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1 INCIDÊNCIAS PSICOPATOLÓGICAS DA CONDIÇÃO DE "EMPREGADA DOMÉSTICA" Louis Le Guillant Há vários anos, diante desta mesma Société [Associação], tentei introduzir o esboço de uma "psicopatologia social" e chamar a atenção, no mínimo, do psiquiatra que, em meu entender, desviou-se bastante em relação ao papel do meio ou dos meios na aparição e eliminação dos distúrbios mentais; devo reconhecer que tal tentativa não obteve grande repercussão. Parece-me, inclusive, que este afastamento da realidade social acabou por acentuar-se; entretanto, não deixei de prosseguir minha pesquisa com diversos colaboradores e, em particular, com Jacqueline Lefebvre e o Dr. André Mathe. Esse trabalho situa-se, naturalmente, em uma concepção geral da génese, natureza e tratamento das manifestações psicopatológicas; aliás, teria sido necessário posicionar minha apresentação no conjunto de fatos, análises e hipóteses que subentendem tal concepção. Infelizmente, para mim, era impossível fazê-lo no âmbito desta reunião. O texto relacionado com as empregadas domésticas comporta, por si só, mais de 100 páginas, integrando-se em um trabalho muito mais importante, cujas partes são dificilmente separáveis e no qual, em particular, são analisados determinados aspectos coletivos da terapêutica psiquiátrica; a "socioterapia" remete à "sociogênese" de acordo com a palavra comumente utilizada e reciprocamente. Por isso, meu depoimento, tal como fui obrigado a limitá-lo, aparecerá, sem dúvida, um tanto insignificante na medida em que alguns dados estatísticos que me servem de suporte são insuficientemente convincentes, enquanto suas conclusões apenas esboçadas são precariamente garantidas. Em meu entender, faz falta a emoção das "histórias de pacientes." que deveriam ser relatadas em sua integralidade. Aos interessados por esta abordagem dos problemas relativos à nossa disciplina resta-me indicar o estudo a que acabo de fazer alusão e que deverá ser publicado em breve. Por outro lado, tentei remediar as lacunas mais graves, resumindo em nota de rodapé os aspectos que serão amplamente aprofundados na mencionada publicação. Entretanto, o estudo das "Incidências psicopatológicas da condição da 'empregada doméstica'" faz aparecer em seus elementos essenciais e, com um vigor particular, as determinações "sociais" dos distúrbios mentais, cujo conhecimento continua sendo ainda tão deficiente; no entanto, em meu entender, elas constituem um modo de abordagem indispensável à compreensão do fato psiquiátrico. Com efeito, a situação das domésticas se for considerada com maior atenção apresenta um aspecto sensível, um pouco provocador, que pode conduzir a reflexão para as vias mencionadas mais acima atualmente abandonadas; em meu entender, ela constitui uma ilustração, excepcionalmente demonstrativa, de mecanismos psicológicos ou psicopatológicos muito mais gerais. Na verdade, ela situa-se em uma das dimensões fundamentais da condição humana: dominação versus servidão, dimensão insuficientemente explorada convém reconhecer pelo psiquiatra. Eis por que decidi apresentá-la e, precisamente, aos membros de Évolution psychiatrique: sob seus aspectos mais concretos; por sua vez, o essencial dos debates doutrinais que, eventualmente, venham a ser desencadeados, fica reservado para outras publicações. Apesar de essenciais, poupar-lhes-ei a descrição dos aspectos metodológicos relativos a tais estudos. Um grande número de nossas iniciativas tiveram de ser abandonadas em decorrência de dificuldades materiais e da insuficiência dos recursos à nossa disposição. Na contramão do que se afirma, às vezes a operação de construir e verificar uma teoria baseada em dados estatísticos é mais difícil do que contar apenas com as constatações fáceis, embora incertas, da "clínica". A esse respeito, limitar-me-ei a dizer que, finalmente, conseguimos elaborar o estudo de situações que qualificamos como "dominantes" termo que definirei de forma sucinta. Trata-se de situações submetidas a um peso de tal modo considerável que se torna impossível subtrair-se inteiramente à sua pressão; aliás, sua influência transparece, quase sempre, através da trama complexa e, muitas 2 vezes, mal delineada ou indecifrável de uma existência: ser um argelino muçulmano, atualmente, em Paris, ou ser, seja lá onde for, um pupilo da Assistência Pública, uma empregada doméstica... A espécie de preponderância exercida por semelhantes situações, no decorrer de uma vida, atrai um grande número de coisas à sua volta: relações humanas, muitos sentimentos, condutas além de conflitos. Inútil dizer que o conhecimento de sua existência, de suas formas, inclusive, de sua forma particular, não. é suficiente para encontrar a plena explicação da ocorrência; defender tal opinião seria desconhecer inteiramente o espírito em que foi empreendida esta pesquisa. No entanto, tais situações é que, para quem as vivência, criam problemas que são, em grande medida, semelhantes, mais ou menos agudos, e para cuja solução podem ser utilizados diferentes meios, embora nem sempre seja possível solucioná-los ou superá-los; neste caso, os distúrbios acabam afetando, mais ou menos profundamente, os pacientes. É claro, estudamos tais situações e, de forma singular, aquela que é objeto desta palestra, por diversas vias. Apoiamo-nos em estatísticas baseadas tanto em nossa prática pessoal, quanto na prática de outros psiquiatras; em conjunto ou de forma isolada analisamos praticamente o mesmo número de dossiês de várias dezenas de empregadas domésticas que apresentavam distúrbios mentais, mais ou menos graves, com sintomatologia bastante variada e, na maior parte das vezes, mas nem sempre, internadas; comparamos esta amostra com o grupo constituído por 306 empregadas domésticas que se dirigiram a um Centro de Reciclagem Profissional; finalmente, estabelecemos contato com diferentes sindicatos, incluindo o dos empregadores, tendo esbarrado em dificuldades surpreendentes se é que se pode falar assim porque elas aparecem-nos, de alguma forma, tão necessárias quanto significativas , além de termos lido, provavelmente, quase toda a bibliografia médica (bastante limitada) ou não (considerável) sobre este tema. Em nosso entender, esta abordagem "pluridimensional", como se costuma dizer, é indispensável. O procedimento de nossa pesquisa passou, incessantemente, de uma perspectiva para a outra: por um lado, os dados estatísticos remetiam-nos para casos particulares e, por outro, os dados coletados nas entrevistas ou exames reenviavam-nos para verificações estatísticas. A ajuda dos romancistas e poetas foi tão importante quanto a contribuição dos exames clínicos, questionários e números. O ponto de partida foi a constatação de uma frequência anormal de empregadas domésticas entre as pensionistas do meu serviço. Por outro lado, o trabalho desenvolvido por H. Torrubia sobre as mulheres originárias da Bretanha, transplantadas, internadas nos hospitais psiquiátricos da região parisiense, levou-o a observar que, além de imigrantes, um grande número destas pacientes eram domésticas. No ingresso à instituição hospitalar, ele recenseou, com a ajuda de Gamar, 4.562 pacientes domiciliadas nesta região. No trabalho publicado sobre este tema em uma monografia do Institut national d'hygiene, ele escreve: Em 1.459 pacientes da população ativa, identificamos 182 empregadas domésticas, ou seja, que até mesmo, na hipótese mais desfavorável, a saber, no pressuposto de que não exista nenhuma empregada doméstica entre as 740 pacientes, cuja atividade profissional não foi possível identificar o número das internadas sob a categoria "empregadas domésticas" eleva-se a 8,6 por cento; ora, no conjunto da população da região parisiense, elas representam apenas 4,2 por cento, ou seja, urna relação que chega ao dobro desta porcentagem. Na hipótese "normal", segundo a qual haveria umaporcentagem igual de empregadas domésticas entre as 748 pacientes, cuja atividade profissional não é indicada, esta proporção seria ainda mais elevada. Várias observações podem, naturalmente, ser apresentadas a propósito destes números; aliás, fomos os primeiros a elaborá-las. Neste momento, digamos simplesmente que, em nosso entender, tais observações não são suficientemente consistentes para modificar a ordem de grandeza da correlação estabelecida por A. e H. Torrubia. O estudo da amostra das internadas confirma, em particular, a analogia geral de distribuição nas faixas etárias entre as empregadas domésticas e o conjunto da população ativa do sexo feminino. Algumas delas retornam à região de origem quando têm 3 dificuldade de submeter-se à sua condição ou quando adoecem antes de serem internadas. O fato parece, particularmente, evidente para as empregadas domésticas de origem espanhola que, em grande número, afluíram a Paris. Por outro lado. estudei, com a Sra. Lebreton, as condições de vida estado civil, nível de qualidade de vida, moradia... -de um grupo de 248 pacientes de meu serviço todas elas internadas em período bem determinado; ora, este estudo revelou-se, acima de tudo, decepcionante por razões que não posso analisar neste momento e que, precisamente, em parte, estão na origem do método das situações dominantes que, sumariamente, expus mais acima. Apesar disso, em um aspecto, tal estudo fornece uma indicação significativa considerando, em especial, o fato de que, na época, não recebíamos pacientes com idade superior a 60 anos: no momento da internação, 19 eram empregadas domésticas; no entanto, 82 ou seja, 36 por cento das que exerciam uma atividade profissional haviam adotado este emprego como sua primeira profissão, embora 16 tivessem aprendido costura. De passagem, faço questão de sublinhar o interesse deste fato. Na verdade, alguém poderia pensar que se trata de uma profissão exercida apenas por pessoas que, em decorrência de disposições peculiares, neuróticas ou outras, são, se é que se pode falar assim, "incapazes de livrar-se dela". De fato, um grande número chega, naturalmente, pelo casamento, mudança de profissão, etc. a uma vida normal; no entanto, além daquelas para quem isso não é possível, de alguma forma, do ponto de vista material, numerosas são as empregadas domésticas que permanecem marcadas, mais ou menos profundamente, pela condição vivenciada durante alguns anos. Em uma amostra cuja faixa etária era menos abrangente estudada pela Sra. Guibert e Isambert- Jamati do ponto de vista da formação e da carreira profissional de 1.022 mães, ainda jovens, da região parisiense, encontra-se apenas 22,5 por cento que estiveram empregadas como pessoal de serviço incluindo todas as categorias. Entretanto, é pouco provável que seja elevado o número dessas mulheres que, ulteriormente, mantenham a profissão de empregada doméstica. Mas, fora de nossas próprias estatísticas, todos os estudos estrangeiros observam esta frequência específica dos distúrbios mentais entre as domésticas. Depois de mencionar rapidamente os autores mais antigos já em 1839, em seu serviço no hospital La Salpêtrière, Esquirol encontrou 16 cozinheiras e 51 domésticas em 245 pacientes -, cujos números deixaram de ser utilizáveis, apesar de refletirem uma situação concreta, citarei apenas o trabalho bastante sério de O. Odegaard, publicado recentemente em Évolution psychiatrique. Mais adiante encontra-se a reprodução da Tabela número 17, a mais significativa para o tema desta palestra, que diz respeito às "taxas de ingresso por faixa etária em relação às mulheres celibatárias não assalariadas e às domésticas". MULHERES CELIBATÁRIAS NÃO ASSALARIADAS FAIXA ETÁRIA 15-17; TRABALHADORA AGRÍCOLA 319; OUTRAS OCUPAÇÕES RURAIS 464; URBANAS 304; RURAIS 416; URBANAS 604. FAIXA ETÁRIA 18-19; TRABALHADORA AGRÍCOLA 590; OUTRAS OCUPAÇÕES RURAIS 492; URBANAS 625; RURAIS 788; URBANAS 788. FAIXA ETÁRIA 20-24; TRABALHADORA AGRÍCOLA 877; OUTRAS OCUPAÇÕES RURAIS 540; URBANAS 785; RURAIS 1.264; URBANAS 1.060. FAIXA ETÁRIA 25-29; TRABALHADORA AGRÍCOLA 1.057; OUTRAS OCUPAÇÕES RURAIS 834; URBANAS 963; RURAIS 1.972; URBANAS 1.752. 4 FAIXA ETÁRIA 30-39; TRABALHADORA AGRÍCOLA 1.085; OUTRAS OCUPAÇÕES RURAIS 726; URBANAS 1.370; RURAIS 2.746; URBANAS 2.840. FAIXA ETÁRIA 40-49; TRABALHADORA AGRÍCOLA 1.140; OUTRAS OCUPAÇÕES RURAIS 481; URBANAS 1.260; RURAIS 2.488; URBANAS 3.396. FAIXA ETÁRIA 50-59; TRABALHADORA AGRÍCOLA 874; OUTRAS OCUPAÇÕES RURAIS 251; URBANAS 933; RURAIS 1.960; URBANAS 2.524. A propósito desta Tabela, Odegaard escreve: Trata-se de uma tendência semelhante à que havia sido colocada em evidência relativamente aos homens, com as domésticas e as trabalhadoras agrícolas no topo da lista. Em todas as faixas etárias, as domésticas apresentam uma morbidez muito mais elevada, a despeito do fato de que um grande número de mulheres, ainda jovens, permaneçam em casa em razão' de uma deficiência física ou mental. Este problema, acrescenta ele, foi individualizado a fim de permitir um estudo mais intensivo; assim, com este objetivo, foi empreendida uma pesquisa sobre um grupo representativo de 207 mulheres que permanecem em casa e domésticas - todas elas entrevistadas pessoalmente pelo autor. Segundo parece, os erros de classificação não são suficientes para explicar os resultados. Nesta tabela, observar-se-á a diferença das taxas, relativamente às domésticas com idade superior a 30 anos, em função do local de residência ser rural ou urbano; entretanto, nesta palestra, não podemos analisar a significação de tal diferença. Um grande número de outros dados mereceriam ser expostos, relativos não mais aos distúrbios mentais propriamente ditos, mas às diversas "inadaptações sociais". Assim, R. de Ryckere elaborou um detalhado trabalho sobre a "criminalidade das empregadas domésticas", considerada por ele 'como a mais importante, apesar de subestimada pelas estatísticas; na realidade, os delitos menores são punidos, na maior parte das vezes, com a demissão". Atualmente, o fato não nos pareceu demonstrado, tanto mais que as empregadas domésticas têm a possibilidade de escapar muito mais facilmente do que outrora de situações demasiado penosas. Determinado distúrbio "moral" reflete-se, talvez, melhor o que deveria ser analisado com maior atenção - no comportamento dos filhos dessas empregadas. Ao estudar a origem social de 5.232 internados em sessenta Centros de Reeducação para crianças com "distúrbios do comportamento", o Sr. Château deu-se conta de que o coeficiente do grupo "pessoal de serviço" correspondia a 3,59. Ou seja, escreve ele, o número de crianças é, nos Centros, 3,59 vezes superior em relação ao efetivo teórico baseado na proporção de crianças desta categoria no conjunto da estatística geral. Os estudos que abordam a prostituição, de forma aprofundada, são raros; apesar disso, é possível encontrar por toda parte numerosas indicações concordantes. Segundo o recente trabalho de P. Durban sobre os "fatores sociais da prostituição", a profissão de doméstica desempenharia um papel considerável: 28por cento das prostitutas haviam sido empregadas domésticas; 11,5 por cento domésticas agrícolas; 9,5por cento garçonetes ou seja, no total, 49 por cento. Este autor indica que determinadas profissões e, em particular, a de doméstica constituem "verdadeiras antecâmaras da prostituição". Numerosos estudos assinalam o "desregramento" das jovens domésticas fato que nos parece pouco contestável. Mais adiante, voltaremos a encontrar o papel das aventuras e desventuras destas mulheres na génese imediata de um grande número de manifestações psicopatológicas. Em relação ao suicídio", os elementos estatísticos à nossa disposição não são suficientes para garantir que tal ato seja mais frequente entre as domésticas do que em outras categorias profissionais.5 No entanto, de acordo com um recente trabalho de Lamarche sobre a taxa bastante elevada de suicídios em meio rural, tal índice é sensivelmente superior [10,4 por cento] entre os trabalhadores agrícolas em relação aos pequenos proprietários agrícolas da mesma faixa etária [7,7 por cento]; e mais de uma em dez domésticas agrícolas morre, atualmente, em decorrência do suicídio. Estes dados, por mais concordantes que sejam, exigem, cremos nós, estudos complementares mais abrangentes e, sobretudo, mais metódicos, relativamente ao estado de espírito, ao comportamento e à mentalidade, à saúde, etc.", das empregadas domésticas e, em particular, a evolução de todos esses fatores no decorrer do tempo. Já iniciamos ou, melhor dizendo, esboçamos, tais estudos e, naturalmente, ainda não estamos em condições de apresentá-los neste momento; aliás, a perspectiva da evolução de cada caso é uma das mais atraentes de nossa pesquisa. Um argumento, mais ou menos explicitamente formulado a respeito das domésticas, internadas ou não, é o de uma inferioridade congénita insuficiência intelectual, "desequilíbrio", até mesmo, "neurose de fracasso" que explicaria sua condição e, secundariamente, seus distúrbios. Às vezes, esta espécie de racismo social assume formas de uma surpreendente ingenuidade ou agressividade, cuja génese será levada em consideração, mais adiante, ao abordarmos a própria relação entre o senhor e o escravo. Quão grande é o número de laudos, por exemplo, que estabelecem uma debilidade mental mais postulada do que demonstrada! Ora, sem negar, evidentemente, a existência de um certo número de "ingénuas" entre as empregadas domésticas e que algumas deixaram-se atrair pela liberdade e supostos prazeres das grandes cidades, esta afirmação global de uma certa espécie de tara fundamental colada às domésticas afinal de contas, semelhante àquela que é atribuída a múltiplas raças, populações ou categorias sociais não resiste a uma análise objetiva. Nosso estudo debruçou-se sobre cinco grupos: a) Os pacientes examinados por nós ou cujo dossiê foi estudado por nós na maior parte das vezes incompleto em relação a pontos essenciais, o que é testemunho do pouco interesse manifestado, quase sempre, pelas condições concretas de existência na anamnese das histórias psicopatológicas. b) As 306 mulheres, ainda jovens, às quais já fizemos alusão, acompanhadas em um Centro de Reciclagem Profissional - no momento do exame, 56,9 por cento ou anteriormente, haviam sido empregadas domésticas. c) As 1.022 mães, ainda jovens, do grupo ao qual já foi feita alusão. d) Os 762 sujeitos deste grupo que não são, nem chegaram a ser, empregadas domésticas. e) As 250 mães, ainda jovens, que neste grupo eram ou haviam sido empregadas domésticas. Nesta palestra é impossível apresentar uma análise crítica suficientemente aprofundada dos dados que caracterizam esses diferentes grupos. A idade média e a porcentagem de origem provincial são praticamente as mesmas. O número de indivíduos que obtiveram o C.E.P. [Certificado de Estudos Profissionalizantes] é mais elevado para o conjunto do grupo das mães, ainda jovens {53 por cento}, do que para o número das empregadas domésticas deste grupo {33,6 por cento]. No entanto, ele é sensivelmente o mesmo {54,6 por cento} para as 306 empregadas domésticas atuais ou que já haviam desempenhado essa profissão acompanhadas no Centro de Reciclagem Profissional; sem dúvida, neste grupo encontram-se aquelas que têm mais desejo de sair dessa situação ou dotadas de mais recursos. Naturalmente, estes números deveriam ser comparados a amostras de mulheres da mesma faixa etária, oriundas dos mesmos meios com modos de vida equivalentes; trata-se de um longo trabalho que ainda não conseguimos levar inteiramente a seu termo, mas já estamos envidando esforços para realizá-lo ulteriormente. No cômputo geral, as diferenças entre estes diversos grupos não são significativas, exceto uma certa inferioridade escolar do grupo das empregadas domésticas e, sobretudo, daquelas que estão internadas. Esta identidade global comporta uma certa significação: em primeiro lugar, confirma- 6 nos que as mulheres, ainda jovens, que "escolheram" a profissão de empregada doméstica, não são deficientes no plano intelectual ou escolar em relação às mulheres oriundas dos mesmos meios. Aliás, seria um exagero escrever, a partir destes números, que eles deixam entrever uma situação, de preferência, oposta. Todavia, considerando sua origem rural ou, no mínimo, provincial, a falta ou a insuficiência de sua formação profissional, as dificuldades enfrentadas, durante a juventude, por um grande número dessas mulheres, poderíamos "esperar" sem fazer intervir uma deficiência congênita encontrar uma defasagem mais sensível entre as empregadas domésticas e a média da população. Isto resulta provavelmente - e de forma comprovada em alguns casos do fato seguinte: quando as condições sócio econômicas levam uma família a "empregar" uma ou várias das filhas, não são por razões fáceis de compreender as menos espertas que têm a permissão de viajarem, sozinhas, para Paris. Por outro lado, procuramos em particular na amostra constituída pelas 306 empregadas domésticas, atuais ou que já haviam desempenhado essa profissão, acompanhadas em um Centro de Reciclagem Profissional a condição socioeconômica inicial que as teria levado ou obrigado a assumir esta profissão. Limitar-me-ei a afirmar, nesta palestra, que encontramos uma maior quantidade de famílias numerosas [61,2 por cento com mais de 3 filhos] e um pouco mais de dificuldades na juventude sobretudo orfanato que explicam, pelo menos em parte, a transplantação e a obrigação de "escolher" a profissão de doméstica. Uma vez mais, estes dados estatísticos deverão ser ampliados e mais bem definidos. Todavia, não se vê qual possa ser seu princípio de erro. Por outro lado, seguindo a linha metodológica geral exposta mais acima, passamos incessantemente dos números aos fatos individuais e vice-versa; em particular, procuramos, através de múltiplas entrevistas, as razões pelas quais os indivíduos examinados, internados ou não, tornaram-se empregadas domésticas. Em geral, é bastante simples e, em todo caso, também tão pouco patológico quanto possível. Numerosos autores estudaram as causas da emigração. Conheço perfeitamente bem a das mulheres e dos homens, originários da Bretanha, e subscreveria de bom grado o que foi escrito a esse respeito pelo padre Élie Gautier. Em seu último livro Un siecle d’indigence [Um século de indigência], o sumário, por si só, constitui um bom "panorama" dessas causas; assim, limitar-me-ei a reproduzi-lo. Interferência das causas económicas, sociais e psicológicas. Penosas condições de existência. Falta de trabalho. Forte densidade demográfica. Os progressos mecânicos reduziram a necessidade de mão-de-obra. Falta de mulheres. Exiguidade das propriedades agrícolas e rendimento insuficiente. Ausência de indústrias. Supressão de atividades subsidiárias. Nova mentalidade, etc. Estas conclusões, confirmadas amplamente por acontecimentos recentes, são válidas para todas as mulheres oriundas da província, transplantadas, empregadas domésticas ou não. Para as primeiras, a necessidade é somente pelo menos em alguns casos um pouco mais urgente. Nesta palestra não são apresentados, de modo algum, os problemas suscitados por outros tipos de emigração e pela seleção positiva ou negativa inerente a essa transplantação. No início, as jovens domésticas não são sensivelmente diferentes das futuras vendedoras, operárias de fábrica, funcionárias da administração sobretudo e, por exemplo, de nossas próprias enfermeiras. Elas pertencem de forma um pouco mais particular, talvez, a meios rurais e tradicionalistas. Afinal de contas, sua condição de empregada doméstica é que, pelo menos no essencial e, evidentemente, em relação aesta situação original, irá criar os problemas; a partir de agora, vou tentar analisá-los. Não tenho a intenção de esboçar-lhes a situação jurídica, material e moral das domésticas que, suponho, já é sobejamente conhecida por todos. 7 Em relação ao aspecto jurídico, devo sublinhar, todavia, o que ele teve sempre como profundamente peculiar para não dizer imutável e, pelo menos, "resistente", através das profundas transformações sociais. Como exemplo, citarei apenas a lei sobre a Previdência Social que lhes é aplicada de uma forma, creio eu, única. Por um acordo tácito das duas partes, seu salário - ordenado e remuneração em géneros é avaliado a partir de um montante ajustado de 10.000 francos por mês, o que corresponde a menos de um sexto do salário real; como as pensões diárias e de invalidez são calculadas com base neste salário fictício, podemos fazer uma ideia das dificuldades encontradas por esta categoria de trabalhadores ao adoecerem por um período mais prolongado. Não insistirei sobre a água para lavar a louça ou a roupa, funções características da existência das empregadas domésticas. Não lhes falarei da duração, nem da natureza deste trabalho, nem de suas condições materiais - por exemplo, a moradia. Indicarei apenas que, às vezes, encontra-se em tal situação uma espécie de exagero e de inutilidade que, além de visar a realização de uma poupança, denuncia, de uma forma mais ou menos obscura, a discriminação. Eis por que não só a realidade de "chambres de bonnes", mas também esta expressão em si mesma, assumiram à semelhança de um grande número de outros termos que descrevem a condição de vida destas pessoas um caráter pejorativo, praticamente insultuoso. Uma vez mais, não pretendo fundamentar a psicopatologia de minhas empregadas domésticas unicamente em dados económicos, mesmo que estes se encontrem fundamentalmente na origem de tudo; mas, na situação concreta das domésticas, tais dados estão associados, de uma forma estreita e indissolúvel, a seus aspectos psicológicos, refletindo-se neles. Agora, passarei a analisar tais aspectos. O primeiro a ser experimentado embora nem sempre claramente manifestado pelas empregadas domésticas é, certamente, o ressentimento. Prefiro utilizar este termo, a um só tempo, profundo e ambíguo, que tomo de empréstimo não a Nietzsche, nem a Max Scheler, mas a Littré, que afirma o seguinte: "Seu sentido deslocou-se lentamente, no decorrer da história, de tudo o que era ação de sentir profundamente para designar apenas a lembrança dos ultrajes e não a dos favores". Nesta contabilidade entre o dado e o recebido, do ponto de vista humano e material, o balanço das frustrações estabelecido por cada qual em relação ao mundo e aos outros é, particularmente, penoso para as domésticas e, quase sempre, acarreta o ressentimento. Como veremos, as coisas não são simples. Tal atitude permanece, frequentemente, proibida, inconfessada, durante muito tempo, combatida, à semelhança de outros "maus pensamentos", por regras morais que visam todos os aspectos da vida social; encontra-se também misturada com outros sentimentos que, pelo contrário, levam a jovem criada até os patrões, os filhos destes e o lar onde ela vive; por último, dirige-se igualmente e, às vezes, de forma mais intensa não tanto às pessoas, mas à situação ou, exatamente, à "condição" de doméstica. Este termo utilizado, frequentemente, na minha palestra assume uma significação particular que merece uma abordagem mais detalhada: de fato, ele faz aparecer os primeiros traços das situações patogênicas que tento definir a partir do exemplo das empregadas domésticas. A "condição" de um indivíduo, diz-nos ainda Littré, serve para designar "a classe a que pertence uma pessoa na sociedade, por sua fortuna, aptidões, empregos e profissão". Assim, ao tratar-se da condição de doméstica aliás, termo ainda hoje utilizado frequentemente: falando de uma jovem camponesa, diz-se que ela assumiu sua "condição" o sentido próprio deste termo aplica-se inteiramente à sua situação. Aqui, apreende-se, perfeitamente, o caráter "forte", global, a espécie de "gestalt social" realizada por determinadas situações, cujos elementos constituem, por detrás de diferentes facetas, um todo indissociável e conservam um núcleo permanente. Eis o que afirma a empregada doméstica do Square [jardim público] de Marguerite Duras em sua estranha conversação com o vendedor ambulante: 8 O que faço não é uma profissão. Este nome serve apenas para simplificar; em vez de uma profissão, trata-se de uma espécie de estado, de um estado considerado em seu todo, você compreende, como por exemplo ser uma criança ou ser um paciente. Portanto, antes de tudo, esta condição é que se torna o objeto do ressentimento das domésticas que, naturalmente, pode fixar-se neste ou naquele aspecto da situação, encarnar-se em algumas de suas personagens. Difuso, obscuro a si mesmo ou, então, concreto e pessoal, ele atinge, às vezes, uma intensidade insustentável; raros são os sentimentos que tenham sido manifestados com tamanha violência tal como o ódio, de alguma forma, fundamental, experimentado pelo criado em relação ao senhor. Sem dúvida, esta expressão é, na maior parte das vezes, de tal modo contida e inábil nos nossos pacientes que deploro o fato de citá-la sem grande ênfase; no entanto, além de um certo destaque, ela encontrou na literatura determinadas formas e, se posso afirmá-lo, procedimentos originais de uma extraordinária virulência. Praticamente todas as citações do Littré que ilustram as significações do termo valet [criado] exprimem este sentimento que parece, então, ser considerado como natural. Conjuro-te, escrevia Scarron, espírito mudo, que me confesses se és valet e, em caso afirmativo, por qual virtude admirável não disseste, até o momento, uma palavra contra teu patrão. Sem dúvida, pode-se pensar que, nos escritores naturalistas Zola, Mirbeau... a veemência injuriosa e a grosseria das afirmações atribuídas aos criados têm um caráter um tanto exagerado ou sistemático. Entretanto, algumas manifestações violentas do protagonista de Pot-Bouille assemelham-se bastante ao que é dito por empregadas domésticas no momento em que são demitidas. Do mesmo modo, as atitudes e os sentimentos descritos em um grande número de trechos ao Journal d’une femme de chambre" [Diário de uma camareira] são, sem dúvida, compartilhados por muitas outras. Em Mademoiselle Julie [Senhorita Julie] de Strindberg, Jean o valet que irá tornar-se amante da protagonista dá-lhe uma resposta semelhante quando ela diz-lhe: "Conheço as pessoas que estão ao meu redor; minha afeição por elas é retribuída. Basta que o senhor deixe quedasse aproximem para se dar conta disso". "Não, senhorita Julie, elas não gostam de você; aceitam seu pão, mas acabam por menosprezá-la. Pode acreditar em mim!... Preste atenção ao que cias dizem... Não, não vale a pena..." A personagem de Francine, no romance La joie [A alegria], de Bernanos, apresenta os sintomas de uma presbiofrênica. Ela encontra, precisamente, em um comportamento, de alguma forma profissional, os meios de uma tortura moral, particularmente sofisticada. Com a maior calma, sem elevar nem abaixar a voz, ela diz simplesmente: "Varre a escada, Francois; tenho de sair com a velhaca." O valet fixa os olhos nos chinelos e diz: "Tudo bem. Trata de jogá-la no charco das rãs. Serás parabenizada por Aléxis". A idosa, escreve Bernanos, "entende perfeitamente o sentido de cada uma destas palavras injuriosas". Apesar disso, ela não pode integrá-las em uma visão do mundo que nunca as havia levado em consideração. "A mentira das atitudes deferentes, diz Bernanos, acabava por impô-las contra sua vontade. A improbabilidade de tal suplício dava-lhe a ilusão de um pesadelo". Seria longo demais citar Lês bonnes, de Jean Genet" obra conhecida, certamente, por todos -, em queduas irmãs projetam seu ódio em um atroz jogo de espelho no qual elas são a patroa e, alternadamente e ao mesmo tempo, Claire ou Solange, dilacerando-se e extraviando-se através das respectivas personagens. No entanto, é provavelmente Jonathan Swifr1, secretário humilhado, quem leva ao ponto mais extremo, em seu livro Instruções aos domésticos, a expressão do ressentimento. Bem apreciada por ele, esta obra é, em sua integralidade, um inventário dos meios pelos quais o doméstico pode - além de "defender-se", resistir à opressão, evitar diversos trabalhos e servidões, solidarizar-se com os 9 outros criados contra o patrão, adquirir alguns benefícios e reservar para si um pouco de tempo sobretudo livrar-se, de uma forma um tanto gratuita, de sua agressividade, satisfazendo-a quase simbolicamente; trata-se de ritos de uma desforra imaginária. Seria necessário citar, na íntegra, este texto de um humor literalmente atroz: Ao engarrafar o vinho, encha a boca com rolhas, além defumo-bravo que dará ao vinho o verdadeiro gosto da planta, tão delicioso a beber para todos os entendidos. Você deve considerar a cozinha como seu toucador; no entanto, não deve lavar as mãos antes de ter ido ao banheiro, enfiado a carne no espeto, preparado o frango para assar e descascado os legumes para a salada. E, por último, esta instrução para a babá: Se, por acaso, deixou cair o neném e acabou por machucá-lo, tenha cuidado para evitar a confissão do sucedido e, se ele morrer, tudo ficará resolvido. Esta citação aproxima-nos dos atos criminosos que, embora não sejam executados ou detectados com frequência, pelo menos são imaginados e, se é que se pode falar assim, sonhados pelas domésticas. A criada de Marguerite Duras conversa com o rapaz que havia encontrado no jardim público; ela cuida de uma idosa, bastante pesada. Pois é, diz ela, na última vez que se pesou a velha estava ainda mais gorda e, como vê, não a assassinei, nem mesmo há dois anos ao voltar do sindicato; além disso, não penso em assassiná-la quando, afinal, isso se torna cada vez mais fácil, é claro, já que ela está cada vez mais velha e fica sozinha no banheiro enquanto eu a lavo. Peco-lhes desculpas por estas penosas citações que fazem aparecer duas ordens de fatos: a primeira refere-se à força oculta dos sentimentos hostis que, literalmente, assediam a maior parte das domésticas. Tal constatação torna provável, de alguma forma, que eles possam, por um lado, atingir profundamente aquelas que os experimentam ["ressentent"] em cada um dos momentos e das circunstâncias de uma existência inteiramente confinada em sua "condição" de empregada doméstica e, por outro, suscitar contradições ou sentimentos de culpa, carregados de uma intensidade particular, suscetíveis de transtornar as mais vulneráveis ou as mais humilhadas. A segunda é a frequência de uma atitude que sou tentado a descrever de acordo com o vocabulário analítico e a propósito da qual seria necessário falar de "resistência" ou de "censura": de fato, ela deixa na sombra semelhantes situações, evita enfrentá-las, recusa-se em admitir que possam ser geradoras de conflitos patogênicos e, em uma espécie de inconsciente social, "recalca" os problemas suscitados pela dominação e pela servidão. Não vou aprofundar neste momento a "criminalidade das empregadas domésticas", já assinalada, e limitar-me-ei a lembrar o exemplo das Irmãs Papin que, além de ilustrar o aspecto assumido por essa criminalidade e seus mecanismos, chama a atenção para o fenômeno de desconhecimento coletivo que acabo de mencionar. Ao relatar, nesta ocasião, os testemunhos de uma tamanha cegueira, de uma "inconsciência" forçada ate a caricatura, diante de reações tão "compreensíveis", penso avançar um pouco mais longe no conhecimento dos mecanismos que levam um tão grande número de domésticas, não ao crime, mas a tornarem-se doentes. A própria desmesura de suas reações é, de fato, verdadeira. Evidentemente, a hipocrisia social ocupa, neste aspecto, um espaço considerável, mas seria falso, creio eu, considerá- la como uma atitude deliberada, uma dissimulação voluntária. A negação do ódio que levou Christine e Léa a tais violências selvagens é também o delas. Essa plena consciência não será tomada nem por elas, nem pelo tribunal, nem pelo júri, nem pela burguesia e, ainda menos, pela opinião pública da cidade de Lê Mans; aliás, essa situação é refletida com exatidão pela imprensa. É inevitável que as Irmãs Papin reconheçam seus atos; no entanto, recusam-se a reconhecer os sentimentos que os provocaram. 10 Estes são "inconfessáveis" tanto a elas próprias, como aos juízes. O semimutismo das acusadas corrobora, de alguma forma, seus veementes acusadores; a causa das irmãs é, tanto para elas, como para os juízes, indefensável. Elas calam-se. À semelhança de uma moça pura que pode enfim, em outras épocas, podia confessar um momento de fraqueza, uma tentação e uma convergência de circunstâncias, mas não que ela andava obcecada, incessantemente, por loucas preocupações sexuais. Esta contradição pode manter-se em uma obscuridade praticamente total. É nesta "noite" mencionada pelas criadas de Jean Genet que se tecem os conflitos mais profundos e na qual, pelo estudo, vislumbraremos a génese dos distúrbios mentais. No que diz respeito ao ressentimento, independentemente de sua frequência, ele contém naturalmente uma energia extremamente variável e, sobretudo, misturada com elementos contraditórios. De qualquer modo, apesar do grande número de queixas apresentadas pelas domésticas em relação a suas condições de vida e de trabalho, assim como aos patrões, são raros os efeitos concretos de tal manifestação. As empregadas domésticas "ficam folgadas", como se diz, "roubam nas contas da feira", implicam com o patrão, cospem na comida e, sobretudo, "pedem uma semana de licença" quando estão enfaradas. A possibilidade de dar um fim ao conflito quando este se personaliza e sai fora de controle, limita consideravelmente na prática a intensidade dos rancores, o número de reações violentas e de manifestações psicopatológicas. A "arrumadeira" das comédias clássicas ou modernas constitui um tipo um tanto artificial, com certeza, sem deixar de ser frequente de criadas que, de uma forma maliciosa, tiram todo o partido possível de uma situação que não chega a ser encarada por elas de forma trágica. Todavia, ao conversar com um grande número de pacientes, domésticas ou ex-domésticas, encontrei nelas quase constantemente uma profunda amargura. Amélie, oriunda da Bretanha, bastante idosa, internada no meu serviço, que contratei para trabalhar na minha casa e mimada por todo o mundo, não deixou de declarar à minha colaboradora, por ocasião de uma entrevista: Oh! basta ser patrão para que alguém se torne farinha do mesmo Esta formulação bastante simples exprime, sem dúvida, o essencial: o objeto em discussão é muito mais a condição de empregada doméstica no que lhe serve de fundamento do ponto de vista social e no que, no decorrer do tempo, tem de irredutível do que os indivíduos que a vivenciam. Antes de avançar mais longe na análise dos sentimentos quase sempre ambivalentes que deixam assombradas as empregadas domésticas, um aspecto de seu "estado" para falar como Marguerite Duras mereceria chamar, por um instante, nossa atenção: refiro-me à atitude em muitos pontos, equivalente e, de alguma forma, simétrica que eles despertam nos empregadores. Eis uma das facetas de uma situação muito mais geral: a de todos os oprimidos e de todos os opressores. A este propósito, eu tinha a intenção de retomar a análise rigorosa elaborada por Albert Memmi sobre a relação do colonizado com o colonizador, semelhante à relação do criado com o patrão. Por falta de tempo, limitar-me-ei a uma citação que, precisamente, diz respeito aos domésticos e que nos conduz um pouco mais longe na dinâmica afetivasuscitada por sua condição. Eis o que eles são: farinha do mesmo saco diz o colonizador. Se a doméstica colonizada falta em determinada manhã, em vez de falar que e/a está doente, trapaceia ou pretende descumprir um contrato abusivo, este afirmará que é impossível contar com eles. Não se trata de uma cláusula de estilo. Ele recusa-se a levar em consideração os acontecimentos de ordem pessoal, os acontecimentos particulares da vida de sua doméstica; não manifesta nenhum interesse por esta vida em sua especificidade; sua doméstica não existe enquanto indivíduo. Mais adiante, voltaremos a encontrar este aspecto talvez essencial da condição das empregadas domésticas: a alienação e, afinal de contas, o aniquilamento da identidade dessas pessoas. Limitar- me-ei a sublinhar a necessidade que se encontra no âmago da unidade dialética do binómio patrão- 11 criado. Necessidade e totalidade que podem ser detectadas na maior parte das situações patogênicas; ora, através do exemplo das empregadas domésticas, meus esforços orientam-se no sentido de delinear os contornos e a evolução interna de tais situações. O ressentimento alimenta-se, sem dúvida, a partir de provações morais e físicas, de múltiplas frustrações; no entanto, através das entrevistas concedidas por nossos pacientes, assim como através de todos os textos em que é descrita a existência dos criados, aparecem poucos elementos ao lado de um sentimento absolutamente dominante, ou seja, a humilhação. Neste momento, eu gostaria de abordar este aspecto. A dependência e a submissão, a linguagem que deverá ser utilizada pela empregada doméstica e seu modo de vestir às vezes, pensando bem, elementos tão inúteis quanto significativos e, como já afirmei, verdadeiros símbolos de seu estado, o afastamento e o desdém em que, mais ou menos abertamente, ela é confinada, tudo isso marca uma condição caracterizada, acima de tudo, por uma desvalorização bastante profunda da pessoa que deve assumi-la. O ressentimento forma uma só coisa com a humilhação, constitui a outra face do ressentimento de tal modo que eu poderia apresentá-la em seu lugar como o dado primeiro da existência concreta das empregadas domésticas. No entanto, o ressentimento contém fontes que estão acima da humilhação e, sobretudo, como veremos, constitui um dos fatores encontrados, com maior frequência, na origem dos conflitos que, segundo acreditamos, mantêm relação com os distúrbios mentais apresentados frequentemente pelas domésticas. Convém observar que a humilhação oriunda de um passado que estamos impossibilitados de expor neste momento e de situações concretas que sofreram profundas transformações no plano material e jurídico conservou, no entanto, toda a sua intensidade e vigor. Poderíamos ficar surpreendidos ao constatar sua persistência com uma energia imutável e, até mesmo, acentuada, se ela não estivesse associada, como veremos, a uma espécie de núcleo profundo, a um aspecto permanente e universal da condição humana. De qualquer modo, seria necessário dispor de um grande número de páginas para reproduzir suas expressões mais dolorosas e significativas; pareceu-me inútil proceder a tal reprodução. De fato, é bem evidente que uma profissão designada por termos doméstica, valet, criada, sem falar das inumeráveis expressões de gíria, a começar por "lacaio" [larbin], garçom de café [loufiat], etc., até "empregadinha" [bonniche] e criada nojenta [souillon] que constituem outros tantos insultos está inteiramente impregnada de humilhação. No linguajar cotidiano, elas ouvem: "Não sou sua criada; você julga que sou sua empregada" e, às vezes, elas próprias utilizam tais frases. Basta levar em consideração essas expressões. Assiste-se, também, frequentemente, a um fenómeno de acúmulo, à intensificação progressiva de um sentimento que invade e açambarca, aos poucos, o indivíduo em sua integralidade e, em determinado dia, por ocasião de circunstâncias aparentemente fortuitas e insignificantes, leva à violência ou à angústia desta iminente violência, aliás, um sentimento que foi bem apresentado por Max Scheler, embora este se limite a descrever os percursos lentos e profundos, pouco conscientes, percebidos muitas vezes por nós mesmos, que são igualmente geradores de uma culpabilidade obscura e carregada de ansiedade. A este propósito, ele fala da exasperação obscura, ameaçadora, contida, independente da atividade do ego, que engendra, aos poucos, uma longa ruminação de ódio ou de animosidade sem hostilidade bem determinada, embora repleta de uma infinidade de intenções hostis. "E, no entanto, não sou malvada!" exclamava Célestine, personagem de Mirbeau. Esse é também o julgamento que a moça de Marguerite Duras profere a seu respeito durante a conversa marcada por uma moderação e sinceridade pungentes com o vendedor ambulante: Ao lavá-la, digo-lhe "velha safada". Entretanto, acho que não sou malvada... Ao dizer-lhe "safada", ela sorri. 12 De fato, como vimos, a maior parte das domésticas são originárias do interior e, quase sempre, do meio rural; são transplantadas. Oriundas de meios em que os valores morais, religiosos e sociais permaneceram bastante arraigados e unânimes. Sem dúvida, inclusive nesses meios, as infrações existem, mas, precisamente, são reconhecidas como tais, não chegando a comprometer, de uma forma profunda e aberta, o sistema de regras, proibições e práticas como é o da coletividade da qual elas fazem parte. A condição de empregada doméstica, na qual encontra-se submersa, de maneira brusca e total, a jovem originária da Bretanha ao chegar a Paris, vai, de alguma forma, pôr à prova as estruturas mais fundamentais de sua personalidade, edificadas no decorrer de sua infância. Este questionamento dos sentimentos morais e crenças, maneiras de sentir, pensar e agir, de certo modo, congénitos, vai operar-se de múltiplas formas. Neste aspecto, voltamos a encontrar o conjunto considerável de problemas suscitados pela mobilidade geográfica ou social, pela aculturação, etc. que não serão aprofundados neste momento. As empregadas domésticas originárias da província penetram, à semelhança de qualquer "migrante", em um mundo mais ou menos ignorado de qualquer modo, não vivenciado de julgamentos, atitudes e condutas, mundo quase sempre contraditório ao que havia sido experimentado por elas. Dependendo dos contatos mantidos, rompidos ou reencontrados com os compatriotas, segundo o grau de isolamento ou de participação nas diversas comunidades, difusas e reais ou organizadas que congregam tantos transplantados, segundo suas condições concretas de existência e as influências que elas suportam, ao acaso dos encontros e das circunstâncias, vai operar-se uma transformação mais ou menos profunda. A distância entre as estruturas do meio original e aquelas em que as domésticas vão trabalhar e viver desempenha, naturalmente, tanto para elas, como para todos os emigrantes um papel primordial. Assim, atualmente as domésticas oriundas da Espanha reconstituem com uma frequência e uma gravidade peculiares uma patologia mental que tendia a desaparecer, ou seja, a dos estados nostálgicos, em particular. Portanto, a jovem criada participa de uma situação comum a todas as "pessoas deslocadas": de um modo geral, trata-se de uma mesma psicologia e psicopatologia. Entretanto, esta situação é descoberta e sentida de uma forma específica, associada à sua condição de doméstica. As relações com o novo meio são, de fato, bastante próximas e "insistentes", permanentes e necessárias; ela encontra-se, também, mais isolada. Por último, a realidade vai-se desvelando para ela de uma forma crua e, quase sempre, cínica. Com certeza, nem todos os patrões são os "horríveis burgueses" descritos por Octave Mirbeau e J. Anouilh; provavelmente, eles não são assim tão diferentes dos pais, familiares e habitantes da aldeia natal. No entanto, Célestine,do romance Journal d'une femme de chambre, tem razão ao afirmar que, de forma mais intensa do que outros, a criada surpreende os patrões em sua natureza íntima de tal modo que, aos poucos, eles acabam por se revelar... tais como são, sem disfarce nem véu, ao ponto de esquecerem que existe alguém que ronda à sua volta e está de ouvido à escuta. Além disso, as convenções e as aparências são também impugnadas de forma mais enérgica, na vida cotidiana. A empregada doméstica vive nos bastidores e, sobretudo, observa o avesso do cenário. Ora, o patrão e a patroa eram portadores, na representação mais ou menos nítida que ela fazia a seu respeito, de determinados valores morais e sociais — de alguma forma, confundidos uns com os outros, como é sabido; de acordo com o ensinamento recebido, eles deveriam ser respeitados. Afinal, ela "cai das nuvens" ao dar-se conta de que tais valores são desmentidos, também, por aquelas pessoas que, segundo sua expectativa, deveriam encarná-los. Amélie, minha própria paciente criada, já mencionada, ao referir-se aos primeiros patrões, afirmava que eles levavam uma 13 vida desregrada. Certa vez, quinze dias depois da minha chegada, eles voltaram para casa às 5h da manhã; fiquei pasma, tanto mais que eles tinham um neném. A este propósito, ela exprime uma intensa indignação; chegou a pedir para cuidar da criança, por quem sentia uma grande afeição, "às vezes, até as duas horas da madrugada". Uma vez mais, trata-se de um fenómeno bem generalizado; no caso concreto, ocorre que a tomada de consciência foi mais rápida e mais brutal. A condição de empregada doméstica realiza, se posso falar assim, uma transplantação acelerada e, particularmente, traumatizante. Às vezes, opera-se de uma forma bastante dramática, por exemplo, quando o filho ou o patrão mostram interesse pela jovem criada; ou, ainda, quando esta se torna confidente ou cúmplice da patroa. Na maior parte das vezes, para responder à solidão e à insatisfação, as domésticas procuram festas, "convivências malsãs", ligações efémeras e, por tabela, experimentam diferentes decepções e desventuras, tão frequentemente detectadas, bem próximas da aparição dos distúrbios, na história de nossas pacientes. Mas sobretudo, talvez, as domésticas venham a dar-se conta de que o semblante aparente dos empregadores, aquele que elas conhecem, não corresponde ao verdadeiro rosto. Eles têm uma dupla face: uma muitas vezes, amigável e quase sempre compenetrada, voltada para os outros e para o mundo externo; e a outra, indiferente, exigente ou irritada, reservada para a criada. As relações estabelecidas com ela, de alguma forma, impostas pelos respectivos papéis, são profundamente diferentes daquelas que conservam a unidade do grupo familiar. Com certeza, em seu meio de origem, a jovem camponesa vivenciou conflitos semelhantes; no entanto, uma infinidade de sentimentos, desde a obrigação e a solidariedade até a ternura, acabam por atenuá-los e humanizá- los. Na nova situação, eles fazem falta à empregada doméstica que não é somente um objeto, mas, como se diz, um "mau objeto" no lar em que ela se encontra, a um só tempo, presente e estrangeira, necessária e rejeitada. "O patrão da casa em que presto serviço... tenho quase a certeza de que ele nunca chegou a olhar para mim, de que me reconhece sem nunca me ter visto", diz a empregada doméstica do Square. Neste aspecto, voltamos a encontrar a alienação que, de acordo com o que já indiquei, marca, talvez de uma forma mais profunda do que a humilhação e o ressentimento, a condição das domésticas; essa é a atitude que, agora, vou tentar descrever. A empregada doméstica encontra-se, como se diz, "na casa dos outros". Ao falar com os patrões, ela não se dirige a seus "semelhantes", mas a personagens, a um só tempo, reais e como que abstratos de qualquer modo, essencialmente diferentes e estrangeiros, ao "Senhor", à "Senhora" ou à "Senhorita"; dirige-lhes a palavra "na terceira pessoa". Por sua vez, os patrões continuam a tratá-la, na maior parte das vezes, por tu e, de qualquer modo, para chamá-la, utilizam, quase sempre, o nome. "Eu era Joséphine... a empregada doméstica", dizia-me uma paciente que, à semelhança das empregadas anteriores, era chamada por esse nome para facilitar a vida das crianças. Iniciarei minha análise sobre este ponto com uma citação extraída de La-martine28 que poderá ser considerada, sem dúvida, um tanto romântica; apesar disso, acho que ela é apropriadamente admirável. Pertencemos a todas as casas e estas podem fechar-nos as portas; pertencemos a todas as famílias e estas podem rejeitar-nos. Criamos as crianças como se fossem nossas e, ao terminarmos sua criação, elas deixam de reconhecer-nos como mães; zelamos pelos bens dos patrões, mas, apesar de nossa solicitude, tais bens acabam sendo distribuídos para outras pessoas. Ganhamos afeição pela casa, pelas árvores, pelo poço do quintal, pelo cachorro; apesar disso, basta uma simples decisão de nossos patrões e tudo isso será retirado de nossos cuidados. O patrão morre e não temos direito de pôr luto. Parentes sem parentesco, familiares sem família, filhas sem mãe, mães sem filhos, corações que se doam sem ser recebidos, essa é a sorte das criadas. 14 Bastaria, talvez, escutar e meditar estas linhas para penetrar, mais profundamente, no mundo afetivo das domésticas; aliás, estou envidando todos os meus esforços para descrevê-lo o melhor possível. De fato, seria totalmente injusto considerá-las em sua aparência ou como ficam transtornadas, em maior ou menor grau, sob a pressão de sua condição. Inicialmente, tudo concorre para incitá-las ao respeito, à obediência e ao afeto pelos patrões e, em particular, pelos filhos da casa. Os testemunhos coletados entre nossas pacientes e na literatura são tão numerosos que, no plano destinado a. agrupar nossas notas, havia um capítulo intitulado: "decepção dos sentimentos naturais". A primeira atitude da empregada doméstica é, quase sempre, uma mistura de sentimentos que poderiam ser chamados passivos e ativos, de submissão e de identificação em relação aos membros da família que acaba de contratá-la. Sua submissão é semelhante àquela que ela havia suportado, até então, diante dos pais e das outras personagens em quem se encarnavam os valores morais, sociais ou espirituais de seu meio. Suas identificações são as que surgem, naturalmente, em relação aos substitutos de tais personagens privilegiadas de seu precedente universo, assim como aquelas que se dirigem a entes "admiráveis", não só no plano mítico ou "social", mas efetivamente superiores, desde a linguagem até os adereços. O romance A cabana do Pai Tomás, cuja leitura aparece-nos, atualmente, dificilmente suportável, mas cujo papel foi historicamente considerável, emocionou um amplo público, precisamente, porque descreve os bons e fiéis escravos para quem [a jovem Éva] era como a luz do dia, como um raio de sol... Em sua mansidão, escreve H. Beecher Stowe, em sua humilde docilidade de coração, em sua aptidão para confiarem-se a um espírito superior e entregarem-se ao poder do alto, na simplicidade infantil de sua afeição, em seu esquecimento das injúrias recebidas, eles realizarão, em sua forma mais elevada, a verdadeira vida cristã. A. Memmi diz-nos, também, a respeito do colonizado que sua ambição primordial seria igualar-se ao modelo prestigioso, tornar-se semelhante a ele até desaparecer nele. Sem dúvida, estes sentimentos teriam sido mais frequentes, outrora, época em que, na maior parte das vezes, as criadas, com "um coração simples", eram absorvidas, de alguma forma, na família do patrão. O próprio Baudelaire evocava, com lirismo, a "Criada com coração magnânimo, oriunda do fundo de seu leito eterno, acolhe a criança que cresce sob seu olhar materno"; igualmente, em seu romance Eugênia Grandet, Balzac'' afirma acerca da "grande Nanon" que,ao ser acolhida por seu vigor, é verdade, e apesar de um rosto ingrato pelo velho Grandet, chorou, em segredo, de alegria e sentiu uma sincera afeição pelo tanoeiro que, aliás, a explorou como no tempo do feudalismo. No entanto, um grande número de pacientes exprimiram e, às vezes, com grande emoção e lágrimas, os intensos sentimentos experimentados pelos patrões e, sobretudo, pelos filhos da casa aos quais elas se afeiçoavam com grande frequência. Seria injusto, aliás, negar as manifestações de interesse e, sobretudo, de solicitude que, às vezes, lhes são oferecidas pelos patrões. Um grande número de empregadas domésticas tiveram, em diferentes contextos, patrões "bastante amáveis" e chegaram mesmo a conservar uma lembrança nostálgica de relações humanas que, por algum tempo, puderam estabelecer com eles. Eis o que é reconhecido até mesmo por Felicite, do romance Journal d’une femme de chambre: Basta que me falem baixinho, que não me considerem como um ser separado dos outros e marginal, como algo de intermediário entre um cachorro e um papagaio, para que eu fique logo emocionada... e, imediatamente, sinto reviver em mim uma alma de criança... como que por milagre, esqueço todos os meus rancores, todos os meus ódios, todas as minhas revoltas. Entretanto, a necessidade interna da situação acaba inevitavelmente por prevalecer. Mais cedo ou mais tarde, os escravos, os colonizados e os vencidos revoltam-se, eclodem as lutas operárias e sucedem-se as revoluções e as empregadas domésticas acabam, quase sempre, por odiar os 15 empregadores. Para os negros americanos, ser um "Pai Tomás" tornou-se um insulto, do mesmo modo que, de acordo com o que já sublinhei, todos os termos que designam a própria condição daqueles que aceitaram a servidão. Este conflito universal, correspondente ao próprio movimento da história, assume uni aspecto e urna forma peculiares entre as domésticas. De fato, a proximidade, se é que posso falar assim, o caráter sensível e próximo deste conflito, a dependência e o isolamento que impedem qualquer tentativa de oposição organizada vão contribuir não só para intensifica-lo, mas também para individualizá-lo e, de alguma forma, interiorizá-lo. A dialética universal do senhor e do escravo tece, através de um drama pessoal, mais obscuro e profundo, uma contradição geral. Não só o ressentimento responde à humilhação e à injustiça, mas a admiração e a atração fazem apelo à inveja e ao ciúme; a decepção experimentada relativamente aos sentimentos naturais dá lugar à frustração; a impossibilidade de identificação engendra o ódio e a angústia do ódio. Neste aspecto, de novo, o poeta mostrou-se, talvez, mais clarividente do que o psiquiatra. No poema de Jean Cocteau'1, além dos privilégios, foram as qualidades e as virtudes em si mesmas privilégios da Senhorita Annabelle que levaram A mia la bonne [Anna, a criada] a envenená-la. Escutemos sua fala: Sem dúvida, a senhora era boa [bonne] demais, bela demais E, até mesmo, linda demais. Traziam-lhe flores como se as depusessem em cima de um altar Quanto a mim, eu era Anna, a criada [bonne] Anna, a criada [bonne]... da mansão. A senhora foi sempre tão afável E, talvez, um pouco demasiadamente afável A senhora ficava sempre no grande apartamento A coisa aconteceu já nem sei como. O que podia esperar a senhora, eu era a criada [bonne] A senhora era tão bela e tão boa [bonne] Recebia uma porção de pessoas Gastava uma porção de dinheiro. Sou Anna, vigilante para atender a campainha... Através de múltiplas entrevistas e leituras que evocavam estes problemas pareceu-nos, aos poucos, que os sentimentos, a um só tempo, violentos e confusos, contraditórios, que acabo de descrever, ordenavam-se em torno de um sofrimento afetivo mais profundo e, de alguma forma, fundamental, cuja expressão mais adequada pode ser feita unicamente pela palavra "alienação" da qual só dificilmente as empregadas domésticas poderão escapar. Esta é, antes de tudo, a solidão explicitada centenas de vezes pelas vozes alternadas dos escritores e dos pacientes, solidão que é, aliás, um denominador comum das principais situações "sociais" patogênicas. "A empregada doméstica tem sempre muito trabalho e está sozinha", essa é a queixa de uma jovem pensionista do meu serviço. E, do mesmo modo, a personagem Marie-Claire de Marguerite Audoux: em determinados dias, eu sentia-me tão abandonada a ponto de julgar que a terra havia desabado à minha volta. [...] Eu colava o ouvido nas portas só de me sentir tão entediada sozinha, na cozinha. A criada do Square afirma: 16 Sozinha, sempre sozinha. Esta noite eles recebem alguns amigos, como acontece habitualmente às quintas. Comerei pernil de carneiro na cozinha que fica no fundo do corredor. Entretanto, este isolamento de alguma forma, material, por mais sensível que seja, não constitui a totalidade da alienação. Apesar de ser apropriado, este termo, em sua significação corrente, não abrange inteiramente e, se é que posso falar assim, não penetra no interior da situação vivenciada pelos emigrantes e pelos transplantados, pelos colonizados, em suma, por todos os indivíduos que, pela raça, cultura, maneiras de pensar e de agir, são estrangeiros no meio em que vivem; de forma mais ampla, por todos os que são rejeitados ou, simplesmente, separados da comunidade. Assim, o "isolamento" considerado por Hare, acertadamente, como um mecanismo patogênico essencial" constitui precisamente o dado fundamental para o qual convergem múltiplos trabalhos. Mas, esta noção não satisfaz plenamente aqueles que psiquiatras ou não pretendem ter uma representação da condição do isolado; com efeito, sua alienação não lhes parece ser o resultado somente da realidade em que o indivíduo se encontra, mas também e, talvez, ainda mais, da alteração de sua relação com os outros trata-se de uma solidão existencial. O isolamento é apenas uma das condições e um aspecto desta solidão. Há pouco, ouvimos Célestine afirmar: basta que não me considerem como um ser separado dos outros e marginal. Em outro momento, ela fala dos sentimentos experimentados ao ser aceita para compartilhar uma coisa cobiçada com tanta futilidade como é a família. No entanto, é isso o que a "moça" de Marguerite Duras exprime ainda melhor no decorrer do diálogo com o vendedor ambulante. O senhor não faz ideia, diz-lhe ela, do que é ser nada... Eles são servidos na ignorância total daquilo que o senhor poderia ser; sim, o senhor também... O senhor compreende, até hoje, só tenho sido solicitada, não por ser o que sou, mas pelas minhas capacidades mais impessoais e a fim de permanecer tão inexistente quanto possível... O que desejo é ser senhora de mim mesma, começar a possuir algo, nem que se trate de alguns objetos de pouca importância, mas que me pertenceriam, nem que fosse um só cómodo, mas em meu nome. A afirmação de que este desejo foi manifestado um certo número de vezes, no decorrer das nossas entrevistas com as empregadas domésticas, não passaria de uma simples formalidade. "Quando a gente está cheia, só pensa nisso". Essa é a preocupação dominante daquelas que não se deixam arrastar, nem se perdem na falaciosa procura das compensações, desforras e prazeres ilusórios. Durante muitos anos, elas fazem economias para adquirir uma moradia precária e alguns móveis, assim como objetos pessoais. Um grande número de empregadas domésticas, já idosas ou massacradas demais, procuram um trabalho de faxineira que, além de ser menos penoso, deixa-lhes mais tempo disponível. A esse propósito, Henri Lefèbvre escreve o seguinte: Desprovido de tudo, o homem encontra-se separado da existência em geral e, a fortiori, da existência humana; ele está separado do mundo dos objetos, ou seja, do mundo real, sem o qual não existe a possibilidade de uma existência humana. Tal existênciaestá menos ausente ou anulada nas casas em que a "criadagem" é composta por várias pessoas, em que as relações humanas estabelecem-se na cozinha ou nas dependências de serviço; um cerro número dessas empregadas chegaram a falar-nos de seu agrado ou desagrado em relação a esses empregos. 17 Assim, a situação das domésticas atenua-se e, ao mesmo tempo, agrava-se através das transformações da sociedade. Certamente, a empregada doméstica única das famílias burguesas é, em geral, mais livre e mais bem tratada do que alhures; apesar disso, por estar mais "entregue a si mesma", ela sente profundamente uma alteridade que era mais bem aceita pela criada dos círculos aristocráticos. Voltamos a encontrar, aqui. o interesse pelos estudos sobre a evolução no tempo que, em nosso entender, desenrola-se paralelamente da condição das empregadas domésticas e de suas manifestações psicopatológicas; infelizmente, neste momento, só podemos indicar esta perspectiva. Depois de ter analisado os principais aspectos da condição de empregada doméstica, incluindo os sentimentos e os conflitos que ela suscita, devo tentar, agora, a abordagem dos mecanismos que conduzem desta condição, destes sentimentos e conflitos, ao distúrbio mental. Utilizo, propositalmente, o termo "abordagem" e, certamente, não se trata de falsa modéstia; de fato, a passagem de uma situação vivenciada, seja ela qual for, para um distúrbio mental levanta o problema central e o mais difícil de nossa disciplina. Inútil afirmar que não tenho a pretensão de encontrar sua solução e que minha "abordagem" de algumas vias desta passagem vislumbradas, cremos nós, neste estudo continua, na maior parte das vezes, incerta e hesitante. Limitar-me-ei a observar que, seja qual for a perspectiva adorada, permanece este problema, deliberadamente excluído de minha apresentação, e sua dificuldade. A compreensão do modo como tal situação infantil precoce conduz, após prolongados intervalos às vezes completamente isolados, a manifestações psicopatológicas, seja uma neurose ou uma psicose, não é mais fácil do que compreender como uma situação atual contribui para sua aparição. Por que em tal caso e não em outro? Por que este e não aquele? Por que ora uma breve perturbação, ora um distúrbio profundo e irreversível? Voltamos sempre à natureza e à força particular das situações cuja existência deverá ser comprovada de forma objetiva ou a "predisposições" incertas. O tipo das indagações que deveriam ser enfrentadas pelo psiquiatra, seja qual for sua doutrina, impele- me a esboçar algumas respostas no caso peculiar das empregadas domésticas, escolhido tanto para ilustrar meu pensamento relativamente à psicopatologia quanto por seu próprio interesse. Vimos mais acima que, em seu conjunto, elas haviam abraçado tal profissão sem terem sido conduzidas por qualquer determinação pessoal ou, especificamente, por qualquer insuficiência intelectual. Se estudarmos outros aspectos da história de um grande número dessas empregadas também não encontraremos concomitâncias peculiares. Assinalamos uma certa frequência de condições familiares anormais, sobretudo o orfanato. No entanto, a saúde mental dos irmãos e das irmãs pelo menos dos que ficaram na região — não reflete tais condições. Não existe nenhuma correlação entre a posição ocupada na ordem de nascimento dos irmãos/irmãs ou a "função familiar" e a aparição dos distúrbios. Verifica-se que, entre as irmãs transplantadas que não chegaram a ser empregadas domésticas ou que abandonaram rapidamente tal estado, além de terem sido bem-sucedidas no casamento, é muito maior a frequência de normalidade. Entre elas também não há registro especial de manifestações psicopatológicas ou de distúrbios de comportamento, de anomalias físicas ou de lesões orgânicas com exceção da tuberculose pulmonar, em certa medida em relação à população de origem; seu comportamento escolar e profissional e, quase sempre, no início de sua transplantação é, em geral, satisfatório, sem qualquer discrepância. Nada existe de surpreendente em tal constatação relativamente à nossa perspectiva; já afirmamos que o distúrbio vai originar-se do grau de distância e de contradição entre as condutas de vida passadas e presentes das empregadas, assim como da forma correlata dos conflitos daí resultantes. O distúrbio é, na maior parte das vezes, uma das "doenças da virtude" caras a André Bergé: se fosse possível estabelecer uma diferença em relação com a amostra da média da população hospitalar em serviço fechado —, ela constataria a frequência dos estados "atípicos". No entanto, atualmente tal constatação não é válida em outros campos; além disso, uma transformação muito sensível da clínica e da evolução das psicoses não será um dos fatos dominantes da psiquiatria contemporânea? 18 Alguns aspectos semiológicos que aparentemente estão relacionados com a condição de doméstica deveriam ser estudados: por exemplo, o escárnio por parte dos patrões e delas mesmas, cuja análise, infelizmente, não poderá ser apresentada nesta palestra. Já registrei a frequência e, até mesmo, a provável grande frequência dos distúrbios do comportamento e da conduta, assim como das manifestações psicopatológicas e, sobretudo, neuróticas menos relevantes nas empregadas domésticas observadas fora de qualquer intervenção psiquiátrica por exemplo, na amostra do Centro de Reciclagem Profissional. Esta profissão aparece, afinal de contas, dificilmente compatível com um bom equilíbrio psicoafetivo. Parece-me que essa é a opinião geral dos psiquiatras em relação às empregadas domésticas a seu serviço. A idade de surgimento dos distúrbios não nos pareceu ter apresentado importantes diferenças em relação à população em geral. No conjunto, a ocorrência das manifestações psicopatológicas concentra-se, sobretudo, em torno de dois pólos: aos trinta anos e entre 45 e 55 anos, na época da menopausa. E terão sido precedidas por circunstâncias particulares? E naturalmente difícil detectá-las e, ainda mais, incriminá-las com exatidão. Através de numerosas observações, pareceu-nos que um certo número de fatos concretos, do ponto de vista objetivo ou simbólico, dolorosos, mantinham, quase sempre, uma relação bastante estreita com os distúrbios; seria, particularmente, interessante analisar tal relação. No entanto, os resultados desta análise para serem validos (ou, mais exatamente, comunicáveis) exigiriam detalhados aprofundamentos; assim, limitar-me-ei a abordá-los de forma rápida, apresentando alguns exemplos do que, às vezes, assume para nós o aspecto de evidência patogênica. E claro, antes de tudo, encontramos os incidentes da vida afetivo-sexual; associados ou não ao isolamento, à condição de empregada doméstica, à necessidade de compensações que ela implica, à subjugação brutal a solicitações, os exemplos de outras colegas e certos arrebatamentos até então diferentes, menos numerosos e menos sensíveis, conduzem a breves encontros, a "transas", a casos e ligações passageiros, a múltiplos vexames e à gravidez. Inúmeras pacientes nos disseram: "Isso acabou mal", "Isso não deu certo". Essas condutas e suas consequências sem dúvida, bastante banais, embora mais frequentes e mais dramáticas, às vezes, entre as transplantadas (um antigo provérbio bretão dizia: "aller à Nantes en attendant d'être damné") situam-se, entre as empregadas domésticas, sob um registro um pouco particular. A "facilidade" da empregada doméstica, do mesmo modo que sua inferioridade intelectual, é considerada, de alguma forma, como "natural'', suscitando investidas mais insistentes e acarretando menos obrigações para o parceiro que, por outro lado, recusa-se, muitas vezes, a "casar- se com uma empregada doméstica". "As pessoas julgam que podem dispor de nós a seu bel-prazer", dizem elas. No entanto, o desregramento, sua tentação ou seu risco incessantes e, sobretudo, suas consequências,a censura, pelo menos, virtual, do meio familiar, engendram segundo um mecanismo psicopatogênico tão conhecido que é inútil abordá-lo, nesta palestra - um sentimento peculiar de culpa. De fato, em razão da personalidade anterior, da força e da unanimidade dos valores morais e das interdições no meio original, este sentimento assume, como afirmamos, uma intensidade acentuada. No entanto, a frequência das investidas dos patrões ou das outras pessoas da casa adquire um sentido e implica uma repercussão mais profunda. Na história de nossas pacientes, e subsequentemente às provações da gravidez e do parto ou do aborto provocado, encontramos, muitas vezes, períodos caracterizados por uma miscelânea de remorso, inquietação, desânimo, esgotamento e insónia, ou seja, por uma alteração mais ou menos profunda do estado físico. Tais períodos podem preceder a aparição de reações criminosas - sobretudo, infanticídio - e de distúrbios mentais com reflexos no comportamento, embora, em geral, sejam episódicos. De uma forma mais frequente, parece-nos, eles implicam uma ferida irreparável, desencadeando à semelhança do que ocorre com outras pessoas que, aliás, não são domésticas uma 19 verdadeira demolição progressiva da personalidade física e moral que irá exprimir-se às vezes, muito mais tarde, após numerosos avatares, através de uma psicose grave. Evidentemente, as coisas nem sempre são assim tão trágicas. Todavia, a este propósito, chamarei a atenção para a elevada proporção de ex-domésticas na amostra constituída pelas pacientes de meu serviço. Em vários casos, dava a impressão de que toda a existência dessas pacientes havia ficado comprometida durante este período. Antes de tudo, não se trata de uma profissão, dizia-nos uma de nossas pacientes; a empregada doméstica faz tudo o que for necessário para deixar tal situação, casa-se seja lá com quem for, fica cheia por ser dirigida como uma escrava. Na outra vertente desta existência, os problemas levantados pelo envelhecimento e, em especial, a menopausa: acontecimento orgânico e psicológico, símbolo do declínio, é vivenciado pela empregada doméstica de modo particularmente dramático. Vimos que um grande número de manifestações psicopatológicas situam-se neste período. Várias pacientes que sofrem de psicoses tardias correspondiam à personagem da criada com grande coração, profundamente honesta, fiel, dedicada e decepcionada: Para fazer isso [esta profissão], diziam elas, é necessário ser jovem... Disseram-me [na agência de emprego] que eu era idosa demais, isso causou-me um choque. Elas permanecem identificadas aos patrões, mas descobriram a dura verdade de sua condição. Ao terem abandonado, definitivamente, expectativas obscuras, algumas encontram em um plano, às vezes, delirante refúgio e ajuda em exibir com orgulho suas tradições, méritos e virtudes. Uma delas dizia-nos: "Sou limpa e pontual". Uma outra: "Sou limpa tanto na parte decima, quanto na parte de baixo". Outras ficam submersas em estados depressivos entorpecidos, irredutíveis, em uma involução afetiva precoce e exprimem-se com um assombroso desânimo e uma imensa amargura. Mesmo fazendo tudo com bom coração, não se recebe nenhuma mostra de reconhecimento... Sou idosa demais, não tenho boa apresentação. Minha criada, já mencionada, manifesta um velho delírio, meio extinto, mas sobretudo dá testemunho independentemente de qualquer atitude que possamos tomar de um pessimismo radical. Ao mais cordial bom-dia, ela responde-me com uma espécie de rabugice: "Sim, senhor, é nosso dever... faz-se o possível!" Neste contexto, o surgimento dos distúrbios é resultado, algumas vezes, da perda de um emprego exercido, há vários anos, na sequência de uma demissão ou, quase sempre, de um óbito ou partida e, é claro, esquecimento de empregadores ou de crianças que, durante muito tempo, haviam sido beneficiários dos serviços, cuidados e afeição dessas mesmas empregadas domésticas. Assim, sua angústia em relação à solidão, à velhice e à falta absoluta das coisas necessárias é perfeitamente justificada. Determinadas acusações a propósito de diversos delitos ou erros, reais ou presumidos, tais como roubar ou aceitar gorjeta da parte dos fornecedores, ouvir as conversações por trás das portas, deteriorar ou destruir mais ou menos involuntariamente - objetos, etc., são encontradas, às vezes, imediatamente com a eclosão dos distúrbios. É claro que adquirem tal repercussão apenas a partir de um fundo difuso de hostilidade e de sentimento de culpa já evocado. Algumas vezes, trata-se de um fato mínimo, embora significativo, que faz "transbordar o vaso". Uma delas dizia-nos: Em Neuilly, em uma casa em que os patrões eram aposentados, eu devia sair com o cachorro. Eu me sentia... Sair com o cachorro era uma coisa humilhante para mim; sentia-me rebaixada, é algo estranho. Se o cachorro fosse meu, eu não teria esta impressão. 20 Uma outra: Meu relógio caiu no chão da cozinha e quebrou-se. Único comentário da patroa: "E pena". Até parece que estamos ouvindo Prévert1 : "É terça-feira, por volta das 4 horas da tarde, no mês de fevereiro. Em uma cozinha, há uma doméstica que está sendo humilhada..." Será necessário repetir que os diferentes aspectos que compõem a situação das empregadas domésticas são múltiplos, mutáveis c emaranhados? Um ou outro, ou vários, são constatados ou invocados; eles são mais ou menos manifestos, do ponto de vista objetivo, mais ou menos intensamente vivenciados, embora sempre presentes. Se, para terminar esta breve apresentação da anamnese das manifestações psicopatológicas observadas entre as empregadas domésticas, assim como dos "fatores" que, do ponto de vista clínico, parecem ter desempenhado um papel na génese de seus distúrbios, eu tentasse resumir minha impressão geral, eu diria que bem menos do que circunstâncias particulares é o conjunto da história de cada uma dessas empregadas que me deixou maior impressão; ora, essa história surgiu de sua condição e é composta por mudanças de lugar, por aventuras e incidentes repetidos, por vãs tentativas para "livrar-se da situação", pelo acúmulo de decepções, provações e dissabores É claro que, no exercício de outro tipo cie profissão, há mulheres que apresentam, também, alguns desses fatores, mas raramente com um peso tão considerável. Tenho plena consciência de que subsiste uma distância entre a anamnese e a doença. Uma vez mais, esta distância suscita o problema fundamental de qualquer psicopatologia. Como se opera a passagem da situação concreta para o sofrimento moral, para o conflito interno, para a angústia e, em seguida, para o distúrbio? Parece-me que o interesse da pesquisa empreendida por nós consiste, precisamente, em permitir apreender um pouco mais objetivamente, pelo menos, um dos termos do problema, ou seja, o de fornecer-nos um ponto de partida mais consistente. Nesta palestra, cremos ter conseguido estabelecer uma correlação de forma mais sólida. No mínimo, ela formula uma indagação: além de não poder ser descartada, devemos tentar dar-lhe uma resposta. De minha parte, esforcei-me por "compreender" e "levar minha plateia a compreender", observar e, talvez, experimentar, em determinado caso, um certo encadeamento das circunstâncias; evidentemente, é impossível debruçar-me por mais tempo sobre o problema, tão debatido, da compreensão dos distúrbios mentais que, é claro, esbarra em obstáculos e, sobretudo, em limitações. Com H. Ey, acho que as grandes doenças mentais comportam uma desestruturação mais ou menos profunda da consciência, uma alteração funcional do aparelho psíquico. Por isso, e sejam quais forem as significações que ainda possamos encontrar, elas permanecem, em certa medida, ininteligíveis e inacessíveis a uma apreensão direta que, de alguma forma, se detém à beira do distúrbio mental ou só consegue abordá-lo superficialmente. No entanto,
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