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Inovação Social para Aperfeiçoamento de Políticas Públicas Políticas Públicas: Ciclo e Mecanismos de Participação 2 M ód ul o 2Enap Fundação Escola Nacional de Administração Pública Enap, 2019 Enap Escola Nacional de Administração Pública Diretoria de Educação Continuada SAIS - Área 2-A - 70610-900 — Brasília, DF Fundação Escola Nacional de Administração Pública Presidente Diogo Godinho Ramos Costa Diretor de Educação Continuada Paulo Marques Coordenadora-Geral de Educação a Distância Natália Teles da Mota Teixeira Conteudista/s (nome/s) Adriane Vieira Ferrarini; Monika Weronika Dowbor da Silva; Wanda Engel Aduan; e Júlia Moretto Amâncio. Curso produzido em Brasília 2019. 3Enap Fundação Escola Nacional de Administração Pública Sumário 1. Abertura ........................................................................................................................... 5 2. Ciclo de Elaboração de Políticas Públicas ........................................................................... 5 2.1. Identificações de problemas................................................................................................. 6 2.2. Formação de agenda de governo ......................................................................................... 8 2.3. Especificação de alternativas .............................................................................................. 11 2.4. Decisão política .................................................................................................................. 14 2.5. Implementação................................................................................................................... 15 2.6. Avaliação ............................................................................................................................ 19 3. Atores no Ciclo de Políticas Públicas: quem importa e quando? ..................................... 20 4. Controle Social: o que é, para que serve e como funciona ............................................... 20 4.1. Controle Social e Garantia de Direitos ................................................................................ 21 5. Inovação Social na Política Pública .................................................................................. 22 5.1. Problemas sociais complexos ............................................................................................. 24 5.2. Para que e como inovar em políticas públicas .................................................................... 25 4Enap Fundação Escola Nacional de Administração Pública 5Enap Fundação Escola Nacional de Administração Pública M ód ul o Políticas Públicas: Ciclo e Mecanismos de Participação2 1. Abertura Olá! Já estamos na metade do curso. Vimos o que é a Inovação Social, sua importância e aplicações. A ideia, agora, é falar do ciclo das políticas públicas para pensarmos juntos em que momento é possível inovar, trazer ou apoiar uma inovação. Pensar uma política por ciclo ajuda a gente se organizar, pensar as estratégias e as formas de atuação. Vamos lá!? 2. Ciclo de Elaboração de Políticas Públicas Você já deve ter ouvido frases como “O programa Bolsa Família atingiu 50 milhões de brasileiros”, “O governo decide dar maior atenção às questões de segurança”, “Saiu, no Diário Oficial, a decisão da prefeita sobre a merenda escolar” ou “Os serviços de saúde não chegam à população mais pobre do nosso município”. De quê elas estão falando? O que elas têm em comum é falar de etapas que qualquer política pública atravessa para chegar até o cidadão. A frase “O programa Bolsa Família atingiu 50 milhões de brasileiros” diz respeito à implementação do programa. A frase “O governo decide dar maior atenção às questões de segurança” faz referência ao momento em que um problema entra na agenda do governo. A frase “Saiu, no Diário Oficial, a decisão da prefeita sobre a merenda escolar” fala da decisão política, ou seja, do martelo que o político bateu para implementar uma dada política. Essas etapas são invisíveis ou pouco perceptíveis aos usuários de serviços. São processos mais conhecidos pelas lideranças comunitárias e os quais os gestores públicos já estão “carecas de saber”. Pois, uma política pública, antes de se materializar como uma aula na escola ou um atendimento na Unidade Básica de Saúde, atravessa um processo longo, do qual participam diversos atores sociais e estatais e no qual se misturam cooperação e conflitos. Nesta primeira parte do Eixo 2, a ideia é falar desses processos de elaboração de políticas públicas por etapa para pensarmos em que momentos é possível inovar, trazer ou apoiar uma inovação. Pensar uma política por etapas ajuda a gente a se organizar, pensar as estratégias e as formas de atuação. Basicamente, são seis etapas: identificação de problemas; formação de agenda de governo; especificação de alternativas; decisão política; implementação; e avaliação. 6Enap Fundação Escola Nacional de Administração Pública A seguir, você vai saber mais sobre cada uma delas e suas características mais relevantes para nossa discussão nesse curso. 2.1. Identificações de problemas Nem todas as coisas que acontecem no mundo são vistas como problemas públicos. A ausência de negros nas universidades públicas não era vista como problemática para a grande maioria das pessoas até uns 20 anos atrás. Hoje, temos cotas para incluir a população negra e permitir a ela uma educação superior. Isso significa que alguns atores conseguiram trabalhar essa questão como problema, ou seja, como situação que gera injustiça, desigualdade, sofrimento etc., para um grande grupo de pessoas e, portanto, precisa de uma solução pública. Essa etapa do ciclo de políticas públicas se chama a identificação de problemas. Quais atores se encarregam de identificar os problemas? Muitas vezes são movimentos sociais, candidatos a políticos, partidos e organizações não governamentais. Identificar problemas exige 7Enap Fundação Escola Nacional de Administração Pública trabalho e mobilização para a visibilização dos problemas e a consequente sensibilização da opinião pública. Leia mais no box abaixo: 8Enap Fundação Escola Nacional de Administração Pública Identificar o problema, isto é, enquadrar uma situação que não pode ser resolvida pelo indivíduo e que, portanto, demanda uma solução pública não significa que imediatamente ela irá se tornar uma pauta assumida pelo governo. Para tanto, é preciso que o problema identificado seja colocado na lista de prioridades de governo. Esta próxima fase é denominada de formação de agenda de governo. Pergunta Questão Reflexiva 7: Quais são os problemas identificados, mas ainda não atendidos pelo poder público no seu município? Quem são os atores que buscam dar visibilidade a esses problemas? Se não conseguir identificar no seu município, pense no nível estadual ou ainda no federal. 2.2. Formação de agenda de governo Alguns problemas entram na lista de prioridades de governo, ou seja, na agenda de governo. Isto é, são reconhecidos pelo(a) político(a) portador(a) de mandato como relevantes e aos quais ele/ela vai dedicar atenção. Como vocês podem imaginar, os problemas são muitos e os recursos sempre limitados, portanto o político(a) tem que decidir quais serão suas prioridades e em que ordem serão realizadas. Por que uns e não outros? A resposta não é simples – são, ao menos, três processos que precisam ocorrer juntos para que isso aconteça. Para entender isso, leia o texto no box a seguir. Como alguns temas e não outros entram na agenda de governo? “Assim, os problemas constituem o ponto de partida para a geração de uma política pública. Mas, que problemas são reconhecidos pelos governantes como relevantes? Como se dá este processode reconhecimento?" Foi com estas perguntas que Kingdon (1984) propôs um estudo sobre duas políticas públicas (saúde e transportes) desenvolvidas nos EUA, buscando compreender como alguns temas relativos a estas áreas passaram a integrar a agenda política governamental e como foram geradas as alternativas para a tomada de decisão. Ressalte-se que toda sua preocupação estava voltada para a política governamental e a decisão neste âmbito. Suas perguntas resumiam-se em saber quando e de que forma um problema entrava ou não na agenda decisória de um governante. O estudo não se resumiu a identificar as agendas em debate, mas como uma agenda se constituía. O autor concluiu que a entrada de novos problemas na agenda decisória não é produzida por um processo necessariamente incremental, mas resultado de uma combinação de fluxos independentes que atravessam as estruturas de decisão – o fluxo de problemas (problem stream), o fluxo de soluções e alternativas (policy stream) e o fluxo da política (politics stream). Com isso, destacou que os formuladores 9Enap Fundação Escola Nacional de Administração Pública de políticas não conseguem atuar, o tempo todo, em todos os problemas e que apenas alguns temas são capazes de atrair a atenção dos formuladores e entrar na agenda decisória. O que produz, muitas vezes, mudanças abruptas, a partir da produção de uma combinação inédita. Os três fluxos são caracterizados pelo autor da seguinte forma: - Fluxo de problemas – remete às condições sociais e à forma como cada condição desperta a necessidade de ação. Problemas podem ser percebidos a partir de indicadores (por ex.: taxas de mortalidade), de eventos, crises e símbolos (por ex.: desastres, acontecimentos), ou no feedback de ações governamentais (por ex.: no acompanhamento de atividades implementadas, retorno de metas e outros). Um problema, quando identificado por dados quantitativos, por crises, ou pelo retorno de ações governamentais, assume grande importância no debate de formulação de políticas, contribuindo para a construção de argumentos em favor de uma política que busque resolver tais questões. Ainda assim, a evidência dos problemas não é capaz de influenciar isoladamente a tomada de decisão, exigindo uma articulação com os demais fluxos. - Fluxo de alternativas e soluções – são propostas rotineiramente elaboradas por especialistas, funcionários públicos, grupos de interesse, entre outros. Esses diferentes grupos mobilizam comunidades de políticas que se envolvem com determinados temas e aguardam o surgimento de oportunidades para propor soluções para os problemas. As alternativas e soluções estão disponíveis e quando os problemas surgem, para a efetiva consideração no processo decisório das políticas, eles passam por um processo competitivo de seleção. - Fluxo político – dimensão da política "propriamente dita", na qual as coalizões são construídas a partir de barganhas e negociações. Neste fluxo, três elementos exercem influência sobre a agenda governamental: o "clima" ou "humor" nacional (por ex.: um momento político favorável a mudanças, dado o carisma de um governante ou a conjuntura política, econômica e social); as forças políticas organizadas (grupos de pressão); e mudanças no interior do próprio governo. Para Kingdon (1984), cada um destes fluxos têm vida própria e segue seu caminho de forma relativamente independente, como o fluxo ou a corrente de um rio. Porém, em alguns momentos, estes fluxos convergem criando "janelas de oportunidade" (policy windows), possibilitando a formação de políticas públicas ou mudanças nas políticas existentes. Ou seja, uma janela de oportunidade apresenta um conjunto de condições favoráveis a alterações nas agendas governamental e de decisão e à entrada de novos temas nessas agendas (Figura abaixo). 10Enap Fundação Escola Nacional de Administração Pública Fonte: BATISTA; REZENDE, 2011 p. 143-146.¹ 1 Aqui, o ponto que gostaríamos de ressaltar é que a agenda de governo, entendida como lista de assuntos considerados como importantes pelo poder público, é uma janela de oportunidade. A lista dessas prioridades assumidas publicamente pelo político em exercício do mandato implica que elas serão, muito provavelmente, transformadas em políticas públicas. A agenda de governo é a carta pública de intenções do político com a qual ele se compromete e pela qual será avaliado ao final do mandato, isto é, no período eleitoral seguinte. Para aqueles atores que já identificaram um problema social e buscam transformá-lo em uma política pública, essa é a chance de pressionar bem como apresentar a sua solução para ele. Essas soluções ganham o nome de alternativas e sobre elas vamos falar a seguir. Pergunta Questão Reflexiva 8: Quais são os problemas que estão na agenda de governo do seu município? Quais não estão na agenda, mas são demandados pela sociedade civil e/ou sociedade em geral? Por quê? Elabore algumas hipóteses. ¹BAPTISTA, T. W. F.; REZENDE, M. A ideia de ciclo na análise de políticas públicas. In MATTOS, R. A.; BAPTISTA, T. W. F. Caminhos para análise das políticas de saúde, 2011. p.138-172. Online: disponível em www.ims.uerj.br/ccaps. 11Enap Fundação Escola Nacional de Administração Pública 2.3. Especificação de alternativas Se o governo está em busca de uma solução para um dado problema, isso significa que esse problema foi incorporado na agenda governamental. Isto é, ganhou destaque e atenção dos políticos e dos gestores públicos. É importante frisar esse ponto, pois essa situação constitui uma oportunidade política para diversos atores apresentarem a sua forma de resolver um dado problema público. Isto quer dizer que a inovação construída e experimentada por um conjunto de atores, na medida em que ela se propõe a resolver um problema presente na agenda de governo, pode passar a ser uma alternativa para a política pública. É a etapa na qual essas inovações podem ser apresentadas aos gestores públicos. Vamos imaginar que o acesso precário da população à saúde básica nas periferias de grandes cidades foi incorporado à agenda do governo. Na medida em que entra na agenda, diversos atores se mobilizam para apresentar suas formas de solucioná-lo. Um programa de médico de família? Equipes multiprofissionais? Contratação de empresas de saúde para fornecer planos baratos à população carente? Essas soluções correspondem a modos diferentes de entender a saúde pública e foram geradas por diferentes atores que disputam, entre si, a influência e incidência nos processos decisórios. Nosso ponto, aqui, é que inovações sociais também podem ser encontradas no bojo dessas propostas concorrentes. As inovações sociais apresentadas como alternativas têm que corresponder a alguns critérios objetivos e precisam ser divulgadas. Os critérios abrangem tanto a viabilidade técnica, quanto a congruência com os valores dos membros da comunidade de especialistas na área e com os limites orçamentários, além da aceitabilidade do público e a receptividade dos políticos. O preenchimento desses critérios é importante, mas não suficiente. As soluções precisam ser trabalhadas: apresentadas e defendidas como alternativas no momento em que a atenção do governo se volta para a busca de soluções para problemas presentes na sua agenda. Neste sentido, aqui, é importante a ação de indivíduos e grupos – vamos chamá-los de empreendedores de políticas. Eles precisam fazer a promoção de alternativas de forma estratégica, em diferentes formatos e em diversos espaços, entre os quais: audiências públicas, informações vazadas para a imprensa, circulação de documentos técnicos e discursos. É mediante esse trabalho de divulgação e promoção que as soluções chegam aos tomadores de decisão e podem ser comparadas às alternativas para um dado problema público. Não raramente, os movimentos sociais que propõemcausas desafiadoras são produtores de alternativas de políticas públicas. O box abaixo apresenta um estudo de caso sobre a formação de profissionais no SUS. Nele, você vai ver como um movimento social fez a identificação de um problema, propôs soluções inovadoras e obteve financiamento, contando com um sistema de avaliação e sistematização, para a prototipagem de soluções alternativas. A proposta de solução foi discutida com a sociedade civil e se transformou em política pública. Este caso mostra uma inovação social tanto como produto quanto como processo. Esta perspectiva integrada, como já fora vista, é fundamental para o sucesso da inovação social. Os movimentos sociais podem produzir as alternativas inovadoras. Leia, no box abaixo, um estudo de caso sobre como o Movimento Sanitário mudou os cursos de saúde, de modo a formarem os profissionais para o sistema público de saúde. 12Enap Fundação Escola Nacional de Administração Pública Por Monika Dowbor A formação de recursos humanos para o sistema público de saúde pode soar como termo meramente técnico ou gerencial. Mas o Movimento pela Reforma Sanitária, em sua luta pelo acesso universal à saúde como direito dos cidadãos e dever do Estado, adotou essa estratégia desde o início de sua atuação, nos anos 1970. Os próprios ativistas eram formados em departamentos e cursos de perfil alternativo ao modelo de formação voltado para o mercado de medicina tradicional e sabiam que sem quadros preparados para atuar na especificidade da rede pública e seus usuários, o futuro sistema se tornaria frágil e vulnerável. Assim, ao longo de décadas desenvolveram atividades de formação alternativa em experiências- piloto ou na margem do sistema educacional. Duas delas se destacam: o Projeto Integração Docente-Assistencial (IDA) do início dos anos 1980 e o programa “Uma Nova Iniciativa na Educação dos Profissionais de Saúde: união com a comunidade” (UNI) do início dos anos 1970. A ideia destes projetos que abrangiam poucas universidades consistia em alinhar a formação dos futuros profissionais de saúde (universidades) às necessidades de saúde da população (comunidade) e dos serviços públicos (administração pública) dentro de uma visão pública, preventiva, comunitária e coletiva de saúde (Pires-Alves e Paiva, 2006). Os Projetos iam na contramão do modelo em vigência nas escolas de medicina, marcado pelo modelo biologizante e curativo. Em função da metodologia de trabalho do financiador, a Fundação Kellogg, desde o início dos projetos programou um sistema de avaliação e sistematização, por meio de encontros anuais entre os coordenadores dos projetos em suas respectivas universidades (Barbieri, 2006, p. 49). Com a sistematização, os projetos se consolidaram como inovações sociais que expressavam a expertise do Movimento Sanitário na criação de uma proposta de formação dos profissionais de saúde com uma visão de saúde pública. Os encontros realizados se transformaram, influenciados pelo contexto da transição democrática e da mobilização do próprio Movimento pela Reforma Sanitária, em encontros anuais de debate e articulação políticos (Barbieri, 2006, p. 49), conformando um “movimento para a formação de novo profissional de saúde”. Em 1996, o movimento ganhou um impulso organizacional: durante o Seminário Nacional sobre a Formação de Recursos Humanos em Saúde foi constituída a Rede Unida. Foi proposto que a Rede passasse a incorporar não só os Projetos, mas universidades, outras instituições de pesquisa e ensino e indivíduos interessados no tema. A relação com a Fundação Kellogg, os encontros de sistematização e avaliação dos projetos-piloto e a ampliação do movimento através da Rede Unida robusteceram a inovação social, consolidando o seu desenho de forma a convertê- la em “propostas inovadoras em formação e capacitação de recursos humanos” coerentes com os princípios do SUS e com pessoas que compartilhassem “o desejo de promover mudanças nos modelos de ensino e de atenção à saúde no Brasil” (Rangel e Vilasbôas, 1996, p. 16 e 18). 13Enap Fundação Escola Nacional de Administração Pública A possibilidade de mudança na política pública se abriu com a reformulação das diretrizes curriculares dos cursos superiores promovida pelo Ministério da Educação (MEC) aberta à sociedade civil. A discussão sobre as novas Diretrizes Curriculares foi possibilitada pela reforma da Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB) que culminou na Lei nº. 9.394/1996. A reforma consistiu no abandono do sistema de currículos mínimos com detalhamento das disciplinas que deviam compor cada curso e na adoção de linhas gerais capazes de definir quais as competências e habilidades que se deseja desenvolver nos cursos em cada contexto. O MEC abriu, em 1997, um edital convidando as instituições de ensino superior e suas entidades representativas a apresentarem propostas para as novas diretrizes curriculares dos cursos de graduação que iriam substituir os rígidos currículos mínimos que pautavam a formação no país. O edital se constituiu em um ponto de acesso no qual o movimento criou um encaixe de modo a influenciar o processo decisório. A informação sobre a abertura do edital foi compartilhada numa das oficinas da Rede Unida, e o coletivo decidiu explorar essa oportunidade política (Feuerwerker, entrevista, 2012). Ao preparar a proposta, a Rede aproveitava o acúmulo das experiências já sistematizadas e compartilhadas dos projetos UNI e IDA para respaldar e legitimar sua proposta. A transformação desta inovação social em alternativa de política pública foi complexa. A Rede Unida chamou para se posicionarem a favor de sua proposta importantes e reconhecidas organizações do campo, tais como a Associação Brasileira de Educação Médica (ABEM), a Associação Brasileira de Enfermagem (ABEn), o Conselho Nacional de Saúde (CNS), a Coordenação de Recursos Humanos do Ministério da Saúde, o Conselho Nacional de Secretários de Saúde (Conass), o Conselho Nacional de Secretários Municipais de Saúde (Conasems) e diferentes universidades (Feuerwerker et al., 2000, p. 15), compondo uma coalizão de defesa em torno da pauta do movimento. Não havia garantias no Edital de que as propostas fossem de fato consideradas pelas Comissões de Especialistas do MEC, e estas, como logo percebeu a Rede Unida, que acompanhou o processo passo a passo, não levaram em conta as contribuições enviadas. A Rede exigiu a mudança na composição das Comissões e, para tanto, recorreu à influência e posição institucional que o Conselho Nacional de Saúde tinha diante do Conselho Nacional de Educação. A negociação se desdobrou em convocação de audiências públicas apresentadas como exigência do setor de saúde. Por meio delas, o processo, antes limitado ao envio das propostas, tornou-se mais aberto à influência dos atores articulados em torno da Rede Unida. Três anos depois, por decisão das instâncias competentes formadas pela Câmara de Educação Superior (CES) e Conselho Nacional de Educação (CNE), as diretrizes curriculares para o ensino em Medicina, Enfermagem e Nutrição foram homologadas em 2001. As novas diretrizes refletiam o perfil de formação defendido e implementado nas duas experiências-piloto desenvolvidas pelos ativistas do Movimento Sanitário. Na avaliação do Movimento, havia “enormes coincidências” entre o aprovado e a proposta da Rede Unida (Almeida, entrevista apud Olho Mágico, 2001). 14Enap Fundação Escola Nacional de Administração Pública Em suma, a inovação social elaborada pelo movimento no que diz respeito à formação de recursos humanos para saúde foi apresentada às instituições do Estado em uma janela de oportunidade que consistiu na abertura de discussão das diretrizes curriculares dos cursos superiores com a sociedade civil. O movimento interferiu no processo decisório, aproveitando a permeabilidade do Estado pormeio de audiências públicas e ampliando suas redes. Sua proposta foi aceita como alternativa de política, convertendo-se nas diretrizes curriculares, instrumento da política de formação de pessoal em saúde, coerente com a visão do Movimento pela Reforma Sanitária. O objetivo geral das diretrizes não deixava dúvidas quanto ao redirecionamento da formação ao encontro das necessidades do Sistema Único de Saúde: “construir perfil acadêmico e profissional com competências, habilidades e conteúdo, dentro de perspectivas e abordagens contemporâneas de formação pertinentes e compatíveis com referências nacionais e internacionais, capazes de atuar com qualidade, eficiência e resolutividade, no Sistema Único de Saúde (SUS), considerando o processo da Reforma Sanitária Brasileiro” (Parecer CNE/CES nº. 1133). No caso dos cursos superiores, as linhas norteadoras dessa formação desenvolvida pelo movimento foram transformadas, em 2001, em diretrizes curriculares nacionais a serem seguidos em todos os cursos de medicina. 2.4. Decisão política Como vimos na etapa anterior, existem várias soluções para cada problema que alcançou a agenda. Estão, por trás de cada uma delas, atores com seus interesses e visões de mundo que, não raramente, são conflitantes. O tomador de decisão, normalmente, o(a) político(a) que ganhou as eleições, vai decidir qual solução será dada ao problema, ou, nos nossos termos, qual a alternativa selecionada. Nem sempre os tomadores de decisão optam, do ponto de vista dos cidadãos e suas necessidades, pelas melhores soluções. A limitação de recursos, de capacidades estatais e o tempo restrito são algumas das razões por trás de escolhas menos satisfatórias. Além do mais, o acesso ao Estado de alguns grupos com maior capacidade de influência pode favorecer uma solução em detrimento de outra. Sabe-se, muito raramente, claramente qual é a causa de um dado problema – pensem, por exemplo, no desempenho escolar dos alunos e suas causas - e, portanto, a política pública adotada pode apenas trabalhar em cima de uma delas. Por fim, às vezes, são as soluções que estão na mão e os tomadores de decisão saem em busca do problema. Tendo isso em mente, o cerne dessa etapa continua sendo a decisão que direciona a ação atrelada a recursos e nos leva à próxima etapa: a implementação. 15Enap Fundação Escola Nacional de Administração Pública 2.5. Implementação Uma possível definição da implementação pode ser: as ações dos indivíduos ou grupos, públicos ou privados, que, mediante decisões acerca das políticas, são dirigidas ao alcance de objetivos previamente estabelecidos. Então, a implementação é a mera execução de ordem que vem de cima? Não só. A implementação é a execução, mas também traz novas decisões e novas alternativas. É, portanto, uma etapa fértil para as inovações. Elas podem ser criadas durante a implementação de serviços públicos. Podem ser disseminadas em outros lugares, se percebidas e sistematizadas, trazendo a melhoria de serviços onde eles mais importam – para os seus usuários. A implementação é o processo onde ocorre a efetivação do que foi planejado na etapa da formulação da política pública. Ao colocar em prática as diretrizes, planos e ao consolidar seu orçamento, entretanto, evidenciam-se problemas, dificuldades, limitações e emergem diversas demandas por ajustes no planejamento inicial. Isso significa que a implementação é mais do que simplesmente um processo administrativo que coloca em prática o que foi definido anteriormente na esfera política; ela é também uma etapa dinâmica, onde gestores localizados no nível dos equipamentos que prestam serviços públicos tomam decisões, fazem mudanças de rota e interagem com gestores de outros níveis e com usuários, a fim de executar a política pública com maior qualidade para os usuários e com maior eficácia no que diz respeito aos custos e às operações. Em resumo, durante a implementação ocorre constantemente a reformulação de uma política pública, visando adaptá-la às realidades locais. Neste sentido, a implementação é uma fase crucial para o sucesso de uma política pública, pois é a partir dela que o Estado e suas decisões tomadas dentro do sistema político efetivamente encontram os usuários, chegam a se efetivar e é a partir desse momento, na entrega do serviço, que ocorre a garantia dos direitos sociais, abstratos na lei e concretos nas políticas públicas. Ou seja, é somente a partir da implementação, de fato, que uma política pública ocorre. É a partir dela que ocorre a interação entre o poder público e os usuários. É em sua concretude e a partir dela que os usuários, através do exercício do controle social, podem reivindicar melhorias na prestação dos serviços. Concebida de tal forma, não podemos compreender a implementação deslocada das demais etapas do ciclo das políticas públicas. Essa visão incorpora a ideia das etapas do ciclo como interligadas, interdependentes e não lineares ao longo do tempo. Dito de outra forma, a implementação não é necessariamente uma etapa que ocorre depois da formulação e que a ela é subordinada. Ela interage a todo tempo com a formulação, é alterada por ela, mas também a altera. O sucesso da implementação é complexo de ser mensurado, pois trata-se de um processo que ocorre ao longo do tempo, envolve uma cadeia ampla de atores, interconectados e dispersos em vários níveis federativos da gestão, e dispersos também territorialmente. Num território vasto como o brasileiro, com profundas assimetrias e especificidades regionais, a implementação torna-se ainda mais complexa e deve se pautar pelo alinhamento à diretrizes nacionais bem 16Enap Fundação Escola Nacional de Administração Pública desenhadas e consolidadas, mas que permitam adaptações às diferentes realidades. As adaptações são fundamentais para o sucesso da implementação pois permitem que a política pública atenda e se adapte exatamente a cada realidade. Conseguir ter êxito nessa adequação é uma inovação social. Abordagens de implementação: os modelos top-down (“de cima para baixo”) e bottom-up (“de baixo para cima”) Faz-se necessário, diante de tais desafios, conhecer dois modelos consagrados de implementação: top-down e bottom-up. O modelo top-down foi o primeiro a ser concebido no interior das abordagens sobre a implementação, ainda nos anos 1970, quando essa etapa do ciclo de políticas públicas emergiu nos estudos norte-americanos sobre o tema. Naquele momento, enfatizava-se o papel da formulação e da tomada de decisão para o sucesso de uma política pública e a função da implementação era, justamente, de colocar em prática, no âmbito local, aquilo que havia sido determinado centralmente. Quanto menos “desvios” no percurso entre formulação e implementação, melhor, dito de outro modo: quanto maior a aproximação entre o planejado e o realizado, maior sucesso na política pública. Há várias implicações desta concepção: a primeira delas é a adoção de uma visão linear e sequencial do ciclo de políticas públicas, o que pressupõe, consequentemente, a separação entre elas e a sucessão temporal. Também, supõe-se uma separação completa entre a política, realizada na etapa decisória do ciclo e na formulação, e a administração, realizada pela implementação. Ao longo do tempo, diversas críticas foram feitas a esse modelo a partir das observações das dificuldades de operacionalização das políticas públicas, sobretudo em contextos em que estão presentes a diversidade e a amplitude territorial. Uma das críticas mais influentes sugere que não há controle sobre o processo da implementação pelos agentes implementadores, nem autoridade deles sobre suas ações e muito menos legitimidade para possíveis escolhas que precisariam ser feitas. Ou melhor, não há a possibilidade de escolhas, correções, adaptações às realidades locais. Apenas os formuladores teriam poderde controle, decisão e autoridade sobre a política pública, precisando ser elaborada uma nova política pública para que ajustes fossem feitos. As investigações empíricas realizadas sobre a implementação retrataram, entretanto, que há padrões de trocas, negociações, barganhas, dissensos e contradições de objetivos também na implementação. Há problemas de coordenação entre entes, recursos limitados, informações escassas, ambiguidades de objetivos e diretrizes e tudo isso impacta na implementação e exige que o gestor no nível local tome decisões e faça alterações, visando a continuidade, a eficiência, a eficácia e a efetividade da política pública. No limite, apenas a partir da interação entre o que é formulado e o que é implementado há a possibilidade de efetivar as políticas. Um ponto positivo da abordagem top-down é a possibilidade de controle por parte dos formuladores de processos organizacionais, políticos e tecnológicos que condicionam a implementação. Essa afirmação parece contraditória em relação ao que foi dito anteriormente 17Enap Fundação Escola Nacional de Administração Pública sobre as fragilidades do modelo, mas aqui pode-se compreender esse controle dentro de uma perspectiva mais flexível e ancorada em diretrizes gerais que garantiriam a integridade e um padrão comum de qualidade e de objetivos na execução de uma política dentro de um território vasto. Um ponto positivo da abordagem top-down é a possibilidade de controle por parte dos formuladores de processos organizacionais, políticos e tecnológicos que condicionam a implementação. Essa afirmação parece contraditória em relação ao que foi dito anteriormente sobre as fragilidades do modelo, mas aqui pode-se compreender esse controle dentro de uma perspectiva mais flexível e ancorada em diretrizes gerais que garantiriam a integridade e um padrão comum de qualidade e de objetivos na execução de uma política dentro de um território vasto. O Bolsa Família: diretrizes nacionais e adaptações locais em equilíbrio Um exemplo desse potencial positivo do modelo top-down pode ser compreendido pelo programa Bolsa Família. O programa Bolsa Família é uma política pública implementada nacionalmente. O processo de cadastramento dos potenciais usuários ocorre localmente, mas seguindo um caderno de perguntas padronizado nacionalmente e seguindo diretrizes para o preenchimento também padronizadas. A escolha dos beneficiários e a definição do valor dos benefícios, entretanto, se dá de forma centralizada no nível nacional e despersonalizada, sendo consequência da aplicação de algoritmos e do cruzamento de dados informatizados e sem interferência de agentes públicos. A impessoalidade do processo e a centralização do mesmo no governo federal exclui a possibilidade de clientelismos locais na distribuição dos benefícios, prática muito comum na trajetória histórica da assistência social no Brasil. Entretanto, o acompanhamento dos beneficiários, bem como do cumprimento das condicionalidades do programa ocorre a partir da atuação dos assistentes sociais e das equipes de referência em cada localidade, aproximando o serviço dos usuários. Desta maneira, apesar de ser uma política pública que tem etapas de sua implementação centralizadas nacionalmente, e portanto, com características top-down, o que garante lisura dos processos e também uma padronização da distribuição dos benefícios, dos valores e do perfil dos beneficiários em um vasto e diverso território, há também momentos de sua execução em que há um protagonismo maior dos agentes locais da implementação. Esse protagonismo, entretanto, não é suficiente para romper com o controle e com os padrões tecnológicos definidos nacionalmente, mas é relevante para se atender às especificidades e necessidades regionais. É importante frisar que a inovação social pode ocorrer no modelo de implementação top-down, como vimos no caso do Bolsa Família. Entretanto, como vamos ver abaixo, ela aparece com força em modelos bottom-up. O modelo bottom-up emerge a partir das críticas feitas à abordagem top-down. Nesse modelo, a ênfase é dada ao trabalho dos agentes locais e ao seu grau de discricionariedade. Os agentes 18Enap Fundação Escola Nacional de Administração Pública locais são os agentes públicos que se encontram mais próximos do usuário na prestação de um serviço público, como um bombeiro, enfermeiro, agente de saúde ou professor. Nessa compreensão, esse agente teria uma margem maior de autonomia para fazer as adaptações das diretrizes centrais da política pública definidas na formulação dos programas. Isso porque, na medida em que ele estaria em contato direto com o usuário, teria maior conhecimento concreto da realidade em que estaria inserido, das demandas dos usuários, das especificidades da localidade, das dificuldades existentes e resistências encontradas para que a política pública fosse implementada. Sob essa perspectiva, a medida do sucesso da implementação se daria a partir da capacidade do agente fazer tais adaptações sem fugir das diretrizes gerais. A discricionariedade é o grau de autonomia que o agente possui para fazer as adaptações das diretrizes formuladas no processo da implementação. Ela é maior no modelo bottom-up e mais restrita no modelo top-down, mas nunca absoluta, em nenhum dos dois casos. Ela é importante, em maior ou menor medida, a depender do desenho institucional de uma política pública, devido a fatores que limitam a implementação, tais como: • escassez crônica de recursos; • demanda crescente por serviços (que se faz tanto maior quanto melhor a qualidade dos serviços, portanto maior a demanda potencial); • agentes locais relativamente livres de supervisão; • dificuldade de medir a performance de trabalho dos burocratas de rua; • clientes não voluntários (não há escolha entre serviços e provedores, como na iniciativa privada); e • agente não tem nada a perder por falhar, sendo complexo implementar mecanismos de controle sobre estes agentes públicos. Isso é agravado pelo fato de que, o poder dos agentes implementadores não deriva do voto e não é legitimado por ele, não havendo o elemento político como limitador de suas ações. A abordagem bottom-up vai inserir, nos estudos sobre a implementação, um foco sobre os agentes implementadores e sobre a importância dos mesmos sobre a qualidade dos serviços prestados. Passa-se a perceber que as condições de trabalho determinam as ações dos agentes locais, sendo esta uma das principais contribuições do modelo, bem como a inserção da observação acerca da discricionariedade. A discricionariedade é relevante na medida em que seu exercício modifica a política pública, mesmo contra a vontade dos formuladores. Ela insere um elemento adicional de imprevisibilidade no ciclo de políticas. Atualmente, os caminhos teóricos e práticos da implementação levam a uma perspectiva de fusão das duas abordagens, top down e bottom up, ao estilo do desenho de programas como o Bolsa Família, que usamos como exemplo nessa sessão. Uma combinação entre a definição de diretrizes nacionais, com mecanismos de controle para a efetivação das mesmas, ao mesmo tempo com possibilidades de ajustes locais, aumentando a eficiência dos programas e a qualidade dos serviços. Conseguir este equilíbrio na mescla dos dois modelos é inovar socialmente. 19Enap Fundação Escola Nacional de Administração Pública 2.6. Avaliação A avaliação é certamente um desafio para os gestores públicos, sobretudo no nível municipal. Esses desafios decorrem da ausência de capacitação dos gestores localmente, da descontinuidade das ações e dos governos, da baixa qualidade e disponibilidade de dados sobre as políticas públicas e sobre o público-alvo nos municípios e da pouca difusão de metodologias de avaliação formuladas pelo governo federal que possam ser aplicadas pelos gestores nos municípios.A avaliação é uma etapa da política pública de suma importância, pois a partir dela podemos identificar gargalos, falhas, pontos cegos e problemas que podem ser aprimorados. Podemos, também, alocar melhor os recursos públicos, sejam eles materiais ou humanos. Ainda, a avaliação é importante como ferramenta de diagnóstico de ações futuras sendo, nessa perspectiva, uma indutora de inovação. A avaliação diz respeito ao exame objetivo, sistemático e empírico dos efeitos das políticas públicas diante dos objetivos e metas estabelecidos. Ainda, há autores que dizem que é preciso avaliar as políticas públicas, não a partir de objetivos definidos previamente, mas, sim, a partir dos resultados efetivamente produzidos por elas. De toda forma, a avaliação deve ser voltada para a tomada de decisão, para a análise de problemas de gestão, ou seja, para redefinir os rumos e os investimentos futuros. Há dois tipos principais de avaliação definidas pelo momento em que ela ocorre dentro do ciclo de política pública: a avaliação ex-ante e a avaliação ex-post. Na prática, trata-se da avaliação que pode ser feita durante a implementação de uma política pública, também conhecida como monitoramento, e aquela realizada após a finalização de um ciclo da política pública. Os objetivos, as metodologias e os resultados esperados por essas avaliações são distintos, sendo que o monitoramento é voltado prioritariamente para a compreensão dos processos, das relações entre os atores e para os ajustes. Já a avaliação ao final busca mensurar a eficiência (quando se comparam os recursos gastos com os resultados obtidos), a efetividade (quando se pretende avaliar os resultados obtidos a partir dos objetivos propostos inicialmente, partindo da lógica dos formuladores da política) e a eficácia (mensurando se os usuários ficaram satisfeitos com os serviços prestados e se suas demandas iniciais foram atendidas). Pergunta Questão Reflexiva 9: Em que etapas você identificou a possibilidade de inovação no sentido de melhoria de serviços públicos? Sugerimos como leitura complementar os textos a seguir: Baptista, Tatiana W. de F.; Rezende, M. A ideia de ciclo na análise de políticas públicas. In: MATTOS, R.A; BAPTISTA, T.W.F. Caminhos para a análise das políticas de saúde, 2011. Disponível em http://site.ims.uerj.br/pesquisa/ccaps/?p=432 SECCHI, Leonardo. (2010) Cap. 3 – “Ciclo de Políticas Públicas”. In: "Políticas públicas: conceitos, esquemas de análise, casos práticos." São Paulo: Cengage Learning 133, p. 33-60. 20Enap Fundação Escola Nacional de Administração Pública 3. Atores no Ciclo de Políticas Públicas: quem importa e quando? Há, em cada etapa do ciclo de políticas públicas, diferentes configurações de atores envolvidos que importam e que querem influenciar os processos. Essa diversidade depende da estruturação do Estado, de suas capacidades em termos de burocracias, recursos e equipamentos instalados, bem como das relações estabelecidas entre o Estado, as organizações da sociedade civil e o mercado. Depende ainda do vigor da sociedade civil e da existência de movimentos sociais em uma dada área. Veremos, na última parte do curso, a importância das parcerias entre diversos atores da sociedade. 4. Controle Social: o que é, para que serve e como funciona O controle social e a participação social são temas-chave quando se trata de políticas públicas. É por meio do controle e da participação que os cidadãos levam suas demandas, percepções, reclamações e sugestões ao Estado. E o Estado, a partir daí, garante direitos e a melhoria da qualidade das políticas públicas. A ação visando garantir os direitos coletivos é o elemento fundamental que caracteriza o controle social. Encaminhada por um indivíduo ou grupo representando a comunidade, a ação de controle social, que deve ser exercida continuamente, não visa privilégios individuais ou favores, mas busca representar os interesses e necessidades de um coletivo e efetivar direitos na prática perante o Estado. Nesse sentido, o controle social é um mecanismo eficaz contra o clientelismo e as relações de favor, que não garantem direitos por tratar-se de ações ou reivindicações isoladas que visam resolver problemas imediatos de algumas pessoas. Quando se reconhece que a falta de médico não é um problema individual, mas uma necessidade da comunidade para garantir o direito fundamental à saúde, a forma de relacionar-se com o poder público é diferente e se dá na base da conquista de direitos. É dessa maneira que o controle social se torna uma ação legítima da sociedade. O controle social pode ser realizado nos diversos momentos que compõem o ciclo da política pública, e de diversas formas. Destacamos aqui o controle social realizado na fase de implementação das políticas públicas. A implementação é aquele instante em que, de fato, a política chega mais perto da população beneficiária, pois é o momento em que os serviços são prestados. Nessa etapa da política, a sociedade pode realizar controle social através de ações de monitoramento, fiscalização, pedidos de informações e reivindicação de melhorias nos serviços. É aí que as organizações de comunidades locais mais atuam, já que estão mais próximas de onde os serviços são prestados e das pessoas que utilizam esses serviços. O controle social pode ser realizado por diversos meios: através de espaços e canais 21Enap Fundação Escola Nacional de Administração Pública institucionalizados e também em ações de mobilização coletiva, como manifestações, reuniões na comunidade, abaixo-assinados, entre outros. A escolha do mecanismo de controle social depende do grau de organização da comunidade, da capacidade dos canais disponíveis em encaminhar problemas, dos aliados de que dispõem nesse processo e da disponibilidade do poder público para negociar. O controle social é uma construção permanente em que os protagonistas somos todos nós, ao nos organizarmos e buscarmos garantir direitos coletivos. 4.1. Controle Social e Garantia de Direitos A Constituição Federal de 1988 institui diversas formas de incidência dos cidadãos sobre as políticas públicas. Os mecanismos mais acessíveis ao cidadão são os conselhos gestores de políticas públicas, presentes em quase todos os municípios brasileiros e nos três níveis federativos e voltados para quase todas as políticas sociais. Os conselhos têm como função controlar o orçamento das políticas públicas de um setor (como saúde, assistência social, educação, meio ambiente, criança e adolescente, cultura etc), elaborar e aprovar o plano municipal, estadual ou nacional de cada política pública, cobrar melhorias na implementação das políticas, levar demandas dos usuários para os representantes do poder público, fiscalizar as ações realizadas pelo Estado, dentre várias outras atividades. Os conselhos são compostos por representantes dos usuários, geralmente eleitos pelos seus pares, por representantes do poder público e, em alguns casos, representantes dos prestadores de serviços de uma determinada área (como é o caso da saúde). As Conferências Municipais, Estaduais e Nacionais seguem estrutura federativa e setorial semelhante que definem as diretrizes e prioridades para cada setor de política pública bianualmente. As Conferências e os Conselhos atuam de forma coordenada e complementar e são os mecanismos de controle social mais presentes na estrutura brasileira. Há, entretanto, diversos outros mecanismos de controle social possíveis e utilizados pelos usuários para garantir melhorias nas políticas públicas e efetivar seus direitos. Eles abrangem tanto formas mais institucionalizadas de encaminhamento de demandas e de cobrança de providências em relação aos órgãos do Estado, como os diversos mecanismos judiciais, processos administrativos, ouvidorias, Ministério Público, como mecanismos menos formais, que dependemde relações tanto com políticos e organizações coletivas. Um mecanismo muito utilizado são os ofícios encaminhados ao poder público por associações de moradores e os abaixo-assinados organizados por comunidades e igualmente encaminhados ao poder público. Protestos, manifestações públicas e demais demonstrações políticas também são recorrentes e servem como forma de chamar a atenção do poder público para uma determinada demanda que pode vir a entrar na agenda pública e iniciar um ciclo de política pública (tal como vimos no início deste Eixo). Reuniões realizadas com gestores públicos diretamente com representantes das comunidades ou com as associações de moradores, participações em comissões temáticas nas casas legislativas dos três níveis de governo, negociações diretas com o poder executivo também são outros exemplos. Percebe-se, neste sentido, que há diversas formas do controle social ser exercido e que o Estado brasileiro tem alguns mecanismos já institucionalizados e formalizados para esse exercício, mas 22Enap Fundação Escola Nacional de Administração Pública não restringe a possibilidade de outras formas serem utilizadas pelos cidadãos, dentro dos princípios democráticos do Estado de Direito. A participação e o controle social podem ocorrer quando os cidadãos estão organizados coletivamente ou quando agem individualmente, a depender do tipo de demanda e também do tipo de mecanismo que é acionado, não havendo impedimentos à priori para ações coordenadas coletivamente, para organizações formalizadas como associações, para coletivos autônomos ou para indivíduos requererem seus direitos. Esperamos que o tema instigue a todos a refletir sobre as políticas públicas a partir de outras perspectivas, e pensá-las como um processo dinâmico, complexo, resultante não só da ação dos governos, mas também de projetos compartilhados e/ou disputados pela sociedade. Saiba mais Leia a cartilha “Controle Social: dos serviços públicos à garantia de direitos”. Nela pode-se conhecer mais sobre os mecanismos de controle social utilizados pelas organizações coletivas. A linguagem é simples, clara e também há a sugestão de dinâmicas que podem ser feitas individualmente (como base para reflexão) ou coletivamente (como forma de discussão). 5. Inovação Social na Política Pública A Organização das Nações Unidas (ONU), em sua missão de diminuir os níveis de pobreza e desigualdade, após a iniciativa das conferências globais da década de 90, lançou os Objetivos de Desenvolvimento do Milênio (ODMs), visando dar concretude aos compromissos internacionais. Apesar dos grandes avanços alcançados, os resultados se mostraram bem aquém dos esforços despendidos. Com vistas a aumentar os impactos destes esforços, a ONU lançou, em 2015, um novo desafio: Agenda 2030 com seus Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODSs). Falamos um pouco sobre esta Agenda 2030 no capítulo que tratou sobre a inovação social como produto. Os ODSs avançaram em relação aos ODMs no escopo (todos os países, e não apenas os pobres), no foco (além do social, o econômico e o ambiental) e nos atores (governos, empresariado e terceiro setor). Para dar conta da complexidade destas articulações, propõe, no 17º objetivo, as Parcerias Multissetoriais (PMSs). O que são Parcerias Multissetoriais? As PMS ocorrem quando um grupo de atores de diferentes setores se comprometem com uma agenda comum para resolver um problema social complexo. Parte-se da ideia de que diferentes grupos podem compartilhar um problema ou uma aspiração comum, embora tenham interesses diferentes. 23Enap Fundação Escola Nacional de Administração Pública Trata-se de um processo semiestruturado que ajuda grupos de parceiros a trabalharem juntos por um período de tempo mais curto ou mais longo, constituindo-se em uma forma de governança colaborativa e descentralizada, no qual podem tomar decisões e agir para o bem coletivo, seja na escala local, nacional ou internacional. Todas essas ideias serão melhor explicadas nesta fase do curso. Vamos utilizar, ao longo do texto, o Pacto pela Educação do Pará como exemplo de Parcerias Multissetoriais. A ideia do Pacto surgiu em maio de 2012, em reunião com o governador do estado do Pará e o encarregado do tema da educação no Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID). Frente aos inaceitáveis resultados da educação daquele estado, à possibilidade de uma operação de empréstimo e à simpatia do governador em relação a uma política de parceria, foi lançado o desafio de criar uma Parceria Multissetorial, focada em educação. Após uma fase preliminar de mobilização e planejamento participativo, o Pacto pela Educação do Pará foi oficialmente lançado em março de 2013, com a meta de aumentar em 30% o Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (IDEB) em todos os níveis, até 2017. A implementação do Pacto foi um processo não linear, típico das Parcerias Multissetoriais. Enfrentou cinco mudanças de secretários de educação, e respectivas equipes, além de infindáveis greves anuais. Apesar dos imensos desafios, os resultados intermediários, aferidos em 2015, já demonstraram o poder de impacto desta parceria. O Pará conseguiu, em apenas dois anos – 2013/2015 – aumentar seu IDEB em todos os níveis; obter o segundo maior crescimento no Ensino Médio, galgando 4 posições no ranking nacional; elevar a taxa de escolaridade da população de 8,5 para 9,1 anos e aumentar de 35% para 40,2% a percentagem de jovens concluintes do Ensino Médio. Em 2017, completou-se o processo de transferência para o governo do Pará focado na institucionalização das propostas do Pacto. 24Enap Fundação Escola Nacional de Administração Pública 5.1. Problemas sociais complexos Conforme vimos no Eixo 1, problemas sociais complexos são vistos como um conjunto de disfunções que ocorrem numa dada sociedade, identificadas e sentidas como tal, e que atingem uma grande quantidade de pessoas, grupos ou instituições. Os problemas sociais complexos (wicked) são provocados por múltiplas causas, nem sempre evidentes, que interagem entre si. Além da consciência da gravidade do problema e do quanto ele afeta a todos, há de haver outro componente: a percepção de que ele pode ser superado. Temas como a pobreza, a desigualdade, a escalada da violência, a baixa qualidade da educação, a falta de oportunidades para jovens ou refugiados, podem ser incluídos nesta categoria. Um dos grandes fatores de aumento da complexidade dos problemas sociais é o processo de globalização. 25Enap Fundação Escola Nacional de Administração Pública No campo das intervenções, são também evidentes os sinais do incremento da complexidade deste tipo de problema. A diversificação crescente das partes interessadas, que envolve não só o Estado, mas também as organizações da sociedade civil e empresas, em áreas anteriormente vistas como de responsabilidade exclusiva do Estado, aumentou a complexidade, quer pelo envolvimento de um número maior de atores, quer pelas culturas organizacionais diferenciadas. Exemplo: Pacto pela Educação do Pará No caso do Pará, a questão educacional era um problema social tipicamente complexo, cujas causas extrapolavam o âmbito da educação, incluindo fatores de ordem econômica (tais como pobreza e desemprego); social (tais como, saúde, violência, esporte, cultura e lazer, justiça); e ambiental (tais como infraestrutura, transporte, degradação ambiental). As consequências afetavam diferentes setores e atores sociais; e sobre o qual já havia uma certa consciência com respeito à urgência e ao caráter estratégico de seu enfrentamento. 5.2. Para que e como inovar em políticas públicas No Eixo 1, vimos que o Brasil enfrenta grandes desafios e as respostas institucionais do setor público e do setor privado a estes problemas sociais complexos, muitas vezes são setoriais, pulverizadas,sobrepostas, sem foco nos resultados, revelando-se incapazes de lidar, de uma forma orgânica, com a sua complexidade. Neste sentido, percebemos que ou inovamos adotando estratégias colaborativas que permitam o aumento do impacto das ações de cada um ou continuaremos a desperdiçar os esforços coletivos. O primeiro desafio é desenvolver um “novo olhar” para compreender a própria natureza complexa e multidimensional deste tipo de problema, superando propostas de solução simplistas, destinadas ao fracasso. O segundo é buscar novas formas de atuação, capazes de articular os esforços, através de Parcerias Multissetoriais. Ocorre que participar de processos colaborativos demanda, em primeiro lugar, transformações no âmbito pessoal, que aumentem a autoconfiança e a confiança no outro como, por exemplo, saber lidar com o conflito e com as relações de poder, tudo isso em um processo de aprendizagem colaborativa. A articulação entre os parceiros depende também de novos tipos de liderança, capazes de estabelecer pontes entre grupos, ultrapassando fronteiras sociais, culturais, políticas e ideológicas. Este tipo de liderança deve ser capaz de mobilizar parceiros-chave na construção de uma agenda comum que possa atuar como elemento catalisador da parceria. Além disso, há que se criar novas formas de gestão colaborativa, com foco nos resultados pactuados e de se institucionalizar novos arranjos de governança que garantam a multi e a intersetorialidade da parceria. 26Enap Fundação Escola Nacional de Administração Pública A construção e manutenção de Parcerias Multissetoriais dependem de um intenso trabalho de comunicação, capaz de mobilizar parceiros-chave e promover a manutenção da motivação. Para tanto, é necessário desenvolver novas formas de comunicação que contribuam para o aumento da confiança, fator essencial nos processos colaborativos como, por exemplo, a comunicação não violenta. Estes tópicos mencionados anteriormente serão aprofundados ao longo deste Eixo. Saiba mais Para saber sobre o assunto: Leia o artigo - COMO RESOLVER PROBLEMAS COMPLEXOS? http://porvir.org/como-resolver-problemas-complexos/
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