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Dedico este trabalho a todos aqueles que insistem em 
acreditar que, apesar de tudo, algo ainda pode e deve ser 
realizado em prol da construção, no mundo real, de uma 
sociedade brasileira livre, justa e solidária, onde cada policial 
venha a ser mirado não com a desconfiança e o medo 
suscitados pelo guerreiro, que apenas acena com a morte e 
a destruição, mas sim divisado com o apreço e a admiração 
despertados pela benevolência e pela segurança que 
irradiam os verdadeiros artífices da paz. 
Assim, nomeadamente, à memória do Professor 
Sérgio Marcos de Moraes Pitombo, exemplo de homem e 
jurista, que não apenas sonhou, mas muito laborou na busca 
desse feliz amanhã. 
 
 
 
 
 
 
Não levantarás falso boato, e não pactuarás com o 
ímpio, para seres testemunha injusta. 
Não seguirás a multidão para fazeres o mal; nem 
numa demanda darás testemunho, acompanhando a 
maioria, para perverteres a justiça; nem mesmo ao pobre 
favorecerás na sua demanda. 
Se encontrares desgarrado o boi do teu inimigo, ou o 
seu jumento, sem falta lho reconduzirás. 
Se vires deitado debaixo da sua carga o jumento 
daquele que te odeia, não passarás adiante; certamente o 
ajudarás a levantá-lo. 
Não perverterás o direito do teu pobre na sua 
demanda. 
Guarda-te de acusares falsamente, e não matarás o 
inocente e justo; porque não justificarei o ímpio. 
Também não aceitarás peita, porque a peita cega os 
que têm vista, e perverte as palavras dos justos. 
Êxodo 23, 1-8. 
 
E a obra da justiça será paz; e o efeito da justiça será 
sossego e segurança para sempre. 
Isaías 32,17. 
 
Bem-aventurados os que têm fome e sede de justiça 
porque eles serão fartos. 
Mateus 5, 6. 
SUMÁRIO 
 
CAPÍTULO 1. A POLÍCIA HISTÓRICA E ATUAL : UMA VISÃO 
PANORÂMICA 
 
 1.1. Polícia : abordagem semântica ............................................................................... 18 
 1.2. A polícia e suas origens .............................. ........................................................... 23 
 1.2.1. A polícia antiga ............................................................................................. 23 
1.2.2. Séculos de transição ...................................................................................... 28 
1.2.3. A polícia moderna ......................................................................................... 31 
 1.3. A polícia no Brasil .................................................................................................. 38 
 1.3.1. Período colonial .......................................................................................... 38 
 1.3.2. Período imperial ......................................................................................... 39 
 1.3.3. Período republicano .................................................................................... 47 
 1.4 A polícia judiciária ................................................................................................ 55 
1.4.1. A investigação criminal : antecedentes históricos ........................................ 55 
1.41.1. Os primeiros passos ....................................................................... 56 
1.41.2. Roma .............................................................................................. 58 
1.41.3. Inquisição ....................................................................................... 60 
1.4.2. A polícia investigativa ................................................................................ 62 
1.4.2.1. Intróito ........................................................................................... 62 
1.4.2.1.1. Lei de 3 do Brumário do ano IV : a certidão de 
nascimento da polícia judiciária .................................... 
 
63 
1.4.2.1.2. Reforma napoleônica : a polícia judiciária no processo 
penal ................................................................................ 
 
65 
1.4.2.2. A polícia judiciária no Brasil ......................................................... 66 
1.4.2.3. Um relance sobre a hodierna polícia judiciária no mundo 
ocidental ........................................................................................ 
 
70 
1.4.3. A polícia judiciária e sua classificação jurídica : uma nova visão ............. 72 
CAPÍTULO 2. A EVOLUÇÃO ESTATAL COMO FATOR DETERMINANTE 
DA TRAJETÓRIA POLICIAL PELOS SÉCULOS 
 
 2.1. Considerações preliminares ................................................................................... 83 
 2.2. A gênese estatal ...................................................................................................... 85 
 2.3. Os fins do Estado .................................................................................................... 86 
 2.4. O Estado absoluto ................................................................................................... 88 
 2.5. O Estado de direito ................................................................................................. 90 
 2.5.1. O Estado liberal de direito .......................................................................... 92 
 
 2.5.2. O Estado social de direito ........................................................................... 94 
 2.5.3. O Estado democrático de direito ................................................................. 97 
CAPÍTULO 3. O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO BRASILEIRO, 
A REALIDADE NACIONAL E O PAPEL RESERVADO À POLÍCIA 
 
3.1. Antelóquio ............................................................................................................... 103 
3.2. A tradição autoritária e a difícil transição para a democracia ................................. 105 
3.3. As origens e os rumos do Estado democrático brasileiro......................................... 111 
3.4. A democracia brasileira ........................................................................................... 114 
3.5. O Estado democrático de direito brasileiro e o princípio da dignidade da pessoa 
humana .................................................................................................................... 
 
118 
3.5.1. A dignidade da pessoa humana e o direito fundamental à segurança .......... 122 
3.5.2. A dignidade da pessoa humana, o direito à segurança e o devido processo 
legal ................................................................................................................................. 
 
131 
Capítulo 4. A POLÍCIA JUDICIÁRIA NA CONSTITUIÇÃO BRASILEIRA DE 
1988 E A SUA FIDELIDADE AOS PARADIGMAS DEMOCRÁTICOS. 
 
4.1. Introdução ................................................................................................................ 138 
4.2. A institucionalização da segurança pública : mera acomodação constitucional ou 
um passo necessário à defesa da ordem democrática ? ......................................... 
 
139 
4.3. O artigo 144 da Constituição e a Polícia Judiciária : um duplo equívoco ............... 143 
4.4. A Segurança Pública como razão de ser ou causa de degeneração da Polícia 
Judiciária ? ............................................................................................................. 
 
146 
4.4.1. Necessárias reflexões .................................................................................... 146 
4.4.2.O discurso político do crime ......................................................................... 148 
4.4.3. Polícia Judiciária : função essencial à Justiça Criminal................................ 152 
4.5. Polícia Judiciária democrática ................................................................................. 157 
4.5.1. A Polícia Judiciária e a defesa das instituições democráticas ...................... 157 
4.5.2. Da teoria à prática .........................................................................................158 
4.5.3. Os novos paradigmas ético-culturais da Polícia Judiciária ........................... 160 
4.5.3.1. A lei da força revogada pela força da lei ......................................... 163 
4.5.3.2. Dignidade x corrupção...................................................................... 168 
 4.6. O futuro da Polícia Judiciária brasileira ................................................................. 173 
4.6.1. Considerações iniciais ................................................................................ 173 
4.6.2. Por uma nova e democrática arquitetura estatal ......................................... 174 
4.6.3. A polícia judiciária e sua efetiva incorporação ao mundo jurídico: o 
necessário respeito à premissa constitucional.............................................. 
 
182 
Conclusão ....................................................................................................................... 190 
Referências Bibliográficas ............................................................................................ 198 
 
 
 
 
INTRODUÇÃO 
1. Apresentação do tema: justificativa e limites. 
Anos de observações, de estudos e especialmente de vivência nesse meio 
permitiram-nos concluir que, no Brasil, a polícia judiciária é uma ilustre 
desconhecida, conformando-se, no mais da vezes, quase uma ficção, aos moldes do 
que já é possível inferir de uma análise mais atenta da vigente ordem constitucional 
- que a seu favor, neste ponto, conta apenas com o fato de haver perfeitamente 
reverberado a ignorância e o desinteresse geral sobre a matéria. 
Na verdade, não somente em nosso País, como em boa parte do mundo, e 
não de hoje, o tema polícia perfaz-se um tabu. De fato, o assunto dificilmente 
consegue suscitar interesses circunspectos, sendo invariavelmente confinado no 
lúdico ambiente cinematográfico - que no mais das vezes nenhum contato guarda 
com a realidade, máxime com a brasileira -, ou explorado, também impropriamente, 
pela imprensa, principalmente por aquela chamada marrom – e que não por acaso se 
confunde com o denominado jornalismo policial, dedicado tão-somente à 
divulgação, quase sempre apriorística e parcial, de toda sorte de catástrofes, 
brutalidades e pseudo-escândalos destinados a alimentar o sensacionalismo mórbido 
na opinião pública -, restando, por essa via, igualmente marginalizado no recinto 
científico, e notadamente no âmbito jurídico. 
A busca das razões justificadoras dessa generalizada insciência, que 
certamente refletem o maior obstáculo à configuração de uma polícia judiciária 
vocacionada e capacitada à defesa das instituições democráticas, condição sine qua 
non ao cumprimento dos objetivos inerentes ao nosso novel e também ignoto, senão 
despercebido, Estado Democrático de Direito, pareceu-nos, destarte, medida 
relevante, da qual pudemos nos ocupar regressando no tempo, em direção às origens 
 
da sempre ambivalente organização policial, que pelos séculos vem gerando, 
contraditoriamente, fascínio e repulsa, medo e segurança, opressão e libertação. 
Assim foi-nos dado visualizar, e de forma muito clara, dois interessantes 
aspectos nesse desenvolvimento histórico : primeiro o seu absoluto enredamento 
com o processo de maturação estatal, e depois, nada obstante tamanha proximidade, 
o fato de que um persistente retardamento tem caracterizado a progressão policial 
nessa comum senda transmutativa – coisa de muitos passos atrás -, perfazendo essa 
paradoxal distância exatamente aquela que misteriosamente afasta a prática da 
teoria, que separa a Constituição real da Carta de papel. Surgem, pois, as imagens 
apresentadas sob prisma policial como a única projeção fidedigna, e realizada em 
tempo real, acerca da realidade composta pelas concretas e complexas relações 
havidas, ao longo dos séculos, entre a autoridade do soberano e a dignidade dos 
súditos-cidadãos. 
Nesse diapasão, porquanto depositária da força monopolizada pelo Estado, 
enquanto milenar mecanismo de repressão utilizado pelos detentores do poder 
contra as massas, certamente exsurge a polícia, em seu exercício diuturno, sobre e 
ao largo dos discursos, como o parâmetro perfeito para se levar a cabo a aferição 
não só da distância que solidamente medeia os apresentados termos, mas também – 
e neste ponto pretendemos nos fixar – da real e efetiva possibilidade de aproxima-
los e harmoniza-los. 
 Para tanto, cuidando da polícia judiciária no Estado Democrático de Direito 
brasileiro, buscaremos primeiro clarificar a polícia histórica, mantendo o Estado 
como pano de fundo. Na seqüência, em pauta algo mais célere, mas sem perder de 
vista esse entrelaçamento, miraremos o Estado de Direito, até construir as bases de 
sua formatação contemporânea. 
Estabelecidas tais premissas, tão memoriais quanto científicas, poder-se-á, 
então, divisar o presente Estado pátrio, graficamente definido, já há quinze anos, 
como democrático de direito, mas que insiste permanecer, no plano da realidade, 
ainda hoje arraigado à sua cultura e tradições autoritárias, ensejando, pois, 
paradoxalmente, graves disfunções a contaminar a atividade policial judiciária, que 
resta necessariamente exercida às margens das fórmulas legitimadas pelos 
fundamentos e objetivos verdadeiramente democráticos. 
E o diagnóstico dessas impropriedades aponta diretamente para a 
Constituição da República, imprecisa, infeliz e ineficaz em sua programação 
policial, e que dentre tantos erros e equívocos relegou a previsão acerca da função 
policial judiciária para o capítulo da segurança pública, fazendo-a encargo de 
órgãos policiais civis da União e dos Estados (art. 144, §§ 1
o
, I e IV, e 4
o
), mediante 
pífia menção, posta à mingua de definição ou conteúdo, ou de texto que favoreça a 
sua acendrada compreensão e, especialmente, sua conformação como efetivo 
instrumento de defesa e promoção da dignidade da pessoa humana. 
Com efeito, e literalmente inovando, a nossa Lei Fundamental, em gritante 
descompasso histórico e jurídico universais, cindiu – embora cuidadosamente em 
favor de órgãos únicos ! - as inextricáveis atividades policial judiciária e 
investigativa, conquanto represente esta o próprio cerne daquela, sua razão de ser, 
tanto aqui quanto alhures, há cerca de duas centúrias. 
Essa inicial imprecisão, que por si só já denota o acerto da conclusão 
inaugurativa, serve para evidenciar, outrossim, e em face dessa topografia 
constitucional, não apenas o desconhecimento sobre o real significado que a função 
policial judiciária deve assumir no Estado Democrático de Direito, mas, também, e 
o que parece ainda pior, a falta sequer de suspeita sobre a essencialidade de sua 
purificada prestação à realização da justiça criminal nesse qualificado modelo 
estatal. 
1
 
De efeito, no seio do citado Estado deve a polícia judiciária ser tão-somente 
identificada como a atividade de pesquisa, necessariamente desenvolvida dentro de 
 
1
 Não se descurará, neste trabalho, de procurar “transmitir” este Brasil que se pretende democrático “em 
tempo real”, ou seja, precisamente como “funciona” no seu dia a dia, com suas vicissitudes e mazelas, 
notadamente políticas e jurídicas, a principiar pela elaboração de sua vigente lei constitutiva – sempre 
permeada por muito oportunismo, casuísmo, e quase nenhuma leal convicção. Busca-se estabelecer, com 
essa sistemática, um debate entre o poder real e o poder constituído, aliás, mal constituído, como o cotidiano 
presta o obséquio de afiançar. 
parâmetros garantidores de isenção e de justiça, voltada à elucidação da verdade 
sobre fatos considerados transgressores às leis penais, assim mirando, e em caráter 
restritivo, proporcionar condições excelentes ao Poder Judiciário para a aplicação 
do direito em face do aclarado caso concreto. No Estado Democrático de Direito, o 
exercício policialjudiciário somente se fará legitimo quando balizado por um único 
e exclusivo compromisso, firmado não com a administração e/ou a segurança 
públicas, mas sim, e cogentemente, com os fins da justiça criminal. 
Outro não é o magistério de Colomer, para quem a escorreita compreensão 
do papel destinado à polícia judiciária num Estado de Direito efetivamente 
democrático, exige o entendimento de dois cruciais pontos, a saber : 1
o
) o processo 
penal ao qual se subordina - “como o produto de um compromisso público entre 
eficácia da persecução penal e respeito à dignidade humana” - deve absoluto 
respeito à Constituição, velando, simultaneamente, pelos direitos fundamentais dos 
cidadãos e pela maior eficiência possível da investigação criminal; e, 2
o
) a sua 
função (da policía judicial), que não pode ser confundida com a dos órgãos 
acusador e julgador, se apresenta, mesmo assim, de extrema importância para a 
instrução da causa
2
. E arremata enfático : 
“Dito isso, a perspectiva de análise jurídica do significado da 
Polícia Judiciária parte de uma afirmação inegável : O 
Estado (...) está obrigado a articular uma Polícia Judiciária 
agilmente organizada e tremendamente efetiva na 
averiguação do delito e determinação da pessoa ou pessoas 
que tenham podido cometê-lo, fixando taxativamente os 
limites de suas possibilidades de atuação, porque isso é o que 
quer a sociedade (...). 
De modo que se pode dizer, sem exagero algum que, dado 
que nem o Juiz nem o Ministério Público podem investigar 
materialmente os delitos, pois não tem possibilidade, nem 
conhecimentos técnicos, nem devem estar especialmente 
capacitados para isso, sem a Polícia Judiciária o 
desenvolvimento adequado do processo penal é impossível”. 
3
 
 
2
 COLOMER, Juan-Luís Gómes. Estado de Derecho y Policía Judicial democrática : Notas sobre el alcance e 
y límites de la investigación policial en el proceso penal, con consideración especial de los actos de mayor 
relevancia. El proceso penal en al Estado de Derecho (Diez estudios doctrinales), p. 95 e 97. 
3
 Ibidem, p. 97-98. 
Para tanto, reclamam-se salvaguardas de proficiência e efetividade, devendo, 
nesse sentido, ser a polícia judiciária imunizada contra a influência típica do 
Executivo, ou melhor ainda, do Governo, cujos integrantes, invariavelmente 
envolvidos pelas contingências do jogo eleitoral travado em torno da eternização no 
Poder – e por vezes a qualquer custo, como a história sobejamente comprova -, nem 
sempre partilham desse nobre desiderato, chegando por vezes mesmo a impedir o 
seu alcance. 
Mister ponderar, além disso, em relação à vigente Constituição pátria, que 
assim como é verdade que a eficácia da atuação policial judiciária pode propiciar 
bons frutos à segurança individual e coletiva, emerge não menos correto afirmar que 
esse fato, que se repete com a boa prestação dos serviços de educação, com a 
ampliação do mercado de trabalho, dentre tantas outros fatores próximos, não induz 
à automática e/ou compulsória inserção dos responsáveis pelas listadas atividades 
no rol de organismos que respondem, a teor do “caput” do art. 144 da Constituição 
da República, pela “preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e 
do patrimônio”. Importa aqui considerar, e em três sintéticos lanços, que no Estado 
Democrático de Direito brasileiro: 1
o
) a segurança pública assoma-se como 
responsabilidade de todos; 2
o
) a investigação criminal avulta como função 
especializada, eminentemente técnico-jurídica, cujo único compromisso deve ser 
com a verdade sobre um fato aprioristicamente tido por criminoso; e, 3
o
) a 
realização dessa tarefa deve assim visar um único resultado : a realização de justiça, 
incessantemente buscada através de procedimentos imparciais, honestos, 
competentes, inteligentes e diligentes. 
Descaberá, portanto, à polícia judiciária, sob qualquer pretexto, tomar parte 
do combate contra a criminalidade, diuturnamente prometido pelos donos do poder, 
como luta sem trégua e quartel, ou a qualquer outro exercício de índole repressiva, 
que sempre pode importar em prejulgamentos e partidarismos : vide, por exemplo, o 
clássico “os bons versus os maus” (inimigos). Com efeito, na defesa das instituições 
democráticas, e conseqüentemente comprometidos com o respeito e a promoção da 
dignidade da pessoa humana, e assim de todos os valores que lhe são inseparáveis, 
será devido aos seus operadores, noutra mão de direção, defender a liberdade, 
sustentando com firmeza e consciência jurídica, com fulcro nas provas eficiente e 
legitimamente coligidas, as excepcionais e inelutáveis hipóteses a sua restrição. 
Aí estão as bases da polícia judiciária democrática, consentâneas ao processo 
penal constitucional do Estado Democrático de Direito, como pontua José Jairo 
Baluta, em sua atilada percepção da doutrina de Ferrajoli : 
o desenvolvimento de um processo de modo respeitoso dos 
direitos fundamentais, encontra-se intimamente ligado com a 
busca da verdade acerca de uma hipótese delitiva, a qual 
impõe-se – diante de um Estado de Direito – como 
indispensável requisito a dar guarida à dignidade humana 
constituindo-se, na ótica do precursor, da “teoria do 
garantismo”, em verdadeiro princípio garantista a 
salvaguardar os direitos humanos, que aparecem – 
particularmente no processo penal – altamente 
comprometidos diante das conseqüências danosas que lhes 
pode acarretar. 
4
 
Com fidelidade a essas premissas, cumpre, agora, e em respeito a vontade da 
Constituição, que somente pode ser depreendida dos postulados fundamentais do 
Estado Democrático de Direito por ela criado
5
, adotar-se entendimento desse jaez, 
garantindo-se, por necessário, uma nova e compatível conformação também 
orgânica ao escorreito labor policial judiciário, valorizando-se, primacialmente, o 
elemento humano incumbido desse exercício, uma vez que o seu depurado e eficaz 
desempenho afigura-se condição essencial à ultimação de justiça. 
2. Plano de Trabalho. 
À comprovação da pertinência do tanto aduzido, reservamos o capítulo 
inicial desta dissertação para o registro de uma breve história da polícia, desde que 
 
4
 BALUTA, José Jairo. O Juiz garantidor e o processo como meio respeitoso de garantir os direitos 
individuais, p. 10. 
5
 Consoante a douta dicção de Cleber Francisco Alves : “no constitucionalismo aberto da pós-modernidade, 
livre das amarras de um reducionismo inerente a uma perspectiva jurídico-positivista, abre-se um novo 
horizonte para a compreensão dos princípios gerais do direito, que ao contrário do caráter supletivo e 
secundário que inicialmente lhes era conferido, passam a ocupar uma posição de proeminência jurído-
normativa, presidindo e vivificando todo o ordenamento constitucional”. O Princípio Constitucional da 
Dignidade da Pessoa Humana : o Enfoque da Doutrina Social da Igreja, p. 177. 
vislumbrada como órgão estatal diretamente envolvido com a lida criminal. Desse 
marco, percorrendo caminho milenar, acompanhar-se-á, em seus principais passos, 
o desenvolvimento da atividade policial nos principais centros da cultura ocidental, 
mediante a análise crítica dos modelos assim forjados, e que acabaram reproduzidos 
em todo o mundo. 
Por essas veredas avistaremos o hesitante despontar da polícia judiciária, 
denominação francesa para uma especializada polícia investigativa, que não tardaria 
a surgir também na Inglaterra, em conjuntura tão mais técnica quanto civilizada, 
para além de imperativos políticos ocasionais. 
Idêntica marcha será reservada à apreciação do específico panorama pátrio, 
regredindo-se, para tanto, ao período colonial. Procurar-se-á evidenciar, nessa 
trajetória, a distância que sempre marcou, e infelizmente ainda marca, o desígnio 
oficial das corporações, sedimentadas durante séculosde autoritarismo, e a 
preocupação com o respeito aos direitos fundamentais dos cidadãos, justamente a 
marca registrada do nosso Estado, donde ressairá inconteste a imprescindibilidade 
de contarmos com uma nova estrutura policial neste País, desta feita assentada em 
paradigmas atuais, democráticos, consoante clarifica a vigente Constituição da 
República, ainda do recente ano de 1988. 
Ao cabo dessa leitura histórica, ao meio da qual desfar-se-ão certos mitos e 
evidenciar-se-ão falsas ufanias, poder-se-á atinar para as raízes de diversos erros e 
acertos que se refletem, para mal ou para bem, na realidade policial hodierna, 
inclusive brasileira, tudo servindo de norte às devidas e indispensáveis correções de 
rumo. 
Conseqüentemente, no Capítulo II, dar-se-á vez à dissecação do Estado, 
privilegiando, em face dos interesses específicos deste estudo, a construção do 
Estado de Direito, desde o seu nascimento, vincando o ocaso do absolutismo real, 
até sua versão contemporânea, de matiz democrática. 
De efeito, para a melhor visão da polícia judiciária democrática que já 
esboçamos, impõe-se retornar, ainda que rapidamente, às origens do Estado, para, 
daí seguindo atentamente o processo de transformação político-social - de fundo 
igualmente filosófico, histórico, jurídico e econômico - que conduziu à maturação 
de sua versão hodierna, em meados do último século, perfeitamente compreende-
lo, mediante a identificação de seus fundamentos e finalidades. 
Não se olvidará, nessa linha evolutiva, de se produzir as consentâneas 
intersecções com o plano policial histórico, obedecendo às diretivas anteriormente 
desveladas. 
Depois, na seqüência desse pretendido descortino - certamente enxuto, 
porquanto cingido às raias próprias deste trabalho -, chegará o momento do 
esquadrinhamento do Estado Democrático de Direito brasileiro, de gênese ainda 
atual, buscando em seu âmago, com o apoio, uma vez mais, nas proposições 
precedentemente contextualizadas, os genes do devido processo penal, de origem 
constitucional, garantista, jungido à preservação da dignidade da pessoa humana. 
Nesse ponto, enfrentando fortemente a questão do autoritarismo, inexorável 
padrão cultural pátrio, tenciona-se destacar as enormes dificuldades que se somam 
contra a edificação do Estado Democrático constitucionalmente desenhado há 
pouco mais de quinze anos. Desde a falta de entendimento popular, resultante da 
ignorância generalizada, que não pode ser apartada dessa entranhada cultura 
arbitrária responsável pelo acentuado complexo de inferioridade nas massas, tarda a 
democracia escrita a ecoar no plano fático. Não se fazendo assim, pois, presente em 
nossas cidades, ruas, praças, em meio ao povo, como haveria de vivificar a 
existência e a atuação do Estado e dos seus organismos ? Como os seus valores 
poderão - há então de ser indagado -, por via de conseqüência, determinar o 
exercício policial judiciário ? 
As respostas para essas e outras correlatas indagações prestar-se-ão para 
impulsionar a discussão corrente, toda dedicada ao cotejo do ser e do dever-ser no 
ambiente estatal brasileiro, sem nunca perder de vista, como já enfatizado, o ideal 
da dignidade da pessoa humana, ponto fulcral dessa caminhada, referencial 
absoluto da nova polícia judiciária, democrática, divisada, sob pano de fundo 
constitucional, e sob renovado substrato ético, no subseqüente Capítulo IV. 
Na última parte do trabalho, como acima exposto, tratar-se-á exclusivamente 
da compatibilização policial judiciária aos expendidos cânones do Estado 
Democrático de Direito brasileiro, mediante o estabelecimento de apropriada 
dialética com o texto e o espírito da Constituição da República, perpassando a teoria 
em direção aos atos. 
Ao delineamento teórico dessa polícia judiciária democrática aliar-se-á a 
preocupação de desmistificar – tanto no plano dos (pré) conceitos jurídicos, quanto, 
objetivamente, no âmbito igualmente implicante da realidade sensível e 
comprovável - a muito difundida crença (que mais se assemelha a um complexo de 
ordem cultural ou até mesmo a um despeito, de índole francamente elitista) na 
impossibilidade da existência, e ainda no terceiro mundo, de um organismo dotado 
de denominação policial, exclusivamente responsável pela a investigação criminal, 
volvido ao patrocínio dos ideais de liberdade, de justiça e de dignidade humana. 
Nessa toada, e coerentemente à crítica reservada ao constituinte em face da 
forma e conteúdo finais dados ao capítulo constitucional dedicado à Segurança 
Pública, que revelam o despreparo e/ou o desprezo de seus autores em relação a 
essa crucial temática, buscar-se-á patentear os tantos equívocos e erros que a 
permeiam. Tratando-se de questão genuinamente política, atinente a determinação 
da função social da investigação criminal no Estado Democrático de Direito, 
efetivamente há de se deplorar a opção, pouco consciente e consistente ao que se 
percebe, configurada através da inclusão da polícia judiciária no elenco de funções 
inerentes à segurança publica, conforme estabelecido no art. 144 da Constituição. 
Por essa via de escolha, logrou-se inviabiliza-la, na incipiente realidade democrática 
pátria, como função essencial à justiça, deixando-se conseqüentemente de cerca-la 
com cuidados e prerrogativas afins, largamente difundidos em título (IV) e capítulo 
(IV) diversos da Lei Magna. 
Antes que uma vã alegação, os objetivos eleiçoeiros, plenamente 
evidenciados em sua expressão fundamentalmente carreirista que bem caracteriza as 
relações de poder também neste País, plenamente visíveis no aborrecido e 
antropofágico “discurso político do crime”, endossam totalmente, na prática, essa 
firme ilação, cujo reverso, entrementes, servirá perfeitamente como farol a indicar 
um porto seguro para a polícia judiciária inapelavelmente democrática, consentânea 
ao Estado brasileiro, e que ainda há de ser implantada. 
Essa nova polícia judiciária, que espera para ser normativa e materialmente 
moldada, foi, dentro desses lindes, o objeto da parte derradeira deste finalizador 
capítulo, onde buscou-se tracejar os contornos éticos da investigação criminal no 
Estado Democrático de Direito, secundada pela caracterização orgânica de seus 
executores, que antes de qualquer outra coisa haverão de vencer os grilhões do 
preconceito que impedem o seu ingresso no mundo jurídico. 
Enfim, dentre as tantas idéias que permeiam este trabalho, crê-se que uma 
em especial chame a atenção, qual seja aquela que aduz a íntima e direta 
identificação da polícia judiciária não mais como missão de segurança pública, mas 
sim como inelidível pressuposto de justiça criminal. Independente de sua 
originalidade, o vertente conceito procura ousar em um campo no mais das vezes 
desvalorizado pelo dogmatismo jurídico e desprezado pela prática política: a 
efetividade. Eis o imo desta pesquisa, centrada no Estado Democrático de Direito, e 
voltada ao patrocínio de uma específica mudança que a sua implantação está 
rigorosamente a exigir, a da polícia judiciária, compreendendo a implementação da 
efetividade ética e jurídica da investigação criminal. 
 
18 
 
 
 
 
 
 
CAPÍTULO 1 – A POLÍCIA HISTÓRICA E ATUAL: 
UMA VISÃO PANORÂMICA 
1.1. Polícia: abordagem semântica. 
O vocábulo “polícia” emana, etimologicamente, da raiz grega polis, que em 
sua trivial conversão para a língua portuguesa, adquire o sentido de cidade 
autônoma ou Estado. Já a sua derivação politeia, tendo por base as acepções 
extraídas das mais abalizadas leituras e traduções dos clássicos
1
, vem a denotar, 
dentre tantos significados de expressões próximas, “qualidade e direitos de cidadão, 
direito de cidadania, modo de vida do cidadão, vida e administração de homem de 
Estado, participação nos negócios públicos, medidas de governo, forma de governo, 
regime político em geral, constituição do Estado; autogovernodos cidadãos”.
2
 
Em Roma, a latinização do vocábulo grego politeia levou ao surgimento do 
termo politia
3
, que inicialmente se prestou a comunicar, de forma bastante genérica, 
o entrelaçamento de duas idéias : a de coisa pública - res publica com a de civitas - 
os negócios da cidade. Com o tempo, porém, deixou de ter um sentido tão 
abrangente, passando melhor a servir ao dogmatismo político. É o que explica 
Monet, reportando-se à idealização jurídica de 
 
1
 LÊ CLÈRE, Marcel. História breve da polícia, p. 89. Afirma esse autor que, para Aristóteles, a polícia, 
“que assegura a ordem e o governo da cidade”, é “o maior e o primeiro de todos os bens”. 
2
 CRETELLA JÚNIOR, José. Do poder de polícia, p. 25. 
3
 Nesse sentido Antonio Houaiss : “polícia: do latim polìtia, ae 'organização política, governo, sistema 
governativo' < gr. politeía, as 'qualidades e direitos de cidadão, vida de cidadão; o conjunto de cidadãos; vida 
e administração de homem de Estado'; em sentido coletivo: 'medidas de governo; forma de governo, regime 
político; governo dos cidadãos por eles próprios; constituição democrática'; ver polit-; fontes históricas Séc. 
XV: policia, Séc. XV: policia, Séc. XV: pollicia” (Dicionário eletrônico Houaiss da língua portuguesa). 
Idem De Plácido e Silva: “Polícia: derivado do latim politia, que procede do grego politeia, originariamente 
traz o sentido de organização política, sistema de governo e, mesmo, governo. Assim, por sua derivação, em 
amplo sentido, quer o vocábulo exprimir a ordem pública, a disciplina política, a segurança pública, 
instituídas, primariamente, como base política do próprio povo erigido em Estado” (Vocabulário jurídico, 
edição eletrônica). 
 
 
19 
 
um conteúdo e um lugar específicos à noção de “polícia”, em 
construções teóricas que visam a justificar a soberania 
absoluta do Estado imperial sobre os seus súditos. Nessa 
concepção, o imperium constitui o fundamento último do 
poder coercitivo do Estado – a potestas – e aquele que se 
manifesta concretamente através da ação administrativa, 
judiciária e policial. A essência da função governamental 
consiste em definir as fronteiras entre o público e o privado, 
através da produção de normas cujo respeito é assegurado por 
órgãos administrativos específicos, que utilizam, se 
necessário, o constrangimento físico. Em Roma, o praefectus 
urbis – o “prefeito da cidade” – dispõe tanto do poder de 
editar regulamentações referentes a todos os aspectos da vida 
social quanto da autoridade sobre os corpos de polícia 
especializados.
4
 
Na Europa medieval, coincidindo com o período de redescobrimento do 
direito romano, a palavra polícia ganhou primordial projeção ao particularizar as 
atividades exercidas pela autoridade temporal, distinguindo-as das imposições 
morais advindas das instâncias religiosas. Com o tempo, passou a designar, de 
modo ainda mais claro, o feixe de poderes e de cuidados, que ao príncipe e aos seus 
barões, socorria como meio de garantir a ordem entre seus súditos e servos, até 
finalmente exprimir, num conceito que logo se difundiu pelo continente, “toda a 
atividade da Administração, quer dirigida a prevenir os males e as desordens da 
sociedade, quer a zelar através dos serviços públicos pelo bem-estar físico, 
econômico e intelectual da população”. Do jus politae, acrescenta Cretella Júnior, 
apenas excluíam-se os exercícios estatais relacionados às administrações financeira 
e militar. 
5
 
Nesse compasso, e no contexto da afirmação teórica do absolutismo real, 
chegou a palavra polícia a identificar e a qualificar o próprio Estado. O denominado 
Estado de Polícia ou Estado Policial (Polizeistaat) soergueu-se firmemente 
alicerçado na doutrina romana do imperium, e em pleno século das luzes não 
titubeou em se apoderar das preocupações filosóficas então em voga a justificar sua 
gestão, hoje reconhecidamente arbitrária. Com efeito, ao Estado caberia, segundo a 
 
4
 MONET, Jean-Claude. Polícias e sociedades na Europa, p. 20-21. 
5
 CRETELLA JÚNIOR, José. Op. cit., p. 25-26. 
20 
 
ideologia dominante, a adoção de todas as iniciativas e providências tendentes a 
perseguir e a garantir o bem-estar da população, ou, como desvenda Monet, “a 
moralidade superior desse objetivo justifica a extensão dos poderes do Estado (...) 
pois só ele dispõe do poder de definir a felicidade de seus súditos, cujos meios de 
realizar só ele detém, inclusive pelo exercício da coação física ...”.
 6
 
7
 
Esse Estado atribuía-se o papel de promotor da felicidade e do bem-estar 
social. Em situação de proeminência em relação ao Direito, o soberano – um 
“déspota esclarecido” – é quem ponderava e dizia o que era bom e o que era mau 
para seus súditos, que assim remanesciam privados de tudo, exceção feita ao direito 
de acatar e respeitar a ordem estabelecida. Explica Pierangelo Scheira que o 
qualificativo polícia, assim dotado de sentido pejorativo, traduzindo idéia 
contraposta e degenerativa em relação ao direito, serviu inicialmente para qualificar 
a Prússia de Frederico II, cognominado “O Grande”, como um Estado de índole 
absolutamente paternalista e extremamente intervencionista, e que ganhou 
notoriedade especialmente por se constituir numa potência militar. 
8
 
Somente a partir do Estado de Direito, comenta Scheira, é que o vocábulo 
polícia deixou, pouco a pouco, de delinear a administração estatal em seu todo, com 
sua gama quase infinita de atribuições, especialmente a molde de uma verdadeira 
panacéia pública, passando, assim, gradativamente, a especificar, em linguagem 
corrente e leiga
9
, contudo impregnada de um sentido remanescente, o “setor 
 
6
 MONET, Jean-Claude. Op. cit., p. 22. 
7
 Lembra Maria Sylvia Zanella Di Pietro que, com o Estado de Polícia, o “direito público ficou na 
penumbra”, atuando as monarquias absolutas por força de duas idéias fundamentais, “a de soberania e a de 
polícia, ambas chegando ao seu apogeu com o iluminismo”. E citando Vinício Ribeiro emenda: “os príncipes 
passam a ser agora os soberanos esclarecidos – daí a designação por volta da segunda metade do século 
XVIII de despotismo esclarecido – que não prestam contas a ninguém a não ser a Deus. A polícia é 
preocupação de desenvolvimento, de elevação de nível, de brilho, de grandeza. Há para os homens do século 
XVIII uma preocupação enorme de civilização. O príncipe vai utilizar a sua ausência de limites não para o 
seu engrandecimento pessoal, mas com a intenção de se tornar possesso da idéia de progresso do seu país; 
torna-se o primeiro funcionário; ele é o único portador dessa idéia de racionalidade, é capaz de definir a 
organização racional do Estado e realizar uma nação culta” (Discricionariedade administrativa na 
constituição de 1988, p. 12). 
8
 BOBBIO, Norberto; MATTEUCCI, Nicola; PASQUINO, Gianfranco. Dicionário de política, p. 413. 
9
 BANDEIRA DE MELLO, Celso Antonio. Curso de direito administrativo, p. 697. É certo que o termo 
polícia, em linguagem técnico-juridica, prossegue a conceituar, no âmbito do Direito Administrativo, e mais 
precisamente sob o prisma da polícia administrativa, “o conjunto de intervenções da Administração que tende 
impor à livre ação dos particulares a disciplina exigida pela vida em sociedade”, consoante magistério de 
21 
 
subsidiário da atividade do Estado, visando, sobretudo, à prevenção e punição dos 
ilícitos, mediante o emprego de um aparelho rígido e autoritário de investigação e 
intervenção” 
10
. 
“A polícia não tem mais de se encarregar de tudo que é necessário à 
felicidade dos indivíduos, mas apenas garantir a sociedade contra riscos que é 
preciso situar e definir de maneira legal”, asseverou Monet 
11
. Superado, pois, o 
Estado absoluto, o termo polícia, como detalha Sérgio Bova, ganhou um novosignificado: 
[...] no início do século XIX, passou a identificar-se com a 
atividade tendente a assegurar a defesa da comunidade dos 
perigos internos. Tais perigos estavam representados nas ações e 
situações contrárias à ordem pública e à segurança pública. A 
defesa da ordem pública se exprimia na repressão de todas 
aquelas manifestações que pudessem desembocar numa 
mudança das relações político-econômicas entre as classes 
sociais, enquanto que a segurança pública compreendia a 
salvaguarda da integridade física da população, nos bens e nas 
pessoas, contra os inimigos naturais e sociais. 
12
 
Na França, a Revolução de 1789 patrocinou, dentre seus principais 
corolários, a separação das funções do Poder, demandando, por essa via, a 
 
Jean Rivero apresentado por Celso Antonio Bandeira de Mello. De efeito, impende ao Estado criar barreiras 
de contenção ao exercício abusivo dos direitos individuais e coletivos, assim como salvaguardar o interesse 
público. Daí, impor-se a todos os setores da Administração Pública – e também, portanto, aos órgãos 
responsáveis pela segurança pública – o cogente exercício, na exata medida de suas atribuições legais, do 
“Poder de Polícia”, ou seja da atividade “que, limitando ou disciplinando direito, interesse ou liberdade, 
regula a prática de ato ou a abstenção de fato, em razão de interesse público concernente à segurança, à 
higiene, à ordem, aos costumes, à disciplina da produção e do mercado, ao exercício de atividades 
econômicas dependentes de concessão ou autorização do Poder Público, à tranqüilidade pública ou ao 
respeito à propriedade e aos direitos individuais ou coletivos”, conforme define o “caput” do art. 78 do 
Código Tributário Nacional. Portanto, e a servir de exemplo, cumpre, em linhas gerais, à polícia sanitária, 
como manifestação da administração estatal no setor da saúde pública, laborar, com baldrame em suas 
atribuições legais e regulamentares, mirando a prevenção e a contenção da propagação de doenças 
transmissíveis. Derradeiramente, é conveniente assinalar que a expressão em tela, inegavelmente relacionada 
ao Estado de Polícia, e assim contaminada pela idéia de arbítrio àquele peculiar, encontra-se sob a 
generalizada e veemente crítica dos mais doutos tratadistas, esclarecendo o mesmo Bandeira de Mello que na 
Europa, excetuada a França, “o tema é tratado sob a titulação ‘limitações administrativas à liberdade e à 
propriedade’, e não mais sob o rótulo de ‘poder de polícia’” (Op. cit., p. 696). Ainda acerca da ambivalência 
e imprecisão da expressão, vide, dentre tantos outros, Lúcia Valle Figueiredo (Curso de direito 
administrativo, p. 195), Antonio A. Queiroz Telles (Introdução ao direito administrativo, p. 280-282), e 
Odete Medauar (Direito administrativo moderno, p. 403-404). 
10
 BOBBIO et al. Op. cit., p. 413. 
11
 MONET, Jean-Claude. Op. cit., p. 22. 
12
 BOBBIO et al. Op. cit., p. 944. 
22 
 
especialização das atividades estatais. Assim, em 1791, a Assembléia Geral 
Francesa definiu que em suas relações com a segurança pública, impenderia à 
polícia preceder a ação da justiça; a vigilância deve ser o seu principal caráter; a 
sociedade considerada em massa é o objeto essencial de sua solicitude. 
13
 
Dessa forma, o vocábulo polícia passou a ser cada vez mais utilizado para 
identificar as atividades estatais voltadas a prevenir e reprimir, no seio da sociedade, 
as ações capazes de abalar a paz e de violar os interesses de seus membros, 
consoante específica previsão legal. Com o passar do tempo esse sentido foi sendo 
progressivamente popularizado, a ponto de se conformar, hodiernamente, e em 
praticamente todo o mundo civilizado, como a melhor senão a única expressão leiga 
para o termo, servindo a denominar o órgão ou o conjunto de órgãos do Estado 
encarregados de garantir a segurança na comunidade, protegendo, especialmente, a 
incolumidade pessoal e patrimonial dos indivíduos
14
, ou, na precisa dicção de Maria 
Helena Diniz, a “corporação governamental que deve manter a ordem pública, 
prevenir e descobrir crimes, fazendo respeitar as leis e garantindo a integridade 
física ou moral das pessoas”.
15
 
16
 
 
13
 MENDES JÚNIOR, João. O processo criminal brasileiro, p. 245. 
14
 Aos moldes do que dispõe, por exemplo, a Constituição da República Federativa do Brasil, promulgada em 
1988, que por seu art. 144 prescreve: “A segurança pública, dever do Estado, direito e responsabilidade de 
todos, é exercida para a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio, 
através dos seguintes órgãos: I - § 1º - A polícia federal, instituída por lei como órgão permanente, 
estruturado em carreira, destina-se a: I - apurar infrações penais contra a ordem política e social ou em 
detrimento de bens, serviços e interesses da União ou de suas entidades autárquicas e empresas públicas, 
assim como outras infrações cuja prática tenha repercussão interestadual ou internacional e exija repressão 
uniforme, segundo se dispuser em lei; II - prevenir e reprimir o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, 
o contrabando e o descaminho, sem prejuízo da ação fazendária e de outros órgãos públicos nas respectivas 
áreas de competência; III - exercer as funções de polícia marítima, aeroportuária e de fronteiras; IV - exercer, 
com exclusividade, as funções de polícia judiciária da União. § 2º A polícia rodoviária federal, órgão 
permanente, organizado e mantido pela União e estruturado em carreira, destina-se, na forma da lei, ao 
patrulhamento ostensivo das rodovias federais. § 3º A polícia ferroviária federal, órgão permanente, 
organizado e mantido pela União e estruturado em carreira, destina-se, na forma da lei, ao patrulhamento 
ostensivo das ferrovias federais. § 4º - às polícias civis, dirigidas por delegados de polícia de carreira, 
incumbem, ressalvada a competência da União, as funções de polícia judiciária e a apuração de infrações 
penais, exceto as militares. § 5º - às polícias militares cabem a polícia ostensiva e a preservação da ordem 
pública; aos corpos de bombeiros militares, além das atribuições definidas em lei, incumbe a execução de 
atividades de defesa civil. (...)”. 
15
 DINIZ, Maria Helena. Dicionário jurídico, p. 623. A autora insere tal definição no rol de significados 
correntes do verbete polícia – de sua vez aduzido como pertencente ao âmbito do Direito Administrativo –, a 
ainda compreender: “Segurança pública. Conjunto de normas que garantem a segurança da coletividade. 
Guarda policial ou membro daquela corporação. Profilaxia”. 
16
 Coteje-se, a título de ilustração, a “policia” difundida entre os países de língua espanhola e portuguesa, a 
“police” comum aos países de influência inglesa, a “polizia” italiana, a “police” francesa, e a “polizei” alemã. 
23 
 
1.2. A polícia e suas origens. 
1.2.1. A polícia antiga. 
Insta ponderar que ainda não possuindo a denominação “polícia” ou mesmo à 
míngua de qualquer epíteto específico, as atividades anteriormente versadas, 
destinadas a assegurar, no mínimo, alguma ordem na comunidade, induvidosamente 
sempre permearam a história humana, fazendo-se visível em todas as civilizações. 
Lê Clère registra, por exemplo, atuação policial já no antigo Egito, por volta de 
3.000 a.C., à época do faraó Menés
17
. 
Nos livros de história
18
 e de literatura universal
19
, e também naqueles que 
compõem a Bíblia
20
, encontramos inúmeras referências às forças com as quais 
contavam os soberanos – guardas, soldados, guardiões - para assegurar a 
concretização de seus éditos e o cumprimento de seus comandos. Longe, 
entrementes, de se apresentarem como organismos estruturados, instruídos e 
disciplinados para promover, máxime em caráter permanente, a mantençada ordem, 
tais corpos de guardas, ao que se percebe, faziam-se indistintos em face dos 
respectivos exércitos, sendo naturalmente integrados pelos mesmos soldados ou 
funcionários análogos empenhados na defesa da cidade contra o inimigo externo ou, 
 
17
 Op. cit., p. 12. 
18
 BAYLEY, David. Padrões de policiamento: uma análise internacional comparativa, p. 51. Anota ainda 
esse autor que : “Detetives, espiões e mantenedores da ordem pública são encontrados nos registros imperiais 
dos Mauryas (c. 321 - c. 184 a.C.), dos Guptas (c. 320 - c. 535) e dos Moguls (1526-1858) na Índia, dos 
Mings (1368-1644) na China e dos Heyans (794-1185) no Japão”. 
19
 Basta a lembrança das menções reservadas aos guardas na tragédia Antígona, de Sófocles (p. 90-95 e 108-
111). De efeito, ora relatando ao soberano a ocorrência de um crime, ora conduzindo à sua presença a 
protagonista, tão-logo da realização de sua prisão, bem como, e por derradeiro, promovendo a execução da 
sumária sentença proferida por Creonte, os guardas da trama ensejam uma boa idéia acerca do corriqueiro 
proceder das forças que, desde a mais remota antiguidade, eram constituídas pelos reis a garantir efetividade 
ao seu poder, em diapasão absolutamente independente de alguma idéia de legitimidade e talvez até mesmo 
de uma apurada organização. 
20
 Dentre tantas, avultam bastante expressivas as seguintes passagens: Gênesis 12,20: “E Faraó deu ordens 
aos seus guardas a respeito dele, os quais o despediram a ele, e a sua mulher, e a tudo o que tinha”. Cântico 
dos Cânticos 3,3: “Encontraram-me os guardas que rondavam pela cidade; eu lhes perguntei: Vistes, 
porventura, aquele a quem ama a minha alma?”; idem 5,7: “Encontraram-me os guardas que rondavam pela 
cidade; espancaram-me, feriram-me; tiraram-me o manto os guardas dos muros”. João 7,32: “Os fariseus 
ouviram a multidão murmurar estas coisas a respeito dele; e os principais sacerdotes e os fariseus mandaram 
guardas para o prenderem”; Idem 18,12 “Então a escolta, e o comandante, e os guardas dos judeus 
prenderam a Jesus, e o maniataram”; Idem 19,6 “Quando o viram os principais sacerdotes e os guardas, 
clamaram, dizendo: Crucifica-o! Crucifica-o! Disse-lhes Pilatos: Tomai-o vós, e crucificai-o; porque nenhum 
crime acho nele”. Atos 5,26-27: “Nisso foi o capitão com os guardas e os trouxe, não com violência, porque 
temiam ser apedrejados pelo povo”. 
24 
 
então, e apenas, na escolta pessoal do rei e na proteção direta de seus interesses 
pessoais e familiares. 
Fazendo rápida referência à polícia ateniense dos séculos V e IV a.C. – cuja 
principal função consistia em vigiar, tanto os escravos, quanto a ociosa e ambiciosa 
aristocracia rural, indistintamente engajados em conspirações e prontos às sedições 
– Monet afirma, em posição não contestada, que somente em Roma pode ser 
encontrada uma organização policial algo similar àquelas modernas, ou seja, 
instituída e planejada com o fim de propiciar especificamente segurança e 
tranqüilidade aos cidadãos. 
Destaca o autor, nessa esteira, que a história romana do último século a.C. foi 
inteiramente marcada por um terrível caos político e social, que naturalmente se 
desdobrou numa era de extrema violência, qual perpetuado pelo poeta Juvenal, que 
através de gracejo, não menos sinistro do que revelador, afiançou à posteridade: “só 
um insensato sairá na cidade após o jantar sem ter redigido seu testamento”
21
. E 
não desejando contar com os préstimos de seus militares – eis que as legiões, 
sabiamente tidas como um risco às liberdades públicas, não eram regularmente 
admitidas no interior de suas muradas –, Roma, chegando a contar, na época de 
Augusto, com população já próxima a um milhão de habitantes, optou pela criação 
de um corpo policial adequadamente estruturado como a solução mais razoável ao 
enfrentamento desse grave problema. Segundo Casal de Nís, essa primitiva polícia 
romana dispunha, em organização hierarquizada, de “comissário, inspetores, 
lugares-tenentes, capitães e sete mil homens”.
22
 
23
 
O chefe de polícia, completa David Bayley, era o praefectus vigilium – o 
prefeito de vigilância, em tradução livre – um dos integrantes da equipe do prefeito 
 
21
 MONET, Jean-Claude. Op. cit., p. 34. 
22
 CASAL DE NÍS, Emílio. La policia y sus mistérios (biologia criminal), p. 18. 
23
 Mister aqui esclarecer que essa não se apresentou como a única medida adotada pelo governo romano a 
refrear a violência. Relata Monet que, em atividade assistencial e complementar, passou a promover, nessa 
mesma época, freqüentes distribuições graciosas de trigo para o povo, chegando-se assim a beneficiar uma 
população de miseráveis, estimada em algo próximo a duzentos mil almas, formada por infelizes que de todas 
as partes do mundo fluíam à capital do Império em busca de benesses e oportunidades, quiçá exatamente 
desse naipe (Op. cit., p. 35). Posteriormente, cabe acrescentar, veio a referida gestão paternalista a ganhar 
corpo, dando vazão à celebre política do “pão e circo”, consoante expressão cunhada por Juvenal. 
25 
 
da cidade, o praefectus urbe. Eis, de fato, a primeira polícia pública da qual se tem 
incontroverso conhecimento histórico, composta por “agentes executivos da coerção 
física, pagos e dirigidos pela autoridade pública suprema” 
24
. 
Nesse sentido mais nos esclarece João Mendes Júnior: 
O praefectus vigilium, creado por Augusto, para substituir os 
triumvirus, era o chefe de polícia preventiva e repressiva dos 
incêndios, escravos fugidos, furtos, roubos, vagabundos, 
ladrões habituaes, em summa, das classes perigosas, 
recomendando-se-lhe principalmente a policia nocturna (Dig., 
de off. praef. vigilum). Conhecia, pois, dos crimes não punidos 
com pena capital, por isso que os delinqüentes de taes crimes, 
depois de presos, eram postos à disposição do praefectus urbi 
(Dig. cit. L. 3 § 1
o
 Cód., eod. tit., L um). (Sic) 
Subordinados a estes praefecti, principalmente ao praefectus 
vigilum, estavam os irenarche, os curiosi, os stationari, 
agentes policiais incumbidos de percorrer incessantemente 
todas as partes do território, com a missão especial de 
investigar os crimes, prender os indiciados, interrogal-os, 
colligir esclarecimentos, proceder a buscas e apprehensões, 
fazer em summa, o inquérito com todas as diligencias, reduzir 
tudo a autos escriptos, e remeter ao prefeito ou á autoridade 
judiciaria competente (Dig., de cust. reor., L 6 § 1
o
).
25
 (Sic) 
Fora da cidade, nos campos próximos e mesmo nas províncias, a tarefa de 
manutenção da ordem incumbia às milícias formadas por legionários, postadas, em 
regra, de légua em légua, pelas estradas romanas. Nas cidades maiores, os cuidados 
com a segurança em geral recaíam, no estilo da metrópole, aos prefeitos, depois 
titulados, notadamente na França, condes ou comites no original. 
É exato afirmar que, mergulhando em fatal decadência e sucumbindo ao 
avanço bárbaro, o império romano não tardou em se ver multifacetado, dando 
origem a um grande número de novos reinos, aos quais, dentro das raias de seus 
territórios, passou a incumbir as tarefas de manutenção da ordem, de contenção da 
violência e do julgamento dos criminosos. Portanto, sopesadas as correspondentes 
necessidades e possibilidades, cada governante teve que tratar da implementação, 
 
24
 BAYLEY, David. Op. cit., p. 41. 
25
 MENDES JÚNIOR, João. Op. cit., p. 33. 
26 
 
em seus domínios, de algum tipo de policiamento, incumbindo-o quer a militares 
profissionais, quer a corpos de guardas ou, até mesmo, a vigilantes-cidadãos. 
Desse período, e das principais cidades européias, remanescem registros 
sobre os feitos públicos em prol da segurança dos cidadãos, nada, contudo, que 
possa ser comparado aos grandiosos e complexos empreendimentosjungidos à 
edificação e manutenção da tranqüilidade naquela que foi vista como a capital do 
mundo antigo. 
A tendência, à época, não se centrava na constituição de organismos 
policiais, mas sim, como demonstra Lê Clère, na delegação, pelo rei, de poderes a 
certos funcionários para o desempenho das responsabilidades na área da segurança 
interna. 
Assim, por exemplo, Clotário II, em 615, instituiu, em Paris, os 
“comissários-inquiridores ou examinadores”, primitivamente conformados como 
um misto de oficial de polícia e juiz. Igualmente na França, já ao tempo de Carlos 
Magno, cerca de duzentos anos depois, delegados ambulantes – os missi dominici – 
foram nomeados para auxiliar os condes nas suas missões de promover a ordem, de 
investigar abusos e apurar crimes, de interrogar os “delinqüentes em acção (Sic)” 
(aqueles presos em flagrante delito) e de vigiar os estrangeiros 
26
. 
Todas essas iniciativas restringiam-se, de fato, às principais cidades, 
remanescendo a proteção aos campônios e a todos aqueles que viviam em pequenas 
aldeias absolutamente negligenciada, a cargo tão-somente de agentes reais 
itinerantes, que em momento algum da história lograram se sobressair pela 
eficiência, e muito menos pela confiabilidade. Observa Monet, que em face de 
tantas deficiências não restou aos frágeis suseranos opção outra além de anuir com a 
transferência de suas cuidadas obrigações aos seus vassalos. Com isso, e na prática, 
cada barão passou a dispor de sua própria justiça, que impunha aos servos da gleba, 
sempre em nome do rei, porém, ao seu inconseqüente alvedrio. 
 
26
 LÊ CLÈRE, Marcel. Op. cit., p. 15-18. 
27 
 
Evidentemente falho, quando não mesmo inexistente, o sistema de segurança 
das aldeias acabou sendo desenhado e executado por seus próprios beneficiários, ou 
seja, através de milícias de configuração comunitária, que na vaza desse improviso, 
sob a indiferença, ou por vezes até mesmo com o apoio da autoridade, 
invariavelmente também se encarregavam de fazer justiça, sempre de forma sumária 
e simétrica em relação aos sentimentos e ressentimentos experimentados em face de 
cada caso concreto. 
27
 
Essas polícias locais, não profissionais, grassaram também por toda 
Inglaterra, todavia sob a rigorosa tutela estatal, aos moldes do medieval sistema 
denominado Frankpledge. Lá, Tythings e Hundreds exerciam, em regime forçado, 
as tradicionais funções policiais de manutenção da ordem e de prisão de criminosos, 
sob a supervisão de um sheriff, que em sua missão recebia o auxílio dos constables. 
Embora ostentasse a qualidade de preposto real, não recebia o sheriff remuneração 
alguma proveniente do tesouro público
28
. Tão-somente, na primeira metade do 
século XVIII, é que nesse país surgiram as primeiras milícias mantidas total ou 
parcialmente por impostos, inauguradas, e apenas em nível experimental, em 
algumas poucas paróquias da capital do reino. 
29
 
 
27
 MONET, Jean-Claude. Op. cit., p. 35-38. Malgrado o fato dessas organizações escaparem da esfera de 
interesse imediato deste trabalho, parece-nos de bom alvitre ao menos referenciá-las, apresentando-as como 
grupos de aldeões armados que voluntariamente tomavam para si a tarefa de propiciar segurança às suas 
comunidades, decerto protegendo seus próprios interesses, como foram os notáveis casos, por exemplo, dos 
“encapuzados” de Puy-em-Velay, que para o resguardo dos peregrinos e do comércio circundante caçavam e 
dizimavam os assaltantes que infestavam o caminho de Santiago de Compostela, e das “Hermandades”, 
também espanholas, que se voltaram ferozmente contra o arbítrio dos barões. 
28
 Os Tythings eram formados pelos homens livres, saudáveis e maiores de doze anos provenientes de dez 
famílias, ao passo que a reunião de dez Tythings compunha um Hundred. Estruturados de acordo com o 
sistema Frankpledge, incumbia-lhes, de forma compulsória, reprimir quaisquer delitos, bem como o 
encaminhamento dos criminosos – mesmo sendo um de seus integrantes – a julgamento. O descumprimento 
desse dever sujeitava os omissos ao pagamento de impostos, aplicados à guisa de sanção, cabendo percentual 
dos valores pertinentemente recolhidos ao sheriff (palavra composta por “shire” e “reeve”, a designar, 
literalmente, o “prefeito do distrito”), que apenas assim, a par de semelhantes cobranças realizadas aos 
criminosos, encontrava os meios necessários para a subsistência. Bayley anota, como fato histórico, o 
persistente protesto formulado pelos Hundreds contra os sheriffs, os quais acusavam de rotineiramente 
imputar-lhes falsas omissões, obviamente com o fim deliberado de se locupletarem com a parte das multas 
que em decorrência haver-lhes-ia de reclamar (cita como exemplo o romance Robin Hood). O constables, 
inicialmente eleitos pelo próprio Hundred, tinha por obrigação prestar auxílio ao sheriff, especialmente no 
que tange à fiscalização das aldeias. Ainda conforme Monet (op. cit., p. 38-39), sistemática próxima pode ser 
observada também nos países do norte da Europa, cabendo ao Lensman, na Noruega, Suécia e Dinamarca, 
desempenhar funções símiles àquelas exercidas pelo constable e pelo sheriff ingleses. 
29
 Ibidem, p. 37 e 41-42. 
28 
 
1.2.2. Séculos de transição .
30
 
Consideram os autores, em aparente unanimidade, que o primeiro embrião de 
uma polícia profissional, arregimentada, organizada e paga pelo Estado, somente 
despontou na Europa do século XIII, sediada na França, mais precisamente em 
Paris. Criada por Luís IX, a polícia parisiense era dirigida por um superintendente, o 
preboste
31
, ao qual, informa Lê Clère, foram facultados “poderes excepcionais” para 
“o exclusivo cuidado de dirigir a polícia e julgar os processos-crimes”. Compunha-
se, ademais, de comissários investigadores e sargentos, além de contar com os 
serviços de uma patrulha que, sob a divisa vigilat ut quiescant (pela vigia para que 
eles repousem), incumbia-se da guarda noturna da cidade, integrada por cavaleiros 
militares e por todos os citadinos válidos, engajados de forma compulsória ao 
serviço do chamado Guet
32
. 
Pelos anos e séculos seguintes, esse modelo inicial sofreu inúmeras reformas, 
todas intentadas não apenas com o fito de lapidar esse novel organismo, mas 
também com o inequívoco intuito de conter a contumaz criminalidade que nunca 
deixou de assolar a capital francesa
33
. Nessa senda progressista, foram adotados 
 
30
 Muito embora o desenvolvimento do tema leve à abordagem exclusiva do histórico policial europeu, cabe 
aqui – aos moldes do que já foi en passant realizado através da nota de nº 18 – o registro atinente à natural 
existência, ao longo dos tempos, de corpos propriamente policiais, dotados de razoável organização, também 
em outros centros culturais mundiais, como observado no grandioso Cairo do século XIV. Nesse capital do 
sultanato islâmico mantinha-se, sob as ordens do seu governador militar, o wali, uma vigorosa e notoriamente 
corrupta força policial, incumbida de combater o crime, controlar o toque de recolher, verificar a hora de 
abrir e fechar as lojas e o acatamento dispensado aos regulamentos de saúde, além de patrulhar as ruas, 
especialmente as áreas de má reputação, tavernas e antros de haxixe. A espionagem, levada a efeito por 
agentes dissimulados, principalmente nos mercados e visando os estrangeiros, também compreendia função 
comezinha dessa polícia, que, de quebra, ainda se prestava à execução das sentenças emitidas pelos juízes 
religiosos, que variavam desde as penas de prisão até as capitais, como a decapitação, o garrote e a 
crucificação (A evolução das cidades, p. 73). 
31
 LÊ CLÈRE, Marcel. Op. cit., p. 21-23. De proepositus, o preposto. A instituição do prebostado, criada em 
1032 por Henrique I, tratava-se de uma magistratura, comjurisdição sobre o viscondado de Paris, 
encarregada do exercício de inúmeras funções governamentais, dentre as quais, e sem dúvida as mais 
importantes, apareciam as de juiz, chefe militar e de polícia. Com a reforma empreendida por Luís IX, esse 
órgão ganhou força e as condições necessárias para realizar o seu novo e exclusivo mister: a direção da 
polícia e o julgamento dos processos criminais. 
32
 BAYLEY, David. Op. cit., p. 43. 
33
 LÊ CLÈRE, Marcel. Op. cit., p. 23, 32, e 38. Registra Lê Clère que já em 1258 “não havia noites sem 
incêndios, violações, pilhagens, assassínios, até dentro dos muros do Louvre”. Que em 1549 os protestos 
contra a impotência do governo francês contra a criminalidade eram generalizados, eis que o período ficou 
conhecido, emblematicamente, como a sinistra época da “pera da angústia”, quando roubadores enfiavam a 
fruta pela garganta das infelizes vítimas para as impedir de gritar”. E também que, em 1660, Boileau irritava 
as autoridades versejando: “Mal que da noite as sombras sossegadas / Obrigam a trancar janelas e portadas / 
29 
 
todos os tipos de medidas imaginadas válidas e viáveis a garantir a otimização da 
força parisiense, a contar, dentre as mais comuns, com as reiteradas alterações 
estruturais, passando por soluções meramente quantitativas, com realce para a 
criação de novos corpos policiais
34
, ou para a singela majoração dos efetivos já 
existentes, até chegar àquelas de saudável aspecto qualitativo, como a exigência, 
fixada por intermédio de leis de 1546 e 1583 respectivamente, de prévia seleção à 
contratação dos candidatos a postos policiais, mediante exames de conhecimentos e 
da comprovação de bons antecedentes cívicos e morais, reclamando-se aos 
pretendentes a dignidade de comissário prévio licenciamento pela faculdade de 
jurisprudência e a submissão de exame de direito e a processo perante o 
Parlamento.
35
 
Dentre todas essas reformas uma mostrou-se inegavelmente a mais relevante, 
a ponto de cunhar o que seria posteriormente conhecido como o modelo francês de 
polícia. Em 1667, Luís XIV, o Rei Sol, criou no prebostado o cargo de “tenente da 
polícia de Paris”, destacando-o do de tenente civil, até então a maior autoridade da 
cidade, e dotando-o com amplos poderes e competências que transcendiam o plano 
da segurança pública para abarcar as demais áreas vitais da administração da cidade, 
percorrendo desde o combate aos incêndios e inundações até a fiscalização 
sanitária. Cerca de três mil homens totalizaram os contingentes a sua disposição, ao 
passo que a população dessa capital já passava de meio milhão de habitantes. 
Entrementes, a mais marcante peculiaridade dessa renovada força pública 
inegavelmente veio a se constituir a sua polícia secreta – composta por espiões 
recrutados em todos os meios, de estudantes a criminosos – responsável por manter 
o rei informado sobre tudo e todos, desde movimentações políticas até 
particularidades pessoais e morais de seus súditos. Completava esse modelo a 
 
... Nesse instante os ladrões tomam conta da urbe / O mais funesto bosque, o mais deserto e escuro / À vista 
de Paris é refúgio seguro”. 
34
 Assim, em 1549 nascia na França a Maréchausée, corpo de polícia militarizado – inicialmente formado 
para guarnecer as retaguardas do exército – que passou a ter a incumbência de patrulhar os campos, e, 
correndo de cidade em cidade, manter a ordem e combater os criminosos. Em 1791, essa força foi rebatizada, 
passando a chamar-se Gendarmarie, denominação que persiste até os dias atuais. 
35
 LÊ CLÈRE, Marcel. Op. cit., 23-60. 
30 
 
castrense Maréchausée, então destinada ao patrulhamento dos campos e cidades 
interioranas. 
Prossegue Monet, aduzindo que esse modelo francês logo se irradiou para 
boa parte da Europa, influenciando a formação de polícias públicas de caráter 
permanente em vários Estados – notadamente naqueles de governo abertamente 
despóticos –, como na Rússia, em 1718, na Prússia, em 1742, e na Áustria, em 
1751. 
Já a Inglaterra, país de histórica orientação liberal, rejeitou asperamente esse 
figurino policial, o qual mereceu, em 1785, no Daily Universal Register, 
sintomático registro acerca do exasperado sentimento bretão a seu respeito: “Nossa 
Constituição não pode admitir nada que se pareça com a polícia francesa; e muitos 
estrangeiros nos declararam que preferiam deixar seu dinheiro com um ladrão inglês 
à suas liberdades nas mãos de um tenente de polícia”.
36
 
37
 
De fato, outros foram os caminhos seguidos nos domínios insulares, 
colimando o aperfeiçoamento policial. Em 1749, Henry Fielding, com o apoio de 
seu irmão John, magistrado londrino, lançou-se à construção de uma nova e 
profícua força policial, baseando-se, de forma inusitada, em prévios estudos 
desenvolvidos à detecção das causas da criminalidade
38
. Durante suas lucubrações, 
diagnosticou como o principal responsável pela ineficiência da polícia inglesa o 
despreparo de seus agentes, historicamente mal selecionados
39
 e inadequadamente 
 
36
 MONET, Jean-Claude. Op. cit., p. 48. 
37
 Ibidem, p. 64. A menção reservada à polícia francesa pelo Ministro da Justiça José Alencar, em 1869, torna 
realmente mais fácil a compreensão acerca dessa invectiva: “Creio que o nome só da polícia tornou-se um 
oprobrio na França, por causa da natureza mysteriosa dos meios e do caracter pouco moral dos agentes que 
ella emprega; ao passo que si na Inglaterra a policia é respeitada, póde-se sem hesitação attribuir sua 
popularidade á franqueza e á dignidade de seus processos” (Sic) (conforme João Mendes Júnior, Op. cit., p. 
261). A retidão e o profissionalismo da polícia inglesa foram bem retratados, outrossim, pelo genial francês 
Júlio Verne naquela que é considerada sua maior obra: A volta ao mundo em oitenta dias, publicada 
originalmente em 1874. Aproveitando o relato do insucesso do açodado detetive Fix, cuja desarrazoada 
pretensão detentiva foi prontamente indeferida pelo Chefe de Polícia de Bombaim, Verne fez textual: “Essa 
severidade de princípios, a observância rigorosa da legalidade são perfeitamente compreensíveis nos 
costumes ingleses que, em matéria de liberdade individual, não admitem nenhuma arbitrariedade” (p. 64). 
38
 Publicados em 1751, sob o título “Investigação Sobre as Causas do Aumento dos Roubos”. 
39
 Monet revela que, na verdade, em toda Europa, raríssimas exceções à parte, os policiais menos 
categorizados eram selecionados praticamente ao largo de quaisquer exigências, tratando-se essa realidade de 
uma conseqüência das dificuldades de recrutamento, já que a péssima remuneração dessa atividade não fazia 
31 
 
remunerados 
40
. Buscou, destarte, priorizar, quando da organização dos Fielding’s 
Bow Street Runners, sistemas de recrutamento elaborados sobre critérios rígidos e 
de remuneração regular, efetuada através do pagamento de “prêmios de captura”, 
sigilosamente patrocinados pelo erário. Coroado de bom êxito, esse sistema 
permaneceu em funcionamento por oitenta anos, até a derradeira reforma da polícia 
de Londres. 
41
 
1.2.3. A polícia moderna. 
Imperioso firmar, neste ponto, um conceito plausível e efetivo para a polícia 
“moderna”, assim vislumbrada por Monet: 
Mais que o progresso dos efetivos, é a profissionalização que 
cava o fosso entre as formas antigas e modernas de polícia. A 
noção de “polícia moderna” remete, com efeito, a evoluções 
precisas que constituem a função policial como profissão : 
estabelecimento de critérios meritocráticos – o concurso – em 
matéria de recrutamento; elaboração e transmissão de um 
saber técnico através dos processos de formação; remuneração 
suficiente para que o oficial policial seja exercido em tempo 
integral; desenvolvimento, enfim, deuma identidade 
profissional que se exprime por uma cultura que tem suas 
normas, valores e ritos. 
42
 
Uma polícia fiel a tais contornos somente pode ser vista, pela primeira vez, 
em 1829, na extensão da benfazeja experiência dos irmãos Fielding. Coube a Sir 
Robert Peel fundar a “Polícia Metropolitana de Londres”, ou simplesmente a Met
43
, 
constituída por um “regimento policial civil, mantido com recursos públicos, grande 
o bastante para conter e dispensar multidões urbanas”. 
Forjava-se, desse modo, um novo molde policial, o inglês, que não demorou 
a se tornar o preferido em boa parte do mundo, refreando, especialmente na Europa, 
 
por atrair muitos ou bons interessados. A situação já se apresentava diferenciada em relação aos Chefes de 
Polícia, dos quais normalmente era exigido, como condição para a ascensão ao posto, o diploma do curso de 
Direito. 
40
 CLIFT, Raymond E.. Cómo razona la policía moderna: vista panorámica de actividades policíacas, 
p. 28. 
41
 MONET, Jean-Claude. Op. cit., p. 62. 
42
 Ibidem, p. 61-62. 
43
 Ibidem, p. 72. Recebeu a Met, outrossim, a glamorosa denominação Scotland Yard, título relacionado ao 
edifício que primeiro lhe serviu como sede, um palácio que anteriormente abrigava os reis escoceses quando 
em visita a Londres. 
32 
 
num curto espaço de tempo, uma forte tendência de militarização dos corpos 
policiais existentes. 
44
 
Essa inovadora polícia de Peel – tido por alguns como o pai da polícia 
moderna – apresentou-se realmente surpreendente sob diversos aspectos, 
evidentemente porquanto lastreada em uma filosofia absolutamente incomum para o 
seu tempo, qual hoje se pode inferir das alvissareiras diretrizes estabelecidas pelo 
seu criador : 
O constable deve ser civil e cortês com as pessoas de qualquer 
classe ou condição... Ele deve ser particularmente atento para 
não interferir desastradamente ou sem necessidade, de modo a 
não arruinar sua autoridade... Ele deve lembrar que não existe 
nenhuma qualidade tão indispensável ao policial como uma 
aptidão perfeita para conservar seu sangue-frio. 
45
 
Nessa esteira, ganhou corpo o processo de especialização das principais 
forças policiais, que a partir de meados do século XIX iniciaram um gradativo 
abandono, em favor de outros órgãos da administração estatal, de todas as funções 
estranhas à tarefa de contenção da criminalidade. Mais do que isso, e para além da 
 
44
 BAYLEY, David. Op. cit, p. 56. Registre-se, em sentido contrário, a opinião de Carlos Magno Nazareth 
Cerqueira, que com supedâneo único e literal na obra de Raymond E. Clift (vide nota nº 53), revela sua 
crença que “Peel tenha influenciado as polícias mundiais a adotarem o modelo militar”. É bem verdade que 
Cerqueira reconhece, com base na lição de um oficial da Gerdarmeria francesa, a existência de uma grande 
diferença entre uma “força de polícia com estrutura militar” e uma polícia militar. Alude à primeira, embora 
de forma fragmentada, como uma força de caráter até mesmo civil, regida por “normas militares nos aspectos 
relacionados à organização, instrução e regime disciplinar” (Questões preliminares para a discussão de 
uma proposta de diretrizes constitucionais sobre a segurança pública, p. 143-147). Ainda assim, o erro 
de Cerqueira torna-se evidente ao se compulsar os preceitos fundamentadores da Polícia de Pell, eis que logo 
o primeiro apresentava-a como uma alternativa à força militar (apud Luiz Antonio Francisco de Souza, 
“Polícia, Direito e Poder de Polícia. A Polícia brasileira entre a ordem pública e a lei, p. 295-319) 
Registre-se, por oportuno e necessário, a classificação operada pelo professor José Manuel Castells Arteche, 
catedrático de Direito Administrativo da Universidade do País Basco, contemplando o modelo policial anglo-
saxão como “civil e descentralizado, profissional e orientado à investigação criminal”, enquanto apresenta o 
francês ou napoleônico como “militarizado, ao serviço do Estado e centrado na manutenção da ordem 
pública” (“La policía judicial como objetivo”, p. 46). Não bastassem as evidencias expostas, o absurdo em 
se aludir a uma polícia inglesa militar ou militarizada, máxime e especificamente em se tratando da polícia 
judiciária, se há patente com René David, que em seu célebre O Direito Inglês (p. 49) se pronunciou 
categórico : “A polícia se apresenta, na França, como um corpo semi-militar, estritamente hierarquizado, por 
trás do qual se descobre, aos olhos de todos, o poder público com todos os seus privilégios e suas 
prerrogativas. Na Inglaterra, ao contrário, a polícia, comparável outrora a uma espécie de milícia e 
representada pelo parish constable (policial do distrito ou comarca), conservou um caráter local, um vínculo 
com a população, que ainda em nossos dias são uma característica geral da instituição (...) concebida 
tradicionalmente no âmbito das coletividades locais, a polícia não se apresenta aos ingleses como o braço do 
poder executivo (...) não se associa à concepção de polícia a idéia de prerrogativas do poder público, menos 
ainda a da irresponsabilidade, que a existência de uma polícia de estado arraigou no espírito dos cidadãos do 
continente”. 
45
 MONET, Jean-Claude. Op. cit, p. 52. 
33 
 
prevenção criminal, distinguiram-se as “novas polícias”, que naquela época 
pululavam na Europa, pelo desenvolvimento de pujante atividade investigativa, 
inclusive de índole científica. Fundou Londres, em 1863, no seio de sua MET, o 
Criminal Investigation Departament, sendo rapidamente acompanhada por nações 
vizinhas.
46
 
Enquanto isso, na nova França, nascido da vitoriosa revolução de 1789, o 
recém-fundado Estado de Direito exigia uma nova polícia. A Declaração dos 
Direitos do Homem e do Cidadão fez proclamar por seu cânone XII: “A garantia 
dos direitos do homem e do cidadão necessita da força pública; esta força é, pois, 
instituída pela vantagem de todos e não para a utilidade aos quais foi confiada”
47
. 
Uma vez definida sua alma, coube à Lei de 3 do Brumário do ano IV (25 de outubro 
de 1795) traçar a fisionomia dessa nova polícia, de plano bipartida: 
A polícia é administrativa ou judiciária. A polícia 
administrativa tem por objeto a manutenção habitual da ordem 
pública em cada lugar e em cada parte da administração geral. 
Ela tende principalmente a prevenir os delitos. A polícia 
judiciária investiga os delitos que a polícia administrativa não 
pode evitar que fossem cometidos, colige as provas e entrega 
os autores aos tribunais incumbidos pela lei de puni-los. 
48
 
No plano dos fatos não fez a França, entrementes, por merecer maior 
destaque, senão negativo, nesta divisada evolução policial. De fato, em meio a 
incessante turbulência social e política demandada ao longo das décadas que se 
seguiram, a novel polícia francesa – construída sobre os escombros do terror – não 
se distanciou muito daquela que a precedeu no ancien regime, assim frustrando as 
expectativas criadas ao seu redor. 
Extrai-se de Lê Clère, que a polícia francesa que daí se seguiu, enveredou 
por uma trajetória absolutamente errática, não conseguindo tomar forma ou rumo 
 
46
 MONET, Jean-Claude. Op. cit., p. 60. Em 1856 uma lei uniformizou todo o sistema policial vigente na 
Inglaterra e País de Gales, excetuada apenas a polícia londrina. 
47
 Quando reeditada, em 1791, esta Declaração já não mais trazia a vertente assertiva em seu texto. 
48
 Artigos 19 e 20. 
34 
 
que lhe pudesse enquistar um sentido proveitoso de modernidade e muito menos de 
exemplaridade. 
Ora estruturada em torno de um ministério específico, ora vinculada 
singelamente a uma Prefeitura, outra vez subordinada a um órgão ainda de menor 
expressão, nãoteve essa polícia nenhum traço de constância além de sua persistente 
utilização política. Assim, quer sob a batuta do controverso e poderoso Ministro 
Fouché, cujos auxiliares lograram reconhecimento apenas porque “versados na arte 
das confissões”, quer sob os comandos de Pietri e Lagrange, quando atingiu os 
fastígios da sua atuação violenta e inescrupulosa, manteve-se a polícia francesa em 
execrável senda. 
Sob aspecto positivo parecem apenas merecer alguma menção o Ministério 
Martignac, talvez o primeiro a investir solidamente na execução das obrigações 
criminais a que efetivamente se prendia a função policial, e, nessa mesma mão de 
direção, a gestão do Prefeito Gisquet, que igualmente preteriu os serviços de 
informação em favor da reorganização e do saneamento dos corpos policiais, em 
especial da brigada de Segurança
49
, antecessora da atual Polícia Judiciária. 
Rendendo-se à eficiência britânica, a Polícia Municipal de Paris acabou por adotar, 
em 1854, o modelo da Met de Robert Peel. 
Quanto a Gendarmaria – denominação dada pela Revolução, em 1791, à 
antiga e militarizada Maréchausée – pouco em verdade há para ser considerado, 
especialmente porque essa força policial permaneceu ausente do cenário parisiense, 
onde unicamente se desenrolaram as mais importantes e decisivas passagens da 
história francesa. A seu respeito, destarte, apenas vale ser registrada sua utilização, 
por Napoleão, em campanhas militares, especialmente para funcionar como exército 
 
49
 Dentre os expungidos dos quadros dessa polícia investigativa achava-se o lendário e controverso Vidocq, 
um ladrão supostamente convertido, considerado por alguns, como atesta CASAL DE NIS (Op. cit., p. 25), 
como um agente extraordinário, um mestre dos disfarces, enquanto que para outros, como alerta LÊ CLÈRE, 
não mais que um bandido, que apenas mácula e desonra carreia à polícia toda vez que tem o seu nome a ela 
associado (p. 94). 
35 
 
de ocupação dos territórios invadidos, e a sua característica reprodução, nessa 
variante, por vários países europeus (Prússia, Piemonte e Grécia, por exemplo).
50
 
Pronunciando-se acerca do incremento policial durante esse período, 
marcantemente aquele relacionado ao Estado liberal, Luigi Ferrajoli classificou-o 
como “um crescimento completamente desordenado e, por assim dizer, subterrâneo, 
que se manifestou em uma imponente legislação pontual, ao lado, como um direito 
inferior e complementar, das grandes codificações penais e processuais”. E subindo 
o tom, nessa mesma escala de percuciência crítica que o tema suscita, especificou: 
As linhas de desenvolvimento e as matérias deste direito 
policialesco são essencialmente três: antes de tudo, a 
prevenção especial ante delictum contra as “classes 
perigosas”, em geral os “sujeitos perigosos; em segundo lugar, 
as funções cautelares ante iudicium e/ou de polícia judiciária 
contra os “suspeitos”, auxiliares ao processo e tanto mais 
favorecidas nos ordenamentos continentais pelo caráter misto 
do processo; em terceiro lugar, o direito de exceção extra 
legem, de várias maneiras informado pela razão de Estado, ou 
ainda mais contingentemente por razões políticas de controle 
social. A este desenvolvimento crescente e persuasivo 
contribuiu – já se disse – também a cultura jurídica com seu 
explícito aval e, mais freqüentemente, com sua indiferença e o 
seu desinteresse. 
51
 
Não resta dúvida alguma, todavia, que os encimados sistemas policiais – 
certamente por suas divisadas virtudes e mesmo por aquilo que hoje se nos afigura 
cristalinamente como o seu revés – serviram a inspirar ou mesmo a moldar 
praticamente todas as forças e departamentos policiais criados no mundo civilizado 
a partir do século XIX. Na verdade, em que pesem as marchas e contramarchas 
consignadas, o aduzido processo de assimilação deveu-se natural e primordialmente 
à colonização levada a efeito por França e Inglaterra – em alguns casos até meados 
do século passado – sobre um enorme número de povos em extensa área do planeta. 
De resto, como inerente às potências mundiais, esses dois países funcionaram, por 
um longo tempo, como grandes pólos culturais internacionais, atraindo aos seus 
 
50
 LÊ CLÈRE, Marcel.. Op. cit., p. 63-103. 
51
 FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal, p. 616. 
36 
 
obséquios, e consectariamente impregnando com seus standarts de dominação, 
mormente políticos e jurídicos, praticamente todos os demais Estados 
nominalmente livres, porém sempre periféricos e dependentes.
52
 
Os Estados Unidos da América, embora inicialmente presos ao desenho 
policial inglês, acabaram desenvolvendo, em fidelidade à história e as demais 
particularidades que se lhe afiguraram únicas, o seu próprio sistema de 
policiamento, no qual, hoje, apenas e exatamente por força da mesma dependência 
cultural supra-exposta, muitos países pretendem se espelhar quando da conformação 
ou reestruturação de seus organismos policiais. 
Relata Clift que, a princípio, consoante o padrão bretão herdado, a mantença 
da ordem nas colônias inglesas localizadas em terras norte-americanas foi confiada 
aos tradicionais sheriffs e constables, eleitos dentre os cidadãos de cada 
comunidade. Nesses primeiros tempos, mas somente em cidades mais populosas, 
também existiram rondas noturnas, cujas preocupações, porém, centravam-se 
basicamente na prevenção contra hipotéticos ataques indígenas. 
Somente no século XIX, ou seja, após a independência, e à vista de uma 
crescente criminalidade, especialmente de origem juvenil, começaram a ser 
organizados corpos policiais profissionais. Nova York, por exemplo, criou, em 
1844, a primeira polícia municipal civil americana, composta por 800 homens, no 
que foi paulatinamente sendo imitada por outras cidades de porte próximo. O 
surgimento, em 1835, dos famosos Texas Rangers, constituídos com a finalidade de 
reprimir o roubo de gado, marcou o estabelecimento das polícias estaduais. Depois, 
com a intensificação da violência no campo e proliferação dos assaltos a bancos, 
 
52
 BAYLEY, David. Op. cit., p. 45-56-76. Assim, por exemplo, a Índia, mesmo após o período colonial, 
optou por manter o sistema inglês, evidentemente adotado no passado e solidamente estruturado quando da 
independência do país, enquanto que ao Japão pode organizar sua primeira força policial, em 1878, em linhas 
ocidentais, tomando livremente por modelo a França e a Prússia Registre-se, outrossim, as palavras de 
entusiasmo do Visconde do Uruguai – Paulino José Soares de Souza – , contidas logo no preâmbulo de sua 
clássica obra, Ensaio Sobre o Direito Administrativo, editada em 1862: “Na viagem que ultimamente fiz à 
Europa não me causaram tamanha impressão os monumentos das artes e das ciências, a riqueza, força e 
poder material de duas grandes nações: França e Inglaterra, quanto aos resultados práticos e palpáveis da sua 
administração” ( p. 5). 
37 
 
essas forças foram rapidamente multiplicadas, ganhando presença em vários outros 
estados, como Connecticutt, Massachusetts, Pensilvânia etc. 
Entretanto, já desde 1829, contavam os EUA com agentes policiais federais, 
cabendo a primazia aos inspetores instituídos para dar eficácia aos preceitos da 
então recém-editada Lei Postal. Nessa mesma senda, a legislação voltada ao 
combate ao crime de falsificação de moeda, datada de 1842, deu origem à Divisão 
de Serviço Secreto. Em 1874, como repartição do Departamento de Justiça, nasceu 
o hoje renomado FBI (Federal Bureau of Investigation), talvez o maior paradigma 
contemporâneo de polícia investigativa em todo o mundo.
53
 Graças a essa 
sistemática, e como produto lógico de uma progressão aritmética, milhares são as 
organizações policiais atualmente existentes e operantes naquele queé o mais rico e 
poderoso Estado do planeta. 
Na Europa, atualmente, encontramos uma profusão de polícias, existindo 
geralmente mais de uma em cada país, vinculadas, ademais, a diversificados órgãos 
de tutela (Ministérios da Justiça, da Defesa, do Interior, das Finanças, governos 
autônomos e locais etc.). Essas forças, preponderantemente civis, ainda hoje 
ostentam sinais claros de seus modelos de origem, sempre francês ou inglês, e uma 
razoável adequação aos regimes políticos nacionais. 
Observa Johnston que diante dessa diversidade, surge uma insuperável 
dificuldade de se estabelecer, no presente, um padrão verdadeiramente europeu de 
policiamento público, máxime quando essa atividade volta a perder terreno, em face 
de uma copiosa oferta de proteção privada, esta sim, em pujante processo de 
internacionalização. Alude o autor a uma “‘salada’ (Euro-mélange) de agências de 
policiamento público e privado”, as quais brevemente se somará a Agência Policial 
 
53
 CLIFT, Raymond E. Op. cit., p. 31-35. 
38 
 
Européia, a EUROPOL, conforme previsão ínsita no art. K.19 do Tratado de 
Maastricht. 
54
 
1.3. A polícia no Brasil. 
1.3.1. No período colonial. 
Em Portugal, conta Lê Clère, desde 1383, época do reinado de D. Fernando, 
tem-se o registro da edição de instruções e regimentos policiais, tendentes a ordenar 
a atuação dos “quadrilheiros” nas atividades de guarda das cidades, de controle 
sobre os estrangeiros e de repressão aos criminosos. Assim como ocorrera na 
França, o desenvolvimento da polícia portuguesa também foi alavancado pela grita 
popular, provocada por um banditismo em constante evolução. 
O termo polícia, entretanto, somente ganhou uso corrente em terras lusitanas 
após 1760, quando, sob a mão forte do futuro Marquês de Pombal, foram 
redobrados os esforços governamentais destinados a refrear os ataques criminosos 
amiúde sofridos pela população, pois como demonstram os versos do cancioneiro 
popular: “a segurança era nenhuma em Lisboa, todas as noites se cometiam tantas 
mortes e roubos que, pelo hábito, já passava que matar era cortesia e furtar 
modéstia”. 
55
 
Já no Brasil, mera colônia, as forças alocadas visavam apenas resguardar os 
interesses da Coroa, tardando-se, também por esse motivo, o aparecimento de 
apontamentos sobre a atuação genuinamente policial.
56
 Sabe-se que por longo 
 
54
 Johnston, Lês. Como reconhecer um bom policiamento, p. 243. Segundo o autor, a Europol, a princípio, 
limitar-se-á a facilitar e viabilizar a troca de informações de interesse policial entre os países-membros da 
Comunidade Européia, quiçá estabelecendo, com esse propósito, um organismo analítico centralizado. 
55
 LÊ CLÈRE, Marcel. Op. cit., p. 145-148. 
56
 Segundo o ex-parlamentar Elói Pietá, “no Brasil-Colônia toda a população masculina livre era obrigada a 
se inscrever nos corpos militares sob as ordens de Portugal. Aqueles que iam para as unidades pagas (em 
geral, os solteiros) exerciam o serviço militar permanente, principalmente localizado no litoral. Formavam o 
que era chamado de Tropas de Primeira Linha ou Corpos Permanentes. O restante da população livre (os 
escravos eram maioria) era obrigada a inscrever-se gratuitamente nas Tropas de Segunda Linha (chamadas de 
Corpos Auxiliares ou Milícias) ou nas Tropas de Terceira linha (chamadas de Ordenanças). Eram excluídos 
das tropas de segunda linha apenas os velhos, os doentes e alguns que exerciam funções administrativas, 
como escrivães e meirinhos (oficiais de justiça), raros funcionários civis da época. Os Corpos Auxiliares ou 
Milícias e as Ordenanças, além de forças auxiliares das tropas regulares para a defesa externa ou para a 
guerra de fronteiras, eram as principais forças de polícia da Colônia. Eles cuidavam da manutenção da lei e 
da ordem dentro de cada província, capturando escravos fugitivos, atacando quilombos e tribos hostis, 
39 
 
tempo as atividades jurídico-policiais, a par daquelas de índole político-
administrativas, incumbiram às Câmaras Municipais, cabendo aos capitães-mores, 
aos alcaides, aos quadrilheiros e aos almotocés auxiliar os Juízes Ordinários e de 
Fora, além dos Corregedores e Ouvidores, na faina criminal
57
. 
A primeira organização policial surgida nesse período data de 10 de maio de 
1808, quando, por Alvará de D. João VI, foi criada a Intendência Geral de Polícia 
da Corte e do Estado do Brasil, posta sob a direção de um Desembargador do Paço e 
sob a representação de um Delegado de Polícia em cada província. Mais tarde a essa 
estrutura foram acrescentados os Comissário, um em cada distrito. 
1.3.2. No Brasil imperial. 
Não obstante se tratasse de exigência naturalmente decorrente da 
emancipação política havida em 1822, e principalmente da Constituição outorgada 
em 25 de março de 1824, cujo oitavo título foi totalmente consagrado às “garantias 
dos direitos civis e políticos dos cidadãos brasileiros”, demorou um bom tempo até 
que alguma modificação tomasse maior vulto no proscênio policial pátrio. 
De fato, com a independência ficou praticamente mantida a antiga estrutura 
policial herdada do período colonial, encabeçada pela Intendência Geral de Polícia, 
fundada, anos antes, pelo rei de Portugal. A responsabilidade final pela execução 
dos misteres policiais – desde a manutenção da ordem, promovida com vistas à ação 
de “ébrios, vadios, mulheres escandalosas, turbulentos”, até a comunicação dos 
crimes havidos aos juízes territoriais, para a adoção das providências cabíveis - logo 
recaiu, em termos de novidade, aos comissários
58
, cidadãos honrados e 
reconhecidamente patriotas, compulsoriamente designados pelo Intendente ou por 
 
afugentando índios, sufocando rebeliões ou desordens, prendendo aqueles considerados criminosos ou quem 
desobedecesse às ordens superiores ou desertasse”. Prossegue informando que os chefes militares, e 
necessariamente policiais, eram os coronéis e capitães, constituídos sempre entre os ricos donos de terra, que 
dessa forma perpetuavam seu poder sobre as regiões postas sob sua influência (Crime e polícia, p. 78-81). 
57
 KFOURY FILHO, Abrahão José. A polícia à luz do direito, In : A polícia civil e sua institucionalização 
no direito brasileiro, p. 26. 
58
 Estabelecidos por Portaria, de 4 de novembro de 1825, da Intendência Geral de Polícia. 
40 
 
seus Delegados, para, e pelo prazo de dois anos, fazer respeitar as leis do Império 
nas respectivas áreas distritais
59
. 
Somente em 1832, com a promulgação do Código de Processo Criminal (Lei 
de 29 de novembro, regulamentada por Decreto de 29 de março de 1833), foi o 
primitivo desenho totalmente abandonado, havendo, na Corte, a substituição do 
Intendente Geral por um Chefe de Polícia – necessariamente um magistrado
60
 –, 
figura essa também prevista para as cidades mais populosas. 
Contudo, as prestações marcadamente policiais, que então se estendiam 
desde o campo da segurança até os demais planos da administração voltados à 
garantia do sossego público, foram concentradas nas mãos dos Juízes de Paz
61
, 
eleitos símiles e paralelamente aos vereadores, com competência para agir no 
âmbito de seus distritos
62
. A auxiliá-los no desempenho de suas atribuições, tanto 
policiais – quer de manutenção da ordem, quer de elucidação de crimes – quanto 
 
59
 A esse fim, ao menos teórico, deveriam contar com o auxílio das tropas da Guarda Nacional, órgão 
formado após a independência para a contenção de rebeliões e combate à criminalidade, além de servir à 
defesa externa quando necessário. Integrada tão-somente pelos eleitores (proprietários dotados de recursos), 
tendo sido seus comandantes e alta oficialidade,designados pelo Imperador, decerto que essa nobre 
instituição pouco fez para cumprir com suas obrigações, logo entregues às Guardas Municipais e congêneres, 
formadas a partir de 1831 (Elói Pietá, op. cit., p. 78-81). 
60
 O que rendeu o repúdio de muitos. Nesse sentido João Mendes Júnior fez registrar as fortes críticas 
formuladas, ainda que em tempos diferentes, pelo Senador Alves Branco e pelo Deputado Moura Magalhães 
à essa previsão, concernente à investidura de Juízes de Direito em cargos policiais, coincidindo também por 
desmerecer, em escala residual, a figura e a atuação dos Juízes de Paz. Op. cit., p. 170-176. Nesse mesmo 
sentido, ainda ressaltou o Ministro da Justiça Paulino de Souza: “Releva observar, pois, que um abuso muito 
arraigado tem tornado as autoridades eletivas mais políticas que judiciárias”. E em arremate: ‘Todo o favor, 
toda a proteção para aqueles que os ajudam a vencer, toda a perseguição aos vencidos” (Cf. PIERANGELLI, 
José Henrique. Processo penal: evolução histórica e fontes legislativas, p. 138). 
61
 MENDES JÚNIOR, João. Op. cit., p. 156. Na realidade, os Juízes de Paz já existiam no Brasil desde 1827, 
criados por Lei de 15 de outubro, com as atribuições policiais e criminais que o Código do Império apenas 
lhes confirmou. Já a partir de 1829 os comissários de polícia passaram a ser substituídos em suas funções por 
essas autoridades híbridas, às quais cabia, para além de proceder às investigações, julgar alguns crimes, 
submetendo, posteriormente, sua decisão à ratificação do Juiz Criminal. 
62
 O art. 2
o
 do Código especificava: “Haverá tantos Districtos quantos forem marcados pelas respectivas 
Camaras Municipaes, contendo, cada um, pelo menos, setenta casas habitadas”. (Sic) 
41 
 
judiciais
63
, a lei previu o concurso de Escrivães de Paz, Inspetores de Quarteirões e 
Oficiais de Justiça.
64
 
Porém, esse protótipo de sistema policial “à brasileira”, inspirado na Lei 
francesa de 3 do Brumário, não teve longa carreira, sendo, pouco tempo depois, 
desfigurado por iniciativa de conteúdo controverso, encetada sob o signo do 
sofisma, qual desnudado por José Frederico Marques: 
O período de agitações políticas e movimentos 
revolucionários que assolou o país, em 1830 e 1840, provocou 
a reação monárquico-conservadora, notadamente na esfera da 
organização judiciária e policial, visto que o sistema adotado 
pelo Código de 1832 se apresentava pouco eficiente para 
restaurar, definitivamente, a ordem e a tranqüilidade. Daí a 
promulgação da lei de 3 de dezembro de 1841 e o seu reg. 
120, de 31 de janeiro de 1842, – com instrumentos e meios 
para o Governo Imperial debelar a desordem e impor a 
autoridade em todos os quadrantes da nação. 
A lei de 3 de dezembro procurou, por isso, criar um 
aparelhamento policial altamente centralizado e armar, assim, 
o Governo de poderes suficientes para levar a bom termo a 
tarefa a que se propunha, de tornar efetiva a autoridade legal. 
Todavia, como bem observa um de nossos mais lúcidos 
historiadores, a reação contra o judiciarismo policial dos 
liberais de 1832, com as funções policiais entregues a juízes 
 
63
 Consoante o disposto no § 7
o
 do art. 12 do “Codex”, aos Juízes de Paz competia : “Julgar: 1
o
. as 
contravenções ás Posturas das Camaras Municipaes; 2
o
. os crimes, a que não esteja imposta pena maior, que 
a multa de cem mil réis, prisão, degredo ou desterro até seis mezes com multa correspondente á metade do 
tempo, ou sem ela, e trez mezes de Casa de Correção, ou Officinas Publicas, onde as houver”. (Sic) 
64
 Informam Hermes Vieira e Oswaldo Silva, que em 1831 foi criada na Corte um corpo de Guardas 
Municipais para auxiliar nas atividades judiciais. No ano seguinte, o Brigadeiro Tobias de Aguiar, como o 
Presidente da Província, organizou na Capital a primeira Guarda Municipal Permanente de São Paulo 
(segundo alguns o germe da futura Força Pública no Estado). Para o interior da Província foi formada, em 
1834, a denominada Guarda Policial, composta por nativos não recrutados pela Guarda Nacional (História 
da polícia civil de São Paulo, p. 160-162). Certamente já tendo em mira essa pioneira iniciativa, a regência 
Feijó, por decreto de 9 de dezembro de 1835, dirigiu aos Presidentes das províncias uma série de instruções 
voltadas à execução do Ato Adicional editado no ano anterior, delas se destacando, no parágrafo de número 
onze, recomendação com o seguinte teor: “Outra instituição de suma vantagem será a organização de um 
Corpo Policial, composta de todas as pessoas excluídas, por falta de meios, da Guarda Nacional, e que, não 
concorrendo de ordinário para as despesas do Estado, devem ao menos prestar com as suas pessoas o 
contingente de serviço, que a Sociedade tem direito de exigir de todo cidadão que goza de seus benefícios. 
Esse Corpo Policial, distribuído por turmas, poderá sem vexame guardar as cadeias, prestar auxílio à justiça e 
servir às autoridades no expediente dos negócios públicos. As Câmaras Municipais, dando sustento e quartel 
a estes pequenos destacamentos, pouco aumentarão sua despesa, ao mesmo passo que com isso concorrerão 
muito para a segurança e comodidade geral dos municípios. Este Corpo, que formará parte da força pública, 
deve ser organizado pelo presidente, e ficar debaixo da sua direção ou da dos seus Delegados, sobre as bases 
que decretar a Assembléia Provincial”. 
42 
 
de paz eletivos, foi certamente excessiva com a inversão 
operada – o policialismo judiciário, confiadas às autoridades 
policiais, funções nitidamente judiciárias. 
A lei de 3 de dezembro, no seu policialismo exagerado, foi 
além do que exigia a situação do país, fortalecendo, com isto, 
o reacionarismo político.
65
 
66
 
Efetivava a Lei nº 261, de 1841, e seu Regulamento, de nº 120, uma nova 
organização policial: haveriam Chefes de Polícia na Corte e em cada Província, os 
quais seriam auxiliados pelos Delegados e Sub-delegados de polícia necessários ao 
profícuo desempenho das obrigações afins. A escolha e a nomeação dessas 
autoridades – os Chefes de Polícia dentre Desembargadores ou Juízes de Direito, e 
os Delegados e Sub-delegados de Polícia entre Juízes de Direito ou exemplares 
 
65
 FREDERICO MARQUES, José. Elementos de direito processual, p. 101-102. 
66
 Como a história retrata, as agitações e sedições inicialmente aludidas não se apresentavam recentes, eis que 
por um bom tempo viveu o Império em meio à completa cizânia, diretamente decorrente da ordem 
constitucional imposta, eminentemente despótica. Ou no dizer de Paulo Bonavides e Paes de Andrade: “A 
Constituição do Império, ao contrário do que ordinariamente se supõe, foi em seu texto primitivo – o da 
outorga de 1824 – causa de graves transtornos políticos e origem de dificuldades para lograr-se a paz e a 
normalidade institucional durante o período de consolidação da Independência, assinalado pela ditadura 
militar do Imperador e depois, desde a instalação e funcionamento do legislativo ordinário em 1827 até a 
Abdicação, pelo menosprezo que o autor da Carta parecia devotar ao ramo representativo do poder – as duas 
Casas da Assembléia Geral. Tinha a Carta um potencial de autoritarismo e irresponsabilidade concentrado na 
esfera de arbítrio do Poder Moderador que, sem dúvida, inibia o exercício regular das competências 
harmônicas dos três Poderes. Sem a reforma no período regencial – o chamado Ato Adicional - a 
Constituição teria sido um desastre ou tão somente uma fachada ornamental, qual o fora já nas mãos do 
primeiro Imperador”. (História constitucional do Brasil, p. 109). Ainda com a abdicação de Dom Pedro I os 
ânimos não se serenaram, como demonstram os autores através do impressionante quadro pintado por 
Justiniano José da Rocha: “Na manhã de 7 de abril de 1831, a Nação brasileira achou-se em perfeita 
anarquia: o imperador,a bordo de uma nau inglesa, havia abandonado sua jovem família à magnanimidade 
da Nação; o Ministério não podia governar, pois contra ele fora dirigida a revolução; as Câmaras 
representativas ausentes, pois o movimento se fizera no intervalo das sessões; ao pé do trono, em torno do 
poder, ninguém, nem um príncipe, nem um cidadão que tivesse alguma popularidade, que sobre si pudesse 
assumir a responsabilidade pela governança. O exército que tomara parte ativa no pronunciamento, entregue 
às mil direções de insubordinação, nem sequer tinha a unidade necessária para poder dar uma autoridade à 
revolução vencedora. Os corpos policiais, ainda mais eivados do princípio de insurreição que os corpos de 
linha, nem ao menos ofereciam um ponto de apoio material necessário à mantença da ordem pública” (p. 33-
34). Como era inevitável, o caos se instalou, fazendo pipocar rebeliões Brasil afora, como a Cabanagem no 
Pará, a Sabinada na Bahia, a Balaiada no Maranhão e a Revolução Farroupilha no Rio Grande do Sul, a 
compor aquelas de maior expressão. No plano político, onde se formara um vácuo de autoridade, sucederam-
se renhidas disputas e uma infinidade de crises, com vantagem ora para liberais, ora para conservadores. 
Nesse contexto, o Código de Processo Penal de 1932 projetou-se como um de trunfo dos primeiros. Sua 
edição marcou apenas a vitória de uma batalha, jamais da guerra. O melhor momento liberal, contudo, ainda 
estava por vir com a Lei nº 16, de 12 de agosto de 1934, o Ato Adicional, cujo maior feito tratou da criação 
de Assembléias Legislativas nas Províncias, dotando-as de extenso rol de competências, a assegurar uma 
grande dose de autonomia regional. Porém, em 1840, com a Lei nº 105, de 12 de maio, a chamada Lei da 
Interpretação, os conservadores equilibraram a luta, volvendo-a a seu favor logo no ano seguinte, quando 
levaram a termo a reforma do Código de Processo Criminal. 
43 
 
cidadãos – sujeitava-se tão-somente ao talante do Imperador
67
. Na Corte de forma 
direta, ao passo que nas Províncias por intermédio dos correspondentes Presidentes, 
todos, de suas partes, igualmente designados pelo Monarca. 
Toma destaque, pois, e logo num primeiro plano, o caráter absolutamente 
centralizador da novel legislação, que submeteu aos desígnios exclusivos do 
Imperador todas as forças policiais do País, postas sob a supervisão do seu Ministro 
da Justiça. A reação foi imediata. 
68
 
Dentre as inovações produzidas pela Lei nº 261 com relação à polícia, releva 
destacar, como anotou Antonio de Paula, “o fato de haver a mesma estabelecida a 
verdadeira estrutura jurídico-administrativa do instituto nos moldes da organização 
do Código do Brumário”
69
. Na verdade, essa estruturação policial, que em seus 
fundamentos remanesce até os dias correntes no Brasil, foi promovida pelo 
Regulamento de 1842, que, segundo lição de Pimenta Bueno, não apenas classificou 
a polícia em administrativa e judiciária, como também subdividiu a última em 
criminal e correicional 
70
. 
 
67
 MENDES JÚNIOR, João. Op. cit, p. 188. Eis um dos pontos que maiores reclamos geraram contra a 
reforma, qual afiança-nos o discurso, de 1845, do Deputado Rodrigues dos Santos: “A Lei de 3 de dezembro 
offende a Constituição, porque entrega o direito de processar o cidadão brazileiro a delegados de policia 
amoviveis, e portanto, inteiramente dependentes do governo”. (Sic) 
68
 Essa, na verdade, sempre foi a manifesta intenção da vertente reforma legislativa. Pouco antes da sua 
aprovação, em 3 de dezembro de 1941, o então Ministro da Justiça Paulino de Souza, o futuro Visconde de 
Uruguay, compareceu ao Parlamento para defendê-la, no que tange à seara policial, com desvelada 
argumentação, pronunciada nos seguintes termos: “É um princípio de que ha muito estou convencido (e que 
ainda mais se arraigou em meu espírito depois que estudei a organisação política dos Estados Unidos), que ha 
certos ramos de serviço em que a centralisação é indispensável: tal é a polícia” (Sic) (Cf. João Mendes 
Júnior, op. cit., p. 180). Não obstante a cuidada transparência, a versada centralização policial, implementada 
pela Lei nº 261, não se afigurou objeto de pacífica aceitação, recebendo, exatamente ao contrário, violenta 
rejeição política que eclodiu não apenas nas tribunas parlamentares, mas também no campo militar. De fato, 
como reconheceu José Pereira Lira, serviu a modificação do Código de Processo Criminal, passada em meio 
a outras medidas imperiais de idêntica conotação concêntrica, a fomentar a sublevação paulista de 1842 (Cf. 
BONAVIDES, Paulo, ANDRADE, Paes de. Op. cit., p. 105), protagonizada pelo Brigadeiro Rafael Tobias 
de Aguiar, então aclamado o Presidente da Província. Ganhando a adesão do Padre Diogo Feijó, a 
denominada “Revolução Liberal” espalhou-se por algumas cidades de São Paulo, chegando até Minas. Não 
tardou-lhe, contudo, a fragorosa derrota, havida em batalha próxima de Campinas, quando a “Coluna 
Libertadora” foi esmagada pelas “forças da Legalidade”, comandadas por Luís Alves de Lima. Sorocaba, que 
havia sido a capital dos revolucionários, foi libertada em 20 de junho, fugindo Tobias de Aguiar para o sul do 
País (GAGINI, Pedro. Fragmentos da história da polícia de São Paulo, p. 43). 
69
 PAULA, Antonio de. Do direito policial, p. 19. Na verdade o referido diploma ajustava-se muito mais ao 
espírito do Código de Instrução Criminal imposto por Napoleão em 1808, que reformou uma série de 
disposições do liberal diploma de 1794. 
70
 PIMENTA BUENO, José Antonio. Apontamentos sobre o processo criminal brasileiro, p. 3. 
44 
 
À polícia judiciária de então, quase sempre exercida por Magistrados 
togados, competia mais que a apuração das infrações penais (função criminal), 
cabendo-lhe também o processo e o julgamento dos chamados “crimes de polícia” 
(função correicional). Assim dispunha o art. 3
o
, § 4
o
, daquele édito: “São de 
competência da polícia judiciária, a de julgar os crimes a que não esteja imposta 
pena maior que a multa de 100$000, prisão, degredo ou desterro até seis meses com 
multa correspondente á metade do tempo, ou sem ela, e trez meses de casa de 
correção, ou officinas públicas, onde houver” (Sic). 
Falhou a reforma, destarte, precisamente por não realizar a separação, já há 
tempo veementemente reclamada, entre as funções judiciais e policiais (executivas), 
que continuaram, como visto, concentradas em mãos únicas, de modo a representar, 
como pontificou João Francisco da Cruz, um verdadeiro e sempre latente risco ao 
resguardo dos direitos individuais 
71
. 
Quase três decênios de protestos e inúmeros projetos legislativos foram 
necessários para reverter os excessos perpetrados por meio das mudanças em 
comento. Nesse sentido, logo em 1845, o próprio governo imperial reconheceu, 
através do Ministro da Justiça Manuel Alves Galvão, a necessidade de uma nova e 
mais equilibrada legislação processual penal. A partir de então, e consectariamente, 
uma série de projetos foram encaminhados ao Legislativo, principiados pela 
proposta do deputado Álvares Machado, que entre seus principais objetivos 
defendia a definitiva ruptura entre polícia e justiça e a adequação do processo 
criminal aos cânones constitucionais. 
Em 1854 foi a vez do Ministro da Justiça Nabuco de Araújo, membro do 
“Gabinete da Conciliação“, apresentar projeto de reforma configurado como um 
meio termo entre as orientações liberais e conservadoras, e que antes de tudo 
tencionava, na citação de Pierangelli, “armar a sociedade contra a criminalidade, 
 
71
 CRUZ, João Francisco da. Tratado de polícia, p. 58. 
45 
 
contra a impunidade, que gerava efeitos aterradores, pois o exclusivismo partidário 
determinava uma confusão de polícia com política”
72
. 
Imperioso constar que nem todas as proposituras seguiam por umamesma 
mão de direção, persistindo inúmeras divisões entre os responsáveis pela construção 
dos novos modelos policial e judicial brasileiros. Nessa refrega, em 1869, o 
Ministro José de Alencar foi ao parlamento para tentar derribar as teorias que 
procuravam sustentar que, a bem do interesse coletivo, os juízes não deveriam ser 
desvestidos de suas incumbências policiais. E, ao encerrar seu pronunciamento, 
asseverou: 
Senhores, este princípio constitucional da separação da policia 
com a judicatura, eu considero um princípio salutar e fecundo. 
Está reservado para nós dar execução plena a este princípio: 
nem a Inglaterra, nem a França, ainda o conseguiram; mas, as 
causas disto não nos são desconhecidas. 
A Inglaterra, senhores, é um paiz essencialmente 
descentralisador, é um Estado formado de parochias, é uma 
associação de freguezias, que, de remota antiguidade, foram 
creando o seu governo privativo; as autoridades judiciarias 
locaes abersoveram alli, em larga escala, as attribuições 
administrativas. Em Inglaterra não ha ministro da justiça; a 
justiça se administra por si mesma; nada mais natural que 
absorver a polícia. (Sic) 
A França, ao contrário, é um paiz centralisador; parece que a 
civillisação daquelle povo não tem trabalhado para crear uma 
nação, mas sim para crear uma capital. D’ahi resulta que, em 
França, não só se creou uma administração da justiça, mas 
creou-se um monstro jurídico, uma instituição hibrida, 
denominada – polícia judiciária.
73
 (Sic) 
No ano seguinte, presente ao Legislativo então na condição de parlamentar, 
José de Alencar voltou à tribuna para insistir: 
 
72
 PIERANGELLI, José Henrique. Op. cit., p. 148. A respeito vale trazer à colação o sempre precioso escólio 
de Frederico Marques: “Se o policialismo era fonte de arbitrariedade, constituía também um fator de 
afrouxamento na punição, pois a justiça policial ficava a mercê da política para perseguir os adversários das 
situações governamentais e proteger os seus apaniguados; por outro lado, a chamada justiça popular, sempre 
comprometida pelas ligações sentimentais e partidárias, afastava de todos o sentimento de confiança na 
Justiça, bem como a consciência e segurança de seus direitos” (Op. cit., p. 103). 
73
 MENDES JÚNIOR, João. Op. cit., p. 266. 
46 
 
A polícia judiciaria é um monstro jurídico, filho dessa 
confusão do poder judiciário com o poder executivo, é um dos 
inventos francezes que a influencia exercida pela civilização 
daquele paiz, chefe da familla latina, tem infelizmente 
transplantado para outros paizes, e sobretudo para o Brazil. 
(Sic) 
Não ha policia judiciária, toda a policia é administrativa, toda 
policia tem funcção meramente executiva. É verdade que há 
uma policia economica, destinada a velar na comodidade 
publica e uma policia perscrutadora e repressiva, que trata de 
prevenir e reprimir os delictos; mas, esta, no exercicio de sua 
missão, não pode exercer a menor attribuição judiciaria. Deve 
a policia coligir os vestigios dos crimes, reunir as provas e 
indicios, preparar os elementos de accusação e mesmo activar 
essa accusação; mas, tudo isso sem usurpar funcção do poder 
judiciário, sem proferir qualquer julgamento, sem forma de 
juizo. 
74
 (Sic) 
Confirmando essa tendência “anti-policialista”, a Lei nº 2.033, de 20 de 
setembro de 1871 - com seu regulamento de 22 de novembro, o Decreto nº 4.824 - 
tornou realidade a tão perseguida cisão das funções judiciais e policiais. De fato, a 
novel legislação não se preocupou em promover mutações de ordem estrutural, 
fixando-se ferreamente na composição dos novos papéis que deveriam ser 
desempenhados pelos protagonistas do drama criminal brasileiro, em cartaz naquele 
que seria o último quarto da história imperial. Festeja-a José Frederico Marques: 
A reforma de 1871, além de pôr cobro ao policialismo 
reacionário da lei de 3 de dezembro, separando Justiça e 
Polícia, ainda trouxe algumas inovações que até hoje 
perduram, como, v. gratia, a criação do ‘inquérito policial’, 
uma das instituições mais benéficas de nosso sistema 
processual, apesar de críticas infundadas contra ele feitas ou 
pela demagogia forense, ou pelo juízo apressado de alguns 
que não conhecem bem o problema da investigação criminal. 
75
 
Os novos preceituários preservaram o antigo Chefe de Polícia com seus 
Delegados e Sub-delegados no comando dos trabalhos policiais. Essa chefia deixou 
de ser de ocupação exclusiva por Desembargadores e Juízes de Direitos, passando a 
 
74
 Ibidem, p. 270. 
75
 FREDERICO MARQUES, José. Op. cit., p. 104. 
47 
 
ser igualmente acessível a doutores e bacharéis em Direito, desde que contassem 
com no mínimo quatro anos de exercício forense ou administrativo. 
Às autoridades policiais foi vedado o julgamento de quaisquer crimes ou 
contravenções, restando-lhes, destarte, como tarefa principal, conforme disposto no 
segundo item do art. 11 do regulamento, “proceder ao inquérito policial e a todas as 
diligências para o descobrimento dos factos criminosos e suas circumstancias, 
inclusive o corpo de delicto” (Sic). De conteúdo judicialiforme, apenas coube-lhes 
desencadear o preparo do processo nos crimes policiais (aqueles que hoje 
mereceriam o rótulo de pequeno potencial ofensivo), aos moldes do processo 
sumário que, embora inócuo desde 1988, permanece estampado nos arts. 531 
“usque” 540 do Código de Processo Penal em vigor. 
Convém salientar, finalmente, que com o intuito de evitar ambigüidades, as 
expressões polícia judiciária e polícia administrativa foram simplesmente abolidas 
dos novos textos legal e regulamentar. 
1.3.3. Período republicano. 
Com o advento da República, em 1889, algumas alterações foram 
introduzidas no quadro anteriormente delineado. A Constituição de 24 de novembro 
de 1891, com seu estatuto federalista, incumbiu os Estados de fundar e dirigir suas 
forças policiais, restando à União a tarefa de legislar apenas sobre a polícia do 
Distrito Federal (art. 34, nº 30). Aos corpos policiais locais, os únicos então 
existentes, tornou-se compulsória a prestação de todo o auxílio requerido pelos 
funcionários a serviço da magistratura federal (art. 60, § 2
o
). 
Havendo imposto aos recém-criados Estados a obrigação de compor suas 
próprias legislações penais adjetivas, o primeiro ordenamento constitucional 
republicano – que no geral se restringiu a arremedar a organização política norte-
americana – coerentemente deixou a cargo desses entes a estruturação de suas 
polícias. Inexistindo lineamentos prévios e comuns voltados a assegurar algum 
padrão e qualidade mínima aos serviços em testilha, despontaram pelo Brasil afora 
48 
 
instituições policiais bastante distintas, porquanto moldadas sempre ao gosto 
pessoal dos diversos governadores. 
Nessa conjuntura, merece sobressair a criação, em São Paulo, através da Lei 
nº 979, de 23 de dezembro de 1905, de uma polícia pretensamente profissional e 
eficiente, edificada a fazer efetiva a carta de direitos da República. Seu idealizador 
o Presidente do Estado, Jorge Tibiriçá, assim a justificou: 
para melhorar o funcionamento das instituições policiais, urgia 
estabelecer a polícia de carreira, incumbindo do serviço o pessoal 
escolhido, de aptidões especiais, mediante um regular sistema de 
promoções, que permita obter, nos cargos superiores, o concurso 
de auxiliares experientes, conhecedores, pela prática, de todas as 
particularidades do importante ramo da administração pública, 
destinado a manter a segurança individual e da propriedade. 
76
 
Logo, a chamada polícia de carreira tornou-se uma forte tendência, eis que 
na verdade constituía-se o único antídoto ao “mandonismo do interior, animado pela 
figura clássica do ‘coronel’, que encarnava o poder local da polícia política”
77
. Por 
outro lado, essepoder de fato, cuja presença e potência caracterizaram aquela que 
ficou conhecida como a República das Oligarquias, apresentou-se exatamente como 
o maior obstáculo à efetiva implementação dessa novidade, eis que fugia 
completamente do seu interesse a existência de uma polícia profissional, dotada de 
condições de se fazer imparcial e impermeável às conveniências políticas. 
Ainda assim, em que pesem as resistências, essa polícia de carreira, cunhada 
em padrões modernos, com atuação essencialmente jurídica, não tardou ser 
formalmente reproduzida em diversos Estados brasileiros, invariavelmente 
mantendo-se, a exemplo do modelo paulista, toda autoridade policial concentrada 
na tradicional figura dos Delegados de Polícia. Em São Paulo, de acordo com o 
arranjo original, foram os Delegados, como chefes de polícia, gradualmente 
 
76
 VIEIRA & SILVA. Op. cit., p. 201. A proposta, esmiúça Heloísa Rodrigues Fernandes, citada por Bismael 
B. Moraes (Direito e polícia: uma introdução à polícia judiciária, p. 28), visava uma “Polícia sem política 
e, portanto, imparcial; remunerada e, por conseqüência, podendo aplicar toda a sua atividade à prevenção e 
repressão dos delitos; com competência profissional, isto é, com conhecimentos especiais de Direito e de 
Processo indispensáveis em quem tem que garantir e assegurar a liberdade, a honra, a vida e a propriedade”. 
77
 VIEIRA & SILVA. Op. cit., p. 202. 
49 
 
espalhados, pelas diversas circunscrições territoriais, obedecendo a um racional 
organograma. 
78
 
Nem tudo, porém, podia exsurgir perfeito na polícia de carreira, valendo aqui 
destacar que a sistemática inicial previa os Delegados de Polícia como mero 
ocupantes de cargos de confiança, de livre nomeação e exoneração pelo Presidente 
do Estado. Nessa incipiente carreira policial garantia-se somente que a ascensão aos 
níveis mais elevados estaria reservada aos Delegados já nomeados e investidos nos 
cargos de categoria imediatamente inferior. O bacharelado em Direito ostentava-se 
como exigência para o provimento somente dos cargos de direção superior, 
devendo, ademais, servir apenas como título preferencial para o recrutamento
79
. 
Lembra Cruz que para a execução de suas funções os Delegados contavam com o 
concurso da Força Pública, que lhes servia como órgão auxiliar, e, posteriormente, 
também com o apoio da Guarda Civil, criada no Estado em 1926, sob inspiração da 
polícia londrina. 
80
 
Registra a história que essa novel polícia estadual atuava com bastante 
liberdade, praticamente ao largo de qualquer controle judicial, inclusive no que 
tange às detenções e prisões que realizava, especialmente na repressão à vadiagem. 
Koerner informa que esse, aliás, era o pretexto utilizado, mormente pelas polícias 
paulista e carioca, para “limpar as cidades”, encarcerando, em larga escala, 
suspeitos de qualquer coisa. Acusados de “anarquismo” – então considerado grave 
crime social – ou simplesmente de afrontarem os subjetivos “interesses da 
segurança nacional ou da ordem pública”, consoante já dispunha o Decreto nº 6.486 
de 1907, líderes operários estrangeiros eram presos e expulsos do país, tão-somente 
com fulcro na investigação policial realizada
81
. 
A partir da década de vinte essa espécie de coação intensificou-se, recaindo 
em São Paulo ao DOPS, e no Rio de Janeiro à 4
a
 Delegacia Auxiliar a tarefa de 
 
78
 Especialmente após a edição do Decreto 4.405-A, de 17.4.1928, que aplicou o Regulamento Policial no 
Estado. 
79
 VIEIRA & SILVA. Op. cit., p. 205. 
80
 CRUZ, João Francisco da. Op. cit., p. 62-63 
81
 KOEMER, Andrei. Poder judiciário, política e sociedade em São Paulo na primeira república, p. 292. 
50 
 
proteger os industriais contra os agitadores e integrantes em geral dos movimentos 
operários, então temidos não mais como anarquistas, mas sim como perigosos 
comunistas. Enquanto os estrangeiros continuavam sendo deportados, os brasileiros 
que de qualquer forma pudessem ser enquadrados como inimigos da ordem pública 
eram, na mesma época, desterrados para insalubres colônias penais localizadas em 
pontos distantes do território pátrio. 
82
 
A Constituição promulgada em 16 de julho de 1934, não introduziu 
alterações significativas nesse panorama, limitando-se a estabelecer, através do seu 
artigo 5
o
, V e XI, a reserva das atividades de polícia das fronteiras, marítima e 
portuária à União, mantendo-se as demais atribuições policiais com os Estados, e 
pelo art. 39, 8, “b”, a competência legislativa da União para dispor sobre medidas 
voltadas a facilitar, entre os Estados, a prevenção e a repressão da criminalidade e 
assegurar a prisão e extradição dos acusados e condenados. Já o art. 167 prescrevia 
as polícias militares como forças reservas do Exército. E não a toa. 
É fato histórico que, aos poucos, as corporações militares estaduais, 
constituídas aos moldes de verdadeiros exércitos à disposição dos Governadores, 
passaram a se constituir em motivo de grande preocupação para as Forças Armadas, 
que, em 1932, viu-se combatendo os batalhões revolucionários da Força Pública de 
São Paulo
83
. No Rio Grande do Sul, o Governador Flores da Cunha apoiou-se, por 
vários anos, no peso de sua poderosa Brigada Militar, fortemente armada e bastante 
numerosa, para arrostar Getúlio Vargas, até que, com a federalização da 
corporação, em 1937, sentindo-se enfraquecido, acabou por renunciar. 
A terceira Constituição dos Estados Unidos do Brasil, outorgada por Getúlio 
Vargas em 10 de novembro de 1937, trouxe, na esteira desses fatos, certeiras 
 
82
 PINHEIRO, Paulo Sérgio. A Polícia e os movimentos sociais no Brasil, in : O papel da polícia no regime 
democrático, p. 23-24. Registra o autor, que essas práticas prosseguiram durante o longo período getulista, 
sendo deportados ou desterrados todos aqueles que faziam oposição ao governo (p. 25). 
83
 Já em 1906 o governo de São Paulo contratara uma missão de instrutores do Exército francês para treinar a 
sua Força Pública. Em 1924, sob o comando de Miguel Costa, essa mesma corporação policial serviu aos 
militares insurrectos, que fizeram eclodir a chamada “Revolução do Isidoro”, tornando-se assim, 
conseqüentemente, os responsáveis, pela grande destruição que sobreveio à capital de São Paulo, provocada 
pelo intenso bombardeiro das forças governistas. 
51 
 
novidades acerca da polícia. Assim a obrigação de legislar sobre a organização, 
instrução, justiça e garantia das forças policiais dos Estados e sua utilização como 
reserva do Exército passou para o âmbito de competência da União (art. 16, 
XXVI). Nesse compasso o Decreto-Lei nº 1.202, de 8 de abril de 1939, estabeleceu 
que a fixação do efetivo da força policial, da guarda civil, corpo de bombeiro e 
corporações de natureza semelhante, seu armamento, despesa e organização pelos 
Interventores ou Governadores, dependia de prévia aprovação do Presidente da 
República, bem como que também se vinculariam à aquiescência do Chefe do 
Executivo Federal todos os decretos-leis estaduais relacionados ao bem estar, a 
ordem, a tranqüilidade e a segurança pública (art. 6
o
, III, e 32, I e XI). 
Todavia, para muito além de qualquer previsão contida na “Polaca” e, ainda 
menos, em diplomas de natureza infraconstitucional, o elemento propulsor dos 
mecanismos de atuação do Estado Novo, como inerente às ditaduras, nada tinha de 
jurídico, resumindo-se no exercício de volição do déspota, que manifestou 
contraditória devoção à dignidade humana. Com efeito, sob o vertente prisma a 
“Era Vargas” representou um grande retrocesso no desenvolvimento policial 
nacional, pois o que melhor a caracterizou nessa área foi a nefasta polícia política 
comandada por Felinto Muller, responsável por toda a sorte de abusos e violações 
aos direitosfundamentais de “subversivos”, “comunistas” e “suspeitos de qualquer 
natureza”
84
, cometidos em nome de uma falaciosa segurança do Estado. 
85
 
86
 
A Constituição promulgada em 18 de setembro de 1946, recriando o Estado 
de Direito, não se houve diretamente empenhada em otimizar os serviços policiais 
 
84
 Impõe-se registrar que as prisões políticas se tornaram rotineiras a partir de 1935, quando foi decretado o 
Estado de Sítio como uma resposta ao levante militar que ficou conhecido como a “Intentona Comunista”, e 
que serviu ao endurecimento do regime. Presa nessa época, Olga Benário, a mulher de Luiz Carlos Prestes, 
foi entregue pelo governo brasileiro à Gestapo, a polícia política da Alemanha nazista, vindo a morrer, anos 
após, em um campo de concentração. 
85
 Comentava Afonso Arinos de Melo Franco: “Há um fosso intransponível entre a Constituição de 1937 e o 
regime do Estado Novo. Juridicamente e rigorosamente, uma nada teve a ver com o outro”. (Direito 
constitucional: teoria da Constituição e as Constituições do Brasil, p. 170). 
86
 Lembra Oscar Pilagallo que a deposição de Getúlio Vargas, pelos militares, em 1945, teve por fato 
propulsor, à guisa de gota d’água, “a nomeação de Benjamim Vargas, irmão de Getúlio, para o cargo 
estratégico de chefe de polícia do Distrito Federal. Figura sinistra, Bejo, como era conhecido, substituiria 
João Alberto, demitido após proibir um discurso queremista no Rio” (O Brasil em sobressalto. 80 anos de 
história contados pela Folha, p. 64) 
52 
 
no Brasil. Ensejou, no entanto, por força de sua aura democrática, a reconstrução 
policial pelos Estados, porventura interessados nessa empreitada. Assim, por 
exemplo, pode São Paulo resgatar sua antiga dívida com a isenção, promovendo, em 
obediência ao comando ínsito no art. 144 do seu Estatuto Político de 1947, a 
reorganização da carreira de Delegado de Polícia, tornando, dentre as principais 
medidas encetadas, o provimento aos cargos iniciais obrigatoriamente dependente 
de aprovação em concurso público de provas e títulos.
87
 
Por outro lado, e em consonância ao ideário internacional da época, persistia 
em funcionamento a polícia política, cuja atividade se viu pretensamente legitimada 
com o cancelamento, em 7 de maio de 1947, do registro do Partido Comunista 
Brasileiro, através da Resolução nº 1.841 do Tribunal Superior Eleitoral. Aos 
moldes do macarthismo, e ao influxo da guerra fria, o policiamento ideológico logo 
ganhou corpo e expressão através dos órgãos e agentes incumbidos de velar pela 
ordem política e social. Autor de um manual oficial sobre a polícia política, Luiz 
Apolônio, em 1954, introduzia o leitor ao tema através de premissa absolutamente 
maniqueísta: 
O mundo, inegavelmente, atravessa um dos momentos mais 
graves e agitados de sua História. Dividiu-se em dois grupos 
: um, que ama a liberdade, os bons costumes e as tradições 
milenárias, e o outro que, desprezando tudo, pretende 
derrubar os alicerces que o Criador implantou há milênios, 
criando a humanidade sã e cônscia de seus deveres de 
fraternidade e amor. 
88
 
O golpe militar levado a efeito em 1964 não trouxe, “a priori”, mudanças 
significativas a essa já desfavorável conjuntura, como também não as provocou a 
Constituição da República que veio à luz em 24 de janeiro de 1967, em cujo texto 
 
87
 Lei Estadual nº 199, de 1
o
 de dezembro de 1948. 
88
 APOLÔNIO, Luiz. Manual de polícia política e social, p. 9. Indispensável aqui registrar o conceito do 
autor acerca da Polícia Política: “A Polícia do Estado, que tem por finalidade máxima exercer atividades 
preventivas, indagando e combatendo os fatores da desordem social, a bem da ordem!” E arremata: “A 
Polícia Política exerce a missão em um largo raio de ação. Dentro do País zela pela manutenção da ordem 
político-social, pela segurança das instituições, da forma de governo e da segurança da autoridade, 
prevenindo e reprimindo as greves, atentados, agitações, conspirações, conjurações, revoluções, a 
propaganda e a disseminação das ideologias subversivas e dissolventes. Utiliza em larga escala agentes 
secretos em todos os setores onde eles se fizerem necessários” (p. 145). 
53 
 
apareceu, pela primeira vez, a Polícia Federal, como órgão responsável pelos 
serviços de polícia área, marítima e de fronteiras; pela repressão ao tráfico de 
entorpecentes; pela apuração de infrações penais contra a segurança nacional, a 
ordem política e social, ou em detrimento de bens, serviços e interesses da União, 
assim como aquelas de interesse interestadual, e também pela censura das diversões 
públicas. 
Esse cenário transformou-se, entrementes, com a edição do Ato Institucional 
nº 5, o famigerado AI-5, em 13 de dezembro de 1968, dando início aos “anos de 
chumbo”. Desde então, embora atuando através de frações mínimas de seus 
contingentes, lotadas em unidades especializadas, ou por vezes em órgãos das 
Forças Armadas, as polícias estaduais tomaram a linha de frente na repressão aos 
“subversivos”. Tais seguimentos, normalmente concentrados nos Departamentos de 
Ordem Política e Social, tinham como alvos os integrantes de partidos e grupos 
políticos de orientação comunista, em suas variegadas correntes, alguns até 
engajados em ações armadas contra o regime. À desarticulação dos “vermelhos”, 
passando pela inibição de seus supostos simpatizantes, essas forças policiais 
envolveram-se num ilimitado vale-tudo, desenvolvido, indefectivelmente, à margem 
da legalidade. Prisões arbitrárias e clandestinas, perpetradas mediante seqüestros, a 
tortura como expediente rotineiro nos porões, e o extermínio banalizado, foram as 
piores marcas desse desventurado período
89
. 
Os organogramas policiais também foram em regra modificados. Em São 
Paulo, por exemplo, a estrutura policial que se mantinha harmonizada desde os idos 
da 1
a
 República, sofreu abrupta alteração, passada ao largo de qualquer motivação 
técnica, em 8 de abril de 1970. No auge do período de exceção foi criada, pelo 
Decreto-Lei nº 217, e com expresso esteio no AI-5, a Polícia Militar do Estado, que 
 
89
 Pilagallo, com base no livro Brasil: nunca mais, da Arquidiocese de São Paulo, reporta-se aos seguintes 
números : “144 foram assassinadas sob tortura, em fugas simuladas ou no ato da detenção; outras 125 
‘desapareceram’” (op. cit., p. 129). Com efeito, na aludida obra encontram-se registros de torturas até mesmo 
de crianças, mulheres e gestantes. Referindo-se a São Paulo, faz remissão ao DOPS (depois DEOPS), onde 
um grupo de policiais, sob o comando do delegado Sérgio Paranhos Fleury, “além de torturar e matar 
inúmeros oposicionistas, eram simultaneamente integrantes de um bando autodenominado ‘Esquadrão da 
Morte’. Esse ‘Esquadrão’, a pretexto de eliminar criminosos comuns, chegou a assassinar centenas de 
brasileiros, muitos dos quais não registravam qualquer tipo de antecedentes criminais” (p. 43-50 e 74). 
54 
 
imediatamente incorporou aos seus quadros os componentes da Força Pública e boa 
parte dos integrantes da Guarda Civil. 
90
 
91
 
A Emenda Constitucional nº 1, de 17 de outubro de 1969, fez outorgada, na 
realidade, uma nova Carta, absolutamente irrelevante do ponto de vista jurídico, eis 
que à oportunidade o arbítrio já havia sido instalado. Afonso Arinos é quem 
garante: 
Tal como a de 1967, a Constituição de 1969 é de tipo 
instrumental. Visa somente a dar fisionomia jurídica a um 
regime de poder de fato. Há, dentro dela, uma parte, por 
assim dizer, tradicional que reconhece as realidades 
históricas e políticas da formação nacional, e, por isso 
mesmo, é a sua parte duradoura. Afora isso o texto é de 
escassa, ou, mesmo, nenhuma importância. Não poderá ser 
aplicado em um sistema de Estado de direito, nem foi criado 
paratal. 
92
 
Mesmo com o fim dos constrangimentos até então sistematicamente 
operados sobre opiniões e consciências, como corolário da “abertura política” 
deflagrada pelo governo Geisel, as práticas policiais disseminadas durante o 
focalizado período de trevas – ou seja, durante todo o tempo em que a polícia 
simplesmente serviu aos ilegítimos propósitos dos governantes e jamais à proteção 
dos lídimos direitos dos governados – não puderam ser, de pronto, erradicadas. De 
 
90
 A opção deixada aos guardas civis, por força do art. 7
o
 desse édito, consistia na permanência em um 
“quadro em extinção (...) sem direito a promoções ou à obtenção de qualquer outra vantagem decorrente da 
carreira ou da função que exercia”. 
91
 Até então, por expressa disposição da Lei Orgânica da Polícia, Lei nº 10.123, de 27 de maio de 1968 – três 
eram os órgãos policiais no Estado: “Delegados de Polícia e demais carreiras policiais civis, Força Pública e 
Guarda Civil” (art. 2
o)
. Em 1969, essa composição começou a ser alterada. Aproveitando-se do período de 
exceção para legislar por ato administrativo autônomo, o Governador do Estado promoveu, através do 
Decreto nº 52.213, de 24 de julho, reforma administrativa em cujo bojo, simplesmente olvidados os ditames 
legais, substituiu a previsão atinente à existência de “Delegados de Polícia e demais carreiras policiais civis” 
simplesmente por “Polícia Civil”. Com a criação da Polícia Militar, no ano seguinte, o antagonismo restou, 
para além de estabelecido, claramente evidenciado. Assim como pouco ou nada havia em comum entre a 
sociedade civil oprimida e a ditadura militar opressora, logo se formou uma malsã rivalidade entre essas duas 
forças policiais tão inomogêneas, a principiar uma história de conflitos, e, conseqüentemente, de inelutável 
falta de cooperação, qual faticamente prossegue até os dias atuais. Além de afiançar esses fatos, públicos e 
notórios, o Coronel José Vicente da Silva Filho ainda comenta sobre a gênese política da Polícia Militar : 
“Sagas e mitos desse exército policial em rebeliões e revoluções passaram a ser mais que lembranças 
históricas, marcando a estrutura organizacional da PM de hoje, influenciando suas decisões estratégicas e seu 
comportamento institucional. Pouco preocupadas com os direitos e a liberdade dos cidadãos, as autoridades 
viam na PM uma força militar para a manutenção da ordem social, através de uma ostentação militar 
repressiva, até hoje um traço marcante das Polícias Militares” (A polícia no século 20, p. 2). 
92
 MELLO FRANCO, Afonso Arinos de. Op. cit., p. 179. 
55 
 
efeito, até hoje ainda fervilham notícias acerca de violências e suplícios a 
contaminar os expedientes policiais, notoriamente utilizados como ilegítimos 
instrumentos de investigação. 
É inegável, pois, que a Constituição Cidadã, ruidosamente promulgada em 5 
de outubro de 1988, ainda persiste quase como uma obra de ficção, qual ocorre, 
outrossim, com o Estado Democrático de Direito por ela fundada. Não obstante sua 
inédita abordagem da temática policial, essa Constituição de todas as matizes, que 
funcionou como albergue para todas as tendências, decerto precisa, e urgentemente, 
ganhar presença e efetividade no cotidiano, assim forjando uma nova Polícia, 
conformada, em que pese o tosco enunciado e os adversos contornos ínsitos no seu 
artigo 144, segundo os valores democráticos ora prevalentes. 
1.4. A polícia judiciária. 
1.4.1. Antecedentes históricos: a investigação criminal. 
1.4.1.1. Os primeiros passos. 
Como a ninguém escapa, todas as sociedades humanas, desde as mais 
antigas, sempre reprovaram determinadas condutas, vedando-as aos seus 
integrantes, sob ameaça de severas conseqüências a todos àqueles que as 
praticassem, assim por vislumbra-las ora como simplesmente injustas e/ou 
contrárias à ordem ético-religiosa aceita pelo grupo, ora, e em corolário mais 
prático, como de alto risco para a harmônica subsistência da comunidade. 
A primeira expressão concreta dessa realidade social pôde ser detectada no 
século XXIII A.C., quando Hammurabi, o rei da Babilônia, decretou o “talião”, 
buscando criar uma correlação proporcional entre o crime – entendido como o 
descumprimento do dever de se abster da prática de conduta proibida – e a reação 
ou vingança do ofendido. Dessa forma, se eventualmente uma casa desabasse e 
matasse o seu morador, haveria o construtor também de ser morto. Caso o acidente 
vitimasse o filho do morador, o rebento do construtor é que deveria perecer. Eis o 
56 
 
“olho por olho e dente por dente” logo assimilado por outras legislações da 
antiguidade, como foi o caso do Código Mosaico. 
93
 
94
 
Mas se com Hammurabi a execução da vindita tornou-se um encargo oficial, 
o certo é que a antecedê-la devia o ofendido, e, somente ele, convencer um juiz a 
declarar a culpa do alegado ofensor. Essa tarefa, contudo, à vista do que prescrevia 
o Código Babilônico, emergia de alta responsabilidade e risco, pois de acordo com 
o § 1
o
 desse preceituário, “se um avilum
95
 acusou um (outro) e lançou sobre ele 
(suspeita de) morte mas não pode comprovar: o seu acusador será morto”(sic). 
Comentando a regra, Emanuel Bouzon informa que a morte, no caso, 
decorreria da simples falta de provas pelo acusador, ao qual, assim, recaía 
integralmente o dever de demonstrar o tanto que alegara. Se a imputação fosse a 
respeito da prática de magia negra, eventual dúvida seria dirimida através do “juízo 
divino”, devendo o acusado ser mergulhado nas águas de um rio. Sobrevivendo, não 
apenas assistiria a morte de seu delator, como também ganharia a propriedade da 
residência daquele. 
96
 
A busca de justiça, portanto, aparecia nos primórdios como um 
empreendimento arriscado, quiçá inviável se o criminoso tivesse agido com bastante 
discrição, não deixando evidenciada a sua autoria. Tratava-se de atividade 
absolutamente privada, cuja viabilidade era ditada exclusivamente pela capacidade 
de produção da prova. 
Nada muito diverso se passou no antigo Egito, onde o trabalho de acusar e de 
provar a autoria delituosa competia a todos os que tivessem, então, a infelicidade de 
 
93
 Êxodo, 21:22. Se alguns homens brigarem, e um ferir uma mulher grávida, e for causa de que aborte, não 
resultando, porém, outro dano, este certamente será multado, conforme o que lhe impuser o marido da 
mulher, e pagará segundo o arbítrio dos juízes; 23. mas se resultar dano, então darás vida por vida, 24. olho 
por olho, dente por dente, mão por mão, pé por pé, 25. queimadura por queimadura, ferida por ferida, golpe 
por golpe. Levítico 24:17. Quem matar a alguém, certamente será morto; 18. e quem matar um animal, fará 
restituição por ele, vida por vida. 19. Se alguém desfigurar o seu próximo, como ele fez, assim lhe será feito: 
20. quebradura por quebradura, olho por olho, dente por dente; como ele tiver desfigurado algum homem, 
assim lhe será feito. 21. Quem, pois, matar um animal, fará restituição por ele; mas quem matar um homem, 
será morto.“. 
94
 NORONHA. E. Magalhães. Direito penal, p. 29. 
95
 Um cidadão, homem livre e titular de direitos em face da comunidade. 
96
 BOUZON, Emanuel. O código de Hamurabi, p. 46-48. 
57 
 
testemunhar o fato-crime, aos quais ainda restava, de quebra, sob pena de sofrer o 
flagelo das bastonadas, a obrigação de patentear a impossibilidade de evitar o crime 
e/ou de prestar o devido socorro à vítima. Caso a imputação fosse desacreditada, a 
pena incidente era transferida para cumprimento por esses compulsórios 
acusadores.
97
 
Entre os judeus a denúncia do homicida era atribuição do mais próximo 
parente da vítima, cabendo-lhe a partir desse ato prosseguir no processo. Nesse 
caso, lembra João Mendes Júnior, a lei instituía prévias formalidades à elaboração 
do corpo de delito
98
. Porque fundamentalmentedependente dessa espécie de prova 
para o estabelecimento da verdade, o processo hebreu mantinha regras rígidas sobre 
o testemunho, também se precipitando sobre o comprovado assacador as penas as 
quais antes estivera sujeito o acusado. 
99
 
Em Atenas impendia, em regra, aos cidadãos provocar a ação dos juízes e 
dos tribunais contra os autores de crimes. Caso o delito fosse da classe privada, que 
compreendia aqueles que pouco ou nada ameaçavam a segurança geral, então a 
tarefa acusatória era concedida exclusivamente ao ofendido. À vista dos delitos 
públicos, que atentavam contra a própria cidade e à ordem pública, a denúncia 
 
97
 MENDES JÚNIOR, João. Op. cit., p. 8. 
98
 Deuteronômio 21: 1. Se na terra que o Senhor teu Deus te dá para a possuíres, for encontrado algum morto 
caído no campo, sem que se saiba quem o matou; 2. sairão os teus anciãos e os teus juízes, e medirão as 
distâncias dali até as cidades que estiverem em redor do morto; 3. e será que, na cidade mais próxima do 
morto, os anciãos da mesma tomarão uma novilha da manada, que ainda não tenha trabalhado nem tenha 
puxado na canga; 4. trarão a novilha a um vale de águas correntes, que nunca tenha sido lavrado nem 
semeado, e ali, naquele vale, quebrarão o pescoço à novilha; 5. Então se achegarão os sacerdotes, filhos de 
Levi; pois o Senhor teu Deus os escolheu para o servirem, e para abençoarem em nome do Senhor; e segundo 
a sua sentença se determinará toda demanda e todo ferimento; 6. e todos os anciãos da mesma cidade, a mais 
próxima do morto, lavarão as mãos sobre a novilha cujo pescoço foi quebrado no vale; 7. e, protestando, 
dirão: As nossas mãos não derramaram este sangue, nem os nossos olhos o viram; 8. Perdoa, ó Senhor, ao teu 
povo Israel, que tu resgataste, e não ponhas o sangue inocente no meio de teu povo Israel. E aquele sangue 
lhe será perdoado; 9. Assim tirarás do meio de ti o sangue inocente, quando fizeres o que é reto aos olhos do 
Senhor. 
99
 Deuteronômio 29: 15. Uma só testemunha não se levantará contra alguém por qualquer iniqüidade, ou por 
qualquer pecado, seja qual for o pecado cometido; pela boca de duas ou de três testemunhas se estabelecerá o 
fato; 16. Se uma testemunha iníqua se levantar contra alguém, para o acusar de transgressão, 17 então, 
aqueles dois homens que tiverem a demanda se apresentarão perante o Senhor, diante dos sacerdotes e dos 
juízes que houver nesses dias. 18. E os juízes inquirirão cuidadosamente; e eis que, sendo a testemunha falsa, 
e falso o testemunho que deu contra seu irmão, 19. far-lhe-ás como ele cuidava fazer a seu irmão; e assim 
exterminarás o mal do meio de ti. 20. Os restantes, ouvindo isso, temerão e nunca mais cometerão 
semelhante mal no meio de ti. 21 O teu olho não terá piedade dele; “vida por vida, olho por olho, dente por 
dente, mão por mão, pé por pé“. 
58 
 
pertencia a todos os cidadãos, e em alguns casos dotados de maior gravidade a 
magistrados específicos, previamente designados para policiar as atividades 
relacionadas. As acusações aceitas eram tornadas públicas, junto com a convocação 
da apresentação, na data do julgamento, de todos aqueles que pudessem ofertar 
provas confirmando ou desnaturando a imputação. No mais, acusado e acusador, 
cada um per si, colecionavam tudo que pudessem servir à confirmação de suas 
teses. Vencida a acusação, seu autor é que era posto em juízo. Se tivesse amealhado 
o convencimento de ao menos um quinto dos juízes, sua denúncia era tida por 
fundada e nenhuma conseqüência lhe seria acarretada. Se não conseguisse esse 
feito, a acusação poderia ser considerada temerária ou caluniosa, tendo por efeito a 
obrigação do pagamento de altas multas, a perda do direito de acusar, dentre outras 
de maior gravidade. 
100
 
1.4.1.2. Em Roma. 
Em princípio os romanos também demonstraram pouca preocupação com as 
condições sob as quais se travavam as disputas levadas a cabo perante seus juízes e 
tribunais criminais. As atividades acusatória e probatória, por meio de sistema 
muito próximo àquele desenhado na Grécia, eram relegadas aos cidadãos 
interessados, que as exerciam por sua própria conta e risco.
101
 
Iniciava-se o processo com a acusação, formulada por qualquer pessoa, já 
excluídas as mulheres e excetuados menores, magistrados, indigentes e aqueles 
julgados caluniadores. Conhecendo a denúncia, o pretor fixava uma data para o 
julgamento (diei dictio). Nesse interlúdio, informa João Mendes Júnior : 
o proprio accusador, investido de uma commissão (legem), 
que lhe era conferida pelo pretor, procedia ás investigações, a 
todos os actos da instrucção, dirigia-se aos lugares, 
apprenendia documentos, notificava e inquiria testemunhas, 
sendo que, para effectividade, a commissão consignava penas 
contra os que recusassem obedecer. Por seu lado, o accusado, 
 
100
 MENDES JÚNIOR. João. Op. cit., p. 17. 
101
 A respeito vide o escólio de José Rogério Cruz e Tucci sobre a “Responsabilidade Penal pelo Exercício 
Irregular da Acusação Durante o Principado”, in Contribuição ao estudo histórico do direito processual 
penal (Direito Romano I), p. 25-32. 
59 
 
que já tinha sido notificado da accusação, ficava com o direito 
de seguir o accusador, fiscalisar seus actos, fazel-o 
acompanhar de um agente que vigiasse suas diligenciais, 
assistir ao exame das testemunhas, interrogal-as e contradictl-
as. Esta phase era a da inquisitio, que deveria estar terminada 
no dia fixado para a audiencia ou sessão de julgamento.
102
 
(Sic) 
Ao final da República o direito popular de acusação passou a ser pouco a 
pouco restringido
103
, sendo a fase de inquérito também reformulada. Dessarte, 
primeiramente nos casos de flagrante delito e de criminosos reincidentes, e depois 
em face de qualquer hipótese criminal, a inquisitio passou à incumbência de agentes 
da polícia imperial – os irenhachae, os curiosi, os stationarii – aos quais, para o 
desempenho a contento da função investigativa, foram conferidos amplos poderes, 
como o de prisão dos indiciados e de seus parceiros, além daqueles necessários à 
colheita da prova. Com as diligências registradas por escrito, ao policial cabia então 
encaminhar o indiciado à autoridade judicial. Não aparecendo nenhum acusador, 
designava-se o próprio irenarcha para formular a acusação. Mais tarde, a par da 
especialização da inquisitio, definitivamente fixada em momento anterior à 
accusatio, passou esta a cumprir ao accusator designado, o que se parece com o 
nascedouro do sistema processual penal misto hoje vigente entre nós. 
104
 
Tornagui alude à inquisitio generali como o germe da polícia judiciária, por 
se tratar de “indagação feita pelo próprio Estado e não deferida a particulares e que 
não visava ninguém em especial, mas a todos em geral. O encarregado dela 
“inquirit in genere, non contra certam personam”. Uma vez elucidada a autoria do 
crime, ao final do inquérito, tinha vez então a inquisitio especialis, ou seja, a 
instrução judicial, principiada pela correspondente acusação. 
105
 
 
102
 Ibidem, p. 24. Tratava-se, segundo o autor, de instrução contraditória, com a produção da prova na 
presença daquele contra quem já pendia uma acusação. 
103
 Tais restrições, completa o autor, levaram ao abandono do focalizado direito e, por via de conseqüência, à 
“indifferença do espírito policial do povo” (Sic). Ibidem, p. 40. 
104
 MENDES JÚNIOR, João. Op. cit., p. 40. Comenta ainda o autor: “Das circumstancias surgiram o 
procedimento ex-officio, e incumbencia de de accusar e seguir os processos, preludios do ministerio publico; 
alem disso, houve necessidade de organizar uma policia official fortemente centralisada, policia que foi 
pouco a pouco accumulando funcções judiciarias”(Sic). 
105
 TORNAGUI, Hélio. Instituições de processo penal,p. 95-96. 
60 
 
Em suma, como concluiu J. Canuto Mendes de Almeida, foi por esse 
caminho “que se organizou uma polícia oficial fortemente centralizada, com 
funções cada vez mais judiciárias, enquanto o espírito policial do povo foi 
desaparecendo”. 
106
 
1.4.1.3. A Inquisição. 
Na esteira da propalada conversão do Imperador Constantino, o cristianismo 
logo se transformou na religião oficial de Roma. A Igreja, até então perseguida e 
obrigada a permanecer refugiada nas catacumbas, pode despertar para a vida 
pública, passando a influir em todos os setores da cidade e da vida social. A partir 
do século V, fez-se presente também na jurisdição criminal, através de seus bispos, 
designados para executar relevantes tarefas correcionais : inspecionar prisões e 
processos, sindicar as razões das detenções, advertir e denunciar os magistrados 
relapsos. E dessas práticas surgiram as formas “canônicas do processo penal”. 
107
 
Antes, mas já sob inspiração cristã, o processo ganhara em Roma formas 
mais humanas, primeiro com Deocleciano e Graciano, na repressão dos tormentos, 
constituídos até então comezinhos meios de prova; depois, com Valentiniano, 
inaugurando sistema de anistia e perdão dos condenados. 
Graças a esse contexto, a queda do Império romano não pode ser focalizada 
como uma fragorosa derrota, pois ao preliminar infortúnio militar logo se seguiu a 
maiúscula subjugação cultural e especialmente religiosa dos conquistadores, 
alcançada inegavelmente pela autoridade e afã dos bispos cristãos. Assim, como 
antes se dera em Roma, o Clero expandiu sua influência por quase toda a Europa, 
levando aos povos ignaros as luzes do conhecimento romano, já burilado sob os 
princípios cristãos. 
Com o mundo ocidental mergulhado na Idade das Trevas, apenas a Igreja 
prosseguiu a esgrimir com os costumes bárbaros, registrando a história, como 
 
106
 ALMEIDA, J. Canuto Alves de. Princípios fundamentais do processo penal, p. 48. 
107
 TORNAGUI, Hélio. Op. cit., p. 38. 
61 
 
exemplo, o incansável combate oferecido pelo Papa Estevão V contra a prática das 
ordálias e dos tormentos no século IX. 
108
 
A partir do quarto Concílio de Latrão, em 1216, a Igreja iniciou sua luta 
contra os movimentos heréticos, fixando as bases do processo que futuramente seria 
empregado pelos Tribunais de Inquisição, criados somente em 1252, pela Bula 
papal “Ad extirpanda”, de Inocêncio IV. Antes, contudo, Inocêncio III já havia 
fixado, com nítido fulcro no modelo romano, o sistema processual inquisitório ou 
inquisitivo, compreendendo uma fase de inquérito e outra de denúncia. 
A denúncia foi o refugio dos fracos contra a prepotencia dos 
senhores feudaes. Estava assim aberto o meio de evitar a 
formalidade da inscripção da accusação e estancada uma 
fonte de vinganças e oppressões; mas, o mesmo Innocencio 
III, para reformar os costumes do clero, indicou outro meio: a 
inquisitio antes de qualquer procedimento. 
109
 (Sic) 
Melhor delineando-a, João Mendes Júnior apresentou a inquisitio como uma 
pesquisa ou investigação levada a cabo pelo juiz ou inquiridor, sempre antes da 
acusação, segundo certas regras e pautando-se pela cautela, máxime no exame das 
testemunhas. E fez-se cabal : 
A inquisitio, conforme era indicada por Inocêncio III, não 
teria a extensão e não produziria os abusos depois occorridos, 
si os Papas posteriores e os Reis, na lucta contra os Mouros, 
Judeos e os outros hereges, se contivessem nos limites dos 
cânones daquelle grande pontifice. 
110
 (Sic) 
Com efeito, as preocupações que conduziram à formação do processo 
inquisitivo não tardaram em ser abastardadas, especialmente quando da atuação dos 
Tribunais de Inquisição na península Ibérica, oportunidade em que todos os 
princípios regenciais do sistema foram simplesmente olvidados, de modo a conferir-
lhe imagem e conceito finais justificadamente pejorativos, porquanto distorcidos. 
111
 
 
108
 ALMEIDA, J. Canuto Mendes de. Op. cit., p. 49. 
109
 MENDES JÚNIOR, João. Op. cit., p. 66. 
110
 Ibidem, p. 72. 
111
 De fato, diversamente do objetivado por Inocêncio III, o sistema inquisitório passou a significar, segundo 
Vélez Mariconde, “pesquisa que se cumple por escrito y secretamente, y al término de la cual se dicta a 
sentencia”. Jacinto Nelson de Miranda Coutinho, que nos traz essa citação, esmiúça: “A característica 
62 
 
Infelizmente, dessa forma última e corrompida foram extraídas as fórmulas 
processuais adotadas por inúmeras legislações – com destaque para as ordenações 
do reino português –, perfazendo ilegitimamente o sistema inquisitório contemplado 
e unanimemente rejeitado nos tempos correntes. 
De outra parte, deve ser assinalado que exatamente os abusos que se 
avolumaram impropriamente nesse modelo ao menos serviram para provocar, como 
sublinhou Antonio Magalhães Gomes Filho, a “reação iluminista”, através da qual 
“institutos fundamentais do sistema penal e processual do ancien régime, como a 
pena de morte e a tortura, passaram a ser contestados, em nome de uma nova 
concepção das relações entre o Estado e o cidadão”
112
. 
Nesse novo clima afloraram novas, e por vezes profundas, reformas 
legislativas por toda a Europa, valendo destacar, acompanhando-se a óptica de 
Mittermaier, a lei promulgada por Leopoldo, grão-duque da Toscana, em 1786, e a 
Ordenança de José II da Baviera, em 1788, ambas plasmadas, como aduziu, sob o 
“espírito universal de Beccaria”
113
. Porém, a maior reforma patrocinada pelas idéias 
e ideais iluministas manifestou-se por meio de mentes e de mãos francesas, em 
meio à conjuntura revolucionária, verificada na passagem dos séculos XVIII para 
XIX. 
1.4.2. A polícia investigativa. 
1.4.2.1. Intróito . 
 
fundamental do sistema inquisitório, em verdade, está na gestão da prova, confiada essencialmente ao 
magistrado que, em geral, no modelo em análise, recolhe-a secretamente”. E acentua: “O trabalho do juiz (...) 
afastado do contraditório e sendo o senhor da prova, sai em seu encalço guiado essencialmente pela visão que 
tem (ou faz) do fato” (In O papel do novo juiz no processo penal. COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda 
(Coord.). Crítica à teoria geral do direito processual Penal, p. 23-24). Comenta Leonardo Boff, no 
prefácio do Manual dos inquisidores : “A confissão é tudo na Inquisição, não as provas, contrariamente ao 
senso do direito universal, pois, sabemos, a confissão pode ser extorquida sob coação” (p. 19). Comprova seu 
raciocínio com revelador trecho da obra, escrita por Nicolau Eymerich em 1376, e ampliada por Francisco de 
La Peña em 1578: “Diante do tribunal da Inquisição basta a confissão do réu para condená-lo. O crime de 
heresia é concebido no cérebro e fica escondido na alma: portanto, é evidente que nada prova mais do que a 
confissão do réu” (p. 138). E noutro elucidativo trecho: “o papel do advogado é fazer o réu confessar logo e 
se arrepender, além de pedir a pena para o crime cometido” (p. 139). 
112
 GOMES FILHO, Antonio Magalhães. O direito à prova no processo penal, p. 25. 
113
 MITTERMAIER, C. J. A. Tratado da prova em matéria criminal, p. 23-24. 
63 
 
A Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 14 de agosto de 
1789, estabeleceu, à configuração do Estado de Direito duas condições básicas: a 
garantia dos direitos fundamentais e a separação dos poderes. Assim sendo, todos os 
franceses, a partir de então, deveriam poder desfrutar suas liberdades, nos limites 
estabelecidos pela lei (expressão da vontade geral, sempre pronunciada ao proveito 
geral), sem serem impedidos pelo arbítrio estatal. Aos órgãos do Poder passaria a 
caber, doravante e imperiosamente, o exemplar acato às leis e o respeito aos direitosde todos os homens e cidadãos. Primando por tal espírito, os revolucionários logo 
tripartiram as funções do Poder – tornando teoricamente impossível que voltassem a 
se concentrar sob um único cetro –, encarregando novéis órgãos públicos do 
exercício de misteres especializados, como se deu com a polícia. 
1.4.2.1.1. Lei de 3 do Brumário do ano IV: a certidão de nascimento da 
polícia judiciária. 
Assim, em 1795, como já visto, criou-se na França uma polícia 
especializada, voltada exclusivamente para a investigação dos crimes havidos, a 
ponto de merecer a expressa denominação de “judiciária”. De fato, sua razão de 
existir consistia na descoberta e comprovação da autoria dos delitos não evitados 
pela polícia administrativa, a fim de possibilitar ao Poder Judiciário a aplicação, por 
meio dos seus tribunais, da “punição” (original) devida aos criminosos. 
Independente de uma nomenclatura específica, o certo é que a cuidada 
função investigativa preexistia a versada inovação, restando, ao longo dos tempos, a 
certos órgãos e funcionários o seu genérico, hesitante e impreciso desempenho. 
Com efeito, encontramos na história francesa uma série de instituições que podem 
ser consideradas como os embriões dessa polícia judiciária, a começar pela criação, 
no início do século XVI, do cargo de tenente de “robe” – um misto de magistrado e 
militar – ao qual se fez afetas a pesquisa e a captura de criminosos em Paris. Com 
idêntico propósito observa-se a constituição dos denominados “isentos”, por 
Mazarino, em 1634, a guisa de oficiais de polícia especializados, adidos aos 
comissários com a missão de proceder às investigações e operações consideradas 
64 
 
mais difíceis. Idem com a criação, em 1750, da Repartição de Segurança de Paris, 
por Berryer de Ravenoville, com a tarefa de diligenciar com vista à elucidação das 
queixas registradas pelos comissários nos bairros. Esse órgão, inclusive, contava, de 
maneira incipiente, com arquivos repletos de nomes e endereços de ladrões e 
suspeitos, cada qual identificado segundo a natureza das condenações que já 
carregava.
114
 
Destarte, o fator que poderia e deveria diferenciar esse novo órgão policial –
gerado sob influxo revolucionário – daqueles que o antecederam no tempo, 
coincidia, a par de sua especialização, com a sua teoricamente incondicional 
obrigação de se subordinar à lei, fonte única de todas as ações, inclusive estatais, 
que no recém-fundado Estado de Direito, somente haveriam de aflorar com o fito 
de fazer concreta a vontade geral expressa através da norma. Faustin Helie, 
transcrito por João Mendes Junior, melhor ilustra o raciocínio: 
A polícia judiciária é o olho da justiça; é preciso que o seu 
olhar se estenda por toda a parte, que os seus meios de 
actividade, como uma vasta rede, cubram o território, afim de 
que, como a sentinella, possa dar o alarma e advertir o juiz; é 
preciso que os seus agentes, sempre promptos aos primeiros 
ruidos, recolham os primeiros indícios dos factos puníveis, 
possam transportar-se, visitar os lugares, descobrir os 
vestigios, designar as testemunhas e transmittir á autoridade 
competente todos os esclarecimentos que possam servir para 
a instrucção ou formação da culpa; ella edifica um processo 
preparatorio do processo judiciário; e, por isso, muitas vezes, 
ella possa tomar as medidas provisórias que exigirem as 
circumstancias. Ao mesmo tempo ela, deve apresentar em 
seus actos algumas das garantias judiciárias : que a 
legitimidade, a competência, as habilitações e as attribuições 
dos seus agentes sejam definidas, que os casos de sua 
intervenção sejam previstos, que seus actos sejam autorisados 
e praticados com as formalidades prescriptas pela lei; que, 
emfim, os effeitos destes actos sejam medidos segundo a 
 
114
 LE CLÈRE, Marcel. Op. cit., p. 29, 33 e 52. Vale registrar que a despeito dessa e de outras proficientes 
medidas adotadas por Berryer, sua gestão ficou marcada apenas pela intensa bisbilhotice, que lhe garantiu tal 
chefia por dez anos. É ainda Lê Clère que conta que a esse mister, mesmo granjeando a irritação de toda 
população parisiense, não titubeava Berryer , ao largo de qualquer escrúpulo, em recrutar “para o seu serviço 
os infelizes maridos surpreendidos em galante companhia ou os que se entregavam à pederastia”. Fatos 
próximos a esse, que com bastante freqüência podem ser detectados na história da polícia francesa, parecem 
servir a explicar e justificar o porquê de sua péssima reputação. 
65 
 
natureza dos factos e a autoridade de que são investidos os 
agentes.
115
 (Sic) 
Essa polícia judiciária, nascida com e no Estado de Direito, vocacionada à 
legalidade, não logrou, entretanto, celeremente representar esse papel, tendo, como 
tudo mais na França da época, permanecido muito tempo perdida entre as vagas do 
maremoto político que naquele país tanto perdurou. 
1.4.2.1.2 A reforma napoleônica: a polícia judiciária no processo penal. 
Promulgado em 17 de novembro de 1808, e vigorando a partir de 1
o
 de 
janeiro de 1811, o Code d’Instruction Criminelle logo se tornou paradigmático, 
influenciando, até mesmo moldando, a legislação processual penal de quase toda 
Europa e praticamente do resto do mundo
116
. Nesse diploma a polícia judiciária foi 
tratada ao longo dos capítulos 1
o
 a 5
o
 do Livro 1
o
, perdendo, em relação ao Código 
do Brumário, competências instrutórias, em decorrência da forte campanha 
desencadeada em favor da separação das funções policiais e judiciais
117
. 
Restaram, pois, aos agentes da polícia judiciária, específicas atribuições, a 
saber : receber as denúncias das infrações cometidas, ouvindo testemunhas e 
procedendo com os poderes inerentes ao Procurador do Rei
118
, quer nos casos de 
flagrante delito, quer quando solicitado por qualquer chefe de família, de tudo 
preparando processo para final transmissão ao Ministério Público. 
Embora com grande vagar, essa instituição investigativa foi adquirindo as 
credenciais técnicas e de especialista exigidas para o eficiente desempenho de sua 
função. Assim, em 1882, passou a fazer uso de métodos antropométricos para a 
identificação de suspeitos, reservando aos reincidentes a possibilidade de 
 
115
 MENDES JÚNIOR, João. Op. cit., p. 246.Grifo não original. 
116
 TORNAGUI, Hélio. Op. cit., p. 99. 
117
 MENDES JÚNIOR, João. Op. cit., p. 247. 
118
 Ibidem, p. 232. Poderes que referiam-se à capacidade de praticar os denominados atos de poursuite, 
próprios ao procurador público e, excepcionalmente, pelo comissário de polícia e seus auxiliares. Tais atos 
compreendiam: as requisições dirigidas ao juiz de instrução, certos atos de execução, especialmente de 
expedir notificações e cumprir os despachos desse magistrado, assistindo-o na realização de exames e 
diligências. Nos casos de flagrante delito, o agente de polícia judiciária sempre assumia competências 
especiais, normalmente reservadas ao juiz de instrução, procedendo ao corpo de delito e realizando buscas e 
apreensões até na residência do delinqüente. Apenas para diligências em moradias de terceiros é que se fazia 
indispensável à prévia autorização judicial. 
66 
 
reconhecimento fotográfico. Em 1888, sob os aplausos de Pasteur, inaugurou seu 
laboratório, demorando então poucos anos para incorporar a identificação 
datiloscópica a sua rotina de trabalho, servindo, por meio de todo esse itinerário, 
como exemplo às instituições congêneres. 
Tal como de resto se houve, durante muito tempo, em relação a todas as 
novidades geradas pela rica cultura francesa, essas criações foram mundialmente 
propagadas, ganhando a polícia judiciária, então já engendrada como arquétipo, 
presença em diversas regiões do planeta, inclusive no Brasil. 
1.4.2.2. A polícia judiciária no Brasil. 
Após a independência, já em 15 de outubrode 1827, sob inspiração francesa, 
a lei reproduziu, em versão brasileira, a figura do juiz investigador, cometendo ao 
Juiz de Paz competência de apuração criminal, especialmente para a elaboração do 
auto de corpo de delito. 
Ainda mitigada, foi essa mesma tendência confirmada pelo Código de 
Processo Penal de 1832, que manteve nas mãos desses magistrados eletivos a 
investigação criminal. Não obstante a influência francesa, essa legislação 
apresentava-se bem mais liberal, eis que no modelo original, pontifica Pierangelli, 
“o acusado era colocado em uma situação de inferioridade em relação ao acusador 
oficial e o juiz exercitava uma atividade de produção de provas, valendo-se, para 
esse fim, até mesmo da tortura”
119
, proscrita entre nós, ao lado de quaisquer penas 
cruéis, pela Carta de 1824 (art. 179, XXIV). Na França, apenas em 1897 a instrução 
secreta foi absolutamente abandonada, ficando, de resto, e somente a partir dessa 
oportunidade, defeso ao Juiz da instrução, ou seja, ao investigador, julgar a causa.
120
 
A polícia judiciária, naturalmente não desconhecida, não demorou a ser 
suscitada, fazendo-se literalmente presente na denominada Lei de Interpretação, a 
de nº 105, de 12 de maio de 1840, cujo texto, em disposição preliminar, dirimiu 
dúvida surgida em face do conteúdo do art. 10, § 4
o
, do Ato Adicional de 1834 – a 
 
119
 PIERANGELLI, José Henrique. Op. cit., p. 103. 
120
 MENDES JÚNIOR, João. Op. cit., p. 237. 
67 
 
Lei nº 16, de 12 de agosto de 1834 – que transferiu a atribuição de legislar sobre 
polícia às “Assembléas Provinciaes” (Sic). Esclareceu o diploma superveniente, e 
de modo expresso, que a referida competência não abrangia a polícia judiciária, que 
prosseguiu assim vinculada exclusivamente aos provimentos imperiais. 
Já em 1842, o Regulamento nº 120, disciplinando a “execução da parte 
policial e criminal da Lei nº 261”, publicada no ano anterior, oficializou, através de 
seu art. 3
o
, a criação da Polícia Judiciária entre nós, confiando-lhes, como já visto, 
atribuições não apenas investigativas como também judiciais. Esse fato logo 
ensejou uma justificada revolta geral, exatamente como antes se passara na França, 
onde, dentre outras razões, levou-se à edição do Código de Instrução Criminal de 
1808. Frederico Marques aludiu, neste ponto, a uma deplorável inversão, com a 
transposição do “judiciarismo policial” de 1832, para o “policialismo judiciário” de 
1842. 
O equilíbrio somente pôde ser alcançado trinta anos depois, com a Lei nº 
2.033, de 20 de setembro de 1871, e seu regulamento, o Decreto nº 4.824, de 22 de 
novembro subseqüente. Como reflexo do afastamento de toda e qualquer atribuição 
estritamente judicial do rol de funções da polícia, ou seja, como produto da 
requestada separação desses papéis dantes confundidos na legislação pátria, a 
qualificação “judiciária” foi eliminada dos mencionados textos normativos. 
Todavia, remanesceu às autoridades policiais, como expressão maior do exercício 
da atividade de polícia judiciária, a incumbência de perquirir as infrações penais, e 
distintamente da matriz francesa - nesse plano já totalmente abandonada – como 
protagonistas, e não como coadjuvantes de um juiz instrutor. 
Com efeito, a execução da investigação criminal, reservada à exclusiva 
alçada dos Chefes, Delegados e Sub-delegados de Polícia, foi confinada às lindes do 
inquérito policial, definido pelo precitado regulamento como o conjunto das 
diligências necessárias para a verificação da existência do crime, descobrimento de 
todas as suas circunstâncias e respectiva autoria (arts. 11, § 2
o
, c.c. 38 e ss). Esse 
68 
 
quadro restou praticamente inalterado, exceção feita a alguns poucos Estados, pelos 
setenta anos seguintes. 
Em 1941, a polícia judiciária reapareceu na legislação nacional – explicitada 
pelo art. 4
o
 do Código de Processo Penal, promulgado em 3 de outubro (Decreto-lei 
nº 3.689) – como a atividade própria das autoridades policiais, concernente à 
apuração das infrações penais e o conhecimento dos seus autores, em diapasão 
absolutamente linear à precedente normatização. 
O inquérito policial, que nominou o Título II do Livro I do novo Código, foi 
mantido a título de instrumento da polícia judiciária, suplantados os defensores da 
instituição, no Brasil, do Juizado de Instrução, cujo mais auspicioso momento 
remanesceu em 1935, quando o projeto Vicente Ráo foi rejeitado. Em favor do 
inquérito, e independente das vicissitudes inerentes ao juizado, a exposição de 
motivos do CPP de 1941 arrolou estas vantagens: 
(...) é ele uma garantia contra apressados e errôneos juízos, 
formados quando ainda persiste a trepidação moral causada 
pelo crime ou antes que seja possível uma exata visão de 
conjunto dos fatos. Por mais perspicaz e circunspeta, a 
autoridade que dirige a investigação inicial, quando ainda 
perdura o alarma provocado pelo crime, está sujeito a 
equívocos ou falsos juízos a priori, ou a sugestões 
tendenciosas. Não raro é preciso voltar atrás, refazer tudo, 
para que a investigação se oriente no rumo certo, até então 
despercebido. Por que, então, abolir-se o inquérito preliminar 
ou instrução provisória, expondo-se a justiça criminal ao 
azares do detetivismo, às marchas e contra-marchas de uma 
instrução imediata e única? Pode ser mais expedito o sistema 
de unidade de instrução, mas o nosso sistema tradicional, 
com o inquérito preparatório, assegura uma justiça menos 
aleatória, mais prudente e serena. 
Contudo, em plano Estado Novo, não foi o inquérito policial utilizado apenas 
e exatamente a proporcionar suas relacionadas benesses, servindo, doutra forma, e 
espuriamente como instrumento de repressão política, segundo os cânones dos 
Decretos-lei nº 88, de 20 de dezembro de 1937, e nº 431, de 18 de maio de 1938, 
que disciplinaram o procedimento perante o fascista Tribunal de Segurança 
69 
 
Nacional, instituído pela Carta de 1937, como “órgão permanente e autônomo da 
justiça especial”, ao qual atribuía o processo e julgamento dos crimes contra “a 
existência, a segurança e a integridade do Estado, a guarda e o emprego da 
economia popular” (art. 122, nº 17 c.c. arts. 172 e 173, com redação dada pela Lei 
Constitucional nº 7, de 30 de setembro de 1942 ). 
121
 
Exprobrando veementemente essa legislação, que realçou como a mais 
ilegítima de toda história processual penal brasileira, Frederico Marques registrou a 
extraordinária degeneração então sofrida pelo inquérito, que nesses processos 
prestava-se, para além da formação da culpa – sempre produzida sigilosa e 
arbitrariamente – a valer como peça de acusação, pois gozando de uma incrível 
presunção de veracidade, gerava, incontinenti ao seu término e, mesmo à vista de 
temerárias conclusões, um estado de culpabilidade, do qual o “investigado-acusado” 
somente poderia se subtrair comprovando sua inocência, mercê da arbitrária 
inversão do ônus da prova. 
122
 
Superada essa fase de exceção, o labor policial judiciário passou longo 
tempo à margem de quaisquer inovações ou mudanças, tendo, ao que parece, 
mergulhado numa grande pasmaceira, pois não se encontram registros de 
lucubrações capazes de patrocinar-lhe visíveis e efetivos progressos nos planos 
ético, técnico e jurídico. Durante o período do governo militar, quando uma 
inconsistente, mas férrea política de segurança nacional logrou eclipsar, a despeito 
dos ditames presentes tanto na Lei Fundamental de 1967, como no “Emendão” de 
1969, as preocupações em torno do interesse e do serviço genuinamente públicos, a 
atividade policial, como um todo, pode ser vista submergindo – sob crítica a priori 
velada, porém, depois generalizada sob os auspícios da redemocratização – quase 
que por completo na obscuridade, como expressão pronunciada do arbítrio e da 
ineficiência.121
 Extinto pela Lei Constitucional nº 14, de 17 de novembro de 1945. CAMPANHOLE, Hilton Lobo. 
CAMPANHOLE, Adriano. Constituições do Brasil – compilação e atualização de textos, notas revisão e 
índices. 
122
 FREDERICO MARQUES, José. Op. cit., p. 109. 
70 
 
Nesse compasso, em 1988, pela primeira vez na história brasileira, a polícia 
judiciária tornou-se tema constitucional, malgrado inserto no Estatuto Político 
promulgado em 5 de outubro como um feixe de inespecíficas funções, estranha e 
gramaticalmente dissociadas do exercício da investigação criminal, atribuídas, 
contudo, conjuntamente com aquelas, a órgãos policiais civis da União e dos 
Estados. Tudo em nome da segurança pública, constitucionalizada a bem da defesa 
das instituições democráticas (conforme capítulo III do Título V da Constituição da 
República). 
1.4.2.3. Um relance sobre a hodierna polícia judiciária no mundo 
ocidental. 
Enfatiza Monet que “nas representações do público e na dos próprios 
policiais, a verdadeira polícia é a que visa aos comportamentos criminais”. Depois, 
aludindo à polícia criminal, como é designada a polícia judiciária na Europa do 
Norte
123
, apresenta-a como aquela responsável pela execução de “todas as 
atividades que fornecem à justiça penal a matéria-prima necessária ao seu 
funcionamento”. 
Fixando o atual quadro europeu, pode o autor identificar, basicamente em 
todos os países, a existência de corpos policiais encarregados do exercício da 
função em comento, desempenhada em níveis de excepcional complexidade, por 
intermédio de órgãos altamente especializados, treinados e equipados, notadamente 
para atuar na apuração das atividades patrocinadas pela criminalidade transnacional 
e organizada.
124
 
No mais, registrando apenas duas parciais exceções, fez destacar que no 
Velho Continente as atividades de investigação se encontram maciçamente 
concentradas em mãos civis. Apenas na França e na Itália, sob determinadas 
 
123
 MONET, Jean-Claude. Op. cit., p. 113-114. Acerca das nomenclaturas esclarece o autor que o uso da 
expressão polícia judiciária é corrente na França, Itália, Espanha e Bélgica, enquanto que nos países anglo-
saxônicos a referência é antes uma forma de ação, pelo que se reporta ao Criminal Investigations ou de Law 
Enforcement. 
124
 Ibidem, p. 114 e 118. 
71 
 
circunstâncias, equipes específicas, respectivamente da Gendarmeria e dos 
Carabineiros, podem se encarregar da realização de investigações. E sobre esse 
desvio guardou terminativo escólio: 
Em compensação, a natureza militar dessas polícias suscita 
um problema particular em matéria de cooperação 
internacional, tal como a que funciona no quadro da Interpol. 
A presença de policiais militares é aqui mal percebida, pois 
se choca com as tradições anglo-saxônicas e escandinavas 
nas quais a polícia é uma função de essência civil. Em todos 
os países europeus, os correspondentes da Interpol que 
povoam os escritórios centrais nacionais fazem parte de 
polícias judiciárias civis. 
125
 
Do outro lado do Atlântico, nos Estados Unidos, encontramos um sem- 
número de polícias, todas, entrementes, civis. A atividade investigativa é tratada 
como faina especializada, atribuída, ao menos nos departamentos de polícia maiores 
e/ou melhores organizados, aos agentes mais experientes e melhor qualificados, 
invariavelmente lotados em órgãos específicos e adequadamente estruturados à 
finalidade perseguida, em nível municipal, estadual ou federal. 
No que pertine, contudo, à decantada eficácia da polícia criminal norte-
americana, impõe-se uma ressalva, pois, se por um lado é verdade que os EUA hoje 
contam, aos moldes do FBI, com unidades extraordinariamente capacitadas para 
proficuamente promover o deslinde criminal, é igualmente autêntico, de outro, o 
fato de que um abismo se projeta entre a atividade ordinária dessa mesma polícia, 
enquanto genericamente focalizada, e a inverossímil imagem de absoluta 
competência que a seu respeito se vê amiúde acalentada e propalada no Brasil, 
quase sempre singelamente fundada em testemunhos cinematográficos, qual 
resolutamente desmistificam Bayley e Skolnick, consoante a seguinte conclusão, 
alcançada em alentado estudo realizado sobre as polícias americanas : 
Os crimes não são solucionados – no sentido de delinqüentes 
serem presos e julgados – pelas investigações criminais 
conduzidas pelos departamentos de polícia. Geralmente, os 
crimes são resolvidos porque os criminosos são presos em 
 
125
 Ibidem. Op. cit., p. 119. 
72 
 
flagrante ou porque alguém os identifica especificamente – um 
nome, um endereço, a placa de um carro. Os estudos mostram 
que, se nenhuma dessas coisas acontece, as chances de solucionar 
algum crime caem para menos de uma em dez. Apesar de que, a 
televisão nos tem levado a pensar, que os detetives não trabalham 
a partir de pistas para chegar aos criminosos: seu trabalho é feito 
com base em suspeitos conhecidos a fim de corroborar as provas. 
Os detetives são importantes para a acusação de infratores 
identificados e não para descobrir delinqüentes desconhecidos. 
126
 
Destarte, em que pese toda exposição holywoodiana, inexistem corpos 
policiais perfeitos, prontos e acabados, simplesmente esperando para ser copiados. 
Poucas, em verdade, afiguram-se as peculiaridades policiais e mesmo judiciais 
alienígenas passíveis de idônea reprodução em face da atípica realidade sócio-
econômico-cultural brasileira. Ao contrário, como se procurará mais à frente 
trabalhar, talvez mais frutuoso seja a percepção e o conseqüente reconhecimento 
dos muitos defeitos e imperfeições que, direta ou indiretamente, incidem sobre as 
nossas e também sobre outras polícias e sistemas investigativos, a fim de 
eficientemente procurar evitá-los e/ou eliminá-los em nosso meio. 
1.4.3. A polícia judiciária e sua classificação jurídica : uma nova visão. 
Como visto, o Estado de Direito despojou a polícia da amplitude que lhe foi 
conferida pelo jus politiae, desde os fins do século XIV até o crepúsculo do século 
XVIII, para passar a apresenta-la, singelamente, como “uma função administrativa 
típica de prevenção de perigos e de manutenção da ordem pública”, peculiar, ainda 
segundo Canotilho, àquele propriamente denominado “Estado guarda-nocturno”. 
127
 
Nesse contexto, e na França, essa “nova polícia”, primeiramente 
sistematizada, em sua relações com a segurança, pela Lei de 3 do Brumário do ano 
IV, logo se viu bipartida: de um lado, a polícia administrativa, incumbida 
“principalmente a prevenir os delitos” (art. 19), e, de outro, a polícia judiciária, 
investigativa, responsável pela colheita das provas necessárias para a decretação, 
 
126
 BAYLEY & SKOLNICK. Nova polícia: inovações na polícia de seis cidades norte-americanas, p. 19-
20. Aludem estes autores ainda aos estudos de Peter W. Greenwood & Joan Petersilia, The criminal 
investigation process, Washington, D. C.: Law Enforcement Assistance Administration, 1976. 
127
 CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito Constitucional e a Teoria da Constituição, p. 88. 
 
73 
 
pelos tribunais, da punição dos autores dos crimes não evitados pela primeira (art. 
20). 
Contudo, essa diferenciada polícia, finalisticamente judiciária, não logrou 
encontrar, no atribulado ambiente da época, e muito menos nas décadas seguintes, 
condições mínimas, principalmente de exercício eficiente e imparcial, para cedo 
vingar como função pública especializada, que no serviço à jurisdição
128
 possuía 
sua exclusiva e verdadeira razão de ser. 
Ao contrário, o que se pode ver, através das práticas coetâneas, foi a plena 
desconsideração estatal da dimensão operativa dessa novel polícia, com o desprezo 
de sua natureza investigativa, manifestado com o engajamento dos órgãos 
nominalmenteencarregados de sua execução na mantença, a qualquer custo, da 
ordem pública
129
 de plantão. 
Dessarte, como mero apêndice do Poder Executivo, não mereceu a polícia 
judiciária, e por muito tempo, atenção senão orgânica, restando, pois, no âmbito 
jurídico, relegada, no mais das vezes, aos estudos circunscritos às estritas raias de 
um ainda incipiente Direito Administrativo, que jamais foi capaz de dedicar ao tema 
enfoque e ordenação adequadas. 
 
128
 A justificar a célebre sentença de Velez Mariconde, na qual reputa à polícia judiciária a relevantíssima 
tarefa de administração da fase primária da Justiça Penal (Apud Fernando da Costa Tourinho Filho. Processo 
Penal, p. 162). 
129
 José Afonso da Silva define abstratamente a ordem pública como “uma situação de pacífica convivência 
social, isenta de ameaça de violência ou de sublevação que tenha produzido ou que supostamente possa 
produzir, a curto prazo, a prática de crimes” (Curso de Direito Constitucional Positivo, p. 754). Observe-se 
que Sérgio Marques de Moraes Pitombo, referindo-se ao Estado Democrático de Direito, e pondo-se a luz 
dos direitos individuais, diz melhor “cogitar-se da paz pública, emergente do binômio : tranqüilidade social, 
não artifical, e ordem social, entendida como harmonia na comunidade” (Emprego de Algemas – Notas em 
prol de sua regulamentação, in Inquérito Policial : Novas Tendências, p. 81). Refletindo, percebe-se que há 
uma boa diferença a marcar essas duas vertentes, surgindo a ordem pública - como realçava esse grande e 
saudoso processualista em suas palestras - como conceito impositivo, que não possui raízes na tranqüilidade e 
na harmonia sociais, mas sim na pretensão de produzi-las mediante expedientes de força, artificiais, 
restritivos, aptos a inviabilizar ações e a coibir posturas passíveis de ensejarem práticas criminosas, como, 
por exemplo, implantando-se toque de recolher, que hipoteticamente serviria para manter desordeiros 
afastados das ruas durante determinados períodos do dia ou da noite. Assim, por meio da limitação dos 
direitos de parte ou de todos os membros da coletividade, visa tornar inexeqüível a quebra da ordem 
legalmente estabelecida. 
74 
 
Deveras, não se pode deixar de reconhecer, com Sérgio Marcos de Moraes 
Pitombo, que “a polícia, enquanto judiciária, e o inquérito que ela faz , exsurgem 
administrativos, por sua atuação e forma, mas judiciários, nos seus fins”
130
. 
Como há muito cifrado por Masagão, ao Direito Administrativo somente 
pode interessar o estudo da polícia administrativa, eis que a polícia judiciária, 
conforme concebida originalmente, e segundo a autonomia que lhe foi idealizada e 
concedida pelo Código do Brumário, somente deveria atuar, e decerto no plano da 
colheita das provas, após o cometimento do crime, já então sob as normas do 
“direito judiciário penal”.
 131
 
Curial a aceitação, pois, de conclusão extremamente símplice, condizente ao 
fato do Direito Administrativo se ostentar intrinsecamente falho ao realizar a tarefa 
de moldar a polícia judiciária, ao menos enquanto entendida, como neste trabalho, 
como função estatal jungida singularmente aos fins da Justiça Criminal, e que 
apenas suplementarmente se dedica à prestação de serviços ou à imposição de 
limitações à população. Ademais, sob esse ponto de vista, acresce entender a 
necessidade de seu distanciamento, com a desvinculação hierárquica, do Poder 
Executivo, sob pena de inquinamento, qual com profundidade trataremos no 
Capítulo 4, mediante abordagem puramente constitucional. 
Crê-se de bom alvitre, entretanto, desde este ponto proceder a 
desmistificação de determinadas crenças provindas de lições ministradas na órbita 
do telado ramo do Direito, a começar pelas caracterizações, certamente azadas em 
decorrência da mencionada e primitiva dicotomização legal, que projetam a polícia 
administrativa responsável por exercício de atividade preventiva, e a polícia 
judiciária incumbida do desempenho de função repressiva. 
Tal classificação, malgrado imprecisa, manteve-se em voga por bastante 
tempo, não deixando, ainda hoje, de merecer a atenção e os escólios de nossos 
 
130
 Arquivamento do Inquérito Policial – Sua Força e Efeito, in Inquérito Policial : Novas Tendências, p. 
22. 
131
 MASAGÃO, Mário. Curso de Direito Administrativo, p. 191-192. 
75 
 
administrativistas, mesmo quando apenas para efeito de crítica. Eis a síntese 
promovida por José Cretella Júnior : 
A polícia administrativa tem por escopo impedir as infrações 
das leis (sendo nesta parte preventiva) e sustentar a ordem 
pública em cada lugar, bem como em toda a parte do reino 
(JUSTINO ANTÔNIO DE FREITAS, Instituições de Direito 
Administrativo Português, 2
a
 ed., 1861, p. 192); assegurar a 
ordem e segurança públicas, a proteção dos direitos 
concernentes à liberdade, à vida e à propriedade, e bem 
assim, a prevenção dos delitos, por meio de ordens e 
determinações conducentes a tal fim (MATOS DE 
VASCONCELOS, Direito Administrativo, 1936, vol. I, p. 
224). À polícia administrativa ou preventiva incumbe, em 
geral, a vigilância, proteção da sociedade, manutenção da 
ordem e tranqüilidade pública, bem assim, assegurar os 
direitos individuais e auxiliar a execução de atos e decisões 
da Justiça e da Administração (MATOS DE 
VASCONCELOS, Direito Administrativo, 1936, vol. I, p. 
225). 
132
 
(...) 
A polícia judiciária é também denominada repressiva, nome 
que merece um reparo porque esse organismo não aplica 
apenas aos delitos, mas funciona como auxiliar do Poder 
Judiciário nesse mister. No mesmo sentido, escreve 
JUSTINO ANTONIO DE FREITAS : “Polícia judiciária é a 
que procura as provas dos crimes e contravenções e se 
emprenha em descobrir os seus autores, cujo caráter a torna 
por isso essencialmente repressiva” (Instituições de Direito 
Administrativo Português, 2
a
 ed., 1861, p. 192). 
133
 
Com o passar tempo, mais e mais vozes foram se elevando para protestar 
contra a desatualização e a impropriedade dessa vetusta distinção, assim como para 
propor, em sentido inverso, a sua substituição por outras e divergentes 
segmentações, baseadas em critérios diversos. 
Di Pietro, de sua parte, alinha alguns desses novos arranjos, dentre os quais 
vale destacar aquele propugnado por Álvaro Lazzarini, que aduz “a linha de 
diferenciação” entre as polícias administrativa e judiciária situada “na ocorrência ou 
 
132
 Op. cit., p. 45. 
133
 Ibidem, p. 46. 
76 
 
não de ilícito penal”. Assim, “quando atua na área do ilícito puramente 
administrativo (preventiva ou repressivamente), a polícia é administrativa. Quando 
o ilícito penal é praticado, é a polícia judiciária que age”.
134
 E mais ou menos nessa 
linha, aquela autora pontua : 
Outra diferença : a polícia judiciária é privativa de 
corporações especializadas (polícia civil e militar), enquanto 
a polícia administrativa se reparte entre diversos órgãos da 
Administração, incluindo a própria polícia militar, os vários 
órgãos de fiscalização, aos quais a lei atribua esse mister, 
como os que atuam nas áreas de saúde, educação, trabalho, 
previdência e assistência social. 
135
 
Não se mantendo muito distante desse último raciocínio, mas também não 
abandonando a tradicional doutrina francesa, Cretella Júnior prega a existência, 
entre nós, de uma polícia que titula mista ou eclética, “que acumula ou exerce, 
sucessiva e simultaneamente, as duas funções, a preventiva e a repressiva, como é o 
caso da polícia brasileira, em que o mesmo órgão previne e reprime”. 
136
 
Gasparini parece também perfilhar esse posicionamento, ensinando que “o 
exercício da polícia administrativa está disseminado pelos órgãos e agentes da 
Administração Pública, ao passo que o da polícia judiciária é privativode certo e 
determinado órgão (Secretaria da Segurança)”.
137
 
Sem embargo do pronto e pleno reconhecimento da proverbial autoridade 
dos citados tratadistas, cremos que a óptica da qual parecem comungar, porque fiel 
apenas às tímidas perspectivas do Direito Administrativo, não permite a escorreita 
identificação da forma, e ainda menos do conteúdo, que se impõe imperativos a 
propriamente consubstanciar a função policial judiciária, máxime no Estado 
Democrático de Direito. 
Com efeito, todas as teses encimadas, que miram a polícia em suas relações 
com a segurança pública, descrevem-na como atividade monolítica e indistinta, 
 
134
 Apud DI PIETRO, Maria Silvia Zanella. Direito Administrativo, p. 112. 
135
 Ibidem, p. 113. 
136
 CRETELLA JÚNIOR, José. Op. cit., p. 47. 
137
 GASPARINI, Diógenes. Direito Administrativo, p. 123. 
77 
 
sempre evidenciada a partir de aspectos francamente secundários, de ordem 
temporal e orgânica. Renunciam, desse modo, perscrutá-la tal como hoje 
efetivamente se apresenta, jurídica e faticamente, a compor um conjunto de 
diversificadas e inconfundíveis funções, explicitado pelo art. 144 da vigente Carta 
Magna. Aí se encontra insculpido quadro discriminatório de atividades que, 
incontestavelmente, não podem ser tomadas como únicas ou coincidentes, tocantes 
a cada órgão e corporação elencados, qual adiante destacado: 
§ 1º A polícia federal, instituída por lei como órgão 
permanente, organizado e mantido pela União e estruturado 
em carreira, destina-se a: 
I - apurar infrações penais contra a ordem política e social 
ou em detrimento de bens, serviços e interesses da União ou 
de suas entidades autárquicas e empresas públicas, assim 
como outras infrações cuja prática tenha repercussão 
interestadual ou internacional e exija repressão uniforme, 
segundo se dispuser em lei; 
II - prevenir e reprimir o tráfico ilícito de entorpecentes e 
drogas afins, o contrabando e o descaminho, sem prejuízo da 
ação fazendária e de outros órgãos públicos nas respectivas 
áreas de competência; 
III - exercer as funções de polícia marítima, aeroportuária 
e de fronteiras; 
IV - exercer, com exclusividade, as funções de polícia 
judiciária da União. 
§ 2º A polícia rodoviária federal, órgão permanente, 
organizado e mantido pela União e estruturado em carreira, 
destina-se, na forma da lei, ao patrulhamento ostensivo 
das rodovias federais." 
§ 3º A polícia ferroviária federal, órgão permanente, 
organizado e mantido pela União e estruturado em carreira, 
destina-se, na forma da lei, ao patrulhamento ostensivo 
das ferrovias federais." 
§ 4º - às polícias civis, dirigidas por delegados de polícia de 
carreira, incumbem, ressalvada a competência da União, as 
funções de polícia judiciária e a apuração de infrações 
penais, exceto as militares. 
§ 5º - às polícias militares cabem a polícia ostensiva e a 
preservação da ordem pública; aos corpos de bombeiros 
militares, além das atribuições definidas em lei, incumbe a 
execução de atividades de defesa civil. 
 
78 
 
Parece claro, destarte, que não devem restar dúvidas sobre qual órgão ou 
corporação deve desenvolver essa ou aquela função policial, assim como não mais 
se pode admitir, em conformidade a pretensão de alguns, manifestadas no isolado 
âmbito do Direito Administrativo, que todas venham a se resumir na polícia 
judiciária. Aos adeptos de expedientes classificatórios parece melhor, à vista do 
transcrito texto da Lei Fundamental, e como já se faz corriqueiro, referir-se, como 
gênero, e perfazendo denominação temática, a uma polícia de segurança, 
conformada, no entanto, por particularizados órgãos e corporações, cada qual 
detentor de distintas funções. 
Em todo o caso, face às consignadas disposições constitucionais, certamente 
não se ostenta razoável asseverar, por exemplo, que à polícia ferroviária federal ou 
às polícias militares dos Estados impende o exercício das atividades de polícia 
judiciária, ou seja, como adiante será patenteado, de investigação criminal, tanto 
quanto deve se ter por despropositado desejar que as polícias civis estaduais se 
ocupem do patrulhamento ostensivo. 
Cumpre observar, ademais, que esse desconhecimento generalizado acerca 
da verdadeira polícia judiciária repousa, também, no fato que, entre nós, em tempo 
algum foi ela efetivamente implantada. Ou seja, nunca existiu, como atualmente 
continua inexistindo no Brasil - malgrado sua imprescindibilidade à depurada e 
eficiente realização de uma justiça criminal que possa ser qualificada como 
democrática - uma polícia investigativa, estritamente dedicada, em consonância à 
sua verdadeira especialização, ao esquadrinhamento das infrações penais, e a se 
configurar apenas num segundo plano proveitosa também à segurança pública 
(direito e responsabilidade de todos, ex vi art. 144, “caput”, CR). 
Essa realidade - fruto induvidoso da pouca intimidade brasileira com a 
democracia e seus valores - tem levado alguns exegetas a confusão, e daí a apontar 
como inerentes ao exercício policial judiciário determinadas ações, amiúde 
praticadas por órgãos e corporações integrantes da referida polícia de segurança, 
79 
 
exclusiva e constitucionalmente designados ao desempenho da polícia ostensiva e 
de preservação da ordem pública. 
Di Pietro, nessa conjuntura, arrola a apreensão de uma arma de fogo 
indevidamente utilizada ou ainda da licença do motorista infrator como exemplos da 
comezinha atuação repressiva
138
 desses órgãos e corporações, que por essa razão 
ganhariam status policial judiciário. 
Nessa linha, Hely Lopes Meirelles afirmou que, “em circunstâncias 
excepcionais, pode a Polícia Militar desempenhar função de polícia judiciária”, 
circunscrevendo, porém, essa possibilidade, a determinadas ações de força, “tal 
como na perseguição e detenção de criminosos, apresentando-os à Polícia Civil 
para o devido inquérito a ser remetido, oportunamente à Justiça Criminal”. 
139
 
Essencial, nessa vaza, ponderar que as mencionadas atividades, e até mesmo 
a prisão de alguém surpreendido em flagrante delito, bem podem ser ultimadas por 
qualquer cidadão, até mesmo, v.g., pela vítima, que em sua reação consegue 
desarmar e imobilizar o seu agressor, conduzindo-o, incontinenti, a presença da 
autoridade policial, para as providências de atribuição exclusiva dos órgãos 
constitucionalmente incumbidos do insofismável exercício policial judiciário . 
Denotam, pois, as focalizadas colocações, que a grande maioria daqueles que 
se mantém distantes da lida policial judiciária pouco consegue guardar além de uma 
pálida noção acerca do seu concreto desenvolvimento, costumando imaginar, com 
inelutável diletantismo, que as atividades investigativas sempre tem por elemento 
propulsor um fato incontroverso, sobejamente caracterizado - fática e juridicamente 
 
138
 Ressalte-se o erro que carrega a idéia de que mera atuação repressiva possa automaticamente impingir 
feição e natureza policial judiciária aos feitos da polícia administrativa. É cediço, consoante lições tiradas à 
saciedade do Direito Público, que a polícia administrativa também age repressivamente, qual precisamente 
aclara Carlos Ari Sundfeld : “Entre as competências da Administração ligadas aos condicionamentos de 
direito, insere-se a de repressão da sua inobservância. A atividade repressiva é veiculada por instrumentos 
com variada finalidade e intensidade. Dentre eles, devem-se distinguir três, especialmente relevantes : a) a 
ordem para correção de irregularidades; b) a medida cautelar; e c) a sanção” (Direito Administrativo 
Ordenador, p. 77). 
139
 MEIRELLES, Hely Lopes. Polícia de Manutenção da Ordem Pública e suas Atribuições, in Direito 
Administrativo da Ordem Pública, p. 92. Negrito não original. 
80 
 
- como crime, azando ilação fácil e inequívoca,lastreada por um abundante e 
induvidoso rol de provas. 
Longe, entrementes, acha-se essa suposição de se conformar minimamente 
com a realidade, uma vez que parte considerável das notitia criminis que chegam 
aos órgãos policiais judiciários dizem respeito a fatos por vezes até 
induvidosamente ilícitos, porém carentes de comprovação quanto à sua efetiva 
natureza, se civil ou criminal, como ocorre, e com grande freqüência, em face de 
casos permeados por hipotéticos descumprimentos de obrigações, normal e 
insistentemente interpretados como estelionatos e apropriações indébitas, mercê da 
tênue linha que demarca a fronteira das aludidas espécies. 
À polícia judiciária cabe, nesses e em tantos outros casos semelhantes - que 
refogem ao pouco criativo imaginário daqueles que se cingem à perquirição 
telescópica do seu rústico cotidiano -, laborar com vistas não à descoberta do autor 
dos fatos que se lhe são apresentados - invariavelmente de forma sintética e parcial 
por um irado reclamante -, mas, sim, e antes de mais nada, com o escopo de 
desvendar se esses fatos subsumem-se ou não a alguma hipótese delituosa. 
Toda essa intensa e especializada atividade investigativa, noutras vezes 
desencadeada à persecução da autoria de um crime já patenteado e/ou do 
aclaramento das circunstâncias em que foi cometido, revela-se como pesquisa de 
índole técnico-jurídica, totalmente balizada por preceitos processuais-
constitucionais, e que, portanto, não pode ser confundida, mormente em termos de 
extensão, complexidade e importância, com breves e singelos atos de força, de 
caráter meramente dissuasório e emergencial, que fundem a breve práxis da polícia 
ostensiva e de preservação da ordem pública. 
Salta à vista, desse modo, que o exercício eventual, contido, circunstancial e 
limitado de certos e diminutos expedientes coativos, geralmente facultados a 
qualquer um do povo, e que se baldariam à míngua das hábeis, tempestivas e 
sentenciosas providências confirmatórias da exclusiva alçada da autoridade policial 
judiciária, devem necessariamente circunscrever-se tão-somente dentro das 
81 
 
expectativas de preservação da ordem pública, constituídas com vistas ao 
asseguramento do primado da ordem jurídica, que restaria ao desabrigo, condenado 
ao perecimento, se aqueles que a infringissem pudessem continuar o seu curso sem 
ser obstado por quaisquer corporações, órgãos ou agentes do Estado, quando em 
condições de faze-lo. 
Diogo de Figueiredo Moreira Neto, buscando bem diferenciar as polícias 
administrativa e judiciária, explica justamente que: 
(...) o uso da força pela Polícia Judiciária se volta à coação 
legal de pessoas singularmente consideradas (indiciados e 
acusados) absolutamente necessária à sua condução às barra 
dos tribunais, que faz a repressão a posteriori. O uso da força 
pela Polícia Administrativa, preventiva e repressivamente, se 
dirige contra a ação de pessoas, singularmente ou 
coletivamente consideradas, que, na prática de ações, 
criminais ou não, ocasionem perturbação da ordem pública, 
fazendo a repressão no momento em que ela ocorra, até 
restabelecê-la. 
140
 
Não vai longe, ademais, o magistério de Celso Antonio Bandeira de Mello: 
O que efetivamente aparta polícia administrativa de polícia 
judiciária é que a primeira se dispõe unicamente a impedir 
ou paralisar atividades anti-sociais, enquanto a segunda se 
preordena à responsabilização dos violadores da ordem 
jurídica. 
Renato Alessi, sempre preciso, não desconheceu o caráter 
eventualmente repressivo da polícia administrativa e realçou 
seus vários traços ao defini-la como “a atividade 
administrativa preordenada à proteção do todo social e de 
suas partes, mediante uma ação, ora de observação, ora de 
prevenção, ora de repressão contra os danos que a elas 
poderiam ocorrer em razão da atividade dos indivíduos”. 
141
 
Diante do todo exposto, parece inexorável o reconhecimento que consiste um 
enorme exagero procurar igualizar funções e atuações tão distintas como aquelas, de 
um lado, encomendadas à polícia ostensiva e de preservação da segurança pública, e 
de outro, cabíveis à polícia judiciária. À primeira somente cabe agir 
 
140
 MOREIRA NETO, Diego de Figueiredo. Direito Administrativo da Segurança Pública, in Direito 
Administrativo da Ordem Pública, p. 73. 
141
 BANDEIRA DE MELLO, Celso Antonio. Op. cit., p. 710. 
82 
 
esporadicamente após o crime, jamais com sentido investigatório, mas apenas, e de 
forma continengial, buscando o restabelecimento da ordem rompida, quando fática 
e temporalmente possível. Mesmo quando eventualmente chegar a colher um 
determinado elemento de prova (o que também pode ocorrer pelas guardas 
municipais, seguranças de um estabelecimento público ou privado etc.), não deixa 
de representar um minus, em nada comparável ao plus em que se assoma a atividade 
investigatória consolidada pela segunda no inquérito. 
A identifica-las, e quando muito, apenas a pertença a um mesmo gênero, qual 
seja o da polícia de segurança, que José Afonso da Silva assim delineia : 
A atividade da polícia realiza-se de vários modos, pelo que a 
polícia se distingue em administrativa e de segurança, esta 
compreende a polícia ostensiva e a polícia judiciária. A 
polícia administrativa tem “por objeto as limitações impostas 
a bens jurídicos individuais” (liberdade e propriedade). A 
polícia de segurança que, em sentido estrito, é a polícia 
ostensiva tem por objetivo a preservação da ordem pública e, 
pois, “as medidas preventivas que em sua prudência julga 
necessárias para evitar o dano ou o perigo para as pessoas”. 
Mas, apesar de toda vigilância, não é possível evitar o crime, 
sendo pois necessária a existência de um sistema que apure os 
fatos delituosos e cuide da perseguição aos seus agentes. Esse 
sistema envolve as atividades de investigação, de apuração 
das infrações penais, a indicação de sua autoria, assim como o 
processo judicial pertinente à punição do agente. É aí que 
entra a polícia judiciária, que tem por objetivo precisamente 
aquelas atividades de investigação, de apuração das infrações 
penais e de indicação de sua autoria, a fim de fornecer os 
elementos necessários ao Ministério Público em sua função 
repressiva das condutas criminosas, por via de ação penal 
pública.
142
 
Porém, sequer essa idéia nos agrada, já que se nos parece impositivo afastar 
da polícia judiciária, a bem de seus súperos objetivos, a responsabilidade direta pela 
realização da segurança pública, ou ainda pela execução de qualquer prestação 
inerente à função administrativa do Estado, pelas razões que adiante serão 
discorridas. 
 
142
 SILVA, José Afonso. Curso de Direito Constitucional Positivo, p. 754-755. 
83 
 
 
 
 
 
CAPÍTULO 2 – A EVOLUÇÃO ESTATAL COMO FATOR 
DETERMINANTE DA TRAJETÓRIA POLICIAL PELOS SÉCULOS 
2.1. Considerações preliminares. 
Como natural consectário da exposição efetuada no capítulo anterior, 
dedicado integralmente à focalização e ao esquadrinhamento da polícia em seu 
desenvolvimento histórico, resta agora, a toda evidência, tacitamente patenteada a 
sua relação de plena imanência com o Estado. 
Imperioso, com esse sentido, reconhecer que se hoje soa comezinha a 
assertiva que a segurança da comunidade, enquanto condição da segurança 
individual, compreende “a razão de ser do Estado”
143
, a realidade antes dissecada 
demonstrou que a polícia, ainda que existente e presente, nem sempre funcionou 
com o intuito de concretizar tão importante sina. 
De há muito, como já visto, tem a polícia se apresentado, em praticamente 
todo o mundo, como a face mais visível e imperativa do Estado, ordenando e 
proibindo. De outra parte, como também já salientado, a sua ausência, e ainda a 
insuficiência ou a inadequação de suas prestações, exsurgem comoeloqüentes e 
inelutáveis indicativos da omissão ou mesmo da inépcia estatal. Porém, é exato e 
necessário frisar que, por conta disso tudo, tanto aqui como alhures, o termo polícia 
sempre encontra dificuldades para adquirir uma conotação positiva, feliz, para no 
mais das vezes potencialmente traduzir algo próximo a uma idéia de 
constrangimento, carreando particularmente à nossa população brasileira, não raras 
vezes, mais inquietação e medo que tranqüilidade e segurança. 
 
143
 FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Aspectos do direito constitucional contemporâneo, p. 148. 
 
84 
 
No que concerne aos porquês dessas graves dissonâncias, insta atentar 
diretamente para a diversidade de variáveis fáticas e notadamente políticas 
encontradas a permear, no tempo e no espaço, as diversas sociedades. Por óbvio que 
não poderia ser avistada em um Estado totalitário uma força policial talhada a 
proceder dentro de padrões peculiares aos Estados democráticos. Mesmo quanto a 
esses, e nessa mesma linha, expressivas variações de condutas poderão ser 
igualmente detectadas, bastando tomar-se como medida o efetivo grau de cidadania 
conquistado e vivenciado pelas respectivas populações. Antonio Beristain inclusive 
propõe: “dize-me que polícia tens e eu dir-te-ei que democracia alcançaste”. 
144
 
Portanto, somente a rigorosa percepção dessa inquebrantável identificação 
entre Polícia e Estado é que permitirá a satisfatória compreensão dos motivos que 
determinaram a mencionada diversidade de formações, orientações, posturas e 
ações que até hoje caracterizam e distinguem essas forças, assim ao revelar a matriz 
eminentemente política das atividades jungidas à segurança pública e à justiça, 
enquanto inequívocas manifestações do poder estatal. 
Vale relembrar, dando melhor sentido à afirmação supra, o conceito 
weberiano de Estado, anotado por Bobbio como algo próximo a um “clichê da 
ciência política contemporânea”: “Por Estado deve-se entender uma empresa 
institucional de caráter político na qual – e na medida em que – o aparato 
administrativo leva adiante com sucesso uma pretensão de monopólio da força 
física legítima, tendo em vista a aplicação das disposições”. 
145
 
Acresça-se, por derradeiro, que aqui a voz “política”, seguidamente utilizada, 
não se abre a qualquer acepção, devendo genuinamente exprimir, segundo a lapidar 
lição de Diogo de Figueiredo Moreira Neto, a atividade voltada a “impregnar 
axiologicamente o poder, orientá-lo na prossecução dos fins e estabelecer os meios 
para alcançá-los”.
146
 
 
144
 BERISTAIN Antonio. Ética policial segun las Naciones Unidas, p. 24. 
145
 BOBBIO, Norberto. Teoria geral da política: a filosofia política e a lição dos clássicos, p. 165. 
146
 MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Teoria do poder (sistema de direito político: estudo 
juspolítico do poder, p. 28. Interessando a este estudo, prossegue o autor : “Ao Direito, por sua vez, 
85 
 
Não haveria a polícia, certamente, de destoar da configuração estatal geral, 
posto que, em todo tempo e lugar, seu aparecimento no cenário público a outro fim 
não se prestou além de tornar efetiva a “ordem” ditada pelos titulares do poder (um 
rei, um grupo, o povo). Portanto, constituída como o braço forte e armado do 
Estado, sempre teve seus movimentos – ora protegendo, ora agredindo, auxiliando 
ou sufocando, respeitando ou violando – controlados pela vontade política, segundo 
os valores circunstancialmente dominantes. Destarte, o conhecimento da alma 
policial impõe o prévio aclaramento do âmago estatal, sob o qual repousa aquela 
naturalmente imbricada. E ao deslinde dessa relação surge imprescindível uma 
breve incursão pela Ciência do Estado. 
2.2. A gênese estatal. 
Informa Dalmo de Abreu Dallari
147
 que, acerca do tema, triunfam nos dias 
correntes aquelas idéias que deduzem o Estado como produto da natural 
sociabilidade humana, na esteira da arguta conclusão de Aristóteles, que tinha o 
homem como um animal político. Com efeito, afirmava o eminente estagirita, e para 
além, que como tal devia o homem viver obrigatoriamente em sociedade, “e que 
aquele que, por instinto e não por inibição de qualquer circunstância, deixa de 
participar de uma cidade, é um ser vil ou superior ao homem”. 
148
 
Porém, e de outra ponta, ressoam ainda bastante fortes, como admite o 
precitado autor pátrio, as idéias contratualistas que professam, através de várias 
vertentes, haver o Estado surgido de um pacto celebrado entre os homens, qual 
antevisto por Platão em sua “A República”, onde vislumbrara, por meio do olhar 
socrático, o Estado como uma construção social racionalmente erigida.
149
 
 
incumbe zelar para que isto suceda. E é na confluência constitucional que políticos e juristas se encontram, 
para poder dar ao poder do Estado sua feição positiva, construtiva e dignificadora” (p. 29). Nessa mesma 
linha, Bobbio afiança a existência “pelo menos de um fim mínimo da política: a ordem pública nas relações 
internas e a defesa da integridade nacional nas relações de um Estado com os outros Estados. Esse fim é 
mínimo, porque é a conditio sine qua non para a realização de todos os outros fins, sendo portanto com eles 
compatível”.Teoria geral da política: a filosofia política e a lição dos clássicos, p. 167. 
147
 DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de teoria geral do estado, p. 07 e ss. 
148
 ARISTÓTELES. Política, p. 14. 
149
 PLATÃO. A república, p. 55 e ss. Vide diálogo, nº 3691-e, entabulado entre Sócrates e Adimanto. 
86 
 
Bobbio afiança que o Estado, ainda na versão absolutista, sempre manteve sua 
base teórica enraizada nas doutrinas contratualistas, que em síntese fundamentavam 
o poder estatal num livre acordo realizado pelos homens, que num indeterminado 
período do seu desenvolvimento decidiram a criação do Estado moderno
150
. 
De fato, foram exatamente essas teorias que, na vaza do jusnaturalismo
151
, 
forneceram os argumentos decisivos ao sopesamento da legitimidade e da 
conseqüente limitação do poder estatal, mormente por reconhecer às partes 
pactuantes, e assim aos súditos e cidadãos, direitos inalienáveis, cuja contrapartida 
redundava em deveres governamentais, especialmente no que pertine ao respeito e a 
proteção aos direitos inatos a todos os membros do Estado Civil. 
2.3. Os fins do Estado. 
Pontifica Bonavides que Kelsen, do alto de seu positivismo, proclamava a 
questão como imprópria a povoar as preocupações inerentes à Teoria do Estado, na 
 
150
 BOBBIO, Norberto. Direito e estado no pensamento de Emanuel Kant, p. 15 e ss. 
151
 Guido Fassò apresenta o Jusnaturalismo (Dicionário de Política, p. 655-660) como a doutrina “segundo a 
qual existe e pode ser conhecido um ‘direito natural’ (ius naturale), ou seja, um sistema de normas de 
conduta intersubjetiva diversa do sistema constituído pelas normas fixadas pelo Estado (direito positivo). 
Este Direito natural tem validade em si, é anterior e superior ao direito positivo e, em caso de conflito, é ele 
que deve prevalecer”. Acresce a essa explicação ainda, dois relevantes pontos: I - oposição do jusnaturalismo 
ao “positivismo jurídico”, como doutrina antiética, que reconhecendo que apenas o direito estabelecido pelo 
Estado possui validade, retira-lhe completamente qualquer fundamentação ética; II - a existência de diversas 
concepções jusnaturalistas, por vezes até mesmo conflitantes. Quanto às suas principais vertentes jurídico-
políticas, destaca: a) “a de uma lei estabelecida por vontade da divindade e por esta revelada aos homens”; b) 
“a de uma lei ‘natural’ em sentido estrito, fisicamente co-natural a todos os seres animados à guisa de 
instinto”e, c) “a de uma lei ditada pela razão, específica, portanto, do homem, que a encontra 
autonomamente dentro de si”. Ao meio dessas disputas aflorou, com o calvinista holandês Hugo Grócio, em 
1625, no célebre “De iure belli ac pacis”, a convicção que o direito natural (não sobrenatural) era ditado 
exclusivamente pela razão, “independente não só da vontade de Deus como também da própria existência”, 
servindo tal máxima como o marco de fundação do jusnaturalismo moderno. A esse direito, deveria o Direito 
Positivo adequar-se, sob pena de ser considerado ilegítimo, azando, em sentido contrário, o direito de 
desobediência e resistência aos seus destinatários. A característica mais marcante desse moderno naturalismo, 
já num passo adiante da pregação de Grócio, alude ao “aspecto subjetivo do direito natural, ou seja, os 
direitos inatos”, vindo a delinear “as doutrinas políticas de tendência individualista e liberal, expondo com 
firmeza a necessidade do respeito por parte da autoridade política daqueles que são declarados direitos inatos 
do indivíduo”. Firma-se, a esse ponto, a doutrina contratualista, afirmativa do Estado como organização 
política voltada exatamente a promover a perfeita tutela e garantia dos Direitos Naturais. Essa providência é 
que então, e somente, poderia legitimar a existência e atuação estatal, qual pactuado – entre súditos e 
soberano ou simplesmente entre homens – através do contrato social. As noções jusnaturalistas, dissonâncias 
e variações inclusas, povoam todos os conceitos de direitos inatos, estado de natureza e contrato social 
edificados durante os séculos XVII e XVIII. Nessa esteira, a doutrina do direito natural transformou a 
sociedade jurídica e política do período, podendo ser claramente entrevista, por exemplo, nos textos da 
Declaração de Independência dos Estados Unidos (1776) e da Declaração dos Direitos do Homem e do 
Cidadão (1789). 
87 
 
medida que o ente estatal não podia ser encarado como um fim em si mesmo, mas 
sim como um meio para todos os fins sociais. Dessa forma concluiu Helfritz que 
mais adequado seria cuidar das tarefas do Estado, mutáveis, no dizer de Nelson, 
consoante as concepções vigentes em determinada época histórica. Portanto, 
enfatiza o autor, “caberia assim à Teoria do Estado averiguar tão-somente ‘quais os 
fins que, nesta ou naquela época, neste ou naquele Estado, efetivamente se 
buscaram’” 
152
. 
Tais idéias, contudo, não foram compartilhadas pelos contratualistas, que já 
nas nascentes do jusnaturalismo, até Kant e Hegel, filiaram-se às teorias dos fins 
absolutos do Estado. Enquanto Grotius reportava-se ao “impulso social à 
convivência pacífica”, o qual remetia o indivíduo a vida estatal, Wolf destacava a 
busca da suficiência de vida, a tranqüilidade e a segurança como o móvel dessa 
empreitada. Hobbes justificava a existência estatal em face do medo do homem ao 
próprio homem – homo lupus hominis –, ao passo que Locke, assim como 
Rousseau, referiam-se à necessidade de proteção da propriedade. 
Kant, a sua vez, propugnava por um estado jurídico, cujo fim único era o de 
“estabelecer e manter a ordem jurídica”, através da qual deveria – como um 
“inspetor de quarteirão ou guarda de trânsito” na ótica de Bonavides – proteger o 
indivíduo contra a violência interna e externa. 
153
 
Como é possível constatar, cada variante do pensamento contratualista 
tencionava identificar os reais motivos que teriam levado os homens à realização do 
pacto social, pois somente assim haveriam de desvendar seus termos e, 
conseqüentemente, a face, o caráter e a vocação estatais. A partir, destarte, da 
tipologia estatal que por tais vias se houve desenvolvida – e ainda sem descurar da 
equação formulada por Nelson – emerge plausível o delineamento da evolução 
policial na forma antes proposta. 
 
 
152
 BONAVIDES, Paulo. Teoria do Estado, p. 20. 
153
 Ibidem, p. 30-44. 
88 
 
2.4. Estado absoluto. 
A definir esse Estado, Souza Júnior suscita Jean Bodin e a obra “Os Seis 
Livros da República”, onde a doutrina da soberania alude a um “supremo poder 
sobre cidadãos e súditos não limitado pelas leis”
154
. 
Prossegue o autor demonstrando, através da dicção de Bodin, o Estado 
Absoluto como aquele que concentrava todo o poder nas mãos do monarca: 
[...] todas as derivações do monopólio legislativo, como 
decretar a guerra e tratar a paz; instituir magistrados e 
funcionários; julgar em última instância, outorgar graças aos 
condenados, cunhar moedas, suspender derramas e impostos, 
deveriam ser exercidas pelo titular do poder de dar e suprimir 
a lei”. 
155
 
Em linha muito próxima, Thomas Hobbes também se ocupou da 
decomposição desse Estado: 
Tendo em vista conseguir a paz e através disso sua própria 
conservação, os homens criaram um homem artificial, ao qual 
chamamos Estado, assim também criaram cadeias artificiais, 
chamadas leis civis, as quais eles mesmos, mediante pactos 
mútuos, prenderam uma das pontas à boca daquele homem ou 
assembléia a quem confiaram o poder soberano e a outra 
ponto a seus próprios ouvidos. 
156
 
Sobre o poder do soberano e os direitos dos súditos teorizou: 
Cedo e transfiro meu direito de governar a mim mesmo a este 
homem, ou a esta assembléia de homens, com a condição de 
que transfiras a ele teu direito, autorizando de maneira 
semelhante, todas as suas ações. Feito isso a multidão assim 
unida numa só pessoa se chama Estado, em latim civitas. Esta 
é a geração daquele enorme Leviatã, ou antes – com toda 
reverência – daquele Deus mortal, ao qual devemos, abaixo 
do Deus Imortal, nossa paz e defesa. [...] “É nele que consiste 
 
154
 Apud SOUZA JÚNIOR, Cezar Saldanha. O tribunal constitucional como poder: uma nova teoria da 
divisão dos poderes, p.36. 
155
 Ibidem, p. 36. De bom alvitre registrar que antes o autor já salientara a existência de um certo exagero da 
expressão “absoluto” que adjetivava o Estado histórico em questão. Pode explicar que o monarca, ao menos 
no Estado estamental, peculiar ao início do período “absolutista”, mantinha-se preso a uma série de 
“costumes, tradições, privilégios corporativos e territoriais, a influência temporal da Igreja, a Inquisição, que 
sobreviviam da época feudal” (p. 33-34). 
156
HOBBES, Thomas. Leviatã ou matéria forma e poder de um estado eclesiástico e civil, p. 159. 
89 
 
a essência do Estado, que pode ser assim definida: ‘Uma 
grande multidão institui a uma pessoa, mediante pactos 
recíprocos uns com os outros, para em nome de cada um 
como autora, poder usar a força e os recursos de todos, da 
maneira que considerar conveniente, para assegurar a paz e a 
defesa comum’. Soberano é aquele que representa essa 
pessoa. Dele se diz que possui poder absoluto. Todos os 
outros são súditos. 
157
 
[...] ignoram que as leis não tem poder algum de protege-los, 
se não houver uma arma nas mãos de um homem ou homens 
encarregados de por as leis em execução. A liberdade dos 
súditos, portanto, está apenas naquelas coisas que, ao regular 
suas ações, o soberano permitiu. [...] Já foi mostrado que nada 
que o soberano representante faça a um súdito pode, sob 
qualquer pretexto, ser propriamente chamado injustiça ou 
injúria. Cada súdito é autor de todos os atos praticados pelo 
soberano, de modo que a este nunca falta o direito seja ao que 
for, a não ser na medida em que ele próprio é súdito de Deus, 
e nesse sentido obrigado a respeitar as leis naturais”. 
158
 
Hobbes, sustentando a ideologia absolutista sobre escora contratual, 
asseverava, assim, que os indivíduos, para a constituição do Estado, haviam 
renunciado voluntariamente, com base em um acordo recíproco, aos seus direitos 
em favor do soberano, a quem, portanto, deveriam, então, submeterem-se à margem 
de qualquer antagonismo. Em troca, tendo abandonado o estado de guerra inerenteà 
vida em natureza, recebiam a promessa de paz, somente concretizável no Estado 
Civil, em cujo seio passariam a gozar da proteção do monarca, segundo a ordem por 
ele unilateralmente estabelecida (governo dos homens). 
Nessa conjuntura, o trabalho policial resumir-se-ia ao cumprimento da 
vontade estatal, a sua feita totalmente contida nos desígnios reais. Em face de um 
soberano injusto, que somente haveria de instituir uma ordem igualmente destituída 
de justos predicados, os agentes da polícia real infalivelmente serviriam ao arbítrio. 
E mesmo quando assim não fosse, naturalmente tenderiam esses prepostos do 
príncipe a abusar dessa condição, qual inerente àqueles que detém o poder (como 
desde os gregos já fora assentado). Tomando por exemplo a Inglaterra, 
 
157
 Ibidem., p. 131. 
158
 Ibidem, p. 160. 
90 
 
precisamente por ser a pátria de Hobbes, vemos que foram exatamente esses abusos 
que levaram ao progressivo encolhimento da monarquia inglesa, subjugada pelos 
súditos, após séculos de lutas intentadas contra seus desmandos totalitários. 
159
 
Ressalta, ademais, Damião da Cunha, que no âmbito da persecução criminal, 
o Estado Absoluto logo agasalhou o princípio inquisitivo, ensejando o 
fortalecimento do aparelho policial. Pondera que se é verdade que a investigação 
competia a um juiz, é igualmente certo afirmar que o magistrado, enquanto mero 
funcionário real, longe se encontrava de servir aos escopos de justiça, mas sim, e em 
consonância ao espírito da época e à própria essência estatal, empenhado em 
garantir, através do exercício do jus puniendi, a “boa-ordem” e o “bem-estar” da 
comunidade. Alude, nessa esteira, à “policiarização” do processo penal, 
emprestando a essa expressão conotação indiscutivelmente desfavorável, vinculada 
a “total administrativização da fase de investigação e das entidades dela 
encarregadas”
160
, e conseqüentemente a sua desvalia à realização da justiça. 
2.5. O Estado de direito. 
Eis a lição de Duguit : 
Considerando o poder político fato legítimo, infere-se que as 
ordens desse poder são também legítimas quando se 
conformam com o direito; a par com isso, o emprego do 
constrangimento material pelo poder político é autêntico 
quando visa assegurar a sanção do direito. Nem uma entidade 
possui o direito de mandar nos outros sem que suas 
determinações se conformem com as normas do direito, seja 
 
159
 Lembra Bobbio (Direito e estado no pensamento de Emanuel Kant, p. 29-31) que, na realidade, a 
monarquia inglesa nunca conseguiu se caracterizar como absoluta, mesmo antes da Magna Carta, em 1215. 
Cortou suas últimas amarras com essa possibilidade quando derrotada na Revolução Gloriosa, iniciada em 
1688. Pouco a pouco, o Estado inglês foi conformando-se como um Estado misto, acolhedor dos princípios 
monárquico, aristocrático e democrático (formas típicas de governo segundo Aristóteles). De fato, essas três 
forças conviviam no poder, por intermédio do rei e das câmaras alta e baixa. Assim, não havia apenas um 
órgão soberano, mas três órgãos a partilhar o poder. Ademais, a divisão do poder na Inglaterra guardava outra 
particularidade, posto que além do poder de governo sempre existiu naquelas plagas o poder jurisdicional, 
que controlava o primeiro, não em sua ação política, mas em seu relacionamento com os cidadãos, protegidos 
pelo common law (by law of the land). Assim, o direito comum, para muito além de natural, era verdadeiro 
direito positivo, garantido e protegido no próprio interior do ordenamento jurídico, a gerar, segundo a dicção 
de José Afonso da Silva (Curso de direito constitucional positivo, p. 152), “os fundamentos da ordem 
jurídica democrática do povo inglês”. 
160
 DAMIÃO DA CUNHA, José Manuel. O ministério público e os órgãos de polícia criminal, pp. 26-30. 
91 
 
esta entidade um rei, um parlamento, um imperador, ou uma 
assembléia popular. Portanto, a discussão acerca do fim a que 
se destina o Estado, ou poder político, pode ser esclarecida 
considerando-se que o poder político tem por fim realizar o 
direito, comprometendo-se em virtude do direito, a realizar 
tudo o que estiver ao seu alcance para assegurar o reino do 
direito. O Estado fundamenta-se na força, e esta força 
legitima-se quando exercida em conformidade com o 
direito.
161
 
Fundado com a precípua intenção de servir de antídoto a qualquer pretensão 
de concentração do poder, o Estado de Direito soergueu-se sobre três postulados 
básicos, a saber : I) submissão ao império da lei (considerada como expressão da 
vontade geral reconhecida pelo Poder Legislativo); II) separação dos poderes; e, III) 
enunciado e garantia dos direitos individuais.
162
 
Se, por um lado, o seu surgimento deve ser comemorado, tanto por 
patrocinar o fim da acumulação do poder no âmbito estatal, quanto por equacionar 
um “governo das leis” em substituição ao antigo e opressor “governo dos homens”, 
por outro, se faz suscetível à crítica, mercê da imprecisão peculiar ao termo 
“direito”, o qual, sendo capaz de incorporar as mais diversas concepções, acaba por 
tornar corolária e inexoravelmente ambígua a vocação do Estado, assim qualificado. 
Recorrendo-se, por exemplo, ao conceito apenas formal de direito, ter-se-á 
simplesmente configurado um Estado Legislativo ou Legal, passível de servir a toda 
sorte de propósitos, inclusive àqueles, como a história registra, de índole 
paradoxalmente ditatorial.
163
 
O Estado de Direito, portanto, deverá ser estudado a lume da idéia nuclear 
sobre o conteúdo e a função do direito predominante em um determinado momento 
histórico, na forma adiante delineada. 
 
161
 DUGUIT, Leon. Fundamentos do direito, p. 51. Ressalta mais à frente esse autor sua crença “que o 
Estado jamais poderá elaborar uma lei que atente contra direitos particulares naturais. A sua intervenção 
consiste, pela lei, em restringir os direitos de cada um, visando o equilíbrio da manutenção dos direitos de 
todas as pessoas” (p. 60-61). 
162
 SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. Op. cit., p. 112. 
163
 DUGUIT, Leon. Op.. cit., p. 113-114. Bonavides comenta, que o regime burguês primeiro serviu-se do 
direito natural para derrotar o absolutismo real, e depois do direito positivo para manter sua hegemonia 
(Teoria do Estado. Op. cit., p. 224). 
92 
 
2.5.1. Estado Liberal de Direito. 
Pontua Manoel Gonçalves Ferreira Filho, que no século XVIII, “a idéia de 
direito que então se generalizava, e que inspira as revoluções americana e francesa, 
é tão marcada pela preocupação com a liberdade, que se tornou conhecida como 
‘liberal’”. 
164
 
O Estado Liberal teve em John Locke seu principal formulador. A sua 
doutrina política contempla o estado civil como uma continuidade do estado natural, 
no qual o homem ingressa sem necessidade de renunciar a qualquer dos seus 
direitos inatos
165
, diversamente do que afirmava Hobbes. A existência do estado 
civil, aliás, somente podia ser justificada e legitimada pela garantia da proteção 
desses direitos fundamentais. Como representante típico do Estado burguês 
reconhecia a propriedade como um direito natural, cuja aquisição independia do 
estado civil, mas sim e apenas do trabalho (concepção contestada à vista da 
insolúvel questão referente ao trabalho desenvolvido justamente em “propriedade” 
alheia). Proclamava Locke: 
A liberdade natural do homem nada mais é que não estar 
sujeito a qualquer poder terreno, e não submetido à vontade 
ou à autoridade legislativa do homem, tendo como única regra 
apenas a lei da natureza. A liberdade do indivíduo na 
sociedade não deve estar subordinada a qualquer poder 
legislativo que não aquele estabelecido pelo consentimento da 
comunidade, nem sob o domínio de qualquer vontade ou 
restrição de qualquerlei, a não ser aquela promulgada por tal 
legislativo conforme o crédito que lhe foi confiado. 
166
 
[...] 
O homem nasce com direito à perfeita liberdade e gozo 
ilimitado de todos os direitos e privilégios da lei da natureza, 
tanto quanto qualquer homem ou grupo de homens, e tem, 
nessa natureza, o direito não só de preservar sua propriedade – 
isto é, a vida, a liberdade e as posses – contra os danos e 
ataques de outros homens, mas também de julgar e punir a 
 
164
 FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Estado de direito e constituição, p. 1. 
165
 A Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789, dispunha já em seu art. 1
o
 : “O fim da 
sociedade é a felicidade comum. O governo é instituído para garantir ao homem o gozo desses direitos 
naturais e imprescritíveis”. 
166
 LOCKE, John. Segundo tratado sobre o governo, p. 35. 
93 
 
infração dessas leis pelos outros […] contudo, uma vez que 
uma sociedade política não pode existir nem manter-se sem 
ter em si o poder de preservar a propriedade e, para isso punir 
as ofensas cometidas contra qualquer dos seus membros, só 
podemos afirmar que há sociedade política quando cada um 
dos membros abrir mão do próprio direito natural 
transferindo-o à comunidade, em todos os casos passíveis de 
recursos à proteção da lei por ela estabelecida. E assim, 
excluído o julgamento privado de cada cidadão particular, a 
comunidade torna-se árbitro em virtude de regras fixas 
estabelecidas.
167
 
O único modo legítimo pelo qual alguém abre mão de sua 
liberdade natural e assume laços da sociedade civil consiste 
no acordo com outras pessoas para se juntar e unir-se em 
comunidade, para viverem com segurança, conforto e paz 
umas com as outras, com a garantia de gozar de suas posses, e 
de maior proteção contra quem não faça parte dela. 
168
 
O maior e principal objetivo, portanto, dos homens se 
reunirem em comunidades, aceitando um governo comum, é a 
preservação da propriedade. 
169
 
A liberdade burguesa, contudo, não ia além de uma liberdade negativa, ou 
seja, consistia apenas na “possibilidade de agir sem ser impedido, ou de não agir 
sem ser obrigado, por outros sujeitos”
170
, e especialmente pelo Estado. Afora isso, 
essa primeira versão de Estado de Direito jamais revelou qualquer preocupação 
emancipatória, emergindo, ao contrário, absolutamente discriminatória, pontuando 
Silva que o próprio “mandato representativo é criação do Estado liberal burguês, 
ainda como um dos meios de manter distintos sociedade e Estado, e mais uma 
forma de tornar abstrata a relação governo-povo”.
171
 
 
167
 Ibidem, p. 69. 
168
 Ibidem, p. 76. 
169
 Ibidem, p. 92. 
170
 BOBBIO, Norberto. Igualdade e liberdade, p. 48.Esclarece o autor que a essa forma se contrapõe a 
denominada liberdade positiva, isto é, condizente com a capacidade do indivíduo de autodeterminar-se, e 
assim agir conforme o seu próprio querer, mirando um objetivo próprio, que não lhe foi imposto por terceiro. 
Trata-se, pois, de verdadeira “autonomia”, delineada por Rousseau, no Contrato Social : princípios de 
direito político, como “a obediência às leis que prescrevemos para nós” (p. 51-52). 
171
 SILVA, José Afonso. Curso de Direito Constitucional Positivo, p 139. Reforça-o Paulo Bonavides : “O 
Abade de Sieyés, menos um epígono do que uma coluna de sustentação do sistema representativo, fora mais 
autêntico na defesa desse sistema, porquanto quase lhe retirava o caráter democrático ao asseverar, passional, 
que, se os cidadãos ditassem sua vontade, já não se trataria de Estado representativo, mas de Estado 
democrático” (A constituição aberta, p. 25-26). 
94 
 
Anote-se, por último, a tese insofismavelmente aristocrática propalada por 
Montesquieu, que ditava ao povo grande excelência para a escolha de 
representantes, mas nenhuma capacidade para governar. 
172
 
Fica patente, dessa forma, que na sociedade liberal, a igualdade sofria, na 
prática, uma verdadeira desconsideração, permanecendo, e quando muito, 
reverenciada apenas no plano dos discursos. 
Comenta Celso Ribeiro Bastos que os burgueses almejavam o máximo de 
bem-estar com a menor presença possível do Estado
173
. Dele se esperava somente a 
organização do exército, para a proteção contra o inimigo alienígena, e a garantia da 
tranqüilidade interna, através da polícia e do judiciário, incumbidos de aplicar as 
leis. 
174
 
À polícia, nessa conjuntura, cabia a defesa da liberdade, porém, como 
assevera Dallari, exclusivamente da “liberdade do rico, da liberdade de quem tinha 
patrimônio”, que era quem única e efetivamente contava nessa incipiente sociedade 
liberal. 
A polícia devia conter os pobres, aqueles que teoricamente desejavam ou 
poderiam aspirar a possuir o patrimônio depositado nas mãos dos ricos. A única 
matéria-prima policial compreendia, destarte, a escória, ou seja, a parte mais 
desprezível da sociedade, a turba, a massa chula e faminta de sans-culottes, já 
completamente afastadas da vida política e econômica no estado liberal. Prossegue 
esse autor : “A Polícia era coisa para usar contra pobres … Por que é que precisa ser 
boa ? Para isso qualquer coisa serve. O importante é que ela reprima”. 
175
 
2.5.2. O Estado Social de Direito. 
 
172
 MONTESQUIEU. O espírito das leis, p. 85-87 
173
 Conforme a famosa máxima: “Deixai fazer, deixai passar, o mundo caminha por si só” (Laissez faire, 
laissez passer, lê monde va de lui-même). 
174
 BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de teoria do estado e ciência política, p. 68-70. Assinala o autor que o 
Estado assumia-se absolutamente neutro do ponto de vista moral, acreditando até que “o jogo dos diversos 
egoísmos produziria o bem-estar coletivo”. 
175
 DALLARI, Dalmo de Abreu. Polícia e as garantias de liberdade, p. 40. 
95 
 
Ao encerrar o Livro I da sua principal obra, “O Contrato Social”, Rousseau 
fez questão de consignar que a busca da igualdade devia “servir de base a todo o 
sistema social” contratualmente fundado, declarando: 
Em vez de destruir a igualdade natural, o pacto fundamental 
substitui, ao contrário, por uma igualdade moral e legítima 
aquilo que a natureza poderia trazer de desigualdade física 
entre os homens, e, podendo ser desiguais em força ou talento, 
todos se tornam iguais por convenção e de direito. 
176
 
Depois, e através de nota de rodapé, explicitou: 
Sob os maus governos, essa igualdade é apenas aparente e 
ilusória: serve somente para manter o pobre em sua miséria e 
o rico em sua usurpação. Na realidade, as leis são sempre úteis 
aos que possuem e prejudiciais aos que nada tem. Donde se 
segue que o estado social só é vantajoso aos homens na 
medida em que todos têm alguma coisa e nenhum tem demais. 
A verdade é que as caudais frustrações geradas pela absoluta falta de 
correspondência entre as promessas de justiça e prosperidade formuladas pelas 
doutrinas liberais e as práticas dos regimes afins azaram múltiplas e, por vezes, até 
ferozes reações populares. 
Com efeito, um grave quadro de deterioração social, provocado pelos efeitos 
da aliança firmada pelo Estado liberal com o capitalismo, reinava na Europa e 
também nos EUA. Esse sistema, que deitava suas raízes na revolução industrial, 
levava à concentração das riquezas produzidas nas mãos de poucos empresários ou 
da burguesia. A classe trabalhadora permanecia, tal como estivera sob o 
absolutismo, mergulhada numa situação de penúria, espremida entre o desemprego 
e os baixos salários. Nas fábricas e minas, eram péssimas as condições de trabalho, 
labutando os operários, e entre eles mulheres e crianças, em condições no mais das 
vezes insalubres e perigosas. 
Como natural conseqüência, afloraram, entre tais desafortunados, 
movimentos de hostilidade dirigidos contra os ricos e poderosos, dentrodo contexto 
 
176
 ROUSSEAU, Jean-Jacques. O contrato social: princípios de direito político, p. 29-30. 
96 
 
marxista da luta de classes, com episódios revolucionários, de recrutamento de 
ativistas a terroristas. A funcionar como um paliativo diante dessa cada vez mais 
efervescente situação, foram sendo paulatinamente concedidos direitos políticos a 
parcelas cada vez maiores da população desfavorecida. 
Diante desses novos cidadãos-eleitores, os políticos passaram a acenar com 
as reformas necessárias a melhoria da vida da classe proletária. De fato, à solução 
do impasse gerado pela insensibilidade burguesa não havia mais do que duas 
opções: a reconstrução social, defendida pelo positivismo, pelo socialismo 
democrático e pelo cristianismo social, ou a revolução, pregada por Marx e seus 
seguidores, com a extinção das classes exploradoras. 
177
 
“Para enfrentar essa maré social”, comenta José Afonso da Silva, o Estado de 
Direito - “que já não podia justificar-se como liberal”, mas que prosseguia fiel ao 
“primado do Direito” – assumiu a forma de Estado Social de Direito, prometendo a 
“correção do individualismo clássico liberal pela afirmação dos chamados direitos 
sociais e realização de objetivos de justiça social”.
178
 
Salienta, porém, esse autor que, historicamente, o Estado Social de Direito 
nunca foi capaz de promover a justiça social, também jamais tendo alcançado, de 
outra parte, melhor êxito no que tange ao exercício democrático do poder. Os 
inúmeros entendimentos possíveis acerca do significado do termo “social”, bem 
como a dificuldade de se uniformizar a compreensão a respeito das condições que 
serviriam a genuinamente caracterizar tanto a “justiça” quanto o “bem-estar” 
àqueles jungidos, ensejaram o aparecimento de Estados que, nada obstante 
apresentando-se completamente díspares, irrogavam-se a versada qualificação, 
dentre os quais, e.g., fulguraram, de um lado a Alemanha nazista, a Itália fascista e 
o Brasil getulista e, de outro, a Inglaterra de Churchill. 
179
 
 
177
 FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Direitos humanos fundamentais, p. 41-45. 
178
 SILVA, José Afonso da. In Curso de Direito Constitucional Positivo, p. 115. Citação de Elías Días, in 
Estado de derecho y sociedade democrática, p. 29 e ss. 
179
 Ibidem, p. 116 e 118. 
97 
 
Essa observável tendência de maior identificação do estado social com 
regimes nitidamente totalitários pôde ser melhor entendida à vista de dois motivos 
em especial : I) aos moldes do que antes ocorrera no liberalismo em prol da 
liberdade, o igualitarismo conferiu à igualdade supremacia em relação a todo e 
qualquer outro valor. A busca e a conquista da igualdade, nesse diapasão, 
justificariam, por si só, o eventual sacrifício de outros valores que, nessa focalizada 
escala, ostentam-se menores e secundários, qual historicamente verificado em 
relação à liberdade individual; e, II) à realização de seus propósitos igualitários, 
anota Bonavides, o estado social fez do intervencionismo a sua marca registrada
180
. 
Daí sua instintiva inclinação, mercê da natureza potestativa dessa atividade, 
ao autoritarismo. É induvidoso, nessa conjuntura, que se porventura exercida fora 
de certos limites, a intervenção converter-se-ia automaticamente em instrumento de 
opressão, ferindo, logo em primeiro plano, a liberdade. 
Num Estado assim configurado a polícia haveria de se revelar 
inevitavelmente arbitrária, pautando-se pelo desprezo institucional e 
generalizadamente devotado aos direitos humanos fundamentais. Eis o 
procedimento comum às temíveis e violentas polícias nazista e fascista e, no Brasil, 
à polícia getulista, cujos compromissos com as respectivas, e nada democráticas, 
ordens estatais, levavam, aos moldes antevistos, à repressão daqueles que a elas 
ousavam de qualquer forma se opor, ainda que no plano do pensamento. 
2.5.3. O Estado Democrático de Direito. 
Diretamente dimanadas dos abusos perpetrados em nome da igualdade e da 
justiça, as ondas de tensão e de violência irradiadas daqueles Estados nominalmente 
sociais não tardaram a irromper no âmbito internacional. O mundo convulsionado, 
ideologicamente esgarçado, foi à guerra. Uma vez cessados os combates, teve início 
a reconstrução da paz, perseguida pela incipiente Organização das Nações Unidas, 
como objetivo sólido e perene. Em 1948, como parte da estratégia e dos esforços 
 
180
 BONAVIDES, Paulo. Teoria do Estado, p. 227. 
98 
 
encetados nesse afã, a Declaração Universal dos Direitos do Homem
181
 apresentou a 
democracia como “a única solução legítima para a organização do Estado”. 
Com efeito, como prossegue Comparato, focalizando os arts. XXI e XXIX, 
alínea 2, desse documento, apenas esse regime político pode ser reconhecido como 
capaz de garantir o pleno respeito aos direitos fundamentais da pessoa humana, 
promovendo e conservando a dignidade que se lhe apresenta intrínseca
182
. Muito 
embora boa parte do seu texto tenha apenas repetido disposições já ínsitas em outras 
declarações que a precederam no tempo, esse diploma trouxe, na óptica de Bobbio, 
uma decisiva novidade, relacionada ao “âmbito de validade de suas disposições”: 
os direitos naturais reconhecidos enfim pela Assembléia Geral 
das Nações Unidas, isto é, pelo mais alto órgão representativo 
da comunidade internacional, tendem a ser protegidos não 
apenas no âmbito do Estado, mas também contra o próprio 
Estado, vale dizer, tendem a uma proteção que podemos 
considerar de segundo grau, a qual deveria entrar em 
funcionamento a partir do momento em que o Estado falhasse 
em suas obrigações constitucionais para com seus sujeitos. 
183
 
A partir daí, a bandeira internacionalmente desfraldada na luta em favor dos 
direitos humanos, e contrariamente a todas as formas de opressão, passou a ostentar 
o colorido democrático, que à sua vez, e ainda na dicção desse grande publicista 
italiano, firmou-se como “uma antítese de todas as formas autocráticas de poder”
184
. 
É exatamente com base na lição desse notável jusfilósofo que Canotilho proclama: 
 
181
 Aprovada pela Assembléia Geral, à guisa de recomendação (consoante o disposto no art. 10 da Carta das 
Nações Unidas), na sessão de 10 de dezembro. 
182
 COMPARATO, Fábio Konder. A afirmação histórica dos direitos humanos, p. 234. 
183
 BOBBIO, Norberto. In Teoria Geral da Política, p. 485. Imperioso abrir espaço, contudo, à advertência 
de Bonavides: “A Declaração Universal dos Direitos do Homem é o estatuto de liberdade de todos os povos, 
a Constituição das Nações Unidas, a carta magna das minorias oprimidas, o código das nacionalidades, a 
esperança, enfim, de promover, sem distinção de raça, sexo e religião, o respeito à dignidade do ser humano. 
A Declaração será porém um texto meramente romântico de bons propósitos e louvável retórica, se os países 
signatários da Carta não se aparelharem de meios e órgãos com que cumprir as regras estabelecidas naquele 
documento de proteção dos direitos fundamentais e sobretudo produzir uma consciência nacional de que tais 
direitos são invioláveis” (Curso de direito constitucional, p. 531). 
184
 Ibidem, p. 387. Bobbio lembra, ademais, que até hoje não se tem registro de uma guerra entre dois estados 
dirigidos por regimes democráticos. E mais: “Existem democracias mais sólidas e menos sólidas, mais 
invulneráveis e mais vulneráveis, existem diversos graus de aproximação com o modelo ideal, mas mesmo a 
democracia mais distante do modelo não pode ser de modo algum confundida com um estado autocrático e 
menos ainda com um totalitário”. O futuro da democracia (uma defesa das regras do jogo), p. 37-38. 
99 
 
A democracia distingui-se de todas as formas de governos 
autocráticos porque secaracteriza por um sistema de regras, 
primárias e fundamentais que estabelecem: (1) quem está 
autorizado a tomar decisões colectivas; (2) quais os processos 
para essa tomada de decisões. De um modo mais informativo, 
uma decisão mínima de democracia implica: (a) participação 
de um número tão elevado de cidadãos quanto possível; (b) 
regra da maioria para a tomada de decisões colectivas e 
vinculantes; (c) existência de alternativas reais e sérias que 
permitam opções aos cidadãos de escolher entre governantes e 
programas políticos; (d) garantia de direitos de liberdades e 
participação políticas. Esses requisitos mínimos estão 
reunidos no estado de direito democrático. 
185
 (Sic) 
Como precisamente pontua Vieira, a contenção do arbítrio estatal, no 
contexto democrático, é operada não apenas pela participação política dos cidadãos 
no jogo do poder, mas, também, graças às “garantias jurídicas efetivas” que 
permitem, em face do resguardo dos direitos e das liberdades fundamentais, que 
esse mesmo jogo seja realmente disputado, transcorrendo, o máximo possível, 
limpo e interessante
186
. 
Ainda com maior exatidão, Comparato resume a democracia a uma simples e 
eficaz equação: soberania popular + respeito aos direitos humanos.
187
 Congregando 
todos esses convergentes entendimentos concluiu Silva que a democracia é “meio e 
instrumento de realização de valores essenciais de convivência humana, que se 
traduzem nos direitos fundamentais do homem”
188
. 
 
185
 CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição, p. 1324. 
186
 VIEIRA, Oscar Vilhena. A violação sistemática dos direitos humanos como limite à consolidação do 
estado de direito no Brasil. In DI GIORGI, Beatriz et al (Coords.) Direito, cidadania e justiça: ensaios 
sobre lógica, interpretação, teoria, sociologia e filosofia jurídicas, p. 189. 
187
 COMPARATO, Fábio Konder. A polícia e a ética na segurança pública, p. 94. Ressalta, porém, “a 
democracia que seja só soberania popular pode descambar para a tirania da maioria, que pode ser (e 
geralmente é) a mais cruenta das tiranias”. 
188
 SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo, p. 125. De fato, a democracia 
colima a realização fundamental e harmoniosa dos valores da liberdade e da igualdade, jamais concretizada 
pelos Estados Liberal e Social. É o que afirma Bobbio: “Liberdade e igualdade são os valores que servem de 
fundamento à democracia”. Completa ponderando que “a democracia é não tanto uma sociedade de livres e 
iguais (porque, como se disse, tal sociedade é apenas um ideal-limite), mas uma sociedade regulada de tal 
modo que os indivíduos que a compõe são mais livres e iguais do que em qualquer outra forma de 
convivência” (Liberdade e igualdade, p. 8). Aléxis de Tocqueville já bem o dissera: “Pode-se imaginar que 
todos os cidadãos participam do governo e que cada um deles tem igual direito de participar. Ao não diferir 
em absoluto dos demais, ninguém pode exercer um poder tirânico; os homens serão perfeitamente livres 
100 
 
O Estado de Direito, portanto, quando impregnado de sentido e conteúdo 
democráticos, abandona sua antiga e criticada postura neutral
189
 para se tornar, 
segundo leciona esse autor, promotor e garante “de um processo de convivência 
social numa sociedade justa, livre e solidária (...) de um processo de liberação da 
pessoa humana das formas de opressão que não depende apenas do reconhecimento 
formal de certos direitos individuais, políticos e sociais, mas especialmente da 
vigência de condições econômicas suscetíveis de favorecer o seu pleno 
exercício”.
190
 
Assim, o Estado Democrático de Direito faz entranhar os valores da 
democracia – que na dignidade da pessoa humana tem o seu ponto mais alto e de 
convergência – em todos os elementos conformadores do Estado, dentre os quais se 
destacam, em consonância ao interesse deste trabalho, a sua ordem jurídica e os 
seus organismos policiais, que nesse diapasão aparecem absolutamente vinculados 
na medida em que a legitimidade da atuação policial repousará exclusivamente no 
exercício: I – levado a efeito em plena conformidade com uma ordem jurídica 
fulcrada no princípio democrático, e, dessarte, absolutamente comprometida com os 
direitos fundamentais; II – destinado, única e inalienavelmente, a assegurar a 
realização desse Direito democrático. 
Adverte Dallari, que a ordem jurídica somente poderá ser genuinamente 
democrática quando servir como um instrumento assecuratório da paz entre 
 
porque são completamente iguais, e serão perfeitamente iguais porque são completamente livres. Pois bem, 
tal o ideal a que tendem os povos democráticos” (Igualdade social e liberdade política, p.103). 
189
 Afirma Celso Ribeiro Bastos: “Diferentemente do Estado de Direito – que, no dizer de Otto Mayer, é o 
direito administrativo bem ordenado – no Estado Democrático importa saber a que as normas o Estado e o 
próprio cidadão estão submetidos. Portanto, no entendimento de Estado Democrático devem ser levados em 
conta perseguir certos fins, guiando-se por certos valores, o que não ocorre de forma tão explícita no Estado 
de Direito, que se resume em submeter-se às leis, sejam elas quais forem”. Curso de direito constitucional, 
p. 157. 
190
 SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo, p. 119-120. O autor, fazendo coro 
com Canotilho, estrutura o Estado Democrático de Direito sobre os seguintes princípios: da 
constitucionalidade, referente à irrestrita subordinação do exercício do poder à Constituição rígida e reflexa, à 
vontade popular; democrático, alusivo à implantação de sistema representativo, participativo e sempre 
pluralista, como “garantia geral da vigência e eficácia dos direitos fundamentais”; sistema de direitos 
fundamentais, a saber: individuais, coletivos, sociais e culturais; da justiça social, a alicerçar a ordem 
econômica e a ordem social; da igualdade, da divisão dos poderes e da independência do juiz; da legalidade e 
da segurança jurídica (p. 122). 
101 
 
“pessoas livres e essencialmente iguais”
191
. Tal ordem, nesse passo, exsurge como 
“um fator de segurança”, e deve, como pontifica Comparato, proteger os indivíduos 
e a sociedade “contra os abusos do poder político, contra os crimes dos malfeitores 
particulares, contra os riscos naturais de acidentes em geral, contra os riscos sociais 
da ignorância, de doença, de desemprego e de miséria”
192
. E a toda essa gama de 
atividades, emenda, reclama-se hodiernamente a presença e a firme atuação policial. 
Assevera Molina, nessa medida, que descabe à polícia ocupar-se apenas do crime, 
ao mesmo tempo que hoje descabe à sociedade considerá-lo como um tema de 
interesse exclusivo da polícia. 
193
 
Em resumo, deverá a Polícia, no Estado Democrático, fazer-se efetiva na 
defesa e na ultimação da dignidade da pessoa humana, não mais podendo, qual se 
lhe apresentou histórico e comum aos Estados absoluto, liberal e social, servir só e 
cegamente aos detentores do poder, auspiciando, com a força, os interesses isolados 
e assim ilegítimos dos grupos momentaneamente dominantes. 
Particularmente, no que tange à contenção da criminalidade, o grande desafio 
dessa polícia democrática, como tantas vezes já se proclamou, consiste em 
sobrepujar o delito sem cometê-lo, ou seja, preservando os direitos de todos aqueles 
suspeitos de havê-lo perpetrado. 
É o desafio da eficiência – entendida como uma obrigação de meios e não de 
resultado (eficácia) – que no Estado de Direito somente haverá de ser reconhecida 
quando conjugada com a legalidade
194
, já no Estado Democrático de Direito, 
quando permeada de legitimidade
195
. Ou, como afiança Hassemer:191
 Op. cit., p. 47. 
192
 Op. cit., p. 97. 
193
 MOLINA, Antonio Garcia-Pablos de. Polícia e Criminalidade no Estado de Direito, .p. 275. 
194
 Vide a respeito O Princípio da Eficiência no Direito Administrativo, de Antonio Carlos Cintra do 
Amaral. 
195
 Atinando para as ciências políticas, De Plácido e Silva (op. cit.) apresenta a legitimidade como qualidade 
necessária a tornar válida a atuação estatal em face dos cidadãos. José Afonso da Silva, à sua vez, prende a 
noção de legitimidade à idéia de ordem justa, constituída pelos valores necessários à “existência de uma 
sociedade livre”, que permeando a legalidade haverão de torna-la, para muito além de seu aspecto formal, 
instrumento de “realização das condições necessárias para o desenvolvimento da dignidade humana” (op. cit., 
p. 423). Sobre as contínuas tentativas de volatização desse conceito – abandonando-se a crença na legalidade 
em favor de uma legalidade sem crença - auspiciadas pelo formalismo jurídico e sob a premência do 
102 
 
Não existe nenhum tipo de “igualdade de armas” entre a 
criminalidade e o Estado que a combate, no sentido de uma 
permissão aos órgãos estatais para utilizar todos os meios 
que se encontram ao alcance dos criminosos. O Estado 
necessita, também em face da população, de uma 
prevalência moral sobre o delito, que não seja apenas 
fundamentada normativamente mas que também atue de 
maneira prático-simbólica. O Estado não deve utilizar 
métodos criminosos já que perderia essa prevalência e com 
isso, e a longo prazo, poria em perigo a credibilidade e a 
confiança da população na ordem jurídica estatal. 
196
 
 Tal advertência certamente serve, e até em tom de admoestação, ao Estado 
Democrático de Direito brasileiro, esse novo e ainda ilustre desconhecido, como a 
sua própria prática policial insiste em brutalmente afiançar. 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
procedimentalismo sociológico, vide Paulo Bonavides em “A Despolitização da Legitimidade” (A 
Constituição Aberta, pp. 33-51) 
196
 HASSEMER, Winfried. Limites del estado de derecho para el combate contra la criminalidade 
organizada, p. 29. 
 
103 
 
 
 
 
 
CAPÍTULO 3 - O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO BRASILEIRO, 
A REALIDADE NACIONAL E O PAPEL RESERVADO À POLÍCIA 
3.1. Antelóquio. 
Em 5 de outubro de 1988, foi promulgada a sétima Constituição brasileira, 
saudada com o alvissareiro título de “cidadã”, pelo presidente da Assembléia 
Nacional Constituinte, o deputado Ulysses Guimarães, que com seu peculiar e 
contagioso otimismo, atribui-lhe um papel inédito na história pátria: o de introduzir 
“o homem no Estado, fazendo-o credor de direitos e serviços”
197
. 
Discursando, nessa mesma ocasião, Afonso Arinos também apontou para o 
futuro, afiançando que a aplicabilidade do texto constitucional aprovado dependeria, 
“paradoxalmente, da sua aplicação”
198
. 
A verdade é que a nossa mais nova Constituição já nasceu sob o signo da 
controvérsia. Mesmo antes de adotada, já suportara o ataque do Presidente da 
República, que perante a nação declarou-a um risco, prenunciando, e em tom 
profético, a falência do sistema de seguridade social, a inconseqüente majoração dos 
gastos públicos, o reinício da guerra fiscal entre os Estados, a desorganização do 
serviço público, dentre outros malefícios de próxima magnitude. Bradou-a, enfim, 
esteio da ingovernabilidade, “a chave de frustração para 30 milhões de brasileiros 
que vivem na pobreza absoluta”. E uma vez mais vaticinou: “muitas categorias 
podem julgar-se aquinhoadas na Constituição, mas, no fim, não terão condições de 
receber o que lhes prometeram”
199
. 
 
197
 Apud BONAVIDES & ANDRADE. Op. cit., p. 922. 
198
 Ibidem, p. 927. 
199
 Ibidem , p. 915. Discurso do Presidente José Sarney à nação, em 26.7.1988. 
104 
 
Incontinenti veio a resposta de Ulysses Guimarães. Metafórica, aludindo aos 
heróicos navegantes lusos de outrora, que destemidamente singraram os oceanos em 
busca do novo e da glória, serviu a passar a idéia de uma aventura, poeticamente 
declamada por aquele que dizia aspirar pelo aroma do amanhã como recompensa 
suficiente por escapar do nauseante cheiro do mofo de ontem. Ingovernáveis, 
ademais, qualificou a fome, a ignorância e a miséria. Seria essa, pois, a Constituição 
cidadã, aquela que, na óptica do “Sr. Diretas”, haveria de reabilitar, pela justiça 
social, os nossos milhões de miseráveis.
200
 
201
 
Hoje, quinze anos após, e vendo o texto original mutilado por mais de quatro 
dezenas de emendas, inteira razão cabe-nos reconhecer a Barroso, que acerca do 
Estado que nessa senda foi fundado, proclamou enfático: 
a constatação inevitável, desconcertante, é que o Brasil 
chega à pós-modernidade sem ter conseguido ser liberal ou 
moderno. Herdeiros de uma tradição autoritária e populista, 
elitizada e excludente, seletiva entre amigos e inimigos – e 
não entre certo e errado, justo ou injusto –, mansa com os 
ricos e dura com os pobres, chegamos ao terceiro milênio 
atrasados e com pressa. 
202
 
E assim veio à luz o Estado Democrático de Direito brasileiro, enunciado 
pelo art. 1
o
 da pretensamente “cidadã” Constituição de 1988: 
A República Federativa do Brasil, formada pela união 
indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, 
constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como 
fundamentos : 
I – a soberania; 
II – a cidadania; 
III – a dignidade da pessoa humana; 
 
200
 Ibidem, p. 916.Discurso de 27.7.1988. 
201
 Decerto que nem todos partilharam desse entusiasmo, tendo o professor Afonso Arinos denunciado o 
grave equívoco encerrado nessa empolgação: “É importante insistir neste ponto. A garantia dos direitos 
individuais é cada vez mais eficaz e operativa nas Constituições contemporâneas, mas a garantia dos direitos 
coletivos e sociais, fortemente capitulados nos textos, sobretudo nos países em desenvolvimento e, 
particularmente, nas condições do Brasil, torna-se extremamente duvidosa (para usarmos uma expressão 
branda), quaisquer que sejam as afirmações gráficas existentes nos documentos, como este que estamos, hoje, 
comemorando. Afirmar o contrário é ingenuidade, ilusão ou falta de sinceridade, quem sabe de coragem. 
Direito individual assegurado, direito social sem garantia – eis a situação". Ibidem, p. 927. 
202
 BARROSO, Luís Roberto. Fundamentos teóricos e filosóficos do novo direito constitucional brasileiro 
(pós-modernidade, teoria crítica e pós-positivismo), p. 33-34. 
105 
 
IV – os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa; 
V – o pluralismo político. 
Parágrafo único : Todo poder emana do povo, que o exerce 
por meio de seus representantes eleitos, ou diretamente, nos 
termos desta Constituição. 
 
3.2 A tradição autoritária e a difícil transição cultural para a 
democracia. 
203
 
Malgrado tenha a a Lei Fundamental definido o Estado brasileiro como 
democrático, afigura-se cediço que, entre essa aclamação normativa e aquilo que a 
realidade pátria efetiva e cotidianamente pode vivificar, persiste a existir uma 
grande distância. 
De fato, tratando-se o Brasil de um Estado de tradições nitidamente 
autoritárias, impregnado por uma cultura colonialista forjada durante séculos de 
sujeição a uma matriz indolente e arbitrária, por óbvio que o nosso País não poderia 
se tornar democrático simplesmente porque e no instante que a lei assim houve por 
assentar. Na verdade, faltava à grande massa brasileira em 1988, como certamente 
ainda falta nos dias correntes, ao menos uma noção sobre o autêntico significado da 
democracia, constantemente confundida, e sem um senso preciso, apenas com um 
sistema – inócuo, diga-se de passagem – que privilegiaa rotineira realização de 
eleições. 
Dessarte, na prática, o tal Estado Democrático de Direito ainda precisa ser 
construído, a teor da previsão constitucional referente à edificação de uma 
sociedade justa, livre e solidária. E a realização dessa tarefa passa necessariamente, 
e portanto, pelo desatar dos nós das amarras cesaristas que impedem o progresso 
 
203
 Manuel Gonçalves Ferreira Filho afirma, com base em Almond e Verba, que existem “três tipos básicos 
de cultura política: a cultura paroquial, a cultura de sujeição e a cultura de participação. A primeira é 
caracterizada, paradoxalmente, pela despolitização. O indivíduo, o grupo, não toma conhecimento senão do 
que ocorre na comunidade em que vive. A segunda, pela postura de súdito. O indivíduo, o grupo, apercebe-se 
do que se passa além dos limites de sua comunidade, mas se considera impotente para influenciá-la. A 
terceira acresce à compreensão do fenômeno político a disposição de sobre ele atuar: é a do cidadão”. 
Constituição e governabilidade. ensaio sobre a (in)governabilidade brasileira, pp. 97-98. 
 
106 
 
político e conseqüentemente a prosperidade geral do povo brasileiro. É o que reflete 
Bonavides: 
O nosso País traz do fundo da história, quais estigmas 
indeléveis, as antecedências de um autoritarismo jamais 
ultrapassado e sempre a renovar-se, em estado crônico de 
fermentação e perpetualidade. Quando nos arremessam esse 
argumento sombrio de incompatibilidade profunda da verdade 
histórica com o sonho das instituições políticas livres e 
legitimamente atadas ao consentimento dos governantes, 
realmente, o peso dessas reflexões nos aflige, mas não esmaga 
nossa fé nem anula nossa esperança de que o futuro há de ser 
diferente. 
204
 
Inúmeras são as manifestações dessa vil potestade que povoa a vida nacional, 
reportando-se Maria Victória Benevides àquela que talvez seja a mais comum e 
sutil de todas, qual seja, a privatização do poder, fato tão nefasto quanto real na vida 
política brasileira. Referindo-se especialmente à segurança pública, a autora 
destacou o sentido meramente retórico dessa expressão, servindo-se do testemunho 
de Victor Nunes Leal, prestado através de sua grande obra “Coronelismo, Enxada e 
Voto”, para demonstrar que no Brasil, historicamente, “a segurança jamais foi 
pública; a segurança que existia era a de exércitos particulares, de milícias 
particulares, a serviço dos coronéis”
 205
. 
 Mas é Betinho quem nos mostra a face mais perversa dessa opressão que, 
como pontuara Bonavides, muitos já fazem por supor atávica, garantindo a 
perpetuação do coronelismo de ontem: 
A história da política no Brasil é a história da dominação de 
alguns grupos sobre a grande maioria. A construção dessa 
dominação faz com que, hoje, 10 a 20% da população, tenham 
praticamente tudo, contra 80% que não tem nada. Essa 
situação leva à exclusão: quem manda subordina e exclui os 
outros. Trata-se de uma relação complexa, porque não apenas 
o senhor domina, como também o dominado se deixa dominar 
pelo senhor. Há uma certa cumplicidade na relação de poder. 
 
204
 BONAVIDES, Paulo. Teoria Geral do Estado, p. 194. 
205
 BENEVIDES, Maria Victoria de Mesquita. A polícia sob controle da sociedade a que serve, p. 82. 
Vide a respeito nota nº 61, parte final em especial. 
107 
 
Muitas vezes o dominado quer a proteção de quem tem o 
poder, de quem domina. Porque a isso se submete. E, ao se 
submeter, perpetua a situação de dominação. 
206
 
Embora ponderando que a maior parte da nossa população sequer tem 
consciência de que se acha submetida a jugo dessa espécie, esse sociólogo, assim 
como a grande maioria dos juristas, revela uma grande e otimista crença na reversão 
desse triste quadro. Vislumbra-se a mudança – que “não corre, mas ocorre” –, 
auspiciada inclusive por parte da elite, que desprezando o apartheid busca a paz 
social. E concluiu: ”se o modelo ‘casa-grande e senzala’ prevalecer, não haverá 
outro recurso senão viver numa prisão de ruas fechadas por seguranças privadas, em 
bunkers residenciais”
207
. 
Em brilhante síntese, Carmen Lúcia Antunes Rocha expõe o histórico do 
alheamento popular da vida política nacional, apostando, ao final, num melhor 
porvir: 
A importância da Constituição para um povo guarda exata 
correlação com a importância que a sua história tenha sido 
refletida, revelada e produzida em forma de um Direito que 
acompanhe a sua evolução, a sua aspiração e a sua 
perspectiva. 
Ora, no Brasil, tanto a Constituição quanto a República, que 
veio a reboque numa Constituição que se lhe seguiu, não 
refletiram a história do povo brasileiro, que sempre se passou, 
na verdade, à margem desse mesmo povo e à margem do 
Direito criado para direcionar o processo político e a 
organização estatal. 
A história política brasileira não foi determinada pelas suas 
Constituições. Mesmo os seus autores se acorreram em 
destruí-las ou pelo menos em descumpri-las. E o povo ... ah ! 
o povo ! esse não conhece as suas Constituições, até porque 
não foi ele quem as fez ... Também ele tem tido sua vida à 
margem das Constituições que se sucederam no Brasil. 
A República, desde a sua proclamação por um golpe de 
Estado e não por uma revolução popular, não se democratizou 
em suas origens, senão nos últimos anos, em que, nitidamente, 
 
206
 SOUZA, Herbert de, RODRIGUES, Carla. Ética e cidadania. São Paulo: Moderna, 2000, p. 21. 
207
 Ibidem, p. 32. 
108 
 
se verifica uma mudança de comportamento político, um 
amadurecimento inconteste da cidadania. 
208
 
Portanto, contra todas as formas de autoritarismo que ao longo dos séculos 
vêm entrevando o desenvolvimento político e social do Estado brasileiro, contra 
toda a ignorância premeditada e produzida pelos “coronéis” de todas as patentes e 
colorações, que sempre mandaram e jamais se fizeram obedientes, contra todos os 
oportunistas que encenam as leis e dilapidam o Direito, contra todos que 
corrompem a Justiça e se apropriam do poder, hoje, o Estado Democrático de 
Direito nos é oferecido não como uma meta já alcançada e consolidada, mas sim 
como um prêmio que somente pode ser entrevisto num plano bem mais alto, 
esperando para ser conquistado. 
A atingir tal galardão se nos é oferecida uma escada íngreme a ser vencida, a 
cidadania a ser avançada, os direitos fundamentais postos como degraus e as suas 
garantias como uma espécie de corrimão, pelos quais unicamente pode se ascender 
ao patamar da dignidade humana, o fundamento e a concretização do focalizado 
Estado. 
Por certo que tal conquista, diante de teladas vicissitudes, e já emergindo 
árdua por sua própria natureza, não se nos apresenta facilitada. Ainda muito longe 
de concretizá-la, e contabilizando um tremendo e histórico déficit de ânimo e de 
esperança democrática, partimos ao seu encalço, como bem situou Barroso, 
“atrasados e com pressa”, sem saber direito por onde e como começar. Mas o 
importante mesmo, como todos ponderam, é que essa jornada seja iniciada, com 
cada brasileiro reclamando e exigindo o cumprimento responsável da Constituição, 
 
208
 ROCHA, Carmen Lúcia Antunes. República e federação no Brasil: traços constitucionais da 
organização política brasileira, p. 157. Imperioso frisar que nem todos enxergam essa mesma evolução. 
Manoel Gonçalves Ferreira Filho, por exemplo, entrevê muita demagogia: “A modernização do País tem 
enfraquecido o autoritarismo, contudo apenas tem mudado a aparência do paternalismo. De fato, os 
governantes populistas tratam o povo exatamente como faziam os donos de escravos: com uma aparente 
benevolência, enquanto lhes exploram ao máximo. Tudo isso redunda num ambiente negativo para a 
democracia. Esta pressupõe uma igualdade que falta aoshábitos nacionais, bem como à experiência histórica 
do brasileiro em face do governo. De fato, é baldado procurar na vivência passada qualquer laivo 
democrático, qualquer tradição, ainda que tênue, de tradição democrática”. Constituição e governabilidade: 
ensaio sobre a (in)governabilidade brasileira, p.100. 
109 
 
o acatamento irrestrito ao Direito e ao primado da Ética, denunciando abusos e 
combatendo todas as formas de corrupção e de mandonismo. 
A chave, pois, para o Estado Democrático de Direito ressuma na participação 
ativa dos reais titulares do poder na vida e nos rumos da República, cuja efetiva 
existência aferir-se-á, então, pela capacidade de realização dos valores que lhe são 
intrínsecos, consoante as opções, a persistência e o denodo manifestados por seus 
cidadãos. Caminhar é preciso ... Com total razão define Baracho: “não há cidadãos 
sem democracia ou democracia sem cidadãos”
209
. A bem da verdade, cabe 
exclusivamente ao cidadão assenhorear-se do que é seu, reivindicando, requestando, 
enfim, pelejando com as armas que recebe da própria democracia. Torna-se a todos 
premente, nesse diapasão, a aquisição de lúcida consciência cidadã, sem a qual 
sequer haverá disposição para a luta.
210
 
Como visto, não há democracia sem empenho, sem presença, sem 
resistência. Ainda mais enérgico preleciona Silva: “que por ser governo do povo, 
pelo povo e para o povo, só se firma na luta incessante, no embate constante, não 
raro na via revolucionária, inclusive quanto ao próprio conceito de povo que é 
essencial à idéia democrática”
211
. Outro não é o diagnóstico de Rocha, expendido 
sob prisma diferenciado : “O de que nos ressentimos, e muito, é de prática 
constitucional. É de obediência à Constituição. É de aplicação do Direito. (...) 
Porque não carece o Brasil de leis, mas de homens com vontade e determinação 
para submeterem-se ao Direito (preferindo que o direito a eles se submeta) ...”
212
. E 
arremata incisivamente: 
A participação política do cidadão é essencial à República, 
porque esta é apenas uma expressão da cidadania. E a 
cidadania é a participação política comprometida, responsável 
e atuante positivamente (...) Aquele que pelos seus direitos 
não luta, que os seus próprios direitos não reivindica e exige, 
 
209
 BARACHO, José Alfredo de Oliveira. Teoria geral da cidadania: a plenitude da cidadania e as 
garantias constitucionais e processuais, p. 1. 
210
 Trata-se do despertar da e na consciência geral daquilo que Konrad Hesse denominou “a vontade da 
Constituição”. A força normativa da Constituição, p. 18-21. 
211
 SILVA, José Afonso da. Op. cit., p. 132. 
212
 ROCHA, Carmen Lúcia Antunes. República e “Res Publica”, p. 233. 
110 
 
não pode deixar de considerar-se penitente diante de seu 
próprio pecado quando vê a carência de si mesmo. Direito não 
se acha na rua. Direito é conquista diária. (...) A República 
não é presenteada, é conquistada pelo seu cidadão a cada dia. 
A República é uma construção cidadã interminável. Por isso a 
cidadania republicana é uma luta patriótica, comprometida e 
responsável. República órfã de cidadania é ilusão, não é 
Republica.
213
 
Deve funcionar a Constituição, dessa forma, como um mapa, autêntico, que 
indica o caminho até um grande tesouro. Nos oferece o caminho para esse prêmio, 
mas nenhuma facilidade outra. A busca que a partir desse mapa tem início 
pressupõe dificuldades, exigindo esforços, enfrentamentos e pertinácia. Com efeito, 
não se pode esquecer que, não possuindo o texto constitucional teor mágico ou 
sobrenatural, afigurar-se-ia demasiadamente ingênuo acreditar que a simples e bem 
intencionada fundação de um novo Estado, mediante a edição de um louvável e 
irretocável texto constitutivo, bastaria para decretar, como nas fábulas, um 
indefectível e célere final feliz! Imprescindível considerar, a esse respeito, que uma 
Constituição não se presta como remédio para todos os males, bem como que o 
novel Estado brasileiro ainda engatinha, encontrando-se, por ora, apenas no início 
do processo de afirmação democrática. Ademais, como nos recorda Bonavides: 
uma criança não aprende andar meramente com lições 
teóricas ou preparação oral ou didática, senão que faz essa 
aprendizagem tão-somente se der os primeiros passos, 
tropeçando, caindo, exercitando-se. Assim também acontece 
com a democracia. Faz-se mister o movimento, a ação, o 
duelo, a iniciativa, o combate, a energia. Tudo em clima da 
mais inteira liberdade, sem o qual o regime democrático se 
atrofia, fica sufocado, sucumbe. 
214
 
215
 
 
213
 Ibidem, p. 262-263. 
214
 BONAVIDES, Paulo. A constituição aberta, p. 20. 
215
 E tal processo, ensina Victor Alfieri, também se faz fundamental para o sepultamento do autoritarismo: 
“Só a vontade ou a opinião de todos ou da maioria mantém a tirania: só a vontade ou a opinião de todos ou da 
maioria verdadeiramente pode a destruir. Mas, se nas nossas tiranias o povo não tem idéia de outro governo, 
como se poderá infundir em todos ou na maioria este novo desejo de liberdade? Responderei, chorando, que, 
para produzir de repente tal efeito, meio eficaz nenhum há; e que nos países onde a tirania desde muitas 
gerações se acha radicada, outras tantas ou mais são necessárias para que a tardia opinião possa desarraigar”. 
ALFIERI, Victor. O tratado da tirania, p. 181. 
111 
 
É necessário reconhecer, a bem da verdade, que nestes últimos quatorze ou 
quinze anos, a sociedade brasileira pode comemorar, sob a égide do Estado 
Democrático de Direito, uma série de conquistas, mormente relacionadas ao valor 
fundamental da liberdade. Muito há, de fato, para ainda ser percorrido nos caminhos 
da democracia, porém o simples fato de já nos encontrarmos em marcha por tais 
auspiciosas veredas não pode deixar de ser festejado. Boa parte da nossa população 
parece ter despertado para a importância dessa caminhada, não obstante, como não 
podemos olvidar, toda uma longa estrada, morro acima, resta para ser coberta. 
Caminhar é preciso ... 
Decididamente, a construção dessa sociedade democrática não pode 
prescindir da renovação das instituições, e nessa conjuntura deveria ser priorizada – 
ao contrário da postergação vislumbrada – a conformação de novas instituições 
policiais, clássicos instrumentos de opressão, historicamente utilizados à promoção 
e manutenção do arbítrio, qual expressão consagrada do autoritarismo, aqui e 
alhures, em todos os tempos. Entre nós, dado a versada tradição, não pode restar 
dúvida alguma sobre a premência dessa regeneração, que precisa ser encetada da 
forma mais urgente e meticulosa possível, submetendo-se os órgãos policiais, de 
uma vez por todas, ao império da Ética e do Direito democráticos. 
3.3. As origens e os rumos da democracia brasileira. 
Não obstante esse versado pendor autoritário, o fato é que mesmo antes da 
convocação da Assembléia Constituinte, cujos trabalhos iniciaram-se somente em 
fevereiro de 1987, o Brasil já caminhava em direção à democracia, 
independentemente da existência de uma elevada consciência ou convicção nacional 
correspondente. De efeito, os horizontes democráticos, e seja lá o que pudessem 
projetar para a grande massa brasileira e mesmo para os seus líderes políticos, 
exsurgiam, desde há muito, como a única alternativa para o ciclo militar que durava 
desde 1964, quando imposto à nação, segundo os padrões político-culturais da 
época, como expressão inconteste da submissão terceiro-mundista. 
112 
 
Coincidindo em alguns pontos isolados – como ao exigirem eleições livres 
para todos os níveis de governo, qual bem exemplifica o célebre movimento das 
“diretas já” –, as lideranças políticas do período não apresentavam, todavia, um 
consenso sobre seus propósitos democráticos. Como é sabido, agrupavam-se, e por 
vezes até como renhidosadversários, genérica e confusamente, como conservadores 
e progressistas, numa dicotomia que procurava classificar, de um lado, aqueles que 
não se interessavam por grandes mudanças, mormente de conteúdo, e do outro, 
aqueles que desejavam grandes transformações, com alguns até buscando uma 
grande e radical virada de mesa. Bonavides reconhece na Assembléia Constituinte a 
preponderância dos primeiros, indicando, porém, estudos que alardeiam exatamente 
o contrário
216
. Algo indiferente a essas divisões ponderou que, em síntese, 
prevaleceram os “interesses grupais ou regionais em detrimento do essencial”.
217
 
Ao final de tantas contradições foi a Constituição promulgada, em 5 de 
outubro de 1988, tendo contra si o voto da esquerda (Partido dos Trabalhadores) e a 
censura da direita. Apenas em torno de uma única previsão todos se faziam 
concordes: o estabelecimento do regime democrático. Embora pacífico e fulcral da 
nova ordem constituída, tratava-se este, na verdade, apenas de um ponto de partida, 
pois ninguém podia se iludir – mesmo porque a realidade era alardeada por muitos e 
em alto e bom som – que o princípio democrático logo viesse a impregnar todos os 
 
216
 BONAVIDES, Paulo. História constitucional do Brasil, p. 474-475. Registra o autor, malgrado 
revelando sua desconfiança nessas contabilidades, que estudos patrocinados pela Universidade de Brasília 
levaram à classificação dos parlamentares constituintes (487 deputados e 72 senadores), no que pertine às 
suas aferíveis tendências políticas, em cinco diferentes categorias, onde achavam-se agrupados nas seguintes 
proporções: direita: 12%; centro-direita: 24%; centro: 32%; centro-esquerda: 23%; esquerda: 9%. De outra 
parte, outros exames realizados a partir dos perfis traçados pelos próprios constituintes serviriam a revelar 
realidade oposta, assinalando uma prevalência da centro-esquerda. Demonstra, todavia, que essas possíveis 
divergências ideológicas não muito representaram na prática, pois, durante a constituinte, “vez por outra, as 
posições extremas se tocavam, como no sistema de governo (parlamentarista ou presidencialista), para o qual 
o PT e o PDT adotavam a mesma posição do PDS e do grupo mais conservador da Assembléia. Os extremos 
representados pelos deputados Cardoso Alves e Amaral Netto, José Lourenço e Delfim Netto estavam na 
mesma posição de José Genuíno ou de Luiz Inácio Lula da Silva”. 
217
 Ibidem, p. 487. Informa o autor: “Durante o período constituinte o plenário do colégio soberano não 
funcionou como um fórum de tribunos atenienses, um salão de debates acadêmicos ou um campo de batalha 
de idéias abstratas e princípios metafísicos. Foi, em primeiro lugar, uma praça de interesses, uma feira 
nacional de serviços, uma bolsa de vantagens, onde tudo se disputou palmo a palmo, da forma mais direta, 
crua e objetiva possível, mas sempre por meios pacíficos e consensuais, mediante decisões majoritárias, todas 
numericamente expressivas, nunca inferiores a 280 votos no cômputo dos 599 delegados que compunham o 
efetivo da Constituinte”. 
113 
 
rincões do Estado, mediante, quem sabe, uma espécie de positivo contágio, fazendo-
se, doravante, pulsante no seio social. É o que ilustra ainda o encimado autor: 
A promulgação da nova Carta representa, por conseguinte, um 
marco, mas não representa ainda o coroamento de todo 
processo de reconstitucionalização ou mudança. Com efeito, 
estamos unicamente passando de uma a outra transição, a 
saber, da transição discricionária para a transição 
constitucional, do governo de um só poder para o governo dos 
três poderes, do regime do decreto-lei para o regime da 
Constituição. 
Não é outro o sentido deste 5 de outubro. Quem julgar o 
contrário estará alimentando uma grave e perigosa ilusão. 
Demais, os constituintes mesmos reconheceram que assim há 
de ser (...) embora as instituições brasileiras com este sistema 
hajam logrado já uma inteira impregnação das garantias 
básicas, inseparáveis de um estado de direito, democrático e 
constitucional. 
[...] 
Mas urge lembrar, não sendo despiciendo faze-lo, que a Carta, 
salvo texto específico e formal, ainda não acabou de ser 
elaborada. Resta acrescentar-lhe uma parte escrita 
importantíssima, suplemento mais relevante talvez, num certo 
sentido, do que tudo quanto já fez a Casa da soberania em um 
ano e seis meses de reunião: as leis complementares e 
ordinárias, previstas no texto constitucional. Compõe essas 
leis a outra metade da Carta, sem a qual ela dificilmente se 
aplicará, com sua eficácia diminuída a um grau baixíssimo e 
insuportável, embargando todas as esperanças postas em tão 
valioso instrumento de direitos e garantias fundamentais. 
218
 
Do acerto dessas afirmações, naturalmente ninguém pode discrepar. Impõe-
se aqui consignar, por isso mesmo, a mínima penetração dos valores constitucionais 
no âmbito da segurança pública, que até hoje prossegue institucionalizada sob a 
mesma roupagem que vestia antes de 1988. Embora não seja de se pasmar, face a 
multiplicidade dessas omissões, cabe nesse plano ressaltar que ainda hoje inexiste a 
regulamentação exigida pelo § 7
o
 do art. 144 da vigente Constituição, confiada à lei 
ordinária, concernente à disciplina e organização dos órgãos policiais, “de maneira a 
garantir à eficiência de suas atividades”. 
 
218
 BONAVIDES, Paulo. História Constitucional do Brasil, p. 487-488. 
114 
 
Também não foi editada, ainda, a Lei Orgânica Nacional das Polícias Civis, 
que deveria trazer, a teor do disposto no art. 24, XVI, da Lei Maior, normas gerais, 
sobre organização, garantias, direitos e deveres referentes aos órgãos e servidores 
incumbidos do exercício das importantes funções de polícia judiciária 
219
. Tais 
fatos, inquestionáveis, parecem revelar, com clareza meridiana, o caráter 
absolutamente negligente do tratamento dispensado aos temas segurança pública e 
polícia em nosso País, invariavelmente relegados às manchetes sensacionalistas de 
uma mídia insciente e aos discursos-respostas sempre vazios, demagógicos e 
bravateiros dos nossos políticos, invariavelmente pouco afetos ao cumprimento de 
suas efetivas obrigações públicas. 
Como se pode constatar, tarda-se a inserir a polícia no universo democrático 
criado pela Constituição Cidadã, remanescendo justamente os órgãos responsáveis 
pela segurança pública à margem dos avanços felizmente constatados em outras 
searas institucionais, como se tacitamente, e não pela vontade constitucional – 
expressa, embora timidamente, em sentido diametralmente oposto – interessasse ou 
fosse de grande proveito ao Estado Democrático de Direito, a obsolescência 
policial. 
3.4 A democracia brasileira. 
O fato é que, enfim, seguindo a carreira acima delineada, em 1988 o Brasil 
finalmente se fez democrático. Afinal, como ironizou Ferreira Filho: “O mundo 
hoje é unanimemente democrático. Todos os governos e todos os povos pretendem 
 
219
 Assinala-se que no Estado de São Paulo, ainda hoje, a Polícia Civil é regida por uma lei-complementar, a 
de nº 207, que data de 1979. Recentemente foi ela parcialmente alterada, tendo a Lei-complementar nº 
922/02 introduzido modificações relevantes apenas no seu capítulo referente ao processo disciplinar, assim 
com vistas a implantar a denominada “via rápida” – como foi difundida junto à imprensa em face do seu 
suposto poder de defenestrar os maus policiais com ligeireza –, sem tangenciar, por exemplo, e num afã de 
adequação, atualização e aprimoramento às exigências do Estado Democrático de Direito fundado em 1988, a 
parte material desse código disciplinar, que elenca os deveres e as proibições que visam garantir o exercício 
ativo, probo e eficiente dos policiais. Vide a respeito a pontual obra de Carlos Alberto Marchi de Queiroz,Via Rápida : a arte de demitir autoridades policiais ao arrepio da Constituição Federal. 
115 
 
ser democráticos. Todos se declaram pela democracia e, não raro, se entredevoram 
pela democracia”. 
220
 
Sob o impulso da Organização das Nações Unidas, e após a derrocada do 
comunismo internacional, a democracia vicejou no mundo. Do ocidente ao oriente, 
o regime democrático foi sendo paulatinamente abraçado, em graus e formas as 
mais diversas, pela grande maioria dos Estados, ora por convicção, ora por simples 
conveniência. As sempre emblemáticas eleições livres (mas nem sempre limpas, 
irrestritas e/ou eficazes) passaram a pulular em quase todos os recantos do planeta, 
que não obstante esse fato, auspicioso em princípio, não logrou, e isso até os dias 
correntes, ostentar-se revitalizado, contabilizando o declínio, ainda que pequeno, 
dos níveis de forme, miséria, violência e injustiça aferidos junto à humanidade. 
Tal fenômeno, muito embora chocante, pode ser facilmente compreendido, 
eis que enquanto o epíteto democrático pode ser desembaraçadamente exportado, o 
mesmo não ocorre, como anteriormente procuramos patentear, com a cultura 
democrática, que não pode ser assimilada apenas por força de uma entusiasmada e 
símplice disposição de espírito. Somente o florescimento de uma nova cultura, 
desenvolvida com base nos exponenciais valores da liberdade, da igualdade e da 
solidariedade, sintetizada pelo efetivo respeito à dignidade humana, é que autorizará 
 
220
 FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Curso de direito constitucional, p. 96. Sarcasmo à parte, assiste 
razão a esse brilhante autor que bem detecta a banalização da democracia, usada para tudo e por todos na 
melhor linha do “faça o que eu falo e não faça o que eu faço”. Lembremo-nos, por exemplo, da antiga 
República Democrática Alemã que fuzilava todos aqueles que buscavam exercitar o direito de ir e vir em 
direção a Berlim ocidental. Não nos olvidemos, com esse mesmo propósito, da recente invasão americana do 
Iraque, levada a cabo em nome da redemocratização desse sofrido País. Entre nós abundam exemplos desse 
persistente cinismo, diariamente auspiciado por uma mídia que, sem se ater aos limites postos à liberdade de 
imprensa e sem respeitar as balizas democráticas do direito de informação, teima em inconseqüentemente 
estampar em seus veículos nomes e imagens aprioristicamente obtidos e relacionados com fatos apenas 
suspeitos e ainda longe do devido aclaramento, assim decretando, irresponsável e perpetuamente, a falência 
moral de “cidadãos”, violados em seus mais comezinhos direitos. Mas seria necessário indagar mais: quem 
alimenta a mídia voraz com tais suspeitas ? A quem buscam os holofotes na ribalta democrática? Ora, até 
quando se aturará, em nome da democracia, tamanhas violações, cometidas segundo um modelo oficial, 
próximo ao daquela polícia da qual se procura redimir, que primeiro atirava e depois fazia perguntas ? Que 
democracia é essa que patrocina a inquisição, sempre assegurado o linchamento moral de suspeitos em face 
de qualquer desconfiança? É inegável, pois, que a democracia ostenta suas mazelas, que em seu nome 
destrói-se em vez de vivificar-se, que é permeável a abusos, e abusos por vezes perpetrados em nome de 
heréticas legalidade e moralidade, escudados por um pseudo interesse público, ilegítimo porquanto 
dissociado do Direito e da Ética verdadeiramente democráticos, que rejeita o raciocínio maquiavélico, em 
que “os fins justificam os meios”. 
116 
 
a legitima aposição do timbre democrático em qualquer sociedade, assim 
caracterizando, em natural corolário, sua organização política, econômica e social. 
Socorre, portanto, àqueles realmente interessados, a possibilidade de 
importar, em processo em que se sobressai a celeridade, determinados paradigmas 
democráticos que certamente facilitarão a construção político-cultural desejada. E 
nesse ponto, como de costume, o Brasil não se fez de rogado, logo lançando mão 
dos modelos constitucionais português (1976) e espanhol (1978), para balizar seu 
ingresso normativo no universo democrático. 
Semelhantemente a esses Estados, que ressurgiram de longas e amargas 
experiências autoritárias, o Brasil optou, como pontifica Cittadinno, por um 
constitucionalismo “comunitário”, que professa que “o objetivo primordial da 
constituição é a realização dos valores que apontam para o existir da comunidade”. 
Assim, uma vez “calcado no binômio dignidade humana-solidariedade social”, 
caracteriza-se exatamente por buscar, “contra o positivismo, um fundamento ético 
para a ordem jurídica, e contra o privatismo, a efetividade do amplo sistema de 
direitos assegurado pela nova Constituição”
221
. E nesse particular, ainda informa a 
autora, o pensamento comunitário institui seus dogmas: 
Os direitos fundamentais possuem hoje uma dimensão 
objetiva em função da integração dos indivíduos no processo 
político comunitário e da ampliação do chamado espaço 
público. Ao sistema fechado de garantias da vida privada , 
eles opõem a idéia de constituição aberta, que enfatiza os 
valores do ambiente sociocultural da comunidade. 
222
 
 
221
 CITTADINO, Gisele. Pluralismo, direito e justiça distributiva.elementos da filosofia constitucional 
contemporânea, p. 15-17. Formando os expoentes do pensamento comunitário brasileiro a autora destaca os 
juristas José Afonso da Silva, Carlos Roberto de Siqueira Castro (o autor da expressão, consignada em sua 
obra A Constituição aberta e atualidades dos direitos fundamentais do homem), Paulo Bonavides, Fabio 
Konder Comparato, Dalmo de Abreu Dallari e Eduardo Seabra Fagundes, dentre outros. 
222
 A partir da lição de Canotilho é possível evitar um equívoco que a presente leitura pode potencialmente 
suscitar, promovendo a confusão entre a abertura das normas constitucionais (abertura vertical) e a abertura 
da constituição (abertura horizontal), que reclamam compreensões diversas, dizendo a segunda de 
constituições históricas ou de cunho não dogmático, que reclamam, à sua efetiva aplicabilidade, atuação 
plena dos órgãos concretizadores, por vezes do Legislativo, por vezes do Judiciário (Direito Constitucional 
e Teoria da Constituição, pp. 1106-1107). De qualquer forma, importa enfatizar que a versada abertura das 
normas jamais poderá conduzir à idéia de libertismo constitucional, pois como bem acentua Eros Roberto 
Grau (A Ordem econômica na constituição de 1988, p. 106) “inexiste, assim, possibilidade da livre criação 
do direito, visto que esta se reduz à pesquisa de novos princípios”, cabendo ao juiz, exemplifica, encontrar 
117 
 
 A expressão direitos fundamentais do homem, (..), designa, 
no nível do direito positivo, as prerrogativas e instituições que 
ele concretiza em garantias de uma convivência digna, livre e 
igual para todas as pessoas. A expressão direitos 
fundamentais do homem não significa, portanto, esfera 
privada contraposta à atividade pública, como simples 
limitação do Estado, mas restrição imposta pela soberania 
popular aos poderes constituídos do Estado que dela 
dependem. 
Enquanto valores constitucionais, o sistema de direitos 
fundamentais, ao mesmo tempo que se constitui em núcleo 
básico de todo o ordenamento constitucional, também 
funciona como seu critério de interpretação. Enquanto direitos 
positivados, são metas e objetivos a serem alcançados pelo 
Estado Democrático de Direito.
223
 
Esse diapasão de grande similitude ideológica justifica a enorme identidade 
normativa existente entre a nossa Constituição e suas congêneres ibéricas, 
destacadamente a lei magna de Portugal. Na verdade, e especialmente no que tange 
aos princípios fundamentais, essas cartas sobremodo se aproximam, conformando-
se praticamente concordes. Entrementes, convém dar vulto ao advérbio utilizado, 
pois embora decorrentede uma sutileza, expressiva diferença se interpõe entre essas 
duas Constituições, que fundaram Estados Democráticos de Direito (de Direito 
Democrático na versão lusa) díspares em seus objetivos econômicos. 
Com efeito, comenta Ferreira Filho que “a expressão ‘Estado Democrático de 
Direito’ foi cunhada pelo espanhol Elias Diaz, que a empregou no livro Estado de 
derecho y sociedad democrática, com o significado de Estado de transição para o 
socialismo”. Na Constituição portuguesa, observa, essa disposição encontra-se 
textualizada no art. 2
o
, por força de emenda revisora aprovada em 1982
224
. Teria, 
ademais, reconhecido esse mesmo propósito em texto de Silva, que prontamente 
refuta tal interpretação, proclamando que a lei fundamental pátria não prometeu a 
transição para o socialismo, mas apenas “perspectivas de realização social profunda 
 
nestes o fundamento de suas decisões em face de matéria cuja controvérsia ressai das lacunas do Direito (que 
há de aplicar, e não apenas a norma). Na mesma linha a censura de Dworkin, transcrita por Canotilho: “o 
direito – e, desde logo, o direito constitucional – descobre-se , mas não se inventa” (ibidem, p. 1109). 
223
 CITTADINO, Gisele. Op. cit. p. 14-22. 
224
 FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Estado de direito e constituição, p. 63 
118 
 
pela prática dos direitos sociais, que ela inscreve, e pelo exercício dos instrumentos 
que oferece à cidadania e que possibilita concretizar as exigências de um Estado de 
justiça social, fundado na dignidade da pessoa humana”. 
225
 
Quem resolve definitivamente a questão é Miguel Reale, que a respeito do 
Estado Democrático de Direito aduz: 
expressão que traduz uma opção para a democracia social, 
isto é, para uma democracia na qual o Estado é compreendido 
e organizado em essencial correlação com a sociedade civil, 
mas sem prejuízo do primordial papel criador atribuído aos 
indivíduos. É óbvio que a democracia social não deve ser 
confundida com a social-democracia, que é sempre de cunho 
socialista, fato esse que só deve impressionar aos que não 
estão afeitos ao jogo dos valores políticos, onde a mera 
inversão de uma palavra pode importar em alterações 
semânticas de fundo ... . 
226
 
Uma vez vincada tal divergência, cumpre então trazer à baila, em mão 
contrária, aquele que induvidosamente se apresenta como o principal ponto de 
convergência existente em relação às focalizadas Constituições, bem situado por 
Alves na “expressa previsão do princípio da dignidade da pessoa humana como 
fundamento e substrato principal dos demais direitos e garantias individuais e 
coletivos”
227
. Esse avizinhamento, porém, basta à garantia de uma inelutável 
 
225
 SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo, p. 120. 
226
 REALE, Miguel. O estado democrático de direito e o conflito das ideologias, p. 43. Assevera o autor 
que o preciso e efetivo sentido ideológico da vigente Constituição brasileira é bem informado por dois 
princípios da ordem econômica, a saber: “a livre concorrência e a defesa do consumidor”. Dessa forma, a 
livre iniciativa fica conjugada com os interesses coletivos, ao passo que se garante o respeito a cada 
consumidor na sua individualidade. Assim o Estatuto Político “não consagra um liberalismo infenso à justiça 
social, mas sim o social-liberalismo” (p. 44-45). 
227
 ALVES, Cleber Francisco. Op. cit., p. 129. Dispõe o art. 1
o
 da Constituição lusa : “Portugal é uma 
República soberana, baseada na dignidade humana e na vontade popular e empenhada na construção de uma 
sociedade livre justa e solidária”. Impossível, assim, deixar de aceder com a analogia aduzida. Vale, 
outrossim, trazer à lume o primeiro artigo da Constituição Federal da Alemanha, que teria, segundo o autor, 
influenciado fortemente o constitucionalismo português: “Art. 1
o
. A dignidade da pessoa humana é 
intangível. Respeitá-la e protegê-la é obrigação de todo o poder público”. 2
a
. parte – O Povo Alemão 
reconhece, portanto, os direitos invioláveis e inadiáveis da pessoa humana como fundamentos de qualquer 
comunidade humana, da paz e da Justiça no mundo”. Pedro Serna, com base no magistério de Maihofer, aduz 
a tripla significação jurídica dada à garantia da dignidade humana pelo direito constitucional tedesco e que, 
na mesma linha, deve acabar tocando o nosso: “Em primeiro lugar, trata-se de um direito fundamental, a 
partir do qual se podem deduzir e interpretar todos os demais restantes que compõe o sistema constitucional 
dos direitos fundamentais. Por outro lado, constitui algo assim como uma norma fundamental dentro da 
estrutura normativa da ordem jurídica, por intermédio da qual cabe dirimir a validez das outras normas que o 
compõe. Finalmente, constitui uma das bases materiais sobre as quais se assenta a construção organizativa do 
119 
 
identificação entre as focalizadas Cartas, que assim reconhecem e exaltam o valor 
intrínseco do ser humano e sua primazia em relação ao Estado, compreendendo a 
coluna mestre do Estado Democrático de Direito. 
3.5. Estado democrático de direito brasileiro e o princípio da dignidade 
da pessoa humana
228
 
“Um dos poucos consensos teóricos do mundo contemporâneo”, a dignidade 
humana – ainda como expressão abrangente e por vezes até contraditória – perfaz 
hoje, no dizer de Barcellos, “um axioma da civilização ocidental, e talvez a única 
ideologia remanescente”, que afirma “o valor do homem como um fim em si 
mesmo”
229
. 
De fato, desde os tratados internacionais – celebrados sob os auspícios quer 
da ONU, quer das Organizações continentais de Estados – até as constituições 
nacionais, a dignidade humana impõe-se hodiernamente, na feliz expressão de 
Delpérée, como o “alfa e omega” do sistema de proteção das liberdades, a base, o 
 
Estado (...). A pessoa, em virtude de sua dignidade, constitui-se assim o fim do Estado” (A dignidade 
humana como princípio de direito público, p. 287-306). Acerca do histórico paralelismo constitucional 
português e brasileiro vide o interessante estudo de Jorge Miranda sobre “Os Sistemas Constitucionais de 
Portugal, do Brasil e de Outros Países de Língua Portuguesa”, Teoria do Estado e da Constituição , p. 139-
156. 
228
 BASTOS, Celso Ribeiro, MARTINS, Ives Gandra. Comentários à Constituição do Brasil (promulgada 
em 5 de outubro de 1988), p. 425) “A referência à dignidade da pessoa humana parece conglobar em si 
todos aqueles direitos fundamentais, quer sejam os individuais clássicos, quer sejam os de fundo econômico e 
social. Em última análise, a dignidade tem uma dimensão também moral. São as próprias pessoas que 
conferem ou não dignidade às suas vidas. Não foi esse sentido, todavia, o encampado pelo constituinte. O 
que ele quis significar é que o Estado se erige sob a noção da dignidade da pessoa humana. Portanto, o que 
ele está a indicar é que é um dos fins do Estado propiciar as condições para que as pessoas se tornem dignas. 
É de se lembrar, contudo, que a dignidade pode ser ofendida de muitas maneiras. Tanto a qualidade de vida 
desumana quanto a prática de medidas como a tortura, sob todas as suas modalidades, podem impedir que o 
ser humano cumpra na terra sua missão, conferindo-lhe um sentido. Esta é uma tarefa eminentemente 
pessoal. O sentido da vida humana é algo forjado pelos homens. O Estado só pode facilitar esta tarefa na 
medida em que amplie as possibilidades existências do exercício da liberdade”.. No mesmo sentido José 
Afonso da Silva: “Em conclusão, a dignidade de pessoa humana constitui um valor que atrai a realização dos 
direitos fundamentais do Homem, em todas as suas dimensões;e, como a democracia é o único regime 
político capaz de propiciar a efetividade desses direitos, o que significa dignificar o Homem, é ela que se 
revela como seu valor supremo, o valor que o dimensiona e humaniza”. Poder constituinte e poder popular 
(estudos sobre a Constituição, p. 149. 
229
 BARCELLOS, Ana Paula de. A eficácia jurídica dos princípios constitucionais: o princípio da 
dignidade da pessoa humana, p. 103-104. 
120 
 
objeto e a missão de todos os direitos humanos fundamentais, de todas as 
gerações.
230
 
Comprova essa assertiva a Declaração Universal dos Direitos do Homem 
que, em 1948, e já em seu preâmbulo, proclamou: “O reconhecimento da dignidade 
inerente a todos os membros da família humana e de seus direitos inalienáveis 
constitui o fundamento da liberdade, da justiça e da paz no mundo”. E em seu art. 1
o
 
sentenciou: “Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e em 
direitos. São dotados de razão e consciência e devem agir em relação uns aos outros 
com espírito de solidariedade”. 
Também em 1948, foi editada a Declaração Americana dos Direitos e 
Deveres do Homem, tendo em considerando: 
Que os povos americanos dignificaram a pessoa humana e que 
suas constituições nacionais reconhecem que as instituições 
jurídicas e políticas, que regem a vida em sociedade, tem 
como finalidade principal a proteção dos direitos essenciais do 
homem e a criação de circunstâncias que lhe permitam 
progredir espiritual e materialmente e alcançar a felicidade. 
E sobre esses pilares normativos e consensuais desenvolveu-se uma extensa e 
complexa teia de instrumentos de proteção e promoção da dignidade humana, todos 
– alguns há mais tempos, outros recentemente
231
 – merecedores da adesão 
brasileira. 
 
230
 DELPÉRÉE, Francis. In O direito à dignidade humana, p. 161-162. Jorge Miranda assevera que “os 
direitos, liberdade e garantias pessoais e os direitos econômicos, sociais e culturais comuns tem a sua fonte 
ética na dignidade da pessoa, de todas as pessoas”. Manual de direito constitucional, p. 167. 
231
 É perceptível que, após a vigência da Constituição de 1988, o Estado brasileiro tomou-se de uma renovada 
disposição de integrar os sistemas internacionais de proteção dos direitos humanos, vindo, com esse ânimo, a 
ratificar uma série de instrumentos adotados pela Organização das Nações Unidas e pela Organização dos 
Estados Americanos já há muito tempo, como é o caso, por exemplo, no âmbito mundial: a Convenção contra 
a Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos e Degradantes, aprovada em 1984 e retificada 
em 1989; e os Pactos Internacionais dos Direitos Civis e Políticos, e dos Direitos Econômicos, Sociais e 
Culturais, adotados em 1966 e reconhecidos pelo Brasil somente em 1992. Com relação à ordem 
interamericana: Convenção Interamericana para Prevenir e Punir a Tortura, de 1985, ratificada em 1989; 
Convenção Americana dos Direitos Humanos (Pacto de San José da Costa Rica), de 1969, incorporado ao 
ordenamento jurídico brasileiro apenas em 1992. A respeito vide Flávia Piovesan, Direitos humanos e o 
direito constitucional internacional, p. 336 e ss. Confira, no mesmo sentido, CANÇADO TRINDADE, 
Antonio Augusto. A proteção Internacional dos Direitos Humanos. Fundamentos Jurídicos e 
Instrumentos Básicos. 
121 
 
Com efeito, o Estado Democrático brasileiro já nasceu fundado na dignidade 
da pessoa humana, mediante construção não casual da Constituinte de 1988, que a 
transformou em princípio maior e principal diretriz constitucional, gravada logo no 
art. 1
o
 do nosso Estatuto Fundamental. Daí o asserto de Luiz Antonio Rizzatto 
Nunes: 
um verdadeiro supraprincípio constitucional que ilumina 
todos os demais princípios e normas constitucionais e 
infraconstitucionais. E por isso não pode o Princípio da 
Dignidade da Pessoa Humana ser desconsiderado em nenhum 
ato de interpretação, aplicação ou criação de normas 
jurídicas.
232
 
 
E afirmar a dignidade humana, faz-se incisivo Cardoso da Costa, significa 
reconhecer: 
a autonomia ética do homem, de cada homem singular e 
concreto, portador de uma vocação e de um destino, únicos e 
irrepetíveis, de realização livre e responsável, a qual há de 
cumprir-se numa relação social (e de solidariedade 
comunitária) assente na igualdade radical entre todos os 
homens – tal que nenhum deles há de ser reduzido a mero 
instrumento ou servo do “outro” (seja outro homem, seja o 
Estado). E sublinhar esse principio como fundamento da 
Republica – isto é, do Estado – é dizer que este se constrói a 
partir da pessoa, e para servi-la. Ou seja – e numa perspectiva 
mais acentuada política – que há de ser um Estado de 
“cidadãos”. 
233
 
Como se pode claramente inferir, a obrigação de respeitar e promover a 
dignidade de todos as pessoas impende tanto ao Estado como a todo e qualquer 
cidadão. Ao Estado, porém, recai obrigação absolutamente peculiar, consistente na 
determinação legal, com fulcro evidentemente constitucional, das condutas 
inconciliáveis com tal dignidade, proibindo-as, até mesmo criminalizando-as, se 
 
232
 RIZZATTO NUNES, Luiz Antonio. O princípio constitucional da dignidade da pessoa humana: 
doutrina e jurisprudência, p. 48-49. E arremata o autor: “O esforço é necessário porque sempre haverá 
aqueles que pretendem dizer ou supor que Dignidade é uma espécie de enfeite, um valor abstrato de difícil 
captação. Só que é bem ao contrário: não só esse princípio é vivo, real, pleno e está em vigor como deve ser 
levado em conta sempre, em qualquer situação” (p. 51). 
233
 CARDOSO DA COSTA, José Manuel M. O princípio da dignidade humana na constituição e na 
jurisprudência constitucional portuguesas, p. 191-192. 
122 
 
necessário
234
. Nessa esteira, ainda caber-lhe-á assegurar efetividade às vedações 
dessa natureza, laborando para que as condutas transgressoras da legislação penal 
não venham a ser cometidas ou, se porventura perpetradas, sejam seus autores 
eficazmente tolhidos em suas ações criminosas e responsabilizados por havê-las 
praticado. 
É, pois, nessa conjuntura que aparece a Polícia, órgão ou conjunto de órgãos 
do Estado, estudado no capítulo I, cuja função, muito aquém das imprecisas 
referências à manutenção de uma amorfa “ordem pública” ou de uma pomposa, mas 
sempre distante segurança pública, deveria ressumar tão-somente no avivamento e 
na preservação da dignidade inerente a cada ser humano, procurando, nesse 
compasso, auxiliar o estabelecimento da paz pública na comunidade, onde os 
indivíduos vivem, convivem e buscam realizar-se enquanto pessoa humana. 
Aliás, outra não é a disposição inserta no Código de Conduta para os 
Funcionários Responsáveis pela Aplicação da Lei – que bem serve como o Código 
de Ética Policial da ONU –, o qual, em seu art. 2º, prescreve veemente: “No 
cumprimento do seu dever, os funcionários responsáveis pela aplicação da lei 
devem respeitar e proteger a dignidade humana, manter e apoiar os direitos 
fundamentais de todas as pessoas”.
 235
 
3.5.1 – A dignidade da pessoa humana e o direito fundamental à 
segurança. 
Ora, não poderá ser definida como digna a existência daquele que vive ao 
desabrigo de segurança
236
, que se acanha sob o peso da desconfiança, do perigo real 
 
234
 PRADO, Luiz Regis. Bem jurídico-penal e constituição, p. 76-77. “A caracterização do injusto material 
advém da proeminência outorgada à liberdade pessoal e à dignidade do homem na Carta Magna, o que 
importa que sua privação só pode ocorrer quando se tratar de ataques a bens de análoga dignidade; dotados 
de relevância ou compatíveis com o dizer constitucional ou, ainda, que se encontrem em sintonia com a 
concepção de Estado de Direito democrático. Disto se depreende o fato de que eventual restrição de um bemsó pode ocorrer em função da indispensável e simultânea garantia de outro valor também de cunho 
constitucional ou inerente à doutrina democrática”. 
235
 Aprovado pela Assembléia Geral das Nações Unidas na sua Resolução 34/169, de 17.12.1979. 
236
 Importa registrar que segurança, em suas acepções mais comezinhas e próprias, traduz, segundo Houaiss : 
“ação ou efeito de tornar seguro; estabilidade, firmeza, seguração; ação ou efeito de assegurar e garantir 
alguma coisa; garantia, fiança, caução; estado, qualidade ou condição de uma pessoa ou coisa que está livre 
de perigos, de incertezas, assegurada de danos e riscos eventuais, afastada de todo mal; estado, condição ou 
123 
 
ou imaginário, visível ou latente, enfim, que tem seu natural desenvolvimento 
coibido pelo medo opressivo. Ou, como sustenta R. Friede: “evidentemente não 
resta suficiente para o indivíduo viver e ser livre, sendo também necessário que 
possua a mínima segurança de que os seus bens corpóreos e incorpóreos não sejam 
alcançados pelo arbítrio estatal ou privado”. 
237
 
A preocupação com a segurança pessoal, que é aquela que de forma mais 
direta aqui nos interessa, jamais foi olvidada quando do alinhamento dos 
fundamentais direitos humanos. Assim, a garantia expressa do direito à segurança e 
os cuidados concernentes a sua concretização logo ganharam espaço nas 
proclamações afins. 
Com efeito, já em 1215, fartos da tirania de soberano de “espírito tacanho e 
trapaceiro”, os barões e clérigos ingleses marcharam contra Londres e obrigaram 
João Sem Terra a assinar aquela que ficaria conhecida nos séculos futuros como a 
grande página das liberdades, a Magna Charta libertatum
238
. Como expressão de 
repulsa aos desmandos cometidos, foram seus artigos preenchidos com várias 
garantias contra o abuso do poder real, especialmente contra aquele amiúde 
perpetrado pelos xerifes, condestáveis e bailios, os funcionários responsáveis pela 
manutenção da ordem 
239
. 
 
caráter daquilo que é firme, seguro, inabalável, ou daquele com quem se pode contar ou em quem se pode 
confiar inteiramente; situação em que não há nada a temer; a tranqüilidade que dela resulta; conjunto de 
processos, de dispositivos, de medidas de precaução que asseguram o sucesso de um empreendimento, do 
funcionamento preciso de um objeto, do cumprimento de algum plano etc.; certeza, infalibilidade; convicção; 
evidência” . 
237
 FRIEDE, R. Lições objetivas de direito constitucional e de teoria geral do estado, p. 132. 
238
 ALTAVILLA, Jayme de. Origem dos direitos dos povos. São Paulo: Ícone, 1989., p. 150. Sem 
superestimar ou subestimar o valor desse documento, o autor ressalta sua posição e seu valor de “molde 
constitucional”. Deixa entrever, ademais, que da resistência que lhe foi imposta pelo rei João Sem Terra e por 
seus pósteros imediatos é que teve origem o Parlamento inglês, forjado a partir das assembléias que se 
reuniam para reivindicar a revigoração da Magna Carta. Foi essa instituição que, ao longo dos séculos 
seguintes, se bateu numa prolongada e por fim exitosa queda de braço com a Coroa arrogante e caprichosa, 
logrando afinal submete-la, com a vitória na Revolução Gloriosa, ao jugo da soberania popular (p. 153). 
Quem com maior requinte expôs essa belíssima saga foi Pontes de Miranda, em sua magistral obra História e 
prática do hábeas corpus - tomo I: direito constitucional e processual comparado. 
239
 Vide, dentre outros, arts. 38: “nenhum sheriff’’ ou bailio poderá tomar à força carroças nem cavalos para 
nossas bagagens, salvo se abonar o preço estipulado...”; 47: “nenhum bailio ou outro funcionário poderá 
obrigar a quem quer que seja a se defender por meio de juramento ante sua simples acusação ou 
testemunho...”; 62: “ficará proibido ao sheriff oprimir e vexar a quem quer que seja ...”. 
124 
 
Passados quatro séculos, muitas batalhas e inúmeros avanços na luta contra a 
tirania, uma nova e definitiva Carta de Direitos – Bill of Rights, 1689 – foi 
conquistada pelo povo inglês, dessa vez não mais subscrita pelo soberano, mas por 
ele apenas estimulada, eis que declarada pelo Parlamento. Lords e comuns, legaram 
ao mundo, em suas próprias palavras, “um conjunto de direitos e liberdades 
incontestáveis”, que jamais poderia ser deduzido em prejuízo do povo. 
E foi no Novo Mundo que essas palavras mais reverberaram, não tardando a 
insuflar os puritanos que, desde 1620, desembarcaram na América do Norte, e ali, 
às duras penas, estabeleceram colônias, a sonhar com a liberdade que na prática lhes 
negavam as autoridades britânicas. Tendo por exemplo Massachusetts, que já em 
1641 promulgara sua Declaração de Direitos, foram as demais colônias 
paulatinamente desenhando suas Constituições, ao tempo que planejavam suas 
independências, conquistadas, após vigorosa refrega, em 4 de julho de 1776. Cerca 
de um mês antes, entretanto, o “bom povo da Virginia”, por seus representantes 
reunidos em Williamsburg, solenemente afirmou que “gozar a vida e a liberdade 
com os meios de adquirir e possuir propriedades, de procurar obter a felicidade e a 
segurança” eram direitos naturais, essenciais e indisponíveis de todos os homens. E 
mais: que o governo somente seria instituído para a proteção e segurança do povo, 
sendo nesse sentido elencadas uma extensa série de garantias contra o arbítrio 
estatal. 
Com o advento da Federação, a Constituição dos Estados Unidos da América 
pode ser elaborada, malgrado a míngua de uma Carta de Direitos, mercê da crença 
que esse espaço restaria bem ocupado pelas pertinentes disposições das Leis 
Magnas estaduais. A contornar tal omissão, ainda em 1789, várias emendas foram 
propostas ao recentíssimo texto formulado, sendo dez delas aprovadas em 1791, 
compreendendo exatamente salvaguardas contra os excessos estatais. 
240
 
 
240 Vale registrar: 1ª - direitos relativos ao culto religioso, à liberdade de expressão e de imprensa, direito de 
reunião e de petição; 2ª - possibilidade de instituição de milícia para a segurança estadual e autorização de 
porte de arma como condição de segurança individual; 3ª - proteção da população contra o arbítrio militar; 4ª 
- privacidade das pessoas, restando as buscas domiciliares sujeitas a prévio mandado judicial, a ser expedido 
mediante demonstração de justa causa; 5ª - devido processo legal: princípios processuais fundamentais como 
125 
 
Enquanto isso, do outro lado do Atlântico, o revolucionário francês, em 
1789, prescreveu, no art. 2
o 
da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, e 
de maneira ainda mais específica, que o direito à segurança afigurava-se natural e 
imprescritível, devendo ser conservado pelo Estado. Reconheceu, ademais, no art. 
12, que “a garantia dos direitos do homem e do cidadão necessita da força pública”, 
ressaltando, entrementes, que “esta força é, pois, instituída pela vantagem de todos e 
não para a utilidade aos quais foi confiada”. E, como penhor dessa ordem 
estabeleceu, no art. 6
o
: “Os que solicitam, expedem, executam ou fazem executar 
ordens arbitrárias devem ser punidos”. Em 1793, em nova Declaração, o direito à 
segurança foi reafirmado – ao lado da igualdade, da liberdade e da propriedade – 
como fim do governo, pois pressuposto da felicidade. E depois definido: 
“Art. 8 – A segurança consiste na proteção, concedida pela 
sociedade a cada um dos seus membros, para a conservação 
de sua pessoa, de seus direitos e de suas propriedades. 
Art. 9 – A lei deve proteger a liberdade pública e individual 
contra a opressão dos que governam”. 
A Declaração de Direitos e Deveres da Constituição francesa de 1975 bisou a 
segurança como direito fundamental do homem em sociedade, concebendo-a como 
o resultado “do concurso de todos, para asseguraros direitos de cada qual” (art. 4). 
Depois, exigindo que cada um cumpra seus deveres, ordenou : “Ninguém é homem 
de bem se não observa sincera e religiosamente as leis. Aquele que viola 
abertamente as leis declara-se em estado de guerra contra a sociedade (...) fere os 
interesses de todos: se torna indigno da benevolência e da estima geral” (arts. 5 a 7 
do rol de deveres).
241
 
 
a instituição do júri para crimes mais graves, proibição do bis in idem (double jeopardy) e da auto-
incriminação, além do direito de justa indenização em caso de desapropriação; 6ª - outros princípios do fair 
trial: julgamento rápido por júri do local dos fatos, devendo o réu ser previamente informado sobre a 
acusação, assegurado-lhes os direitos de contar com advogado e de arrolar e inquirir testemunhas. (para os 
juristas tratou-se, pois, de a miniature code of criminal procedure); 7ª - júri para as causas cíveis; 8ª - 
proibição de fiança ou multa excessivas e de penas cruéis e não usuais; 9ª - caráter meramente 
exemplificativo dos direitos constitucionais; 10ª - competência dos Estados para legislar sobre aquilo que não 
fora objeto de expressa restrição pela Constituição Federal. 
241
 Não é nova, pois, essa idéia, que enxergando o (por vezes apenas o suposto) infrator da lei como 
adversário, propõe-lhe simplesmente o castigo, à guisa de indisfarçável vingança. Hoje, constitucionalmente 
superada, essa tendência, entrementes, prossegue, segundo A. Lindgren Alves, a permear a realidade, 
inclusive influindo na formação de policiais, treinados para “travar uma guerra contra o inimigo, portanto, ‘o 
126 
 
Já plenamente associado à dignidade da pessoa humana, o vertente direito 
ressurgiu assegurada na Declaração Universal dos Direitos do Homem, que em seu 
art. 3
o
 dispôs : “toda pessoa tem direito à vida, à igualdade e à segurança pessoal”. 
Reiterando esse comando, o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos 
cuidou, em seu art. 9
o
, de pormenorizá-lo, associando liberdade e segurança pessoal 
à proteção contra o arbítrio estatal, notadamente no tocante à prisão havida ao largo 
 
diferente’, assim facilitando a desumanização ideológica do delinqüente e conseqüente extrapolação da 
função de combate ao crime na forma de inaceitáveis abusos em tempo de paz”. E conclui: “A guerra, como 
é sabido, tem regras próprias no direito internacional. E o criminoso comum, por mais ignóbil que nos afigure 
com sua atuação transgressora, é também um ser humano integral. Cabe ao Estado, portanto, não somente 
reprimi-lo, mas, ao fazê-lo, procurar respeitar seus direitos. Essa é a única garantia que temos de que os 
nossos sempre serão respeitados” (A fotografia de um conceito, p. 10). Em que pese o inelutável acerto 
dessa sentença, notadamente no que tange ao trabalho policial, parece de bom alvitre registrar a preocupação 
de Volney Corrêa Leite de Moraes Jr., porquanto atine a um segundo exagero, ora consistente na recusa, 
verdadeiramente radical, de tratar o criminoso como tal, ou seja, de reconhecê-lo como alguém que, 
diferentemente da esmagadora maioria das pessoas, e através de uma opção racional e voluntária, pisoteou os 
valores agasalhados pela sociedade, atentando contra os seus integrantes, aos quais inexoravelmente 
representa um risco e perigo. Alude, com esse sentido, ao laxismo penal, que definiu como a “orientação 
doutrinária visceralmente em desacordo com os textos clássicos e modernos sobre direitos fundamentais do 
ser humano”. Completa, afiançando que os adeptos desse pensamento “não votam o menor apreço pelos 
Direitos Humanos”, pois simpáticos exatamente àqueles que transgridem a lei, até mesmo com violência. A 
explicar esse credo, o autor reclama da sobreposição dos direitos sociais aos direitos individuais, havida por 
alguns na vaza do desprezo pela doutrina dos direitos naturais, paradoxalmente aquela que fulcra as 
declarações históricas dos direitos do homem (Direitos humanos, pp. 45-46). É Michel Foucault que indica 
o ponto de equilíbrio: “O princípio da moderação das penas, mesmo quando se trata de castigar o inimigo do 
corpo social, se articula, em primeiro lugar, como um discurso do coração. Melhor, ele jorra como um grito 
do corpo que se revolta ao ver ou ao imaginar crueldade demais. A formulação do princípio de que a 
penalidade deve permanecer ‘humana’ é feita, entre os reformadores, na primeira pessoa. Como se 
exprimisse imediatamente a sensibilidade daquele que fala; como se o corpo do filósofo ou do teórico viesse, 
entre a fúria e o carrasco do suplicado, afirmar sua própria lei e impô-la finalmente a toda a economia das 
penas. Lirismo que manifesta a impotência em encontrar o fundamento racional de um cálculo penal? Entre o 
princípio contratual que rejeita o criminoso para fora da sociedade e a imagem do monstro ‘vomitado’ pela 
natureza, onde encontrar um limite, senão na natureza humana que se manifesta – não no rigor da lei, não na 
ferocidade do delinqüente – mas na sensibilidade do homem razoável que faz a lei e não comete crimes”. E 
depois complementa: “O sofrimento que deve ser excluído pela suavização das penas é o dos juízes ou dos 
espectadores com tudo o que pode acarretar de endurecimento, de ferocidade trazida pelo hábito, ou ao 
contrário de piedade indevida, de indulgência sem fundamento. O que se precisa moderar e calcular, são os 
efeitos de retorno do castigo sobre a instância que pune e o poder que ela pretende exercer” (Vigiar e punir : 
nascimento da prisão, p. 77). Eis, pois, a opção constitucional pela dignidade da pessoa humana, referência 
geral e inexcedível no Estado Democrático de Direito. Jorge Miranda, reportando-se ao alcance dado ao 
princípio pela Constituição portuguesa, em contexto absolutamente próximo ao brasileiro, acaba por afiançar 
a correção das ponderações ínsitas tanto no pronunciamento de Lindgren Alves, como da advertência de 
Volney, que buscam distância da radicalização. Afirma o jurista lusitano que “a dignidade da pessoa é da 
pessoa concreta, na sua vida real e quotidiana; não é de um ser ideal e abstracto (Sic). É o homem ou a 
mulher, tal como existe, que a ordem jurídica considera irredutível e insubstituível e cujos direitos 
fundamentais a Constituição enuncia e protege”. Nesse caminhar, em que à cada pessoa é reconhecido valor 
eminente, aflora naturalmente inaceitável, em qualquer circunstância, a pena de morte ou outras formas de a 
violação direitos à vida, à integridade física e psíquica e à proteção contra qualquer forma de atentado contra 
a dignidade individual e social de cada um. Por fim declarou que, por força do focalizado princípio, “a 
Constituição afasta e repudia qualquer tipo de interpretação transpersonalista ou simplesmente autoritária que 
pudesse permitir o sacrifício dos direitos ou até da personalidade individual em nome de pretensos interesses 
coletivos” (MIRANDA, Jorge. Manual de Direito Constitucional, p. 169-170). 
127 
 
do processo legal. Quanto aos encarceramentos legítimos, determinou tratamento 
humano e respeitoso, jamais atentatória contra a dignidade do preso (art. 10). 
Dessa linha não distaram os correspondentes preceitos estabelecidos nos 
sistemas regionais de proteção dos direitos humanos, em contexto de grande 
identidade nos âmbitos interamericano – a Declaração Americana dos Direitos e 
Deveres do Homem (art. 1
o
) e a Convenção Americana sobre Direitos Humanos 
(Pacto de São José da Costa Rica, art. 7
 o
) – e europeu – Convenção Européia para a 
Proteção dos Direitos Humanos e das Liberdades Fundamentais (art. 5
o
) –, e de 
forma mais breve pela Carta Africana dos Direitos Humanos e dos Povos (art. 6
o
) e 
naapenas projetada Carta dos Direitos Humanos e dos Povos do Mundo Árabe (art. 
4
o
). 
No Brasil, o direito à segurança individual retroage à Constituição de 1824, 
que no “caput” do seu art. 179 ladeou-o à liberdade e à propriedade. E a torná-lo 
concreto a Carta Imperial consagrou, nos incisos desse dispositivo, a legalidade 
como parâmetro único para o exercício da liberdade em suas várias formas 
(consciência, locomoção etc.), diversas ressalvas contra a prisão arbitrária, a 
proscrição da tortura e de suplícios do gênero, dentre outras medidas assecuratórias 
da dignidade humana. 
242
 
Com a República nada mudou, permanecendo assegurada, na Constituição de 
1891, a inviolabilidade ao direito à segurança individual (art. 72). Idem com a Lei 
Fundamental de 1934 (art. 113), remanescendo esse direito constitucionalizado 
mesmo com o advento do Estado Novo e de sua dura Carta em 1937 (art. 122). 
 
242
 Comentando a Carta Imperial, José Antonio Pimenta Bueno registrou a respeito: “O direito de segurança 
é a garantia de liberdade e mais direitos naturais; é o primeiro sentimento do homem e mesmo o instinto dos 
animais, é a conservação, a defesa de si próprio, é a proteção da existência individual, o direito de viver e não 
sofrer. Conseqüente, no estado social é o direito que o homem tem de ser protegido pela lei e sociedade em 
sua vida, liberdade, propriedade, sua saúde, reputação e mais bens seus. É finalmente o direito de não ser 
sujeito senão à ação da lei, de nada sofrer de arbitrário, de ilegítimo. É a proteção social que substitui a 
proteção, a força individual do homem, que ele faria prevalecer se não estivesse em sociedade, e que pela 
natureza das coisas ele conserva quando se acha em circunstâncias tais que não pode pedir ou receber o 
socorro social para defender-se” (Dos direitos dos brasileiros, p. 698). 
128 
 
As Constituições brasileiras seguintes conservaram tal previsão, sempre 
arrolada entre os direitos e garantias individuais. Em 1946 foi a segurança 
individual preconizada no art. 141 da Lei Maior. Já sem a especificação 
“individual”, o direito à segurança foi consignado no art. 150 da Constituição de 
1967, sendo nessa forma conservado, então no bojo do art. 153, no texto modificado 
pela Emenda nº 1, de 17 de outubro de 1969. 
Nessa senda, e como não poderia se haver de maneira diferenciada ante a 
fundação de um Estado Democrático de Direito, o direito à segurança despontou, na 
Constituição da República promulgada em 5 de outubro de 1988, completando – 
ombreado aos direitos à vida, à liberdade, à igualdade e à propriedade – o rol dos 
direitos individuais, consolidado no “caput” do seu art. 5
o
. 
Acerca da garantia constitucional da segurança individual comenta Manoel 
Gonçalves Ferreira Filho: 
A segurança do indivíduo na comunidade demanda, segundo uma 
experiência multissecular, o Estado de Direito. Ou seja, um 
‘governo de leis e não de homens’. Governo este em que cada um 
seja livre de fazer o que as leis não proíbem, em que ninguém 
estará obrigado a fazer senão o que as leis determinam 
(Constituição art. 5
o
, II). Portanto, um governo de que esteja 
proscrito o arbítrio. Numa palavra, um governo baseado da 
legalidade e limitado por ela. 
243
 
Releva notar, nesse diapasão, que não basta a positivação constitucional para 
que o direito à segurança se torne uma realidade. Para a consecução dos objetivos 
de segurança individual e comunitária, impõe-se que, para muito mais, venham os 
governantes a pautar suas ações pelos dispositivos concernentes, especialmente ao 
criar, estruturar, organizar, propiciar e manter o funcionamento dos organismos 
públicos afins, especialmente dos órgãos polícias, aos quais a Carta Magna confiou 
a proteção da sociedade. De efeito, e quem nos assegura ainda é Ferreira Filho, os 
maiores riscos à segurança – a começar pela segurança do próprio Estado 
 
243
 FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Aspectos do direito constitucional contemporâneo, p. 151. 
129 
 
Democrático, frise-se –, provém exatamente daqueles que governam irresponsável e 
criminosamente : 
A principal ameaça é a de uma delinqüecência do poder 
derivada da desmoralização dos governos por força da 
corrupção inextirpada e recorrente. Conquanto seja óbvio que 
nem todos os homens públicos, nem sequer a maioria destes 
são corruptos, a imagem que se difunde é que toda a “classe 
política” o é. Resulta isto de escândalos que rebentam em toda 
parte, em todos os níveis do Poder, quase todos os dias. Tal 
situação abre oportunidade para a derrubada das instituições 
em nome da salvação pública. 
244
 
Portanto, é de se indagar: governantes irresponsáveis e corruptos haverão de 
trabalhar em prol de uma polícia que – porque comprometida com a probidade e a 
dignidade humana, e além disso eficiente e bem aparelhada – certamente haverá de 
se voltar contra e coibir as aldabrices do poder político, perpetradas quer por 
aqueles que ocupam cargos, quer por seus sequazes e aqueloutros favorecidos ? 
Maria Victória Benevides, tangenciando o tema, identifica como “um dos principais 
vícios da polícia brasileira (...) a privatização da política, a privatização do poder, 
em todos os níveis”. E explica: 
É no nível federal que os governadores se apropriam 
privadamente do poder e que o fazem em detrimento da sua 
responsabilidade em relação ao programa de governo, ao 
atendimento de prioridades públicas; é o representante do 
Legislativo que usa o seu mandato face aos interesses 
privados; e pode ser também a privatização dos órgãos 
policiais, em relação a um determinado governador, em 
relação a uma determinada corrente política, em relação a 
determinadas autoridades ou a determinados grupos nos 
órgãos estatais, em detrimento do interesse público do 
povo.
245
 
Qual o governante, se não verdadeiramente honesto, competente e ainda 
realizador, que concordará, pois, em conferir alguma autonomia – de direito e não 
apenas faticamente por casuísmo, fraqueza ou inaptidão – aos órgãos policiais, 
dotando-lhes, ademais, com as condições de reprimir não apenas a criminalidade 
 
244
 Ibidem, p. 152-153. 
245
 BENEVIDES, Maria Victoria de Mesquita, op. cit., p. 81-82. 
130 
 
rasteira, mas, também, aquela cometida em detrimento da própria moralidade 
pública, e que representa o risco maior, como acima evidenciado? Qual governante, 
senão desse jaez, tolerará ser – ele próprio ou seus parceiros e financiadores – 
eficientemente investigado por profissionais de alto gabarito técnico e ético, sem 
enxergá-los como estorvos e meros subordinados? 
Como, então, com a polícia manietada, poderá a população estar segura em 
relação àqueles que destroem o Estado Democrático? O que uma polícia inerme 
poderá contra aqueles que fazem perenes os muitos fatores que conduzem a todas as 
espécies de criminalidade, quer institucionalizando-os, para proveito próprio e de 
seus parceiros, quer simplesmente omitindo-se diante dos obstáculos que 
persistentemente se antepõe à conquista da dignidade humana, como a fome, a 
ignorância, a corrupção e a injustiça? Contra aqueles que não se acanham em 
utilizar exatamente essas e outras cadeias para manter as forças policiais incapazes 
de discernir quem são os verdadeiros e grandes criminosos, empurrando-as cada vez 
mais para o front nos morros ou periferias, para matar ou morrer, a bem das 
estatísticas? 
Todas estas questões e dificuldades haverão de ser convincentemente 
solvidas antes que o direito à segurança venha a transcender a condição de uma 
mera promessa gráfica. Lembrando Dallari, ora se nos é lícito afirmar que qualquer 
modelo de polícia forjado ao largo das vertentes preocupações servirá, tão-somente, 
como objeto de opressão, prestando-se a reprimir e nada mais: daí, por sorte,atacará 
aos que se aventuram ao crime, movidos por tendência ou por falta de opção; e 
falhando, como inevitavelmente mais hora ou menos hora haverá de acontecer, 
voltar-se-á contra qualquer cidadão, eis que nas trevas eternas que reinam nas 
mentes repressoras todos os gatos são pardos (e na prática, como afirma o ditado, 
todos os pardos suspeitos em potencial – culpados até que provem o contrário). 
É óbvio que essa polícia desserve à efetiva proteção de cada indivíduo, não 
podendo, pois, ser tomada como aquela que se afigura inerente e foi jurada pela 
Constituição da República. Essa é a polícia tradicional, a polícia do centenário 
131 
 
apartheid brasileiro, aquela que, segundo a sabedoria popular, somente exerce o seu 
poder contra os desvalidos – pretos, prostitutas e pobres – ou seja, contra o chamado 
povão! 
É Bobbio quem categoricamente afirma que o grande e grave desafio dos 
dias atuais não consiste em dar um adequado fundamento aos direitos do homem, 
mas sim em efetiva e eficazmente protegê-los
246
. Não resta dúvida que em face da 
conformação constitucional brasileira, o referido desafio ganha o campo das 
instituições, perante as quais desenrolam-se as relações sociais. No que pertine à 
segurança individual, exsurge de toda imperiosa a adequação policial, ora posta em 
evidência, a fim de que o braço armado do Estado deixe de covardemente 
representar uma possível ameaça à população para denodadamente defendê-la, 
consoante o inexorável compromisso do Estado brasileiro com a promoção e a 
proteção dos direitos humanos fundamentais. 
3.5.2. A dignidade da pessoa humana, a segurança pessoal e o devido 
processo legal. 
José Afonso da Silva define o direito à segurança como o conjunto de 
garantias constitucionais que “aparelha situações, proibições, limitações e 
procedimentos destinados a assegurar o exercício e o gozo de algum direito 
individual fundamental (intimidade, liberdade pessoal ou incolumidade física ou 
moral)
247
. 
Dentre essas garantias destaca-se, sobremaneira, aquela que, em razão de sua 
relevância histórica, ética e jurídica, constitui-se a maior salvaguarda contra o abuso 
do poder estatal, e que desde 1998 passou a figurar numa Constituição brasileira, 
cujo art. 5º, LIV, ineditamente dispõe que “ninguém será privado da liberdade ou de 
seus bens sem o devido processo legal”. 
Malgrado a recentidade da sua inclusão no ordenamento constitucional 
brasileiro, é bem verdade que a cláusula do due process of law não se apresenta 
 
246
 BOBBIO, Norberto. A era dos direitos, p. 25. 
247
 SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo, p. 435. 
132 
 
nenhuma novidade, sendo, de longa data, familiar, especialmente à nossa doutrina, 
sempre iluminada, nesse particular, pelo direito alienígena. 
Realmente, a versada fórmula constitucional aproxima-se de completar os 
seus oitocentos anos, posto que já em 1215, a Magna Carta prescrevia: “ninguém 
poderá ser detido, preso ou despojado de seus bens, costumes e liberdades, senão 
em virtude de julgamento de seus pares segundo a lei do País”. Em 1354, foi a vez 
de Eduardo III jurar que, na Inglaterra, “nenhum homem, de qualquer estado ou 
condição que seja, será expulso de suas terras ou posses, nem detido, nem preso, 
nem indiciado, nem levado à morte, sem que seja chamado para responder (a uma 
acusação), sob o devido processo legal”. 
E a força desse princípio, numa cultura em que o amor pela liberdade foi 
realmente enraizado, pode melhor ser aferida mediante a percepção de sua epopéia 
transatlântica, pois foi em território norte-americano – onde despontou inicialmente 
na Lei para as Liberdades do Povo de Maryland de 1639, umbilicalmente ligado à 
Magna Carta, e depois, como a primeira lei genuinamente americana do gênero, no 
Corpo de Liberdades de Massachusetts de 1641 – que o devido processo legal 
firmou-se como a garantia de todos os direitos constitucionalmente reconhecidos.
248
 
A partir de 1776, a cláusula foi sendo paulatinamente introduzida em 
praticamente todas as constituições elaboradas a guisa de manifesto de emancipação 
das ex-colônias, constando, por exemplo, da pioneira Declaração de Direitos do 
Bom Povo da Virgínia (adotada precedentemente à independência americana), nos 
termos seguintes : 
Em todos os processos por crimes capitais ou outros, todo 
indivíduo tem direito de indagar da causa e da natureza da 
acusação que lhe é intentada; tem de ser acareado com seus 
acusadores e com as testemunhas; de apresentar ou requerer a 
apresentação de testemunhas e de tudo que seja a seu favor, de 
 
248
 SCHWARTZ, Bernard. Os grandes direitos da humanidade : the bill of rights, p. 41-44. Comenta o 
autor, que Sir Edward Coke, em estudos datados do século XVII, concluiu pela equivalência das expressões 
“pela lei da terra” e “devido processo legal”, compondo ambas, através das correspondentes formulações, 
“como uma proibição em termos absolutos de toda e qualquer prisão arbitrária; e como um compromisso 
solene de dispensar a todos uma justiça plena, livre e rápida ... e igual para todos” (p. 16). 
133 
 
exigir processo rápido por um júri imparcial da sua 
circunvizinhança, sem o consentimento unânime do qual ele 
não poderá ser declarado culpado. Não pode ser forçado a 
produzir provas contra si próprio; e nenhum indivíduo pode 
ser privado de sua liberdade, a não ser por julgamento de seus 
pares, em virtude da lei do país. 
Sobrevindo a Federação, a Constituição dos Estados Unidos, promulgada em 
1789, deixou de apresentar uma carta de direitos, mercê da crença que tudo o que 
não fora proibido pela Lei Maior restava permitido, mantendo-se dessa forma 
preservadas todas as garantias arroladas nas declarações estaduais. Todavia, tal 
situação desde cedo não se apresentou satisfatória, levantando-se, em ressonância 
ao forte sentimento popular, pronunciado ainda durante o processo de ratificação 
pelas convenções estaduais, um sem número de altas vozes em favor de uma 
Declaração Federal de Direitos. Assim, sem qualquer tardança, em 1791 foram 
aprovadas – com a derradeira ratificação da Virgínia, em 15 de dezembro – dez 
emendas à Constituição americana, elaboradas por James Madison, com absoluto 
lastro nas disposições estaduais assecuratórias das liberdades pessoais. Dentre elas, 
importa destacar a famosa 5
a
 Emenda: 
Nenhuma pessoa será obrigada a responder por um crime 
capital ou infamante, salvo por denúncia ou pronúncia de um 
grande júri, exceto, em se tratando de casos que, em tempo 
de guerra ou de perigo público, ocorram nas forças terrestres 
ou navais, ou na milícia, quando em serviço ativo; nenhuma 
pessoa será, pelo mesmo crime, submetida duas vezes a 
julgamento que possa causar-lhe a perda da vida ou de algum 
membro; nem será obrigada a depor contra si em processo 
criminal ou ser privada da vida, liberdade ou propriedade 
sem processo legal regular;[...].
249
 
 
249
 Grifo do autor. À perfeita compreensão das dimensões e da efetividade das garantias instituídas em 
consonância à vontade popular aflora aqui, de todo necessário, proceder à conjugação desse enunciado com 
as pertinentes salvaguardas nesse mesmo contexto, mas insertas na Constituição Americana – vide nota 245 –
dentre as quais sobressaem a 4
a
 Emenda (Não será infringido o direito do povo à inviolabilidade de suas 
pessoas, casas, papéis e haveres, contra buscas e apreensões injustificáveis e não se expedirá mandado a 
não ser mediante indícios de culpabilidade, confirmados por juramento ou declaração, e nele descreverão 
particularmente o lugar da busca e as pessoas ou coisas a serem apreendidas), a 6
a
 Emenda (Em todos os 
processos criminais o acusado terá direito a julgamento rápido e público, por um júri imparcialdo Estado e 
distrito onde o crime houver sido cometido, distrito esse que será previamente delimitado por lei; a ser 
informado da natureza e causa da acusação; a ser acareado com as testemunhas de acusação; a dispor dos 
meios compulsórios para forçar o comparecimento de testemunhas de defesa e a ser assistido por advogado) 
134 
 
Sobre a sua magnitude expôs Schwartz : 
Quando Madison incluiu a expressão “devido processo” no 
que viria a ser a Quinta Emenda, garantiu à Declaração de 
Direitos a possibilidade de ser utilizada para atender às 
condições futuras. Devido processo expressa algo mais que 
posições restritas do século XVIII; é um reflexo duradouro da 
experiência com a natureza humana. O conceito de devido 
processo tem permitido ao Supremo Tribunal dos Estados 
Unidos atuar virtualmente como uma convenção constituinte 
permanente, adaptando o texto constitucional às necessidades 
das épocas posteriores. 
250
 
Mister, pois, atentar para a amplitude da fórmula do due process of law, que 
abriga dois sentidos, sendo um de ordem objetiva ou formal e outro de ordem 
subjetiva ou material. Malgrado razão assista a Sampaio Dória ao declará-lo 
“insuscetível de confinamentos conceituais, que o esvaziariam em seus significados 
mais fecundos”
251
, o conteúdo substancial do due process pode bem ser 
compreendido a partir da didática lição do Justice Roberts, que o apresenta como a 
garantia que “reclama apenas que a lei não seja desarrazoada, arbitrária ou 
caprichosa e que os meios escolhidos tenham um real e substancial nexo com o 
objetivo que se menciona atingir”.
252
 Já sob o aspecto material, aquele que neste 
 
e a 8
a
 Emenda (Não se exigirão fianças exageradas, não se imporão multas excessivas, nem se infligirão 
penas cruéis e desumanas). Vide ainda SCHWARTZ, Bernard. Direito Constitucional Americano. 
250
 SCHWARTZ, Bernard. In Os grandes direitos da humanidade: the bill of rights, p. 193. Com sentido 
complementar esclareceu o Justice Felix Frankfurter: “Due process não pode ser aprisionado dentro dos 
traiçoeiros lindes de uma fórmula ... due process é o produto da história, da razão, do fluxo das decisões 
passadas e da inabalável confiança na força da fé democrática que professamos. Não é um padrão. É um 
processo. É um delicado processo de adaptação que inevitavelmente envolve o exercício de julgamento por 
aqueles a quem a Constituição confiou o desdobramento desse processo” (Apud SAMPAIO DÓRIA, Antonio 
Roberto. Direito constitucional tributário e due process of law: ensaio sobre o controle judicial da 
razoabilidade das leis, p. 33). 
251
 SAMPAIO DÓRIA, Antonio Roberto. Op. cit., p. 33. A reforçar tal tese o autor reporta-se à dicção do 
Chief-Justice Earl Warren: “Due process é um conceito esquivo. Suas exatas fronteiras são indefiníveis e seu 
conteúdo varia de acordo com os específicos contextos fáticos”. 
252
 Ibidem, p. 32. Ou na locução menos concisa do Ministro Celso de Mello: “Todos sabemos que a cláusula 
do devido processo legal – objeto de expressa proclamação pelo art. 5º, LIV, da Constituição – deve ser 
entendida, na abrangência de sua noção conceitual, não só no aspecto meramente formal, que impõe 
restrições de caráter ritual à atuação do Poder Público, mas, sobretudo, em sua dimensão material, que atua 
como decisivo obstáculo à edição de atos legislativos de conteúdo arbitrário ou irrazoável. A essência do 
substantive due process of law reside na necessidade de proteger os direitos e as liberdades das pessoas 
contra qualquer modalidade de legislação que se revele opressiva ou, como no caso, destituída do necessário 
coeficiente de razoabilidade. Isso significa, dentro da perspectiva da extensão da teoria do desvio de poder ao 
plano das atividades legislativas do Estado, que este não dispõe de competência para legislar ilimitadamente, 
de forma imoderada e irresponsável, gerando, com seu comportamento inconstitucional, situações normativas 
de absoluta distorção e, até mesmo, de subversão dos fins que regem o desempenho da função estatal”. 
135 
 
momento mais nos interessa, surge o devido processo legal como a exigência 
constitucional de um processo legalmente ordenado, vincado pelo pleno e irrestrito 
respeito às garantias necessárias ao regular exercício da defesa contra o arbítrio, 
especialmente na órbita penal. Ou, na acendrada visão de R. Friede: 
O conjunto complexo e plural de “diversas garantias 
constitucionais” que, associados aos parâmetros da ética e da 
moral, buscam, em última análise, assegurar o correto 
exercício da jurisdição, ao mesmo tempo que legitimam o 
próprio poder jurisdicional exercido pelo Julgador e 
titularizado pelo Estado Juiz.
253
 
É no Estado Democrático de Direito que, à luz da supremacia constitucional, 
o processo transforma-se de simples instrumento de justiça em garantia da 
liberdade
254
. Por essa via, a tutela constitucional do processo define como devido 
apenas o processo legal que realiza a vontade da Constituição, alcançando os 
objetivos desse Estado, antes dissecados. 
Nessa conjuntura, como reconhece Jorge de Figueiredo Dias, o direito 
processual penal surge, e por excelência, como o “direito constitucional aplicado”, 
como “sismógrafo” ou “espelho da realidade constitucional”, “sintoma do espírito 
político-constitucional de um ordenamento jurídico”.
255
 
Com efeito, servindo como consentâneo termômetro à aferição da 
importância devotada por um povo ao resguardo dos direitos concretizadores da 
dignidade humana, o devido processo penal perfaz fidedigna expressão do 
 
(ADIn 1.158-8, pleno, em 19.12.1994. Com o mesmo teor: ADIMCQ 1063/DF, pleno, em 18.5.1994, DJ 
27.4.01). 
253
 FRIEDE, R. A garantia constitucional do devido processo legal, p. 49. 
254
 GRINOVER, Ada Pellegrini. Novas tendências do direito processual: de acordo com a constituição de 
1988, p. 15. 
255
 Apud DOTTI, René Ariel. A reforma do processo penal, p. 500. Osmar Fernando de Medeiros observa 
que o processo constitucional penal prende-se à preservação da dignidade da pessoa humana, colocando num 
plano secundário o interesse público, “justamente para defende-lo, na garantia de que diante da dinâmica 
social e histórica, o homem prevaleça sobre a posição (de réu, testemunha, parte) que ocupa”. E em reforço 
dessa tese invoca o citado jurista português, o qual enfatiza : “Constitui (o processo penal) um dos lugares 
por excelência em que tem de encontrar-se a solução do conflito entre as exigências comunitárias e a 
liberdade de realização da liberdade individual. Apenas podem postular, em verdade, uma ‘agressão’ na 
esfera desta; agressão a que não falta a utilização de meios coercitivos (prisão preventiva, exames, buscas, 
apreensões) e que mais difícil se torna de justificar e suportar por se dirigir, não a criminosos convictos, mas 
a mero “suspeitos” – tantas vezes inocentes – ou mesmo a “terceiros” (declarantes, testemunhas e até pessoas 
sem qualquer participação processual). Devido processo legal e indevido processo penal, p. 61. 
136 
 
garantismo, entendido, enquanto filosofia política, no sistema que “funda o Estado 
sobre os direitos fundamentais dos cidadãos e que, precisamente do reconhecimento 
e da efetiva proteção (não basta o reconhecimento!) destes direitos, extrai sua 
legitimidade e também a capacidade de se renovar, sem recorrer à violência 
subversiva”. 
256
 
Na mesma linha também aparece Winfried Hassemer, que além de afiançar 
que “o direito processual penal não é outra coisa senão direito constitucional 
aplicado” proclama, ainda, com os pés firmes na realidade, que “isto vale com mais 
ênfase no tocante às medidas de forçado inquérito policial”. 
257
 
Se, porém, é verdade que a referida assertiva emerge inquestionável, exsurge 
igualmente inatacável, de outra face, o não menos sensato alerta de Ferrajoli : 
Podemos ter um processo penal perfeito, mas ele será sempre 
uma pobre realidade se o monopólio judiciário da força contra 
os cidadãos não for absoluto e exista uma força pública que 
aja sem vínculos legais. O caso limite e dramático acontece 
 
256
 Norberto Bobbio, prefaciando a primeira edição italiana da obra Direito e razão: teoria do garantismo 
penal, de Luigi Ferrajoli (op. cit., p. 9-10). Já sob o ponto de vista jurídico, como explica o próprio Ferrajoli, 
o garantismo penal projeta-se “como um sistema de vínculos impostos à função punitiva do Estado em 
garantia dos direitos do cidadão” (p. 684), o que, sem qualquer margem de dúvida, remete imediatamente ao 
vislumbre da cláusula constitucional do devido processo penal. Luiz Flávio Gomes, atento às conseqüências 
conformadoras que dos tratados internacionais ratificados pelo Brasil – in casu observados a Declaração 
Universal dos Direitos do Homem, o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos e a Convenção 
Interamericana dos Direitos Humanos (Pacto de San José da Costa Rica) – decorrem ao ordenamento jurídico 
pátrio, identifica o conteúdo do devido processo penal como uma série de “garantias mínimas”, que em 
síntese podem ser apresentadas através do seguinte quadro: relacionadas com a jurisdição: garantia de acesso 
à jurisdição, garantia do juiz natural, garantia do juiz independente e imparcial, garantia da decisão 
fundamentada secundum ius e secundum petitum, garantia do duplo grau de jurisdição e da proibição da 
reformatio in pejus e garantia da efetividade das decisões. Relacionadas com as partes: garantia da igualdade 
de armas ou do tratamento paritário, garantia da ampla defesa (abarcando as garantias da informação pessoal 
do inteiro teor da acusação, de autodefesa, de audiência, intérprete ou tradutor, de presença nos atos 
processuais, de participação contraditória ou dialética, mediante reperguntas etc., de comunicação livre e 
reservada com o seu defensor, de defesa técnica, de prazo razoável para a preparação da defesa com “meios 
adequados”, de não auto-incriminação, de proibição do cerceamento da defesa). Relacionadas com as provas: 
garantia de ser tratado como inocente, garantia de legalidade da comprovação da culpa, garantia da 
judicialidade da comprovação da culpabilidade. Relacionadas com o processo: garantia do modelo acusatório 
de processo, garantia do contraditório, garantia do processo público, garantia de ser julgado sem demora 
excessiva, a garantia do non bis in idem processual. Relacionadas com as medidas cautelares: garantias 
mínimas relacionadas com a prisão cautelar (de ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária 
competente e outras garantias asseguradas ao preso cautelar). As garantias mínimas do devido processo 
criminal nos sistemas jurídicos brasileiro e interamericano: estudo introdutório. GOMES, Luiz Flávio, 
PIOVESAN, Flávia (Coords). O sistema interamericano de proteção dos direitos humanos e o direito 
brasileiro, p. 182-257. 
257
 HASSEMER, Winfried. Segurança pública no estado de direito, p. 62. 
137 
 
quando a variação entre o nível normativo da legalidade e 
aquele efetivo da realidade alcança as formas terríveis 
experimentadas nos regimes militares da América Latina. Mas 
também nos ordenamentos nos quais o princípio da legalidade 
é formalmente respeitado o monopólio legal e judiciário pode 
ser esvanecido pelos poderes paralelos mais ou menos 
verificáveis em tema de liberdade conferidos pelas mesmas 
leis às forças policiais. 
258
 
Daí, portanto, a essencialidade da compreensão que a nossa Lei 
Fundamental, e bem assim o Estado Democrático de Direito por ela constituído, 
mui dificilmente deixarão o papel e as belas lições da doutrina enquanto na prática, 
na fria realidade das ruas, durante os dias que indiferentemente se sucedem, a 
polícia, especialmente a judiciária, permanecer, em regra, negligenciada pelos 
poderes públicos, manipulada pelos governantes, menosprezada por boa parte dos 
juristas e dos operadores do direito, e ignorada pela população em geral. 
Impõe-se, em mão de direção contrária, a fim de que a dignidade humana e o 
direito à segurança que se lhe ostenta intrínseco possam efetivamente ganhar corpo 
entre nós, que a polícia judiciária brasileira seja, num primeiro momento, totalmente 
reestruturada, em afã levado a efeito em obediência aos parâmetros democráticos 
constitucionalmente cristalizados – consoante explanaremos no capítulo seguinte –, 
para então, quando já em condições aptas e seguras ao otimizado exercício desse 
mister purificado, levar a termo a devida investigação criminal, como unicamente 
se haverá de se conceber a legítima atuação policial judiciária, e que balizada pelas 
garantias do justo processo encerrará, porquanto próprio do Estado Democrático de 
Direito, “o respeito absoluto à pessoa humana que, casualmente, é suspeita na 
investigação”.
259
 
 
 
 
 
 
 
258
 FERRAJOLI, Luigi. Op. cit., p. 614. 
259
 CHOUKR, Fauzi Hassan. Garantias constitucionais na investigação criminal, p. 185. 
138 
 
 
 
 
 
CAPÍTULO 4 - A POLÍCIA JUDICIÁRIA NA 
 CONSTITUIÇÃO BRASILEIRA DE 1988 E A SUA 
 FIDELIDADE AOS PARADIGMAS DEMOCRÁTICOS 
4.1 Introdução. 
Tendo despontado na França há pouco mais de dois séculos, a novel 
instituição emergiu dum cenário revolucionário, ao fim do período que ficou 
conhecido como o Terror, a título de reação às atrocidades patrocinadas pela 
denominada Lei dos Suspeitos, de 17 de setembro de 1793, que serviu como 
fundamento para que a municipalidade e o Comitê Geral de Segurança, órgãos 
puramente administrativos e absolutamente distantes de qualquer ideal de justiça, 
sumariassem e condenassem à guilhotina todos aqueles dos quais desconfiassem da 
prática de alguma forma de rebeldia ou de traição. 
Os abusos, assim perpetrados em larga escala, conduziram à incontinenti 
reorganização dos órgãos de justiça criminal, olvidados durante a fase anterior 
260
. 
Colimando-se a devida especialização e a adequação às exigências afins, deu-se 
forma legal, pois, em 25 de outubro de 1795, à polícia judiciária, idealizada como a 
função estatal encarregada de investigar os delitos que a atividade de polícia 
administrativa não pode evitar que fossem cometidos, coligindo as provas e 
entregando os autores aos tribunais incumbidos de puni-los. 
No Brasil, na forma já vista, a polícia judiciária estruturou-se em 1842, 
consoante previsão dos arts. 1
o
 e 3
o
 do Regulamento nº 120, de 31 de janeiro, tendo 
por atribuições proceder ao corpo de delito e à formação da culpa aos delinqüentes, 
prender os condenados, conceder mandados de busca e, ainda, julgar as chamadas 
infrações policiais. 
 
260
 PACHECO, José Maria Tijerino. Policial judicial: una perspectiva latinoamericana, p. 43. 
139 
 
Na República, os contornos da polícia judiciária foram moldados pelo art. 4
o
 
do Código de Processo Penal de 1941, que a identificou como a atividade voltada 
primacialmente à elucidação das infrações penais, mediante constatação da 
materialidade e apuração de suas circunstâncias e autoria. Em 1967, essa atividade 
aclaratória ganhou presença constitucional, cometida à Polícia Federal (art. 8
o
, VI, 
“c”, da Constituição promulgada em 24 de maio). 
Finalmente, em 1988, no bojo da Constituição Cidadã, a polícia judiciária 
aflorou como função inerente a determinados órgãos estatais encarregados do 
exercício da segurança pública, qual adiante abordar-se-á. 
4.2. A institucionalização da segurança pública: mera acomodação 
constitucional ou um passo necessário à defesa daordem 
democrática ? 
Fazendo-se inédita, a Constituição brasileira de 1988, inseriu em seu Título 
V, todo dedicado à defesa do Estado e das instituições democráticas, um capítulo 
(III) específico sobre a segurança pública. 
Tratou-se, sem dúvida, de uma inovação. Porém, e a bem da verdade, impõe-
se atentar para o fato de que sob essa original rubrica coisa alguma, entretanto, foi 
acrescentado em termos de novidades, eis que o art. 144, o único do capítulo, não 
serviu, na realidade, para nada além do óbvio : primeiro, enumerando os órgãos 
policiais responsáveis pela execução da segurança pública - e não indo além 
daqueles já existentes -, para, em seguida, fixar-lhes as competências, conforme já 
há muito estabelecidas. E os únicos dispositivos que desservem a esses propósitos 
permanecem até hoje privados de eficácia, em face da inércia legislativa. 
É fato que, ainda hoje, inexistem leis a disciplinar a organização e o 
funcionamento desses órgãos, de modo a garantir-lhes atuação eficiente, consoante 
desde 1988 reclama o § 7
o
 desse artigo
261
, e também a regulamentar a atuação das 
 
261
 Essa protelação, aparentemente inexplicável, talvez se mostre sintomática quando entendemos, com 
Tércio Sampaio Ferraz Jr., que se “faz mister uma política nacional de segurança pública, para além da 
140 
 
guardas municipais, objeto do subseqüente § 8
o
. Por fim, o § 9
o
, acrescido pela 
Emenda Constitucional nº 19, de 4 de junho de 1988, estendeu aos policiais – até 
hoje inutilmente – a remuneração na forma de subsídios, nos termos do art. 39, § 4
o
, 
do mesmo diploma. 
Outrossim, é de ressaltar que mesmo no que toca aos órgãos policiais 
elencados no art. 144, apenas três ainda não possuíam assento constitucional, quais 
sejam, as polícias rodoviária e ferroviária federais e as polícias civis dos Estados, 
posto que, como anteriormente demonstrado, tanto a polícia federal como as 
polícias militares, já se faziam presentes em Cartas anteriores. 
Do ponto de vista orgânico, ademais, a Constituição de 1988 serviu somente 
à acomodação de uma situação preexistente, sem nada alterar na realidade policial 
brasileira d’então. Assim, paradoxalmente, a estrutura de segurança pública, 
estabelecida ao tempo, e por obra dos governos militares pré-abertura, veio a ganhar 
concreção constitucional justamente no corpo da Constituição que fundou o Estado 
Democrático de Direito brasileiro! 
José Afonso da Silva conta-nos que ainda na Comissão Provisória de Estudos 
Constitucionais, num primeiro momento, enquanto trabalhava-se com a duplicidade 
de organismos policiais, aludia-se, a par das Forças Públicas, às Polícias Judiciárias 
estaduais, as quais incumbiria, assim como à Polícia Federal, “a apuração das 
infrações penais e a prática de atos administrativos correlatos”. A estruturação dos 
organismos civis seria objeto de lei complementar. 
Mais tarde, mas ainda na mesma sede, decidiu-se então pela unificação das 
polícias, devendo aquelas existentes ser fundidas num só organismo de natureza 
civil, consoante a tese universalmente aceita que a atividade estatal de polícia é 
função puramente “paisana”
262
. Atuaria esse novo órgão igualmente no 
 
transitoriedade dos governos e arredada de toda instrumentalização clientelista” (Apud MORAES, Alexandre. 
Direito constitucional, p. 593). 
262
 Carlos Magno Nazareth Cerqueira aduz que “a estrutura militar da polícia não é incompatível com a 
democracia, desde que se compreenda a natureza civil da atividade policial e a necessidade da sua submissão 
ao poder civil”. Op. cit., p. 147. 
141 
 
policiamento ostensivo, por meio de corpo uniformizado. Aos Estados restaria a 
faculdade de conservar suas Polícias Militares, para atuação sempre preventiva, se e 
quando insuficientes os agentes uniformizados de suas reconfiguradas (se 
porventura já existentes) Polícias Civis. 
263
 
O que se viu, todavia, à oportunidade da Assembléia Nacional Constituinte, 
foi o retrocesso desse quadro, azado por um intenso trabalho de lobby que logrou 
conferir status constitucional a todos os órgãos policiais então existentes, todos 
mantendo, além disso, suas pretéritas competências. 
Dessa forma, a função de polícia judiciária permaneceu, no âmbito da União, 
atribuída à Polícia Federal e, no plano estadual, vinculada às Polícias Civis, exceto, 
neste último caso, quando o seu exercício se apresentasse relacionado à persecução 
de crimes militares. 
A constitucionalização das Polícias Civis, mesmo nessa conjuntura, foi 
festejada por Abraão José Kfouri Filho, respeitável líder da classe dos delegados de 
Polícia
264
, como uma verdadeira conquista democrática, e saudada nos termos 
seguintes: “Institucionalizada, como já foram a Magistratura, o Ministério Público e 
a Advocacia, teve a Polícia Civil reconhecida sua atividade de polícia judiciária 
 
263
 SILVA, José Afonso da. Poder constituinte e institucionalização da polícia civil, p. 231-240. Importa 
relembrar que em 1997, quando titularizava a Pasta da Segurança Pública em São Paulo, o autor firmou 
projeto exatamente nesse sentido, o qual foi encampado pelo então Governador do Estado, Mário Covas, e 
proposto ao Presidente da República, por meio do DEG/Ofício GG.MC. nº 115/97, como uma alternativa do 
Executivo Federal à reforma parcial do Capítulo III do Título V da Constituição Federal. Consoante 
apresentação formulada pelo eminente constitucionalista, o projeto fulcrava-se na constatação que a 
“dicotomia polícia ostensiva e polícia judiciária e investigativa, constitui um empecilho insuperável à 
consecução de uma polícia preventiva eficiente. Os conflitos, os desajustes, as desarmonias entre as duas 
polícias constituem graves prejuízos à polícia voltada para a efetiva segurança da população”. Dessa forma, 
previa que as funções de policiamento preventivo passassem à competência das Polícias Civis Estaduais, que 
a desempenhariam através de corpos uniformizados, remanescendo às Polícias Militares a chamada polícia de 
“choque”, o policiamento rodoviário, de trânsito, florestal, escolar e penitenciário, e, pasme-se, o relevante “ 
exercício de assessorias militares”, certamente útil a revelar dimensão não apenas técnica da medida. Vale 
registrar que em 21 de setembro de 1998, o jornal O Estado de São Paulo denunciava, por meio de editorial 
justamente denominado “Segurança para poucos”, que exatamente neste Estado, quase mil policiais militares 
passavam os dias “abrindo portas, vigiando prédios, servindo de motoristas ou fazendo a segurança pessoal 
de políticos de São Paulo – muitos deles há tempos fora dos cargos públicos. O cumprimento do papel de 
‘maçanetas’ – apelido pelo qual são conhecidos esses PMs, numa referência à função que desempenham – 
rendem gratificações salariais de até R$ 3 mil, quantia mais de quatro vezes superior ao salário integral 
recebido pelos soldados que enfrentam os marginais nas ruas” (p. A3). 
264
 Os dirigentes da polícia civil e, conseqüentemente, da polícia judiciária, segundo o disposto no art. 144, § 
4
o
, da Constituição da República de 1988. 
142 
 
como essencial à realização da Justiça Criminal, integrando o complexo de 
organismos que a viabilizam”.
265
 Todavia, não acomodado como os nossos ufanistas 
constituintes, logo reconheceu a insuficiência dessa medida, até então de índole 
meramente simbólica, porquanto havida isoladamente, ao largo do oferecimento, no 
mesmo texto magno, de consentâneas e mínimas condições a assegurar êxito ao 
conseqüente labor institucional. A respeito enalteceu : 
Quanto às prerrogativas, constituem ela um conjunto de 
garantias que devam possibilitar ao Delegado de Polícia o 
exercício da titularidadeda polícia judiciária imune às 
pressões e ameaças de ordem política, administrativa ou 
econômica. 
Não se pode mais admitir que a autoridade policial, tal como o 
Magistrado e o Promotor de Justiça, não disponha de 
segurança funcional suficiente para exercer com 
independência a primeira fase da persecutio criminis, 
preocupado apenas, com os limites da Lei e da Ética. 
266
 
Em que pese, contudo, a irrefutável prudência e o inegável acerto desse 
requesto, a verdade é que tais garantias, assim como quaisquer outras 
considerações de ordem jurídica, jamais vingaram, no cenário pátrio, a viabilizar as 
atividades policiais judiciárias em face da eficiência cidadã exigida pelo Estado 
democrático de direito fundado em 1988. 
 
265
 KFOURI FILHO, Abraão José. Op, cit., p. 25-33. 
266
 Ibidem, p. 32. Aludia expressamente o autor às garantias de vitaliciedade, inamovibilidade, vencimentos 
condignos etc. Ainda mais loquaz e claro, o experiente criminalista José Roberto Batóchio antes asseverara: 
“Todos nós sabemos que entre as franquias e garantias dos juízes e do Ministério Público se encontram a 
inamovibilidade, a irredutibilidade de vencimentos e a vitaliciedade. Ou seja, um juiz e um promotor podem 
dar uma sentença que desacate o poderoso de plantão, o Chefe de Estado, o Chefe de Governo do Estado, o 
Presidente da Assembléia Legislativa, enfim, qualquer autoridade, seja de que grau for, e estas garantias, 
inscritas no texto constitucional, asseguram que, no dia seguinte, quando este juiz e este promotor voltarem 
para seus gabinetes de trabalho, o seu gabinete de trabalho vai estar lá e a mesa vai continuar sendo dele. Se 
isto ocorrer, todavia, em relação a um agente da Polícia Judiciária, a um Delegado de Polícia, provavelmente 
injunções políticas farão com que este herói da nossa Justiça chegue ao seu gabinete de trabalho e o encontre 
ocupado por um substituto que vai lhe avisar que a partir daquela data ele não mais funcionará naquela 
Delegacia, não mais presidirá aquele inquérito. Esta é a realidade. Pensei se devia dizê-la aqui, mas sem me 
preocupar com o fato de provavelmente atingir ou ferir suscetibilidades, entendi que quem fala a verdade, 
como diz o velho refrão, não pode merecer punição, nunca merece castigo”. A polícia civil na assembléia 
nacional constituinte, p. 249-257. Outra não é a opinião de Fábio Konder Comparato, que aponta a função 
dessas prerrogativas “ é dar ao Delegado de Polícia uma estabilidade, uma independência, que ele deve ter 
para poder agir, até mesmo, contra aqueles que estão girando na cúpula do Poder”, eis que, como cediço, “a 
interferência do poder público, por razões puramente políticas ou partidárias na atividade policial, é 
constante” (in A Polícia e a Ética na Segurança Pública, p. 99). 
143 
 
4.3. O artigo 144 da constituição federal e a polícia judiciária: um duplo 
equívoco. 
De se observar, logo num primeiro lanço, que já a redação dispensada à 
caracterização constitucional da polícia judiciária exsurge absolutamente canhestra, 
induvidosamente imprópria, pois retira do seu conteúdo o exercício da investigação 
criminal. 
Realmente, o texto fundamental, nesse aspecto, apresentou-se falho em dois 
momentos, a saber: primeiro, quando o § 1
o
 do art. 144 dispõe à polícia federal as 
competências de apurar as infrações penais – cometidas contra a ordem política e 
social ou em detrimento de bens, serviços ou interesses da União ou [...] assim 
como outras infrações penais [...] –, logo no inciso I, e de exercer as funções de 
polícia judiciária da União, no seqüencial inciso IV; depois, no § 4
o
, quando 
atribuiu às polícias civis “as funções de polícia judiciária e a apuração das infrações 
penais”. 
Ora, desde a sua gênese, há mais de duas centúrias, por obra da Lei de 3 do 
Brumário do ano IV, em solo gaulês, a polícia judiciária caracteriza-se exatamente 
como a função estatal – e por vezes até nomina o próprio órgão do Estado 
encarregado do seu exercício – destinada à investigação, promovendo o aclaramento 
da autoria e das circunstâncias das infrações penais. Trata-se de conceito histórico e 
mundial, como já restou patenteado, especialmente no capítulo 1, e, 
especificamente, na seção 1.4.
267
 
Malgrado seja verdade que impende à polícia judiciária mais do que 
simplesmente investigar, cabendo-lhe, outrossim, e exemplificativamente, também a 
 
267
 Vide, por exemplo, o comezinho conceito veiculado pelo verbete polícia judiciária no conhecidíssimo 
Vocabulário jurídico de De Plácido e Silva: “Denominação dada ao órgão policial, a que se comete a 
missão de averiguar a respeito dos fatos delituosos ocorridos ou das contravenções verificadas, a fim de que 
sejam os respectivos delinqüentes ou contraventores punidos por seus delitos ou por suas infrações. A polícia 
judiciária é repressiva, porque, não se tendo podido evitar o mal, por não ter sido previsto, ou por qualquer 
outra circunstância, procura, pela investigação dos fatos criminosos ou contravencionais, recolher as provas 
que os demonstram, descobrir os autores deles, entregando-os às autoridades judiciárias, para que cumpram a 
lei” (edição eletrônica). Idem Maria Helena Diniz, com evidente fulcro na legislação processual penal em 
vigência: “Polícia exercida pelas autoridades policiais, no território de suas respectivas circunscrições, com o 
intuito de apuração das infrações penais e de sua autoria” (op. cit., vol. 3, p. 624). 
144 
 
captura de criminosos condenados pela Justiça e a prestação de informações 
importantes à faina judicial, avulta igualmente inequívoca a natureza complementar 
e secundária dessas atividades, desdobramentos óbvios do labor investigativo, que 
resume-se na própria razão de ser policial judiciária. 
268
 
269
 
Aliás, entre nós essa concepção também é centenária, decorrente da 
produção legislativa do Império, pertinente tanto à disciplina processual penal 
(Regulamento de 1842), quanto à matéria política (Lei de Interpretação – nº 105, de 
12 de maio de 1840 – do Ato Adicional de 1834, a Lei nº 16, de 12 de agosto). 
Pimenta Bueno ensinava que a polícia judiciária é aquela que “tem a seu cargo 
rastrear e descobrir os crimes, que não puderam ser prevenidos, colher e transmittir 
ás autoridades competentes os indícios e provas, indagar quaes sejam os seus 
autores e cumplices, e concorrer efficazmente para que sejam levados aos 
tribunaes” (Sic). 
270
 
Na mesma linha Canuto Mendes de Almeida advertia que “a polícia 
judiciária opera depois das infrações, para investigar a verdade e, a respeito, prestar 
informações à Justiça”
271
. Eis o convergente entendimento de José Frederico 
Marques: “a polícia judiciária não tem mais do que função investigatória”. 
272
 
273
 
 
268
 José Lisboa Gama Malcher, afirmando que à polícia judiciária incumbia lida investigatória, alinhava-lhe 
quatro funções básica, a saber: probatória, definida pelos arts. 6
o
, III a VIII, 7
o
, 8
o
, 11,13 e 14 do Código de 
Processo Penal; cautelar, prevista nos arts. 6
o
, I a III, e 11 desse Diploma; coercitiva, como a prisão em 
flagrante delito, a decretação do sigilo ou as medidas assecuratórias da indenização civil, e auxiliar, 
correspondendo àquelas elencadas no art. 13 do mesmo Código (Manual de processo penal brasileiro, p. 
112-114.). 
269
 MIRABETE, Julio Fabbrini. Processo penal, p. 76. Pronunciando-se a respeito, o autor concordou que 
“não há realmente diferença entre essas funções, de apuração das infrações penais e de polícia judiciária, 
mas, diante da distinção estabelecida na norma constitucional, pode-se reservar a denominação de polícia 
judiciária , no sentido estrito, à atividade realizada por requisição da autoridade judicial ou do Ministério 
Público ou direcionada ao Judiciário (representaçãoquanto à prisão preventiva ou exame de insanidade 
mental do indiciado, restituição de coisas apreendidas, cumprimentos de mandados de prisão etc.)”. Em que 
pese o esforço desse grande processualista, sua proposta, tendente a dar-se à polícia judiciária duplo sentido, 
aflora inteiramente inócua, mormente se considerado que todas as atividades vislumbradas como 
“estritamente policiais judiciárias” dimanam justamente da capacidade investigatória em questão. Daí 
ingressarmos numa interminável espiral, que nada acresce de prático ou de valor ao estudo encetado. 
270
PIMENTA BUENO, José Antonio. Apontamentos sobre o processo penal brasileiro, p. 3. 
271
 ALMEIDA, J. Canuto Mendes de. Op. cit., p. 60, grifos originais. 
272
 MARQUES, José Frederico. Op. cit., p. 146. 
273
 Interessante pontuar que, enquanto essa inexplicável dicotomização não mereceu atenção e comento dos 
nossos constitucionalistas, passando despercebida ou sendo apenas contornada pelos nossos processualistas, 
vozes outras, de timbre laico, procuraram deslindá-la, valendo aqui registrar os esclarecimentos dessa ordem 
145 
 
Enfim, é de Ferrajoli, o grande sistematizador do garantismo, que 
aprendemos que as atividades policiais, num Estado comprometido com a efetiva 
defesa das instituições democráticas e, destarte, inteiramente voltado à proteção dos 
direitos fundamentais dos cidadãos, deveriam se limitar a apenas três, quais sejam, a 
investigativa, a preventiva e as executivas e auxiliares da jurisdição e da 
administração. E mais importante, ressalta, que: 
deveriam estar destinadas a corpos de polícia separáveis entre 
eles e organizados de forma independente não apenas 
funcional, mas, também, hierárquica e administrativamente, 
em particular, a polícia judiciária, destinada, à investigação 
dos crimes e a execução dos provimentos jurisdicionais, 
deveria ser separada rigidamente dos outros corpos de polícia 
e dotada, em relação ao executivo, das mesmas garantias de 
independência que são asseguradas ao poder judiciário do 
qual deveria, exclusivamente, depender.
274
 
Eis a fórmula para a polícia judiciária garantista, a única compatível com o 
Estado Democrático de Direito brasileiro. 
 
ofertados por Carlos Magno Nazareth Cerqueira, para quem “pode-se afirmar que polícia judiciária e polícia 
de investigação são diferentes”, assim como acreditar que “talvez fosse isso que o constituinte brasileiro 
tenha querido mostrar”. É necessário atentar para o fato de que essa convicção não decorre, entrementes, de 
nenhuma exegese ou hermenêutica constitucional, e sequer se apóia em qualquer argumento jurídico, mais 
sim, e tão-somente, num isolado e antigo estudo alienígena sobre polícia, que assevera que a investigação 
criminal envolve uma série de atividades, dentre as quais a “apuração” configura-se somente uma delas. 
Segundo essa tese a investigação consistiria tanto no exercício da “apuração” – “propriamente dita”? –, que 
perfaria singelamente a busca da autoria delitiva, quanto na “inteligência criminal” – que alude à “atividade 
técnico-científica que deve informar-se dos crimes que se pretende cometer” –, no “registro criminal” – 
referente à “descoberta dos crimes que foram cometidos” –, e na “análise dos crimes” –concernente a dados 
como : onde e como os crimes foram consumados. Percebe-se, assim, que de acordo com esse estranho 
raciocínio, malgrado sua condição quase secundária, ainda assim a tarefa apuratória pode ser ultimada, e 
com pleno sucesso, à míngua de precedentes atividades de registro e de análise criminais! Ora, exsurge de 
uma obviedade ululante que todas essas fases, nada obstante possam ser teoricamente decompostas para fins 
de estudos, sempre e necessariamente aflorarão encadeadas e integradas na prática investigatória, em molde 
insofismavelmente indissociável. Mister lembrar, ademais, que a atividade de inteligência criminal não se 
limita à colheita e análise de dados voltados exclusivamente à prevenção delitiva, mas também, e em 
contexto imprescindível, ao devido processamento (conferência, combinação, cotejo, classificação etc.) dos 
elementos de informações armazenados e disponíveis com vista à elucidação da autoria de infrações penais 
que não puderem ser evitadas. E é de se ter em mente, nesse sentido, que essa gama de informações somente 
haverá de ser obtida a partir de anteriores “apurações”, deflagradas após a perpetração de um crime, e que 
certamente não prosperarão se divorciadas, evidentemente, dos prévios “registros”, das “análises” criminais. 
Por fim, não se diga que ao eventualmente proceder a uma ou a outra fugaz atividade posterior ao 
cometimento do delito –como, por exemplo, uma prisão em flagrante ou o mero recolhimento, para exibição 
à autoridade policial, de algum objeto que se possa presumir relacionado com a infração penal – exerce a 
denominada polícia administrativa funções próprias de polícia judiciária, posto que estas jamais se 
caracterizam pela efemeridade ou pelo intuitivismo, enquanto aquelas preliminares atuações, de execução 
óbvia e dependente tão-somente da força, são legalmente facultadas a qualquer um do povo. 
274
 FERRAJOLI, Luigi. Op. cit, p. 617. 
146 
 
4.4. A segurança pública como razão de ser ou como causa de 
degeneração da polícia judiciária? 
4.4.1. Necessárias reflexões. 
As encimadas assertivas de Ferrajoli devem servir, no mínimo, para suscitar 
a meditação acerca da razoabilidade em se conceber a polícia judiciária como 
função inerente à segurança pública, ao menos mirando-se os genuínos objetivos de 
um verdadeiro Estado Democrático de Direito. 
Como reconhece Paulo Dá Mesquita, a investigação criminal ressuma 
assunto pertinente à justiça, devendo ser tratado, portanto, e com o grau de 
especialização que a temática exige, no acendrado âmbito do processo penal
275
. 
Prossegue Roberto Pérez Martinez, afiançando-o: 
O papel que ocupa a polícia no âmbito do processo penal de 
modo algum pode ser considerado secundário ou acessório, já 
que constitui um elemento essencial e determinante em sua 
própria configuração e desenvolvimento, decisivo por refletir 
a própria atividade jurisdicional, daí que necessariamente 
deva ser tratada nos seus justos termos, na importância que 
tem no marco processual penal. Para dize-lo nas palavras de 
Andrés Ibañez é “o melhor indicador da qualidade ou falta de 
qualidade democrática da justiça que é administrada por um 
determinado sistema judicial”.
276
 
Com razão, a missão investigatória confiada à polícia judiciária, como 
instrumento de realização de justiça, impõe que a detenção do criminoso jamais 
seja considerada mais importante ou dissociada da prévia captura da verdade dos 
fatos apurados
277
. E a busca da verdade exige daquele que a promove a maior 
isenção possível em face dos fatos perquiridos, um grau de imparcialidade que 
dificilmente poderá ser obtido, ao menos fora do mundo meramente hipotético, 
daquele que é visto e, a todo momento, cobrado, inclusive pela opinião pública 
 
275
 MESQUITA, Paulo Dá. Notas sobre inquérito penal, polícias e Estado de direito democrático 
(suscitadas por uma proposta de lei dita de organização da investigação criminal), p. 138. 
276
 MARTINEZ, Roberto Perez. La policía judicial en el Estado democrático de derecho, p. 165. 
277
 CUNHA RODRIGUES, José Narciso. Para um novo conceito de polícia, p. 408. 
147 
 
ignara, como o responsável, pura e simplesmente, pela “preservação da ordem 
pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio”. 
278
 
Ora, vergado sob o peso dessa grandiosa tarefa, por cujo sucesso será 
indistinta e insistentemente cobrado pela sociedade ávida por segurança, restará ao 
responsável pelas atividades policiais judiciárias condiçõesreais de levar a cabo 
esse trabalho com a serenidade, o apurado senso crítico e a imparcialidade que se 
lhes afiguram imprescindíveis? 
Rusconi responde não a essa questão, atribuindo a essa mescla das atividades 
policiais preventivas e investigativas o rótulo de “promiscuidade funcional”, 
porquanto convicto que, como fruto dessa perniciosa amálgama, a “tendência 
autoritária proveniente da atividade preventiva invade aos poucos as tarefas de 
investigação processual”.
279
 
 
278
 A paupérrima fórmula ínsita no caput do art. 144 da Constituição de 1988 a definir as finalidades da 
segurança pública. 
279
 RUSCONI, Maximiliano A. Reformulación de los sistemas de justicia penal em América Latina y 
policía: algunas eflexiones, p. 194. Nesse sentido se nos apresenta tão-somente admissível ao desempenho 
policial judiciário eventuais atividades voltadas ao controle, análise e processamento de informações que se 
apresentarem imprescindíveis à eficaz atuação institucional, mormente no que tange à determinação de 
responsabilidades criminais, em prática que jamais poderá ser confundida com o policiamento preventivo de 
índole ostensiva, destinado à manutenção da ordem. À guisa de ilustração mire-se o exemplo dado por 
Portugal, que no art. 4
o
, 1, da Lei Orgânica da Polícia Judiciária (Decreto-Lei nº. 275-A/2000 de 9 de 
Novembro), previu : “Em matéria de prevenção criminal, compete à Polícia Judiciária efectuar a detecção e 
dissuasão de situações propícias à prática de crimes”. A esse fim, e através de rol exemplificativo, o 
dispositivo estabeleceu as tarefas de controle (“vigiar e fiscalizar”) sobre: a) lugares e estabelecimentos em 
que se proceda à exposição, guarda, fabrico, transformação, restauração e comercialização de antiguidades, 
arte sacra, livros e mobiliário usados, ferro-velho, sucata, veículos e acessórios, artigos penhorados, de 
joalharia e de ourivesaria, elétricos e eletrônicos e quaisquer outros que possam ocultar atividades de 
receptação ou comercialização ilícita de bens; b) estabelecimentos que proporcionem ao público a pernoita, 
acolhimento ou estada, refeições ou bebidas, parques de acampamento e assemelhados, e outros locais, 
sempre que exista fundada suspeita de prática de prostituição, proxenetismo, tráfico de pessoas, jogo 
clandestino, tráfico de armas, tráfico de estupefacientes e fabrico ou passagem de moeda falsa; c) 
estabelecimentos de venda ao público de aparelhos eletrônicos e informáticos ou que prestem serviços do 
mesmo tipo, sempre que, pela sua natureza, permitam, através de utilização ilícita, a prática de crimes de 
contrafação de moeda, falsificação de documentos ou crimes informáticos; d) locais de embarque ou de 
desembarque de pessoas ou de mercadorias, fronteiras, meios de transporte, locais públicos onde se efetuem 
operações comerciais, de bolsa ou bancárias, estabelecimentos de venda de valores selados, casas ou recintos 
de reunião, de espetáculos ou de diversões, cassinos e salas de jogo e quaisquer locais que possam favorecer 
a delinquência; e) atividades susceptíveis de propiciarem atos de devassa ou violência sobre as pessoas, ou de 
manipulação da credulidade popular, especialmente anúncios fraudulentos, mediação de informações, 
cobranças e angariações ou prestações de serviços pessoais”. Também com esse afã incumbe à Polícia 
Judiciária, “promover e realizar acções destinadas a fomentar a prevenção geral e a reduzir o número de 
vítimas da prática de crimes, motivando os cidadãos a adoptarem precauções e a reduzirem os actos e as 
situações que facilitem ou precipitem a ocorrência de condutas criminosas”. 
148 
 
Essa promiscuidade expressada por Rusconi, que como visto encontra pleno 
eco em Ferrajolli, certamente será potencializada em face da nossa cruel realidade, 
onde “o atrevimento e a impassibilidade do arbítrio criminal cruzam 
incessantemente nossa mídia e nossa cabeça, desencadeando torrentes de 
intimidação e indignação”, eliminando, ainda segundo Hassemer, “qualquer 
concepção de segurança pública asseguradora da liberdade”.
280
 
4.4.2. O discurso político do crime. 
Ninguém desconhece que essa ameaça social representada pelo delito – não 
interessa se real ou não –, freqüentemente oferece amplas margens para toda espécie 
de manipulação da opinião pública através do discurso político do crime, centrado 
na “idéia absolutamente imprestável de que o Direito Penal é instrumento suficiente 
para esbater a criminalidade e a violência, fenômenos de causação complexa e 
merecedores de tratamento conjugado, no qual a lei penal (e processual penal) 
desempenha modesta parte de tal função”, consoante Dotti.
281
 
A partir dessa concepção absolutamente equivocada, as medidas 
conseqüentemente propostas à solução do grave problema criminal sempre se 
pautarão, em direção diametralmente oposta, pela extrema simploriedade, 
apresentando-se recorrentemente jungidas ao incremento do rigor das leis penais, 
com tipificação de novas condutas e a elevação geral das penas, maiores restrições 
ao direito de defesa, melhor aparelhamento da Justiça etc.
282
. Hassemer assinala que 
nesse encadeamento “a política criminal reduz-se a política de segurança”, não indo 
está, a sua vez, além, de “desejos policiais de exacerbação e ampliação dos meios 
de combate ao crime”.
283
 
O advogado norte-americano Arthur W. Ruthenbeck, em um artigo 
denominado exatamente É preciso despolitizar as questões criminais, houve por 
demonstrar que esses conceitos autoritários, que pululam do Movimento da Lei e da 
 
280
 HASSEMER, Winfried. Segurança pública no estado de direito, p. 58. 
281
 DOTTI, René Ariel. Reforma penal brasileira, p. 436. 
282
 Ibidem, p. 437. 
283
 HASSEMER, Winfried. Segurança pública no estado de direito, p. 56. 
149 
 
Ordem, não passaram ao largo de seu país, alcançando até a Suprema Corte 
americana, que após revogar precedentes de décadas, próximo chegou, em alguns 
casos, a praticamente ignorar as 4
a
 e 5
a
 emendas da Constituição. Nos votos do 
Justice Clarence Thomas encontrou-se lastro, em casos criminais, tanto para 
referendar uma espécie de tortura contida de prisioneiros, quanto para questionar o 
direito do preso a um advogado, garantido pela 6
a
 Emenda!
284
 
Ora, enquanto capaz de infiltrar-se até mesmo no Poder Judiciário de um 
Estado que sempre manteve em realce suas raízes democráticas, e que histórica e 
politicamente sempre se pautou pela luta em prol do resguardo e da efetividade dos 
direitos civis, por certo essa malsã ideologia com muito maior facilidade haverá de 
ganhar ainda maior corpo e presença neste Brasil culturalmente definido pelas 
relações de casa-grande e senzala, encontrando campo fértil, principalmente, entre 
os detentores de mandatos eletivos que, salvo raras exceções, sabidamente não 
titubeiam em lançar mão de qualquer recurso que lhes possa garantir uma cadeira no 
Poder Legislativo ou a chefia do Poder Executivo, através de expedientes que Hely 
Lopes Meirelles rejeitava qualificar como políticos, tratando-os, depreciativamente, 
apenas como frutos de um carreirismo. 
285
 
Como a ninguém escapa, a segurança pública, pelo interesse que desperta na 
população, já há um bom tempo tem figurado como um dos principais temas das 
campanhas eleitorais, especialmente nas disputas das chefias dos Executivos 
estaduais. Nesse cenário, como facilmente se constata, o debate deflagrado 
invariavelmente gravita em torno do funcionamento das organizações policiais, 
trazendo inexoravelmente a reboque um sem-número de planos e promessas 
atinentes à majoração dos respectivos quadros, à dotação com os meios materiais 
indispensáveis ao exercício das atividades afins (em especial armamentos, viaturas e 
outros visíveis e simbólicos equipamentos), e, infalivelmente, à utilização de 
técnicase estratégias, geralmente importadas de países do chamado primeiro 
 
284
 RUTHENBECK, Arthur W. Revista Brasileira de Ciências Criminais, p. 33. 
285
 O qual caracteriza-se como a “política partidária que lastimavelmente se pratica entre nós como meio de 
galgar e permanecer no poder, através de prestígio eleitoral” (MEIRELLES, Hely Lopes. Direito 
administrativo brasileiro, p. 40). 
150 
 
mundo, que aumentaram significativamente a eficácia policial. Alude-se, 
freqüentemente, a uma polícia rígida, dura, inclemente com os infratores da lei, e, 
no auge das fanfarrices, chega-se até mesmo a garantir a expressiva e célere 
reversão dos índices criminais, apresentados através de estatísticas de todas as 
ordens e serventias.
286
 
De efeito, dentre o que de pior a realidade obriga a observar nessa 
politicalha, em que tudo se justifica em nome da vitória na corrida eleitoral, vê-se a 
corriqueira prática de prometer até mesmo o impossível, sempre contando com a 
desatenção ou a ingenuidade do eleitor. Uma vez eleito, quer porque passível de ser 
posto a cobro por suas juras públicas e televisivas, quer colimando manter alta a sua 
popularidade, pois fundamental a alimentar os projetos sem fim de dominação 
futura, o mandatário ver-se-á obrigado a apelar para medidas que no mínimo se 
igualem à presunção de suas propostas
287
. E daí a sempre perigosa contingência de 
submissão dos órgãos policiais aos interesses carreiristas do governante, que assim 
serão perseguidos em detrimento do verdadeiro interesse público
288
, o mesmo que, 
como se vê , em termos de segurança pública, o constituinte de 1988 não soube ou 
não quis eficientemente proteger (e o mesmo se diga do legislador ordinário). 
 
286
 De qualquer forma, como Ruthenbeck precisamente situa, o discurso político contra o crime rende 
aparições na televisão, a fama de durão, enfim, grandes vantagens eleitorais (Op. cit., p. 33). Aqui como lá, 
valer recordar as sábias palavras de Theodomiro Dias Neto : “Não há tema capaz de exercer tanto fascínio e 
polarização quanto a segurança pública. Paradoxalmente, não há tema mais deturpado e incompreendido. 
Tentativas de ser repensado a partir de óticas diversas, são rejeitadas pela lógica imediatista dos calendários 
eleitorais ou dos índices de audiência” (Segurança Pública : Um conceito a ser repensado, p. 12). E a aferir os 
malefícios dessas práticas basta atentar para o escólio de José Afonso da Silva acerca da gestão da segurança 
pública : “Em nome dela se têm praticado as maiores arbitrariedades. Com a justificativa de garantir a ordem 
pública, na verdade, muitas vezes, , o que se faz é desrespeitar direitos fundamentais da pessoa humana, 
quando ela apenas autoriza o exercício regular do poder de polícia” (op. cit., p. 753). 
287
 Importa aqui recordar constatação de Roberto Kant de Lima, para quem “a formação policial no Brasil 
ainda é marcada por uma concepção autoritária do emprego da polícia” (Direitos civis, estado de direito e 
“cultura policial”: a formação policial em questão, p. 244). 
288
 A propósito, Celso Antonio Bandeira de Mello aponta para a doutrina italiana que distingue entre 
“interesses públicos ou interesses primários – que são os interesses da coletividade como um todo – e 
interesses secundários, que o Estado (pelo só fato de ser sujeito de direitos) poderia ter como qualquer outra 
pessoa, isto é, de servidor de interesses de terceiros, os da coletividade”. Assim, afloram como os únicos 
interesses legitimamente perseguíveis pelo Poder Públicos aqueles que dizem respeito a toda a sociedade. 
Exemplificando, o autor reporta-se ao Estado quando resiste ao pagamento de indenizações, às quais 
encontra-se judicialmente obrigado, apenas com o escopo de despender o mínimo de recursos. Assim deixa 
de satisfazer o fidedigno interesse público (primário), que é aquele que a lei aponta como sendo o interesse 
da coletividade: “o da observância da ordem jurídica estabelecida a título de bem curar o interesse de todos”. 
Enquanto não coincidentes com os primários, os únicos que podem e devem ser buscados, os interesses 
estatais mostrar-se-ão espúrios (op. cit., p. 32) 
151 
 
Seja inspirada em justa e louvável pretensão de realmente proporcionar 
segurança à população, seja voltada à mera e descarada intenção de obter os 
enormes dividendos eleitorais que o êxito nessa empreitada asseguraria – como 
também, e pelo menos por algum tempo, também garantiria a impressão de se estar, 
de alguma maneira, caminhando para esse objetivo 
289
 -, a realidade é que toda 
atuação governamental passível de impedir ou dificultar, de qualquer forma, o 
exercício efetivo e isento da polícia judiciária, comprometido tão-somente com a 
aclaramento da verdade de fatos aprioristicamente criminosos, sempre deveria ser 
considerado como grave atentado contra o ideal de justiça inerente a um Estado 
Democrático de Direito e, portanto, jamais tolerado. 
O desejo de propiciar segurança pública, que em seu nascedouro emerge tão 
lídimo quanto obrigatório aos nossos governantes, logo irá tornar-se ilegítimo se 
porventura conspurcar, em sua concretização, o espírito democrático que deve 
vivificar e balizar o exercício da função policial judiciária, mediante a utilização dos 
órgãos e dos agentes que se lhe encontram constitucionalmente afetos em qualquer 
âmbito de atuação estranho àquele estritamente investigativo e de perseguição 
isenta dos objetivos da justiça criminal. 
O desprezo a essa regra somente servirá a fomentar o surgimento e o 
fortalecimento de um subsistema penal de polícia e de ordem pública, aos moldes 
daquele que foi tão claro e negativamente delineado por Ferrajoli, totalmente 
fundado nas instâncias de defesa social e em desacordo com os princípios 
garantidores da liberdade pessoal, cujo objetivo resume-se na “prevenção dos 
crimes e, de maneira mais geral, das turbações da ordem pública, feito através da 
defesa social ante ou extra delictum, aplicado por via administrativa a sujeitos 
 
289
 Luiz Eduardo Soares mostra que a história da decantada vitória que a cidade de Nova York teria 
conseguido conquistar sobre o crime ainda não foi integralmente contada, faltando vir ao conhecimento geral 
o seu fidedigno final. A verdade, assegura esse autor, é que o grande sucesso anteriormente reconhecido à 
gestão do Prefeito Rudolf Giuliani no campo da segurança pública foi, e continua sendo, objeto de forte 
contestação, porquanto, como se sabe, alicerçou-se sobre uma expressiva dose de violência policial. Tendo a 
princípio servido a alavancar a imagem e a popularidade do seu responsável, essa suposta vitória acabou 
assim por redundar num verdadeiro revés para a sua carreira política (O enigma de Nova York, p. 227). 
152 
 
‘perigosos’ ou ‘suspeitos’” (ou ainda o condenado, o ocioso, o reincidente, o 
vagabundo ou qualquer outro rótulo de sentido e efeitos próximos). 
290
 
 
4.4.3. A polícia judiciária : função essencial à justiça criminal. 
Consistindo a polícia judiciária, como já reiteradamente pronunciado e 
sobejamente demonstrado, função essencial à justiça criminal, não lhe competirá, 
seja qual for o pretexto, abdicar de sua posição necessariamente imparcial para 
lançar-se à busca da segurança pública e/ou individual senão trilhando os únicos 
caminhos que à vista dessa elevada missão se lhes afiguram consentâneos, ou seja, 
se não através da incessante busca da verdade sobre um fato teoricamente 
infracional, assim mourejando com vista a dois objetivos de idêntica e extremada 
importância, destituídos de qualquer expressão de preponderância entre si, a saber : 
a) evitar que acusações infundadas, levianas e até caluniosas 
injustamente arrastem inocentes às barras dos tribunais; e, 
b) possibilitar a exata e justa

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