização civil, e auxiliar, correspondendo àquelas elencadas no art. 13 do mesmo Código (Manual de processo penal brasileiro, p. 112-114.). 269 MIRABETE, Julio Fabbrini. Processo penal, p. 76. Pronunciando-se a respeito, o autor concordou que “não há realmente diferença entre essas funções, de apuração das infrações penais e de polícia judiciária, mas, diante da distinção estabelecida na norma constitucional, pode-se reservar a denominação de polícia judiciária , no sentido estrito, à atividade realizada por requisição da autoridade judicial ou do Ministério Público ou direcionada ao Judiciário (representaçãoquanto à prisão preventiva ou exame de insanidade mental do indiciado, restituição de coisas apreendidas, cumprimentos de mandados de prisão etc.)”. Em que pese o esforço desse grande processualista, sua proposta, tendente a dar-se à polícia judiciária duplo sentido, aflora inteiramente inócua, mormente se considerado que todas as atividades vislumbradas como “estritamente policiais judiciárias” dimanam justamente da capacidade investigatória em questão. Daí ingressarmos numa interminável espiral, que nada acresce de prático ou de valor ao estudo encetado. 270 PIMENTA BUENO, José Antonio. Apontamentos sobre o processo penal brasileiro, p. 3. 271 ALMEIDA, J. Canuto Mendes de. Op. cit., p. 60, grifos originais. 272 MARQUES, José Frederico. Op. cit., p. 146. 273 Interessante pontuar que, enquanto essa inexplicável dicotomização não mereceu atenção e comento dos nossos constitucionalistas, passando despercebida ou sendo apenas contornada pelos nossos processualistas, vozes outras, de timbre laico, procuraram deslindá-la, valendo aqui registrar os esclarecimentos dessa ordem 145 Enfim, é de Ferrajoli, o grande sistematizador do garantismo, que aprendemos que as atividades policiais, num Estado comprometido com a efetiva defesa das instituições democráticas e, destarte, inteiramente voltado à proteção dos direitos fundamentais dos cidadãos, deveriam se limitar a apenas três, quais sejam, a investigativa, a preventiva e as executivas e auxiliares da jurisdição e da administração. E mais importante, ressalta, que: deveriam estar destinadas a corpos de polícia separáveis entre eles e organizados de forma independente não apenas funcional, mas, também, hierárquica e administrativamente, em particular, a polícia judiciária, destinada, à investigação dos crimes e a execução dos provimentos jurisdicionais, deveria ser separada rigidamente dos outros corpos de polícia e dotada, em relação ao executivo, das mesmas garantias de independência que são asseguradas ao poder judiciário do qual deveria, exclusivamente, depender. 274 Eis a fórmula para a polícia judiciária garantista, a única compatível com o Estado Democrático de Direito brasileiro. ofertados por Carlos Magno Nazareth Cerqueira, para quem “pode-se afirmar que polícia judiciária e polícia de investigação são diferentes”, assim como acreditar que “talvez fosse isso que o constituinte brasileiro tenha querido mostrar”. É necessário atentar para o fato de que essa convicção não decorre, entrementes, de nenhuma exegese ou hermenêutica constitucional, e sequer se apóia em qualquer argumento jurídico, mais sim, e tão-somente, num isolado e antigo estudo alienígena sobre polícia, que assevera que a investigação criminal envolve uma série de atividades, dentre as quais a “apuração” configura-se somente uma delas. Segundo essa tese a investigação consistiria tanto no exercício da “apuração” – “propriamente dita”? –, que perfaria singelamente a busca da autoria delitiva, quanto na “inteligência criminal” – que alude à “atividade técnico-científica que deve informar-se dos crimes que se pretende cometer” –, no “registro criminal” – referente à “descoberta dos crimes que foram cometidos” –, e na “análise dos crimes” –concernente a dados como : onde e como os crimes foram consumados. Percebe-se, assim, que de acordo com esse estranho raciocínio, malgrado sua condição quase secundária, ainda assim a tarefa apuratória pode ser ultimada, e com pleno sucesso, à míngua de precedentes atividades de registro e de análise criminais! Ora, exsurge de uma obviedade ululante que todas essas fases, nada obstante possam ser teoricamente decompostas para fins de estudos, sempre e necessariamente aflorarão encadeadas e integradas na prática investigatória, em molde insofismavelmente indissociável. Mister lembrar, ademais, que a atividade de inteligência criminal não se limita à colheita e análise de dados voltados exclusivamente à prevenção delitiva, mas também, e em contexto imprescindível, ao devido processamento (conferência, combinação, cotejo, classificação etc.) dos elementos de informações armazenados e disponíveis com vista à elucidação da autoria de infrações penais que não puderem ser evitadas. E é de se ter em mente, nesse sentido, que essa gama de informações somente haverá de ser obtida a partir de anteriores “apurações”, deflagradas após a perpetração de um crime, e que certamente não prosperarão se divorciadas, evidentemente, dos prévios “registros”, das “análises” criminais. Por fim, não se diga que ao eventualmente proceder a uma ou a outra fugaz atividade posterior ao cometimento do delito –como, por exemplo, uma prisão em flagrante ou o mero recolhimento, para exibição à autoridade policial, de algum objeto que se possa presumir relacionado com a infração penal – exerce a denominada polícia administrativa funções próprias de polícia judiciária, posto que estas jamais se caracterizam pela efemeridade ou pelo intuitivismo, enquanto aquelas preliminares atuações, de execução óbvia e dependente tão-somente da força, são legalmente facultadas a qualquer um do povo. 274 FERRAJOLI, Luigi. Op. cit, p. 617. 146 4.4. A segurança pública como razão de ser ou como causa de degeneração da polícia judiciária? 4.4.1. Necessárias reflexões. As encimadas assertivas de Ferrajoli devem servir, no mínimo, para suscitar a meditação acerca da razoabilidade em se conceber a polícia judiciária como função inerente à segurança pública, ao menos mirando-se os genuínos objetivos de um verdadeiro Estado Democrático de Direito. Como reconhece Paulo Dá Mesquita, a investigação criminal ressuma assunto pertinente à justiça, devendo ser tratado, portanto, e com o grau de especialização que a temática exige, no acendrado âmbito do processo penal 275 . Prossegue Roberto Pérez Martinez, afiançando-o: O papel que ocupa a polícia no âmbito do processo penal de modo algum pode ser considerado secundário ou acessório, já que constitui um elemento essencial e determinante em sua própria configuração e desenvolvimento, decisivo por refletir a própria atividade jurisdicional, daí que necessariamente deva ser tratada nos seus justos termos, na importância que tem no marco processual penal. Para dize-lo nas palavras de Andrés Ibañez é “o melhor indicador da qualidade ou falta de qualidade democrática da justiça que é administrada por um determinado sistema judicial”. 276 Com razão, a missão investigatória confiada à polícia judiciária, como instrumento de realização de justiça, impõe que a detenção do criminoso jamais seja considerada mais importante ou dissociada da prévia captura da verdade dos fatos apurados 277 . E a busca da verdade exige daquele que a promove a maior isenção possível em face dos fatos perquiridos, um grau de imparcialidade que dificilmente poderá ser obtido, ao menos fora do mundo meramente hipotético, daquele que é visto e, a todo momento, cobrado, inclusive pela opinião pública 275 MESQUITA, Paulo Dá. Notas sobre inquérito penal, polícias e Estado de direito democrático (suscitadas por uma proposta de lei dita de organização da investigação criminal), p. 138. 276 MARTINEZ, Roberto Perez. La policía judicial en el Estado democrático de derecho, p. 165. 277 CUNHA RODRIGUES, José Narciso. Para um novo conceito de polícia, p. 408. 147 ignara, como o responsável, pura e simplesmente, pela “preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio”. 278 Ora, vergado sob o peso dessa grandiosa tarefa, por cujo sucesso será indistinta e insistentemente cobrado pela sociedade ávida por segurança, restará ao responsável pelas atividades policiais judiciárias condiçõesreais de levar a cabo esse trabalho com a serenidade, o apurado senso crítico e a imparcialidade que se lhes afiguram imprescindíveis? Rusconi responde não a essa questão, atribuindo a essa mescla das atividades policiais preventivas e investigativas o rótulo de “promiscuidade funcional”, porquanto convicto que, como fruto dessa perniciosa amálgama, a “tendência autoritária proveniente da atividade preventiva invade aos poucos as tarefas de investigação processual”. 279 278 A paupérrima fórmula ínsita no caput do art. 144 da Constituição de 1988 a definir as finalidades da segurança pública. 279 RUSCONI, Maximiliano A. Reformulación de los sistemas de justicia penal em América Latina y policía: algunas eflexiones, p. 194. Nesse sentido se nos apresenta tão-somente admissível ao desempenho policial judiciário eventuais atividades voltadas ao controle, análise e processamento de informações que se apresentarem imprescindíveis à eficaz atuação institucional, mormente no que tange à determinação de responsabilidades criminais, em prática que jamais poderá ser confundida com o policiamento preventivo de índole ostensiva, destinado à manutenção da ordem. À guisa de ilustração mire-se o exemplo dado por Portugal, que no art. 4 o , 1, da Lei Orgânica da Polícia Judiciária (Decreto-Lei nº. 275-A/2000 de 9 de Novembro), previu : “Em matéria de prevenção criminal, compete à Polícia Judiciária efectuar a detecção e dissuasão de situações propícias à prática de crimes”. A esse fim, e através de rol exemplificativo, o dispositivo estabeleceu as tarefas de controle (“vigiar e fiscalizar”) sobre: a) lugares e estabelecimentos em que se proceda à exposição, guarda, fabrico, transformação, restauração e comercialização de antiguidades, arte sacra, livros e mobiliário usados, ferro-velho, sucata, veículos e acessórios, artigos penhorados, de joalharia e de ourivesaria, elétricos e eletrônicos e quaisquer outros que possam ocultar atividades de receptação ou comercialização ilícita de bens; b) estabelecimentos que proporcionem ao público a pernoita, acolhimento ou estada, refeições ou bebidas, parques de acampamento e assemelhados, e outros locais, sempre que exista fundada suspeita de prática de prostituição, proxenetismo, tráfico de pessoas, jogo clandestino, tráfico de armas, tráfico de estupefacientes e fabrico ou passagem de moeda falsa; c) estabelecimentos de venda ao público de aparelhos eletrônicos e informáticos ou que prestem serviços do mesmo tipo, sempre que, pela sua natureza, permitam, através de utilização ilícita, a prática de crimes de contrafação de moeda, falsificação de documentos ou crimes informáticos; d) locais de embarque ou de desembarque de pessoas ou de mercadorias, fronteiras, meios de transporte, locais públicos onde se efetuem operações comerciais, de bolsa ou bancárias, estabelecimentos de venda de valores selados, casas ou recintos de reunião, de espetáculos ou de diversões, cassinos e salas de jogo e quaisquer locais que possam favorecer a delinquência; e) atividades susceptíveis de propiciarem atos de devassa ou violência sobre as pessoas, ou de manipulação da credulidade popular, especialmente anúncios fraudulentos, mediação de informações, cobranças e angariações ou prestações de serviços pessoais”. Também com esse afã incumbe à Polícia Judiciária, “promover e realizar acções destinadas a fomentar a prevenção geral e a reduzir o número de vítimas da prática de crimes, motivando os cidadãos a adoptarem precauções e a reduzirem os actos e as situações que facilitem ou precipitem a ocorrência de condutas criminosas”. 148 Essa promiscuidade expressada por Rusconi, que como visto encontra pleno eco em Ferrajolli, certamente será potencializada em face da nossa cruel realidade, onde “o atrevimento e a impassibilidade do arbítrio criminal cruzam incessantemente nossa mídia e nossa cabeça, desencadeando torrentes de intimidação e indignação”, eliminando, ainda segundo Hassemer, “qualquer concepção de segurança pública asseguradora da liberdade”. 280 4.4.2. O discurso político do crime. Ninguém desconhece que essa ameaça social representada pelo delito – não interessa se real ou não –, freqüentemente oferece amplas margens para toda espécie de manipulação da opinião pública através do discurso político do crime, centrado na “idéia absolutamente imprestável de que o Direito Penal é instrumento suficiente para esbater a criminalidade e a violência, fenômenos de causação complexa e merecedores de tratamento conjugado, no qual a lei penal (e processual penal) desempenha modesta parte de tal função”, consoante Dotti. 281 A partir dessa concepção absolutamente equivocada, as medidas conseqüentemente propostas à solução do grave problema criminal sempre se pautarão, em direção diametralmente oposta, pela extrema simploriedade, apresentando-se recorrentemente jungidas ao incremento do rigor das leis penais, com tipificação de novas condutas e a elevação geral das penas, maiores restrições ao direito de defesa, melhor aparelhamento da Justiça etc. 282 . Hassemer assinala que nesse encadeamento “a política criminal reduz-se a política de segurança”, não indo está, a sua vez, além, de “desejos policiais de exacerbação e ampliação dos meios de combate ao crime”. 283 O advogado norte-americano Arthur W. Ruthenbeck, em um artigo denominado exatamente É preciso despolitizar as questões criminais, houve por demonstrar que esses conceitos autoritários, que pululam do Movimento da Lei e da 280 HASSEMER, Winfried. Segurança pública no estado de direito, p. 58. 281 DOTTI, René Ariel. Reforma penal brasileira, p. 436. 282 Ibidem, p. 437. 283 HASSEMER, Winfried. Segurança pública no estado de direito, p. 56. 149 Ordem, não passaram ao largo de seu país, alcançando até a Suprema Corte americana, que após revogar precedentes de décadas, próximo chegou, em alguns casos, a praticamente ignorar as 4 a e 5 a emendas da Constituição. Nos votos do Justice Clarence Thomas encontrou-se lastro, em casos criminais, tanto para referendar uma espécie de tortura contida de prisioneiros, quanto para questionar o direito do preso a um advogado, garantido pela 6 a Emenda! 284 Ora, enquanto capaz de infiltrar-se até mesmo no Poder Judiciário de um Estado que sempre manteve em realce suas raízes democráticas, e que histórica e politicamente sempre se pautou pela luta em prol do resguardo e da efetividade dos direitos civis, por certo essa malsã ideologia com muito maior facilidade haverá de ganhar ainda maior corpo e presença neste Brasil culturalmente definido pelas relações de casa-grande e senzala, encontrando campo fértil, principalmente, entre os detentores de mandatos eletivos que, salvo raras exceções, sabidamente não titubeiam em lançar mão de qualquer recurso que lhes possa garantir uma cadeira no Poder Legislativo ou a chefia do Poder Executivo, através de expedientes que Hely Lopes Meirelles rejeitava qualificar como políticos, tratando-os, depreciativamente, apenas como frutos de um carreirismo. 285 Como a ninguém escapa, a segurança pública, pelo interesse que desperta na população, já há um bom tempo tem figurado como um dos principais temas das campanhas eleitorais, especialmente nas disputas das chefias dos Executivos estaduais. Nesse cenário, como facilmente se constata, o debate deflagrado invariavelmente gravita em torno do funcionamento das organizações policiais, trazendo inexoravelmente a reboque um sem-número de planos e promessas atinentes à majoração dos respectivos quadros, à dotação com os meios materiais indispensáveis ao exercício das atividades afins (em especial armamentos, viaturas e outros visíveis e simbólicos equipamentos), e, infalivelmente, à utilização de técnicase estratégias, geralmente importadas de países do chamado primeiro 284 RUTHENBECK, Arthur W. Revista Brasileira de Ciências Criminais, p. 33. 285 O qual caracteriza-se como a “política partidária que lastimavelmente se pratica entre nós como meio de galgar e permanecer no poder, através de prestígio eleitoral” (MEIRELLES, Hely Lopes. Direito administrativo brasileiro, p. 40). 150 mundo, que aumentaram significativamente a eficácia policial. Alude-se, freqüentemente, a uma polícia rígida, dura, inclemente com os infratores da lei, e, no auge das fanfarrices, chega-se até mesmo a garantir a expressiva e célere reversão dos índices criminais, apresentados através de estatísticas de todas as ordens e serventias. 286 De efeito, dentre o que de pior a realidade obriga a observar nessa politicalha, em que tudo se justifica em nome da vitória na corrida eleitoral, vê-se a corriqueira prática de prometer até mesmo o impossível, sempre contando com a desatenção ou a ingenuidade do eleitor. Uma vez eleito, quer porque passível de ser posto a cobro por suas juras públicas e televisivas, quer colimando manter alta a sua popularidade, pois fundamental a alimentar os projetos sem fim de dominação futura, o mandatário ver-se-á obrigado a apelar para medidas que no mínimo se igualem à presunção de suas propostas 287 . E daí a sempre perigosa contingência de submissão dos órgãos policiais aos interesses carreiristas do governante, que assim serão perseguidos em detrimento do verdadeiro interesse público 288 , o mesmo que, como se vê , em termos de segurança pública, o constituinte de 1988 não soube ou não quis eficientemente proteger (e o mesmo se diga do legislador ordinário). 286 De qualquer forma, como Ruthenbeck precisamente situa, o discurso político contra o crime rende aparições na televisão, a fama de durão, enfim, grandes vantagens eleitorais (Op. cit., p. 33). Aqui como lá, valer recordar as sábias palavras de Theodomiro Dias Neto : “Não há tema capaz de exercer tanto fascínio e polarização quanto a segurança pública. Paradoxalmente, não há tema mais deturpado e incompreendido. Tentativas de ser repensado a partir de óticas diversas, são rejeitadas pela lógica imediatista dos calendários eleitorais ou dos índices de audiência” (Segurança Pública : Um conceito a ser repensado, p. 12). E a aferir os malefícios dessas práticas basta atentar para o escólio de José Afonso da Silva acerca da gestão da segurança pública : “Em nome dela se têm praticado as maiores arbitrariedades. Com a justificativa de garantir a ordem pública, na verdade, muitas vezes, , o que se faz é desrespeitar direitos fundamentais da pessoa humana, quando ela apenas autoriza o exercício regular do poder de polícia” (op. cit., p. 753). 287 Importa aqui recordar constatação de Roberto Kant de Lima, para quem “a formação policial no Brasil ainda é marcada por uma concepção autoritária do emprego da polícia” (Direitos civis, estado de direito e “cultura policial”: a formação policial em questão, p. 244). 288 A propósito, Celso Antonio Bandeira de Mello aponta para a doutrina italiana que distingue entre “interesses públicos ou interesses primários – que são os interesses da coletividade como um todo – e interesses secundários, que o Estado (pelo só fato de ser sujeito de direitos) poderia ter como qualquer outra pessoa, isto é, de servidor de interesses de terceiros, os da coletividade”. Assim, afloram como os únicos interesses legitimamente perseguíveis pelo Poder Públicos aqueles que dizem respeito a toda a sociedade. Exemplificando, o autor reporta-se ao Estado quando resiste ao pagamento de indenizações, às quais encontra-se judicialmente obrigado, apenas com o escopo de despender o mínimo de recursos. Assim deixa de satisfazer o fidedigno interesse público (primário), que é aquele que a lei aponta como sendo o interesse da coletividade: “o da observância da ordem jurídica estabelecida a título de bem curar o interesse de todos”. Enquanto não coincidentes com os primários, os únicos que podem e devem ser buscados, os interesses estatais mostrar-se-ão espúrios (op. cit., p. 32) 151 Seja inspirada em justa e louvável pretensão de realmente proporcionar segurança à população, seja voltada à mera e descarada intenção de obter os enormes dividendos eleitorais que o êxito nessa empreitada asseguraria – como também, e pelo menos por algum tempo, também garantiria a impressão de se estar, de alguma maneira, caminhando para esse objetivo 289 -, a realidade é que toda atuação governamental passível de impedir ou dificultar, de qualquer forma, o exercício efetivo e isento da polícia judiciária, comprometido tão-somente com a aclaramento da verdade de fatos aprioristicamente criminosos, sempre deveria ser considerado como grave atentado contra o ideal de justiça inerente a um Estado Democrático de Direito e, portanto, jamais tolerado. O desejo de propiciar segurança pública, que em seu nascedouro emerge tão lídimo quanto obrigatório aos nossos governantes, logo irá tornar-se ilegítimo se porventura conspurcar, em sua concretização, o espírito democrático que deve vivificar e balizar o exercício da função policial judiciária, mediante a utilização dos órgãos e dos agentes que se lhe encontram constitucionalmente afetos em qualquer âmbito de atuação estranho àquele estritamente investigativo e de perseguição isenta dos objetivos da justiça criminal. O desprezo a essa regra somente servirá a fomentar o surgimento e o fortalecimento de um subsistema penal de polícia e de ordem pública, aos moldes daquele que foi tão claro e negativamente delineado por Ferrajoli, totalmente fundado nas instâncias de defesa social e em desacordo com os princípios garantidores da liberdade pessoal, cujo objetivo resume-se na “prevenção dos crimes e, de maneira mais geral, das turbações da ordem pública, feito através da defesa social ante ou extra delictum, aplicado por via administrativa a sujeitos 289 Luiz Eduardo Soares mostra que a história da decantada vitória que a cidade de Nova York teria conseguido conquistar sobre o crime ainda não foi integralmente contada, faltando vir ao conhecimento geral o seu fidedigno final. A verdade, assegura esse autor, é que o grande sucesso anteriormente reconhecido à gestão do Prefeito Rudolf Giuliani no campo da segurança pública foi, e continua sendo, objeto de forte contestação, porquanto, como se sabe, alicerçou-se sobre uma expressiva dose de violência policial. Tendo a princípio servido a alavancar a imagem e a popularidade do seu responsável, essa suposta vitória acabou assim por redundar num verdadeiro revés para a sua carreira política (O enigma de Nova York, p. 227). 152 ‘perigosos’ ou ‘suspeitos’” (ou ainda o condenado, o ocioso, o reincidente, o vagabundo ou qualquer outro rótulo de sentido e efeitos próximos). 290 4.4.3. A polícia judiciária : função essencial à justiça criminal. Consistindo a polícia judiciária, como já reiteradamente pronunciado e sobejamente demonstrado, função essencial à justiça criminal, não lhe competirá, seja qual for o pretexto, abdicar de sua posição necessariamente imparcial para lançar-se à busca da segurança pública e/ou individual senão trilhando os únicos caminhos que à vista dessa elevada missão se lhes afiguram consentâneos, ou seja, se não através da incessante busca da verdade sobre um fato teoricamente infracional, assim mourejando com vista a dois objetivos de idêntica e extremada importância, destituídos de qualquer expressão de preponderância entre si, a saber : a) evitar que acusações infundadas, levianas e até caluniosas injustamente arrastem inocentes às barras dos tribunais; e, b) possibilitar a exata e justa