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Memória & sociedade: lembrança de velhos Ecléa Bosi. São Paulo, SP. T.A. Editor, 1979. LEMBRANÇAS DE FAMILIA – P. 423-433 As lembranças do grupo doméstico persistem matizadas em cada um de seus membros e constituem uma memória ao mesmo tempo una e diferenciada. Trocando opiniões, dialogando sobre tudo suas lembranças guardam vínculos difíceis de separar. Os vínculos podem persistir mesmo quando se desagregou o núcleo onde sua história teve origem. Esse enraizamento num solo comum transcende o sentimento individual. Quem penetra um grupo familiar, através do matrimônio, por exemplo, encontrará uma atmosfera à qual deve adaptar-se; uma unidade e coesão que se defende o quanto pode da mudança. Essa atmosfera própria, essa força de coesão lhe vem do fato de que ela representa uma mediação entre a criança e o mundo. Todos os acontecimentos de fora chegam até a criança filtrados e interpretados pelos parentes. Hoje se impõem como mediações também os meios de comunicação. D. Brites se admira: “Minha casa tinha portão fechado, nós vivíamos ali dentro e entrava só quem nossa mãe achava que podia entrar, que devia entrar. Agora não, você está fechada dentro de casa e cata pelo ar tudo quanto é anúncio. Você não tem mais uma casa fechada”. A família que agora conhecemos é restrita ao grupo conjugal e aos filhos, em geral poucos; inclui cada vez menos parentes, agregados e protegidos. Uma larga parentela de tios, primos, padrinhos rodeava de tal maneira o núcleo conjugal que ele se sentia parte de um todo maior. Nos moldes de hoje a família – em estrito senso – rema contra a maré de uma sociedade concorrencial, onde a perda de um de seus poucos apoios é absoluta e irremediável. Falta-lhe o envolvimento da grande família de outrora em que o bando de primos fazia as vezes de irmãos, e onde tios, parente e agregados acompanhavam a criança desde o berço. O adolescente atual não alcança compreender a ansiedade dos pais quando ele se afasta e dirá: “Para que me querem em casa se eu me tranco o quarto para ler ou ouvir música?”. Essa pouca presença, quase ausência do filho sob o mesmo teto já traz um certo sentimento de não estar só e segurança à tríade familiar. Quando a família estaciona e já não dispõe de meios para crescer, não esquece os membros que a deixaram e procura deter seu afastamento, aferrando-se aos elos que os ligam. São os velhos que, ao encontrar filhos e sobrinhos, ficam evocando seus primeiros anos. A família, observa Halbwachs, sempre espera a volta do filho pródigo, mesmo comportando-se como quem o esqueceu. A família desenraizada nos centros urbanos ainda possui a força de coesão capaz de integrar pessoas de diferentes classes econômicas, credos políticos e religiosos opostos. Uma crença religiosa terá o peso que ela lhe conferir e pode, ou não, afastar um membro de si. Quanto à distância física, é, às vezes, um fator de aproximação: o membro distante pode tornar-se uma figura mítica, amada de forma especial. Enfim, das oposições exteriores pode a família tirar força para o estreitamento de seus vínculos. Na Roma antiga a terra pertencia para sempre à família que a cultivava, que nela enterrava seus mortos e erigia o altar dos deuses lares. Terra, família, religião comungavam no mesmo espírito. Na terra se cultivavam o alimento e a memória dos vivos e mortos. Chuvas, sementeiras, poda, o rejuvenescimento da comunidade. Se cada família não tem mais, como na Roma antiga, seus cantos, preces, seu próprio cultivo, não se pode negar que tenha um espírito seu, uma maneira de ser, lembranças e segredos que não passam das paredes domésticas. E tem suas figuras exemplares, modelos, cuja fisionomia se procura reconhecer nos mais jovens; avós lendários ou vindos de país remoto que imprimem a todos os seus um traço distintivo. Qualidades e defeitos são afirmados com satisfação: “Temos mão-aberta em nossa família”. Ou: “Somos distraídos e impulsivos”. A história da família é fascinante para a criança. Há episódios antigos que todos gostam de repetir, pois a atuação de um parente parece definir a natureza íntima da família, fica sendo uma atitude- símbolo. Reconstruir o episódio é transmitir a moral do grupo e inspirar os menores. Podemos reconstruir um período a partir desse episódio. Tocamos sem querer na história, nos quadros sociais do passado: moradias, roupas, costumes, linguagem, sentimentos, como fez d. Jovina: “Quando vejo aquele fundo do largo do Arouche lembro tudo isso. Do quadro do Floriano na sala de visita. Vovô me chamava de minha mulata quando eu sentava no colo dele e enchia sua barba de trancinhas. O papagaio gritava: Seu capitão, vi-vi-vi-vi-viva a República!”. A menina Alice com seu avental engomado observava as casas senhoriais dos patrões, as donas de batas entremeadas com rendas valencianas e preguinhas, as chaves no cós da saia, medindo tudo; as moças bonitas – uma porcelana, como se dizia – na janela. O ambiente podia ser-lhe propício ou adverso (então ela é trancada na despensa, onde recebe o prato de comida). Seu quartinho de telha-vã contrasta com os palácios onde sua mãe trabalha, mas existem as ruas cheias de cantigas e brincadeiras. As ruas pertenciam de fato às crianças pobres que não tinham jardim, e os bons vizinhos prolongavam o carinho doméstico. As salas onde a jovem Risoleta só pode permanecer de pé, como negra, são as mesmas em que o jovem Abel via conviver seus parentes. E nós temos o ambiente descrito por dois pontos de vista simultâneos. Muitas lembranças, que relatamos como nossas, mergulham num passado anterior a nosso nascimento e nos foram contadas tantas vezes que as incorporamos ao nosso cabedal. Entre elas, contam-se feitos dos avós, mas também nossos, de que acabamos “nos lembrando”. Na verdade, nossas primeiras lembranças não são nossas, estão ao alcance de nossa mão no relicário transparente da família. De onde vem, ao grupo familiar, tal força de coesão? Em nenhum outro aspecto social o lugar do indivíduo é tão fortemente destinado. Um homem pode mudar de país, se brasileiro, naturalizar-se finlandês; se leigo, pode tornar-se padre; se solteiro, tornar-se casado; se filho, torna-se pai; se patrão, tornar-se criado. Mas o vínculo que o ata à sua família é irreversível: será sempre filho da Antônia, o João do Pedro, o “meu Francisco” para a mãe. Apesar dessa fixidez de destino nas relações de parentesco, não há lugar onde a personalidade tenha maior relevo. Se, como dizem, a comunidade diferencia o indivíduo, nenhuma comunidade consegue como a família valorizar tanto a diferença de pessoa a pessoa. Examinamos criticamente, longamente, nossos parentes. Vai-se- formando de cada um, em nós, uma imagem complexa e rica de nuanças, capaz de abranger mudanças de comportamento que parecem inexplicáveis aos de fora. Segundo Halbwachs, em nenhum outro lugar da vida social a convenção importa menos. Julgamos um parente pelo que ele é na vida diária e não seu status, dinheiro, prestígio. A face que ele mostra a outros grupos não é a mesma que se expõe ao julgamento concreto dos seus. Exprimindo essa duplicidade há um ditado francês: “Joiedes rues, douleur de la Maison” ou o acre ditado brasileiro: “Quem não te conhece que te compre”. Temos de um parente a imagem prescrita pela sociedade com seus respectivos papéis: o irmão, a mãe, o pai, com regras de desempenho que devem ser seguidas. E outra imagem mais espontânea e sensível, sempre em construção. Não é raro que as duas concepções se confrontem e uma faça ver as deficiências da outra. A imagem social já fixada pode ser minada pela escavação de uma experiência pessoal mais rica e profunda. Os parentes se afastando e morrendo, as testemunhas desaparecendo, a imagem empalidece, as lacunas crescem. Em cada fase da vida vão se alterando de leve os traços do parente em nossa lembrança.A imagem de nossa pai caminha conosco através da vida. Podemos escolher dele uma fisionomia e conservar lá no decurso do tempo. Ela empalidece se não for revivida por conversas, fotos, leituras de cartas, depoimentos de tios e avós, dos livros que lia, dos amigos que frequentava, de seu meio profissional, dos fatos históricos que viveu... Tudo isso nos ajuda a construir sua figura. Meu pai me ofereceu de si muitas imagens até sua morte. Guardarei apenas a última, a de suas horas derradeiras? Ou recuarei no tempo em busca de imagem mais juvenil? Vejo que sua figura não cessa de evoluir: ela caminha ao meu lado e se transforma comigo. Traços novos afloram, outros se apagam conforme as condições da vida presente, dos julgamentos que somos capazes de fazer sobre seu tempo. Nos velhos retratos, o impacto da figura viva vai-se apagando, ou vai sendo avivada, retocada. Tal como as plantas, que na estação da seca se imobilizam e brotam nas primeiras chuvas, certas lembranças se renovam e em certos períodos dão uma quantidade inesperada de folhas novas. Como planta que se fortalece com a enxertia – outros ramos se se nutrem de suas raízes e frutificam com vigor renovado, chamando para si a seiva dos galhos originais – a enxertia social não deixa que as lembranças se atrofiem. E se desaparecessem todos os meus parentes? Durante muito tempo conservaria, mescladas à minha, suas lembranças de episódios familiares. Mas, se todos os parentes se extinguissem não encontraríamos, por acaso, outras pessoas que conheceram nossos queridos e para quem seus nomes ainda queiram dizer alguma coisa? E essas pessoas não poderiam contar, ainda, algum episódio de suas vidas? Se nossos mortos recuam, se a distância se alonga entre nós, a culpa não é do tempo, mas da dispersão do grupo onde viveram e que sentia necessidade de nomeá-los, de chamá-los d vez em quando. A figura materna pode ser descrita por traços físicos ou morais, ou mesmo através do seu trabalho: “Minha mãe era carinhosa comigo, mas a vida era sofrida, trabalha com uma criança de três anos, ou mesmo maiorzinha é difícil”. Sempre ao lado da filha, ajudando a criar netos, d. Alice evoca sua dedicação. O sr. Amadeu descreve sua mãe, que: “era franzina, miúda, clara cabelos pretos, olhos castanhos. Era muita calma, tinha muito sentimento”, “Ficou doente de desgaste, muitos filhos, muito trabalho. [...] Meu pai tinha sua turma, gostava mais do vinhozinho, mas minha mãe era muito atenciosa com os filhos, contava histórias para a gente dormir...”. A mãe do sr. Ariosto é evocada no seu trabalho caseiro: acendendo o fogão de lenha, regando o jardim, contando histórias, dançando com os filhos, mas, as lembranças giram sobretudo em torno da alimentação: “No fundo do quintal assava pão num forno redondinho de tijolos. [...] Ela fazia as pagnottas redondas e quando a gente tinha fome ela cortava no braço uma fatia, cortava os tomatinhos e punha no pão, com sal e azeite estrangeiro. A gente comia com prazer”. “Eu estava sempre na saia da minha mãe”. O sr. Abel descreve em rápidos traços a cabeleira negra de sua mãe, o ciúme que tinha de seus namorados, o mimo que dela recebeu na juventude, o excesso de proteção: “Lembro que fui com minha mãe, de carro aberto, à festa do Centenário, em 1922. Ela pôs óculos e echarpe. Chovia pra burro, e minha mãe, coitada, se molhando e fazendo tudo pra eu não me molhar”. “Minha mãe era um pouco mais alta que meu pai, muito clara, gorda, mas se movimentava muito. [...] Minha mãe era muito inteligente, nunca apanhamos dela, mas meu pai era violento nos castigos, “Lembra o sr. Antônio, que se vê ainda engatinhando: “Lembro que eu arrastava meu corpo todo no pedregulho. Aí então minha mãe me socorria”. Essa mãe enérgica, que jogava o lampião na rua quando se reuniam jogadores de baralho em sua casa, emerge às vezes de angustiantes cenas domésticas. D. Jovina evoca a trabalheira de sua mãe, doente, à testa da casa e da criação dos filhos quando o marido se ausentava: “Mamãe era profundamente boa”. “Minha mãe era uma pessoa tranquila que sabia acomodar tudo. Conosco também mamãe não criava problemas: nunca sentimos sua predileção por um filho. Ela era calada. A gente às vezes desconfiava que ela estava fazendo uma oração quando estava sentada, quieta, concentrada.” Eis como a vê a outra filha. Tolerância, bondade, firmeza são traços descritos do caráter dessa matrona, que não admitiu missa de sétimo dia para o marido, livre pensador. “Em 1919 isso foi um escândalo. Ela não botou vela na mão dele, não mandou encomendar o corpo nem vir padres para o enterro, e era católica. [...] Mamãe era nosso esteio e a falta desse esteio foi terrível. [...] Uma mãe doente, fraquinha, dentro de casa, todo mundo respeita. A mãe está lá dentro. [...] Eu dizia a minhas irmãs: `Deus me livre do amor materno das outras mães`. Porque elas para defenderem as filhas não têm caridade com as filhas dos outros. Tudo isso amadurece a gente. [...] Não foram os livros que me formaram: foram meu pai, minha mãe, o modo de vida de casa muito austero.” É através de seu trabalho que d. Risoleta fala da mãe: “Minha mãe fazia farinha de mandioca, de milho, tudo para vender e ajudar meu pai criar os filhos. Ele era homem doente, já não podia mais trabalhar. Minha mãe lavava roupa pra fora, dessa família dos Penteado de olho azul. Era morena escura, mais escura que meu pai, mas era bonitinha. Cozinhava muito bem doce de laranja, tachadas de goiabada que vendia em caixinhas... Minha mãe era carinhosa com os filhos, lá à moda dela, mas era. Meu pai era mais severo que ela: ela também respeitava muito ele”. Um exemplo da complexidade da lembrança é o da sua morte enquanto preparava farinha de milho. Não vou repetir agora aquela passagem; remeto novamente à sua leitura, pois a considero o ponto alto de toda a memória que colhi. D. Risoleta medita sobre o produto da faina de sua mãe sendo vendido em pacotes para pessoas inconscientes, que não avaliam o sacrifício ali contido. Estendendo aqueles panos alvos na grama, mexendo o tacho no fogaréu, dando beijus para os filhos, sacudindo a farinha lá fora. Teodora ia trabalhando e morrendo. Na narração da filha misturam-se os planos de seu trabalho e de sua morte, os panos da farinha e os lençóis da agonizante. ... A figura paterna é alvo de uma apreensão de traços espirituais, não físicos, também, como acontece com a figura materna. Creio que isso se dê pela presença mais concreta da mãe na vida do lar, onde o contato corporal mãe- criança constitui as primeiras relações afetivas. Salvo em d. Alice, que viveu só com a mãe, as outras mulheres descrevem a figura paterna como central. Essa figura foi realmente o eixo que norteou a vida de d. Brites e d. Jovina, e d. Risoleta descreve graciosamente esse pai inspirado, cantador, curador, que quando queria só falava em versos. O sr. Aberl não conheceu o pai, bacharel que morreu de homoptise antes de nascer. O sr. Antônio evoca o pai com ressentimento; tinha ímpetos de defender a mãe mas ainda não tinha forças para enfrenta-lo: “Eu gostava mesmo é de minha mãe, mais que de meu pai. Mas também nunca odiei meu pai. Uma ocasião ele me bateu tanto que quase me matou”. O sr. Antônio lembra com ternura o mestre de caligrafia o pintor que o levava pela mão quando ia vender seus quadros, chefe itinerante de um lar às vezes faminto. Como o sr. Ariosto o sr. Amadeu comove-se com as lides do alfaiate que trabalhava catorze, quinze horas por dia e que faleceu em 1925 de uma úlcera no estômago. O bondoso e sensível irmão mais velho assume então o papel de pai. Sobre irmãos é preciso notar que na maioria das vezes são fixados na infância e que depois sua figura empalidece e apenas sobrevive no menino ou menina que foram. Sua personalidade se delineia na infância e permaneceassim. Entre os parentes evocados – pai, mãe, irmãos, avós e primos – seria preciso notar que a figura do avô e da avó pode ter um relevo tão grande quanto o dos pais. O silêncio dos narradores sobre os avós é devido à quebra das raízes familiares pela imigração; eles não conheceram os avós, que ficaram na Europa; mas, para d. Alice a avó faz as vezes de mãe enquanto a mãe trabalha. Para d. Risoleta, a avós faz as vezes de mãe quando lhe falece a mãe. Para d. Jovina e o sr. Abel, o avô é a grande figura da infância, a mais vividamente recordada. “Meu pai e minha avó foram escravos, vendidos como se vende porco. Quando tinham sorte caíam nas mãos de um sinhô que não judiava deles. Conheci bem a mãe de minha mãe, Marcelina Maria da Conceição, que acabou de criar todos nós. Quando minha mãe morreu ficamos precisando de afeto e ela era uma velhinha afetuosa”, recorda d. Risoleta. A avó de d. Alice “era meio bravinha”, queria que cada um fizesse suas coisas mas nunca vi bater em ninguém”. “Ela tomava conta da criançada porque minha tia também trabalhava, como minha mãe.” Mais adiante: “Todas as pessoas daquela ruazinha sem saída trabalhavam na fábrica. Eu ficava com minha avó, que era cega”. D. Jovina pouco recorda do avô de Itapira, que a olhava por cima dos óculos. Sua memória política detém-se no avô-capitão, impulsivo e idealista, página viva da história, viu seu boné de batalha furado por um tiro: “Criatura boníssima e alegre, as barbas descendo até o peito, louco pelos netos. [...] O que eu mais gostava em minha vida era estar na casa do vovô... Minha avó era enérgica, ela gostava da gente empurrando, como se diz, era muito seca como os netos”. Se d. Brites não recorda tanto o avô paterno quanto a irmã é porque o perdeu muito nova, mas guarda ao pé de seu leito a cadeirinha que ganhou dele há setenta anos. Essa avó seca, que “gostava empurrando”, a velhice vai tornar complacente com os últimos netos, sem perder contudo a verve maliciosa. Chora de rir quando a neta senta sobre as cartas do jogo de baralho, aninha as crianças no colo para contar histórias: “Ela prendia o cabelo só com pente: a gente tirava o pente da cabeça de vovó e penteava, penteava... Vovó era muito engraçada, falava pouco mas com dose certa e com veneno certo. Tinha sempre uma quadradinha pronta”. Aparece ainda na janela apostrofando Rui Barbosa de baderneiro-mor e discutindo com o genro, pois, octogenária, no Rio, torcia pelos rebeldes do Forte. D. Brites fugia para a cada de seus avós: “Gostava mais de lá do que da minha casa, tanto que sentia angústia na hora de me despedir quando tinha que voltar”. A figura do avô caminha através da vida do sr. Abel, desde o momento em que providencia seu aleitamento até seus últimos anos, quando revive em seu filho menor. O último filho do sr. Abel pergunta: “Pai, quem é que gosta mais do senhor?”. “Acho que é você, meu filho”. “E antigamente, quando o senhor era pequeno, quem é que gostava mais do senhor?” “Era meu avô.” “Mas é lógico que era seu avô, porque eu sou seu avô.” Ainda hoje, no asilo, o sr. Abel não dorme sem pedir-lhe a benção. Se a avó aparece brevemente em sua lembrança, o avô aparece como herói, o sábio que fala todas as línguas, aquele que o criou. Dorme até três anos na sua cama, dos quatro em diante no seu quarto, e só depois que o avô o abençoa. Esse avô jogador que chora seus pecados aos pés da cama do menino é a única certeza de sua vida, o que esconjura as sombras que hão de vir: “Vô, eu sonhei outra vez, o Vera Cruz era um hospital, eu estava internado lá, era um lugar horroroso, tinha o Zé Cabelo, tinha uma descida com um portão enorme que se batia, baria, batia, e quando abria, a gente tinha que correr, correr, correr pulando... E a minha mesa era a última... E eu dizia: quem me pôs aqui, meu Deus?!”. Por isso, na hora do urutau-au-au, na hora do saci e da mula-sem-cabeça espera até tarde o barulho, plop, plop, plop, do seu sapato voltando. Os amigos e parentes que se perderam aparecem fixados na sua idade juvenil ou no gesto de amizade que fizeram um dia. Deles se escolhe uma face ideal que se perpetua: o irmão travesso, o amigo desprendido, a mulher corajosa, o marido abnegado. D. Alice agradece sua amiga de oficina, Ida Malavoglia, como se ela estivesse escutando. O sr. Ariosto, d. Alice, d. Jovina, d. Risoleta evocam o companheiro morto de uma forma pungente. D. Jovina nega-se a ter uma vida que não seja a de Jovina-Samuel: “Não posso reviver uma vida que terminou com ele”. Os amigos são insubstituíveis, não se repetem no curso da existência; a aceitação aparente, o silêncio dos idosos podem traduzir o cansaço da luta, mas não uma diminuição da carência dos seres amados. Por que essa tendência à exemplaridade das figuras evocada? Se, de um lado, há o processo de estereotipia, de outro as restrições e empobrecimento que pesam sobre a velhice tornam inestimável o que se perdeu. Na constituição da memória familiar são importantes os contatos com outros grupos. Uma família pode ter morado longos anos num mesmo bairro, formando vínculos estreitos com a vizinhança; a criança sente-se incluída no grupo familiar e no da vizinhança, suas lembranças brotam de um e outro, dada a íntima vivência com ambos. Se podemos reagrupar em nossa subjetividade lembranças de espaços sociais diferentes, podemos também sobrepor imagens do mesmo espaço social. Quando a criança sentou-se chorando na soleira da porta, como o joelho machucado, a vizinha pode ter acudido antes da mãe. Depois da noite que ela passou tossindo, ouve, quando desperta, mesclada às vozes familiares a voz da vizinha receitando um xarope. Muitas lembranças devem-se às meias pereces das casas populares, que fundem os ruídos e vozes das famílias. Os sucessos escolares do menino são acompanhados com entusiasmo pelos vizinhos. São duas correntes de pensamento coletivo que convergem, sustentando o acontecimento, oferecendo estabilidade à lembrança. Com a mudança de bairro uma das correntes se extinguirá e ele sofrerá apenas a ação da corrente familiar cuja influência se tornará então mais forte. As lembranças que colhemos estão permeadas de bons vizinhos, como a comadre Bianca de d. Alice: “Essa vizinha querida tomou parte nas doenças, aniversários, casamentos da família. Nossa família era como se fosse a dela; em tudo ela corria para dar uma mãozinha pra gente e se preocupava com o estudo das crianças”. Ano após ano, na primeira comunhão dos meninos, ela aparecia com um prato festivo, o crestole com mel. Depois de muitos anos de perda do contato por mudanças de bairro, ela reapareceu na velhice e sua reaparição é evocada com ternura. D. Brites lembra a vizinha que amamentou sua irmã: “Essas coisas bonitas que há! D. Cecília amamentou a menina e mamãe se sentia muito grata a essa vizinha”. Até hoje, quase setenta anos passados, permanece a gratidão e as famílias se visitam. D. Jovina lembra a troca de notícias de janela a janela na mesma calçaca da alameda Barros com as vibrantes meninas Rangel Pestana. Notável vizinha é lembrada pelo sr. Amadeu, no Brás, que com uma bofetada o arrancou do delírio e da morte, na gripe de 18: “Foi então que vi passar no céu uma calécia. Era um carro bonito com seis ou oito cavalos, todos brancos. Vi como se fosse uma coisa natural. Virei para minha mãe e disse: `Olhem que carro de morto bonito está passando no céu com seis cavalos!´. Então uma vizinha que estava lá me deu uma bofetada, e chamaram o médico”. Os filhos partem, toma seu rumo e, ainda que ligados afetivamente aos pais, se dispersam geograficamente. Os coetâneos vão morrendo, o afastamento de parentes e amigos é visível na etapa final das lembranças: “Os meus parentes me visitam. Me telefonam quando é alguma data” (d. Alice). “Não vejo meusamigos de juventude. Se as pessoas que se hospedaram na minha casa desde os tempos de minha mãe e de meu pai me convidasse uma vez por ano para ir à cada delas eu tinha onde ir o ano inteirinho. Mas não, desapareceu isso” (d. Brites). “Meu irmão, meus amigos, todos, todos já morreram, não tem mais ninguém. Tenho uma prima doceira, a Delu, que vem me visitar” (d. Risoleta). “Dos meus parentes, quem me visita é a sobrinha que morou conosco quando pequena, a Lúcia. Ela é ocupada e não pode vir toda semana mas quando ela vem fico contente por um mês” (sr. Ariosto). O sr. Abel conta à sua maneira a comovedora visita de sua esposa no asilo, a desajeitada mas suave maneira de apagar os erros passados: ”Mas por que você foi embora, Lali?”. “É... a vida... um equívoco! Você brigava muito comigo, queria que eu pusesse farinha, quando eu não punha farinha, se eu comprava Sissi você queria gasosa, e tal... E eu dizia: `Um dia eu vou embora!. E você: `Vai quando quiser...´.” “Mas isso não era pra ir embora, você foi.” Afastado de todos os que estimou, alijado do trabalho, internado num hospital psiquiátrico e agora num asilo, ele pergunta: “Voltar pra casa? Não, eu não tenho mais condições de viver lá. Não conheço mais ninguém. Eu chamo este asilo de gaiolão de ouro. Gaiolão de porta aberta. Mas, fugir para quê? Para onde eu vou?” Esses depoimentos são relatos da solidão.
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