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9Acaso ou indeterminação- Chaui

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Acaso ou indeterminação
A física contemporânea, no entanto, trouxe de volta o acaso. Entre os vários
estudos e várias teorias contemporâneas, vamos mencionar apenas três aspectos
com os quais podemos perceber como e por que o acaso ressurgiu nas ciências
naturais.
O pleno funcionamento do princípio da razão suficiente ou da causalidade e do
determinismo universal exige que seja mantida a idéia de substância, isto é, de
uma realidade que permaneça idêntica a si mesma, seja causa de alguma coisa e
efeito de alguma outra. Essa realidade pode ser uma matéria, uma energia, uma
massa, um volume, mas tem que ser alguma coisa com propriedades
determináveis, constantes e que possam ser conhecidas. Deve ser uma
quantidade constante e/ou uma forma constante. Ora, a microfísica ou física
quântica veio mostrar que não há nem uma coisa nem outra.
O estudo do átomo de hidrogênio revelou que a quantidade de matéria ou massa
não permanece constante, mas transforma-se em energia, e esta também não
permanece constante, mas, o que é pior, não se transforma em coisa alguma:
simplesmente se perde, desaparece, não se sabe para onde foi, nem o que lhe
aconteceu. A quantidade, portanto, não permanece constante.
Ao mesmo tempo, o estudo dos átomos revelou que, dependendo da aparelhagem
tecnológica usada, um corpúsculo é o que pode ser visto, mas, com outros
aparelhos, em lugar de um corpúsculo, vê -se uma onda. Com isso, uma mesma
realidade ou substância tanto pode ter a forma de algo que se estende no espaço
(onda), quanto a de um ponto que se concentra no espaço (corpúsculo), não
tendo, portanto, forma constante.
Se quantidade e forma perdem a constância, a regularidade e a freqüência, como
continuar falando em causas e efeitos?
Um segundo caso, que abalou a física e ficou conhecido com o nome de
princípio de incerteza ou de indeterminação, foi trazido pelos estudos do
físico Heisenberg ao descobrir que, no nível atômico, como conseqüência dos
Convite à Filosofia
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dois fatos que apontamos acima, conhecer o estado ou a situação atual de um
fenômeno, ou um conjunto de fatos, não permite prever a situação ou o estado
seguinte, nem, portanto, descobrir qual foi a situação ou o estado anterior.
O determinismo baseava-se no pressuposto de que o conhecimento físico causal
exige que um fenômeno físico deva ser conhecido a partir de dois critérios
simultâneos: suas propriedades geométricas (forma, figura, volume, grandeza,
posição) e suas propriedades físicas ou dinâmicas (velocidade, movimento,
repouso). Heisenberg descobriu que, quando conhecemos perfeitamente as
propriedades geométricas de um átomo, não conseguimos conhecer suas
propriedades físicas dinâmicas e vice-versa, sendo impossível determinar o
estado passado e o estado futuro do fenômeno estudado, isto é, suas causas e seus
efeitos.
Em outras palavras, quando se conhece a posição, não se consegue conhecer a
velocidade, e quando esta é conhecida, não se consegue conhecer a posição de
um corpúsculo. Há, portanto, incerteza, indeterminação do fenômeno. A
microfísica é incapaz de determinar a trajetória de corpúsculos individuais.
O terceiro acontecimento que abalou o determinismo universal foi a teoria da
relatividade, elaborada por Einstein. O abalo foi duplo.
Em primeiro lugar, como vimos, a ciência moderna organizou-se graças à
separação entre o subjetivo e o objetivo, propondo uma idéia de observaçãoexperimentação
em que o fenômeno observado será sempre o mesmo e
obedecerá às mesmas leis, seja quem for o sujeito observador.
Ora, Einstein demonstrou que o tempo é a quarta dimensão do espaço e que, na
velocidade da luz, o espaço “encurva-se”, “dilata-se”, “contrai-se” de tal modo
que afeta o tempo. Assim, alguém que estivesse na velocidade da luz atravessaria
num tempo mínimo um espaço imenso, mas o que ficassem abaixo daquela
velocidade sentiriam o tempo escoar lentamente ou “normalmente”. Para a
primeira pessoa, teriam se passado algumas horas ou dias, mas para outros,
meses, anos, séculos.
Dessa maneira, Einstein demonstrou que nossa física é tal como é porque
depende da observação do observador ou do sujeito do conhecimento, isto é, um
sujeito do conhecimento marciano ou venusiano produzirá uma física
completamente diferente da nossa, porque o espaço é relativo ao observador.
Assim sendo, nossa ciência da Natureza não é universal e necessária em si
mesma, mas exprime o ponto de vista do sujeito do conhecimento terrestre.
O segundo abalo provocado por Einstein refere-se à própria idéia de teoria
científica da Natureza.
Uma teoria científica, como vimos, é uma explicação global para um conjunto de
fatos naturais aparentemente diferentes, mas, na realidade, submetidos às mesmas
leis e aos mesmos princípios. É isso que permite, por exemplo, falar na teoria
Marilena Chauí
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universal da gravitação, formulada por Newton, válida para os movimentos de
todos os corpos do Universo, sejam eles grandes ou pequenos, leves ou pesados,
celestes ou terrestres, aquáticos ou aéreos, coloridos ou sem cor, saborosos ou
sem sabor, etc.
Também a idéia de teoria nos permite falar na teoria universal da relatividade,
elaborada por Einstein. Que diz ela? Que a medida da velocidade do movimento,
seja este qual for, é a velocidade da luz; que, nesta velocidade, toda matéria se
transforma em energia, deixando, portanto, de possuir massa e volume. Do ponto
de vista da velocidade da luz, a teoria da gravitação universal, baseada na relação
entre movimento, massa, tempo e velocidade, não tem valor, embora continue
verdadeira para os movimentos que não sejam medidos pela velocidade da luz.
Mas não é só isso. Do ponto de vista da velocidade da luz, todo movimento é
relativo, isto é, não há como distinguir observador e observado (fenômeno que
experimentamos em nossa vida cotidiana, quando, estando numa estação
ferroviária, num trem imóvel, vemos outro, paralelo ao nosso, mover-se, e temos
a impressão de que é nosso trem que está em movimento; ou quando, olhando um
rio veloz do alto de uma ponte, temos a impressão de que é a ponte que se move
e não o rio).
Qual o problema? A existência de três teorias físicas simultâneas – a quântica,
para os átomos; a newtoniana, para os corpos visíveis; a da relatividade, para o
movimento na velocidade da luz -, regidas por conceitos e métodos diferentes,
excluindo-se umas às outras e todas elas verdadeiras para os fenômenos que
explicam. E mais: a física quântica desfaz a idéia de causa como quantidade e
forma constantes; e a física da relatividade desfaz a idéia clássica da objetividade
como separação entre sujeito e objeto do conhecimento, base da ciência moderna.
Em lugar de um único paradigma científico, a física nos oferece três!

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