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ano 23 • maio 2020 • edição 257 • r$ 21,50 • revistacult.com.br Ética em tempos de peste Ética em tempos de peste Edição extraordinária Pela primeira vez em 23 anos de existência, a Revista Cult não será distribuída fisicamente e estará disponível exclusivamente na plataforma digital. O mercado editorial, como vocês sabem, passa por transformações há muito tempo e a tragédia da pandemia só ampliou uma dificuldade já imensa. Existe uma saída que ainda não é visível, mas é sentida. Existe uma saída porque a gente quer que exista e estamos comprometidos a encontrá-la. Nesse período de novas reflexões e tantos mistérios, organizamos um dossiê que reúne pensadores e pensadoras brilhantes, enormes, que prepararam artigos originais sobre uma questão essencial na atualidade: “ética em tempos de peste”. Os textos partem de várias linhas de pesquisa que, juntas, compõem um documento para ser lido hoje e no futuro. É para ser consultado e relembrado porque percorre com sabedoria e detalhes precisos a convulsão social e ética deste ano que parece inaugurar o fim do mundo como o conhecemos. Agradeço à generosidade de todos e todas que contribuíram com esta edição tão especial. Boa leitura! Daysi Bregantini daysi@revistacult.com.br ISSN 1414707 ‑6 Nº 257 maIo 2020 aNo 23 Editora E dirEtora rEsponsávEl Daysi Bregantini dirEtora dE contEúdo Fernanda Paola dirEtora dE artE Fernanda Ficher assistEntE dE Edição Amanda Massuela rEvisão Bárbara Prince e Cristina Yamazaki projEto gráfico Fernanda Ficher dEpartamEnto dE markEting Reinaldo Calazans marketing@revistacult.com.br dEpartamEnto financEiro Arthur Chagas financeiro@ revistacult.com.br sugEstõEs dE pauta redacao@revistacult. com.br cartas cartas@ revistacult.com.br para assinar assine@revistacult. com.br para anunciar fernanda@revistacult.com.br CULT – REVISTa BRaSILEIRa DE CULTURa: Praça Santo Agostinho, 70, 10º andar / Paraíso São Paulo ‑SP / CEP 01533 ‑070 Tel.: 11 3385 3385 • 11 9 9998 9728 whatsapp REVISTaCULT.Com.BR CULTLoja.Com.BR revistacult revistacult cultrevista A Revista Cult é uma publicação mensal da Editora Bregantini. A Cult não se responsabiliza pelas ideias e conceitos expressos nos artigos assinados. É proibida a reprodução total ou parcial desta publicação sem prévia autorização. As edições antigas da Revista Cult são vendidas pelo preço de capa da edição atual. F I LI A DA À colaboraram nesta edição aISLaN CamaRgo maCIERa é doutor em Letras pela USP e membro do grupo de pesquisa Literatura Italiana Traduzida (USP/UFSC) aLVaRo BIaNChI é doutor em Ciências Sociais pela Unicamp e professor livre‑docente da mesma instituição. Coordena o Laboratório de Pensamento Político (Pepol/Unicamp) e dirige o Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Unicamp. CaRLa RoDRIgUES é doutora em Filosofia pela PUC-Rio, professora da UFRJ e pesquisadora do Programa de Pós‑Graduação em Filosofia (IFCS/UFRJ) ChRISTIaN INgo LENz DUNkER é psicanalista, doutor em Psicologia Experimental pela USP e professor titular da mesma instituição, onde coordena o Laboratório de Teoria Social, Filosofia e Psicanálise. ERNaNI ChaVES é doutor em Filosofia pela USP e professor titular da UFPA. Membro do Nietzsche‑Gesellschaft (Naumburg/Alemanha) e do GT Nietzsche da Associação Nacional de Pós‑Graduação em Filosofia (Anpof), é um dos editores da revista Estudos Nietzsche (UFES). FREI BETTo é frade dominicano e escritor, autor de 68 livros editados no Brasil e no exterior. Estudou Jornalismo, Antropologia, Filosofia e Teologia. IVoNE gEBaRa é escritora e teóloga, doutora em Filosofia pela PUC-SP e em Ciências Religiosas pela Universidade Católica de Lovânia, na Bélgica. maRCIo SoTELo FELIppE é advogado e mestre em Filosofia e Teoria Geral do Direito pela USP. Foi Procurador‑Geral do Estado de São Paulo entre 1995 e 2000. pEDRo aUgUSTo gRaVaTá NICoLI é doutor em Direito pela UFMG e professor adjunto da mesma instituição. Membro do corpo permanente de professores do Programa de Pós‑Graduação em Direito da UFMG. RaphaEL LUIz DE aRaújo é doutor em Letras Modernas pela USP e tradutor. REgINa STELa CoRRêa VIEIRa é doutora em Direito pela USP e professora da Unoesc. Membro do Grupo de Pesquisa Trabalho e Capital (GPTC-USP) e do Núcleo Direito e Democracia do Cebrap. RENaN QUINaLha é advogado, doutor em Relações Internacionais pela USP e professor da Unifesp. Membro da Comissão de Diversidade Sexual da OAB/SP e presidente do Conselho de Administração do Núcleo de Preservação da Memória Política. RUy BRaga é doutor em Ciências Sociais pela Unicamp, professor titular da USP e chefe do Departamento de Sociologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da mesma instituição. SILVaNa DE SoUza RamoS é doutora em Filosofia pela USP e professora titular da mesma instituição. Dirige o Grupo de Estudos de Política e Subjetividades (USP) e edita os Cadernos espinosanos (USP). SUELy aIRES é doutora em Filosofia da Psicanálise pela Unicamp e professora adjunta da UFBA. Membro do Colégio de Psicanálise da Bahia. TákI aThaNáSSIoS CoRDáS é doutor em Medicina pela USP e professor colaborador do Departamento de Psiquiatria da mesma instituição. TaLES aB'SáBER é psicanalista, doutor em Psicologia Clínica pela USP e professor da Unifesp. Membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae. TaRSo DE mELo é escritor e advogado, doutor em Filosofia do Direito pela USP. sumário 6 A revolta de Albert Camus contra a peste por Raphael Luiz de Araújo 22 Os limites do carisma: ética, trabalho e necropolítica por Ruy Braga 16 Uma perspectiva teológica feminista por Ivone Gebara 28 A ética da psicanálise e a peste generalizada por Christian Ingo Lenz Dunker 32 A aceleração da história e o vírus veloz por Tales Ab’Sáber 50 Sobreviver, mais uma vez! por Ernani Chaves 44 Coreia do Sul, Brasil... ou o pior por Carla Rodrigues e Suely Aires 56 Pandemia: a antítese entre sociedade e mercado por Marcio Sotelo Felippe 62 O despotismo delivery do capital por Tarso de Melo 70 Maquiavel demoníaco por Alvaro Bianchi 66 “Arbeit Macht Frei”: Brasil, 2020 por Aislan Camargo Maciera 74 Cuidado em surto: da crise à ética por Pedro Augusto Gravatá Nicoli e Regina Stela Corrêa Vieira 78 Desafios à democracia por Renan Quinalha 92 Fragmento de um diário por Silvana de Souza Ramos 82 A economia deve esperar por Táki Athanássios Cordás 98 A pandemia e suas implicações éticas por Frei Betto raphaEl luiz dE araújo diantE dos dEsafios quE EnfrEntamos, o rEtorno à obra dE camus nos coloca Em comunidadE para fazEr frEntE a nossa condição trágica A revolta de Albert Camus contra a peste dossiê Em Por que ler os clássicos?, Italo Cal‑vino afirma que “Um clássico é um livro que nunca terminou de dizer aquilo que tinha a dizer”. Atual‑ mente, vale complementar que alguns são mais lidos em certos momentos históricos que outros. Na França, por exemplo, Paris é uma festa (1964), de Ernest Hemingway, adquiriu um súbito aumento de público após os aten‑ tados terroristas do Bataclan de novembro de 2015. Algo semelhante ocorreu com Notre- -Dame de Paris (1831), de Victor Hugo, após o incêndio na catedral mais famosa do país no ano passado. Com o surto do novo coronavírus, chegou a vez de A peste (1947), de Albert Camus, vol‑ tar ao centro das discussões, com o aumento de suas vendas em alguns países nos últimos meses. As coincidências temáticas do enredo com a atual pandemia, bem como suas refle‑ xões sobre a condição humana e a resistência ao totalitarismo político, são alguns dos pos‑ síveis fatores que reforçam a adesão atual ao livro. Além de ser uma das grandes obras lite‑ rárias do século 20, a crônica sintetiza o legado ético de um escritor famoso por ter conciliado em muitos aspectos conduta de vida e pensa‑ mento, à maneirade alguns filósofos da Grécia Antiga. Aventurando‑se pelas vias do romance, Camus nos oferece uma metonímia da sua obra, inspirada em sua juventude na Argélia, análo‑ ga a sua experiência durante a Ocupação alemã na França e nutrida por reflexões presentes em seus principais ensaios filosóficos, O mito de Sí- sifo (1942) e O homem revoltado (1951). A leitura da peste que acomete a cidade de Orã durante dez meses permite identificar imagens e reflexões que ressoam hoje. Em uma cidade sitiada, separados daqueles que amam, também os “prisioneiros da peste” vi‑ veram o exílio em sua própria terra. Nesse sen‑ tido, a obra pode nos servir de companhia em momentos de solidão e espera de um futuro incerto. É sabido que o próprio Camus já ha‑ via escrito sobre o sentimento absurdo que a separação e o isolamento podem despertar em nós. Suas reflexões de O mito de Sísifo indagam justamente sobre como reagir ante a nossa an‑ gústia diante da morte e da indiferença do uni‑ verso que habitamos. Mas tal sentimento não se limita ao plano existencial da questão. Redigida em parte du‑ rante os anos em que Camus editou o Combat, jornal da Resistência Francesa, a obra carrega um plano de fundo histórico‑social que permi‑ te a construção de analogias com o que ocorria na época, no combate à “peste marrom” na‑ zista. Relida hoje, além de crônica de nossa insurreição contra a arbitrariedade da morte, ela também remete à luta contra a opressão, 7 dossiê a injustiça e o autoritarismo que ultrapassam seu contexto de publicação. Se o vírus que nos atinge tem algo de arbitrário, as circunstân‑ cias em que nos ameaça depende de atitudes humanas. Como pontua Jeanyves Guérin em Albert Camus: littérature et politique, “A metá‑ fora da doença contagiosa mostra a progressão fulminante do mal”. A atual crise global nos força a encarar nossa condição diante da morte coletiva e da negligência de alguns líderes mundiais que banalizam o sofrimento humano. No momen‑ to em que muitos estão fadados ao isolamen‑ to e à inação, enquanto profissionais das áreas tidas como essenciais estão nas ruas, Camus nos convida a descobrir o que nos liga ao mun‑ do e aos seres. Como expresso em um dos parônimos mais representativos de sua obra, em tempos de quarentena trata‑se de apren‑ der a ser solitário sem deixar de ser solidário. a pEstE absurda A história da onda epidêmica que atinge a ci‑ dade argelina de Orã ocorre durante dez me‑ ses de um ano indeterminado da década de 1940. A narrativa é dividida em cinco partes que retratam seu início, ápice e queda. A se‑ quência dos acontecimentos segue, assim, uma curva semelhante à de projeções de con‑ taminados e mortos que tentamos achatar ao redor do mundo neste momento. Ao longo da crônica, também assistimos à história de pes‑ soas que se isolam em casa, que combatem a doença e que morrem aos milhares. Se a princípio o foco de nossa pandemia foram morcegos, também é um pequeno ma‑ mífero que anuncia a doença no início, após o narrador nos apresentar a cidade: ratos saem aos montes às ruas para morrer e transmitir, por meio de suas pulgas, a peste bubônica à população. A primeira vítima fatal com quem ele depara é um cidadão comum, o zelador Michel, que é tratado sem sucesso pelo dou‑ tor Bernard Rieux. Em seguida, os casos se espalham rapidamente pela cidade. Na linha de frente do combate à doença, ele então se reúne com o prefeito e o médico Jean Castel. Anuncia‑se que medidas precisam ser toma‑ das, mas nesse momento há uma primeira divergência entre um profissional da saúde e o posicionamento político da municipalidade. Demora‑se para reconhecer a peste, para de fato reagir à doença que se espalha. A população também tenta seguir sua ro‑ tina. Alguns manifestam incômodo por ter de mudar certos hábitos, outros reúnem‑se nas ruas para desfrutar do tempo e dos encontros enquanto podem. Mas o aumento do número de mortos deixa a prefeitura sem alternativas e novas medidas são impostas à população. A cidade cerra seus portões, estabelecimentos são fechados e um toque de recolher é anun‑ ciado. O peso do tempo se faz sentir no tédio dos cidadãos, enquanto “Milhares de rosas murchavam nas cestas dos vendedores, ao longo das calçadas, e seu perfume adocicado flutuava por toda a cidade”. Conforme avançamos pela linha ascenden‑ te das mortes, os sobrevoos do narrador pintam com lirismo o vento que varre a cidade ao mes‑ mo tempo que o calor e a luz do sol fulminam as ruas e seus habitantes. Monótona, Orã povoa‑ ‑se com pequenas anedotas. Lemos relatos das anotações do caderno de Jean Tarrou, um via‑ jante de passagem pela cidade, que desenvol‑ ve laços de amizade com Rieux e logo passa a ajudar com as medidas profiláticas no combate A peste projeta essa condição sobre a coletividade e realça a importância de nos recordarmos da morte com respeito e modéstia 8 ao flagelo. Seus cadernos contêm registros va‑ riados, como conversas pitorescas no ônibus, a história de um velho asmático que conta o tempo transferindo ervilhas de uma panela a outra e até mesmo o curioso caso de um se‑ nhor que atrai gatos a sua janela para depois escarrar sobre eles. Cidade mediterrânea, Orã é inicialmen‑ te apresentada com calor e movimento, uma de suas características é a “dificuldade que se pode ter para morrer”. Em suas ruas, sua “aparência, animação e até prazeres pareciam comandados pelas necessidades do negócio”. Mas ela se transforma à percepção dos conci‑ dadãos conforme tornam‑se prisioneiros: “O sol da peste apagava todas as cores e escor‑ raçava qualquer alegria”. Bombardeados por números e estatísticas, eles sentem com mais força o exílio em que se encontram sob o sol inclemente. Alguns vagam agora pelas ruas onde “reina um morno torpor” e sofrem com a distância daqueles que não podem estar por perto. Os olhos iluminam seus lugares de afeto, e a ausência daquilo que era dado por garantido projeta uma luz como que póstuma sobre as coisas. Alguns personagens encarnam os medos e anseios dos que vivem a peste. Além de Tarrou e Rieux, o jornalista Raymond Rambert, de passagem pela cidade, dedica‑se a tentar fugir para reencontrar sua noiva na França, mas aca‑ ba desistindo para se reunir às formações sani‑ tárias. Joseph Grand, o empregado da Câmara que sonha em conseguir se expressar bem, faz horas extras para ajudar com as questões admi‑ nistrativas que envolvem o combate ao flagelo. Cottard, que no começo do livro tenta suicidar‑ ‑se, acaba por tirar proveito da situação a fim de lucrar com o mercado paralelo. Nesse sentido, o padre militante Paneloux é um daqueles que mais expressa as questões metafísicas colocadas pela epidemia. Em seus sermões, o jesuíta tenta encaixar a peste nos desígnios de Deus, mas também não se livra da angústia diante da calamidade, potenciali‑ zada na trágica cena da morte de uma crian‑ ça – o filho do juiz da cidade. O flagelo exige uma fé que, mesmo abalada, Paneloux procu‑ ra sustentar, mas não sem uma angústia que dura até seu último instante, quando adoece e morre de “caso duvidoso”, fixando um crucifi‑ xo sozinho em seu quarto. Seguindo os passos dos personagens sob a peste, notamos como se sentem estrangeiros diante de um mundo que não podem com‑ preender e ao qual não podem se unir. Lemos também como a história de cada um soma‑se à do sofrimento coletivo: “a partir das primeiras semanas, um sentimento tão individual quan‑ to o da separação de um ente querido se tornou, subitamente, o de todo um povo e, juntamente com o medo, o principal sofrimento deste lon‑ go tempo de exílio”. Todos os concidadãos, as‑ sim, compartilham de algo semelhante ao que Camus nomeara como absurdidade da exis‑ tência. No primeiro ciclo de obras do escritor sob esse tema, com O estrangeiro, Calígula, O Estado de sítio e O mito de Sísifo, encontramos tal divórcio entre o indivíduo consciente de sua condição mortal e o mundo que o cerca e que continua, paraalém de sua morte. A peste projeta essa condição sobre a cole‑ tividade e realça a importância de nos recor‑ darmos da morte com respeito e modéstia. De início, “Ninguém aceitara ainda verdadeira‑ mente a doença. A maior parte era sobretudo sensível ao que perturbava os seus hábitos ou atingia os seus interesses. Impacientavam‑se, irritavam‑se e esses não são sentimentos que se possam contrapor à peste”. Há uma recusa a se desprender dos próprios hábitos, a enca‑ rar a doença e os óbitos, pois não se enqua‑ dram na rotina dinâmica da cidade. Como a realidade absurda é desproporcional à razão, ela é rechaçada. Os empreendimentos huma‑ nos recusam os hospitais e cemitérios lotados, desviam os habitantes da angústia existencial. Mas a epidemia e nossa atual pandemia impõem a imagem desse abismo da morte que suga milhares ao redor do mundo. Ensinados a progredir por uma vida ideal, com dinheiro, uma carreira bem‑sucedida e uma família, ve‑ mos tudo isso igualmente fadado a perecer: “A peste suprimira os juízos de valor”, Camus 9 dossiê nos recorda. Para alguns, tal equivalência moral de todas as ações pode conduzir ao niilismo, dado que uma das consequências da revelação do absurdo é a supressão do sen‑ tido das coisas. Mas ele propõe também que a falta de sentido permite ressignificar nossa própria vida. Em O mito de Sísifo, inspirado no amor fati nietzscheiano, ele nos ensina a responder a isso de forma otimista: “Tratava‑se, anteriormente, de saber se a vida devia ter um sentido para ser vivida. Pelo contrário, parece‑ ‑me aqui ela será melhor vivida quanto menos sentido tiver. Viver uma experiência, um desti‑ no, é aceitá‑lo plenamente”. alvos da rEvolta colEtiva Camus complementa o raciocínio absurdo com a constatação de que a revolta seria uma das únicas escolhas filosóficas coerentes. Se em O estrangeiro lemos uma revolta negativa, que se materializou no homicídio de um homem na praia, A peste permite a reação positiva ao ab‑ surdo, que se concretiza em uma ação a favor da coletividade contra a injustiça, o morticínio, o autoritarismo. Entre determinações naturais e determinações sociais, a epidemia exige um ir e vir constante do indivíduo para o coletivo. Em 1955, Camus afirma a Roland Barthes em uma carta: “Comparada a O estrangeiro, A pes- te marca, sem discussão possível, a passagem de uma atitude de revolta solitária ao reco‑ nhecimento de uma comunidade cujas lutas devemos compartilhar. Se há evolução de O estrangeiro para A peste, ela se dá no sentido da solidariedade e da participação”. Pelo contexto de sua redação e publicação, seria difícil não a ler primeiramente como uma crônica da Resistência Francesa. En‑ quanto Camus desenvolve a ideia da epide‑ mia, a França é derrotada pelos alemães no campo de batalha, o exército de Hitler avança sobre o território e instala‑se a República de Vichy. Camus chegara a Paris no início da dé‑ cada de 1940. Tenta se engajar para lutar com o Exército francês, mas não é aceito por conta da tuberculose, então, como já fizera anterior‑ mente na Argélia, concentra sua ação política no jornalismo. Torna‑se, em 1943, editor do jornal clandestino Combat – no qual um tre‑ cho de A peste é publicado – e circula com um documento falso, sob o nome de Albert Mathé. A palavra “peste” figura nos cadernos do escritor desde 1940, mas uma das notas em‑ blemáticas desses anos é a de novembro de 1942, quando escreve “Como ratos!”, referin‑ do‑se à invasão da zona livre, no sul da França, pelo Exército alemão. Comparar com ratos o que era chamado de “peste marrom” trans‑ figura os roedores em porta‑vozes do flagelo. Em 1942, Camus inicia a redação da primei‑ ra versão enquanto passa uma temporada no Panelier, ao sul de Lyon. Termina sua redação no final do ano, mas, insatisfeito, parte para uma segunda, que vai ser redigida em Paris, quando se torna leitor na editora Gallimard. O escritor menciona “um equilíbrio difícil de encontrar” ao se expressar sobre o árduo pro‑ cesso de redação, que ocorre agora em inter‑ valos, ao longo dos quais são feitas alterações importantes, como o abandono de seu perso‑ nagem latinista, Stephan. Durante esse período e até o início dos anos 1950, Camus desenvolve o que se tornou seu ciclo da revolta, com A peste, as peças O Estado de sítio e Os justos e o ensaio O homem revolta- do. Ele também publica em jornais os artigos políticos que serão reunidos em suas Actuelles I, como a série “Nem vítimas nem carrascos”. Do ponto de vista filosófico, o pensamento que sustenta esses textos pode ser encontrado so‑ bretudo no ensaio central desse ciclo. Em O homem revoltado, Camus define a revolta como um “não” do indivíduo contra aquele que o oprime. Tal negação também é a tomada de consciência de um “sim” que legi‑ tima a existência de uma fronteira: “Aparen‑ temente negativa, já que nada cria, a revolta é profundamente positiva, porque revela aquilo que no homem sempre deve ser defendido”. Quando um escravizado volta‑se contra seu opressor, ele reconhece que existem valores aos quais tem direito e pelos quais vale a pena lutar. Por arriscar a própria vida em nome des‑ ses valores, aceitando morrer por eles, ultra‑ 10 passa sua própria solidão e leva sua revolta a transcender horizontalmente, isto é, em dire‑ ção ao outro. Há uma “superação do indivíduo para um bem doravante comum”. Se nos voltamos para algumas das críticas sociais presentes em A peste, é possível identi‑ ficar alvos para tal revolta. Na primeira parte do livro, as autoridades são incrédulas dian‑ te do começo do surto. Demora‑se para agir, como se fossem necessários mais corpos infla‑ mados pela peste para dar combustível à ação política. Ao perceber do que realmente se trata, o doutor Castel diz a Rieux: “Você sabe o que vão responder‑nos [...] Ela desapareceu dos paí‑ ses temperados há muitos anos”. Por essa mes‑ ma via, há também por parte dos discursos de poder uma negação em nomear as coisas como são. Sacrifica‑se “muito ao desejo de não in‑ quietar a opinião pública” e preferem chamar a peste de “febre perniciosa”. No momento, Rieux pouco se importa com sua nomeação, pois acha mais importante agir com rapidez, porém tal questão retorna páginas adiante. Camus faz Jean Tarrou expressar uma críti‑ ca que já havia colocado em carta a seu amigo e leitor Louis Guilloux: um dos grandes males do mundo é a falta de uma linguagem clara. Ao se servir de etiquetas eufemísticas para não dar à doença seu nome certo, o governo transmite o vírus da ignorância a sua popula‑ ção, o que a conduz à morte. Entre os hospitais, os cemitérios lotados e aqueles que ainda não foram diretamente atingidos pela doença, o discurso que abstrai a fatalidade e o sofrimen‑ to interpõe‑se como uma cortina de fuma‑ ça, esconde os gânglios, o pus e o vômito do paciente em agonia. Para cá dessa cortina, a “abstração” – palavra‑chave para o pensamen‑ to de Camus nesse momento – tenta preservar uma realidade paralela, onde tudo está bem. No campo da disputa das narrativas, a abs‑ tração também atenta contra o diálogo. Assim como o vírus entra nas células humanas, se reproduz e as implode, o mecanismo discur‑ sivo que nega a gravidade da pandemia altera o léxico das palavras, impossibilitando os diá‑ logos e infectando‑nos com a doença e com o ódio mútuo. Ainda hoje, a luta de todos contra a morte transforma‑se em debate sobre esco‑ lher entre vida e economia, o uso incerto da hi‑ droxicloroquina se torna garantia de cura que permite o retorno à normalidade, a obrigato‑ riedade de o Estado intervir em momentos de calamidade torna‑se filantropia. Camus nos alerta em “O diálogo e o vocabulário”, texto sobre a polêmica de O homem revoltado, que “em suma, a tática tem por meta preencher as palavras mecanicamente com um conteúdo oposto ao que elas detinham até ali”. O léxico alterado faz com que falemos línguas distin‑ tas, então o elo se rompe, como o escritor tam‑ bém registraem seu caderno no mesmo ano da publicação de A peste: “A polêmica – como elemento da abstração. Cada vez que decidem considerar um homem como inimigo, ele se torna abstrato. É afastado para longe. Não se quer mais saber se tem um riso irradiante. Ele se tornou uma silhueta”. Os espaços de diálo‑ go são ocupados por monólogos que qualquer robô de Twitter pode sustentar. Se em O estrangeiro lemos uma revolta negativa, que se materializou no homicídio de um homem na praia, A peste permite a reação positiva ao absurdo 11 dossiê Se o outro e seu discurso são abstraídos, perde‑se acesso ao conhecimento também so‑ bre as coisas. Tal obscuridade estende‑se, por exemplo, à incerteza quanto ao número real de infectados e de mortos hoje. A ignorância também faz parte do flagelo. No jogo de luz e sombra que atravessa A peste, Camus reitera a importância da primeira para combater a ignorância e suas consequências niilistas: “O mal que existe no mundo provém quase sem‑ pre da ignorância, e a boa vontade, se não for esclarecida, pode causar tantos danos quanto a maldade”. Ante tais males, quando escreve sobre a revolta, destaca a necessidade de um limite para que ela não se autodestrua. O com‑ bate à negligência, à ignorância e à abstração demanda coragem, mas também modéstia. Embora em seu senso comum a palavra “re‑ volta” possa nos remeter a uma insurreição de‑ senfreada, a movimentos que estão nas bases das revoluções, com saques e assassinatos de políticos, em O homem revoltado Camus reflete antes sobre a coerência entre os princípios que sustentam o revoltado e a expressão de sua re‑ volta. O escritor concentra‑se na manifestação e nos motivos de tal contradição em persona‑ gens filosóficos, literários e políticos, sobretu‑ do a partir de 1789, passando por nomes como Robespierre, Marquês de Sade, Charles Bau‑ delaire, Karl Marx e Friedrich Nietzsche. Como mencionado anteriormente, um dos alvos de Camus é o niilismo, mas não apenas o mais famoso, de Bazárov, de Pais e filhos (1862), e sim o do político autoritário ou do revolucio‑ nário que, em nome de uma ideia, nega toda a vida ao seu redor. Ele aponta para uma revolta que sustente princípios humanos não só em oposição ao que chamaria “Terrorismo Irra‑ cional de Estado do Nazismo”, mas também ao “Terrorismo Racional” da União Soviéti‑ ca. Vale observar que, com o fim da guerra, o escritor presencia uma euforia de parte da es‑ querda ortodoxa francesa, que acreditava na Revolução. Em 1946, o Partido Comunista é o maior partido da França, com 400 mil asso‑ ciados, e havia formado um braço importante da Resistência Francesa. Então, como pontua Jeanyves Guérin, nesse sentido, A peste já era “uma forma discreta de contestar toda uma li‑ teratura resistencialista, gaulista e sobretudo comunista do pós‑guerra”. Consequentemente, o local e o momento de circulação desse discurso não favorecem totalmente a adesão a ele. O clero revolucio‑ nário compartilha parte de suas críticas com a intelligentsia parisiense. Embora A peste tenha sido um sucesso de vendas, com a recepção de prêmios e mais de 96 mil exemplares vendi‑ dos em três meses, muitos intelectuais acham suas ideias ingênuas, como Simone de Beau‑ voir, Jean‑Paul Sartre, os surrealistas como André Breton, e mais tarde Roland Barthes. Em A força das coisas (1963), Beauvoir escreve que “assimilar a Ocupação a um flagelo natu‑ ral era fugir de novo da História e de seus ver‑ dadeiros problemas”. Sartre vai expressar tal crítica à “frivolidade” de Camus por ignorar as infraestruturas históricas na querela da revis‑ ta Les temps modernes, de 1952, que culmina na ruptura pública da amizade entre eles. Barthes, em 1955, estima, em nome do materialismo dialético, que Camus falha ao tentar se colocar fora da história. Diante de tais críticas e de sua atual releitu‑ ra, separada de sua representação unicamente Na crônica, percebemos que, em vez de um heroísmo solitário, a população constitui um único organismo 12 alegórica, as metáforas do escritor retornam com força e, com isso, nos convidam a refletir um pouco mais sobre o seu entendimento de uma revolta “sob medida”. rEvolta sob mEdida No último capítulo de O homem revoltado, Ca‑ mus evoca a medida (mesure) como elemento constitutivo da revolta: “A medida não é o con‑ trário da revolta. A revolta é a medida, é ela quem exige, quem a defende e recria através da história e de seus distúrbios”. Após criticar ímpetos de insurreição que culminariam em niilismo, ele aponta para a necessidade de um valor mediador que equilibraria tais ímpetos. A deusa que ilustraria a medida a que o escritor se refere é Nêmesis, conhecida por ser aquela que, a fim de devolver a ordem ao cosmo, golpeava os que cometiam a desme‑ sura (hýbris). De um ponto de vista filosófico, Camus recupera Heráclito para criticar o fun‑ damento da ação histórica sob um vertiginoso movimento dialético contínuo: “A dialética histórica, por exemplo, não continua indefini‑ damente em busca de um valor desconhecido. Ela gira em torno do limite, seu valor primeiro. Heráclito, inventor do devir, fixava entretanto um marco para esse processo contínuo. Esse limite era simbolizado por Nêmesis, deusa da medida, fatal para os desmedidos. Uma reflexão que quisesse levar em conta as con‑ tradições contemporâneas da revolta deveria procurar a sua inspiração nesta deusa”. Curiosamente, a primeira vez que a deu‑ sa apareceu sob a pena do escritor foi em um texto que antecipa em seis anos e sintetiza a orientação ética de A peste. Pela atualidade, “Exortação aos médicos da peste” foi recupe‑ rado agora em abril pela coleção Tracts, da editora francesa Gallimard. A voz que emite as prescrições não se identifica, mas poderia ser de Stephan, o latinista abandonado pelo escritor ao longo do processo de escrita, como mencionado previamente. Com menção à peste dórica narrada por Tucídides, orienta‑se aos médicos a mesma prudência que os coros das tragédias clássicas recomendavam a seus heróis. Nesse sentido, a “medida”, palavra re‑ petida em A peste – visto que é preciso a todo instante tomar “medidas” contra o flagelo – é empregada junto à deusa nessas prescrições para combater nossa desmesura: “De uma for‑ ma geral, observem a medida que é a primeira inimiga da peste e a regra natural do homem. Nêmesis não era em nada, como lhes ensina‑ ram nas escolas, a deusa da vingança, mas a da medida. E seus golpes terríveis só atingiam os homens quando eles se encontravam lançados na desordem e no desequilíbrio. A peste vem do excesso. Ela é o próprio excesso, e não pode se conter”. A modéstia apresenta‑se, então, como nos‑ sa aliada no combate à peste. Na crônica, per‑ cebemos que, em vez de um heroísmo solitá‑ rio, a população constitui um único organismo. Mesmo com a existência das formações sani‑ tárias, o narrador se recusa a adquirir um tom heroico ou a eleger salvadores. A luta, como uma tarefa de Sísifo, recomeça a cada dia e não termina em grandes vitórias. Pelo contrá‑ rio, trata‑se sempre de diminuir a amplitude da derrota. O narrador Rieux defende antes a objetividade e a honestidade no combate ao flagelo – uma objetividade por vezes tão fria quanto a própria abstração que enfrenta. Mes‑ mo ao se referir às formações sanitárias, seu testemunho é sóbrio. A decisão de lutar contra a morte é algo lógico e urgente, não extraor‑ dinário: “os que se dedicaram às formações sanitárias não tiveram um mérito tão grande em fazê‑lo, pois sabiam que era a única coisa a fazer, e não se decidir a fazê‑lo é que teria sido incrível”. Ao fim da crônica, a queda das estatísticas não é coroada por uma cena épica, mas sim‑ plesmente por dois personagens nadando lado a lado, reconhecendo o elo entre si e o Medi‑ terrâneo. É como se olhassem para algo que a cidade não conseguia ver, como o narrador declara no início: “Pode‑se apenas lamentar que tenha sido construída de costas para essa baía eque, portanto, seja impossível ver o mar. É sempre preciso ir procurá‑lo”. Conforme avançamos para o desfecho, referências ao 13 dossiê amor, seja entre amigos, seja entre amantes, expõem esse sentimento que se encontra na base da revolta. Embora o escritor reconheça que os valores de uma insurreição possam va‑ riar, haverá no fundo imagens de afeto, pois “Há sempre um momento em que nos cansa‑ mos das prisões, do trabalho e da coragem para reclamar o rosto de uma pessoa e o cora‑ ção maravilhado de ternura”. Assim, ainda que deusa da medida, Nême‑ sis é a inspiração para o terceiro ciclo de obras, que seria o do amor, com o romance O primei- ro homem, a peça Don Faust e o ensaio “O mito de Nêmesis”. Esse projeto foi interrompido pela morte precoce do escritor em janeiro de 1960, em um acidente de carro no sul da Fran‑ ça, quando viajava de Lourmarin para Paris. Nas imagens de afeto de sua vida, como a sim‑ plicidade de sua mãe, a infância pobre em Ar‑ gel, as brincadeiras nas praias mediterrâneas e as mulheres que amou, habitaria a chama à qual ele retorna ao longo de sua obra. A me‑ mória do amor na base da revolta a sustenta e a controla para que não se torne puro ódio. Embora os escritos do segundo ciclo de Ca‑ mus tenham lhe rendido críticas – como a de pregar uma “revolta castrada” ou uma “moral da cruz vermelha” –, além de etiquetas como “santo laico”, A peste permanece hoje como lu‑ gar para outras analogias que permitem circuns‑ crevê‑la em diferentes cenários. A própria obra é construída sobre várias experiências de epide‑ mias ao longo da história, em um árduo proces‑ so de quase cinco anos: “O que escrevo sobre a peste não é documental, claro, mas reuni uma documentação bastante séria, histórica e médi‑ ca, porque é possível encontrar nela ‘pretextos’”, declara em carta a Jean Grenier. Como demons‑ tra Marie‑Thérèse Blondeau em notas na edição francesa da Pléiade, Camus estudou sobre a pes‑ te que atingiu a Pádova dos Carrara; remontou ao flagelo em Milão; leu sobre a epidemia na Mesopotâmia; pesquisou sobre epidemias na China e na Argélia. Em seus manuscritos, encontramos referências a títulos como Mémoi- re sur la peste en Algérie, de Adrien Berbrugger, La défense de l’Europe contre la peste, de Adrien Proust, Une épidémie de peste en Mésopotamie en 1867, do primeiro médico do xá da Pérsia, o dou‑ tor Tholozan. Para referências médicas, Camus recorre ao chefe do departamento de Higiene da Universidade de Paris, doutor Bourges, e a sua obra La Peste: épidémiologie, bactériologie, prophylaxie, que complementa com Précis de pathologie médicale, de Besançon e Philibert. Esse retorno às pestes do passado con‑ tribui para reiterar o aspecto cíclico das epi‑ demias na história da humanidade e expor nossas diferentes reações ao longo do tempo. Diante da calamidade social em que se encon‑ travam os japoneses de Fukushima em 2010, a crônica teve um aumento de vendas no Ja‑ pão. Em recente artigo para a Folha de S.Paulo, publicado no início de abril, Silviano Santiago expõe o potencial produtivo da releitura de A peste com estudantes universitários nos anos 1960, nos Estados Unidos. E, enfim, durante a ditadura no Brasil e diante das recentes apolo‑ gias a regimes pouco democráticos, e conside‑ rando toda a desumanidade que parte da atual cacocracia que governa o país, poderíamos recuperar as reflexões não só de A peste, mas de outras obras antitotalitárias – como Calígu- la, Cartas a um amigo alemão, Estado de sítio –, na medida em que expõem a face absurda de certos discursos e condutas políticas. Ética para tEmpos dE pEstE “Chama‑se de clássico um livro que se confi‑ gura como equivalente do universo, à seme‑ lhança dos antigos talismãs”, afirma Calvino. Se A peste tem o potencial de concentrar um macrocosmo em seu microcosmo, ela oferece sobretudo um panorama da obra camusiana. Isso porque a evolução de seus escritos não se dá em linha reta, mas em forma de espiral: Camus revisita e ultrapassa suas primeiras imagens e reflexões. Quem não reparou, no início de A peste, a história de um homem que havia sido condenado à morte por ter matado um árabe? (O estrangeiro). Ou quem não leu O estrangeiro e percebeu que a anedota lida por Meursault na prisão é a base do roteiro da peça O mal-entendido? 14 Assim, na crônica de Orã encontramos o exílio e o absurdo, tema de seu primeiro ciclo de obras (1942‑44), quando a cidade mergulha nos meses sombrios de peste: “o mar próximo estava interditado e o corpo já não tinha direi‑ to às suas alegrias”. Também acompanhamos aqueles que lutam diariamente para resistir à aniquilação do flagelo, objeto de reflexão do segundo ciclo (1947‑51). E nos interlúdios de desejo e afeto entre os personagens, encontra‑ ‑se uma parcela do amor, que seria desenvolvi‑ do em seu terceiro projeto. Apesar de a leitura de obras canônicas po‑ der configurar uma finalidade em si, o resgate da crônica permite ampliar nossa percepção sobre o drama que a humanidade atravessa neste momento. Calvino também afirma que, seja por contraste, seja nos reafirmando, os clássicos nos definem. Recorremos a eles para aprender sobre quem somos e para buscar re‑ ferenciais. É como se essas obras tivessem um potencial que Mircea Eliade, em O sagrado e o profano, encontra no mito: refixar modelos para momentos de desorientação moral e nos fazer participar de um momento em que se manifestou a verdade sobre a humanidade. Daí seu potencial ontológico. Rieux afirma com fervor que o flagelo, como todos os males do mundo, “Pode servir para engrandecer alguns. No entanto, quando se vê a miséria e a dor que ela traz, é preciso ser louco, cego ou covarde para se resignar à peste”. Assim como o novo coronavírus, ela é um inimigo monótono, que exige paciência, mas também persistência e afinco. Tanto para os que estão na linha de frente do combate quanto para quem segue a quarentena, acos‑ tumar‑se com o sofrimento e a morte pode ser uma armadilha. A peste não tolera dispersão nem ignorância. O “novo” coronavírus é uma antiga novi‑ dade. O filósofo Alain Badiou destaca, no ar‑ tigo intitulado “Sobre a situação epidêmica”, que, longe de ser algo novo e incrível, estamos diante de uma consequência da nossa própria organização social: “sabemos que o mercado mundial, em conjunto com a existência de disciplina global em relação às vacinas ne‑ cessárias, produz inevitavelmente sérias e desastrosas epidemias”. Ele nos lembra que essa é na verdade a nossa segunda Sars do século, a síndrome respiratória aguda grave. Quando a primeira foi descoberta em 2003, as pesquisas preventivas sobre a doença não foram levadas adiante como deveriam. Assim também ocorre com outras doenças, como a aids, o ebola e a Mers (síndrome respiratória do Oriente Médio), que não recebem a devi‑ da atenção das autoridades responsáveis. No Brasil, estamos diante de um desprezo ainda mais grave, como ilustra o exemplo do jovem cientista Ikaro Alves de Andrade, doutorando da Universidade de Brasília (UnB), que vinha estudando o vírus e perdeu sua bolsa. Diante dos desafios que enfrentamos, o retorno à obra de Camus nos coloca em co‑ munidade para fazer frente a nossa condição trágica. Também permite redescobrir a im‑ portância de preservar princípios humanos no seio de toda sociedade. Em um momento de mentiras, negligências e negacionismo, ele nos alerta para as armadilhas do discurso po‑ lítico. Enfim, reencontramos em sua leitura, por um lado, a memória do sofrimento huma‑ no causado pelos nossos excessos através da história e, por outro, a imaginação necessária para enxergar o vírus invisível que nos ronda, num momento em que qualquer distração pode ser fatal. Em um momento de mentiras, negligências e negacionismo, Camus nos alerta para as armadilhas do discurso político 15 ivonE gEbara mostrar o infErno E prEvEr quE ElE tErá Em brEvE chamas maiorEs não significa nEcEssariamEntE ajudar aspEssoas quE já vivEm Em outros infErnos a saírEm dElEs Uma perspectiva teológica feminista dossiê pectiva que me atrevo a escrever algumas in‑ tuições a partir da teologia cristã – cujos con‑ ceitos, crenças e expressões religiosas atuais posso de certa forma explicitar, visto que é a que melhor conheço. As crenças religiosas se multiplicam hoje quase como o vírus. Bas‑ ta buscá‑las na internet e no WhatsApp para ver como empunharam suas armas para de‑ fender‑se contra o vírus causador de tantos distúrbios. Ele esvaziou templos, encontros espirituais oficiais, cursos e outras atividades. Porém, os fiéis criam devoções, correntes má‑ gicas, orações das mais diversas, cantos reli‑ giosos inspirados no vírus, novenas, bênçãos que enviam para todos os lados esperando tal‑ vez mover o coração de Deus. De repente a in‑ ternet passa a ser também um veículo “usado” por Deus para continuar Sua ação em meio ao rebanho. Tudo isso nos convida a pensar! Reflito fora do eixo oficial e por isso me per‑ mito elucubrações variadas. Sem dúvida minha perspectiva não vem corroborada pela teologia institucional, ou seja, pelas autoridades das Igre‑ jas cristãs que guardam para si a prerrogativa de serem as mais autorizadas intérpretes da tradi‑ ção bíblica e, através dela, da vontade de Deus. Em tempos de coronavírus, ficamos nos perguntando como uma frágil força invisível em contínua expan‑são pelo mundo pode mudar nos‑ sos comportamentos e nos ameaçar de mor‑ te em meio a sofrimentos físicos e psíquicos cada dia maiores. Como um vírus pode mudar a economia, a pesquisa científica, a arte, a li‑ teratura, as religiões, os hábitos, as relações entre os governos e as relações entre pessoas inclusive na própria família? Como um vírus pode provocar tanto medo de nos aproximar‑ mos das pessoas e das coisas habituais e nos fazer sentirmos mais ameaçadas e inseguras do que a habitual violência de nosso mundo? Impressiona‑nos ver esse desconhecido cujos efeitos gregários nefastos sentimos, ver sua forma “cientificamente desenhada”, aumen‑ tada milhares de vezes e mostrada nas telas da TV como se fosse um verme da Terra em forma de coroa. De fato, ele é da Terra como nós, e de certa forma nos escolheu como lugar para abrigar‑se – sem que saibamos as razões. Muitos especialistas debruçam‑se hoje para compreender algo desse fenômeno que convida ao pensamento e à ação. É nessa pers‑ 17 dossiê Constato que “nesse tempo de peste” as Igrejas cristãs estão preocupadas em oferecer serviços sobretudo de consolo e ajuda a seus fiéis. Pelos meios de comunicação, tentam manter a ligação com eles mediante liturgias, celebrações, orações e outras formas de pre‑ sença virtual. Têm igualmente oferecido su‑ porte às populações de rua e a muitas pessoas que não conseguem manter suas necessidades básicas alimentares e de higiene. Não me ate‑ rei a esses gestos humanitários, mas gostaria de pensar alguns pontos em outra direção que julgo importantes para o contexto atual. Tomo a tradição bíblica como um conjun‑ to de textos históricos e literários importantes, uma tradição que marcou muitos povos desde a Antiguidade até os dias de hoje. Extraio dela aquilo que considero próximo do bem comum, da boa convivência, do respeito possível, do cui‑ dado de uns com os outros e com o conjunto da vida do planeta neste momento. Seria mais um texto de sabedoria que um texto contendo uma “revelação divina” provinda dos céus. Isso por‑ que tomo a etimologia latina da palavra religião (religare = religação) como aposta na necessida‑ de de segurar as mãos uns/umas dos/as outros/ as para viver de outro jeito. Assim, Deus deixa de existir como ser em si mesmo, impondo Sua poderosa vontade, para se tornar o nome da força em nós e no planeta, capaz de tirar‑nos de nosso individualismo, do desejo de dominação de uns/umas pelos/as outros/as, da insensibili‑ dade diante da dor alheia, do esquecimento dos andarilhos, que hoje constituem uma multidão em busca de um espaço para viver. De repente quem faz o papel de acordar‑ ‑nos para nossa “boa” humanidade comum, para a terra que somos e para a Terra na qual habitamos é um vírus insignificante. Insigni‑ ficante, porém com uma força de contágio impressionante; insignificante, porém univer‑ salmente presente, espalhando e causando terrores, temores e lágrimas. Insignificante, porém capaz de interromper o curso ordiná‑ rio da vida ao qual nos havíamos habituado, considerando‑nos bons/boas e até melhores do que outras pessoas. Essa situação trágica me fez lembrar da história de Jó. Uma novela bíblica que faz par‑ te da literatura sapiencial. Conta a vida de um homem rico e justo que se vê de súbito atingi‑ do por inúmeros sofrimentos corporais, pela perda de seus bens, dos filhos, filhas e esposa. Nessa via dolorosa ele tenta de diferentes ma‑ neiras provar a Deus e a seus amigos o quanto é justo, fiel servidor do Altíssimo, porém injus‑ tiçado por Deus. Num crescendo de tragédias e defesas que Jó faz de si mesmo a alguns amigos, a novela vai mostrar que não é por ser justa que uma pessoa está isenta de sofrimentos e das grandes perdas provocadas pela morte. A expli‑ citação desse drama humano se dá num diálo‑ go com Deus, que desafiado pelo Demônio ten‑ ta provar, por meio dos sofrimentos infligidos a Jó, sua fidelidade para com Ele, seu Deus. Deus e o Demônio aparecem como as duas faces de uma mesma moeda – e é isso que nos impres‑ siona, porque sempre os separamos como dois princípios que se opõem. Agora, parece que reafirmamos sua proximidade e a necessidade de um para que o outro exista em nós e no mun‑ do. O novo coronavírus, que chegou sem ser es‑ perado, provoca dor e morte, mas também uma consciência da necessidade de outras relações entre nós e com o planeta. “Havia um homem na terra de Hus chama‑ do Jó: era um homem íntegro e reto, que temia a Deus e se afastava do mal. Nasceram‑lhe sete filhos e três filhas. Possuía também sete mil ovelhas, três mil camelos [...]” (Jó, 1, 1 a 3). A história segue anunciando de repente a perda de todos os bens, depois a morte das filhas e filhos e da esposa de Jó. Ele mesmo é acometido por uma violenta lepra que vai co‑ mendo todo seu corpo... Em um instante tudo parecia normal, e em outro tudo ficou confuso e desarmônico! Então, “Jó se levantou, rasgou seu manto, rapou sua cabeça, caiu por terra, inclinou‑se no chão e disse: Nu saí do ventre de minha mãe e nu voltarei para lá” (Jó 1, 20). É como se ele se rendesse à perda de tudo, porém sem deixar de reafirmar que era um justo sofredor e que o sofrimento era a condição dos seres 18 viventes. A novela, porém, nos deixa numa perplexidade ímpar porque tem um final feliz, no qual tudo é recuperado. Certamente o final provém de outro tempo e de outros/as autores/ as. Mas a ideia é que nem Deus pode evitar os sofrimentos, porque a vida os exige, mais ou menos, dependendo dos rumos que tomar. Sem dúvida o flagelo atual do coronavírus, para além das tentativas de compreendermos por que está acontecendo neste momento de nossa história comum, está nos convidando a uma solidariedade que nunca se viu, por exemplo, entre pessoas ricas e pobres. A ri‑ queza material promove a vida de alguns em detrimento da vida da maioria. E o desprezo “do pobre, do órfão e da viúva” não produz con‑ tágio mortal, mas separação real de classes. No entanto, embora esse vírus possa revelar privi‑ légios maiores no cuidado das pessoas mais ri‑ cas, que parecem ter sido as primeiras atingidas, ele está para além das classes, para além dos gêneros, para além das etnias, para além das orientações sexuais, para além das religiões – apesar de se temer sua propagação maior nos grupos mais vulneráveis. O que estou su‑ blinhando é a força desse vírus, capaz de mo‑ dificar os quadros hierárquicos e excludentes das relações humanas, capaz de despertar iniciativas de ajuda mútua, mudanças políti‑ cas e econômicas mundiais, redesenhandoa geopolítica mundial. Entretanto, o contágio do vírus não conduz necessariamente à solidariedade com quem é mais pobre, pelo fato de acreditarmos que es‑ sas pessoas têm os mesmos direitos que as ricas, mas é uma solidariedade imediata por causa do medo do número de pobres que seriam atingi‑ dos/as e da ameaça que isso representa aos/às “coitados/as” das pessoas ricas. Embora haja muitos gestos de ajuda mútua em edifícios e em bairros populares, há como uma espécie de película protetora que nos torna até certo pon‑ to invulneráveis no mais íntimo de nós. É como se a ajuda dos governos não fosse por justiça e direito, mas apenas para evitar um mal maior que tornaria o país insustentável. A televisão, a internet e os jornais mos‑ tram‑nos diariamente horrores causados pelo vírus em diversas partes do mundo. Os meios de comunicação nos invadem, dando primazia absoluta ao número de vítimas do vírus, con‑ tabilizando estatisticamente as atuais e as pos‑ síveis próximas vítimas em todas as partes do mundo. Esse excesso de informações na maio‑ ria das vezes não cria solidariedade, mas um “salve‑se quem puder” e muito medo de que estejamos vulneráveis à enfermidade. Para se contrapor ao nosso egoísmo imediato, as cenas de distribuição de alimentos a quem mora na rua e às pessoas carentes das comunidades pa‑ recem ter a função de nos lembrar que não so‑ mos tão maus quanto parecemos ser... Talvez eu esteja sendo injusta com algumas pessoas, mas é o que me ocorre como reflexão. Mostrar o inferno e prever que ele terá em breve cha‑ mas maiores não significa, à primeira vista, ajudar as pessoas que já vivem em muitos ou‑ tros infernos a saírem deles. Entretanto, essa A riqueza material promove a vida de alguns em detrimento da vida da maioria. E o desprezo “do pobre, do órfão e da viúva” não produz contágio mortal, mas separação real de classes 19 dossiê “mostração” – às vezes indecente, porque desco‑ nhece os efeitos negativos que provoca – serve para revelar o quanto há de sofrimento em nos‑ so país e o quanto há de sofrimento oculto que desconhecemos. Mostrar pode parecer até um ato correto, no sentido de torná‑los presentes como alerta importante. Porém, não necessa‑ riamente é um gesto ético eficaz, pois restaria de fato o mais importante, que é incluir as pes‑ soas nas instâncias do direito e da justiça como cidadãos da nação e do mundo. Fico me perguntando se a “mostração” de famintos, doentes, mortos, cidades infectadas até o excesso tem apenas a função de alerta da poderosa indústria da informação, agora soli‑ dária com as vítimas. Suspeito que haja razões ocultas que não nos são reveladas. De novo me vem um texto bíblico, agora do Evangelho de Lucas (Lc 10, 29 a 37), que é chamado de pará‑ bola do bom samaritano. A cena se refere a um homem ferido, caído numa estrada. Um jurista passa, vê o homem e afasta‑se dele; da mesma forma um sacerdote correndo passa por ele e não para, visto que tinha deveres a cumprir em seu templo; e por fim passa alguém, um estran‑ geiro, o samaritano, um ambulante qualquer que ajuda o caído, leva‑o a um hospital e pede que cuidem de suas feridas. Creio que a mensa‑ gem ética do Evangelho vai para além de uma “mostração”, de um voyeurismo que pode ser ineficaz. Nem sempre o que vê age em conse‑ quência com o que viu. A mensagem ética de fato, quando toca minhas/nossas entranhas, me faz enxergar no homem caído a mim mes‑ ma, me faz dizer “o que quero que me façam”. E me leva a concluir, sem pensar, que isso que eu gostaria de ter como socorro é o que devo fazer ao/à outro/a no curto e no longo prazo. Mas sei bem que essa ética não é simples como as frases que escrevo. O medo do/a ou‑ tro/a me ameaça, suas feridas e seu cheiro me repugnam... Muitas vezes sentimo‑nos impo‑ tentes e até frustrados porque não consegui‑ mos efetivamente mudar muita coisa. Há como uma deficiência que nos impede de mudar essa situação no imediato e que nos brinda com um ranço da culpa que nos habita. Há nesse mo‑ mento a distância das quarentenas, a falta de circulação, a necessária obediência às ordens médicas e governamentais, como se tudo isso se tornasse um impedimento ético para agir. Porém, na ética do Evangelho a distância entre as pessoas parece suprimida. Toca‑se nos olhos cegos, aproxima‑se de quem tem lepra, dá‑se a mão ao/às coxos/as, divide‑se a comida, parti‑ lham‑se túnicas. Dirão vocês: nesta emergência O fato é que agora não somos apenas espectadores/as das calamidades que nos mostram nas telas sobre povos distantes; somos vítimas ou possíveis vítimas do vírus cuja história acompanhamos de perto 20 estamos tentando fazer tudo isso e nos prote‑ gendo do contágio! Talvez. Mas quem provocou tudo isso agora? Um vírus... Só um vírus. O que ele está nos dizendo para além da proteção à qual temos que nos sujeitar para evitá‑lo? No fundo, desde o início de minha refle‑ xão estava com a tentação de afirmar a seme‑ lhança entre a imagem de Deus em tudo, para além e no bem e no mal, e o símbolo do co‑ ronavírus, proveniente – como nós – da Terra. Por isso lembrei‑me de Jó, da competição en‑ tre Deus e o Diabo na vida de Jó, assim como nosso bem e nosso mal disputam em nossa vida. Depois me lembrei do samaritano con‑ vidando‑nos a ser para além das hierarquias e títulos uns/umas para os/as outros/as... Na mesma linha, quero lembrar algo mais que me incomoda no que chamei de “mostra‑ ções” dos meios de comunicação. Às vezes são “mostrações” exageradas, quase indecentes dos mortos, dos doentes em hospitais, das aglome‑ rações nas comunidades e nas prisões domici‑ liares em que estamos encerrados/as. Apesar da crueza, é como se essas imagens também nos dissessem: “Façam alguma coisa, porque eles são também vocês”... O vírus nos tornou por um instante imagem e semelhança de nós mesmos/as e imagem uns/umas dos/as outros/ as, nascidos/as da Terra, terrícolas mortais. O fato é que agora não somos apenas especta‑ dores/as das calamidades que nos mostram nas telas sobre povos distantes; somos vítimas ou possíveis vítimas do vírus cuja história acompa‑ nhamos de perto. Ninguém está preservado/a de ser a próxima conquista do vírus. E essa si‑ tuação peculiar nos convida a algo mais ou me‑ nos inédito, sobretudo neste tempo de comuni‑ cação direta e instantânea. O vírus nos convida a repensar a organização de nossa vida pessoal, econômica, política, social, cultural, religiosa, como a dizer‑nos que no progresso ilimitado e seletivo que construímos estão presentes as sementes de nossa própria destruição. E aí não posso deixar de pensar no mito da Torre de Ba‑ bel (Gênesis, 11), construída para tocar o céu e onde todos os seus habitantes só podiam falar uma única língua. Algo aconteceu de repente, pois o vírus Deus Vida achou que não estava bom para a Terra e a torre caiu. Não há uma única lição religiosa ou teoló‑ gica a sublinhar e uma única ação a tomar em tempos de peste. Que cada “mortal” humano ouça com seus ouvidos e sinta com seu cora‑ ção, discuta com outros/as, e que juntos/as tomemos algumas decisões para que a vida reequilibre suas forças em nós. Isso pode ser possível se conseguirmos inventar uma cul‑ tura sustentável, uma cultura imersa nas ne‑ cessidades da comunidade da Terra, da qual somos apenas uma parte recém‑chegada. Não estamos sós... Viemos de longe fazendo nosso caminho, misturados/as ao pó da terra e ao pó das estrelas. Tem jeito de concertar a rota er‑ rada que tomamos? Conseguiremos? Aposto com tremor e temor que sim, pois, como diz o poeta Antonio Machado, “caminhante, não há caminhos, se faz caminho ao andar”. 21 ruy braga algo EstratÉgico à narrativa nEcropolítica bolsonarista comEçou a manquEjar com a chEgada da pandEmia Os limites do carisma: ética, trabalho e necropolítica dossiê por exemplo, do pleno emprego nos Estados Unidos e da reserva de mercado aos trabalha‑ dores nacionais na Hungria. Em uma situaçãocomo essa, o que fazer para assegurar alguma capilaridade popular ao projeto necropolítico? “afinidadEs ElEtivas” Até bem recentemente, a solução para a qua‑ dratura do círculo consistia em patrocinar uma agenda ultraconservadora de costumes alinhada aos anseios do fundamentalismo cristão, em especial da ascendente direita evangélica. Contudo, é bastante incerta e tor‑ tuosa essa passagem de valores reacionários para concessões materiais aos subalternos, ainda mais em um contexto econômico mar‑ cado por informalização das relações traba‑ lhistas, aumento do desemprego/subemprego e subsequente compressão dos rendimentos do trabalho derivada da agenda ultraneolibe‑ ral do ministro Paulo Guedes. Nossa hipótese é de que, até a pandemia, o alinhamento popular ao projeto bolsonaris‑ ta nascido durante a campanha presidencial de 2018 deveu‑se, em larga medida, a uma “afinidade eletiva” entre uma certa teologia neopentecostal e a “viração” típica do em‑ prego informal tal como observamos nas pe‑ riferias do país. Aqui, talvez seja conveniente uma rápida digressão sociológica. Desde que a expressão “afinidades eletivas” foi alçada por Max Weber à posição de conceito clássico da sociologia, a relação entre doutrinas religiosas e diferentes ethos econômicos deixou de ocu‑ par um espaço central na atividade investiga‑ tiva dos sociólogos. Ao menos quando pensamos nos víncu‑ los entre interesses de classe – sobretudo das classes subalternas, e visões sociais de mun‑ do vertebradas por dogmas transcendentes –, reflexões a respeito das tais afinidades des‑ locaram‑se para um plano subsidiário, refu‑ giando‑se, quando muito, em áreas bastante especializadas do campo científico. Em larga mirada, a preocupação com o tema deslocou‑ ‑se para a historiografia, como bem demons‑ tra, por exemplo, A formação da classe ope- A aposta deste artigo é que a atual pandemia, ao esgarçar o tecido so‑cial, fatalmente mudará os rumos da política brasileira. Resta saber para onde. Ainda que opaca, uma nova agenda econômica e política está sendo delineada nes‑ te exato momento. E, se não estamos diante de uma alteração passageira da cena política na‑ cional, quais seriam suas determinações socio‑ lógicas mais profundas? Como se deslocarão as classes, sobretudo os trabalhadores precários mais expostos aos riscos sanitários e aos efei‑ tos economicamente deletérios da pandemia? Afinal, qual é o impacto previsível da atual crise sobre o projeto político bolsonarista? Em primeiro lugar é necessário lembrar que o governo Bolsonaro representa um pro‑ jeto necropolítico de poder cujo propósito con‑ siste em mobilizar permanentemente parte da sociedade contra um inimigo interno desuma‑ nizado e, portanto, passível de eliminação. Até o advento da Covid‑19, o papel desse “outro desumanizado” foi ocupado, com diferen‑ tes ênfases e em diferentes contextos, pelos “vagabundos” e “bandidos”, grosseiramente identificados com os militantes dos mais di‑ ferentes matizes de esquerda, em especial os sindicalistas e os corruptos ligados por laços inconfessáveis ao establishment político nacio‑ nal. A conclusão é cristalina: para “salvar a Na‑ ção” de seus inimigos internos, é necessário pôr um fim à democracia tal como desenhada pela Constituição de 1988 e à sua pletora de di‑ reitos humanos e sociais, instrumentalizados por vagabundos e bandidos. O projeto em curso de subversão da de‑ mocracia brasileira alinhou‑se, até o adven‑ to do coronavírus, a um conjunto de outras experiências internacionais, principalmente a estadunidense e a húngara, que pipocaram após a crise de 2008. Porém, com uma notável diferença: ao contrário dos regimes liderados por Donald Trump ou Viktor Orbán, o modelo brasileiro adotou uma estratégia econômica ultraneoliberalizante cujos cortes de gastos públicos impedem, por parte do bolsonarismo, concessões aos subalternos, como são os casos, 23 dossiê rária inglesa (1963), trabalho mais afamado de E. P. Thompson. No caso brasileiro, se os fundamentos econômicos da religiosidade popular deixaram relativamente de figurar entre as preocupações centrais de nossas pesquisas, faz falta olharmos para o espírito popular em busca de alguma iluminação para as cores sombrias que matizam a crise atual. Assim, algo que sempre chamou minha atenção na maneira como Weber construiu seu conceito é que a relação de afinidade ele‑ tiva intermediava estruturas sociais – notoria‑ mente a ascese protestante e a inclinação para a acumulação de capital –, sem que isso criasse uma nova substância social, uma nova sínte‑ se. Ou seja, mesmo que a interação produzisse consequências significativas, não ocorria ne‑ nhuma modificação notável na constituição dos componentes iniciais. O protestantismo, assim como o capitalismo, conservou sua pró‑ pria legalidade, evoluindo historicamente de forma mais ou menos autônoma um em rela‑ ção ao outro. Daí o próprio Weber lembrar‑se de nos alertar que a afinidade entre a ética protestante e o espírito do capitalismo se per‑ deu nos tempos da acumulação originária de capital, restando quase nada nos dias atuais daquele “sóbrio capitalismo” sintetizado nas prédicas de Benjamin Franklin. Ainda assim, exatamente um século após a edição definitiva de seu trabalho mais afama‑ do, outra relação de afinidade eletiva, aparen‑ tada à estudada pelo sociólogo de Heidelberg, parece ter se enraizado na sociedade brasileira com a força de um preconceito popular: a dou- trina neopentecostal da prosperidade e o espírito do empreendedorismo popular. Aqui, coloca‑se o problema de buscar compreender em que medida a atração entre uma crença religiosa e uma ética profissional influenciou o desen‑ volvimento dessa cultura material que, na au‑ sência de melhor expressão, chamaremos de neoliberalismo. O crescimento do movimento neopen‑ tecostal no país é largamente estudado pela bibliografia especializada. Ricardo Mariano e Ronaldo de Almeida, por exemplo, são dois incontornáveis experts no assunto. Também não é segredo que o aumento expressivo das hostes evangélicas ocorreu naquelas regiões e grupos abandonados por décadas de elitização do catolicismo. Também é compreensível que a hipertrofia das favelas e das comunidades periféricas em condições notoriamente pre‑ cárias tenha fortalecido entre os subalternos a busca por promessas de segurança material e consolo espiritual. O que permanece ainda um tanto opaco é por que uma teologia que advoga o direito ao bem‑estar físico do crente se aproximou de forma tão íntima das formas mais ou menos tradicionais de “viração”, isto é, o empreendedorismo popular muito comu‑ mente verificado na economia informal, afas‑ tando‑se, em contrapartida, da gramática dos direitos sociais. Uma hipótese plausível arriscaria combi‑ nar duas ordens de razões: uma de natureza mais objetiva, digamos, isto é, a precarização das condições de reprodução dos trabalhadores pobres, com a consequente mitigação da pro‑ messa dos direitos, e outra um pouco mais sub‑ jetiva, ou seja, o pragmatismo popular capaz de reconhecer na doutrina neopentecostal uma poderosa aliada na interpretação de como opera o neoliberalismo. Assim, a responsabi‑ lidade financeira e o fortalecimento individual enfatizados pela teologia da prosperidade te‑ riam condições de aderir a um contexto geral marcado pelo avanço da insegurança laboral, da regressão dos direitos sociais e da mercan‑ tilização das cidades e das comunidades. Quando a perspectiva do progresso cole‑ tivo via fortalecimento de direitos universais desapareceu do horizonte, sobretudo dos tra‑ balhadores jovens, como tive oportunidade de observar em 2019 ao participar de uma pesqui‑ sa sobre trabalho e sofrimento psíquico, e a competição por oportunidades de negócio na informalidade aumentou devido ao aumento do desemprego, a fé em um Deus que recom‑ pensa os esforços individuais transformou‑se em aliado poderoso na labuta cotidiana.Se imaginar um futuro mais acolhedor tendo em vista, por exemplo, o acesso à aposentadoria 24 tornou‑se um desejo praticamente irrealizável para 40 milhões de trabalhadores informais, a mensagem trazida pelas Igrejas neopentecos‑ tais parece a única esperança: “Deus quer ver seu povo seguro e próspero”. Para tanto, são necessários o dízimo e a confissão positiva. Para alguém desesperança‑ do em relação às soluções coletivas mais tradi‑ cionais, como os partidos políticos e/ou os sin‑ dicatos, por exemplo, trata‑se de um caminho crível para o progresso material. Além de um motivo poderoso de subjetivação da disciplina do trabalho. A fim de demonstrar as bênçãos de Deus sobre o crente, a ênfase no dízimo transforma‑se em força motriz privilegiada para a prosperidade econômica e consequen‑ temente para a disciplinarização do corpo do trabalhador. Quando pesquisamos o trabalho informal, tais práticas implicam jornadas em geral muito longas, a convivência com a vio‑ lência social e com a irregularidade de rendi‑ mentos, os incontáveis deslocamentos pela cidade e quadros críticos de fadiga crônica. Em condições tão extremas, só mesmo a fé no cumprimento da promessa divina da prosperi‑ dade econômica é capaz de sustentar a volição do trabalhador pobre. Até o surgimento da praga bíblica do coro‑ navírus, a quadratura do círculo encontrada pelo bolsonarismo parecia estar funcionando relativamente bem. Afinal, o apoio daque‑ les que vivem com renda entre dois e cinco salários mínimos manteve‑se firme, mesmo diante do crescimento econômico pífio colhi‑ do pelo governo em 2019. As principais lide‑ ranças evangélicas seguem firmes no barco bolsonarista, endossando as mais destrambe‑ lhadas atitudes do presidente autoritário. E a contraposição estimulada pelas milícias vir‑ tuais entre o “vagabundo” e o “pai de família” continuava alimentando ressentimentos no meio de amigos e parentes. prEssionando o carisma No entanto, algo estratégico à narrativa necro‑ política começou a manquejar com a chegada da pandemia. Ao fim e ao cabo, o projeto au‑ toritário de Bolsonaro depende de uma habili‑ dade importante: a fabricação de um inimigo interno (o petista corrupto, o vagabundo da ONG, o favelado bandido, a “feminazi” etc.) escolhido conforme as conveniências do mo‑ mento para mobilizar suas hostes reacionárias. Daí o verdadeiro curto‑circuito que estamos observando no governo. Afinal, o que fazer quando o inimigo interpela a humanidade como um todo, e não apenas parte dela, aque‑ la mais desavisada e susceptível às fake news? Como sustentar um projeto necropolítico quan‑ do estamos todos no mesmo barco ou quando o inimigo deixa de ser “desumanizável” por já não ser humano? Até o momento, a estratégia bolsonarista tem se agarrado encarniçadamente ao modelo necropolítico, ou seja, tem buscado reinventar o inimigo interno. A Covid‑19 não passaria de uma “gripezinha”. Na verdade, o perigo seria a aliança entre governadores, presidente do Congresso, juízes do Supremo e a rede Glo‑ bo, que conspiram contra o governo federal por apoiarem as medidas de isolamento so‑ cial. O argumento negacionista pode flutuar um pouco, às vezes admitindo certos riscos trazidos pela pandemia para os idosos. Mas o verdadeiro perigo seria a ardilosa conspiração contra o “mito”. O protestantismo, assim como o capitalismo, conservou sua própria legalidade, evoluindo historicamente de forma mais ou menos autônoma um em relação ao outro 25 dossiê O que chama a atenção é que a estratégia bolsonarista logrou até certo ponto reinventar a polarização necropolítica, levando pessoas às ruas em carreatas a fim protestar contra o iso‑ lamento social. Por um lado, temos os alinha‑ dos ao discurso presidencial, segundo o qual o sistema político tradicional e a rede Globo se‑ meiam a morte econômica da população pobre ao advogar medidas de isolamento que invia‑ bilizam os pequenos negócios e a economia informal. Por outro lado, temos os perfilados com a Organização Mundial de Saúde (OMS), esgrimindo gráficos epidemiológicos em de‑ fesa da testagem em massa e do isolamento social como a maneira mais eficiente de evitar milhares de mortes físicas. O negacionismo bolsonarista elegeu até seu campeão na ba‑ talha contra o vírus: a cloroquina e a hidroxi‑ cloroquina. Ou seja, a guerra entre “bolsomi‑ nions” e “petralhas” foi substituída por uma furiosa batalha paneleira entre “cloroquiners” e “quarenteners”. E a necropolítica agora ali‑ menta uma escolha de Sofia: o que é preferível, a morte econômica ou a morte física? Ao mesmo tempo que trata de reinventar sua estratégia em torno da mobilização per‑ manente contra o inimigo interno, o governo federal tenta se livrar do ônus da crise econô‑ mica vindoura, transferindo‑o para o colo de prefeitos e governadores que adotaram medi‑ das isolacionistas. Ou seja, busca se livrar da culpa pela crise social que se avizinha, tentan‑ do assumir a capa do defensor do emprego e da renda dos trabalhadores precários. Assim, Bol‑ sonaro imagina localizar‑se confortavelmente no hipotético cenário da contenção do vírus so‑ mada a uma crise econômica branda. Poderia então surgir como único líder de um país rele‑ vante a afirmar que o remédio do isolamento era mais amargo que a cura da pandemia. Há alguma chance de o ardil político bol‑ sonarista alcançar êxito? Grande parte da equação montada pelo “gabinete do ódio” pre‑ sidencial depende da resiliência das atuais ba‑ ses populares do governo. O cálculo seria mais ou menos o seguinte: se chegar ao fim da crise contando ainda com o apoio de cerca de 20% do eleitorado, Bolsonaro termina o mandato ainda com chances de figurar em 2022 entre os dois candidatos nas urnas do segundo tur‑ no. E o medo do retorno da esquerda ao poder lhe asseguraria um novo mandato. Trata‑se de uma aposta altamente arriscada, pois subsu‑ mida aos humores populares em um momento de crise social. Aqui, vale lembrar que nos re‑ ferimos basicamente aos evangélicos, que em 2018 garantiram ao candidato ultradireitista uma dianteira de mais de 10 milhões de votos sobre Fernando Haddad. No entanto, como bem nos lembra Max We‑ ber em sua célebre sociologia política, quando a fé no cumprimento da promessa divina que Como bem nos lembra Max Weber em sua célebre sociologia política, quando a fé no cumprimento da promessa divina que sustenta a adesão do crente ao líder carismático vê-se abalada pela fragilidade das provas da graça, inicia-se um interregno reflexivo que usualmente progride na direção do abandono do chefe 26 sustenta a adesão do crente ao líder carismá‑ tico vê‑se abalada pela fragilidade das provas da graça, inicia‑se um interregno reflexivo que usualmente progride na direção do abandono do chefe. Afinal, a lealdade do crente ao supos‑ to escolhido por Deus nunca é incondicional e pode avançar na direção de um divórcio liti‑ gioso. Se o desemprego aumentar ainda mais e, por consequência, os subempregos explodirem em número, deteriorando as condições de vida e de trabalho dos mais pobres, é bem possível que testemunhemos uma reviravolta na rela‑ ção de afinidade eletiva entre a ética neopente‑ costal da prosperidade e o empreendedorismo econômico plebeu que, até o momento, favore‑ ceu a adesão de setores populares ao carisma de Jair Messias Bolsonaro. O presidente ultradireitista apostou em uma crise de saúde pública mais ou menos controlada pelos governos estaduais e muni‑ cipais, seguida por uma recuperação econô‑ mica rápida nos próximos anos como forma de assegurar a popularidade de seu projeto autoritário. Para tanto, conta com alguns trunfos importantes, como o pagamento do auxílio emergencial de 600 a 1.200 reais aos trabalhadores informais. Não resta dúvida de que, num primeiro momento, o governo será beneficiado pelos pagamentos emer‑ genciais. Todavia, não está claro que efeito político de médio prazo a experiência popu‑ lar em relação à rendacidadã teria sobre a massa precarizada de quase 90 milhões de pessoas que se inscreveram no programa ape‑ nas até o fechamento desta edição, no mês de abril. Afinal, o ultraneoliberalismo de Paulo Guedes preconizou sistematicamente o des‑ manche de direitos sociais protetivos. E seu êxito foi percebido por muitos. Em 2019, quando participei de uma pes‑ quisa sobre trabalho e sofrimento psíquico, tive a oportunidade de verificar que muitos jovens entrantes no mercado de trabalho informal nem pensavam em se aposentar algum dia. A maior parte nem ao menos mi‑ rava um emprego com carteira de trabalho. Esses jovens consideravam a proteção social excessivamente distante de suas possibilida‑ des, afirmando até com certo orgulho que não precisavam receber “favores” de governo ne‑ nhum. Quando indagados sobre o futuro, es‑ ses jovens professavam sua fé na providência divina: “Deus proverá meu sustento”. Não é difícil identificar uma ética influenciada pela teologia da prosperidade vertebrando a visão social de mundo desses jovens. No entanto, como conciliar este ethos la‑ boral com a necessidade de acessar uma po‑ lítica pública emergencial desenhada para enfrentar o achatamento dos rendimentos dos informais causado por medidas de isola‑ mento social? Ou como mitigar os riscos da pandemia quando os trabalhadores precários estão entre os grupos mais expostos à disse‑ minação do vírus? É pouco crível o cenário futuro traçado pelo governo ultradireitista, apoiado em uma pandemia controlada segui‑ da por rápida recuperação econômica. Resta saber como as bases populares do projeto au‑ toritário reagirão quando perceberem que, ao contrário do que dizem o ministro da Econo‑ mia e os pastores televangelistas, a ação do Estado será cada dia mais importante para assegurar a subsistência dos trabalhadores pobres em meio à pandemia. Aparentemente, o apoio das comunidades periféricas às medidas de isolamento social esboça os contornos da mudança no humor popular. O bolsonarismo pode estar prestes a descobrir que, mesmo em sua versão neolibe‑ ral, a teologia da prosperidade deve ser capaz de agasalhar aqueles que aderirem a ela. E que, ao fim e ao cabo, o projeto necropolítico levado adiante pela “familícia”, com ou sem distribui‑ ção massiva de cloroquina e hidroxicloroquina, contradiz o amparo espiritual e a prosperida‑ de material que o crente busca nessa religião. Afinal, o bolsonarismo não é uma nova subs‑ tância social criada pelas afinidades eletivas existentes entre a teologia da prosperidade e o empreendedorismo popular. Na realidade, tra‑ ta‑se apenas de outro falso ídolo com a cabeça de ouro, o peito de prata, as pernas de ferro e os pés de barro. 27 christian ingo lEnz dunkEr a alEgoria lacaniana da pEstE convoca dEtErminaçõEs mÉdicas, sanitárias E Econômicas à luz da ciência, mas dEsEncadEia conturbados procEssos Éticos, políticos E morais A ética da psicanálise e a peste generalizada dossiê eram nomeadas de As Benévolas para evitar que se pronunciasse o nome delas, por medo de que isso atraísse o castigo e a cólera. A ironia final sugere que, punida pela Nê‑ mesis, ou seja, como se fosse uma deusa, a peste seria devolvida para sua casa em passa‑ gem de “primeira classe”, ou seja, de fonte de miséria e infortúnio a psicanálise poderia se inverter em passatempo luxuoso e rico, per‑ dendo toda sua “virulência”. Isso se ajusta à tônica repetitiva dos comentários de Lacan contra o anti‑intelectualismo e o conformis‑ mo das Sociedades de Psicanálise, contra o “carreirismo” dos candidatos a psicanalistas e contra os compromissos ideológicos que os psicanalistas deveriam evitar como ideais ilusivos da modernidade, a saber: o ideal do amor humano concluído, o ideal da autenti‑ cidade e o ideal da não‑dependência. É com a crítica desses três ideais que Lacan abre seu Seminário sobre a ética da psicanálise, quatro anos depois. Um ano antes, em seu texto mais importante sobre o tratamento, chamado A direção do tratamento e os princípios de seu po- der, Lacan afirmava que estava por se formular uma ética da psicanálise que pusesse em sua cúspide a questão do desejo. A peste é uma alegoria precisa para os pro‑ pósitos de Lacan, por se colocar exatamente na encruzilhada entre os dois mundos dos quais emerge a psicanálise como discurso, como clínica e como ética. A peste é ao mes‑ mo tempo um fenômeno natural, cuja gênese pode ser estudada pela medicina e pela bio‑ logia, a partir de seus vetores e de sua etiolo‑ gia, e um acontecimento social, que envolve a interpretação de afetos, como o medo e a vingança e a mobilização de uma atitude ética. Para Lacan, a psicanálise é filha da moderni‑ dade, da ciência e do sujeito cartesiano com seu espírito das Luzes, mas sua ética pode ser reconstruída a partir das tragédias gregas, da Ética a Nicômaco de Aristóteles e do amor cor‑ tês, essa figura da aurora renascentista. Não é por outro motivo que ele dirá, na mesma fra‑ se, que o “sujeito sobre quem operamos em psicanálise só pode ser o sujeito da ciência” e que “por nossa posição de sujeito somos sem‑ Em uma conferência feita em Viena, em 1955, Jacques Lacan afirmou que teria ouvido da boca de Carl Gustav Jung que Sigmund Freud, quando chegava ao porto estadunidense de Nova York para as célebres conferências na Universidade de Clark, teria declarado: “eles não sabem que lhes estamos trazendo a peste”. Ao que tudo indica, a frase não teria sido exatamente essa, conforme o Dicionário de psicanálise (Zahar, 1998), mas mesmo assim ela parece conden‑ sar a ideia de que a psicanálise seria uma prá‑ tica subversiva e crítica. Menos do que uma inexatidão histórica, é possível que o mito da psicanálise como peste, que se infiltra na cul‑ tura produzindo desordem e revelação de suas verdades intestinas, tenha sido a expressão do desejo de Lacan e funcione como uma espécie de síntese de seu ensino. Se essa hipótese é razoável, seria preciso descobrir por que a alegoria da peste atraiu La‑ can. Examinando o contexto exato de sua apari‑ ção, três outras imagens circundam o enuncia‑ do: a estátua da Liberdade, que “ilumina o uni‑ verso”; a “arrogância, cuja antífrase e perfídia” ameaçam seu brilho; e a vingança (Nêmesis), que poderia fazer Freud voltar para a Europa em “passagem de primeira classe” (Escritos, p. 404). Temos aqui o movimento característico da obra lacaniana, que se inscreve na herança do Iluminismo, da razão e da universalidade, mas que se depara, em um momento trágico, com uma espécie de exagero de confiança, o que a torna arrogante e exposta crescentemen‑ te à perfídia (intriga) e ao temor (antífrase). A figura retórica da antífrase não indica ape‑ nas ironia ou sarcasmo, mas uma inversão se‑ gundo a qual, por exemplo, o pior pode emergir do melhor. Quando Dom João rebatiza o cabo das Tormentas como cabo da Boa Esperança, ele faz uma antífrase. Quando Eurípedes batiza sua peça sobre as três Fúrias de Eumênides, ou seja, As Benévolas, ele faz uma antífrase. Lem‑ bremos que Tisífone (Castigo), Megera (Ran‑ cor) e Alecto (Inominável) eram três Erínias, ou seja, elas puniam os crimes humanos, ao passo que Nêmesis, a deusa mencionada por Lacan, punia apenas os deuses. Ora, as Fúrias 29 dossiê pre responsáveis” (Escritos, p. 873), ou seja, um aparente paradoxo, porque se poderia dizer que o sujeito da ciência e o discurso que dela emana, enquanto qualificação apurada da razão, pede apenas que os sujeitos “obedeçam”. Mas não é só isso. Segundo o argumento de Lacan, é pre‑ ciso responsabilidade pela própria posição de sujeito, e responsabilidade é uma noção ético‑ ‑jurídica, e não apenas cognitivo‑científica. Percebe‑se assim como a alegoria lacania‑ na da peste dialoga com o momento atual de generalização da peste, figurada pela pande‑ mia do novo coronavírus. Ela convoca deter‑ minações médicas, sanitárias e econômicas à luz da ciência, mas desencadeia conturbados processos éticos,
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