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CULT_257_FINAL

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ano 23 • maio 2020 • edição 257 • r$ 21,50 • revistacult.com.br 
Ética 
em 
tempos 
de 
peste
Ética 
em 
tempos 
de 
peste
Edição extraordinária
Pela primeira vez em 23 anos de existência, 
a Revista Cult não será distribuída fisicamente 
e estará disponível exclusivamente na 
plataforma digital. O mercado editorial, como 
vocês sabem, passa por transformações há 
muito tempo e a tragédia da pandemia só 
ampliou uma dificuldade já imensa. Existe 
uma saída que ainda não é visível, mas é 
sentida. Existe uma saída porque a gente quer 
que exista e estamos comprometidos a 
encontrá-la. Nesse período de novas reflexões 
e tantos mistérios, organizamos um dossiê 
que reúne pensadores e pensadoras brilhantes, 
enormes, que prepararam artigos originais 
sobre uma questão essencial na atualidade: 
“ética em tempos de peste”.
Os textos partem de várias linhas de pesquisa 
que, juntas, compõem um documento 
para ser lido hoje e no futuro. É para ser 
consultado e relembrado porque percorre com 
sabedoria e detalhes precisos a convulsão 
social e ética deste ano que parece inaugurar 
o fim do mundo como o conhecemos.
Agradeço à generosidade de todos e todas que 
contribuíram com esta edição tão especial.
Boa leitura!
Daysi Bregantini
daysi@revistacult.com.br
ISSN 1414707 ‑6 Nº 257
maIo 2020 aNo 23
Editora E dirEtora 
rEsponsávEl Daysi Bregantini 
dirEtora dE contEúdo 
Fernanda Paola dirEtora 
dE artE Fernanda Ficher 
assistEntE dE Edição Amanda 
Massuela rEvisão Bárbara 
Prince e Cristina Yamazaki 
projEto gráfico 
Fernanda Ficher 
dEpartamEnto dE 
markEting Reinaldo Calazans 
marketing@revistacult.com.br 
dEpartamEnto financEiro 
Arthur Chagas financeiro@
revistacult.com.br sugEstõEs 
dE pauta redacao@revistacult.
com.br cartas cartas@
revistacult.com.br para 
assinar assine@revistacult.
com.br 
para anunciar 
fernanda@revistacult.com.br 
CULT – REVISTa BRaSILEIRa DE 
CULTURa: Praça Santo Agostinho, 
70, 10º andar / Paraíso 
São Paulo ‑SP / CEP 01533 ‑070 
Tel.: 11 3385 3385 • 11 9 9998 9728 
whatsapp
REVISTaCULT.Com.BR 
CULTLoja.Com.BR
 revistacult revistacult 
 cultrevista
A Revista Cult é uma publicação 
mensal da Editora Bregantini.
A Cult não se responsabiliza pelas 
ideias e conceitos expressos nos 
artigos assinados. É proibida 
a reprodução total ou parcial desta 
publicação sem prévia autorização. 
As edições antigas da Revista Cult 
são vendidas pelo preço de capa 
da edição atual.
F I LI A DA À
colaboraram nesta edição
aISLaN CamaRgo maCIERa é doutor em Letras pela USP e membro 
do grupo de pesquisa Literatura Italiana Traduzida (USP/UFSC) 
aLVaRo BIaNChI é doutor em Ciências Sociais pela Unicamp e professor 
livre‑docente da mesma instituição. Coordena o Laboratório de Pensamento 
Político (Pepol/Unicamp) e dirige o Instituto de Filosofia e Ciências Humanas 
da Unicamp. 
CaRLa RoDRIgUES é doutora em Filosofia pela PUC-Rio, professora da UFRJ 
e pesquisadora do Programa de Pós‑Graduação em Filosofia (IFCS/UFRJ)
ChRISTIaN INgo LENz DUNkER é psicanalista, doutor em Psicologia 
Experimental pela USP e professor titular da mesma instituição, onde coordena 
o Laboratório de Teoria Social, Filosofia e Psicanálise.
ERNaNI ChaVES é doutor em Filosofia pela USP e professor titular da UFPA. 
Membro do Nietzsche‑Gesellschaft (Naumburg/Alemanha) e do GT Nietzsche 
da Associação Nacional de Pós‑Graduação em Filosofia (Anpof), é um dos editores 
da revista Estudos Nietzsche (UFES).
FREI BETTo é frade dominicano e escritor, autor de 68 livros editados no Brasil 
e no exterior. Estudou Jornalismo, Antropologia, Filosofia e Teologia.
IVoNE gEBaRa é escritora e teóloga, doutora em Filosofia pela PUC-SP 
e em Ciências Religiosas pela Universidade Católica de Lovânia, na Bélgica. 
maRCIo SoTELo FELIppE é advogado e mestre em Filosofia e Teoria Geral do 
Direito pela USP. Foi Procurador‑Geral do Estado de São Paulo entre 1995 e 2000. 
pEDRo aUgUSTo gRaVaTá NICoLI é doutor em Direito pela UFMG 
e professor adjunto da mesma instituição. Membro do corpo permanente 
de professores do Programa de Pós‑Graduação em Direito da UFMG.
RaphaEL LUIz DE aRaújo é doutor em Letras Modernas pela USP e tradutor.
REgINa STELa CoRRêa VIEIRa é doutora em Direito pela USP e professora 
da Unoesc. Membro do Grupo de Pesquisa Trabalho e Capital (GPTC-USP) 
e do Núcleo Direito e Democracia do Cebrap.
RENaN QUINaLha é advogado, doutor em Relações Internacionais pela 
USP e professor da Unifesp. Membro da Comissão de Diversidade Sexual da OAB/SP 
e presidente do Conselho de Administração do Núcleo de Preservação 
da Memória Política. 
RUy BRaga é doutor em Ciências Sociais pela Unicamp, professor titular 
da USP e chefe do Departamento de Sociologia da Faculdade de Filosofia, Letras 
e Ciências Humanas da mesma instituição. 
SILVaNa DE SoUza RamoS é doutora em Filosofia pela USP e professora titular 
da mesma instituição. Dirige o Grupo de Estudos de Política e Subjetividades (USP) 
e edita os Cadernos espinosanos (USP).
SUELy aIRES é doutora em Filosofia da Psicanálise pela Unicamp e professora 
adjunta da UFBA. Membro do Colégio de Psicanálise da Bahia.
TákI aThaNáSSIoS CoRDáS é doutor em Medicina pela USP e professor 
colaborador do Departamento de Psiquiatria da mesma instituição. 
TaLES aB'SáBER é psicanalista, doutor em Psicologia Clínica pela USP e professor 
da Unifesp. Membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae. 
TaRSo DE mELo é escritor e advogado, doutor em Filosofia do Direito pela USP.
sumário
6 A revolta de 
Albert Camus 
contra a peste
por Raphael 
Luiz de Araújo 
22 Os limites do 
carisma: ética, 
trabalho e 
necropolítica
por Ruy Braga
16 Uma 
perspectiva 
teológica 
feminista
por Ivone Gebara
28 A ética da 
psicanálise 
e a peste 
generalizada
por Christian Ingo 
Lenz Dunker
32 A aceleração 
da história 
e o vírus veloz
por Tales Ab’Sáber
50 Sobreviver, 
mais uma vez!
por Ernani Chaves
44 Coreia do Sul, 
Brasil... ou o pior
por Carla Rodrigues e Suely Aires
56 Pandemia: 
a antítese 
entre sociedade 
e mercado
por Marcio Sotelo Felippe
62 O despotismo 
delivery 
do capital
por Tarso de Melo
70 Maquiavel 
demoníaco
por Alvaro Bianchi
66 “Arbeit 
Macht Frei”: 
Brasil, 2020
por Aislan 
Camargo Maciera
74 Cuidado 
em surto: da 
crise à ética
por Pedro Augusto 
Gravatá Nicoli e Regina 
Stela Corrêa Vieira
78 Desafios à 
democracia
por Renan Quinalha
92 Fragmento 
de um diário
por Silvana 
de Souza Ramos
82 A economia 
deve esperar
por Táki Athanássios Cordás
98 A pandemia 
e suas 
implicações 
éticas
por Frei Betto
raphaEl luiz dE araújo
diantE dos dEsafios quE EnfrEntamos, o rEtorno à obra dE 
camus nos coloca Em comunidadE para fazEr frEntE a nossa 
condição trágica
A revolta de 
Albert Camus 
contra a peste 
dossiê
Em Por que ler os clássicos?, Italo Cal‑vino afirma que “Um clássico é um livro que nunca terminou de dizer aquilo que tinha a dizer”. Atual‑
mente, vale complementar que alguns são 
mais lidos em certos momentos históricos que 
outros. Na França, por exemplo, Paris é uma 
festa (1964), de Ernest Hemingway, adquiriu 
um súbito aumento de público após os aten‑
tados terroristas do Bataclan de novembro 
de 2015. Algo semelhante ocorreu com Notre-
-Dame de Paris (1831), de Victor Hugo, após o 
incêndio na catedral mais famosa do país no 
ano passado. 
Com o surto do novo coronavírus, chegou 
a vez de A peste (1947), de Albert Camus, vol‑
tar ao centro das discussões, com o aumento 
de suas vendas em alguns países nos últimos 
meses. As coincidências temáticas do enredo 
com a atual pandemia, bem como suas refle‑
xões sobre a condição humana e a resistência 
ao totalitarismo político, são alguns dos pos‑
síveis fatores que reforçam a adesão atual ao 
livro. Além de ser uma das grandes obras lite‑
rárias do século 20, a crônica sintetiza o legado 
ético de um escritor famoso por ter conciliado 
em muitos aspectos conduta de vida e pensa‑
mento, à maneirade alguns filósofos da Grécia 
Antiga. Aventurando‑se pelas vias do romance, 
Camus nos oferece uma metonímia da sua obra, 
inspirada em sua juventude na Argélia, análo‑
ga a sua experiência durante a Ocupação alemã 
na França e nutrida por reflexões presentes em 
seus principais ensaios filosóficos, O mito de Sí-
sifo (1942) e O homem revoltado (1951).
A leitura da peste que acomete a cidade 
de Orã durante dez meses permite identificar 
imagens e reflexões que ressoam hoje. Em 
uma cidade sitiada, separados daqueles que 
amam, também os “prisioneiros da peste” vi‑
veram o exílio em sua própria terra. Nesse sen‑
tido, a obra pode nos servir de companhia em 
momentos de solidão e espera de um futuro 
incerto. É sabido que o próprio Camus já ha‑
via escrito sobre o sentimento absurdo que a 
separação e o isolamento podem despertar em 
nós. Suas reflexões de O mito de Sísifo indagam 
justamente sobre como reagir ante a nossa an‑
gústia diante da morte e da indiferença do uni‑
verso que habitamos. 
Mas tal sentimento não se limita ao plano 
existencial da questão. Redigida em parte du‑
rante os anos em que Camus editou o Combat, 
jornal da Resistência Francesa, a obra carrega 
um plano de fundo histórico‑social que permi‑
te a construção de analogias com o que ocorria 
na época, no combate à “peste marrom” na‑
zista. Relida hoje, além de crônica de nossa 
insurreição contra a arbitrariedade da morte, 
ela também remete à luta contra a opressão, 
7
dossiê
a injustiça e o autoritarismo que ultrapassam 
seu contexto de publicação. Se o vírus que nos 
atinge tem algo de arbitrário, as circunstân‑
cias em que nos ameaça depende de atitudes 
humanas. Como pontua Jeanyves Guérin em 
Albert Camus: littérature et politique, “A metá‑
fora da doença contagiosa mostra a progressão 
fulminante do mal”. 
A atual crise global nos força a encarar 
nossa condição diante da morte coletiva e da 
negligência de alguns líderes mundiais que 
banalizam o sofrimento humano. No momen‑
to em que muitos estão fadados ao isolamen‑
to e à inação, enquanto profissionais das áreas 
tidas como essenciais estão nas ruas, Camus 
nos convida a descobrir o que nos liga ao mun‑
do e aos seres. Como expresso em um dos 
parônimos mais representativos de sua obra, 
em tempos de quarentena trata‑se de apren‑
der a ser solitário sem deixar de ser solidário.
a pEstE absurda
A história da onda epidêmica que atinge a ci‑
dade argelina de Orã ocorre durante dez me‑
ses de um ano indeterminado da década de 
1940. A narrativa é dividida em cinco partes 
que retratam seu início, ápice e queda. A se‑
quência dos acontecimentos segue, assim, 
uma curva semelhante à de projeções de con‑
taminados e mortos que tentamos achatar ao 
redor do mundo neste momento. Ao longo da 
crônica, também assistimos à história de pes‑
soas que se isolam em casa, que combatem a 
doença e que morrem aos milhares.
Se a princípio o foco de nossa pandemia 
foram morcegos, também é um pequeno ma‑
mífero que anuncia a doença no início, após o 
narrador nos apresentar a cidade: ratos saem 
aos montes às ruas para morrer e transmitir, 
por meio de suas pulgas, a peste bubônica à 
população. A primeira vítima fatal com quem 
ele depara é um cidadão comum, o zelador 
Michel, que é tratado sem sucesso pelo dou‑
tor Bernard Rieux. Em seguida, os casos se 
espalham rapidamente pela cidade. Na linha 
de frente do combate à doença, ele então se 
reúne com o prefeito e o médico Jean Castel. 
Anuncia‑se que medidas precisam ser toma‑
das, mas nesse momento há uma primeira 
divergência entre um profissional da saúde e 
o posicionamento político da municipalidade. 
Demora‑se para reconhecer a peste, para de 
fato reagir à doença que se espalha. 
A população também tenta seguir sua ro‑
tina. Alguns manifestam incômodo por ter de 
mudar certos hábitos, outros reúnem‑se nas 
ruas para desfrutar do tempo e dos encontros 
enquanto podem. Mas o aumento do número 
de mortos deixa a prefeitura sem alternativas 
e novas medidas são impostas à população. 
A cidade cerra seus portões, estabelecimentos 
são fechados e um toque de recolher é anun‑
ciado. O peso do tempo se faz sentir no tédio 
dos cidadãos, enquanto “Milhares de rosas 
murchavam nas cestas dos vendedores, ao 
longo das calçadas, e seu perfume adocicado 
flutuava por toda a cidade”.
Conforme avançamos pela linha ascenden‑
te das mortes, os sobrevoos do narrador pintam 
com lirismo o vento que varre a cidade ao mes‑
mo tempo que o calor e a luz do sol fulminam as 
ruas e seus habitantes. Monótona, Orã povoa‑
‑se com pequenas anedotas. Lemos relatos das 
anotações do caderno de Jean Tarrou, um via‑
jante de passagem pela cidade, que desenvol‑
ve laços de amizade com Rieux e logo passa a 
ajudar com as medidas profiláticas no combate 
A peste projeta essa condição 
sobre a coletividade e realça 
a importância de 
nos recordarmos da morte 
com respeito e modéstia
8
ao flagelo. Seus cadernos contêm registros va‑
riados, como conversas pitorescas no ônibus, 
a história de um velho asmático que conta o 
tempo transferindo ervilhas de uma panela 
a outra e até mesmo o curioso caso de um se‑
nhor que atrai gatos a sua janela para depois 
escarrar sobre eles. 
Cidade mediterrânea, Orã é inicialmen‑
te apresentada com calor e movimento, uma 
de suas características é a “dificuldade que 
se pode ter para morrer”. Em suas ruas, sua 
“aparência, animação e até prazeres pareciam 
comandados pelas necessidades do negócio”. 
Mas ela se transforma à percepção dos conci‑
dadãos conforme tornam‑se prisioneiros: “O 
sol da peste apagava todas as cores e escor‑
raçava qualquer alegria”. Bombardeados por 
números e estatísticas, eles sentem com mais 
força o exílio em que se encontram sob o sol 
inclemente. Alguns vagam agora pelas ruas 
onde “reina um morno torpor” e sofrem com 
a distância daqueles que não podem estar 
por perto. Os olhos iluminam seus lugares de 
afeto, e a ausência daquilo que era dado por 
garantido projeta uma luz como que póstuma 
sobre as coisas. 
Alguns personagens encarnam os medos e 
anseios dos que vivem a peste. Além de Tarrou 
e Rieux, o jornalista Raymond Rambert, de 
passagem pela cidade, dedica‑se a tentar fugir 
para reencontrar sua noiva na França, mas aca‑
ba desistindo para se reunir às formações sani‑
tárias. Joseph Grand, o empregado da Câmara 
que sonha em conseguir se expressar bem, faz 
horas extras para ajudar com as questões admi‑
nistrativas que envolvem o combate ao flagelo. 
Cottard, que no começo do livro tenta suicidar‑
‑se, acaba por tirar proveito da situação a fim de 
lucrar com o mercado paralelo. 
Nesse sentido, o padre militante Paneloux 
é um daqueles que mais expressa as questões 
metafísicas colocadas pela epidemia. Em seus 
sermões, o jesuíta tenta encaixar a peste nos 
desígnios de Deus, mas também não se livra 
da angústia diante da calamidade, potenciali‑
zada na trágica cena da morte de uma crian‑
ça – o filho do juiz da cidade. O flagelo exige 
uma fé que, mesmo abalada, Paneloux procu‑
ra sustentar, mas não sem uma angústia que 
dura até seu último instante, quando adoece e 
morre de “caso duvidoso”, fixando um crucifi‑
xo sozinho em seu quarto. 
Seguindo os passos dos personagens sob a 
peste, notamos como se sentem estrangeiros 
diante de um mundo que não podem com‑
preender e ao qual não podem se unir. Lemos 
também como a história de cada um soma‑se à 
do sofrimento coletivo: “a partir das primeiras 
semanas, um sentimento tão individual quan‑
to o da separação de um ente querido se tornou, 
subitamente, o de todo um povo e, juntamente 
com o medo, o principal sofrimento deste lon‑
go tempo de exílio”. Todos os concidadãos, as‑
sim, compartilham de algo semelhante ao que 
Camus nomeara como absurdidade da exis‑
tência. No primeiro ciclo de obras do escritor 
sob esse tema, com O estrangeiro, Calígula, O 
Estado de sítio e O mito de Sísifo, encontramos 
tal divórcio entre o indivíduo consciente de sua 
condição mortal e o mundo que o cerca e que 
continua, paraalém de sua morte. 
A peste projeta essa condição sobre a cole‑
tividade e realça a importância de nos recor‑
darmos da morte com respeito e modéstia. De 
início, “Ninguém aceitara ainda verdadeira‑
mente a doença. A maior parte era sobretudo 
sensível ao que perturbava os seus hábitos ou 
atingia os seus interesses. Impacientavam‑se, 
irritavam‑se e esses não são sentimentos que 
se possam contrapor à peste”. Há uma recusa 
a se desprender dos próprios hábitos, a enca‑
rar a doença e os óbitos, pois não se enqua‑
dram na rotina dinâmica da cidade. Como a 
realidade absurda é desproporcional à razão, 
ela é rechaçada. Os empreendimentos huma‑
nos recusam os hospitais e cemitérios lotados, 
desviam os habitantes da angústia existencial.
Mas a epidemia e nossa atual pandemia 
impõem a imagem desse abismo da morte que 
suga milhares ao redor do mundo. Ensinados 
a progredir por uma vida ideal, com dinheiro, 
uma carreira bem‑sucedida e uma família, ve‑
mos tudo isso igualmente fadado a perecer: “A 
peste suprimira os juízos de valor”, Camus 
9
dossiê
nos recorda. Para alguns, tal equivalência 
moral de todas as ações pode conduzir ao 
niilismo, dado que uma das consequências 
da revelação do absurdo é a supressão do sen‑
tido das coisas. Mas ele propõe também que 
a falta de sentido permite ressignificar nossa 
própria vida. Em O mito de Sísifo, inspirado 
no amor fati nietzscheiano, ele nos ensina a 
responder a isso de forma otimista: “Tratava‑se, 
anteriormente, de saber se a vida devia ter um 
sentido para ser vivida. Pelo contrário, parece‑
‑me aqui ela será melhor vivida quanto menos 
sentido tiver. Viver uma experiência, um desti‑
no, é aceitá‑lo plenamente”. 
alvos da rEvolta colEtiva
Camus complementa o raciocínio absurdo com 
a constatação de que a revolta seria uma das 
únicas escolhas filosóficas coerentes. Se em O 
estrangeiro lemos uma revolta negativa, que se 
materializou no homicídio de um homem na 
praia, A peste permite a reação positiva ao ab‑
surdo, que se concretiza em uma ação a favor 
da coletividade contra a injustiça, o morticínio, 
o autoritarismo. Entre determinações naturais 
e determinações sociais, a epidemia exige um 
ir e vir constante do indivíduo para o coletivo. 
Em 1955, Camus afirma a Roland Barthes em 
uma carta: “Comparada a O estrangeiro, A pes-
te marca, sem discussão possível, a passagem 
de uma atitude de revolta solitária ao reco‑
nhecimento de uma comunidade cujas lutas 
devemos compartilhar. Se há evolução de O 
estrangeiro para A peste, ela se dá no sentido da 
solidariedade e da participação”. 
Pelo contexto de sua redação e publicação, 
seria difícil não a ler primeiramente como 
uma crônica da Resistência Francesa. En‑
quanto Camus desenvolve a ideia da epide‑
mia, a França é derrotada pelos alemães no 
campo de batalha, o exército de Hitler avança 
sobre o território e instala‑se a República de 
Vichy. Camus chegara a Paris no início da dé‑
cada de 1940. Tenta se engajar para lutar com 
o Exército francês, mas não é aceito por conta 
da tuberculose, então, como já fizera anterior‑
mente na Argélia, concentra sua ação política 
no jornalismo. Torna‑se, em 1943, editor do 
jornal clandestino Combat – no qual um tre‑
cho de A peste é publicado – e circula com um 
documento falso, sob o nome de Albert Mathé.
A palavra “peste” figura nos cadernos do 
escritor desde 1940, mas uma das notas em‑
blemáticas desses anos é a de novembro de 
1942, quando escreve “Como ratos!”, referin‑
do‑se à invasão da zona livre, no sul da França, 
pelo Exército alemão. Comparar com ratos o 
que era chamado de “peste marrom” trans‑
figura os roedores em porta‑vozes do flagelo. 
Em 1942, Camus inicia a redação da primei‑
ra versão enquanto passa uma temporada no 
Panelier, ao sul de Lyon. Termina sua redação 
no final do ano, mas, insatisfeito, parte para 
uma segunda, que vai ser redigida em Paris, 
quando se torna leitor na editora Gallimard. 
O escritor menciona “um equilíbrio difícil de 
encontrar” ao se expressar sobre o árduo pro‑
cesso de redação, que ocorre agora em inter‑
valos, ao longo dos quais são feitas alterações 
importantes, como o abandono de seu perso‑
nagem latinista, Stephan. 
Durante esse período e até o início dos anos 
1950, Camus desenvolve o que se tornou seu 
ciclo da revolta, com A peste, as peças O Estado 
de sítio e Os justos e o ensaio O homem revolta-
do. Ele também publica em jornais os artigos 
políticos que serão reunidos em suas Actuelles 
I, como a série “Nem vítimas nem carrascos”. 
Do ponto de vista filosófico, o pensamento que 
sustenta esses textos pode ser encontrado so‑
bretudo no ensaio central desse ciclo. 
Em O homem revoltado, Camus define a 
revolta como um “não” do indivíduo contra 
aquele que o oprime. Tal negação também é a 
tomada de consciência de um “sim” que legi‑
tima a existência de uma fronteira: “Aparen‑
temente negativa, já que nada cria, a revolta é 
profundamente positiva, porque revela aquilo 
que no homem sempre deve ser defendido”. 
Quando um escravizado volta‑se contra seu 
opressor, ele reconhece que existem valores 
aos quais tem direito e pelos quais vale a pena 
lutar. Por arriscar a própria vida em nome des‑
ses valores, aceitando morrer por eles, ultra‑
10
passa sua própria solidão e leva sua revolta a 
transcender horizontalmente, isto é, em dire‑
ção ao outro. Há uma “superação do indivíduo 
para um bem doravante comum”.
Se nos voltamos para algumas das críticas 
sociais presentes em A peste, é possível identi‑
ficar alvos para tal revolta. Na primeira parte 
do livro, as autoridades são incrédulas dian‑
te do começo do surto. Demora‑se para agir, 
como se fossem necessários mais corpos infla‑
mados pela peste para dar combustível à ação 
política. Ao perceber do que realmente se trata, 
o doutor Castel diz a Rieux: “Você sabe o que 
vão responder‑nos [...] Ela desapareceu dos paí‑
ses temperados há muitos anos”. Por essa mes‑
ma via, há também por parte dos discursos de 
poder uma negação em nomear as coisas como 
são. Sacrifica‑se “muito ao desejo de não in‑
quietar a opinião pública” e preferem chamar 
a peste de “febre perniciosa”. No momento, 
Rieux pouco se importa com sua nomeação, 
pois acha mais importante agir com rapidez, 
porém tal questão retorna páginas adiante.
Camus faz Jean Tarrou expressar uma críti‑
ca que já havia colocado em carta a seu amigo 
e leitor Louis Guilloux: um dos grandes males 
do mundo é a falta de uma linguagem clara. 
Ao se servir de etiquetas eufemísticas para 
não dar à doença seu nome certo, o governo 
transmite o vírus da ignorância a sua popula‑
ção, o que a conduz à morte. Entre os hospitais, 
os cemitérios lotados e aqueles que ainda não 
foram diretamente atingidos pela doença, o 
discurso que abstrai a fatalidade e o sofrimen‑
to interpõe‑se como uma cortina de fuma‑
ça, esconde os gânglios, o pus e o vômito do 
paciente em agonia. Para cá dessa cortina, a 
“abstração” – palavra‑chave para o pensamen‑
to de Camus nesse momento – tenta preservar 
uma realidade paralela, onde tudo está bem.
No campo da disputa das narrativas, a abs‑
tração também atenta contra o diálogo. Assim 
como o vírus entra nas células humanas, se 
reproduz e as implode, o mecanismo discur‑
sivo que nega a gravidade da pandemia altera 
o léxico das palavras, impossibilitando os diá‑
logos e infectando‑nos com a doença e com o 
ódio mútuo. Ainda hoje, a luta de todos contra 
a morte transforma‑se em debate sobre esco‑
lher entre vida e economia, o uso incerto da hi‑
droxicloroquina se torna garantia de cura que 
permite o retorno à normalidade, a obrigato‑
riedade de o Estado intervir em momentos de 
calamidade torna‑se filantropia. Camus nos 
alerta em “O diálogo e o vocabulário”, texto 
sobre a polêmica de O homem revoltado, que 
“em suma, a tática tem por meta preencher as 
palavras mecanicamente com um conteúdo 
oposto ao que elas detinham até ali”. O léxico 
alterado faz com que falemos línguas distin‑
tas, então o elo se rompe, como o escritor tam‑
bém registraem seu caderno no mesmo ano 
da publicação de A peste: “A polêmica – como 
elemento da abstração. Cada vez que decidem 
considerar um homem como inimigo, ele se 
torna abstrato. É afastado para longe. Não se 
quer mais saber se tem um riso irradiante. Ele 
se tornou uma silhueta”. Os espaços de diálo‑
go são ocupados por monólogos que qualquer 
robô de Twitter pode sustentar.
Se em O estrangeiro lemos uma revolta 
negativa, que se materializou no homicídio 
de um homem na praia, A peste permite 
a reação positiva ao absurdo
11
dossiê
Se o outro e seu discurso são abstraídos, 
perde‑se acesso ao conhecimento também so‑
bre as coisas. Tal obscuridade estende‑se, por 
exemplo, à incerteza quanto ao número real 
de infectados e de mortos hoje. A ignorância 
também faz parte do flagelo. No jogo de luz e 
sombra que atravessa A peste, Camus reitera 
a importância da primeira para combater a 
ignorância e suas consequências niilistas: “O 
mal que existe no mundo provém quase sem‑
pre da ignorância, e a boa vontade, se não for 
esclarecida, pode causar tantos danos quanto 
a maldade”. Ante tais males, quando escreve 
sobre a revolta, destaca a necessidade de um 
limite para que ela não se autodestrua. O com‑
bate à negligência, à ignorância e à abstração 
demanda coragem, mas também modéstia. 
Embora em seu senso comum a palavra “re‑
volta” possa nos remeter a uma insurreição de‑
senfreada, a movimentos que estão nas bases 
das revoluções, com saques e assassinatos de 
políticos, em O homem revoltado Camus reflete 
antes sobre a coerência entre os princípios que 
sustentam o revoltado e a expressão de sua re‑
volta. O escritor concentra‑se na manifestação 
e nos motivos de tal contradição em persona‑
gens filosóficos, literários e políticos, sobretu‑
do a partir de 1789, passando por nomes como 
Robespierre, Marquês de Sade, Charles Bau‑
delaire, Karl Marx e Friedrich Nietzsche.
Como mencionado anteriormente, um dos 
alvos de Camus é o niilismo, mas não apenas o 
mais famoso, de Bazárov, de Pais e filhos (1862), 
e sim o do político autoritário ou do revolucio‑
nário que, em nome de uma ideia, nega toda a 
vida ao seu redor. Ele aponta para uma revolta 
que sustente princípios humanos não só em 
oposição ao que chamaria “Terrorismo Irra‑
cional de Estado do Nazismo”, mas também 
ao “Terrorismo Racional” da União Soviéti‑
ca. Vale observar que, com o fim da guerra, o 
escritor presencia uma euforia de parte da es‑
querda ortodoxa francesa, que acreditava na 
Revolução. Em 1946, o Partido Comunista é o 
maior partido da França, com 400 mil asso‑
ciados, e havia formado um braço importante 
da Resistência Francesa. Então, como pontua 
Jeanyves Guérin, nesse sentido, A peste já era 
“uma forma discreta de contestar toda uma li‑
teratura resistencialista, gaulista e sobretudo 
comunista do pós‑guerra”. 
Consequentemente, o local e o momento 
de circulação desse discurso não favorecem 
totalmente a adesão a ele. O clero revolucio‑
nário compartilha parte de suas críticas com a 
intelligentsia parisiense. Embora A peste tenha 
sido um sucesso de vendas, com a recepção de 
prêmios e mais de 96 mil exemplares vendi‑
dos em três meses, muitos intelectuais acham 
suas ideias ingênuas, como Simone de Beau‑
voir, Jean‑Paul Sartre, os surrealistas como 
André Breton, e mais tarde Roland Barthes. 
Em A força das coisas (1963), Beauvoir escreve 
que “assimilar a Ocupação a um flagelo natu‑
ral era fugir de novo da História e de seus ver‑
dadeiros problemas”. Sartre vai expressar tal 
crítica à “frivolidade” de Camus por ignorar as 
infraestruturas históricas na querela da revis‑
ta Les temps modernes, de 1952, que culmina na 
ruptura pública da amizade entre eles. Barthes, 
em 1955, estima, em nome do materialismo 
dialético, que Camus falha ao tentar se colocar 
fora da história. 
Diante de tais críticas e de sua atual releitu‑
ra, separada de sua representação unicamente 
Na crônica, percebemos 
que, em vez de um heroísmo 
solitário, a população 
constitui um único organismo
12
alegórica, as metáforas do escritor retornam 
com força e, com isso, nos convidam a refletir 
um pouco mais sobre o seu entendimento de 
uma revolta “sob medida”.
rEvolta sob mEdida
No último capítulo de O homem revoltado, Ca‑
mus evoca a medida (mesure) como elemento 
constitutivo da revolta: “A medida não é o con‑
trário da revolta. A revolta é a medida, é ela 
quem exige, quem a defende e recria através 
da história e de seus distúrbios”. Após criticar 
ímpetos de insurreição que culminariam em 
niilismo, ele aponta para a necessidade de um 
valor mediador que equilibraria tais ímpetos. 
A deusa que ilustraria a medida a que o 
escritor se refere é Nêmesis, conhecida por 
ser aquela que, a fim de devolver a ordem ao 
cosmo, golpeava os que cometiam a desme‑
sura (hýbris). De um ponto de vista filosófico, 
Camus recupera Heráclito para criticar o fun‑
damento da ação histórica sob um vertiginoso 
movimento dialético contínuo: “A dialética 
histórica, por exemplo, não continua indefini‑
damente em busca de um valor desconhecido. 
Ela gira em torno do limite, seu valor primeiro. 
Heráclito, inventor do devir, fixava entretanto 
um marco para esse processo contínuo. Esse 
limite era simbolizado por Nêmesis, deusa 
da medida, fatal para os desmedidos. Uma 
reflexão que quisesse levar em conta as con‑
tradições contemporâneas da revolta deveria 
procurar a sua inspiração nesta deusa”.
Curiosamente, a primeira vez que a deu‑
sa apareceu sob a pena do escritor foi em um 
texto que antecipa em seis anos e sintetiza a 
orientação ética de A peste. Pela atualidade, 
“Exortação aos médicos da peste” foi recupe‑
rado agora em abril pela coleção Tracts, da 
editora francesa Gallimard. A voz que emite 
as prescrições não se identifica, mas poderia 
ser de Stephan, o latinista abandonado pelo 
escritor ao longo do processo de escrita, como 
mencionado previamente. Com menção à 
peste dórica narrada por Tucídides, orienta‑se 
aos médicos a mesma prudência que os coros 
das tragédias clássicas recomendavam a seus 
heróis. Nesse sentido, a “medida”, palavra re‑
petida em A peste – visto que é preciso a todo 
instante tomar “medidas” contra o flagelo – é 
empregada junto à deusa nessas prescrições 
para combater nossa desmesura: “De uma for‑
ma geral, observem a medida que é a primeira 
inimiga da peste e a regra natural do homem. 
Nêmesis não era em nada, como lhes ensina‑
ram nas escolas, a deusa da vingança, mas a da 
medida. E seus golpes terríveis só atingiam os 
homens quando eles se encontravam lançados 
na desordem e no desequilíbrio. A peste vem 
do excesso. Ela é o próprio excesso, e não pode 
se conter”. 
A modéstia apresenta‑se, então, como nos‑
sa aliada no combate à peste. Na crônica, per‑
cebemos que, em vez de um heroísmo solitá‑
rio, a população constitui um único organismo. 
Mesmo com a existência das formações sani‑
tárias, o narrador se recusa a adquirir um tom 
heroico ou a eleger salvadores. A luta, como 
uma tarefa de Sísifo, recomeça a cada dia e 
não termina em grandes vitórias. Pelo contrá‑
rio, trata‑se sempre de diminuir a amplitude 
da derrota. O narrador Rieux defende antes a 
objetividade e a honestidade no combate ao 
flagelo – uma objetividade por vezes tão fria 
quanto a própria abstração que enfrenta. Mes‑
mo ao se referir às formações sanitárias, seu 
testemunho é sóbrio. A decisão de lutar contra 
a morte é algo lógico e urgente, não extraor‑
dinário: “os que se dedicaram às formações 
sanitárias não tiveram um mérito tão grande 
em fazê‑lo, pois sabiam que era a única coisa 
a fazer, e não se decidir a fazê‑lo é que teria 
sido incrível”.
Ao fim da crônica, a queda das estatísticas 
não é coroada por uma cena épica, mas sim‑
plesmente por dois personagens nadando lado 
a lado, reconhecendo o elo entre si e o Medi‑
terrâneo. É como se olhassem para algo que 
a cidade não conseguia ver, como o narrador 
declara no início: “Pode‑se apenas lamentar 
que tenha sido construída de costas para essa 
baía eque, portanto, seja impossível ver o mar. 
É sempre preciso ir procurá‑lo”. Conforme 
avançamos para o desfecho, referências ao 
13
dossiê
amor, seja entre amigos, seja entre amantes, 
expõem esse sentimento que se encontra na 
base da revolta. Embora o escritor reconheça 
que os valores de uma insurreição possam va‑
riar, haverá no fundo imagens de afeto, pois 
“Há sempre um momento em que nos cansa‑
mos das prisões, do trabalho e da coragem 
para reclamar o rosto de uma pessoa e o cora‑
ção maravilhado de ternura”. 
Assim, ainda que deusa da medida, Nême‑
sis é a inspiração para o terceiro ciclo de obras, 
que seria o do amor, com o romance O primei-
ro homem, a peça Don Faust e o ensaio “O mito 
de Nêmesis”. Esse projeto foi interrompido 
pela morte precoce do escritor em janeiro de 
1960, em um acidente de carro no sul da Fran‑
ça, quando viajava de Lourmarin para Paris. 
Nas imagens de afeto de sua vida, como a sim‑
plicidade de sua mãe, a infância pobre em Ar‑
gel, as brincadeiras nas praias mediterrâneas 
e as mulheres que amou, habitaria a chama à 
qual ele retorna ao longo de sua obra. A me‑
mória do amor na base da revolta a sustenta 
e a controla para que não se torne puro ódio. 
Embora os escritos do segundo ciclo de Ca‑
mus tenham lhe rendido críticas – como a de 
pregar uma “revolta castrada” ou uma “moral 
da cruz vermelha” –, além de etiquetas como 
“santo laico”, A peste permanece hoje como lu‑
gar para outras analogias que permitem circuns‑
crevê‑la em diferentes cenários. A própria obra 
é construída sobre várias experiências de epide‑
mias ao longo da história, em um árduo proces‑
so de quase cinco anos: “O que escrevo sobre a 
peste não é documental, claro, mas reuni uma 
documentação bastante séria, histórica e médi‑
ca, porque é possível encontrar nela ‘pretextos’”, 
declara em carta a Jean Grenier. Como demons‑
tra Marie‑Thérèse Blondeau em notas na edição 
francesa da Pléiade, Camus estudou sobre a pes‑
te que atingiu a Pádova dos Carrara; remontou 
ao flagelo em Milão; leu sobre a epidemia na 
Mesopotâmia; pesquisou sobre epidemias 
na China e na Argélia. Em seus manuscritos, 
encontramos referências a títulos como Mémoi-
re sur la peste en Algérie, de Adrien Berbrugger, 
La défense de l’Europe contre la peste, de Adrien 
Proust, Une épidémie de peste en Mésopotamie en 
1867, do primeiro médico do xá da Pérsia, o dou‑
tor Tholozan. Para referências médicas, Camus 
recorre ao chefe do departamento de Higiene 
da Universidade de Paris, doutor Bourges, e 
a sua obra La Peste: épidémiologie, bactériologie, 
prophylaxie, que complementa com Précis de 
pathologie médicale, de Besançon e Philibert. 
Esse retorno às pestes do passado con‑
tribui para reiterar o aspecto cíclico das epi‑
demias na história da humanidade e expor 
nossas diferentes reações ao longo do tempo. 
Diante da calamidade social em que se encon‑
travam os japoneses de Fukushima em 2010, 
a crônica teve um aumento de vendas no Ja‑
pão. Em recente artigo para a Folha de S.Paulo, 
publicado no início de abril, Silviano Santiago 
expõe o potencial produtivo da releitura de A 
peste com estudantes universitários nos anos 
1960, nos Estados Unidos. E, enfim, durante a 
ditadura no Brasil e diante das recentes apolo‑
gias a regimes pouco democráticos, e conside‑
rando toda a desumanidade que parte da atual 
cacocracia que governa o país, poderíamos 
recuperar as reflexões não só de A peste, mas 
de outras obras antitotalitárias – como Calígu-
la, Cartas a um amigo alemão, Estado de sítio –, 
na medida em que expõem a face absurda de 
certos discursos e condutas políticas.
Ética para tEmpos dE pEstE
“Chama‑se de clássico um livro que se confi‑
gura como equivalente do universo, à seme‑
lhança dos antigos talismãs”, afirma Calvino. 
Se A peste tem o potencial de concentrar um 
macrocosmo em seu microcosmo, ela oferece 
sobretudo um panorama da obra camusiana. 
Isso porque a evolução de seus escritos não 
se dá em linha reta, mas em forma de espiral: 
Camus revisita e ultrapassa suas primeiras 
imagens e reflexões. Quem não reparou, no 
início de A peste, a história de um homem que 
havia sido condenado à morte por ter matado 
um árabe? (O estrangeiro). Ou quem não leu O 
estrangeiro e percebeu que a anedota lida por 
Meursault na prisão é a base do roteiro da peça 
O mal-entendido?
14
Assim, na crônica de Orã encontramos o 
exílio e o absurdo, tema de seu primeiro ciclo 
de obras (1942‑44), quando a cidade mergulha 
nos meses sombrios de peste: “o mar próximo 
estava interditado e o corpo já não tinha direi‑
to às suas alegrias”. Também acompanhamos 
aqueles que lutam diariamente para resistir à 
aniquilação do flagelo, objeto de reflexão do 
segundo ciclo (1947‑51). E nos interlúdios de 
desejo e afeto entre os personagens, encontra‑
‑se uma parcela do amor, que seria desenvolvi‑
do em seu terceiro projeto.
Apesar de a leitura de obras canônicas po‑
der configurar uma finalidade em si, o resgate 
da crônica permite ampliar nossa percepção 
sobre o drama que a humanidade atravessa 
neste momento. Calvino também afirma que, 
seja por contraste, seja nos reafirmando, os 
clássicos nos definem. Recorremos a eles para 
aprender sobre quem somos e para buscar re‑
ferenciais. É como se essas obras tivessem um 
potencial que Mircea Eliade, em O sagrado e 
o profano, encontra no mito: refixar modelos 
para momentos de desorientação moral e nos 
fazer participar de um momento em que se 
manifestou a verdade sobre a humanidade. 
Daí seu potencial ontológico.
Rieux afirma com fervor que o flagelo, 
como todos os males do mundo, “Pode servir 
para engrandecer alguns. No entanto, quando 
se vê a miséria e a dor que ela traz, é preciso 
ser louco, cego ou covarde para se resignar à 
peste”. Assim como o novo coronavírus, ela é 
um inimigo monótono, que exige paciência, 
mas também persistência e afinco. Tanto para 
os que estão na linha de frente do combate 
quanto para quem segue a quarentena, acos‑
tumar‑se com o sofrimento e a morte pode ser 
uma armadilha. A peste não tolera dispersão 
nem ignorância. 
O “novo” coronavírus é uma antiga novi‑
dade. O filósofo Alain Badiou destaca, no ar‑
tigo intitulado “Sobre a situação epidêmica”, 
que, longe de ser algo novo e incrível, estamos 
diante de uma consequência da nossa própria 
organização social: “sabemos que o mercado 
mundial, em conjunto com a existência de 
disciplina global em relação às vacinas ne‑
cessárias, produz inevitavelmente sérias e 
desastrosas epidemias”. Ele nos lembra que 
essa é na verdade a nossa segunda Sars do 
século, a síndrome respiratória aguda grave. 
Quando a primeira foi descoberta em 2003, 
as pesquisas preventivas sobre a doença não 
foram levadas adiante como deveriam. Assim 
também ocorre com outras doenças, como a 
aids, o ebola e a Mers (síndrome respiratória 
do Oriente Médio), que não recebem a devi‑
da atenção das autoridades responsáveis. No 
Brasil, estamos diante de um desprezo ainda 
mais grave, como ilustra o exemplo do jovem 
cientista Ikaro Alves de Andrade, doutorando 
da Universidade de Brasília (UnB), que vinha 
estudando o vírus e perdeu sua bolsa. 
Diante dos desafios que enfrentamos, o 
retorno à obra de Camus nos coloca em co‑
munidade para fazer frente a nossa condição 
trágica. Também permite redescobrir a im‑
portância de preservar princípios humanos 
no seio de toda sociedade. Em um momento 
de mentiras, negligências e negacionismo, ele 
nos alerta para as armadilhas do discurso po‑
lítico. Enfim, reencontramos em sua leitura, 
por um lado, a memória do sofrimento huma‑
no causado pelos nossos excessos através da 
história e, por outro, a imaginação necessária 
para enxergar o vírus invisível que nos ronda, 
num momento em que qualquer distração 
pode ser fatal. 
Em um momento de mentiras, 
negligências e negacionismo, 
Camus nos alerta para as 
armadilhas do discurso político
15
ivonE gEbara
mostrar o infErno E prEvEr quE ElE tErá Em brEvE chamas 
maiorEs não significa nEcEssariamEntE ajudar aspEssoas quE já vivEm Em outros infErnos a saírEm dElEs
Uma 
perspectiva 
teológica 
feminista
dossiê
pectiva que me atrevo a escrever algumas in‑
tuições a partir da teologia cristã – cujos con‑
ceitos, crenças e expressões religiosas atuais 
posso de certa forma explicitar, visto que é a 
que melhor conheço. As crenças religiosas 
se multiplicam hoje quase como o vírus. Bas‑
ta buscá‑las na internet e no WhatsApp para 
ver como empunharam suas armas para de‑
fender‑se contra o vírus causador de tantos 
distúrbios. Ele esvaziou templos, encontros 
espirituais oficiais, cursos e outras atividades. 
Porém, os fiéis criam devoções, correntes má‑
gicas, orações das mais diversas, cantos reli‑
giosos inspirados no vírus, novenas, bênçãos 
que enviam para todos os lados esperando tal‑
vez mover o coração de Deus. De repente a in‑
ternet passa a ser também um veículo “usado” 
por Deus para continuar Sua ação em meio ao 
rebanho. Tudo isso nos convida a pensar!
Reflito fora do eixo oficial e por isso me per‑
mito elucubrações variadas. Sem dúvida minha 
perspectiva não vem corroborada pela teologia 
institucional, ou seja, pelas autoridades das Igre‑
jas cristãs que guardam para si a prerrogativa de 
serem as mais autorizadas intérpretes da tradi‑
ção bíblica e, através dela, da vontade de Deus. 
Em tempos de coronavírus, ficamos nos perguntando como uma frágil força invisível em contínua expan‑são pelo mundo pode mudar nos‑
sos comportamentos e nos ameaçar de mor‑
te em meio a sofrimentos físicos e psíquicos 
cada dia maiores. Como um vírus pode mudar 
a economia, a pesquisa científica, a arte, a li‑
teratura, as religiões, os hábitos, as relações 
entre os governos e as relações entre pessoas 
inclusive na própria família? Como um vírus 
pode provocar tanto medo de nos aproximar‑
mos das pessoas e das coisas habituais e nos 
fazer sentirmos mais ameaçadas e inseguras 
do que a habitual violência de nosso mundo? 
Impressiona‑nos ver esse desconhecido cujos 
efeitos gregários nefastos sentimos, ver sua 
forma “cientificamente desenhada”, aumen‑
tada milhares de vezes e mostrada nas telas 
da TV como se fosse um verme da Terra em 
forma de coroa. De fato, ele é da Terra como 
nós, e de certa forma nos escolheu como lugar 
para abrigar‑se – sem que saibamos as razões. 
Muitos especialistas debruçam‑se hoje 
para compreender algo desse fenômeno que 
convida ao pensamento e à ação. É nessa pers‑
17
dossiê
Constato que “nesse tempo de peste” as 
Igrejas cristãs estão preocupadas em oferecer 
serviços sobretudo de consolo e ajuda a seus 
fiéis. Pelos meios de comunicação, tentam 
manter a ligação com eles mediante liturgias, 
celebrações, orações e outras formas de pre‑
sença virtual. Têm igualmente oferecido su‑
porte às populações de rua e a muitas pessoas 
que não conseguem manter suas necessidades 
básicas alimentares e de higiene. Não me ate‑
rei a esses gestos humanitários, mas gostaria 
de pensar alguns pontos em outra direção que 
julgo importantes para o contexto atual. 
Tomo a tradição bíblica como um conjun‑
to de textos históricos e literários importantes, 
uma tradição que marcou muitos povos desde 
a Antiguidade até os dias de hoje. Extraio dela 
aquilo que considero próximo do bem comum, 
da boa convivência, do respeito possível, do cui‑
dado de uns com os outros e com o conjunto da 
vida do planeta neste momento. Seria mais um 
texto de sabedoria que um texto contendo uma 
“revelação divina” provinda dos céus. Isso por‑
que tomo a etimologia latina da palavra religião 
(religare = religação) como aposta na necessida‑
de de segurar as mãos uns/umas dos/as outros/
as para viver de outro jeito. Assim, Deus deixa 
de existir como ser em si mesmo, impondo Sua 
poderosa vontade, para se tornar o nome da 
força em nós e no planeta, capaz de tirar‑nos de 
nosso individualismo, do desejo de dominação 
de uns/umas pelos/as outros/as, da insensibili‑
dade diante da dor alheia, do esquecimento dos 
andarilhos, que hoje constituem uma multidão 
em busca de um espaço para viver.
De repente quem faz o papel de acordar‑
‑nos para nossa “boa” humanidade comum, 
para a terra que somos e para a Terra na qual 
habitamos é um vírus insignificante. Insigni‑
ficante, porém com uma força de contágio 
impressionante; insignificante, porém univer‑
salmente presente, espalhando e causando 
terrores, temores e lágrimas. Insignificante, 
porém capaz de interromper o curso ordiná‑
rio da vida ao qual nos havíamos habituado, 
considerando‑nos bons/boas e até melhores 
do que outras pessoas.
Essa situação trágica me fez lembrar da 
história de Jó. Uma novela bíblica que faz par‑
te da literatura sapiencial. Conta a vida de um 
homem rico e justo que se vê de súbito atingi‑
do por inúmeros sofrimentos corporais, pela 
perda de seus bens, dos filhos, filhas e esposa. 
Nessa via dolorosa ele tenta de diferentes ma‑
neiras provar a Deus e a seus amigos o quanto 
é justo, fiel servidor do Altíssimo, porém injus‑
tiçado por Deus. Num crescendo de tragédias e 
defesas que Jó faz de si mesmo a alguns amigos, 
a novela vai mostrar que não é por ser justa que 
uma pessoa está isenta de sofrimentos e das 
grandes perdas provocadas pela morte. A expli‑
citação desse drama humano se dá num diálo‑
go com Deus, que desafiado pelo Demônio ten‑
ta provar, por meio dos sofrimentos infligidos a 
Jó, sua fidelidade para com Ele, seu Deus. Deus 
e o Demônio aparecem como as duas faces de 
uma mesma moeda – e é isso que nos impres‑
siona, porque sempre os separamos como dois 
princípios que se opõem. Agora, parece que 
reafirmamos sua proximidade e a necessidade 
de um para que o outro exista em nós e no mun‑
do. O novo coronavírus, que chegou sem ser es‑
perado, provoca dor e morte, mas também uma 
consciência da necessidade de outras relações 
entre nós e com o planeta.
“Havia um homem na terra de Hus chama‑
do Jó: era um homem íntegro e reto, que temia 
a Deus e se afastava do mal. Nasceram‑lhe 
sete filhos e três filhas. Possuía também sete 
mil ovelhas, três mil camelos [...]” (Jó, 1, 1 a 3).
A história segue anunciando de repente 
a perda de todos os bens, depois a morte das 
filhas e filhos e da esposa de Jó. Ele mesmo é 
acometido por uma violenta lepra que vai co‑
mendo todo seu corpo... Em um instante tudo 
parecia normal, e em outro tudo ficou confuso 
e desarmônico!
Então, “Jó se levantou, rasgou seu manto, 
rapou sua cabeça, caiu por terra, inclinou‑se 
no chão e disse: Nu saí do ventre de minha 
mãe e nu voltarei para lá” (Jó 1, 20). É como 
se ele se rendesse à perda de tudo, porém sem 
deixar de reafirmar que era um justo sofredor 
e que o sofrimento era a condição dos seres 
18
viventes. A novela, porém, nos deixa numa 
perplexidade ímpar porque tem um final feliz, 
no qual tudo é recuperado. Certamente o final 
provém de outro tempo e de outros/as autores/
as. Mas a ideia é que nem Deus pode evitar os 
sofrimentos, porque a vida os exige, mais ou 
menos, dependendo dos rumos que tomar.
Sem dúvida o flagelo atual do coronavírus, 
para além das tentativas de compreendermos 
por que está acontecendo neste momento de 
nossa história comum, está nos convidando 
a uma solidariedade que nunca se viu, por 
exemplo, entre pessoas ricas e pobres. A ri‑
queza material promove a vida de alguns em 
detrimento da vida da maioria. E o desprezo 
“do pobre, do órfão e da viúva” não produz con‑
tágio mortal, mas separação real de classes. No 
entanto, embora esse vírus possa revelar privi‑
légios maiores no cuidado das pessoas mais ri‑
cas, que parecem ter sido as primeiras atingidas, 
ele está para além das classes, para além dos 
gêneros, para além das etnias, para além das 
orientações sexuais, para além das religiões 
– apesar de se temer sua propagação maior 
nos grupos mais vulneráveis. O que estou su‑
blinhando é a força desse vírus, capaz de mo‑
dificar os quadros hierárquicos e excludentes 
das relações humanas, capaz de despertar 
iniciativas de ajuda mútua, mudanças políti‑
cas e econômicas mundiais, redesenhandoa 
geopolítica mundial.
Entretanto, o contágio do vírus não conduz 
necessariamente à solidariedade com quem é 
mais pobre, pelo fato de acreditarmos que es‑
sas pessoas têm os mesmos direitos que as ricas, 
mas é uma solidariedade imediata por causa do 
medo do número de pobres que seriam atingi‑
dos/as e da ameaça que isso representa aos/às 
“coitados/as” das pessoas ricas. Embora haja 
muitos gestos de ajuda mútua em edifícios e 
em bairros populares, há como uma espécie de 
película protetora que nos torna até certo pon‑
to invulneráveis no mais íntimo de nós. É como 
se a ajuda dos governos não fosse por justiça e 
direito, mas apenas para evitar um mal maior 
que tornaria o país insustentável.
A televisão, a internet e os jornais mos‑
tram‑nos diariamente horrores causados pelo 
vírus em diversas partes do mundo. Os meios 
de comunicação nos invadem, dando primazia 
absoluta ao número de vítimas do vírus, con‑
tabilizando estatisticamente as atuais e as pos‑
síveis próximas vítimas em todas as partes do 
mundo. Esse excesso de informações na maio‑
ria das vezes não cria solidariedade, mas um 
“salve‑se quem puder” e muito medo de que 
estejamos vulneráveis à enfermidade. Para se 
contrapor ao nosso egoísmo imediato, as cenas 
de distribuição de alimentos a quem mora na 
rua e às pessoas carentes das comunidades pa‑
recem ter a função de nos lembrar que não so‑
mos tão maus quanto parecemos ser... Talvez 
eu esteja sendo injusta com algumas pessoas, 
mas é o que me ocorre como reflexão. Mostrar 
o inferno e prever que ele terá em breve cha‑
mas maiores não significa, à primeira vista, 
ajudar as pessoas que já vivem em muitos ou‑
tros infernos a saírem deles. Entretanto, essa 
A riqueza material 
promove a vida de 
alguns em detrimento 
da vida da maioria. 
E o desprezo “do pobre, 
do órfão e da viúva” 
não produz contágio
mortal, mas separação 
real de classes
19
dossiê
“mostração” – às vezes indecente, porque desco‑
nhece os efeitos negativos que provoca – serve 
para revelar o quanto há de sofrimento em nos‑
so país e o quanto há de sofrimento oculto que 
desconhecemos. Mostrar pode parecer até um 
ato correto, no sentido de torná‑los presentes 
como alerta importante. Porém, não necessa‑
riamente é um gesto ético eficaz, pois restaria 
de fato o mais importante, que é incluir as pes‑
soas nas instâncias do direito e da justiça como 
cidadãos da nação e do mundo. 
Fico me perguntando se a “mostração” de 
famintos, doentes, mortos, cidades infectadas 
até o excesso tem apenas a função de alerta da 
poderosa indústria da informação, agora soli‑
dária com as vítimas. Suspeito que haja razões 
ocultas que não nos são reveladas. De novo me 
vem um texto bíblico, agora do Evangelho de 
Lucas (Lc 10, 29 a 37), que é chamado de pará‑
bola do bom samaritano. A cena se refere a um 
homem ferido, caído numa estrada. Um jurista 
passa, vê o homem e afasta‑se dele; da mesma 
forma um sacerdote correndo passa por ele e 
não para, visto que tinha deveres a cumprir em 
seu templo; e por fim passa alguém, um estran‑
geiro, o samaritano, um ambulante qualquer 
que ajuda o caído, leva‑o a um hospital e pede 
que cuidem de suas feridas. Creio que a mensa‑
gem ética do Evangelho vai para além de uma 
“mostração”, de um voyeurismo que pode ser 
ineficaz. Nem sempre o que vê age em conse‑
quência com o que viu. A mensagem ética de 
fato, quando toca minhas/nossas entranhas, 
me faz enxergar no homem caído a mim mes‑
ma, me faz dizer “o que quero que me façam”. E 
me leva a concluir, sem pensar, que isso que eu 
gostaria de ter como socorro é o que devo fazer 
ao/à outro/a no curto e no longo prazo.
Mas sei bem que essa ética não é simples 
como as frases que escrevo. O medo do/a ou‑
tro/a me ameaça, suas feridas e seu cheiro me 
repugnam... Muitas vezes sentimo‑nos impo‑
tentes e até frustrados porque não consegui‑
mos efetivamente mudar muita coisa. Há como 
uma deficiência que nos impede de mudar essa 
situação no imediato e que nos brinda com um 
ranço da culpa que nos habita. Há nesse mo‑
mento a distância das quarentenas, a falta de 
circulação, a necessária obediência às ordens 
médicas e governamentais, como se tudo isso 
se tornasse um impedimento ético para agir. 
Porém, na ética do Evangelho a distância entre 
as pessoas parece suprimida. Toca‑se nos olhos 
cegos, aproxima‑se de quem tem lepra, dá‑se a 
mão ao/às coxos/as, divide‑se a comida, parti‑
lham‑se túnicas. Dirão vocês: nesta emergência 
O fato é que agora não somos apenas 
espectadores/as das calamidades que nos 
mostram nas telas sobre povos distantes; 
somos vítimas ou possíveis vítimas do vírus 
cuja história acompanhamos de perto
20
estamos tentando fazer tudo isso e nos prote‑
gendo do contágio! Talvez. Mas quem provocou 
tudo isso agora? Um vírus... Só um vírus. O que 
ele está nos dizendo para além da proteção à 
qual temos que nos sujeitar para evitá‑lo?
No fundo, desde o início de minha refle‑
xão estava com a tentação de afirmar a seme‑
lhança entre a imagem de Deus em tudo, para 
além e no bem e no mal, e o símbolo do co‑
ronavírus, proveniente – como nós – da Terra. 
Por isso lembrei‑me de Jó, da competição en‑
tre Deus e o Diabo na vida de Jó, assim como 
nosso bem e nosso mal disputam em nossa 
vida. Depois me lembrei do samaritano con‑
vidando‑nos a ser para além das hierarquias e 
títulos uns/umas para os/as outros/as...
Na mesma linha, quero lembrar algo mais 
que me incomoda no que chamei de “mostra‑
ções” dos meios de comunicação. Às vezes são 
“mostrações” exageradas, quase indecentes dos 
mortos, dos doentes em hospitais, das aglome‑
rações nas comunidades e nas prisões domici‑
liares em que estamos encerrados/as. Apesar 
da crueza, é como se essas imagens também 
nos dissessem: “Façam alguma coisa, porque 
eles são também vocês”... O vírus nos tornou 
por um instante imagem e semelhança de nós 
mesmos/as e imagem uns/umas dos/as outros/
as, nascidos/as da Terra, terrícolas mortais. 
O fato é que agora não somos apenas especta‑
dores/as das calamidades que nos mostram nas 
telas sobre povos distantes; somos vítimas ou 
possíveis vítimas do vírus cuja história acompa‑
nhamos de perto. Ninguém está preservado/a 
de ser a próxima conquista do vírus. E essa si‑
tuação peculiar nos convida a algo mais ou me‑
nos inédito, sobretudo neste tempo de comuni‑
cação direta e instantânea. O vírus nos convida 
a repensar a organização de nossa vida pessoal, 
econômica, política, social, cultural, religiosa, 
como a dizer‑nos que no progresso ilimitado 
e seletivo que construímos estão presentes as 
sementes de nossa própria destruição. E aí não 
posso deixar de pensar no mito da Torre de Ba‑
bel (Gênesis, 11), construída para tocar o céu e 
onde todos os seus habitantes só podiam falar 
uma única língua. Algo aconteceu de repente, 
pois o vírus Deus Vida achou que não estava 
bom para a Terra e a torre caiu.
Não há uma única lição religiosa ou teoló‑
gica a sublinhar e uma única ação a tomar em 
tempos de peste. Que cada “mortal” humano 
ouça com seus ouvidos e sinta com seu cora‑
ção, discuta com outros/as, e que juntos/as 
tomemos algumas decisões para que a vida 
reequilibre suas forças em nós. Isso pode ser 
possível se conseguirmos inventar uma cul‑
tura sustentável, uma cultura imersa nas ne‑
cessidades da comunidade da Terra, da qual 
somos apenas uma parte recém‑chegada. Não 
estamos sós... Viemos de longe fazendo nosso 
caminho, misturados/as ao pó da terra e ao pó 
das estrelas. Tem jeito de concertar a rota er‑
rada que tomamos? Conseguiremos? Aposto 
com tremor e temor que sim, pois, como diz o 
poeta Antonio Machado, “caminhante, não há 
caminhos, se faz caminho ao andar”. 
21
ruy braga
algo EstratÉgico à narrativa nEcropolítica bolsonarista 
comEçou a manquEjar com a chEgada da pandEmia
Os limites 
do carisma: 
ética, 
trabalho e 
necropolítica
dossiê
por exemplo, do pleno emprego nos Estados 
Unidos e da reserva de mercado aos trabalha‑
dores nacionais na Hungria. Em uma situaçãocomo essa, o que fazer para assegurar alguma 
capilaridade popular ao projeto necropolítico? 
“afinidadEs ElEtivas”
Até bem recentemente, a solução para a qua‑
dratura do círculo consistia em patrocinar 
uma agenda ultraconservadora de costumes 
alinhada aos anseios do fundamentalismo 
cristão, em especial da ascendente direita 
evangélica. Contudo, é bastante incerta e tor‑
tuosa essa passagem de valores reacionários 
para concessões materiais aos subalternos, 
ainda mais em um contexto econômico mar‑
cado por informalização das relações traba‑
lhistas, aumento do desemprego/subemprego 
e subsequente compressão dos rendimentos 
do trabalho derivada da agenda ultraneolibe‑
ral do ministro Paulo Guedes. 
Nossa hipótese é de que, até a pandemia, 
o alinhamento popular ao projeto bolsonaris‑
ta nascido durante a campanha presidencial 
de 2018 deveu‑se, em larga medida, a uma 
“afinidade eletiva” entre uma certa teologia 
neopentecostal e a “viração” típica do em‑
prego informal tal como observamos nas pe‑
riferias do país. Aqui, talvez seja conveniente 
uma rápida digressão sociológica. Desde que a 
expressão “afinidades eletivas” foi alçada por 
Max Weber à posição de conceito clássico da 
sociologia, a relação entre doutrinas religiosas 
e diferentes ethos econômicos deixou de ocu‑
par um espaço central na atividade investiga‑
tiva dos sociólogos. 
Ao menos quando pensamos nos víncu‑
los entre interesses de classe – sobretudo das 
classes subalternas, e visões sociais de mun‑
do vertebradas por dogmas transcendentes 
–, reflexões a respeito das tais afinidades des‑
locaram‑se para um plano subsidiário, refu‑
giando‑se, quando muito, em áreas bastante 
especializadas do campo científico. Em larga 
mirada, a preocupação com o tema deslocou‑
‑se para a historiografia, como bem demons‑
tra, por exemplo, A formação da classe ope-
A aposta deste artigo é que a atual pandemia, ao esgarçar o tecido so‑cial, fatalmente mudará os rumos da política brasileira. Resta saber 
para onde. Ainda que opaca, uma nova agenda 
econômica e política está sendo delineada nes‑
te exato momento. E, se não estamos diante de 
uma alteração passageira da cena política na‑
cional, quais seriam suas determinações socio‑
lógicas mais profundas? Como se deslocarão as 
classes, sobretudo os trabalhadores precários 
mais expostos aos riscos sanitários e aos efei‑
tos economicamente deletérios da pandemia? 
Afinal, qual é o impacto previsível da atual crise 
sobre o projeto político bolsonarista? 
Em primeiro lugar é necessário lembrar 
que o governo Bolsonaro representa um pro‑
jeto necropolítico de poder cujo propósito con‑
siste em mobilizar permanentemente parte da 
sociedade contra um inimigo interno desuma‑
nizado e, portanto, passível de eliminação. Até 
o advento da Covid‑19, o papel desse “outro 
desumanizado” foi ocupado, com diferen‑
tes ênfases e em diferentes contextos, pelos 
“vagabundos” e “bandidos”, grosseiramente 
identificados com os militantes dos mais di‑
ferentes matizes de esquerda, em especial os 
sindicalistas e os corruptos ligados por laços 
inconfessáveis ao establishment político nacio‑
nal. A conclusão é cristalina: para “salvar a Na‑
ção” de seus inimigos internos, é necessário 
pôr um fim à democracia tal como desenhada 
pela Constituição de 1988 e à sua pletora de di‑
reitos humanos e sociais, instrumentalizados 
por vagabundos e bandidos. 
O projeto em curso de subversão da de‑
mocracia brasileira alinhou‑se, até o adven‑
to do coronavírus, a um conjunto de outras 
experiências internacionais, principalmente 
a estadunidense e a húngara, que pipocaram 
após a crise de 2008. Porém, com uma notável 
diferença: ao contrário dos regimes liderados 
por Donald Trump ou Viktor Orbán, o modelo 
brasileiro adotou uma estratégia econômica 
ultraneoliberalizante cujos cortes de gastos 
públicos impedem, por parte do bolsonarismo, 
concessões aos subalternos, como são os casos, 
23
dossiê
rária inglesa (1963), trabalho mais afamado 
de E. P. Thompson. No caso brasileiro, se os 
fundamentos econômicos da religiosidade 
popular deixaram relativamente de figurar 
entre as preocupações centrais de nossas 
pesquisas, faz falta olharmos para o espírito 
popular em busca de alguma iluminação para 
as cores sombrias que matizam a crise atual. 
Assim, algo que sempre chamou minha 
atenção na maneira como Weber construiu 
seu conceito é que a relação de afinidade ele‑
tiva intermediava estruturas sociais – notoria‑
mente a ascese protestante e a inclinação para 
a acumulação de capital –, sem que isso criasse 
uma nova substância social, uma nova sínte‑
se. Ou seja, mesmo que a interação produzisse 
consequências significativas, não ocorria ne‑
nhuma modificação notável na constituição 
dos componentes iniciais. O protestantismo, 
assim como o capitalismo, conservou sua pró‑
pria legalidade, evoluindo historicamente de 
forma mais ou menos autônoma um em rela‑
ção ao outro. Daí o próprio Weber lembrar‑se 
de nos alertar que a afinidade entre a ética 
protestante e o espírito do capitalismo se per‑
deu nos tempos da acumulação originária de 
capital, restando quase nada nos dias atuais 
daquele “sóbrio capitalismo” sintetizado nas 
prédicas de Benjamin Franklin.
Ainda assim, exatamente um século após a 
edição definitiva de seu trabalho mais afama‑
do, outra relação de afinidade eletiva, aparen‑
tada à estudada pelo sociólogo de Heidelberg, 
parece ter se enraizado na sociedade brasileira 
com a força de um preconceito popular: a dou-
trina neopentecostal da prosperidade e o espírito 
do empreendedorismo popular. Aqui, coloca‑se 
o problema de buscar compreender em que 
medida a atração entre uma crença religiosa 
e uma ética profissional influenciou o desen‑
volvimento dessa cultura material que, na au‑
sência de melhor expressão, chamaremos de 
neoliberalismo. 
O crescimento do movimento neopen‑
tecostal no país é largamente estudado pela 
bibliografia especializada. Ricardo Mariano 
e Ronaldo de Almeida, por exemplo, são dois 
incontornáveis experts no assunto. Também 
não é segredo que o aumento expressivo das 
hostes evangélicas ocorreu naquelas regiões e 
grupos abandonados por décadas de elitização 
do catolicismo. Também é compreensível que 
a hipertrofia das favelas e das comunidades 
periféricas em condições notoriamente pre‑
cárias tenha fortalecido entre os subalternos 
a busca por promessas de segurança material 
e consolo espiritual. O que permanece ainda 
um tanto opaco é por que uma teologia que 
advoga o direito ao bem‑estar físico do crente 
se aproximou de forma tão íntima das formas 
mais ou menos tradicionais de “viração”, isto 
é, o empreendedorismo popular muito comu‑
mente verificado na economia informal, afas‑
tando‑se, em contrapartida, da gramática dos 
direitos sociais. 
Uma hipótese plausível arriscaria combi‑
nar duas ordens de razões: uma de natureza 
mais objetiva, digamos, isto é, a precarização 
das condições de reprodução dos trabalhadores 
pobres, com a consequente mitigação da pro‑
messa dos direitos, e outra um pouco mais sub‑
jetiva, ou seja, o pragmatismo popular capaz de 
reconhecer na doutrina neopentecostal uma 
poderosa aliada na interpretação de como 
opera o neoliberalismo. Assim, a responsabi‑
lidade financeira e o fortalecimento individual 
enfatizados pela teologia da prosperidade te‑
riam condições de aderir a um contexto geral 
marcado pelo avanço da insegurança laboral, 
da regressão dos direitos sociais e da mercan‑
tilização das cidades e das comunidades. 
Quando a perspectiva do progresso cole‑
tivo via fortalecimento de direitos universais 
desapareceu do horizonte, sobretudo dos tra‑
balhadores jovens, como tive oportunidade de 
observar em 2019 ao participar de uma pesqui‑
sa sobre trabalho e sofrimento psíquico, e a 
competição por oportunidades de negócio na 
informalidade aumentou devido ao aumento 
do desemprego, a fé em um Deus que recom‑
pensa os esforços individuais transformou‑se 
em aliado poderoso na labuta cotidiana.Se 
imaginar um futuro mais acolhedor tendo em 
vista, por exemplo, o acesso à aposentadoria 
24
tornou‑se um desejo praticamente irrealizável 
para 40 milhões de trabalhadores informais, a 
mensagem trazida pelas Igrejas neopentecos‑
tais parece a única esperança: “Deus quer ver 
seu povo seguro e próspero”. 
Para tanto, são necessários o dízimo e a 
confissão positiva. Para alguém desesperança‑
do em relação às soluções coletivas mais tradi‑
cionais, como os partidos políticos e/ou os sin‑
dicatos, por exemplo, trata‑se de um caminho 
crível para o progresso material. Além de um 
motivo poderoso de subjetivação da disciplina 
do trabalho. A fim de demonstrar as bênçãos 
de Deus sobre o crente, a ênfase no dízimo 
transforma‑se em força motriz privilegiada 
para a prosperidade econômica e consequen‑
temente para a disciplinarização do corpo do 
trabalhador. Quando pesquisamos o trabalho 
informal, tais práticas implicam jornadas em 
geral muito longas, a convivência com a vio‑
lência social e com a irregularidade de rendi‑
mentos, os incontáveis deslocamentos pela 
cidade e quadros críticos de fadiga crônica. 
Em condições tão extremas, só mesmo a fé no 
cumprimento da promessa divina da prosperi‑
dade econômica é capaz de sustentar a volição 
do trabalhador pobre. 
Até o surgimento da praga bíblica do coro‑
navírus, a quadratura do círculo encontrada 
pelo bolsonarismo parecia estar funcionando 
relativamente bem. Afinal, o apoio daque‑
les que vivem com renda entre dois e cinco 
salários mínimos manteve‑se firme, mesmo 
diante do crescimento econômico pífio colhi‑
do pelo governo em 2019. As principais lide‑
ranças evangélicas seguem firmes no barco 
bolsonarista, endossando as mais destrambe‑
lhadas atitudes do presidente autoritário. E a 
contraposição estimulada pelas milícias vir‑
tuais entre o “vagabundo” e o “pai de família” 
continuava alimentando ressentimentos no 
meio de amigos e parentes. 
prEssionando o carisma
 No entanto, algo estratégico à narrativa necro‑
política começou a manquejar com a chegada 
da pandemia. Ao fim e ao cabo, o projeto au‑
toritário de Bolsonaro depende de uma habili‑
dade importante: a fabricação de um inimigo 
interno (o petista corrupto, o vagabundo da 
ONG, o favelado bandido, a “feminazi” etc.) 
escolhido conforme as conveniências do mo‑
mento para mobilizar suas hostes reacionárias. 
Daí o verdadeiro curto‑circuito que estamos 
observando no governo. Afinal, o que fazer 
quando o inimigo interpela a humanidade 
como um todo, e não apenas parte dela, aque‑
la mais desavisada e susceptível às fake news? 
Como sustentar um projeto necropolítico quan‑
do estamos todos no mesmo barco ou quando 
o inimigo deixa de ser “desumanizável” por já 
não ser humano? 
Até o momento, a estratégia bolsonarista 
tem se agarrado encarniçadamente ao modelo 
necropolítico, ou seja, tem buscado reinventar 
o inimigo interno. A Covid‑19 não passaria de 
uma “gripezinha”. Na verdade, o perigo seria 
a aliança entre governadores, presidente do 
Congresso, juízes do Supremo e a rede Glo‑
bo, que conspiram contra o governo federal 
por apoiarem as medidas de isolamento so‑
cial. O argumento negacionista pode flutuar 
um pouco, às vezes admitindo certos riscos 
trazidos pela pandemia para os idosos. Mas o 
verdadeiro perigo seria a ardilosa conspiração 
contra o “mito”. 
O protestantismo, assim como 
o capitalismo, conservou sua 
própria legalidade, evoluindo 
historicamente de forma mais 
ou menos autônoma um em 
relação ao outro
25
dossiê
O que chama a atenção é que a estratégia 
bolsonarista logrou até certo ponto reinventar 
a polarização necropolítica, levando pessoas às 
ruas em carreatas a fim protestar contra o iso‑
lamento social. Por um lado, temos os alinha‑
dos ao discurso presidencial, segundo o qual o 
sistema político tradicional e a rede Globo se‑
meiam a morte econômica da população pobre 
ao advogar medidas de isolamento que invia‑
bilizam os pequenos negócios e a economia 
informal. Por outro lado, temos os perfilados 
com a Organização Mundial de Saúde (OMS), 
esgrimindo gráficos epidemiológicos em de‑
fesa da testagem em massa e do isolamento 
social como a maneira mais eficiente de evitar 
milhares de mortes físicas. O negacionismo 
bolsonarista elegeu até seu campeão na ba‑
talha contra o vírus: a cloroquina e a hidroxi‑
cloroquina. Ou seja, a guerra entre “bolsomi‑
nions” e “petralhas” foi substituída por uma 
furiosa batalha paneleira entre “cloroquiners” 
e “quarenteners”. E a necropolítica agora ali‑
menta uma escolha de Sofia: o que é preferível, 
a morte econômica ou a morte física?
Ao mesmo tempo que trata de reinventar 
sua estratégia em torno da mobilização per‑
manente contra o inimigo interno, o governo 
federal tenta se livrar do ônus da crise econô‑
mica vindoura, transferindo‑o para o colo de 
prefeitos e governadores que adotaram medi‑
das isolacionistas. Ou seja, busca se livrar da 
culpa pela crise social que se avizinha, tentan‑
do assumir a capa do defensor do emprego e da 
renda dos trabalhadores precários. Assim, Bol‑
sonaro imagina localizar‑se confortavelmente 
no hipotético cenário da contenção do vírus so‑
mada a uma crise econômica branda. Poderia 
então surgir como único líder de um país rele‑
vante a afirmar que o remédio do isolamento 
era mais amargo que a cura da pandemia. 
Há alguma chance de o ardil político bol‑
sonarista alcançar êxito? Grande parte da 
equação montada pelo “gabinete do ódio” pre‑
sidencial depende da resiliência das atuais ba‑
ses populares do governo. O cálculo seria mais 
ou menos o seguinte: se chegar ao fim da crise 
contando ainda com o apoio de cerca de 20% 
do eleitorado, Bolsonaro termina o mandato 
ainda com chances de figurar em 2022 entre 
os dois candidatos nas urnas do segundo tur‑
no. E o medo do retorno da esquerda ao poder 
lhe asseguraria um novo mandato. Trata‑se de 
uma aposta altamente arriscada, pois subsu‑
mida aos humores populares em um momento 
de crise social. Aqui, vale lembrar que nos re‑
ferimos basicamente aos evangélicos, que em 
2018 garantiram ao candidato ultradireitista 
uma dianteira de mais de 10 milhões de votos 
sobre Fernando Haddad. 
No entanto, como bem nos lembra Max We‑
ber em sua célebre sociologia política, quando 
a fé no cumprimento da promessa divina que 
Como bem nos lembra Max Weber em sua célebre 
sociologia política, quando a fé no cumprimento 
da promessa divina que sustenta a adesão do 
crente ao líder carismático vê-se abalada pela 
fragilidade das provas da graça, inicia-se um 
interregno reflexivo que usualmente progride 
na direção do abandono do chefe
26
sustenta a adesão do crente ao líder carismá‑
tico vê‑se abalada pela fragilidade das provas 
da graça, inicia‑se um interregno reflexivo que 
usualmente progride na direção do abandono 
do chefe. Afinal, a lealdade do crente ao supos‑
to escolhido por Deus nunca é incondicional 
e pode avançar na direção de um divórcio liti‑
gioso. Se o desemprego aumentar ainda mais e, 
por consequência, os subempregos explodirem 
em número, deteriorando as condições de vida 
e de trabalho dos mais pobres, é bem possível 
que testemunhemos uma reviravolta na rela‑
ção de afinidade eletiva entre a ética neopente‑
costal da prosperidade e o empreendedorismo 
econômico plebeu que, até o momento, favore‑
ceu a adesão de setores populares ao carisma 
de Jair Messias Bolsonaro. 
O presidente ultradireitista apostou em 
uma crise de saúde pública mais ou menos 
controlada pelos governos estaduais e muni‑
cipais, seguida por uma recuperação econô‑
mica rápida nos próximos anos como forma 
de assegurar a popularidade de seu projeto 
autoritário. Para tanto, conta com alguns 
trunfos importantes, como o pagamento do 
auxílio emergencial de 600 a 1.200 reais aos 
trabalhadores informais. Não resta dúvida 
de que, num primeiro momento, o governo 
será beneficiado pelos pagamentos emer‑
genciais. Todavia, não está claro que efeito 
político de médio prazo a experiência popu‑
lar em relação à rendacidadã teria sobre a 
massa precarizada de quase 90 milhões de 
pessoas que se inscreveram no programa ape‑
nas até o fechamento desta edição, no mês de 
abril. Afinal, o ultraneoliberalismo de Paulo 
Guedes preconizou sistematicamente o des‑
manche de direitos sociais protetivos. E seu 
êxito foi percebido por muitos. 
Em 2019, quando participei de uma pes‑
quisa sobre trabalho e sofrimento psíquico, 
tive a oportunidade de verificar que muitos 
jovens entrantes no mercado de trabalho 
informal nem pensavam em se aposentar 
algum dia. A maior parte nem ao menos mi‑
rava um emprego com carteira de trabalho. 
Esses jovens consideravam a proteção social 
excessivamente distante de suas possibilida‑
des, afirmando até com certo orgulho que não 
precisavam receber “favores” de governo ne‑
nhum. Quando indagados sobre o futuro, es‑
ses jovens professavam sua fé na providência 
divina: “Deus proverá meu sustento”. Não é 
difícil identificar uma ética influenciada pela 
teologia da prosperidade vertebrando a visão 
social de mundo desses jovens. 
No entanto, como conciliar este ethos la‑
boral com a necessidade de acessar uma po‑
lítica pública emergencial desenhada para 
enfrentar o achatamento dos rendimentos 
dos informais causado por medidas de isola‑
mento social? Ou como mitigar os riscos da 
pandemia quando os trabalhadores precários 
estão entre os grupos mais expostos à disse‑
minação do vírus? É pouco crível o cenário 
futuro traçado pelo governo ultradireitista, 
apoiado em uma pandemia controlada segui‑
da por rápida recuperação econômica. Resta 
saber como as bases populares do projeto au‑
toritário reagirão quando perceberem que, ao 
contrário do que dizem o ministro da Econo‑
mia e os pastores televangelistas, a ação do 
Estado será cada dia mais importante para 
assegurar a subsistência dos trabalhadores 
pobres em meio à pandemia. 
Aparentemente, o apoio das comunidades 
periféricas às medidas de isolamento social 
esboça os contornos da mudança no humor 
popular. O bolsonarismo pode estar prestes a 
descobrir que, mesmo em sua versão neolibe‑
ral, a teologia da prosperidade deve ser capaz 
de agasalhar aqueles que aderirem a ela. E que, 
ao fim e ao cabo, o projeto necropolítico levado 
adiante pela “familícia”, com ou sem distribui‑
ção massiva de cloroquina e hidroxicloroquina, 
contradiz o amparo espiritual e a prosperida‑
de material que o crente busca nessa religião. 
Afinal, o bolsonarismo não é uma nova subs‑
tância social criada pelas afinidades eletivas 
existentes entre a teologia da prosperidade e o 
empreendedorismo popular. Na realidade, tra‑
ta‑se apenas de outro falso ídolo com a cabeça 
de ouro, o peito de prata, as pernas de ferro e os 
pés de barro. 
27
christian ingo lEnz dunkEr
a alEgoria lacaniana da pEstE convoca dEtErminaçõEs mÉdicas, 
sanitárias E Econômicas à luz da ciência, mas dEsEncadEia 
conturbados procEssos Éticos, políticos E morais
A ética da 
psicanálise 
e a peste 
generalizada
dossiê
eram nomeadas de As Benévolas para evitar 
que se pronunciasse o nome delas, por medo 
de que isso atraísse o castigo e a cólera. 
A ironia final sugere que, punida pela Nê‑
mesis, ou seja, como se fosse uma deusa, a 
peste seria devolvida para sua casa em passa‑
gem de “primeira classe”, ou seja, de fonte de 
miséria e infortúnio a psicanálise poderia se 
inverter em passatempo luxuoso e rico, per‑
dendo toda sua “virulência”. Isso se ajusta à 
tônica repetitiva dos comentários de Lacan 
contra o anti‑intelectualismo e o conformis‑
mo das Sociedades de Psicanálise, contra o 
“carreirismo” dos candidatos a psicanalistas 
e contra os compromissos ideológicos que 
os psicanalistas deveriam evitar como ideais 
ilusivos da modernidade, a saber: o ideal do 
amor humano concluído, o ideal da autenti‑
cidade e o ideal da não‑dependência. É com 
a crítica desses três ideais que Lacan abre seu 
Seminário sobre a ética da psicanálise, quatro 
anos depois. Um ano antes, em seu texto mais 
importante sobre o tratamento, chamado A 
direção do tratamento e os princípios de seu po-
der, Lacan afirmava que estava por se formular 
uma ética da psicanálise que pusesse em sua 
cúspide a questão do desejo. 
A peste é uma alegoria precisa para os pro‑
pósitos de Lacan, por se colocar exatamente 
na encruzilhada entre os dois mundos dos 
quais emerge a psicanálise como discurso, 
como clínica e como ética. A peste é ao mes‑
mo tempo um fenômeno natural, cuja gênese 
pode ser estudada pela medicina e pela bio‑
logia, a partir de seus vetores e de sua etiolo‑
gia, e um acontecimento social, que envolve 
a interpretação de afetos, como o medo e a 
vingança e a mobilização de uma atitude ética. 
Para Lacan, a psicanálise é filha da moderni‑
dade, da ciência e do sujeito cartesiano com 
seu espírito das Luzes, mas sua ética pode ser 
reconstruída a partir das tragédias gregas, da 
Ética a Nicômaco de Aristóteles e do amor cor‑
tês, essa figura da aurora renascentista. Não é 
por outro motivo que ele dirá, na mesma fra‑
se, que o “sujeito sobre quem operamos em 
psicanálise só pode ser o sujeito da ciência” e 
que “por nossa posição de sujeito somos sem‑
Em uma conferência feita em Viena, em 1955, Jacques Lacan afirmou que teria ouvido da boca de Carl Gustav Jung que Sigmund Freud, quando 
chegava ao porto estadunidense de Nova York 
para as célebres conferências na Universidade 
de Clark, teria declarado: “eles não sabem que 
lhes estamos trazendo a peste”. Ao que tudo 
indica, a frase não teria sido exatamente essa, 
conforme o Dicionário de psicanálise (Zahar, 
1998), mas mesmo assim ela parece conden‑
sar a ideia de que a psicanálise seria uma prá‑
tica subversiva e crítica. Menos do que uma 
inexatidão histórica, é possível que o mito da 
psicanálise como peste, que se infiltra na cul‑
tura produzindo desordem e revelação de suas 
verdades intestinas, tenha sido a expressão do 
desejo de Lacan e funcione como uma espécie 
de síntese de seu ensino.
Se essa hipótese é razoável, seria preciso 
descobrir por que a alegoria da peste atraiu La‑
can. Examinando o contexto exato de sua apari‑
ção, três outras imagens circundam o enuncia‑
do: a estátua da Liberdade, que “ilumina o uni‑
verso”; a “arrogância, cuja antífrase e perfídia” 
ameaçam seu brilho; e a vingança (Nêmesis), 
que poderia fazer Freud voltar para a Europa 
em “passagem de primeira classe” (Escritos, p. 
404). Temos aqui o movimento característico 
da obra lacaniana, que se inscreve na herança 
do Iluminismo, da razão e da universalidade, 
mas que se depara, em um momento trágico, 
com uma espécie de exagero de confiança, o 
que a torna arrogante e exposta crescentemen‑
te à perfídia (intriga) e ao temor (antífrase). 
A figura retórica da antífrase não indica ape‑
nas ironia ou sarcasmo, mas uma inversão se‑
gundo a qual, por exemplo, o pior pode emergir 
do melhor. Quando Dom João rebatiza o cabo 
das Tormentas como cabo da Boa Esperança, 
ele faz uma antífrase. Quando Eurípedes batiza 
sua peça sobre as três Fúrias de Eumênides, ou 
seja, As Benévolas, ele faz uma antífrase. Lem‑
bremos que Tisífone (Castigo), Megera (Ran‑
cor) e Alecto (Inominável) eram três Erínias, 
ou seja, elas puniam os crimes humanos, ao 
passo que Nêmesis, a deusa mencionada por 
Lacan, punia apenas os deuses. Ora, as Fúrias 
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dossiê
pre responsáveis” (Escritos, p. 873), ou seja, um 
aparente paradoxo, porque se poderia dizer que 
o sujeito da ciência e o discurso que dela emana, 
enquanto qualificação apurada da razão, pede 
apenas que os sujeitos “obedeçam”. Mas não é 
só isso. Segundo o argumento de Lacan, é pre‑
ciso responsabilidade pela própria posição de 
sujeito, e responsabilidade é uma noção ético‑
‑jurídica, e não apenas cognitivo‑científica. 
Percebe‑se assim como a alegoria lacania‑
na da peste dialoga com o momento atual de 
generalização da peste, figurada pela pande‑
mia do novo coronavírus. Ela convoca deter‑
minações médicas, sanitárias e econômicas à 
luz da ciência, mas desencadeia conturbados 
processos éticos,

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