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UM DESAFIO AO RESPEITO E À TOLERÂNCIA: REFLEXÕES SOBRE O CAMPO RELIGIOSO DAIMISTA NA ATUALIDADE


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154 Religião e Sociedade, Rio de Janeiro, 31(2): 154-178, 2011
Isabela Oliveira
UM DESAFIO AO RESPEITO E À TOLERÂNCIA:
REFLEXÕES SOBRE O CAMPO RELIGIOSO DAIMISTA
NA ATUALIDADE
A ayahuasca1 é um chá com propriedades psicoativas que tem sido utilizado
milenarmente pelas populações nativas da região amazônica brasileira e andina para
diferentes finalidades, como por exemplo: curas, adivinhações, caçadas e preparação
para guerras (Macrae 1992). A partir da década de 1930, formaram-se novos contextos
de utilização dessa bebida e se constituíram algumas religiões cristãs que passaram a
utilizá-la ritualisticamente. Entre essas religiões, encontram-se o Santo Daime, a
Barquinha e a União do Vegetal, que buscam, cada qual, construir sua legitimidade
própria, assumindo diferentes posições políticas e ideológicas nesse campo (Bourdieu
1992). Este artigo analisa a configuração do campo religioso da mais antiga entre
essas três religiões: o Santo Daime (Oliveira 2007).
O Santo Daime se formou no estado do Acre a partir do início da década de
1930 e hoje conta com mais de 3 mil adeptos2 em diversos estados do Brasil e em
vários países do mundo. Trata-se, portanto, de um fenômeno religioso tipicamente
brasileiro, mas que já apresenta uma dimensão internacional.
Tendo em vista ser o Santo Daime um grupo de cultura essencialmente oral,
com a presença de poucos registros escritos sobre seus fundamentos e história,
privilegiam-se nesta análise os registros orais3 mais importantes que compõem o
corpus semântico da religião: os hinos cantados nos rituais do grupo e as histórias de
vida e relatos de seus seguidores mais antigos, que rememoram os momentos históricos
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mais importantes da religião e explicam os fundamentos doutrinários do grupo. A
opção pela oralidade como fio condutor da análise também se justifica por
considerarmos, tal como Paul Thompson (1992:137), que “a evidência oral,
transformando os ‘objetos’ de estudo em ‘sujeitos’, contribui para uma história que
não só é mais rica, mais viva e mais comovente, mas também mais verdadeira”,
podendo proporcionar um diálogo salutar e enriquecedor com os registros escritos e
a historiografia tradicional a partir daqueles que vivenciaram a história.
O fundador do Santo Daime, Sr. Raimundo Irineu Serra, conhecido entre os
seguidores como Mestre Irineu, nasceu no Maranhão, na cidade de São Vicente
Férrer, no final do século XIX, e se mudou para o Acre no fluxo migratório fomentado
pela extração em larga escala do látex.
Segundo narrativas orais presentes na religião, o Mestre Irineu teve contato
com a ayahuasca no início da década de 1910, no contexto de práticas indígenas ou
mestiças com a bebida, das quais tomou conhecimento graças um amigo maranhense,
o Sr. Antônio Costa, enquanto trabalhava como seringueiro no interior da floresta
amazônica peruana.
Quando bebeu a ayahuasca naquele momento, o Mestre Irineu teve revelações
psíquicas e espirituais que o levaram, nos anos seguintes, a constituir uma nova
forma de trabalho com essa bebida milenar. Inicialmente, instituiu, junto com os
amigos Antônio e André Costa, um centro na cidade de Brasileia que ficou conhecido
como Círculo de Regeneração e Fé, considerado por alguns pesquisadores (Monteiro
1983) como o primeiro centro brasileiro de consumo cristão da ayahuasca.
Mais tarde, a partir do início da década de 1930, já na cidade de Rio Branco,
na direção do centro local, Mestre Irineu começou a reunir a seu redor alguns
seguidores, e até o seu falecimento, em 1971, foram se constituindo os principais
rituais, símbolos e preceitos doutrinários da religião. Nesse período a Ayahuasca4
passou a ser denominada no grupo como Daime, uma nova técnica para o seu preparo
foi instituída e aconteceu a parte mais importante do seu processo de ressignificação5
na religião: sendo atualmente considerada, pela maioria dos daimistas, como
sacramento eucarístico cristão (Oliveira 2007).
Segundo as narrativas orais presentes entre os primeiros seguidores, a ayahuasca
era uma bebida indígena utilizada no contexto nativo indígena e mestiço amazônico,
descrito nesses relatos como não cristão, conforme narrativa do Sr. Luiz Mendes
Nascimento, antigo discípulo de Mestre Irineu, ao relatar a primeira experiência do
fundador com a ayahuasca.
Ele contou que a primeira vez [que bebeu ayahuasca] foi com os caboclos
peruanos. Já constava a existência de trabalho [com a ayahuasca] pra lá
[...].
Aí um dia, eles conversando... o Antônio Costa6 definiu pra ele, informou
da existência dessa bebida, desse trabalho, que ele mesmo ainda não
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tinha experimentado. Só sabia que existia. Aí foi quando ele disse:
“Rapaz, eles tomam essa bebida assim... é pra invocar lá uma parte
satânica, pra ajudar nisso e naquilo, fazer aqueles pactos, aquelas coisas
todas...” Ele [o Mestre Irineu] disse: “É pra isso?” “É pra isso” [respondeu
o Sr. Antônio] (Entrevista, maio de 2007, Rio Branco/AC).
Com o passar do tempo, e especialmente a partir da disseminação de narrativas
que mencionavam curas milagrosas realizadas nos trabalhos espirituais do Mestre
Irineu com o Daime, foi se formando uma nova compreensão da bebida, o que fez
com que paulatinamente ela fosse sendo chamada de Santo Daime pelos seguidores
da religião.
À medida que se disseminou entre os participantes da religião a ideia de que
havia um ser divino presente na bebida e que esse ser divino era o próprio Mestre
Irineu, que foi, por sua vez, identificado pelos daimistas como o Cristo, foi-se
processando a ressignificação da ayahuasca até o seu sentido atual.
Esse processo de ressignificação é muito evidente, por exemplo, no tocante aos
hinos da religião. Ao ingerir o Santo Daime, as pessoas cantam os hinos. Ao cantá-
los sob o efeito psicoativo da bebida, fazem uma releitura do seu significado, a partir
da vivência e condição psicológica de cada pessoa. Ao estabelecer um diálogo com
esse conteúdo, constrói-se uma leitura particular da vivência psicoativa com a
ayahuasca na religião, ao mesmo tempo em que se constitui uma leitura do conteúdo
expresso nos hinos, condicionada pelo presente. Esse diálogo interior estabelecido
entre as pessoas e os hinos também subsidia o surgimento de novas compreensões
sobre os princípios doutrinários da religião, que são, então, objetivados em novos
hinos. Quando esses novos hinos são cantados nos trabalhos espirituais do Santo
Daime, consolida-se o processo de objetivação desses novos conteúdos que, por sua
vez, contribuem para o processo contínuo de formação da religião (Oliveira 2007).
O hino “Em minha memória”, do Sr. Valdete Mota de Melo, antigo seguidor
da religião, fala sobre a compreensão atual dos daimistas sobre a ayahuasca:
Eu tomo Daime
E considero esse vinho
Eu tomo Daime
E considero esse vinho
O mesmo vinho
Que Jesus deu pra tomar
Aos seus apóstolos
E disse em minha memória
Que é para sempre
Esta luz nunca faltar
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Pelo trecho do hino, percebe-se que o Daime é considerado o mesmo vinho
que Jesus tomou com seus discípulos, ou seja, um sacramento eucarístico cristão. Tal
ideia estabelece uma continuidade simbólica entre a bebida e a história cristã e
constrói um significado bastante diferente daquele existente na cultura indígena, um
contexto não cristão.
Assim, é possível perceber que a transformação no conceito sobre a ayahuasca
na religião tanto remete ao processo mais amplo de ressignificação que fundamenta
a constituição das religiões e da cultura como um todo, como corrobora a ideia de
que as religiões, entendidas como construções humanas e históricas, estão em contínua
formação, inseridas na dinâmica sociocultural mais ampla de seu tempo.
Originalmente, o Alto Santo era um antigo seringal que o Mestre Irineu
recebeu, na década de 1940, como doação pessoal feita pelo então governador do
Acre, o Sr. José Guiomard dos Santos. Lá o fundador assentou várias famílias deadeptos e outras pessoas que, mesmo não participando da religião, buscaram seu
apoio. Desde setembro de 2006, o Alto Santo se tornou área de preservação ambiental
e patrimônio histórico e cultural do estado do Acre.
No local, habita até hoje a maioria dos seguidores que acompanharam o Mestre
Irineu em vida, e existem quatro centros daimistas, entre os quais a própria Sede,
erguida pelo fundador na década de 1940.
Após o falecimento do Mestre Irineu, em 1971, o núcleo original de seguidores
se dividiu, surgiram novas lideranças e foram fundados outros centros daimistas,
inicialmente apenas na cidade de Rio Branco. À frente dos trabalhos espirituais da
sede fundada por Mestre Irineu, o Centro de Iluminação Cristã Luz Universal – Alto
Santo (Ciclu) ficou o Sr. Leôncio Gomes. Após o falecimento deste, o Sr. Francisco
Fernando Filho, também conhecido como Tetéo, passou a dirigir o centro. Mais
tarde, a Madrinha Peregrina Gomes Serra, última esposa de Mestre Irineu, assumiu
a direção do Ciclu, continuando como dignitária dessa entidade até o presente.
De modo geral, quando instigados a falar sobre eventos e motivos que levaram
a essas primeiras divisões, os participantes da religião relatam a presença no grupo
tanto de diferentes posições acerca da maneira adequada da condução da religião,
como também expressam motivos de foro íntimo em relação às lideranças do momento
e ao conjunto dos filiados (Oliveira 2007).
Apesar de existirem quatro centros daimistas diferentes na região do Alto
Santo, esses centros compartilham, por vezes, de certa afinidade ideológica acerca da
condução da religião e especialmente sobre alguns temas polêmicos que perpassam
a configuração política e a dinâmica mais ampla do campo religioso daimista na
atualidade.
Entre outros fatores que contribuíram para a existência dessa relativa
uniformidade ideológica entre os centros do Alto Santo encontram-se, por exemplo,
a extrema proximidade geográfica desses centros e sua não expansão para outras
cidades do país. Tal uniformidade permite a esses centros compor, mais facilmente,
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alianças ideológicas entre si, assumindo posições políticas semelhantes no campo
religioso daimista e são, por isso, considerados nesta análise como um único espaço
social.
Em geral, a postura de não expansão dos centros do Alto Santo se alicerça na
compreensão compartilhada pelos daimistas do local de que, para conhecer a doutrina
do Daime tal como ela é “realmente”, as pessoas de outros estados e de outros países,
devem ir até Rio Branco para vivenciá-la onde é praticada nos moldes deixados pelo
fundador. Uma posição que, por sua vez, remete à compreensão da religião como
conjunto de práticas e filosofia que podem e devem permanecer inalteradas ao longo
do tempo e cujas práticas devem se remeter única e exclusivamente ao conjunto
instituído pelo fundador.
Partindo da compreensão de Berger (1985)7, aqui se consideram as normativas
dos diferentes grupos que compõe o campo religioso daimista como ordenamentos
significativos possíveis, leituras historicamente construídas sobre a realidade. Também
como teias de significado que oferecem explicações coerentes aos seguidores sobre o
cosmos e dão sentido a suas vidas e que se ressignificam continuamente no processo
de construção social de significados independentemente do fato de os seguidores da
religião pretenderem mantê-la inalterada. Nesse sentido, também se justifica a opção
neste artigo pelo termo religião, entre outras opções existentes na literatura, como
“rito” (Couto 1989) ou “culto” (Macrae 1992), já que a análise se volta para o
entendimento das dinâmicas cultural, histórica e social e da dimensão discursiva
presente na construção das práticas religiosas daimistas e na compreensão cotidiana
da realidade de seus adeptos.
A partir da compreensão oferecida por Berger (1985), percebe-se que as relações
entre os centros daimistas e as alianças políticas e ideológicas apresentam múltiplas
configurações, de acordo com os temas abordados e o fluxo das relações sociais
construídas ao longo do tempo no campo religioso daimista, composto, grosso modo,
pelos centros situados no Alto Santo, por um conjunto amplo de centros no Brasil
e no exterior vinculados à Igreja do Culto Eclético da Fluente Luz Universal —
Patrono Sebastião Mota de Melo (Iceflu) e por um conjunto crescente de centros
independentes que fazem uso ritual da ayahuasca em função de ampla gama de
influências culturais.
Para Bourdieu (1992:89), um campo, seja ele religioso, político ou artístico, é
um espaço social estruturado por meio de diferentes posições, com propriedades
particulares, cuja dinâmica depende dessas posições para a sua manutenção,
independentemente de quem as ocupe. Segundo esse autor, a gênese do campo religioso
remete ao processo de aparição e desenvolvimento das cidades na Idade Média,
acompanhado pelo gradual desaparecimento da relação imediata e plástica com as
forças naturais e pelo estabelecimento de uma relação racionalista do homem com
a vida, relação essa que passaria a orientar a busca do “sentido” da existência. Esse
processo fomentou a constituição tanto de um corpus estruturado de conhecimentos
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secretos, raros, como de instâncias especificamente organizadas para difundir “bens
religiosos”, ou o capital simbólico de cada grupo, observando-se ainda uma paulatina
moralização das práticas e das representações religiosas a partir de então.
A Iceflu é a instituição daimista com o maior número de filiados e a que está
mais difundida no Brasil e no mundo. Foi fundada em Rio Branco, ainda na década
de 1970, com o nome de Centro Eclético da Fluente Luz Universal Raimundo Irineu
Serra (Cefluris). Seu fundador, Sr. Sebastião Mota de Melo, conhecido por seus
seguidores como Padrinho8 Sebastião, foi uma das lideranças que mais se destacou
após o falecimento de Mestre Irineu. Esse senhor nasceu no Seringal Monte Lígia, no
município de Eirunepé (AM), e conheceu a religião na década de 1960, quando foi
curado de uma enfermidade graças ao Daime (Oliveira 2007). Participantes antigos
da religião mencionam que o Padrinho Sebastião apresentava naturalmente, desde a
infância, dons mediúnicos, como a incorporação de espíritos e a projeção astral9 —
capacidades especiais que, para os seus seguidores, legitimam sua liderança espiritual.
No final dos anos 1950, o Padrinho Sebastião se mudou do Seringal Adélia
para o Rio Branco. Lá ele deu prosseguimento aos trabalhos mediúnicos de Mesa
Branca até a sua filiação no Santo Daime, por volta de 1965.
Após o falecimento de Mestre Irineu, em 1971, Padrinho Sebastião afastou-se
do Ciclu — Alto Santo. Segundo seus seguidores, isso aconteceu por volta de 1974
e foi motivado por um incidente pessoal com o então dirigente da Sede do Mestre,
o Sr. Leôncio Gomes.
Relatam os companheiros do Padrinho Sebastião (Oliveira 2007) que ele teria
recebido uma instrução espiritual que preconizava o hasteamento de uma bandeira na
Sede do Ciclu – Alto Santo como símbolo de união e igualdade entre os seguidores do
Mestre, com o objetivo de amenizar os desentendimentos em curso entre os irmãos após
o seu falecimento. Ao ser informado da intenção do Padrinho Sebastião, o Sr. Leôncio
Gomes, à época presidente do centro, sugeriu que ele hasteasse essa bandeira em sua
própria casa, o que motivou o afastamento do Padrinho, de sua família e dos seguidores
que reconheciam a sua liderança espiritual do Ciclu – Alto Santo e a constituição,
nos arredores de Rio Branco, de pequena colônia, que ficou conhecida como Colônia
5000, que se tornou a sede inicial do Cefluris, entidade que deu origem a atual Iceflu.
Se por um lado a saída do Padrinho Sebastião do Ciclu – Alto Santo foi
motivada por um evento específico ocorrido entre ele o dirigente do centro, por
outro também reflete, de maneira ampla, o conjunto de tensões vividas pelos discípulos
do Mestre Irineu após a sua morte e o processo natural de constituiçãode novas
lideranças.
O conceito de campo desenvolvido por Bourdieu (1992) enfatiza a existência
de tensões, de lutas por poder dentro de cada campo. Isso se manifesta, por exemplo,
quando novas pessoas, novas ideias, buscam legitimar sua posição em relação a um
grupo ou a uma normativa dominante, que, por sua vez, tenta defender a sua posição
excluindo a concorrência e não legitimando o novo.
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Bourdieu (1992:89–90) afirma que o dominante num campo religioso é o
conjunto de pessoas que detém o capital simbólico específico desse campo, composto
por regras, crenças, técnicas, conhecimentos, história, hierarquia. Ao fazer uso desse
capital simbólico, o dominante busca manter-se no poder, fundamentando sua
autoridade com base nesse capital simbólico e tendendo à defesa da ortodoxia e à
busca pela exclusão dos recém-chegados que, então, adotam estratégias de subversão
como as da heresia, para construir a sua legitimidade própria. Bourdieu também
aponta para a existência de uma divisão social do trabalho na dinâmica dos campos
religiosos e ressalta especificamente duas posições sociais assumidas por seus
integrantes: a dos sacerdotes, entendidos como aqueles detentores de uma autoridade
legitimada pelo grupo dominante, e a dos profetas que, em oposição ao grupo
dominante, representam a força carismática e herética de novas posições ideológicas
dentro do campo religioso.
Historicamente, o corpo sacerdotal do campo daimista pode ser identificado
como as lideranças da religião, especialmente as que compartilham da proposta de
manter a doutrina imutável, fundamentando sua autoridade, primordialmente, na
busca ideal da manutenção das práticas e dos preceitos constituídos pelo fundador.
Segundo Bourdieu (1992:89–90), os sacerdotes dispõem de autoridade de função,
que dispensa conquista, continuamente confirmada em virtude do fato de sua
autoridade ser legitimada pela função, pela posição ocupada no campo religioso. Já
a autoridade do profeta deve sempre ser conquistada, no conjunto de determinado
estado de relação de forças. Nas palavras desse autor:
O profeta opõe-se ao corpo sacerdotal da mesma forma que o
descontínuo ao contínuo, o extraordinário ao ordinário, o extracotidiano
ao cotidiano, ao banal, particularmente no que concerne ao modo de
exercício da ação religiosa, isto é, à estrutura temporal da ação de
imposição e de inculcação e os meios a que ela recorre (Bourdieu
1992:89).
No campo religioso daimista, é possível considerar, genericamente, que as
lideranças no núcleo do Alto Santo assumem, em grande parte, a função sacerdotal,
e que o Padrinho Sebastião Mota de Melo ocupou inicialmente a posição de profeta
na medida em que questionou a ordem vigente de seu tempo, mediante, segundo seus
discípulos, revelações espirituais.
Imbuído e legitimado pela ideologia da revelação, inspiração e missão espiritual,
reconhecido por seus seguidores como São João Batista, o Padrinho Sebastião
contribuiu de maneira singular para o processo de formação da religião após o
falecimento de Mestre Irineu. Incluiu outras práticas na religião: a incorporação de
espíritos e o sacramento do casamento; a condução de seus adeptos para o interior
da floresta amazônica no início da década de 80, constituindo às margens do igarapé
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Mapiá, na Reserva Nacional do Inauini–Pauini (AM), uma comunidade que hoje
conta com mais de 500 habitantes — a Vila Céu do Mapiá; e possibilitou ainda uma
grande expansão da religião para o sul do Brasil e para o exterior com o surgimento
de inúmeras centros daimistas filiados à ICEFLU.
Com a expansão da religião, o Padrinho Sebastião passou, paulatinamente, da
condição inicial de profeta, ou seja, daquele que questiona a ordem vigente, para a
de sacerdote, na medida em que se transformou, por meio de seus sucessores, no
grande agente de expansão e consolidação da religião fora do estado do Acre. Nesse
processo, o Cefluris se dividiu em duas entidades distintas: a Igreja do Culto Eclético
da Fluente Luz Universal — Patrono Sebastião Mota de Melo (Iceflu) e o Instituto
de Desenvolvimento Ambiental Raimundo Irineu Serra (Ida–Cefluris). A vila Céu
do Mapiá passou a ser considerada local de peregrinação espiritual e recebe anualmente
centenas de visitantes de todo o mundo.
Entre os habitantes da vila Céu do Mapiá também é possível encontrar hoje
em dia, ainda que em menor número do que em Alto Santo, seguidores que
acompanharam os trabalhos do Mestre Irineu, dentre os quais se destacam os líderes
da comunidade. No entanto, tendo em vista que após o falecimento do fundador
tenham se rompido em grande parte as relações desse núcleo de pessoas com a sede
do Alto Santo, os seguidores do Padrinho Sebastião desenvolveram uma trajetória
singular que contribuiu para que, no âmbito das filiais da Iceflu, a religião se formasse
com características distintas em relação aos centros situados no Alto Santo,
estabelecendo assim polarizações entre as posições assumidas por esses grupos daimistas.
Dos temas polêmicos que orientam as articulações políticas e sociais dentro do
campo religioso daimista e que conduzem a tensões entre os diferentes grupos que o
compõem destacam-se: o consumo de outras substâncias psicoativas; a incorporação
de espíritos; e a possibilidade de transformações e acréscimos nos rituais constituídos
pelo fundador.
De modo geral, os centros que se situam no Alto Santo não admitem a
possibilidade de uso de outras substâncias psicoativas por seus seguidores nem durante
os rituais da religião nem no âmbito de sua vida privada. Tal compreensão se baseia,
essencialmente, nas informações presentes nos relatos orais de antigos seguidores
acerca da história da religião e da vida do fundador, assim como por meio do conteúdo
do estatuto deixado pelo Mestre Irineu pouco antes de sua morte.
No que diz respeito ao estatuto do Centro de Iluminação Cristã Luz Universal
(Ciclu), nome pelo qual ficou registrada a sede constituída pelo Mestre Irineu no
Cartório de Rio Branco (AC) em 20 de abril de 1971, nele consta:
Art. 19º — Capitulando pela moral e saúde da agremiação, a todos é
vedado, na forma da alínea B e art. 8º da Constituição e Decreto-Lei
159 e art. 281 do Código Penal e afins, o uso ou tráfico de inebriantes,
refutando-se: a) a morfina, b) a heroína, c) a cocaína, d) a maconha, e)
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a marijuana, f) a cachaça, g) o LSD e outros também de efeito deletério
incompatíveis com a dignidade humana, os quais obscurecem a
consciência e os sentimentos nobres, levando à perversão e ao fatalismo
suas vítimas, na ânsia inopitável (sic) de alegrias fortuitas e degradações10.
Apesar de o texto do estatuto se referir ao Código Penal Brasileiro, percebe-
se que a inclusão das substâncias psicoativas em seu texto não é fruto exclusivamente
da necessidade de cumprimento da legislação nacional e que, em última instância,
expressa um posicionamento político e ideológico historicamente determinado do
grupo que o criou e que se encontra ainda hoje à frente de dois dos quatro centros
daimistas que se situam no Alto Santo: o Ciclu – Alto Santo, como é chamada na
atualidade a Sede do Mestre Irineu, e o Ciclu – Centro Rainha da Floresta, onde o
presente estatuto continua vigendo.
Tal consideração fica evidente, por exemplo, na inclusão da cachaça no rol de
proibições, a qual não é (nem era) substância psicoativa ilícita no momento da
redação do estatuto e é apenas uma entre inúmeras outras bebidas alcoólicas que
poderiam estar listadas. Nesse sentido, percebe-se que a inclusão da palavra cachaça
no texto revela uma dimensão simbólica importante. O estatuto representa mais que
a simples necessidade de cumprimento da legislação nacional. A necessidade de se
usar a “palavra oficial” do estatuto, portanto também investida de poder, expressa,
em última instância, um posicionamento político e ideológico que busca marcar
nitidamente as fronteirassimbólicas entre o uso religioso da ayahuasca e de outros
psicoativos. Tal se revela com veemência, por exemplo, na repetição da referência à
cannabis sativa, a qual figura por duas vezes no estatuto, como maconha e marijuana.
No que diz respeito aos relatos orais presentes na religião que falam sobre o
tema dos psicoativos, alguns discípulos que conviveram com o Mestre Irineu
mencionam que, além do Daime, ele usava o tabaco (fumado) em seu cotidiano e
inclusive, eventualmente, ao longo dos rituais, e que também usou ocasionalmente
bebidas alcoólicas durante vários anos. No entanto, com o passar do tempo o consumo
de bebidas alcoólicas na religião revestiu-se de um novo significado até ser considerado
na atualidade como parte das prescrições negativas necessárias para o consumo ritual
do Daime na religião.
 Segundo a antropóloga Sandra Goulart (1996:129) a constituição da religião
do Santo Daime implicou,
o abandono de certos hábitos, como da moral que os possibilitava. Uma
nova ética estava se consolidando e a doutrina do Mestre Irineu a
expressava. Ela já era visível quando o uso do Daime se dava no contexto
das antigas festas dos santos. Nessas ocasiões, não se tomava a cachaça,
bebida que, como foi assinalada por muitos estudiosos (Galvão 1955:78),
anteriormente era altamente valorizada em tais comemorações.
163OLIVEIRA: Um desafio ao respeito e à tolerância
Entretanto, apesar de a cachaça figurar como substância proibida no estatuto
do Ciclu e do seu uso ser vetado aos seguidores da religião em seu estatuto, o uso de
bebidas alcoólicas é, de modo geral, socialmente tolerado entre os daimistas na
atualidade.Tal fato aponta para a dimensão histórica e social desses significados e
corrobora ainda a importância das narrativas orais e escritas na construção das
compreensões compartilhadas pelos daimistas acerca da religião e seus fundamentos
doutrinários (Geertz 1989).
Já no que diz respeito à cannabis, os relatos orais presentes na religião são, por
vezes, contraditórios ou interpretados de maneira diferente pelos seguidores que
conviveram com o Mestre Irineu.
Alguns deles, como o Sr. João Rodrigues Facundes, atual dirigente do Ciclu e
um dos responsáveis pela redação do primeiro estatuto da religião, e o Sr. Luiz Mendes
Nascimento, líder do Centro Eclético Flor do Lótus Iluminado (Cefli), situado no
bairro Bujari, em Rio Branco, relatam ter ouvido o fundador mencionar que seus
“primos e amigos usavam a diamba11 em sua terra natal”. Para o Sr. Luiz Mendes, a
participação do Mestre nessas práticas é considerada uma consequência natural do
uso da planta em seu contexto familiar. Já o Sr. João Facundes considera que o relato
feito pelo Mestre não implica nem sua anuência quanto ao uso da planta nem
tampouco sua participação nas práticas com a diamba. Outros discípulos antigos,
como o Sr. Daniel Serra, sobrinho do Mestre Irineu, não consideram esses relatos
verídicos.
Tais declarações revelam como a compreensão dos fundamentos doutrinários
da religião pode assumir diferentes interpretações, de acordo com aqueles que a
compõem, e revelam a importância da dinâmica discursiva da oralidade na religião.
Tendo em vista o fato de Mestre Irineu ter feito pouquíssimas menções a sua juventude,
esses e outros registros orais que rememoram a sua vida no Maranhão adquirem para
os seguidores um caráter simbólico importante e são usados diferentemente em cada
grupo, para legitimar posições políticas e ideológicas.
No entanto, apesar de fazer parte da dinâmica da oralidade em que os relatos
compartilhados se ressignificam com o passar do tempo (Chauí 2000), perdendo
parte de sua característica histórica e ganhando sentidos cada vez mais simbólicos,
também é importante averiguar os significados e as práticas associadas à diamba no
Maranhão, para se contextualizar o relato oferecido pelo Mestre Irineu acerca de sua
juventude.
O Maranhão é famoso por ser um dos únicos locais no Brasil onde a cannabis
tem um histórico de uso nativo entre indígenas e negros. Por sua vez, a Sra. Zelinda
Machado de Castro e Lima, de 83 anos, pesquisadora das tradições culturais
maranhenses, lembra que o consumo da planta era muito difundido no Maranhão,
tanto na medicina popular, quanto em práticas culturais diversas: para abrir o apetite,
para dor de estômago, para “chamar o sono na boca da noite” e dar bons sonhos
quando colocada debaixo do travesseiro dos bebês. Suas memórias revelam a inerente
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condição histórica da construção de significados associados aos psicoativos e apontam
para a necessidade de se entender os relatos orais e escritos presentes no Santo
Daime sobre esse tema, tanto mediante os significados associados ao contexto onde
se originaram como a partir da compreensão de sua ressignificação ao longo do tempo,
por meio de diferentes influências culturais e históricas.
No que diz respeito à Iceflu, sabe-se que, enquanto o Padrinho Sebastião
esteve com sua família na Colônia 5000, a mesma se transformou num ponto de
atração para as pessoas interessadas em conhecer o Santo Daime, especialmente para
os “cabeludos”, como eram conhecidos os hippies que, vindos de diversos países do
mundo, muitas vezes ficavam morando naquela comunidade.
Como resultado da influência desse novo conjunto de participantes na religião,
no final da década de 70, passou a vigorar na Colônia 5000 uma experiência
comunitária em que os bens e os frutos do trabalho eram integralmente compartilhados
pelos moradores do local. Também se observou entre os participantes da religião
certa abertura para a utilização de outras substâncias psicoativas, que já faziam parte
do universo simbólico e cultural vivenciado por esses novos integrantes da irmandade
daimista, entre eles os cogumelos alucinógenos e, especialmente, a cannabis sativa
(De almeida 2002; Macrae 1998).
Segundo o antropólogo Edward Macrae (1998:468), a princípio o consumo da
planta era feito secretamente pelos hippies que viviam na comunidade. No entanto,
num dado momento, ao longo de um ritual com o Daime, uma das pessoas que faziam
o consumo da planta, o Sr. Lúcio Mortimer, tomado por forte necessidade interna,
revelou o consumo da planta ao Padrinho Sebastião, mostrando-lhe inclusive onde
as plantas eram cultivadas na comunidade.
Nesse momento, segundo esse autor, o Padrinho12, ao invés de se zangar, teria
dito que algum tempo antes havia tido um sonho no qual:
um estranho cavaleiro, cavalgando uma montaria branca e usando uma
capa preta, anunciara que brevemente ele iria mudar para outra linha
espiritual. Quando Padrinho Sebastião perguntou-lhe “Que linha?”, a
resposta foi que ele descobriria por si mesmo. Padrinho Sebastião
continuou a caminhar, chegando a um roçado que era cuidado por um
homem moreno vestido de branco, o qual lhe entregou o galho de uma
planta, dizendo: “esta é para curar”. Padrinho Sebastião disse que, ao
receber a oferta, acordou, mas que, ao ver a plantinha que Lucio lhe
mostrava, lembrou do sonho e ficara com vontade de cultivá-la para
fazer a comparação (Macrae 1998:469).
Macrae (1998:470) também revela que, por algum tempo, o Padrinho Sebastião
manteve o uso da planta restrito a poucas pessoas na comunidade, até chegar à
conclusão de que
165OLIVEIRA: Um desafio ao respeito e à tolerância
enquanto a ayahuasca trabalhava com a energia espiritual de Cristo, a
cannabis veiculava a energia da Virgem. Como entre os hippies havia
três chilenos que costumavam chamar a planta de marijuana, esta passou
a ser conhecida como Santa Maria. Padrinho Sebastião explicou que
havia sido instruído a tirar a erva da boca do demônio e retorná-la à sua
dona verdadeira, a Virgem Maria. Assim, começou uma série de
instruções que transmitiu aos seus seguidores, sobre a maneira correta,
sagrada, de usar a cannabis, diferente da maneira profana de quem,
simplesmente, busca um “barato”.
À semelhança do que aconteceu em relação à ayahuasca no Santo Daime,
passou a acontecer então uma ressignificação do uso da cannabisna religião, a partir
do universo simbólico e da cultura das pessoas do local e das práticas e preceitos já
instituídos em relação ao Daime. Tal se manifestou, por exemplo, por meio de um
novo nome para a cannabis que enfatizava a sua natureza sagrada e cristã, assim como
o surgimento de novas designações para palavras tradicionalmente associadas às
práticas com a planta e seus insumos. “Fumar” virou “pitar”; a “seda” (papel para a
confecção dos cigarros de maconha) passou a ser designada “papelinho”; o topo da
planta, comumente conhecido como “camarão”, passou a ser chamado de “bucha”.
Os usuários, por sua vez, de maconheiros passaram a “marianos” (Macrae 1998).
Nesse processo de ressignificação da planta na religião também foram elaboradas
várias prescrições para o seu cultivo, manuseio, uso ritual e cotidiano na comunidade
do Padrinho Sebastião. Sobre esse tema, descreve Macrae (1998:89):
Foram também elaboradas várias prescrições versando sobre as maneiras
corretas de plantar, cuidar e colher a Santa Maria, desempenhando
importante papel de reforço à noção de que seu uso deve ser encarado
como algo sagrado e sério, e não ser confundido com o simples
hedonismo. Recomendava-se que a plantação ocorresse vinte e quatro
horas após a lua nova, e deveria ser feita “seguindo um traçado especial
que configura o ponto do jardim (estrela, cruzeiro ou outro símbolo de
importância para seu zelador)”. A colheita deveria ser realizada na lua
cheia e, após três dias de secagem, realizar-se-ia o “feitio de Santa Maria”,
onde se faria a limpeza, separação e seleção da erva que, assim como
ocorre com o Daime, seria julgada como sendo de primeiro, segundo ou
terceiro grau, de acordo com sua pureza e concentração de poder (Silva
1985:10). Havia também uma preocupação sobre o comportamento
pessoal do zelador do “jardim de Santa Maria”, e sua adesão aos princípios
da doutrina daimista, considerando-se que disso dependeria o resultado
da plantação (Silva 1985:9).
Segundo a concepção inicial do Padrinho Sebastião, a “Santa Maria”
166 Religião e Sociedade, Rio de Janeiro, 31(2): 154-178, 2011
deveria somente ser usada a cada duas semanas, em rituais similares aos
do Santo Daime. Mas logo se desenvolveram padrões e maneiras de uso
mais informais. O prazo de duas semanas entre cada “trabalho de Santa
Maria” deixou de ser observado e o consumo tornou-se bastante
frequente.
Percebe-se pela descrição oferecida por Macrae que as novas prescrições
referentes ao uso da Santa Maria na comunidade do Padrinho Sebastião foram
construindo, paulatinamente, um novo set e setting para a planta, nos termos propostos
por Zinberg (1984). Ou seja, foram sendo constituídos um novo ambiente, novas
práticas e novas representações sociais, e consequentemente uma nova disposição
interna nos usuários e novos significados para o seu uso. Entretanto, apoiada na
doutrina instituída pelo Mestre Irineu, nas prescrições negativas já existentes para o
consumo do Daime e especialmente nos hinos da religião, foi se formando, com o
passar do tempo, uma nova teia de significados capaz de sustentar e fornecer um
controle social mínimo para a utilização da planta na religião que separava o universo
simbólico de seu uso religioso daquele feito na “rua”, como os daimistas se referem
ao uso da planta fora da religião. Começaram assim a surgir vários hinos que falavam
especificamente da Santa Maria, e hinos antigos da religião que se referiam a Virgem
Maria foram relidos à luz da associação da Virgem com a planta.
O hino “Uma bela história”, do Sr. Lúcio Mortimer, fala poeticamente do
significado da Santa Maria para os daimistas:
Eu vou contar uma bela história
Da plantinha que mais tem amor
Ela era bem pequenina
Padrinho viu e abençoou
Ele disse preste atenção
Aqui tem uma força divina
Quem souber dar consagração
Tem uma Mãe que nos ensina
Ela cura e alimenta
O amor em nosso coração
O seu perfume nos acalenta
E nos conforta em nossa missão
Um anjo veio e foi dizendo
No sonho de nosso Padrinho
Com esta planta também se cura
167OLIVEIRA: Um desafio ao respeito e à tolerância
E tem mais Luz no seu caminho
Com o galho verde em sua mão
O anjo veio e fez a profecia
Agora vamos ter união
E mais respeito à Santa Maria 13
No entanto, com a mudança da comunidade da Colônia 5000 para o interior
da floresta amazônica, o consumo da cannabis entre os seguidores passou a ser
paulatinamente restringido, em conformidade com a legislação nacional e no intuito
de se preservar e priorizar o processo de legalização do Santo Daime no país.
Atualmente, o uso da planta na religião é completamente vetado dentro dos rituais,
mas, tendo em vista a história de vida do Padrinho Sebastião e seus seguidores mais
próximos, observa-se que há certa tolerância do uso da planta na vida cotidiana dos
participantes da religião, ressalvando-se a integral responsabilidade de cada pessoa
por seus atos individuais.
No que diz respeito à incorporação de espíritos nas práticas daimistas, sabe-se
por meio dos relatos dos seguidores antigos e das pesquisas feitas sobre os momentos
iniciais da religião (Monteiro 1983) que, nas primeiras experiências de consumo
ritualizado e cristão da ayahuasca realizadas pelo Mestre Irineu, anteriores à década
de 1930, na cidade de Brasileia, as incorporações de espíritos chegaram a fazer parte
da religião.
Ao longo dos rituais realizados pelo Mestre Irineu em Rio Branco, não existem
relatos que apontem que essas incorporações fossem permitidas ou incentivadas no
âmbito da religião. Entretanto, alguns relatos orais dos moradores do Alto Santo
falam de experiências vividas pelo Mestre Irineu que podem indicar que, em nível
pessoal, ele também admitia a incorporação mediúnica. Os discípulos lembram-se,
por exemplo, de ele ter proferido palavras em tupi-guarani durante um ritual de
Concentração14 na década de 1960, o que tanto pode revelar conhecimento linguístico
adquirido pelo fundador em suas vivências na floresta, como também indicar que, em
momentos especiais, ele permitiu a manifestação de espíritos em seu corpo durante
os rituais da religião. Ainda sobre esse tema, a Sra. Altina Serra, nora do Mestre
Irineu, que conviveu com ele durante vários anos em sua casa, também lembra outras
vivências do fundador que podem indicar seu contato mediúnico com espíritos:
SRA. ALTINA: Às vezes eu me acordava [no meio da noite], e devido
eu ser de Belém, e aqui ter pouca casa, mais mato assim perto, eu tinha
medo que só... Mas eu escutava, escutava, escutava e sentava na cama...
E só escutando o Mestre conversando. O Mestre conversava, conversava,
conversava, eu ficava prestando atenção, com quem é que ele conversava;
eu não via ninguém. Eu só via que ele falava aquela linguagem assim,
168 Religião e Sociedade, Rio de Janeiro, 31(2): 154-178, 2011
que eu não entendia nenhuma palavra... Ele sentava na cama, no
colchão... Ele tava sentado e conversando como se estivesse conversando
com pessoas... E eu ficava querendo saber, querendo ver, mas não via
ninguém. Era assim, você sentia aquele movimento como se tinha gente
ali sabe? [...] Muitas vezes eu olhei lá que ele tava naquele quarto mais
embaixo [...] às vezes o cigarro [na mão], e conversava e conversava.
‘Meu Deus quê que aquele velho tanto conversa?’
ISABELA: Em outra língua ou em português mesmo?
SRA. ALTINA: Parece que tava falando com índio. Era aquelas conversa
que eu não entendia nada, sabe? Tinha hora que ele falava forte assim.
Eu também não era muito curiosa, não passava pela cabeça [perguntar
o que era aquilo] e pronto. (Entrevista, maio de 2007, Rio Branco/AC)
Entretanto, no final da década de 1940, Mestre Irineu ofereceu a possibilidade a
um discípulo seu, o Sr. Daniel Pereira de Matos, de fundar outra linha de trabalhos
espirituais com o Daime — que ficou conhecida como Barquinha — na qual a incorporação
mediúnica é amplamente utilizada, fato que demonstra que ele tanto tinha abertura como
chegou a incentivar o uso do Daime em associação a práticas mediúnicas.
O surgimento da Barquinhase insere no conjunto mais amplo das
transformações históricas e sociais em curso na religiosidade popular brasileira entre
as décadas de 1930 e 1960 (Galvão 1955:146; Goulart 1996:140), pautado, em grande
medida, por um processo de legitimação das práticas religiosas afro-brasileiras e das
práticas vegetalistas tradicionais da Amazônia por adoção de conceitos pertinentes
ao kardecismo e da crescente cristianização dessas práticas religiosas populares.
Neste artigo, considera-se que a concessão oferecida pelo o Mestre Irineu para
a fundação da Barquinha também revela dialeticamente tanto um assentimento de
possibilidade dessas práticas com o Daime como uma necessidade de separação
simbólica da religião Santo Daime das práticas mediúnicas afro-brasileiras, kardecistas
e mesmo indígenas, com o objetivo de permitir sua legitimação social a partir de
crescente aproximação de seu universo simbólico daquele afeito às práticas cristãs
tradicionais e dominantes no país. Um processo que Moreira (2008; 2001) e Macrae
(2011) definem como “branqueamento”, no sentido que expressa uma necessidade
histórica e socialmente determinada de legitimação das práticas daimistas por meio
da afirmação dos elementos cristãos presentes em sua formação.
Tais eventos fizeram com que, apesar de os centros que fazem parte do Alto
Santo não adotarem em suas práticas a incorporação mediúnica, haja uma tolerância
e uma convivência salutar com a Barquinha e o reconhecimento de que essas práticas
são possíveis com o Daime em outras linhas espirituais que não aquela constituída
pelo Mestre Irineu.
169OLIVEIRA: Um desafio ao respeito e à tolerância
Na Iceflu a incorporação de espíritos acontece, de modo geral, em trabalhos
específicos de estudo e desenvolvimento mediúnico, entre os quais se encontram a
Mesa Branca do Professor Antônio Jorge, realizada nos dias 7 e/ou 27 de cada mês.
Também é facultada nos Trabalhos de Estrela — tipo de trabalho de cura onde se
permite a incorporação — e em rituais de Umbandaime, como os fiéis se referem aos
rituais geralmente ao ar livre, com entoação de pontos para diferentes orixás, sob o
efeito psicoativo do Daime. Nos outros trabalhos espirituais do calendário da religião,
as incorporações mediúnicas não são oficialmente permitidas nem incentivadas, mas
há certa tolerância a manifestações pontuais, especialmente quando acontecem com
visitantes. Entre os participantes da Iceflu, a inclusão da incorporação de espíritos se
justifica no grupo pela história de vida do Padrinho Sebastião.
Na atualidade, as funções sociais dos diferentes líderes daimistas e o espaço
social ocupado pelos grupos nesse campo religioso também se constroem mediante
diferentes visões sobre a religião e sobre o que é válido dentro dela. Genericamente,
o que se observa no campo daimista é que, para alguns participantes da religião,
apenas as práticas instituídas pelo Mestre Irineu são válidas e devem ser mantidas
como foram originalmente desenvolvidas. Para outros, a doutrina daimista é viva, ou
seja, passível de transformações ou, pelo menos, de acréscimos, incorporando-se, por
exemplo, novas datas no calendário de trabalhos espirituais da religião, assim como
novos hinos ao repertório cantado.
De modo geral, a postura crítica em relação ao novo está alicerçada na busca
ideal da manutenção das origens, da doutrina verdadeira, que é identificada com os
ensinamentos e as práticas deixados pelo Mestre Irineu em vida. Essa posição
manifesta-se especialmente entre seguidores filiados aos centros do Alto Santo e em
outros centros independentes espalhados pelo Brasil que compartilham dessa mesma
ideologia. Mas também se encontra, paradoxalmente, difundida, em menor extensão
e profundidade, entre alguns dos participantes da Iceflu, o que revela a existência de
pluralidade ideológica mesmo dentro dos diversos grupos que compõem a religião.
Tal postura ortodoxa fundamenta sua autoridade e busca manter-se no poder mediante
a compreensão da religião como algo imutável, desconsiderando o processo intrínseco
de reelaboração de sentidos que acontece ao longo da história, por meio da interação
de diferentes culturas e das releituras elaboradas constantemente por novos adeptos.
Já a postura que se postula como a doutrina viva alicerça-se na compreensão de que
existe uma continuidade legítima entre a autoridade dos líderes atuais e o fundador,
compartilhando a ideia de que o Mestre Irineu orienta ainda hoje os seus discípulos,
por meio do Daime e também pelo conceito de ecletismo evolutivo (argumentos que
serão elucidados ainda neste artigo).
Na atualidade, essas diferenças na compreensão sobre o que seja a religião do
Santo Daime e sobre aquilo que nela é válido podem ser consideradas como o pano
de fundo que alimenta várias tensões no campo daimista, fomentando a intolerância
religiosa entre as pessoas e as organizações que bebem o Santo Daime e que se
170 Religião e Sociedade, Rio de Janeiro, 31(2): 154-178, 2011
consideram, cada qual sob o seu ponto de vista, ramas legítimas da árvore plantada
por Mestre Irineu.
A compreensão da religião como construção humana, histórica e social que
oferece ordenamento significativo para seus seguidores, tal como proposta por Berger
(1985), revela que as práticas humanas são influenciadas pelo tempo em que são
produzidas, ou seja, que elas são, a cada instante, recriadas. Assim, não há como os
rituais do Daime necessariamente permanecerem inalterados desde a época do
fundador da religião, mesmo que fossem repetidos o mais fielmente possível conforme
as orientações deixadas por Mestre Irineu, posto que o presente sempre conduz a uma
releitura do passado.
Além de Berger (1985), adere a tal compreensão Pierre Sanchis, outro estudioso
das religiões, para quem o campo religioso constrói-se e se reconstrói continuamente
nas ações entremeadas das diversas instituições e agrupamentos que o compõem
(Sanchis 1995:81). Para ele, a dinâmica atual, presente na constituição das religiões,
tanto emerge como se assenta no passado histórico. Ou seja, no passado está a fonte
do presente e do futuro, uma leitura benjaminiana da história (Benjamin 1994).
Sanchis refere-se a esse processo de construção social e histórica das religiões como
uma atividade que envolve, ao mesmo tempo, a manutenção de “remanescências
teimosas e criativas do passado” e a emergência de características “inovadoras e
transformadoras da realidade” (Sanchis 1995:81).
Partindo-se do conceito de cultura proposto por autores como Berger (1985:19)
e Geertz (1989:24), pode-se perceber o ordenamento simbólico construído
dialogicamente pelos daimistas na religião como sendo a própria cultura, entendida
como a totalidade dos produtos humanos, e não apenas a esfera simbólica presente
nesse conjunto, um amplo sistema entrelaçado de signos interpretáveis transmitidos
historicamente (Geertz 1989:103).
Tal compreensão de cultura permite que os sentidos compartilhados pelos
daimistas em seu campo religioso sejam compreendidos como um corpus semântico,
uma teia de significados que se estrutura e se ressignifica sempre, mediante uma
releitura do passado a partir do presente.
Nesse sentido, tanto a percepção da doutrina como sendo viva, passível de
reelaborações, como aquela que postula serem válidas apenas as práticas deixadas
pelo fundador, expressam, em última instância, diferentes normativas controladoras
do sagrado. Essa ideia está presente em Bourdieu (1992:89), para quem os sistemas
simbólicos, tais como o da arte, da religião e da língua, são inerentemente veículos
de poder e de política e cumprem função de conservação da ordem social, contribuindo
para a legitimação do poder de determinado grupo de pessoas em detrimento a outras,
mediante a difusão de determinados princípios estruturadores do pensamento e da
percepção do mundo (Bourdieu 1992:31–33).
No que diz respeito ao Santo Daime, mesmo que essas normativas sejam
aparentemente antagônicas — doutrina viva X doutrina imutável —, os limites entre
171OLIVEIRA: Um desafio ao respeito e àtolerância
essas duas concepções sobre religião são tênues, especialmente pela existência da
compreensão compartilhada entre a maioria dos seguidores de que o “Mestre (Irineu)
é e está no Daime” e pelo fato de o próprio Mestre Irineu ter implantado, ao longo
da sua vida, várias mudanças na religião. Na prática cotidiana do Santo Daime, tais
posições também não se manifestam rigidamente, como pode ser percebido, por
exemplo, pelas palavras de um dos hinos do atual dirigente da Iceflu, o Padrinho
Alfredo Gregório de Melo, filho do Padrinho Sebastião: “Seguir realmente a doutrina/
E não alterar nenhum til15”.
Tais considerações sobre os tênues e dinâmicos limites entre essas diferentes
concepções apontam, por sua vez, para os aspectos políticos envolvidos na
continuidade da religião, especialmente no que diz respeito à legitimação das
lideranças atuais do Santo Daime. Apesar de a posição favorável à manutenção das
práticas de acordo com o estabelecido pelo fundador ser aparentemente mais
normativa e investir-se de autoridade por meio da tentativa de manutenção da origem,
a opinião que acolhe novidades na religião também é igualmente normativa. Ela se
fundamenta num campo de forças que permite a legitimação apenas de determinadas
transformações na religião, de modo geral aquelas implantadas por lideranças
consideradas legítimas na atualidade pelos seguidores da religião. Nesse sentido, a
busca da manutenção das origens, por exemplo, revela o esforço de alicerçar a
autoridade presente de alguns líderes do Santo Daime, numa tentativa ideal de
permanência do passado.
Nessa normativa do sagrado, é comum que a autoridade presente se alicerce
nas construções mítico-fundadoras constantes na oralidade. Por essa via, fica
obscurecida a condição de que todo retorno ao passado envolve necessariamente
uma releitura dele, a partir de determinado ponto de vista presente. Entretanto, a
rigidez dessa posição leva a uma desconsideração da legitimidade de outras lideranças
não afeitas a essa normativa e ao acirramento, portanto, da intolerância religiosa. Já
a percepção do Santo Daime como doutrina viva se alicerça numa normativa que
legitima as lideranças atuais da religião por meio do reconhecimento das ações
presentes, como uma continuidade legítima do passado que tanto investe essas pessoas
de poder como de responsabilidade social por suas ações atuais.
Também é necessário analisar o fenômeno religioso na atualidade para
compreender em que medida essas tensões no campo religioso daimista se inserem
nas transformações mais amplas em curso na contemporaneidade. De acordo com
Sanchis (1995:88), o campo religioso contemporâneo é caracterizado pela influência
do pensamento do paradigma pós-moderno que se traduz, entre outras características,
por uma tendência ao desaparecimento dos monolitismos, com o reconhecimento da
alteridade tanto entre diferentes religiões, como dentro do contexto de uma única
religião. No nível cultural (Sanchis 1995:84), isso se expressa na crescente
conscientização, entre os diversos grupos religiosos, da necessidade de se compartilhar
um único espaço social, incentivando, dessa forma, a tolerância religiosa.
172 Religião e Sociedade, Rio de Janeiro, 31(2): 154-178, 2011
A existência de compreensões semelhantes entre daimistas que buscam a
“manutenção do passado” e aqueles que consideram a “doutrina viva” e os tênues
limites dessas normativas revelam que também existe uma unidade que perpassa e
ultrapassa as diferenças e as polarizações entre as diferentes normativas sobre a religião
que evoca, por sua vez, um caminho possível de entendimento e respeito pelas
diferenças. Essas continuidades também confirmam que os desafios vividos no Santo
Daime se inserem no conjunto de transformações mais amplas em curso no campo
religioso pós-moderno.
Sanchis (1995:93) propõe ainda que, na atualidade, o pluralismo religioso se
manifesta especialmente pela existência, num mesmo espaço, de várias “sínteses
institucionais”. Observa-se uma multiplicidade de agrupamentos no interior de uma
mesma instituição e o surgimento de “comunidades emocionais” ou “tribos” —
diferentes grupos num mesmo campo religioso.
No Santo Daime, isso pode ser percebido atualmente na presença de diferentes
grupos e organizações que fazem novos usos da bebida e também nas diferentes
normativas sobre a religião, já analisadas, que orientam o posicionamento dos diversos
seguidores sobre temas polêmicos. A posição ideológica de cada instituição em relação
aos temas analisados ao longo deste artigo demonstra, por exemplo, que, apesar de o
campo religioso ayahuasqueiro ser polarizado por diferentes posições normativas,
coexistem também diversas sínteses institucionais que se legitimam, cada qual a
partir de diferentes argumentos válidos, e remetem, em última instância, a uma
compreensão diferenciada do que seja a religião e daquilo que nela é válido e possível.
Goulart (1996), partindo dos estudos realizados por Yvonne Maggie (1977),
analisou os contrastes e as continuidades entre as religiões ayahuasqueiras e sustenta
que o jogo acusatório entre as linhas do Santo Daime revela aquilo que é central e
periférico nesses grupos, contribuindo assim para sua configuração identitária.
Além das questões analisadas que abordam os temas principais que dirigem a
constituição e o ordenamento das instituições conduzidas por seguidores diretos do
Mestre Irineu, verifica-se no presente o surgimento de novas práticas com a ayahuasca,
em pequenos grupos, especialmente nos centros urbanos do sul do país, que não são
filiados a nenhuma das vertentes aqui analisadas. Nesses grupos se associa, por
exemplo, à ingestão do Daime a práticas terapêuticas e xamânicas, a estudos esotéricos
de diferentes linhas, além da incorporação de outras correntes de pensamento afinadas
com o movimento new age e os conhecimentos orientais (Labate 2004).
Para Sanchis (1995), a crescente adoção de referências extracristãs, em grande
parte vindas do Oriente ou de antigas tradições esotéricas, é uma tendência mais
ampla, que orienta todo o campo religioso pós-moderno. Segundo esse autor, na
atualidade, “o sincretismo pode ser entendido não como desvio ou alteração de padrão
vigente, mas antes como moldura” Sanchis (1995:90), horizonte de definições
identitárias religiosas que se encontram em constante processo de transformação e
redefinição, mediante o diálogo de diferentes influências culturais.
173OLIVEIRA: Um desafio ao respeito e à tolerância
No que diz respeito ao Santo Daime, o sincretismo tanto está presente na
gênese da formação da religião pela incorporação de elementos indígenas, esotéricos,
cristãos e espíritas como, mais recentemente, quanto pela incorporação dessas novas
práticas à doutrina.
Entre os elementos indígenas presentes na religião está a própria bebida
consumida nos rituais — a ayahuasca — e alguns elementos associados ao seu uso,
como a entoação de cânticos durante os rituais, o uso de instrumentos como o maracá
e as prescrições negativas anteriores e posteriores a sua ingestão (no caso da religião,
abstinência de sexo e álcool durante três dias antes e depois do consumo do Daime).
Entretanto, grande parte da transformação na dinâmica moral de utilização da bebida
na religião se deu por meio da influência do pensamento esotérico, cristão e espírita.
No que concerne ao pensamento esotérico, por exemplo, desde o início a
ingestão da ayahuasca foi feita com o intuito de se proceder à concentração mental,
prática comum e afeita à normativa do Círculo Esotérico da Comunhão do
Pensamento (CECP), organização dedicada ao estudo do esoterismo, fundada em
1909, em São Paulo. Nas primeiras décadas do século XX, o Círculo Esotérico foi
uma organização com destaque no cenário nacional, marcando presença em inúmeros
estados brasileiros, inclusive no Acre, divulgando o pensamento ocultista mediante
diversas publicações (Monteiro 1983; Couto 1989; Oliveira 2007). Nesse momento
vários daimistas, entre eles o próprio Mestre Irineu, se filiaram ao CECP.
Jácom relação às influências do pensamento espírita, elas podem ser percebidas,
por exemplo, na inclusão da Prece de Cáritas16 ao conjunto das orações da religião
e pela presença de conceitos como reencarnação, carma e doutrinação, que também
fazem parte do kardecismo. Mais recentemente, após o falecimento do fundador, a
influência do pensamento espírita fez-se ainda mais evidente com a incorporação de
trabalhos de desenvolvimento mediúnico.
Com relação à influência do pensamento cristão, talvez a mais evidente e
disseminada na religião, ela se manifesta em diferentes aspectos. Destaque-se
especialmente o Cruzeiro (uma cruz de dois trastes, semelhante a Cruz de Caravaca)
e o rosário — os símbolos mais importantes da religião —, o conteúdo cristão dos
hinos entoados durante os rituais, as datas principais dos trabalhos espirituais, as
preces feitas no início e no encerramento dos rituais (o Pai Nosso, a Ave Maria e a
Salve Rainha) e a prática de se rezar o terço antes dos rituais mais longos.
Alberto Groisman, antropólogo que estudou a questão, explica o significado
de ecletismo evolutivo para os daimistas: “Ecletismo, neste caso, é muito mais um
conjunto de valores do que uma escola de pensamento. Este conjunto de valores tem
como base essencial a aceitação de tradições espirituais diversas na busca espiritual
com o Daime.” (Groisman 1999:46)17. De acordo com esse autor, a ideia de ecletismo
evolutivo surge na religião como “forma de representar e justificar a convivência
entre diversos sistemas cosmológicos: a umbanda, o esoterismo, o espiritismo kardecista
e outras, na cosmologia grupal” (Groisman 1999:46). Esse conceito tornou-se tão
174 Religião e Sociedade, Rio de Janeiro, 31(2): 154-178, 2011
fundamental para os daimistas que compartilham dessa normativa que o termo eclético
está inclusive registrado na denominação da igreja formalizada pelo Padrinho Sebastião
— Igreja do Culto Eclético da Fluente Luz Universal Patrono Sebastião Mota de
Melo (Iceflu) — e, por consequência, também está presente em todos os núcleos e
igrejas vinculados a ela.
Assim, compreende-se que a dinâmica do sincretismo está presente desde a
gênese do Santo Daime. Ela se manifestou ao longo da história da religião e se
legitima na atualidade como parte importante de sua constituição e expressão cultural,
e também orienta a dinâmica do campo religioso ayahuasqueiro em direção a múltiplas
expressões, em diferentes instituições. Nesse sentido, tanto as posições ideológicas
que preconizam a abertura para o sincretismo e a transformação da religião, como
aquelas que buscam a manutenção exclusiva do conjunto de práticas estabelecidas
pelo fundador, são normativas que se inserem na própria dinâmica paradoxal do
fenômeno religioso pós-moderno. Fundamentam-se cada qual por normativas
construídas dialeticamente por seus seguidores ao longo da história e são, portanto,
o resultado da própria inserção da religião no cenário da cultura mundial da incessante
e frutífera construção dialógica de significados que estabelece cada normativa
institucional.
Que a análise desse cenário religioso contemporâneo (dialético, dialógico e
paradoxal) possa contribuir para que as diferenças geradoras de intolerância e tensões
entre os daimistas sejam percebidas como um convite generoso a uma compreensão
mais abrangente da prática da religião na atualidade, além de incentivar os diferentes
grupos que a praticam a um convívio de paz e respeito uns pelos outros,
compartilhando dignamente um mesmo espaço social.
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Notas
1 Em linhas gerais, a ayahuasca é obtida por meio da decocção do cipó Banisteriopsis caapi e da
folha Psychotria viridis. Além de ser chamado de ayahuasca — palavra quéchua que significa
“trepadeira das almas” ou “liana dos espíritos” (Luna 1986; Goulart 1999 apud Santos 2006:19)
—, o chá ainda é conhecido por mais de 40 nomes na região amazônica, entre eles: yagé, caapi,
kamarampi, hoasca, uasca, daime, vegetal, nixi pae, natema, cipó etc (Luna 1986).
2 Dado fornecido pela secretaria da Igreja do Culto Eclético da Fluente Luz Universal – PatronoSebastião Mota de Melo (Iceflu), em 15/04/2011, sobre seus filiados. A Iceflu é a vertente mais
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difundida do Santo Daime e, portanto, é baseada nela a estimativa mínima do número de
daimistas no Brasil e no mundo.
3 Os registros orais presentes neste artigo foram coletados ao longo de pesquisa de campo realizada
entre 2002 e 2007 junto a grupos daimistas das cidades de Rio Branco (AC) e de Vila Céu do
Mapiá (AM) e fazem parte do corpus documental da pesquisa de doutorado sobre o Santo
Daime, realizada no mesmo período pelo Programa de Pós-graduação em História da Universidade
de Brasília (Oliveira 2007). Ao todo, foram realizadas 49 entrevistas, sendo: 20 em Céu do
Mapiá, 21 em Alto Santo, cinco na Colônia 5.000 e três no Maranhão. As entrevistas privilegiaram
a inflexão livre dos entrevistados sobre sua história de vida e foram realizadas segundo metodologia
desenvolvida por autores como Paul Thompson (1992) e Milton José de Almeida (1994).
4 Apesar de a ayahuasca ser conhecida por mais de 40 nomes na região amazônica (Luna 1986),
o termo ayahuasca e suas corruptelas (oasca, huasca), segundo observações empíricas em pesquisa
de campo, constitui-se na palavra mais usada na região amazônica para se referir genericamente
a essa substância, quando não se faz consideração específica das práticas envolvidas em sua
utilização. Entretanto, a palavra ayahuasca também é o termo mais amplamente utilizado pela
literatura científica sobre o assunto e aquele que designa essa substância nos textos jurídicos,
justificando-se, assim, o seu emprego preponderante neste artigo.
5 Neste artigo, compreende-se ressignificação como o processo dialético de atribuição de novos
significados a um mesmo elemento, o que acontece mediante o diálogo contínuo entre as pessoas
e os conteúdos relevantes para a construção de sua realidade.
6 O Sr. Antônio Costa foi um amigo pessoal de Mestre Irineu, um migrante maranhense que
trabalhava como regatão (comerciante de borracha) na região onde o Mestre era seringueiro.
7 Berger entende a religião como um fenômeno social dialético que, por meio da auto-exterioração
de sentidos humanos sobre a realidade, constrói uma explicação para as dimensões sensíveis e
suprassensíveis da realidadem, projetando uma ordem humana sobre a totalidade da existência
(Berger 1985:41).
8 No Santo Daime, é comum que alguns seguidores mais antigos, assim como as lideranças espirituais
dos centros, sejam considerados pelos adeptos como “padrinhos” e “madrinhas”. É também comum
que, como um gesto de consideração, as pessoas peçam a bênção a quem, individualmente,
reconhecem como seu padrinho ou sua madrinha. Na pesquisa, esta autora pôde perceber que
tal costume, no âmbito da religião, teve origem no período em que o Mestre Irineu esteve à
frente da religião. Apesar de o título de padrinho e madrinha ser, em princípio, uma consideração
de foro íntimo, com o passar do tempo, generalizou-se o hábito de os dirigentes de determinado
centro serem referenciados como padrinho e madrinha, já que, de modo geral, a direção das
igrejas encontra-se a cargo tanto de homens como de mulheres. Tal fato aponta para a
ressignificação do conceito original dos termos padrinho e madrinha: da condição de parentesco
formal ou informal, de vínculo afetivo, passa a ser entendido como denominação de uma posição
hierárquica na religião.
9 Nome pelo qual ocultistas e teósofos se referem à projeção da consciência no plano espiritual
chamado de astral, assim como denominação genérica para as experiências da alma fora do
corpo.
10 Disponível em: http://pt.scribd.com/doc/11069043/Estatuto-Do-Mestre-Alto-SantoCICLU. Acesso
em 20 de novembro de 2010.
11 “Diamba” é o nome pelo qual a cannabis sativa é popularmente conhecida no Maranhão.
12 Alguns relatos presentes na religião, como os recolhidos por Macrae (1998), mencionam que
teria sido a partir da erva cedida pelos hippies que o Padrinho Sebastião, à semelhança dos
vegetalistas e xamãs amazônicos (Luna 1986), teria iniciado o seu estudo pessoal com essa
planta. Outros relatos obtidos em pesquisa de campo realizada entre 2006 e 2007 por esta autora
mencionam que, na verdade, a iniciação do Padrinho com tal planta teria se dado com um certo
soldado conhecido por Cancão, que fazia parte do centro do Mestre Irineu.
177OLIVEIRA: Um desafio ao respeito e à tolerância
Doutora em História pela Universidade de Brasília (UnB) e professora da Faculdade
de Comunicação da UnB. Consultora científica da Associação Brasileira para o
Estudo das Substâncias Psicoativas (Abesusp) e pesquisadora do Núcleo de Estudos
sobre Substâncias Psicoativas (Neip). Autora da tese Santo Daime: um sacramento
vivo, uma religião em formação (2007).
13 Hino 30, do hinário “A Instrução”, recebido pelo Sr. Lúcio Mortimer.
14 A Concentração foi um dos rituais formalizados pelo Mestre Irineu. Nele, bebe-se o Daime no
intuito de proceder a um período que varia de uma a duas horas de silêncio, visando a buscar
a concentração mental e a entrar em contato com a força fluídica da bebida. No final do ritual
são cantados os últimos onze hinos que foram deixados pelo fundador, os quais são denominados
“Hinos Novos” ou “Cruzeirinho”.
15 Hino 18, do hinário “Nova Era”, recebido pelo Padrinho Alfredo Gregório de Melo.
16 A Prece de Cáritas é uma oração psicografada na noite de 25 de dezembro de 1873 pela médium
Madame W. Krill, num círculo espírita de Bordeaux, França, a qual faz parte do conjunto de
preces da doutrina espírita e cujo conteúdo exorta os fies à misericórdia, à compaixão e à
caridade em relação aos necessitados e invoca espíritos consoladores. Disponível em: http://
www.universoespirita.org.br/divulgacao/ divul_ora_de_caritas.htm. Acesso em: 20 de maio de
2007.
17 Outros autores, como Wladimyr Sena Araújo (1999), que estudou a Barquinha, propõem a ideia
de “cosmologia em construção” para designar o processo sincrético de constituição das religiões
ayahuasqueiras, nas quais um conjunto de práticas religiosas de diferentes origens são rapidamente
reelaboradas e recombinadas, dando origem a uma nova doutrina específica.
Recebido em abril de 2010
Aprovado em setembro de 2011
178 Religião e Sociedade, Rio de Janeiro, 31(2): 154-178, 2011
Resumo:
Um desafio ao respeito e à tolerância: reflexões sobre o campo religioso
daimista na atualidade
O artigo analisa a composição do campo religioso daimista na atualidade e como
se estruturam os discursos que legitimam as práticas da religião no âmbito dos
principais grupos que a compõem, a saber: o conjunto de centros daimistas situados
na região do Alto Santo, em Rio Branco, e as igrejas filiadas à Igreja do Culto
Eclético da Fluente Luz Universal Patrono Sebastião Mota de Melo (Iceflu).
Demonstra-se aqui como as diferentes posições políticas e ideológicas presentes
nesses discursos são construídas historicamente e se inserem, de maneira mais
ampla, na dinâmica social das religiões na atualidade.
Palavras-chave: Ayahuasca, Daime, substâncias psicoativas.
Abstract:
A challenge to respect and tolerance: current reflections on Santo Daime
religious field
The article analyzes the composition of the Santo Daime religious field today and
how the main groups that are part of the religion — Daime centers located in the
Alto Santo region in Rio Branco and the churches affiliated to the Iceflu (Church
of the Eclectic Cult of the Universal Flowing Light – Patron Sebastião Mota de
Melo) — legitimize their practice of the religion. It also demonstrates how the
different political and ideological positions assumed by these groups in the Santo
Daime religious field are historically constructed and reveal how these positions
are also part of the broader social dynamics of religions today.
Keywords: Ayahuasca, Daime, Psychoactive substances.