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TEXTO SOBRE EDUCAÇÃO, POLÍTICA POBRE - DEMO



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EDUCAÇÃO: COISA POBRE PARA O POBRE 
 
 
 
 
Pedro Demo (UnB, 2007) 
 
 
 
 
Neste texto preliminar busco discutir modos recorrentes de fazer da educação uma farsa. Da 
direita e da esquerda, e também do Estado. Desde Rui Barbosa, educação é “prioridade” nacional 
e não passa disso! A direita quer educação para aprimorar a produtividade, sem falar na 
expectativa de domesticação das massas. A esquerda quer educação para aprimorar a cidadania 
popular, mas a alimenta tendencialmente com propostas ignorantes. O Estado espelha o sistema 
vigente, traduzindo em sua atuação e falta de atuação as mesmas mazelas já “normalizadas”, 
sobressaindo o mau uso dos recursos disponíveis e o cultivo do instrucionismo. Tantos problemas 
não cabem num texto sucinto. Pretendo apenas esboçá-los, para início de conversa. Ao final, 
educação aparece como coisa pobre para o pobre, ou, como diria Popkewitz (2001), “como efeito 
de poder”: em vez de favorecer o pobre, fixa-o na margem do sistema, onde “é seu lugar”. De fato, 
educação pode ser arma potente contra os poderosos, mas pode igualmente e sobretudo fazer 
parte da trama de poder dos poderosos. Ocorre algo similar com a solidariedade: pode ser 
proposta libertadora, mas, mais usualmente, é trambique de poder (Demo, 2002) - oferece-se 
solidariedade para aprimorar a dependência do pobre. 
 
 
 
 
I. O QUE ESPERAR DA EDUCAÇÃO 
 
 
 
 
Às vezes demais, às vezes de menos se espera da educação. Como conseqüência da 
verborragia em torno da educação, tende-se a esperar demais. Nas últimas eleições para 
Presidente, havia um candidato, tradicionalmente muito identificado com educação (Cristovam 
Buarque, 1998; 1999), que fez de educação o mote quase exclusivo da campanha. Foi acusado 
de samba de uma nota só. Na verdade, Buarque representa uma das cabeças que melhor sabe 
valorizar educação, porque entende que o país precisa desenvolver-se técnica e principalmente 
eticamente, combinando crescimento com redistribuição de renda, algo muito pouco provável no 
capitalismo (Demo, 1994). Educação importa para o crescimento econômico, porque tornando-se 
este cada vez mais centrado na dinâmica do conhecimento intensivo, saber pensar é requisito 
também da produtividade. O avanço tecnológico é crucial para conquistar mercados. Mas não se 
pode perder de vista que a meta maior da educação continua sendo sua relevância para a 
cidadania, quer dizer, a formação de sociedades que conjuguem riqueza com bem comum. Desde 
sempre, a valorização da educação - para sermos francos - esteve ligada aos processos 
produtivos, estando aí a razão maior da escolaridade obrigatória. Esta imagem, como bem anota 
Ioschpe (2004), persiste na população: estudar está fortemente vinculado a ganhar a vida. Os 
sistemas educacionais, inclusive o nosso, não atrelam o ensino fundamental ao mercado, porque 
se sugere ser um período propedêutico para a vida, mas, como muitos brasileiros não possuem 
este nível completo, o ensino fundamental ainda é passaporte para o mercado. Talvez não fosse 
exagero ver no ritmo muito lento de crescimento atual da economia algum efeito do despreparo da 
mão de obra: não temos qualidade produtiva suficiente para uma economia mais dinâmica, sem 
falar nos gargalos da infra-estrutura. Por ironia, encontram-se mais facilmente vagas para gente 
qualificada. 
Tornou-se chavão considerar educação como condição de produtividade, desde o início da 
década dos 90. Educação e conhecimento apareciam como “eixo da transformação produtiva com 
eqüidade” (Cepal, 1992; Cepal/Orealc, 1992). Esta posição representou esforço considerável de 
teorização à época, mas acabou desvelando-se como cortina de fumaça, ao encobrir que 
crescimento neoliberal não se coaduna com eqüidade. O atual ritmo de crescimento da China, 
bem como da Índia, mostram, de novo, que o capitalismo é capaz de crescimento impetuoso, 
provocando, por vezes, uma relativa distribuição de renda (o trabalho torna-se melhor 
remunerado), mas sem incluir processos de redistribuição de renda (redução da concentração de 
renda) (The World Bank, 2005. United Nations, 2005). Da lógica interna (neo)liberal não decorre 
necessariamente a eqüidade, porque funciona pela via do lucro, em contexto social tipicamente 
darwiniano, o que torna praticamente inviável a igualdade de oportunidades. Esta teria que vir de 
fora, de movimentos de pressão a partir da sociedade organizada, em nome da cidadania. Para 
este fim, educação é sempre reconhecida como fator primordial. Dados disponíveis em geral 
correlacionam visivelmente educação e associativismo (Demo, 2001), assim como é comum 
associar condições mais favoráveis de eqüidade com níveis mais elevados de educação, como é o 
caso da região sul do país (Demo, 1992). 
Educação recebeu tratamento destacado no Índice de Desenvolvimento Humano da ONU, 
desde 1990, quando saiu o primeiro ranking dos países, aparecendo o Brasil no 50º lugar, mas 
escorregando logo a seguir para patamares acima de 70 e, mais recentemente, acima de 60 
(Pnud/ONU, 1990/2006). Traduzindo desenvolvimento como “oportunidade”, apresentaram-se três 
indicadores, sendo o primeiro deles educação (porque seria o fator mais próximo da construção de 
oportunidades), em seguida longevidade (viver mais em geral é viver melhor), e por fim poder de 
compra. Esta visão muda fundamentalmente a tendência anterior de reduzir desenvolvimento a 
crescimento, emprestando à educação papel primordial. Embora tais índices devam ser tomados 
com cautela, seja porque sua origem nos países membros nem sempre é confiável, seja porque a 
noção de “anos de estudo” é pouco expressiva (onde a aprendizagem é baixíssima, como no 
Brasil, o acúmulo de anos de estudo pode ser muito enganoso), seja porque três indicadores, por 
mais que sejam pertinentes, são um resumo arriscado e bem comprimido, ainda que muito 
sugestivos e capazes de fomentar discussões e questionamentos memoráveis, como em nosso 
país, cuja posição no ranking é difícil de engolir (Frigotto, 1998). Não cabe dúvida que esta 
proposta de índice reflete o reconhecimento generalizado da cidadania como fator crucial do 
desenvolvimento, ainda mais acentuada desde 1997, quando apareceu o conceito de “pobreza 
humana”, muito similar ao de “pobreza política” (Demo 2006), apontando horizontes de análise 
para além do empirismo economicista. 
Análises recorrentes de pobreza ainda persistem neste empirismo, à medida que se reduz o 
fenômeno a meras carências materiais, não porque sejam mais importantes necessariamente, 
mas porque são mais bem manipuláveis e mensuráveis (Demo, 2003). Facilmente, em geral 
através de métodos encurtados - não porque assim sejam, mas porque mal usados -, como é o 
caso de análises de regressão que correlacionam educação e renda, se aceita que renda 
“explicaria” por volta de 80% da demanda por educação (Ioschpe, 2004). Esta ditadura do método 
(como se expressa Morin, 1996) está em decadência em ambientes mais abertos da pesquisa e 
da academia (O’Connor, 2001. Goode/Maskovsky, 2001), mas ainda é voz corrente no Brasil, em 
especial entre economistas da educação (Rocha, 2003. Schwartzman, 2004. Henriques, 2000). 
Educação entra em cena sempre como fator de produtividade e medida por anos de estudo, em 
geral em contextos de simplismo analítico escrachado. Este vezo é também tributário do 
atrelamento ao Banco Mundial, por mais que suas análises sejam hoje cada vez mais 
questionadas (Caufield, 1998. Tommasi/Warde/Haddad, 2000). Não sendo educação fenômeno 
linear, sua mensuração linear é procedimento simplista, como aceitam os próprios estatísticos 
mais bem formados (Besson, 1995). Não se criticam aqui tais métodos em si, porque dão o que 
podem dar, desde que o analista tenha visão crítica e sobretudo autocrítica. O que quero dizer é 
que seria impossível, a não ser por impostura intelectual, sacar que renda explica 80% da 
demanda por educação, não só por ser cifra notavelmente exagerada, mas principalmente porque 
é flagrante abuso do método.Se educação fosse fenômeno linear, talvez pudéssemos sugerir esta 
correlação, ainda que muito tentativamente. Nem me oponho que se façam tais cálculos, porque, 
sabendo usar, podem ser ilustrativos. No mínimo sugerem que existiria forte correlação entre 
educação e renda, como ocorre no imaginário popular. 
Apesar dos excessos do outro lado que tornam fantasiosa uma relação possível (Demo, 
1999), continuo acreditando que a relevância mais significativa da educação seja sua dimensão 
formativa para combater a pobreza política da população, ou seja, sua condição de massa de 
manobra. Nesta visão, o que mais preocupa não é a extensão (horizonte quantitativo), mas a 
intensidade da pobreza (horizonte qualitativo). Não segue daí qualquer intuito de imaginar que 
pobreza material seja coisa pouca, algo já de menor peso. Ao contrário, a pobreza material é 
problema ingente, em particular quando acomete proporções elevadas da população, mas a 
pobreza política é ainda mais devastadora, porque apaga o sujeito, não permitindo reação. O 
choque de visões é aí muito emblemático. Analistas empiristas economicistas, ignorando a 
politicidade da pobreza (Demo, 2002a; 2005), favorecem políticas públicas assistencialistas, como 
é o caso notório do programa atual federal “bolsa-família”, que toma a população pobre como 
mero beneficiário, embutindo aí formidável “efeito de poder”. Ao mesmo tempo, consagram a 
lógica liberal do sistema, ao atacarem a pobreza com mera distribuição de renda (até à 
condescendência orçamentária), não afetando, jamais, a dinâmica da concentração (Demo, 2003). 
Tenta-se, apesar de a história não ter jamais confirmado esta hipótese (coisa reconhecida até 
mesmo pelo Banco Mundial - The World Bank, 2005), tratar a pobreza a reboque do crescimento 
econômico, pela via da “transferência de renda”, mesmo que isto seja hoje adotado por inúmeras 
esquerdas (Yazbek/Giovanni/Silva, 2004). Imagina-se, num rasgo de ingenuidade temperada com 
perversidade, que renda esteja disponível para ser repassada e que isto o sistema faria por 
própria lógica, ignorando a tessitura capitalista. Ou seja, ignora-se a politicidade da transferência 
de renda - esta existe, por certo, mas está tomada por inteiro pela elite econômica e política. O 
“bolsa-família” - reconheço, claro - faz algo fundamental: satisfazer, pelo menos em parte, o direito 
à sobrevivência, por ser direito humano indiscutível. Tenta ainda vincular o programa à educação, 
ao exigir freqüência escolar das crianças envolvidas. Mas, como a aprendizagem é miserável 
entre nós, este gesto em si muito adequado, cai no vazio. Assim, o programa conspurca uma 
assistência devida, transformando-a em assistencialismo. A população reage tipicamente: 
agradece e vota. 
A noção de pobreza política, sem desmerecer a gravidade da pobreza material, aponta para 
o desafio de aprimorar a qualidade política da população, muito além das assistências (Demo, 
2000), o que exige fomentar a condição de sujeito capaz de história própria. Passar fome é miséria 
grave, mas é miséria ainda mais grave não saber que fome é forjada, em especial num país 
destacado na produção de alimentos. Daí segue que a população espera solucionar seus 
problemas sempre à deriva de mecenas oficiais, mesmo que este seja o Estado. O Estado cumpre 
papel insubstituível, mas sua qualidade não pode ser maior ou melhor que a qualidade da 
população. Chega-se ao extremo de fantasiar cidadania como doação1. Uma das políticas mais 
próximas da formação do sujeito capaz de história própria é certamente educação e aí está seu 
valor maior. Não se pode, porém, arquitetar qualquer argumentação linear, mecânica, automática, 
porque dinâmicas complexas não funcionam desta forma. Não segue que uma população bem 
educada seja necessariamente mais democrática, embora a qualidade da educação seja condição 
necessária, ainda que não suficiente. Há pessoas com poucos anos de estudo ou nenhum e 
mesmo assim comportam-se com fineza, elegância, dignidade, enquanto há também gente muito 
culta e não menos grossa. Dinâmicas complexas são ambivalentes por natureza (Demo, 2002b), o 
que indica poderem desenvolver-se para lados opostos. Dos mesmos pais podem sair santos e 
assassinos. 
Uma população mais bem educada, que sabe pensar (Demo, 2000a), não se contentaria 
com mera distribuição de renda. Exigiria sua redistribuição, como ocorreu, pelo menos em parte, 
no início do welfare state, em particular sob a ação sindical. Se os pobres soubessem da força que 
têm, não se satisfariam com as migalhas do sistema. Não há como construir uma democracia 
razoável sem atores adequados, principalmente debaixo para cima. Bastaria olhar para nosso 
cenário político atual, manchado de alto a baixo pela corrupção nos três poderes. Na prática o 
combate a corrupção não pode ser feito pelo próprio corrupto. Teria de ser feito pela população 
capaz de se organizar e lutar em defesa do bem comum. Estarrece-nos que tamanhos desmandos 
não provoquem reações populares à altura. Isto apenas reforça a impunidade. A preferência por 
uma visão empirista economicista de pobreza contém, por isso, dois ingredientes interligados: é 
preferida metodologicamente porque lida com faces quantitativas; é preferida ideologicamente 
porque domestica o risco de levante popular. Política social minimamente adequada supõe a 
habilidade de confronto por parte dos excluídos. Estes não são inseridos no sistema por aqueles 
que os excluem. Serão inseridos na medida da conquista possível relativamente proporcional à 
qualidade da cidadania. Esta qualidade é a grande contribuição da educação. 
Educação - é bom lembrar - não se esgota na politicidade (Freire, 1997). Sua correlação 
econômica, entre outras, é decisiva para enriquecer o bem comum, ainda que no capitalismo 
enriqueça o bolso de alguns apenas. Mas, pelo menos, gente bem educada pode decidir-se a lutar 
contra isso. Esta luta terá tanto melhor qualidade, quanto melhor for a qualidade da educação. 
Argumentação importante advém hoje de aportes construtivistas, e, mais ainda, biológicos 
(exemplo é a teoria da autopoiese de Maturana) (Maturana/Varela, 1994. Maturana, 2001). Os 
seres vivos, além do equipamento genético e hereditário, mais o ambiente externo interveniente, 
são capazes de autoformação, por conta de sua politicidade. Funcionam primordialmente de 
dentro para fora, na condição de sujeito, ou do ponto de vista do observador, como diria Maturana. 
Através da aprendizagem e do conhecimento, é possível alargar amplamente a autonomia 
humana, ainda que esta autonomia seja sempre relativa (é preciso conjugar nossa autonomia com 
 
1
 É comum ver, em algumas esquinas de ruas movimentadas, o dizer: “não dê esmolas, dê cidadania”... Já é 
importante reconhecer que esmola não cura a pobreza, mas seria ainda fundamental apreender que cidadania não se 
dá. Se conquista. 
a dos outros) (Demo, 2005a). O ser humano é limitado, mas imensamente perfectível, se postar-se 
como sujeito de sua história. Através da educação podemos modificar profundamente nossas 
oportunidades. Nada garantido, mas bem possível. Pode-se, assim, esperar muito de educação, 
desde que não se faça dela panacéia. 
 
 
 
 
II. FARSAS DA DIREITA 
 
 
 
 
Ainda que seja fora de moda falar de direita e esquerda, entendo aqui por direita ideologias 
que se alinham à preservação do sistema vigente, em geral próximas da elite dominante, e por 
esquerda (em geral no plural) ideologias que vislumbram expectativas de mudança do sistema. 
Ideologias de direita preferem a manutenção da ordem vigente, muitas vezes assumindo que a 
ordem (neo)liberal (consenso de Washington) não apenas é o modo de vida predominante no 
planeta, mas principalmente o “único” modo possível de vida. Tende-se a ver nela a ordem das 
coisas, dentro do que se tem chamado “pensamento único”. Como tudo, porém, muda dentro da 
dinâmica da evolução e da história, a direita também aceita certasmudanças, por vezes com 
extremo vigor, como é a reestruturação produtiva - embora seja uma fase do capitalismo, 
representam rupturas por vezes drásticas, como é, por exemplo, a desregulação da economia e 
conseqüente subordinação do trabalho. Nisto é progressista ao extremo, dentro de visões 
milenares de progresso (Dupas, 2006). Mesmo que direita venha tendencialmente no singular (já 
esquerda vem geralmente no plural, o que denota mais unidade na direita do que na esquerda em 
termos de defesa das ideologias respectivas), não é um todo homogêneo, nem de longe, mas 
tende à manutenção da ordem vigente, inclusive com os privilégios seculares aí embutidos. Dentro 
da ordem liberal, o direito à propriedade privada e a organização liberal do mercado continuam 
sendo a pedra angular dos outros direitos. As esquerdas - muito mais fragmentadas que a direita - 
representam expectativas de mudança, em geral sob inspiração popular e, por decorrência, 
contrárias à elite. Em geral defendem-se os direitos humanos em especial para os excluídos, 
mudanças no sistema econômico ou mesmo sua subversão ampla ou completa, aprimoramentos 
democráticos que chegam até ao orçamento participativo, economias solidárias, o Estado (até 
mesmo como garante da cidadania), o associativismo popular. Pelo menos da boca para fora, fala-
se ostensivamente da formação política da população, para que esta possa se confrontar à altura. 
E aí também entre educação como estratégia importante. As esquerdas são bem mais 
fragmentadas, bastando lembrar a trajetória de Lula, que, hoje talvez não seja propriamente de 
direita, mas muito menos será de esquerda... 
Não vou me aprofundar nestas distinções, porque as tomo apenas como heurística 
explicativa localizada neste texto. Procuro observar diferenças de visão da educação conforme a 
posição social na estruturação da sociedade, apontando também para confluências entre elas, por 
vezes surpreendentes. Prevalecem em educação algumas idéias de esquerda que são mais 
atrasadas que da direita, como é, por exemplo, a progressão automática e a ojeriza à avaliação. 
Por ser a esquerda tão disparatada ideologicamente falando, coloco entre aspas para designar 
que se trata de parte dela. 
A direita é marcada pela visão economicista de educação, atrelando-a ao mercado tout court. 
Bem representativa desta visão é o livro de Ioschpe (2004), onde, com alguns tapas 
intempestivos, conclui que a importância real da educação é econômica. O resto pouco importa, 
também por conta de análises de regressão muito mal usadas. Pode ter alguma razão no fato de 
que autores que criticam este economicismo facilmente incidem em discursos filosofantes 
perdidos, aéreos, mal elaborados, em geral sob o prisma pouco definido de visões “qualitativas” 
(Demo, 2005), próprios de uma pedagogia tacanhamente amadora. A par da injustiça de pisar em 
cima de propostas iluminadas que ligam educação com arte, poesia, motivação, como, por 
exemplo, é o caso respeitado de Rubens Alves, a visão economicista, no mínimo, toma uma parte 
pelo todo, sob a alegação ignorante de que o mais imediato é o mais importante. Certamente, para 
sobreviver, o mais imediato é renda. Mas renda, nem de longe, perfaz sozinha o sentido da vida. 
Aliás, qualquer estudo mais sério de felicidade reconhece que indicadores materiais são os mais 
pálidos (Demo, 2001). Ioschpe chega ao cúmulo de sugerir tratar os salários de docentes 
conforme as regras do mercado, o que implicaria naturalmente em sua redução, desdizendo aí 
mesmo parte de sua hipótese de trabalho, ou seja, de que educação é importantíssima para a 
economia. Se renda é tão vinculada à demanda por educação, professores mal pagos seriam a 
própria negação da importância da educação. Este autor, naturalmente, não iria ver aí uma 
“imperfeição” do mercado, mas dos professores. 
A argumentação de Ioschpe sustenta a postura secular de falar de educação como prioridade 
e conceder-lhe lugar secundário na cena real. Serve sobretudo para investir pouco, em especial 
nos professores, considerados “culpados” pela péssima aprendizagem dos alunos. Como analista 
enviesado da realidade, apesar das suas “evidências empíricas”, não percebe que os professores 
são resultado do mesmo sistema, são muito mal formados, trabalham em geral em condições 
muito adversas, entre as quais estão também os salários. Está correto reconhecer que o problema 
maior não é de falta de verbas, mas de seu mau uso. O pior uso, entretanto, é o desvio de verbas, 
habilidade que a direita sempre demonstrou ao longo da história. Rouba-se até merenda das 
escolas mais pobres das periferias mais pobres. Para melhorar substancialmente a educação é 
preciso, sim, aumentar o orçamento, por uma razão bem simples e que os economistas conhecem 
bem: qualidade sempre custa caro. Mesmo assim, é acertado dizer que, se aplicássemos bem o 
que temos hoje, os resultados poderiam ser bem diversos. Uma das conseqüências mais comuns 
da visão da direita é o encurtamento da prática escolar, o que aparece claramente em cursos de 
pedagogia de dois anos ou menos, ou nas ofertas de cursos em semanas pedagógicas, 
reconhecidamente ineptos para melhorarem a aprendizagem dos alunos. Claro, cursos que não 
fazem os professores aprenderem, não fazem os alunos aprenderem. Sob a expectativa truncada 
de anos de estudo, procura-se somar tempo, não aprendizagem. Assim ocorreu na nova Lei de 
Diretrizes e Bases (LDB), aprovada no fim de 1996: aumentou os dias letivos para 200, sem 
qualquer efeito. Ao contrário, os dados do Saeb indicam que nunca a aprendizagem caiu tanto, 
quanto com este aumento de aulas (Demo, 2004). Mais que anos de estudo, a população precisa, 
loucamente, aprender. 
Está na boca da elite a educação como prioridade, porque é de bom tom. Na prática, os 
sistemas educacionais públicos estão entre os piores vigentes e os privados estão eivados de 
problemas de toda sorte. Na educação básica, por volta de 90% dos alunos estudam no sistema 
público do ensino fundamental. Neste nível a participação privada é residual. Já no nível superior, 
a oferta privada é predominante, cada vez mais. Para 2002, o total de alunos foi de quase 3,5 
milhões, sendo só 15.3% da esfera federal, 12% na estadual e 2.8% na municipal. Quer dizer, a 
oferta pública estava por volta de 30% apenas (Oliveira/Dourado/Amaral/Moehlecke/Catani, 2006). 
Ao mesmo tempo, em 2002 houve 37,4% de vagas não preenchidas na esfera privada, contra 
apenas 5% na pública. Dados de 2003 indicam que a universidade com maior número de alunos 
era a Universidade Paulista (UNIP), com mais de 80 mil alunos de graduação, embora detivesse 
apenas o 156º lugar no ranking do CNPq (por número de grupos de pesquisa); em segundo vinha 
a Estácio de Sá, com 60 mil alunos, ocupando o 141º lugar neste mesmo ranking. Ambas são 
privadas. Somente em terceiro lugar aparecia a USP, com 42,5 mil alunos, detendo o 1º lugar no 
ranking do CNPq (Moehlecke/Catani, 2006). Seguiam a Universidade Luterana do Brasil (ULBRA) 
com 33 mil alunos, Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS) com 31 mil, a Pontifícia 
Universidade Católica de MG (PUC-MG) com 30,8 mil. Em sétimo lugar aparecia a primeira 
universidade federal, a do Pará (UFPA), com 27,6 mil alunos. 
Não pretendo aqui criticar o sistema privado, porque é constitucional e há nele ofertas de 
qualidade. Entretanto, observando o ranking do CNPq atribuído às duas maiores universidades 
particulares do país, tem-se uma idéia de que este tipo de oferta prima pela precariedade extrema, 
subserviente à lógica do mercado. Nelas apenas se dão aulas, tendencialmente reprodutivas, 
dentro do instrucionismo mais atroz (Demo, 2004b). Os professores, como regra, não pesquisam, 
não possuem produção própria, apenas ministram aulas, não porque assim queiram, mas porque 
assim é este sistema. Os alunos comparecem como ouvintes forçados, escutam as aulas, tomam 
nota e fazem provas. Recebem, obviamente, um diploma encurtado e ultrapassado. Com 
exceçõesmuito honrosas (entre elas as universidades confessionais, em especial as PUCs), este 
tipo de oferta não detém o mínimo de qualidade acadêmica e subsiste por conta de manipulações 
do Conselho Nacional de Educação, impostas pela iniciativa privada. À sombra deste imbróglio, a 
elite tomou conta da oferta pública de educação superior, em particular da federal, em flagrante 
contradição com sua missão social. São públicas e gratuitas para que todos pudessem disputar, 
mas isto está, por definição socioeconômica, fora de questão. Nelas perpetua-se a mesma elite de 
sempre, e de graça. Nas universidades públicas estudam também alunos que não são da elite. 
Mas isto não elide o fato de que esta fatia privilegiada é butim da elite. Desta crítica não decorre 
que a oferta pública seja uma maravilha. Muito ao contrário. Também está repleta de problemas, 
que não vem ao caso repudiar aqui, pois o fiz em outros lugares (Demo, 2004b). Eis paradoxo 
clamoroso: no ensino fundamental, obrigatório, caracteristicamente de baixo nível, a população se 
apinha na escola pública. A elite busca os 10% de oferta particular. Isto sobe mais no ensino 
médio, onde a oferta privada é disputada vigorosamente por quem quer estudar bem e de graça 
nas federais e algumas estaduais. Assim, no nível superior, a relação se inverte: a oferta pública, 
caracteristicamente de melhor nível, é apropriada pelos mais ricos, ficando a oferta privada, 
sempre paga e de nível pior, para a população sobrante. Em si, seria extremamente desejável que 
um número muito maior de jovens concluísse algum curso superior, já que hoje se valoriza este 
tipo de educação para além da simples relação de mercado. Se fôssemos olhar para a relação de 
mercado, grande parte dos cursos deveria ser fechada. Aparece, naturalmente, um sentido mais 
amplo da “utilidade” da educação para vida. O que é farsa aqui é o crescimento intempestivo da 
oferta privada, com cursos cada vez mais encurtados e instrucionistas, puxando tudo para a vala 
comum. Prevalece, pelo menos numa parte significativa da oferta privada, o sentido ostensivo de 
negócio lucrativo. 
Haveria que mencionar ainda a corrupção no sistema, que leva a perder parte significativa 
dos recursos disponíveis. Tais desvios prejudicam extremamente a qualidade do sistema, 
incluindo-se aí a dificuldade de salários mais adequados para os professores. Esta questão não 
está resolvida em nenhum nível (básico ou superior), prevalecendo como injustiça maior os 
salários do professores básicos. Não se pode simplificar esta questão, porque aumentar salário 
não implica necessariamente melhorar a qualidade da educação. Mesmo assim, a dignidade dos 
professores é condição necessária para a dignidade da oferta. Se o professor for um excluído ou 
quase, não tem qualquer oportunidade de incorporar a missão de incluir os excluídos. 
 
 
 
 
III. FARSAS DAS ESQUERDAS 
 
 
 
 
Certas “esquerdas”, muitas vezes levadas por questionamentos oportunos, desandam em 
ofertas empobrecidas que repercutem, a seu modo, efeitos de poder. Tomo como exemplo a 
proposta dos ciclos no ensino fundamental. Tinha como mérito evitar a repetência e a evasão, 
porque está comprovado que fazer o aluno repetir não o leva a aprender melhor (Paro, 2001). As 
séries foram, então, diluídas em ciclos, para haver maior tempo disponível e o aluno poder 
transitar por eles sem risco de repetir. Ao mesmo tempo, combatiam-se, com justa causa, 
processos avaliativos antipedagógicos, que apenas classificavam os alunos, estigmatizando-os. 
Daí surgiu uma das maiores perversidades do atual sistema: a progressão automática. Deve-se 
defender a progressão continuada, porque é direito constitucional do aluno aproveitar as nove 
séries, uma atrás da outra, integralmente. Na prática, houve uma capitulação do sistema. Como 
parecia tornar-se difícil alfabetizar a criança na 1ª série, ajuntava-se mais uma, tornando-se um 
ciclo. Ao final da 2ª série, de novo, parecia difícil completar a alfabetização, puxando-se então para 
um tempo ulterior, até ao final da 4ª série. Nesta moda, o aluno facilmente chega à 4ª série sem 
ter resolvido a alfabetização (são quase 20% para o Brasil, e 30% no nordeste). De fato, de boas 
intenções o inferno está cheio: o que deveria ser uma chance renovada e garantida para os alunos 
com maiores dificuldades transformou-se em seu cadafalso. Os professores, apressadamente 
desgostosos com a avaliação, a eliminaram pura e simplesmente, ao som ensurdecedor da 
progressão automática. Todos os alunos avançam, de qualquer modo, sem qualquer avaliação ou 
cuidado com sua aprendizagem. O que era, antigamente, tarefa líquida e certa - alfabetizar na 1ª 
série - tornou-se tarefa impossível. Os alfabetizadores dão aula, nada mais. Se os alunos 
aprendem, isto tornou-se pergunta ociosa, porque todos, quer aprendam ou não, vão para frente. 
Teorias corretas que sustentavam as boas intenções se esvaziaram rapidamente. Críticas 
acerbas à avaliação, com base respeitável, em vez de retificarem os processos avaliativos, 
conduziram a seu abandono puro e simples. Entraram em cena alegações homéricas, desde a 
rejeição de classificações dos alunos, até o pavor de o professor ser avaliado. Dados do Saeb, 
entretanto, sugerem que o sistema, de 1995 a 2003, sofreu queda constante, agravada 
sumamente de 1997 a 1999, precisamente quando foram adotados os 200 dias letivos. No seu 
extremo, avaliar passou a ser procedimento da direita, puro atraso. Enquanto o sistema particular 
usa e também abusa da avaliação, porque considera esta iniciativa fundamental para a melhoria 
das escolas, as escolas públicas abominam avaliação. Por isso mesmo, os resultados do Saeb - 
terríveis em si, ainda que sempre questionáveis, como todo e qualquer dado (Demo, 2006a) - são 
olimpicamente ignorados. Cometem-se atentados contra a lógica, já que classificar é parte 
integrante de qualquer sistema lógico, além de compor nosso quotidiano em confronto com a 
realidade. Avaliar é, acima de tudo, coisa normal, diária. Quando saímos de manhã de casa, 
olhamos o tempo e avaliamos qual roupa vestir. Quando procuramos uma escola para nossos 
filhos, avaliamos a rede disponível e mesmo professores que são totalmente contra a avaliação e 
a escola privada, quando podem, escolhem a escola privada. Classificar os seres humanos em 
homens e mulheres não é assalto capitalista, perversidade neoliberal, discriminação odiosa, mas 
necessidade lógica e social de distinguir para poder lidar. O lado escabroso da classificação 
aparece quando colocamos a mulher como submissa ao homem, mas isto não advém da lógica, 
mas da trama social que perverte a classificação. Assim, reconhecer que um aluno aprende mal, 
não é necessariamente excluí-lo, mas condição necessária para o poder incluir. Nada na vida se 
faz com mínima qualidade se não soubermos avaliar. 
O sentido da avaliação é o cuidado com o aluno (Demo, 2004c). Toda mãe avalia seu filho, 
noite e dia, com zelo, não para estigmatizá-lo, mas para lhe garantir a melhor oportunidade 
possível. Se, chegando aos dois completos, ainda não fala nada, não faz progressão automática. 
Vai ao médico para resolver o problema. Da avaliação não precisa seguir qualquer perversidade, a 
menos que seja avaliação antipedagógica. Segue apenas o cuidado redobrado com o aluno, para 
lhe garantir o direito de aprender. É típica de alguma “esquerda” uma certa comiseração do pobre, 
reservando-lhe por isso mesmo uma política mais pobre. Em qualquer escola privada, a criança é 
alfabetizada na 1ª série, e, se esteve em pré-escolar, já aparece alfabetizada. Os país sabem da 
vantagem que é alfabetizar-se logo. Antigamente, era assim para todos. Hoje, as crianças, como 
regra, mesmo as pobres, chegam à escola mais apetrechadas, tendo em vista a convivência com 
textos por toda parte (supermercado, farmácia, ruas, letreiros, etc.). Se usam computador, 
conhecem obviamente já o alfabeto e os números. Torna-se muito difícil de engolir que seja tão 
difícil alfabetizarna 1ª série. Grossi, do GEEMPA (s.d.), sugere que é viável alfabetizar em três 
meses. Em sua proposta, por vezes criticada por ter formatado em excesso o pós-construtivismo, 
chegando muito próximo de uma receita (Irizaga, 2002), oferece um roteiro de avaliação 
meticulosa que pode auxiliar o alfabetizador a programar a evolução do aluno, conforme sua 
condição concreta, caso a caso. É claro que tais formatações são muito discutíveis, como é 
qualquer classificação avaliativa, mas pode ser pertinente para o cuidado com a aprendizagem. 
Na prática, a dificuldade extrema de alfabetizar na 1ª série é coisa de aluno pobre. Crianças ricas, 
como regra, não conhecem este problema. 
Avaliar, por outra, sendo coisa tão delicada, incômoda e arriscada, precisa ser feito por 
profissionais, como seriam os professores. Ocorre, porém, que grande parte deles não sabe 
avaliar, preferindo apenas falar mal da avaliação. Enquanto isso, seus alunos aprendem muito 
mal, e, por não avaliarem, sequer conseguem saber disso. Apenas dão aula. Com isto afunda-se a 
escola pública, considerada literalmente coisa pobre para o pobre. Quem pode foge delas, 
inclusive os professores públicos com relação a seus próprios filhos. Por vezes escuta-se da atual 
gestão do INEP (instituição que organiza os processos avaliativos do MEC) que os dados, em 
especial do Saeb, não são feitos para comparar escolas, mas para que cada uma tome 
conhecimento por si. Este posicionamento é típico de certas “esquerdas” e não faz mais que 
estigmatizar as escolas públicas ainda mais. Com efeito, as escolas particulares, sobretudo as de 
maior nível, buscam ostensivamente este tipo de comparação, porque querem ser as melhores, 
num gesto petulante e desnecessário (Kohn, 1999). Facilmente chega-se à idéia da “escola nota 
10”, preferindo a competitividade à aprendizagem. Não se pode, porém, responder a este tipo de 
abuso com simples liquidação de processos avaliativos e comparativos. A escola de baixo nível 
que usa os dados apenas para si, tende a proteger-se em sua insignificância, imaginando que se 
basta. Esquece que vive em sociedade e que seus alunos vão disputar oportunidades, quer 
queiram ou não. Enquanto comparar-se para competir é algo que não deveria medrar na escola, 
comparar-se para cuidar do aluno cada vez melhor é compromisso fundamental de cada escola. 
Comparar não é coisa necessariamente perversa. Depende se seu sentido social. Quando 
queremos casar, comparamos pretendentes e não vemos nisso nada demais. Ninguém aceitaria 
este papo pretensamente de “esquerda” de que, não se devendo comparar, casamos com o 
primeiro pretendente na esquina. As escolas fracas podem facilmente deixar de esforçar-se para 
melhorar, já que, comparando-se consigo mesmas, acabam ficando onde estão. Isto, porém, só 
serve para o pobre continuar pobre. 
É também farsa de certas “esquerdas” a defesa obtusa das universidades públicas, 
perfilando-se aí à direita sem pejo. À força de movimentos sindicais corretos e respeitáveis, 
logrou-se certo espaço de liberdade que facilmente desanda em sinecura. Também defendo a 
universidade pública gratuita, mas para os que dela necessitam mais, não para a elite. Esta, que 
defende com unhas e dentes a iniciativa privada, deveria resolver seu problema na iniciativa 
privada, deixando o espaço público e gratuito para a população mais carente que também tem o 
direito de acessar à elite. Nas universidades federais, pelo menos 50% dos alunos deveriam ser 
de procedência da escola pública na educação básica. A defesa da universidade pública, porém, 
não precisa confundir patrimônio público com sinecura interna. Pesquisa-se muito pouco, produz-
se quase nada, com exceções notáveis, de sorte que, também nelas, muitos professores dão aula 
sem produção própria. Evita-se a avaliação ferrenhamente, como se fosse insulto ao professor. 
Greves são quase piqueniques inconseqüentes, por mais que sejam um direito, a ponto de 
espantar muitos alunos que, desestimulados, vão para a esfera privada. Assim, creio que as 
universidades públicas precisam mudar muito, radicalmente, não só para corresponder à 
sociedade cada vez mais intensiva de conhecimento, mas igualmente para dar conta de sua 
missão social histórica (Duderstadt, 2003). 
A combatividade sindical, que um dia foi tão necessária e coerente, tende hoje a estagnar-se 
em diatribes duvidosas que, em geral, apenas favorecem aos professores. Por exemplo, conseguir 
que “redação” não faça mais parte do concurso municipal, não é conquista sindical, mas 
malandragem da grossa. Revela apenas que os professores não sabem redigir, ou seja, não 
podem ser propriamente professores. Mas, como esta “esquerda” defende que tarefa de professor 
é dar aula, não cuidar a aprendizagem do aluno, para que saber redigir? Seria urgente colocar na 
agenda sindical o direito do aluno de aprender. 
 
 
 
 
IV. FARSAS DO ESTADO 
 
 
 
 
Para a educação pública e gratuita o Estado é figura crucial, insubstituível. Não se pode, 
porém, esquecer que se trata de estado capitalista, a serviço do capital. Sua mais recente 
reestruturação serviu para colocá-lo ainda mais em subserviência ao mercado neoliberal, em 
particular com respeito à desregulação da atividade econômica, ao favorecimento do capital 
especulativo e à estabilização da moeda. A impressão que se tem é que a sociedade está a 
serviço da atividade econômica, não o contrário. Com tudo isso, muito ironicamente, a economia 
tem crescido muito pouco, o valor médio dos salários tem caído, e o desemprego se mantém em 
níveis elevados, sem falar que o setor informal atingiu patamares inimagináveis há algum tempo 
(para além de 2/3 da população ativa). Segue daí que a atividade econômica sob proteção da lei já 
é residual. Mesmo assim, o Estado continua figura crucial das políticas sociais. Não é - como 
querem algumas “esquerdas”, que são esquerdas da direita - garante da cidadania, porque, 
estando a serviço do capital tão ostensivamente, não pode assumir a cidadania como referência 
maior. Mas pode acolher pelo menos algumas pretensões da cidadania, se esta tiver suficiente 
qualidade política para se impor. O garante da cidadania é o próprio cidadão. O Estado não pode 
ser melhor que a cidadania que está por trás. 
Com respeito à educação, o Estado mantém o sistema público e normatiza/monitora/avalia o 
sistema privado. Há inúmeras farsas cultivadas pelo Estado. Uma primeira é a manutenção do 
sistema instrucionista vigente, inspirada fartamente na LDB. Define-se instrucionismo como vício 
de entender e praticar um estilo de educação de fora para dentro, de cima para baixo, com base 
em mera instrução, treinamento, domesticação. A LDB é, infelizmente, proposta instrucionista, 
tendo encontrado sua sugestão mais típica no aumento dos dias letivos para 200 ao ano (Demo, 
1997). Como cão de guarda deste sistema, o Estado vela para que se dêem aulas, todas as aulas, 
sem maior preocupação com a aprendizagem. Com referência a esta, assumiu os ciclos e a 
correspondente progressão automática, curvando-se muitas vezes a pressões sindicais duvidosas 
que defendem os professores, mas nunca os alunos. Não é o caso criticar que os sindicatos 
defendam os professores, mas deveriam também defender a ética docente e que implica 
compromisso inarredável com os alunos. A aprendizagem no Brasil está entre as mais baixas do 
mundo, não se percebendo ainda bem movimentos de recuperação. Embora Souza (2004) - ex-
ministro do governo FHC - tenha anunciado que fizera uma “revolução gerenciada” durante seus 
oito anos de mandato, concretamente o que se colheu foi uma queda sistemática dos índices de 
proficiência do Saeb (1995-2003). O que os dados sugerem é que, em se mantendo o sistema 
instrucionista atual, não temos como avançar na qualidade da educação. Apenas dar aula tornou-
se o signo do atraso, já que, em geral, as aulas são reprodutivas, dadas para reproduzir. O Estado 
produz dados, por sinal terríveis, mas não retira deles qualquer conseqüência.Faz parte desta problemática complexíssima a formação dos docentes, reconhecidamente 
muito precária (licenciaturas e pedagogia), em especial em entidades privadas. Há cursos de 
pedagogia de dois anos ou menos, num gesto ostensivo de rebaixamento da qualidade. 
Dificilmente encontram-se alfabetizadores que saibam alfabetizar, tamanho é seu despreparo. Não 
se trata de culpar os professores, porque são visivelmente vítimas deste sistema instrucionista. 
Fazem na prática o que seus professores fizeram com eles: aulas, aulas, aulas. Não conseguem 
avaliar (sem falar que detestam avaliar - aprenderam a não avaliar), não entendem 
profissionalmente seu métier, não se dedicam ao estudo, pesquisa, elaboração, não são autores. 
Ao lado disso, o Estado descurou de áreas sensíveis, como matemática, física e química, não só 
mantendo baixíssimos salários, como também esquecendo regiões mais problemáticas, onde falta 
tudo. Os sistemas de apoio também funcionam, em geral, precariamente, como é o acesso a livro 
didático, merenda e outros equipamentos, por mais que tenha sido iniciativa pertinente repassar 
verbas diretamente para as escolas. Com respeito aos professores, está em vigor hoje, por toda 
parte, a contratação de “temporários”, professores sem concurso, arregimentados de qualquer 
jeito, para tapar buraco, algo em si provisório, mas que se arrasta indefinidamente. Com isso 
gasta-se menos, divide-se o sindicato e implanta-se a cizânia entre os próprios docentes, pois, 
enquanto uns são de primeira, outros são de segunda. Abandonou-se por completo o 
compromisso de alfabetizar na 1ª série, empurrando-se para prazo nenhum, tornando o ensino 
fundamental, como regra, uma farsa do começo ao fim. As crianças perdem seu tempo na escola 
(Meirieu, 2005. Zen, 2006). 
O descaso com os professores parece-me ser o maior disparate, porque, com o tempo, estes 
profissionais passaram a constituir uma classe decadente, relegada, que luta para sobreviver, 
totalmente distanciada da dignidade social que lhe deveria pertencer. Dois são os maiores 
desafios: formar adequadamente, dentro da expectativa de qualidade da cidadania, e, a seguir, 
manter a formação permanente, muito além das semanas pedagógicas; pagar melhor, muito 
melhor, sinalizando com isso o preito que a sociedade deve. Não se trata apenas de aumentar 
salários, porque comprovadamente isto não resulta em benefício para o aluno, mas de pagar em 
conjunção com processos de monitoramento que garantam a melhoria da aprendizagem dos 
alunos. A primeira razão para um professor ganhar melhor é para poder dedicar-se mais 
eficazmente à aprendizagem do aluno e tirar a limpo este compromisso. A segunda é poder 
desfrutar de uma vida digna, compatível com sua função social e democrática. Mais do que nunca 
é preciso, ao lado de questionar o professor, saber defendê-lo como um dos baluartes mais 
cruciais da qualidade de nossa democracia. Professores mal formados e mal pagos simbolizam o 
atraso de um país que ainda se satisfaz com democracia e economia atrasadas 
(Paquay/Perrenoud/Altet/Charlier, 2001). 
Mas há ainda outras farsas, em especial a corrupção do sistema, abusado para todas as 
falcatruas possíveis e imagináveis, sem falar nos gargalos burocráticos que, muitas vezes, gastam 
mais em meios do que nos fins. A malversação dos recursos públicos é notória em educação, o 
que prostra as escolas públicas perante processos inviáveis de gestão das escolas. Muitas estão 
caindo aos pedaços, as reformas são feitas aleatoriamente, demoram uma eternidade, faltam 
escolas e algumas já sobram, numa demonstração que não aprendemos ainda a gerir 
adequadamente este tipo de sistema. Existe uma “indústria” de licenças entre docentes e pessoal 
das secretarias, podendo um mesmo docente perambular por escolas durante o mesmo semestre, 
sem compromisso com seus alunos - transfere-se a seu talante, não por conta das necessidades 
dos alunos. Na 1ª série - a mais estratégica de todas - é comum faltarem docentes; são alocados 
aí os novatos, os transferidos, os em castigo, do que resulta dificuldade ainda maior de 
alfabetização adequada. Na prática o Estado toca uma máquina maluca, que funciona por 
funcionar, não se sabe seu destino e finalidade, muito embora mantenha uma multidão vinculada a 
remunerações, por vezes, muito baixas. É este Estado que é garante da cidadania? Ridículo! 
Caberia ainda questionar o estilo comum entre nós de produzir autoridades na gestão desta 
área: ministros inventados, também desconhecidos da população, mas amigos dos donos; 
secretários que estão aí apenas para conseguir uma plataforma próxima para disputar alguma 
eleição; chefinhos de toda ordem dentro das secretarias, disputando migalhas de poder. Todos, 
porém, lidam com recursos, por vezes vultosos, o que aumenta a voracidade do poder. O Estado 
usa a população, não serve a ela. Não segue que o Estado deva ser maltratado, reduzido, mas 
segue que, para que tenha mínima qualidade, precisamos de educação de qualidade. A 
importância maior da educação está em formar uma população capaz de projeto próprio, individual 
e coletivo, de privilegiar o bem comum, de disciplinar o mercado como meio de interesse coletivo, 
de exercer efetivo controle democrático sobre os poderes constituídos, de forçar a 
desconcentração da renda em nome dos direitos básicos de todos. 
 
 
 
 
PARA CONCLUIR 
 
 
 
 
Em particular a escola pública mantém-se como coisa pobre para o pobre. Também na 
escola privada aprende-se mal, porque aí reina o mesmo instrucionismo. Mas, pelo menos, tendo 
dono, as coisas aí acontecem com maior sistematicidade e avaliação. No ensino fundamental, 
porém, onde 90% da oferta estão na esfera pública, é uma tragédia sem nome que tudo isso seja 
coisa pobre para o pobre. Nossa população não está aprendendo minimamente na escola. Ainda 
acredita na escola, não tanto por razões formativas, mas por receio de não poder, depois, 
enfrentar o mercado de trabalho. Seja como for, não estamos conseguindo efetivar o que parece 
ser um truísmo generalizado no planeta: sem resolver a qualidade educacional da população não 
há futuro, nem para a democracia, nem para a economia. Finalmente, é preciso tomar a sério este 
desafio. No entanto, pelo andar da carruagem, é bem possível que continuemos empurrando com 
a barriga. Se levarmos em conta que aumentamos nos anos recentes (há uma década pelo 
menos) os procedimentos avaliativos e sabemos com algum detalhe os problemas que nos 
acometem, mas não retiramos daí nenhuma conseqüência palpável, a tendência é continuar 
declamando que educação é prioridade, fazendo juras de amor sem resultado alternativo. A 
escola, em especial a escola pública, é um faz-de-conta encardido. 
 
 
 
 
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