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. SOCIOLOGIA DAS REVOLUÇÕES DO MESMO AUTOR "La spontanéité révolutionnaire dans une révolution popu laire. L'exemple de la Commune de Paris", Cahiers de Z'lnstitut de Bcienoe écOt110mique appliquée, S. 9, 1965, pp. 173-207. "L'a:ristocratie française devant l'opinion publique à la veille de Ia Révolution (1787-1789) ", Etudes d'Histoire économique et sociale du XVIJli! siecle, Presses Univer sitaires de France, 1966. La Commune de Paris (1811), Estudo sôbre a natu reza do poder revolucionário numa revolução popu lar. Cujas, 1968. COLEÇÃO �ABER ATUA� SOCIOlOCIA DAS RlYOlU�O[S por André DECOUFL:e Docteur en Droit Docteur es Bciences Politiques Tradução de HELOYSA DE LIMA DANTAS DIFUSÃO EUROPEI A DO L I VRO Rua Bento Freitas, 362, 6.• - Rua Marquês de Itu, 79 SÃO PAULO Titulo do original: Socio/ogie des révolutiom (Coll. "Que sais-je?", n.• 1298 ) 19 7 0 Copyright by - Presses Universitaires de Fra'llCe, Paris Direitos exclusivos para a lingua portuguêsa: Difusdo Européia do Livro, São Paulo IN D I C E INTRODUÇÃO PÃGS. 7 CAPITULO I - O Projeto Revolucionário . . . . . . . . . . 21 I - Revolução e sociedade global, 21; II - Os caracteres fundamentais do projeto revolucio nário, 3 1 ; III - Sociologia concreta do projeto. revolucionário, 62. CAPITULO II - A .Revolução Atuante . . . . . . . . . . . . . 66 I - Espontaneidade e voluntarismo na revolução atuante, 67; II - A estrutura do cotidiano da revolução, 84; III - O govêrno revolucionário, 101 ; IV - O perlodo pós-revolucionário e os fenôme- nos de defervescência revolucionária, 109. CAPITULO m - Sociologia da Contra-revolução . . . 113 CONCLUSÃO . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 127 BIBLIOGRAFIA SUMÃRIA . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 129 5 INTRO DUÇÃO "E ter-se-ia a revolução escondido por detrás dos professôres, atrás de suas frases pe dantes e obscuras em seus períodos passados e fastidiosos?" FRIEDRICB ENGELS Ludwig Feuerbach e o Fim da Filosofia Clássica Alemã. O s sociólogos concordam de maneira aparentemente unânime a respeito da observação que afirma ser a sociologia filha da Revolução Francesa: qual o motivo de ser tão negli genciada a própria sociologia das revoluções? Chateaubriand publica em Londres, em 1797, um Euai hiJtorique, poiitique et morai sur les révoiutirms considérées dans leurs rapports avec ia Révolution Française, baseado num método compara tivo que a sociologia contemporânea não renegaria. Com olhar singularmente moderno, êle aí vê a revolução corno uma ruptura da história, " linha divisória dos tempos - e, simultâneamente, dos pensamentos, costumes, curiosidades, leis e das próprias línguas - estabelecendo um antes e um depois absolutamente antagônicos e aparentemente irreconci liáveis" (1). Atribui à revolução seu espaço físico originá rio: o espaço de um círculo cuja circunferência é traçada ao infinito por um arquiteto misterioso - um deus ou um povo. ( 1) J.-P. RICHARD, Paysage de Chateaubriand. 7 Descreve-a como que torturada pela "vaga sêde de alguma coisa" e comunicando tal sêde à história. A visão de Cha teaubriand permanecerá muito tempo sepulta nos subterrâneos das imagens por tal forma desarraigadas que não podem fi. gurar entre os instrumentos de investigação científica. Po de-se observar o quanto a historiografia das revoluções per· manece, ainda hoje, obstinadamente prêsa a discussões tão vãs quanto as que dizem respeito por exemplo à determina· ção das "causas" das revoluções (1) e de seus respectivos li mites cronológicos: terá a grande Revolução Francesa come çado somente em 1789, e não se prolongarão os seus efeitos até os nossos dias? Semelhantes querelas, quase tão artifi· ciais quanto as que continuam a dividir os " dantonistas" e os " robespierristas", exigem em contraposição um esfôrço de análise sociológica, no sentido mais estrito dêste ambíguo qualificativo. Parece, logo de saída, permitir uma conclusão pouco contestável: a maioria dos numerosos autores cuja am bição foi o estudo sistemático e comparativo das revoluções com o objetivo de reduzi-las a seus traços essenciais, pelos quais elas podem ser efetivamente comparadas, fêz da " so· ciologia das revoluções" uma cômoda bandeira sob a qual circulam mercadorias de proveniência, pêso e valor extrema· mente diversos. Recebem, as mais das vêzes, etiquêtas ideo lógicas evidentes à observação mais desprevenida, manifes tando desta maneira a permanência da carga efetiva da pró· ( 1 ) São muitas vêzes suspeitas as "causas" invocadas pelos historiadores: a Revolução de 1789 foi feita não contra os pri vilégios mas em função de alterações ocorridas na repartição das fortunas entre aristocratas e burgueses no decorrer do século XVIII; não visando obter maiores liberdades individuais, sofrivelmente as· seguradas pela realeza, mas uma igualdade efetiva dos direitos po líticos entre as camadas sociais antigas e as novas, compreendida no sentido de uma igual repartição das maneiras de participar do poder, numa reação contra um sistema de govêrno que não oprime de modo algum o indivíduo, mas que o constrange continuamente a respeitar seu estatuto ancestral, sem que êste tenha ocasião de adap tar-se às mudanças econômicas e culturais. 8 pria palavra "revolução" em muitos espíritos. Não é fácil conseguir-se uma visão clara neste terreno, e ainda menos fácil tentar uma explicação sem nos limitarmos a colocar la do a lado revolucionários e contra-revolucionários de tôdas as categorias. O autor de um dos melhores e mais recentes trabalhos sObre os fenômenos revolucionários da Europa em via de industrialização, escreve que "êles têm como particularida de o fato de que as pessoas que não compreendem o inte rêsse que os mesmos podem apresentar, são incapazes de dizer algo de interessante a respeito, ao passo que as que o compreendem são incapazes de falar sôbre êles de maneira inteligivel para os demais" ( 1 ) . Ao nível de seu próprio discurso, com efeito, a socio logia das revoluções corre o risco, segundo seja escrita ou lida por êste ou por aquêle, de tornar-se elítica ou alusiva ou, o que não é menos grave, de se limitar a uma categori zação trivial. Pode-se imaginar, por exemplo, não ser indis pensável ao desenvolvimento do conhecimento sôbre as re voluções catalogar os líderes revolucionários - intelectuais, trabalhadores manuais, urbanos, camponeses, civis, milita res (2) - ou tentar precisar a noção tão vaga quão comu mente divulgada de "fôrças revolucionárias " extraindo sua existência latente daquela, que não o seria menos, de um ( 1 ) Eric J. HOBSBA WN, Les primitif s de la ré volte dans l'Europe moderne. ( 2 ) De espécie muito diferente é o esfôrço de Engels ao procurar classificar as heresias camponesas da Europa Central du rante a Idade Média, qualificadas de maneira muito convenien te, como "patriarcais" (a montanhesa: Vaudois ). "urbanas" (al bigenses. wyclefitas, hussitas) , "camponesas-plebéias" ( taboritas, münzerianas) . Cf. À Guerra dos Camponeses na Alemanha. En gels aí reconstitui os espaços humanos dos movimentos sociais por um processo do qual está excluída tôda normatividade fértil em "receitas" de revoluções. 9 fogo de ação coletiva efervescente" (G. Gurvitch) no seio da sociedade global. Essas " fôrças " seriam ora a classe ope rária, ora o campesinato, ora a camada de artífices e peque nos comerciantes, ora o conjunto da burguesia (como para Marx, em primeiro lugar); elas se " mobilizaram" atenden do ao apêlo de líderes e " sob a pressão" de acontecimen tos. . . revolucionários, nos quais sua " espontaneidade" nati va se manifestaria em tôda a sua pujança. :e êsse o esque ma típico do nominalismo canhestro de tantos ensaios socio lógicos. A sociologia das revoluções coligiu o seu bestialó gico antes mesmo de codificar-se: aí ficam mofando de cam bulhada,a " mentalidade revolucionária" nascida, como se sa be, de uma " tomada de consciência"; a " situação revolucio nária", expressão reveladora em que o qualificativo dispen sa o esfôrço de qualificação; a " fé revolucionária" que só dispõe de um tempo, coisa que tanto pode ser aplaudida como deplorada etc. Merleau-Ponty ridicularizava não há muito tempo a "honra revolucionária" mostrando que ela não passa de uma " variedade da dignidade burguesa" (Hu mani.rmo e Terror) e suplicava que não se reduzissem a ex pressão tão medíocre o pensamento e a ação de heróis da revolução como são, por exemplo, em Malraux, os persona gens centrais da Condifão Humana: Kyo, May, Tchen e mesmo Gisors. O campo da investigação da sociologia das revoluções é afetado pela tragédia, a tragédia da esperança, do combate e da morte dos homens que não são de modo algum as categorias atravé s das quais os sociólogos se habi tuaram a situar a maioria de suas análises. Se, como o re cordava Fidel Castro em tôdas as ocasiões, " o dever do re volucionário é fazer revolução", o do sociólogo da revolução é fugir ao perigo normativo recusando simultâneamente: a) Uma resposta não menos banal a esta questão que lhe será multo provàvelmente proposta com sofreguidão: em que condições poderá uma revolução eclodir ? (Uma resposta não menos clássica a esta pergunta consiste em discorrer sõbre as razões pelas quais a revolução soviética 10 triunfou num pais "atrasado", "contràriamente" ao esquema de Marx. Um inquérito menos sôfrego de respostas pré -fabricadas, mostra que, por um lado, a Rússsia de 1917 constituia um pais muito menos "atrasado" do que convi nha sustentar diante dos compradores de "fundos russos", e, por outro lado, ao invés de ter triunfado como que por obra de magia, a Revolução soviética teve de implantar-se progressivamente no imenso pais, de uma maneira renhida, e esta implantação durou o espaço de um.a geração.) Co mo se pode governar "revolucionàriamente" para e pelo povo? (0 caráter puramente subjetivo dêsses problemas se revela até na dificuldade de sua formulação: que signi fica "eclodir" ? "Para e pelo povo"? E ainda mais: "re volucionàriamente" ? Contudo, seria dificil exprimi-los de outra maneira.) Trata-se, de resto, de questões largamen te tratadas pelos ideólogos e teóricos revolucionários e a so ciologia das revoluções só poderia assim abordá-las pelo ângulo de uma sociologia das próprias doutrinas revolucio nárias, que contribuiria, por exemplo, para melhor situar o blanquismo, os anarquismos, as sociais-democracias, e mesmo o marxismo ortodoxo no espaço social do Ocidente a. ca minho da industrialização nos séculos XIX e XX, e possibi litaria sem dúvida a compreensão do sentido e do alcance das deformações que essas mesmas ideologias sofrem atual mente em outros espaços sociais como os dos paises em via. de recuperarem a própria soberania. b) Escolher aquilo que constituiria seus materiais de observação especifica no seio da maneira revolucionária. global, do mundo total da revolução constituldo de homens, de ações e de pensamentos humanos, de imagens, ideologias e interpretações. . . A sociologia das revoluções deve, por tanto, ter como igual fundamento a recusa da confusão com as doutrinas revolucionárias e a preocupação de efetuar uma análise global de comêço ao fim de seu discurso, de maneira a um tempo tão rigorosa e indüerenciada. quanto possivel. As revoluções pertencem ao número dêsses "fe nômenos sociais totais" a respeito dos quais Marcel Mauss escrevia que nêles se pode, "considerando o conjunto, per ceber o essencial, o movimento do todo, o aspecto vivo, o instante fugidio ( ... ) em que os homens adquirem cons ciência de si mesmos e de sua situação frente aos demais" (Ess� sur le don). 1 1 Em tais condições, não basta à sociologia das revolu ções distinguir os fenômenos revolucionários dos outros mo vimentos sociais e tentar em seguida conferir-lhes uma inte ligibilidade própria, comparando-os uns com os outros a fim de extrair esquemas de explicação susceptíveis de aumentar o conhecimento do domínio imenso das mudanças mentais e soaa1s. :f:-lhe ainda necessário, ao invés de buscar descre ver o modêlo de uma revolução-tipo que não deixaria de ser a revolução ideal sob pretexto de que ela teria passado pela "mesa do teórico" (Merleau-Ponty) , atribuir às revoluções uma razão, uma lei no sentido que Montesquieu emprestava à palavra, uma significação comunicável. Se a sociologia das revoluções pode ser - e haverá acôrdo a êste respeito desde êste estágio da análise - o arquétipo da sociologia das trans formações mentais e sociais, e se o sociólogo é, por seu tur no, como escreve Jean Duvignaud, "o intelectual privilegia do cujo terreno de experimentação se mede pelo seu próprio grau de participação na crise que atravessa uma sociedade" (lntroduction à la socio/ogie), o problema do estatuto prõ priamente filosófico da sociologia das revoluções não pode ser afastado, nem tratado isoladamente daquele da figura do próprio sociólogo das revoluções. A tentação e o fracasso da redução ao modêlo fornecem uma justificação bastante aceitável para esta exigência. O modêlo que se pode ver delinear no plano ou a conclusão dêste ou daquele estudo é geralmente inspirado pela Revolu ção Francesa : a um derradeiro sobressalto das classes domi nantes da antiga sociedade (revolta aristocrática ou nobiliá ria) sucederia uma primeira fase da revolução burguesa, logo sobrepujada por uma vaga de revolução popular que encon traria, por sua vez, o seu final num termidor que prepararia a consolidação de um amálgama de revolução popular e de revolução burguesa, pela intervenção ou não de uma ditadura. Tal o esquema proposto pelo ensaio de Grane Brinton (The Anatomy of Revolution) . Trotsky já qualificava, em A Re- 12 vol11fáo Traída, a tomada do poder por Stalin de "termidor soviético". Há aí muito exagêro. Se há uma lição que a sociologia das revoluções pode oferecer, apoiando-se no estudo de um número conveniente de movimentos revolucionários, é, sem dúvida, a da irredutibilidade da maioria dêsses movimentos a um esquema-tipo de desenvolvimento e, mais ainda, a da inanidade de uma pesquisa desta ordem: se a revolução po pular é sempre semelhante a si mesma, é no cotidiano e no final, mas não certamente nesse nível intermediário de inter pretação no qual o procedimento do teórico e mesmo o do his toriador pretenderiam imobilizá-la. Apreende-se a revolu ção em sua natureza além do tempo - no imediato que ain da não o constitui e na duração que lhe escapa. Esta "trans -temporalidade" (Merleau-Ponty) da revolução confere-lhe, com relação às categorias clássicas da história, uma historici dade particular capaz de fundar, a rigor, sua própria sociolo gia e de lhe fornecer um estatuto científico ( cf. infra, cap. 1). Está na hora de precisar alguns têrmos, a começar pe lo de revolução, do qual Littré nos fornece a chave desde a primeira acepção que nos propõe: "Retôrno de um astro ao ponto de onde partira" - isto é, se nos é permitido per manecer um instante nas categorias gerais da astronomia: reinicio do espaço por complementação do tempo. Littré enriquece o conhecimento da palavra propondo um segundo sentido: a revolução é também "o estado de uma coisa que se enrola". . . As acepções banais que aparecem a partir do sexto significado não são menos portadoras de reflexão e de sonho: "6.• Antigo têrmo de medicina. Revolução de humo res, movimento extraordinário entre os humores. "7.• Mudança nas coisas do mundo, nas opiniões. "8.• Mudança brusca e violenta na politica e no govêr no de um Estado ( ... ) . De maneira abstrata, a revolução, sistema de opiniões compostas de hostilidade ao passado e de busca de um nôvo porvir, por oposição ao sistema con servador. 13 "9.• Aplica-se aos acontecimentos naturais que transtor naram e mudaram a face do globo." Quantoa "revolucionário", fala-se em "medidas adota das em tempo de revolução, de caráter violento, extrale gal". Desliza-se aqui bruscamente da imanência à presen ça: a revolução bate às portas do Dicionário: "Com efei to, eu possuía então, na Rue d'Ouest, hoje Rue d' Assas, um minúsculo e incômodo alojamento ( ... ) que o pessoal da Comuna ocupou durante três dias em maio de 1871 ( ... ) . Quando fugiram, desalojados dali como de outros lugares, tiveram o cuidado de não partir sem antes provocar um incêndio no rés-do-chão. A casa inflamou-se, mas a tropa ao chegar dominou o incêndio como o da residência fron teira onde morava o Sr. Michelet, felizmente ausente e que os incendiários não haviam esquecido" (Comment j'ai fait mon Diction·naire de 7,a Zangue française). Por ai se vê que a revolução, na presteza de seu movimento, sabe se tornar detestada por aquêles mesmos que lhe fornecem quer o sinal, quer o estatuto. Voltemos, porém, à semântica que ainda não esgotou seus recursos. Littré pertence a uma época que julgou necessário tor nar insípida a revolução a fim de garantir a vitória da or dem até mesmo nas palavras, em que Fustel de Coulanges consagra um livro inteiro da Cidade Antiga intitulado "As Revoluções", à descrição das conseqüências nefastas para Roma do "apagamento das crenças antigas" que "fêz desa bar o edifício social construido por essas crenças e que só mente elas poderiam sustentar". O século XVII francês, que estudos recentes revelaram ter sido também tão rico em revoluções ( 1) , já havia distinguido com precisão im pecável, a emoção ( que é, em sentido estrito, o ato de pôr em movimento uma massa popular: a sediçélo, têrmo forte para designar a constituição de uma parte do povo em ameaça organizada de poder oposto ao poder estabelecido; o levante, a rebelião, o motim e a revolta, outros tantos estados sucessivos da sedição constituida. ltste vocabulá rio não deve induzir ao pitoresco: a bandeira vermelha flu tua em 1635 sôbre Bordeaux, onde já aparecem as barrica- ( 1) Boris PORCHNEV, Les soulevements p.opulaires en France de 1623 à 1648. Roland MOURIER, Fureurs paysannes. Les paysans dans les rlvoltes du XVJle Siecle (France, Chine, Russe) . 14 das que surgirão em Agen e em Rouen em 1639. As mo dalidades e os simbolos da revolução popular são tão in temporais quanto suas causas: Bayonne presencia em 1641 uma "paralisação geral do trabalho", uma greve de protes to contra a chegada de um navio de guerra real enviado para fazer respeitar os editos fiscais. A irrupção da revolução no vocabulário da ciência poll tica produzir-se-á no século XVIll, quando Montesquieu enunciar que o despotismo é o regime natural das revolu ções populares (Do Espírito das Leis, V. II). Mas nem os Enciclopedistas, nem Rousseau, nem os próprios revolu cionários de 1789 lhe renovaram a acepção e caberá à tra dição contra-revolucionária dos séculos XIX e XX, e à tra dição socialista da mesma época, que conseguiram se pôr de acõrdo pelo menos uma vez, a tarefa de empobrecer e de vulgarizar o vocabulário: "A revolução, escreve Ch. Rappoport na Encyclopédie socialiste, consagrada pelos di rigentes da II Internacional à glória do movimento operá rio, é uma transformação radical ou fundamental, uma mu dança de regime, de direção, de principio. A revolução é um ato de emancipação humana e social" (A Revoluç4o Social) : ninguém conseguiria exprimir-se de maneira mais ôca. A historiografia revolucionária, com Aulard e Ma thiez, não imprimirá nenhum progresso à reflexão a nê.o ser solicitando que também se coloque a revolução no terreno, sem dúvida essencial, de regime da propriedade. Além de outras revoluções, será imprescindivel esta lenta decanta ção de discurso que marca de maneira tão nitida o pen samento moderno, para chegarmos a encontrar sob a pena de um autor já citado, esta proposição tão simples: o que vem a ser, afinal de contas, a revolução senão a "criação de um conjunto histórico? (1). Semelhante acepção da re volução não pode ser justificada através de umas poucas fórmulas, e um dos objetivos dêste ensaio será sugerir uma demonstração das mesmas; terá ela a vantagem de afastar radicalmente do debate a oposição clássica entre reforma e revolução, por exemplo, tirando também algo do interêsse atribuido a uma distinção mais ponderada que separaria "revolução" de "insurreição", deixando de lado as relações entre história e revolução que serão caracterizadas mais adiante. A revolução situa-se na duração, espaço temporal ( 1) MERLEAU-PONTY, As Aventuras da Dialética. 15 da imanência: torna-se assim possivel não confundir uma insurreição prolongada com uma revolução, por mais breve que esta seja. A "Revolução" de 1830 é uma insurreição que "dura" dezoito anos no tempo. A Comuna de 1871, que seus adversários procuraram reduzir à escala de sim ples insurreição, é uma revolução que ocupou apenas algu mas semanas no espaço banal da história. o que não faz senão acentuar ainda mais intensamente talvez seu caráter "trans-histórico" (l). Esta distinção entre revolução e in surreição não se superpõe à que Lênine sistematizava redu zindo a insurreição a uma técnica particular de tomada do poder, a fim de lhe opor a densidade cientifica da revo lução, esforçando-se assim por romper com a tradição blan quista de insurreição cujo fim reside nela mesma. Semelhante concepção da revolução não é apenas de molde a evitar muitas querelas jâ desgastadas: permite atribuir à categoria das revoluções, ao mesmo tempo, uma extensão e um rigor inusitados. Serão assim colocadas ao nivel das revoluções autênticas as Cruzadas medievais, com relação ao "fato essencial desta história da alma coletiva: o lento desaparecimento da Cruzada dentre os acontecimen tos da história e sua latência manifesta, mais ou menos submersa através dos Tempos modernos e pronta para uma nova vida quando êstes se encerram - hoje em dia" (A. Dupront). Pode parecer que o primeiro mandamento da sociolo gia consiste em não reverenciar os mitos antes de transfor má-los em objeto de estudo (2) . Não serão encontradas, a ( 1) Henri LEFtBVRE, La proclamation de la Com mune. ( 2) Como observa François Bourricaud, também o mito re volucionário possui uma categoria de impostura final, aproximan do-se nesse ponto do mito burguês: a do "país real". Não há, observa êle, entre os fenômenos revolucionários contemporâneos na América andina, nenhum preconceito tão difundido quanto o da oposição entre um "país real" em estado de rebelião latente e um "país oficial" constituído por uma camarilha cega, uma oli garquia egoísta. tste estereótipo é dotado de tal poder sôbre os espíritos que grande número de intelectuais toma incautamente tal ou qual epifenômeno de violência camponesa por um sinal precur sor da inevitável revolução neste ou naquele país ( cf. infra) . 16 seguir, considerações exageradas sôbre o igualitarismo e a li berdade, mas não nos furtaremos ao exame de suas contradi ções obstinadas : a diferença das condições, a exigência de to talidade assim que se trate de homem, a servidão e a aliena ção contlnuamente combatidas e contlnuamente triunfantes. Monk, personagem célebre nos anais da contra-revolução, é impelido para o proscênio pela mesma história que impele Bonaparte: "Niveladores" e Enragés clamam por um nivela mento pela fôrça, o mesmo nivelamento que não consegui ram impor com o auxílio dos princípi·os. Resulta do precedente, e julgamos havê-lo suficiente mente sugerido, que a sociologia das revoluções está ainda no limiar da existência. Foram as revoluções sobretudo que ocuparam o espírito dos teóricos políticos e dos psicólogos sociais: não será inútil esquematizar as principais vias de aces so pelas quais, há um século principalmente, os fenômenos revolucionários vêm sendo solicitados no sentido de desven dar seu conteúdo e suas leis. A historiografia revolucionária permanece essencialmenteligada a um acontecimento : a cha mada Revolução Francesa (1789-1799) , e continua dividida entre duas escolas irreconciliáveis: a de Thiers e da revolu ção "infalível" e "generosa" ; a escola de Michelet e da revo lução frágil e dolorosa, que domina os trabalhos contempo râneos, com Daniel Guérin (La lutte de classes sous la Pri miere République) e Albert Soboul (Les sans-culottes pari siens en /' an II) . A teoria política francesa do século XIX julgou poder integrar a revolução em seus sistemas. Imaginou, com Toc queville, que, visto "não ter havido jamais acontecimentos mais importantes, dirigidos de mais longe, melhor prepara dos e menos previstos" que a Revolução de 1789, o progres so da ciência de governar caminharia pari passu com o me lhor conhecimento daquilo que surgia doravante como um elemento constitutivo da crescente democratização das socie dades industriais. Et'lvidou esforços no sentido de se recon- 17 ciliar com a revolução, concedendo-lhe um lugar em sua vi são da história, reduzindo-a a uma categoria familiar ao po lítico. Julgou que um esfôrço de reflexão, na cúpula, e de educação, na base, recolocaria na norma as revoluções dís pares que atulham a história do progresso da humanidade consciente. Decorre daí, sem dúvida, o fato de ser a França tão rica em psicólogos do movimento revolucionário e par ticularmente dos "estados de multidão" (Tarde, Le Bon, de Feiice etc., cf. infra. cap. III) , sendo, em contraposição, tão pobre em sociólogos, voltados para as mesmas preocupa ções. Se hoje em dia Merleau-Ponty (Humanismo e Ter ror, As Aventuras da Dialética) e Sartre (Critique de la raison dialectique, Os Comunistas e a Paz) fizeram preparar consideràvelmente, embora colocando-se em posições opos tas, a reflexão filosófica sôbre a revolução, é do estrangeiro que vêm os trabalhos mais importantes no domínio da socio logia propriamente dita dos movimentos revolucionários. Menção especial deve ser feita à obra recente de Sar tre. Na Critique de la raison dialectique, êle retoma, apoian do-se na historiografia da Revolução Francesa, a filosofia e a sociologia, entremeadas, do grupo. :tlle o descreve como um processo de reconquista coletiva por homens situados em um projeto (o projeto revolucionário) de uma praxis comum, rompendo com a "serialidade", isto é, um tipo de estatuto coletivo em que cada qual é idêntico para o outro e intercambiável com quem quer que seja. A Critique desenvolve, com um rigor que muitos soció logos poderiam invejar ao filósofo, a teoria da relação dia lética entendida como "lógica da ação criadora, isto é, como lógica da liberdade" que relaciona o grupo com a história: o que vem a ser a tomada da Bastilha senão a "descoberta de uma terrivel liberdade comum" pela mediação de um "nõvo reagrupamento dissolvendo uma serialidade costu meira na homogeneidade de uma cidade em fusão" ? Não se tentará aqui apelar para uma pretensa "tomada de cons ciência revolucionária" : o problema proposto simultânea mente ao filósofo e ao sociólogo consiste em "saber em que medida a multiplicidade das slnteses individuais pode fun damentar, enquanto tal, a comunidade dos objetivos e das 18 ações". No estatuto de grupo, o individuo é "metamorfo seado", desalienado no projeto comum: êle a1 ascende à socialidade por uma participação de cada instante à tota lização comum. Há muita distância, portanto, entre o gru po e o povo revolucionários em ação, e Sartre nos alerta contra uma sociologia apressada: "A maneira pela qual se fala a respeito das transformações dialéticas das mas sas é sempre metafórica." Não há situação "tipicamente revolucionária" assim como "não há uma idéia platônica do Terror; há apenas terrores e se o historiador tiver de lhes atribuir alguns caracteres comuns, deverá fazê-lo ba seando-se em comparações muito cautelosas". Não deixa de haver, entretanto, uma função do Terror que o soció logo pode verificar ao término da análise do grupo e como que em resposta a outra análise, a do juramento que insti tucionaliza o grupo revolucionário e o constitui em atos frente à contra-revolução; o Terror torna a introduzir no seio do grupo a alienação portadora de serialidade e inércia - êste prático-inerte pelo qual Sartre designa "as ativida des humanas enquanto mediadas por um material rigoro samente objetivo que as faz retornar à objetividade". E sua ordem metodológica de partida - "é preciso passar pe la mediação dos homens concretos, do caráter que o condi cionamento de base lhes criou, dos instrumentos ideológi cos que utilizam, do meio real da revolução". - Merleau -Ponty outrora a acoimava de indeterminação, suspeitan do, através da revolução realizada na U.R.S.S., que "o meio da revolução consistia cada vez menos nas relações entre pessoas e cada vez mais nas coisas e suas necessi dades imanentes" (As Aventuras da Dialética). Pode-se propor com algum fundamento a questão de saber que uso poderia a sociedade fa2.er da revolução cons tituída em objeto de análise. Lê-se num recente Ensaio Sôbre a Revolução : "Na luta que divide o mundo atualmente (o autor mostrará que se trata, em sua opinião, da luta entre uma civilização da liberdade e uma civilização da igualda de) e do qual dependem tantas coisas; sairão vencedores aquêles que compreenderem a revolução . . . " (Hannah Ahrendt. ) A sociologia hoje dominante - a sociologia ame ricana do meado do século - está marcada pelo traumatis mo revolucionário. Sorokin, Moreno, Parsons etc., foram 19 testemunhas chocadas ou comentadores apavorados da Re volução Russa de 1917 e de seus prolongamentos no Ociden te europeu nos dias subseqüentes à Primeira Guerra Mundial. Observaram, em contraposição, a ordem e a liberdade prati cadas pela democracia de tipo norte-americano e acreditaram poder conciliar o rigor científico e o combate em prol da causa mais justa construindo sistemas de legitimação daquilo que êles, com tôda a certeza, veriam com muito espanto qualificar como a forma contemporânea mais perfeita de projeto contra-revolucionário. Empenharam-se em tomar ao pé da letra a Revolução Russa e a Revolução Austro-Alemã e em conceber wna operação de conversão semântica pela qual as "idéias" revolucionárias, despidas de sua violência e de seu moralismo, seriam novamente injetadas no corpo da sociedade industrial pela seringa asséptica do sociólogo, cujas análises tornam consciente a existência de obstáculos maciços às mudanças, que são inerentes à estrutura da socie dade e à do caráter" do homem (D. Riesman) . A atitude mais significativa dêste estado d e espirito parece ser a de Sorokin. Publicou êle, em 1925, uma Socio Zogie dea révolutions baseada, segundo confessa sem rebu ços, na experiência por êle vivida durante os primeiros anos da Revolução Soviética. O livro centraliza-se em tõrno de uma noção principal: a perversão dos comportamentos hu manos ligada ao processo revolucionário (perversão do sen timento de propriedade, das relações de trabalho, dos com portamentos sexuais (sic), das relações de hierarquia e de subordinação, das atitudes religiosas, morais, estéti cas etc.). Esta recensão prolonga-se num requisitório sô bre as "ilusões revolucionárias". A Revolução mercadora de ilusões é, com efeito, para Sorokin como para tantos ou tros, a mulher de vida airada da patriarcal ordem social. A imagem sexual que serve de guia para Sorokin, a demons tração que êle se empenha em fornecer "da mudança na composição biológica da população e do processo de re produção e de seleção" da ef!pécie humana por ela realiza da, não constituem apenas uma singularidade de linguagem. i!lste tema será novamente encontrado no âmago do pan teão contra-revolucionário (cf. infra, cap. III). 20 CAPITULO 1 O PROJETO REVOLUCIONÁRIO Cidadãos redatores, "Teria havido um trabalho preparatório à Revolução, de grande utilidade : o da classificação das idéias, tanto as revolucionárias quanto as que tais se pretendem" ANDRÉ LEO Carta aos redatores de La Sociale, 14 de maio de 1871 Antes de observar os atos da revolução, devemos anali sar-lhe o projeto. J!ste se define em três níveis que repre sentam outras tantas etapas de seu estudo sociológico: as re lações gerais da revolução com a sociedade global; os carac teres próprios do projeto revolucionário; as modalidades de apreensão dos aspectos concretos do projeto revolucionário em cada revolução. 1 - Revolução e sociedade global. :e muito freqüente a associação entre "situação revolu cionária" e miséria generalizada, e os trabalhos de Ernest Labrousse sôbre as origens econômicas da Revolução Fran- 21 cesa proporcionaram um interêsse renovado a uma interpre tação há muito tempo considerada como preceito histórico: "Deve-se recear, já escrevia a Richelieu em 1633, o Duque de :Epernon, governador-geral de Guyenne (1), que a extre ma penúria dos povos não lhes suscite alguns maus con selhos." Não é nada difícil, entretanto, admitir a necessida de de ultrapassar êste nível de explicação: a revolução não está obrigatoriamente ligada à pobreza ou à miséria. Esta verificação, menosprezada muitas vêzes pelos propagandis tas mais inclinados às referências ideológicas que à obser vação da realidade, se vê aparentemente ilustrada em tôdas as sociedades contemporâneas, quaisquer que sejam seus ní veis re�pectivos de desenvolvimento. A começar pelas so ciedades industriais que têm seus "marginais": vagabundos, clochards, subproletários das favelas . . . os quais não pa recem movidos por qualquer sentimento de revolta contra a ordem dominante que nêles possa fundamentar um pro jeto revolucionário. Esta observação parece valer também para as massas camponesas e urbanas mais miseráveis da Asia, da Africa e da América Latina, isto é, para a grande maio ria das populações dos países "subdesenvolvidos". Contudo, devido à sua própria generalização, esta apro ximação deve levar a propor uma distinção elementar entre dois níveis de pobreza em seu relacionamento com aquilo que a sociologia pode qualificar como projetos coletivos. Torna-se necessário precisar preliminarmente a noção de projeto: o sociólogo, escreve Alain Touraine, não pode "jamais prescindir de todo de uma hipótese a respeito dos determinantes da ação social : a miséria não explica a re volta e menos ainda a revolução, pois esta supõe um obje- ( 1 ) A Guyenne é uma das províncias da antiga França, ca pital Bordeaux. Foi, durante longos anos, disputada pelos inglêses que a ela se julgavam com direito, devido ao casamento de Hen rique II com Eleonora de Aquitaine. (N. do T. ) 22 tivo, uma imagem da liberdade que permita pelo menos re conhecer a miséria". Com efeito, a imagem surge como elemento constitutivo do projeto: "imagem projetante e anelante" (François Perroux ) , "imagem-guia" (Paul-Hen ri-Chombart de Lauwe) : entretanto, o projeto coletivo é mais que a imagem pura; êle é a imagem que se torna. in teligivel e comunicável - no limite, comum ao grupo, e a.té mesmo à sociedade globa.I: um encontro da. imagem e da linguagem. Podem-se distinguir dois tipos de projetos coletivos: o projeto estabelecido ou projeto dominante e o projeto revolucioná.rio. O projeto estabelecido é aquêle que parece ( explici tamente ou não) aceito como receptáculo, na. sociedade con siderada, do sistema vigente de pressões, de instituições e de transformações. Comporta múltiplas moda.Iidades: libe ral ( quando o projeto coletivo é concebido como uma so ma harmoniosa de projetos individuais) , neo-liberal (no qua.I se opera um deslocamento do centro de gravidade das pressões e das instituições em beneficio das pressões e ins tituições públicas ou parapúblicas) , socialista (no qual 11. apropriação coletiva dos meios de produção acarreta um sistema de pressões e de instituições essencialmente públi cas e no qual os projetos individuais só aparecem como residuais) etc. O projeto revolucionário constitui essencialmente uma. contradição com o projeto estabelecido. Antes mesmo de caracterizá-lo de maneira mais pormenorizada., importa su blinhar que, por hipótese, êle é sempre coletivo. De res to, esta qualificação não deve iludir. Seu único significa.do consiste em excluir do projeto revolucioná.rio, o revoltado solitário. Sabemos, sem que êste julgamento se estenda ao conjunto do livro, que a confusão quanto a êste ponto atin ge o auge no ensaio de Albert Camus em que o Homem revoltado - o homem que não diz não - sublima inutil mente seu protesto individual em "revolta. metafisica.": "opõe o principio de justiça nêle existente ao principio de in justiça que vê no mundo". Ca.mus não pode deixar de abordar o problema da revolta coletiva, mas o faz partindo da obsessão hegeliana da história, de reconhecido caráter totalitário . uma critica implacável do projeto marxista busca reduzi-lo a um acúmulo de paradoxos. O proletariado perde tôda. "missão" histórica ( porém, terá. Marx jamais incorrido em tal aproximação? ) : ":f::le é apenas um recur so poderoso, entre outros tantos, nas mãos de ascetas revo- 23 lucionários." O homem revoltado que, pelo fato de ser ho mem nã.o pode ser solitário, afirma Camus, veste a roupa gem do revolucionário profissional : "0 revoltado recusa assim a divindade a fim de compartilhar das lutas e do des tino comum." Mas, confundir sem-cerimoniosamente Lênine com Stalin? Saint-Just com Robespierre? Münzer com Lutero? A generosidade de muitas de suas fórmulas nã.o tira do ensaio de Camus o caráter de discurso sõbre a re volução, coisa que deve ser evitada pela sociologia da massa. A qualificação de "coletivo", aplicada à noção de pro jeto revolucionário não significa em compensação que êste não possa sofrer uma clivagem segundo o tipo de repre sentações mentais por êle suscitadas nos diferentes grupos sociais que concerne: tais clivagens subsistem vivazes, em urna sociedade de memória coletiva pejada de revoluções como a sociedade francesa contemporânea; entre outras razões, elas explicam a eclosão por objetivos de suas "fôrças revolucionárias" potenciais: pacifistas, não-violentos, leigos, dissidentes coletivistas de extrema esquerda, anarquistas, surrealistas, situacionistas etc. Uma distinção já sugertda entre imagem e projeto, pode neste ponto evitar um equi voco. A análise do vocabulário da revolução lhe traz sua contribuição. Ela comprova a defasagem entre a expres são popular do projeto revolucionário em estado bruto e a oferecida pelos diferentes grupos que lutam pelo sacrificio do poder. Permite precisar o tema, tão caro aos lideres, da "comunhão com o povo" que constitui para os maiores dentre êles a um tempo a verdade e a impostura de seu es tatuto. A ruptura semântica atinge até mesmo os intér pretes da revolução: "Eu nasci povo, tinha o povo no co ração ( ... ) mas sua Ungua, era-me inacessivel. NA.o pu de fazê-lo falar", reconhece Michelet. A revolução não é redutível nem a uma acumulação de violência, nem mesmo a um conjunto de instituições, pois se baseia num "projeto visando um outro mundo - vislumbra do antes de ser construído" (François Perroux) , devendo por isto ser analisada em suas representações mentais coleti vas, tanto quanto em seus atos. O projeto revolucionário se revela à observação mais corriqueira como o "mundo a ser ganho'', evocado pelo Manifesto Comunista. Louise Mi chel, heroína da Comuna de 1871, escreverá a respeito: "Ti- 24 nha-se pressa de escapar do velho mundo". A "Revolução cultural" chinesa de 1966-1968 tem início com um editorial do Diário do Povo (8 de junho de 1966): "Nós critica mos o velho mundo." "Transformar a vida" : o grito gra vado por Rimbaud para todo o sempre, pôs em movimento, desde que a história aprendeu a colocar seus pontos de re ferência, massas humanas que a terminologia moderna pre dominante, a das sociedades sem miséria generalizada, irá qualificar como"revolucionárias". :e portanto conveniente precisar o segundo têrmo da análise: o da pobreza, não tanto distinguindo-a sutilmente da miséria, quanto buscando situá-la em dois níveis com relação ao projeto revolucionário (e acessoriamente ao projeto esta belecido) : no nível da pobreza generalizada (caso dos paí ses subdesenvolvidos) e no da pobreza residual (caso das sociedades industrializadas) . Progrediremos desta maneira na senda da reflexão sôbre a gênese e o destino do próprio projeto revolucionário. 1. Caso de pobreza generalizada (ou pobreza de mas Jas) - O projeto estabelecido é aqui, por hipótese, projeto de um grupo (ou conjunto de grupos) minoritário com rela ção à grande massa dos pobres. Os poderosos - designá -los-emos com esta cômoda expressão - excluem os pobres de tôda participação na criação e gestão do projeto e asse guram esta exclusão pelo jôgo de instituições de contrôle da pobreza (obras assistenciais, serviços) cuja função essen cial é manter uma distância conveniente entre a massa dos pobres e os grupos mantenedores do projeto estabelecido. Serão os pobres necessàriamente compelidos por esta exclu são a um projeto revolucionário do qual seriam os criadores e os portadores? Parece duvidosa qualquer resposta global a semelhante indagação. O mal-estar revelado nesse ponto por certas interpreta ções de situações sociais qualificadas como "explosivas" de- 25 riva da excessiva permeabilidade das mesmas a uma concep ção clâssica da revolução que não está longe de rebaixar esta última à categoria de simples manifestação da "vio lência" coletiva (cf. infra, cap. II): de fato, a.s massas mi seráveis de que tratamos aqui, aparecem de longe em longe agitadas por revoltas espontâneas ( e, de resto, estritamente localizadas) . São essas revoltas invariàvelmente esmagadas, segundo a expressão consagrada, por operações de repres são cujo resultado, obtido com relativa facilidade, deveria elucidar os estrategistas a respeito da verdadeira natureza dos movimentos em questão. Uma contraprova da distinção necessária entre revolta e projeto revolucionário pode ser extraida da singular realização de certas "revoluções" di rigidas por pequenos grupos de "revolucionários profissio nais" sem a participação de massas populares ainda dema siadamente miseráveis para alcançar a consciência de um projeto revolucionário. Referimo-nos aqui ao exemplo da Revolução Mexicana do inicio do século XX, há longo tem po congelada em instituições hoje obrigadas a se defende rem contra os movimentos neo-rcvolucionários de massas, que elas outrora auxiliaram a se libertar da alienação de uma miséria demasiadamente radical. As "doenças infan tis" dos movimentos revolucionários nos paises subdesen volvidos, catalogadas de maneira tão complacente pelos comentadores, bem poderiam encontrar uma explicação co mum numa constatação desta espécie. Todavia, a observação atenta das motivações e dos comportamentos dêsses subconjuntos miseráveis, dêsses ex cluídos sociais reduzidos ao último grau da exclusão, é pródiga em ensinamentos para a sociologia das revoluções. Revela, particularmente, a capacidade de que é dotada a ex trema miséria para engendrar mitos (messianismos, micro -religiões dissidentes etc.) cujo florescimento e destino po· dem esclarecer a pré-história de numerosos fenômenos revo lucionários que lhes conservam muito tempo a marca. "Cul tos proféticos de liberação" (1) sustentam, na maioria das sociedades pré-industriais, as lutas pela independência poli- ( 1 ) V. LANTERNARI, Les mouvements religieux des peuples opprimls. 26 t1ca. Produtos de choques entre sistemas culturais assumem, as mais das vêzes, a forma de milenarismos e de messianis mos integrando elementos colhidos nas religiões tradicionais e tomados, inclusive os próprios deuses, aos colonizadores; êstes bem cedo começam a se preocupar com os fermentos de "espírito revolucionário" por êles mesmos desenvolvidos entre os indígenas, sendo entretanto incapazes de avaliar o conteúdo efetivo da mensagem que transmitem: a mensa gem de um mundo possível no qual, como nos cargo-cults melanésios, uma era a um tempo imemorial e eterna de bem -estar e de abundância virá, com a partida dos " brancos", estabelecer a liberdade coletiva. Como se vê, projetos revo lucionários rudimentares, nos quais a parte religiosa é tanto mais invasora quanto mais distante estiver o combate político de seus caminhos próprios; de resto, isto manifesta a religio sidade essencial de todo projeto revolucionário (cf. infra). A sociologia das transformações mentais e sociais des creve a função ambígua dos messianismos nos países coloni zados: forma de resistência popular ao domínio estrangeiro (cf. os trabalhos de G. Balandier) , assume muitas vêzes, já que é perseguida e combatida pelo colonizador, a aparência e a mentalidade de seita religiosa, tornando-se assim porta dora, segundo os ambientes ou as conjunturas, de concen tração em si-mesma e de conservadorismo, tanto quanto de projeto revolucionário: os fenômenos de " revolta cultural" analisados por Roger Bastide nas comunidades negro-afri canas do Brasil moderno, testemunham esta contradição ine rente a tôda revolta de grupos relativamente restritos, com relação à sociedade global. :S:, pois, conveniente evitar uma interpretação apressa da que veria nesses movimentos messia.nicos uma pré-his tória revolucionária correspondendo a outra arqueologia: a da industrialização do próprio desenvolvimento econômico e social. Uma correlação desta ordem parece mais sedu tora que significativa aos olhos do sociólogo que vê prolon garem-se, destacando-se progressivamente das leis de um 27 projeto revolucionário em via de purificação e de continuo despojamento, os temas messiânicos e milenaristas no seio das mais industrializadas sociedades. Cuidadosamente ana lisados em seus respectivos tempos e espaços sociais, não podem deixar de esclarecer o processo de constituição do projeto revolucioná.rio em busca de um mundo nõvo e aberto. jtste julgamento parecerá. excessivamente limitado àqueles que, com Abdulaye Ly (Les masses africaines et la conditkm humaine) e Frantz Fanon (Les damnés de la t6TTe) admitem que a revolução mundial dêste século - a revolução autêntica, a que trará. a redenção de tõda a humanidade - será. a revolta universal dos campesinatos famintos e miseráveis. inflamando com a sua violência sal vadora "as cidades tranqüilas e grandiloqUentes" ( Frantz Fanon) . Esta interpretação saudosista dos movimentos populares dos séculos longinquos na Europa Ocidental jé. constituia seu milenarismo e sua violência em elementos da pré-história das revoluções modernas ( 1 ) . Nunca será. de mais incitar tanto à relativização constante da análise co mo à imperiosa necesidade de ser esta sempre concebida num quadro da referência global. 2 . Ca.ro de pobreza residual - O projeto estabeleci do é aqui muito mais difuso e pluralista; subdivide-se com muita freqüência em subprojetos, com relação aos quais o pobre não fica excluído, porém marginalizado, como de mostraram inúmeros trabalhos sociológicos (A. Vexiliard, J. Labbens, J. Wresinski, A. Mattelart . . . ) . Como vimos, a exclusão se define por uma oposição acrescida de distân cia; a marginalidade, apenas pela distância, oferecendo, por isto mesmo, uma fisionomia ambígua. O pobre marginaliza do parece impermeável às influências da ordem e do projeto estabelecidos precisamente por estar em contato permanente com êles. A distância que os separa, é, a um tempo, relati vamente reduzida e incapaz de avaliar-se a si mesma e esta incapacidade funciona integralmente contra o marginal, visto ser êste, sob outro ponto de vista, minoritário num tipo de ( 1 ) Cf. N. COHN, Les fanatiques de l' Apocalypse. 28 sociedade em que as instituições e os sistemas de contrôle baseiam-se nos mitos conjugados do igualitarismo e da lei da maioria.A marginalidade afeta o marginal de uma es pécie de ilegitimidade implícita, enquanto a exclusão demons tra a ilegitimidade do grupo que exclui. A ambigüidade da marginalidade impregna as relações entre pobreza residual e projeto revolucionário. O conjunto das alienações oriundas da marginalidade - mais sub-reptícías por serem mais difusas que as da exclusão - acarreta a formação de uma "cultura de pobreza" (Oscar Lewis) que constitui os grupos de pobres marginais, no seio da sociedade global, em subconjuntos ao mesmo tempo homogêneos e fechados: suficientemente ho mogêneos para caracterizá-la, de uma sociedade para outra, por motivações e comportamentos comparáveis; suficiente mente fechados para confiná-los numa situação incapaz de fundar uma consciência coletiva de adesão a uma categoria soàal separada das outras por um modo de vida e um sis tema de valores suscetíveis de confronto e de transforma ção. Para elas não existe aspiração coletiva a um mundo melhor, ou pelos menos, a um mundo diferente daquele que circunscreve sua vida cotidiana a uma miséria aparentemen te sem remédio. De resto, o comportamento dos grupos de marginais nas sociedades industriais não é marcado, em face da sociedade circundante e do projeto estabelecido, por ne nhum dêsses fenômenos de violência coletiva tão caracterís ticos do comportamento da pobreza de massas. :Ele é, as sim, finalmente, incapaz de ir desembocar na revolta. A violência da pobreza residual circunscreve-se no interior de si mesma: na ausência de qualquer outra instituição ou sistema de relações interpessoais suficientemente estável, ela desempenha a função de contrôle social indispensável à exis tência do grupo. Nessas condições, diflcilmente se concebe que os po bres possam ascender, numa situação de marginalidade, ao nível de aspiração mínima que criaria as condições psico- 29 lógicas indispensáveis à formação de um projeto revolucio nário: consciência da existência de relações necessárias de complementaridade ou de oposição entre seus grupos e os grupos portadores do projeto estabelecido; consciência de sua própria existência singular na acumulação do cotidiano. Aborda-se, assim, o exame dos caracteres fundamentais do próprio projeto revolucionário: totalidade (e universa lidade) , inserção específica na história da sociedade global considerada. Antes de lá chegarmos, extrairemos do conjun to dessas constatações iniciais as razões de uma distinção útil entre duas acepções possíveis da expressão tão ambígua quão comumente difundida, da "tomada de consciência" graças à qual tantos raciocínios sociológicos encontram uma espécie de alento suplementar, em face do acúmulo excessivo de rea lidade social. Uma correlação estabelecida sem matizes entre miséria e revolução, busca seu fundamento implícito numa concepção pseudodeterminista da "tomada de consciência", que deve ser afastada, segundo parece, Pº! uma observação mais atenta: a massa de uma população não adquire cons ciência de um estado de miséria que ela decidiria um dia, devido a um reflexo coletivo de segundo grau, fazer desem bocar numa revolução. Ela conhece sua miséria, que vive com ela e é uma coisa familiar em sua memória e em sua vida cotidiana. Charles Péguy o recordava: "O miserável não vê o mundo como o vê o sociólogo; o miserável está na i.ua miséria ( . . . ) , a miséria constitui tôda a sua vida ( . . . ) , é a penetração universal da morte na vida, um ressaibo de morte infiltrada em tôda vida . . . (De fean Coste) . "Dies irae, dia de cólera", continua Péguy no mesmo tom. Dies irae : um dia de violência se ergue, nasce um dia a rebelião e cresce a revolução -- onde está nesse dia a "tomada de consciência" ? Podemos julgar que nos en contramos aqui diante de coisa muito diferente : de um afloramento ao cotidiano da sensibilidade coletiva de uma longa história da miséria que, bruscamente, se atualiza, adota um fim diverso de si mesma, rompe as amarras, sai 30 de seu desencanto secular, de sua passividade que os comen tários dos poderosos já haviam transformado em provér bio. Ela se transmuda em ruptura com uma história re pulsiva cuja continuação se torna impossivel depois do dia de cólera em que surgiu em tôda a sua verdade, a da morte insidiosa e demasiadamente familiar, a da ausência de vida. Em janeiro de 1905, após o "Domingo vermelho" que liquidou centenas dêles, os operários de São Petersburgo dirigem ao czar uma súplica na qual se condensa o nasci mento exato do projeto revolucionário : "Mergulhamos na miséria, somos oprimidos, sobrecarregam-nos com um tra balho esmagador, insultam-nos; em nós · não reconhecem homens, tratam-nos como escravos que devem . suportar seu amargo e triste destino e calar-se. E nós o suportamos. Mas nos impelem cada vez mais para o abismo da miséria, da ausência de direito, da ignorâncis.; o despotismo e a mi séria nos esmagam e estamos sufocando. Estamos esgo tados, Sire! Ultrapassamos o limite da paciência. Chega mos ao terrlvel momento em que mais vale a morte que o prolongamento de sofrimentos intoleráveis ( . . . ) . li: pou co o que pedimos. Não desejamos senão aquilo sem o que a vida não é vida mas sim uma galé e uma infinita tor tura . . . " II - Os caracteres fundamentais do projeto revolucionário Para tentar precisá-los, partiremos da dura base da re volução constituída pelo absurdo e pela angústia da vida cotidiana. O projeto revolucionário que, por sua natureza, transcende e modifica tudo que abarca, será a redenção pos sível da "vida inumana do homem" (Marx) , imagem e sinal que lhe emprest;un finalmente outro sentido que não o do revelar uma forma degradada e irremediável da condição humana? Dois exemplos colhidos nas grandes agitações sociais da Idade Média e da Renascença, demonstrarão talvf'Z ainda melhor que as revoluções dos séculos mais próximos o sen tido da questão proposta. As Cruza.das têm a dupla função - segundo sua qualificação do ponto de vista dos podero- 31 sos ou do interior do povo - de livrar o espaço ocidental cristão das turbulências populares que se haviam tornado intoleráveis com a aproximação do ano Mil e de possibilitar a redenção da pobreza pelo estabelecimento dos pobres na Terra Santa (ou, mais exatamente, daquilo que subsistisse, por ocasião da chegada à Terra Santa, das imensas multi dões congregadas pelo a pêlo de pregadores e de visionários) . Ambigüidade trágica do projeto revolucionário, interpretado, logo de saída, pelos poderosos, como a oportunidade para uma sangria ou um exílio coletivo que garantiriam durante algum tempo a ordem social absoluta contra o desespêro e o desencanto, ao passo que a massa viu aí uma nova existên cia, um renascimento coletivo cotidiano. P. Alphandéry e A. Dupront, incomparáveis analistas desta escatologia popular em projetos e em atos, reescre viam há tempos "a história da Cruzada em suas realidades de significado e de espiritualidade coletivas a partir de um inventário das experiências, das imagens, das tradições ins critas no inconsciente coletivo do Ocidente cristão". (La chrétienté et l'idée de croisade. ) Traziam assim à sociolo gia das revoluções uma contribuição modelar pelo rigor e pela riqueza, mostrando os liames de fenômenos aparente mente tão dispares quanto as "emigrações motivadas pela fome, grupos penitentes espontê.neos, construtores de locais de culto, penitência coletiva ritualizada, encontrando o in tenso movimento social do século Xll, as primeiras migrações de uma classe operária e sobretudo o desenvolvimento das comunas". Esta visão total da Cruzada, talvez a mais per feita da historiografia dos grandes movimentos sociais, abre ·se num paralelo natural entre Cruzada e revolução, elabo rado por A. Dupront em posfácio ao estudo : "Que encer rarão em si mesmas essas massas pobres, guardiãs da tradi ção de Cruzada a não ser a pujança da Revolução justicei ra ( . . . ) como uma sociedadedo reino, sem classes, justa, harmoniosa. Ai está a realização comum da Cruzada e da Revolução. Ambas marchando para o advento e para que o reino seja feito . . . " :Ili uma busca parusiaca da mesma espécie que tenta na inquieta Alemanha do século XVI Thomas Münzer, "teó logo da revolução" : assim o qualifica Ernest Bloch em um 32 livro que constitui também uma importante contribuição à filosofia e à sociologia interligadas das revoluções po pulares ( 1 ) • Emest Bloch não cuida de modo algum de descrever os pormenores dos acontecimentos que constituem a "Guerra dos Camponeses", nem sequer busca esquematizar a histó ria e a filosofia religiosa dos anabatistas. Num ritmo ern que se mistura, em singular convergência, a influência da psicanálise freudiana com a teoria lukacsiana da nar ração, Bloch provoca o encontro do padre "revoltado ern Cristo", Thomas Münzer, com a revolução camponesa mi lenarista : "Sucede, escreve Münzer em 1524, num impul so de visionário da revolução, que um homem se levanta à hora do jantar e caminha ainda porque uma igreja se er gue num lugar qualquer, no Oriente", recuperando o ve lho sonho messiânico que havia impelido as multidões do século XI para as estradas que levam à Terra Santa, num projeto revolucionário total, o da recriação em tOmo do túmulo de Cristo, de uma sociedade dos pobres, igualitária e livre, da qual seriam excluidos os ricos e os poderosos. A procura do "Reino milenar, ao mesmo tempo harém e falanstério", é a revolução nua; Bloch torna senslvel a imagem da revolução no espirito dos camponeses münze rianos quando escreve : "Era preciso não somente que as coisas se decidissem em seu favor, mas ainda que elas tor nassem a voltar ao ponto exato em que haviam estado outrora, quando êles ainda eram homens livres, no seio de suas livres comunidades . . . Exatamente àquele ponto - mesmo que os camponeses outrora já sofressem (era, po rém, o sofrimento diferente ) : a revolução é êsse retomo do tempo ao ponto em que êste começou a escapar do go vêmo dos homens livres e iguais. quando se instalou a noite. Retomo do dia, e. coisa singular, dêsse dia primevo quando, prossegue Bloch, "em seu frescor primitivo, os campos estavam abertos a todos como um prado comunal" ; a revolução camponesa para Thomas Münzer é a violência em ação do povo que se recorda e simultâneamente se re cobra a si mesmo em sua verdade histórica. Considerando bem, gnose tanto quanto anamnese : a revolução münze- ( 1 ) Thomas Münzer, théologien de la révolution. Miguel de Unamuno retomará o mesmo tema em A Vida de Dom Quixote e de Sancho Pança. 33 riana "não foi de modo algum um fato histórico, porém, mais propriamente, uma idéia mantida viva, semi-aba fada sob um oceano de ódio e de injustiça, centelha sempre presente, transmitida através da nobre cadeia de uma tra dição secreta, alçando-se no donúnio interior da utopia, na nústica do reino que formam um 11nico tema universal atribuído à história humana". A Revolutio temporis une -se à restitutio omnium, o retômo escatológico de tôdas as coisas à sua perfeição primitiva, que lhes realiza o des tino último. A revolução camponesa dirigida - contra Lutero - por Thomas MUnzer, não passa de uma das encarnações da busca imanente do reino. Estudando as revoltas rurais dos últimos cento e cinqüenta anos na Europa meridional, E. Hobsbawn assim caracteriza seu projeto comum : "não um mundo nôvo e perfeito, porém um mundo ancestral, em cujo seio o homem é tratado com FqUidade". Alfred Metraux, ao cabo de uma pesquisa sôbre os indios perua nos, sabia não estar profetizando levianamente ao escrever : "Quando amanhã as massas indigenas se sublevarem, para exigir que justiça lhes seja feita e que lhes seja restituida a terra que lhes foi arrebatada, assistiremos a um terceiro renascimento do inca ( . . . ) . Será restaurado o império dos incas e a felicidade reinará de nôvo sôbre o velho Peru." O jornalista K. S. Karol, descrevendo a China moderna, identifica nas obras da revolução maoista "a espantosa encarnação de um sonho igualitário de camponeses pobres". Por mais contundente que fôsse em sua critica da revolução institucionalizada, Merleau-Ponty apontava no próprio pro jeto soviético - e até mesmo em suas formas stalinianas - "a fraternidade revolucionária, a recuperação do pas sado ( 1 ) , a unidade da história". Nicolas Berdiaev, adver sário ferrenho da Revolução bolchevista, reconhecia que ela havia "liberado as fôrças populares, devolvendo-as à reali dade histórica : nisto reside todo o seu significado". Até Chateaubriand, o bardo da Contra-Revolução es clarecida, concita-nos a ver na tomada da Bastilha, "não o ato violento da emancipação de um povo, mas a própria emancipação, resultado dêste ato". E denuncia os comen- ( 1) Não confundir com o tema da "eterna Rússia" e do apêlo ao patnot1smo organizado por Stalin durante a Segunda Guerra Mundial. 34 tários apressados até de revolucionários, vitimas da pró pria realização cotidiana de seus atos : "Admirou-se o que se devia condenar, o acidente, e não se foi procurar no fu turo os destinos realizados de um povo, a transformação dos costumes, das idéias, dos podêres poUticos, uma reno vação da espécie humana . . . " (Memórias de Além-Tú mulo, V, 8 ) . A revolução popular é também a maneira de u m povo recuperar o dominio de sua história, a partir do ponto em que as predominâncias de classe o privaram do poder so berano de constitui-la livremente. dia após dia, deixando -lhe tão-sõmente o direito de a ela submeter-se diàriamen te, numa reiteração que em vez de liberdade se tornou servidão. Através destas diversas análises, a começar pelas de Ernest Bloch, de P. Alphandéry e de A. Dupront, percebem -se os caracteres originais do projeto revolucionário que po demos ordenar em tôrno de duas noções principais : totali dade e historicidade. A princípio, o projeto revolucionário constitui totalização e universalidade. Envolve todo o ho mem e, indo além da ordem social que pretende renovar, ambiciona comunicar sua visão do mundo nôvo a tôda a hu manidade. Relaciona-se êste estatuto particular com seu ou tro caráter : é, a um tempo, profundamente incrustado na his tória e situado fora dela: tem seu próprio passado e seu por vir singular. Totalidade e historicidade específica estão intimamente ligadas ao projeto revolucionário e permitem assim atribuir à revolução uma fisionomia individual na espêssa massa dos processos coletivos de transformações sociais e mentais, al guns dos quais coexistem no projeto revolucionário com êste ou aquêle aspecto das mesmas. Tentaremos, portanto, efe tuar uma demonstração conjunta e interligada dos paralelos e das diferenças; será lícito situá-la, de início, por referên cia ao sabor único que tem a revolução popular para o pró prio revolucionário: êste torna seu projeto individual e o projeto coletivo, no qual se vê ao mesmo tempo abolido e 35 exaltado, irredutíveis às categorias empobrecedoras da contra -revolução que destrói, assim como às da sociologia que trun ca ou mutila. O revolucionário conhece sua revolução, como o miserável conhece sua miséria (1) . A análise da totalidade do projeto revolucionário será colhida em filósofos - Hegel, Marx, Lukacs - por um pro cesso cuja razão será conveniente explicar sucintamente: a sociologia das revoluções não deve deixar de privar-se do concurso da filosofia a fim de precisar suas categorias fun damentais; será somente sob esta condição que ela poderá conservar-se numa inteligibilidade que a acumulação de refe rências fatuais não basta, nem de longe, para constituir. Co mo é natural, a análise da historicidade específica, por sua vez, partirá da intuição profunda dos próprios historiadores. 1 - Projeto revolucionário e totalidade "Transformar a vida" ARTHUR RIMBAUD O apêlo à cidade futura, a fé ativa em um mundo me lhor, circunscreve o projeto revolucionário,afastando-o, ao ( 1 ) Na verdade, bastaria continuar citando Péguy. Totali dade: "As revoluções só assumem alguma proporção, só começam a obter êxito quando pretendem derrubar, transformar todo um sistema social, moral e mental . . . uma revolução nada represen tará a não ser que signifique a introdução de um nôvo plano; a não ser que implique uma nova maneira de encarar as coisas, urna nova visão, tôda uma vida nova . . . uma revolução só é revolução quando é integral, total, global, absoluta . . . " Historicidade : "Uma revolução representa o apêlo de urna tradição menos per feita . . • um ultrapassar em profundidade, uma pesquisa em fon tes mais profundas; um recurso, no sentido literal da palavra" ( Cahiers de la Quinzaine. Advertência no Cahier XI da 5.9 série) . 36 mesmo tempo, de uma indeterminação desnorteante para o intérprete que vê alinharem-se na mesma categoria o sonho pequeno-burguês da Frente Popular francesa, o combate dos guerrilheiros nos maq11is do Vietnã ou dos países andinos, a industralização em escala continental - tal como a da China de Mao Tsé-tung - e a ação rica e diversa dos "pro testadores" ocidentais cansados das sociedades de dinheiro. E, portanto, indispensável um critério de classificação que estabeleça a separação entre as aspirações mais ou menos vagas de uma coleção de indivíduos ou de pequenos grupos e a lenta ou brusca concretização de um projeto coletivo nu ma revolução em ação. Este critério talvez possa ser encon trado na noção de totalidade-universalidade do projeto revo lucionário. Este diz respeito a todo o homem e a tudo do homem no conjunto social. Afirma, logo de saída, sua vocação para o universal, como já acontecia com Rousseau: "Aquêle que ousa empreender a tarefa de instituir um povo, enuncia o Contrato Social, deve se sentir em condições de mudar, por assim dizer, a natureza humana, de transformar cada indi víduo que, por si mesmo, é um todo perfeito e solitário, em parte de um todo mais amplo, do qual êste indivíduo rece ba, de certa forma, a vida e o ser." Marx afirmará sua con vicção de que a revolução há de produzir por si mesma "uma modificação nas condições e nas relações humanas e uma transformação da personalidade", e Malraux irá assim carac terizar Saint-Just, o revolucionário por excelência: "Em seu tempo, que representou uma das maiores épocas da esperan ça, ninguém esperou com mais paixão transformar o homem, compelindo-o a uma epopéia transfiguradora". Visto que seu predicado e seu objeto confundidos são o homem, o pro jeto revolucionário só pode situar a transformação que traz consigo no nível da totalidade e da universalidade: só se conforma com a idéia de um homem amesquinhado por um excesso de alienações (especificadas no projeto marxista) a fim de liberá-lo e transfigurá-lo em homem total, em pie- 37 na posse de si mesmo e do mundo (1) . Podemos assim ca carterizar os líderes revolucionários mais autênticos como sen do aquêles dentre os condutores de revoltas que souberam conciliar em seu próprio íntimo a dupla exigência de repos sessão do mundo e de repossessão de si mesmos: Münzer, mas também Pedro o Eremita; Saint-Just, mas também Babeuf; Lênine e Mao Tsé-tung, mas também Karl Liebknecht e Rosa Luxemburgo, assim como hoje em dia, sem dúvida, os obscuros chefes guerrilheiros na África e na América Latina. E André Malraux, conseguindo realizar essa dupla exigência através dos povos de seus livros, como Marx, antes dêle. A totalidade do projeto revolucionário pertence à ordem da imagem e não à do sonho; à da realidade e não à da uto pia. l! habitada, no sentido renovado do têrmo, pelo sen timento do trágico (]. M. Domenach) que distingue duas categorias de revolucionários : os revoltados contra a ordem do mundo, que querem mudar essa ordem, e os revoltados contra o mundo, que, tendo perdido a esperança de trans formá-lo verdadeir3..1J?.ente, querem pelo menos transformar a vida cotidiana do maior número possível de homens e permanecem indiferentes à sua própria sorte: sabem-se vota dos à morte na solidão absoluta e consciente, essa morte pe culiar ao revolucionário e que obseda e apavora Malraux. Mais ainda que o marxismo, que reconhece, no entanto, seu próprio desencanto, o anarquismo constitui o refúgio privi legiado dêste niilismo revolucionário que é a revolução úl tima, cansada de lutar contra a história absurda e somente empenhada em reconquistar essa história cada dia que passa. "Não espero nenhum auxílio para uma revolução libertária ( 1 ) "Criar um tipo de "homem nôvo" implica uma ação total, não descurando nenhum dos aspectos da vida; daí decorre a multiplicidade de 6rgãos de formação, de enquadramento, de participação, visando apressar a transformação dos indivíduos", escreve Albert Meister a propósito do projeto iugoslavo (So eialisme et autogestion) . 38 por parte de govêrno algum do mundo", declara em 193 6, no auge das discussões sôbre a internacionalização da guerra da Espanha, o dirigente anarquista Durruti. :e peculiar à atitude dos maiores líderes revolucionários um certo tipo de fatalismo, um fatalismo particular, pois nunca é feito de de sespêro ou de desânimo, mas apenas de lucidez entristecida e, aliás, as mais das vêzes, muito discreta: a conversão dos espíritos e dos corações, as transformações mentais e sociais não obedecem a ordens como se se tratasse de exercícios mi litares, e a repressão e a morte estão mais próximas de alcan ce que a criação do homem nôvo. "Cabe a vós decidir se o povo francês deverá ser comerciante ou conquistador", lança Saint-Just à Convenção. "Paris fêz um pacto com a morte", escreve o fourn:il officiel de la C.ommune de 1871, alguns dias antes da Semana sangrenta. "Quaisquer que sejam as circunstâncias, escreve Mao Tsé-tung em 1945, "e por mais difíceis que sejam, o exército popular lutará até o último homem." Antônio Conselheiro, que funda em 1896 na caatinga brasileira uma república social milenarista, defen de-a até a última gôta de sangue: as tropas da reconquista social triunfam, no derradeiro ataque, apenas sôbre mortos que não abandonaram sua revolução e lhe prolonga até hoje a presença obsessiva nas lendas do Sertão. A totalidade do projeto revolucionário possui também sua armadura propriamente filosófica, reconhecivel com di versos conteúdos, em Marx, Hegel e Lukacs. Hegel jâ assinalava que a revolução "trespassa" os individuos e "soergue da esfera que lhe era atribuida" na ordem antiga cada consciência singular : envolvida doravan te pelo projeto revolucionãrlo, esta jã não pode "atualizar -se a não ser num trabalho que represente o trabalho to tal ( . . . ) ; seu objetivo é o objetivo universal ; sua lingua gem, a lei universal" (Fenomenologia do Espírito ) . Hegel estabelece sôbre esta base o caráter totalitário e destruidor do Terror revolucionário, encarnação trágica da liberdade absoluta condenada a ser apenas "a fúria da destruição" e culminando no reinado da "morte mais fria e mais inslgni- 39 ficante" - "tão vazia de sentido, acrescenta êle, quanto a ação de cortar uma cabeça de repolho ou de engolir um pouco de água" : explicar-se-á mais adiante ( infra, cap. II) em que ponto esta opinião pode ser refutada. Existe no término do projeto revolucionário totalizante, uma função especlfica do Terror totalitário. Existe da mesma forma, no cotidiano revolucionário, um traumatismo de Terror cuja marca está presente na reflexão de Hegel : sua análise do Noventa-e-Três o leva a assimilar totalização revolucioná ria e supressão da consciência do eu. Marx, a partir da famosa fórmula dll.S Teses s6bre Feuerbach - "os filósofos não fizeram mais que interpre tar o mundo de diferentes maneiras; trata-se agora de transformá-lo" - vai conservar a concepção hegeliana da totalidade do projeto revolucionário; ligando-a porém à no ção de realidade, êle lhe transformará radicalmente o senti do. Ao invés deimobilizar o projeto revolucionário num mecanismo abstrato a que o reduzem tantos seguidores de um "materialismo dialético" controvertido, Marx o situa no âmago do mundo real, no cotidiano mais imediato e ao mesmo tempo, numa totalidade perpêtuamente atuante. l!'l êste o fundo da distinção de base que êle opera entre a revolução "politica" cujo ponto de vista é o do Estado, de uma entidade abstrata que só existe graças à sua separação da vida real", em que se limita a substituir uma classe do minante por outra, sem atingir em ponto algum a natureza social do homem - e a revolução "social" que "possui um caráter de universalidade, visto constituir um protesto do homem contra sua vida inumana, e porque parte do ponto de vista do individuo pa..-rticular real e também porque a cidade social da qual o individuo recusa doravante perma necer separado representa a verdadeira natureza social do homem, a natureza humana" ( 1 ) . O projeto revolucioná rio, como o próprio homem revolucionário, está no mundo que existe de chôfre para êle, em sua totalidade, ou como diz Marx, em sua universalidade. G. Lukacs retornará esta tese marxista fundamental em História e Ocmsciéncia de Classe, e vai mostrar, de acôrdo com Marx e contrariando Hegel ( na medida em que a to talização hegeliana constitui, afinal de contas, o estatuto ( 1 ) Artigo do Vorwaerts ( 1844 ) , citado por M. RUBEL na coletânea de MARX, Pour une éthique socialiste. 40 de uma filosofia totalitária da história) , que o projeto re· volucionário, por êle denominado "objetivo final", "não é um estado que espera o proletariado ao término do movi mento" : "Não é um estado que se possa, por conseguinte, esquecer tranqüilamente nas lutas cotidianas e invocar quan do muito nos sermões donunicais como um momento de eleva ção oposta às preocupações diárias : não é um "dever", umo. "idéia" que desempenharia um papel regulador com rela ção ao processo "real". O objetivo final é, antes, esta re laçllo com a totalidade (com a totalidade da sociedade con siderada como processo) pela. qual cada momento da luta adquire um sentido revolucionário; uma relação inerente a cada momento precisamente em seu aspecto cotidiano, seu aspecto ma.is simples e mais prosaico ( . . . ) ; assim, êsse momento da luta coitidlana se eleva do nivel da facticldade. da simples existência, para o da realidade" ( 1) . Ao caracte rizar o laço profundo existente entre o cotidiano e a tota lidade do projeto revolucionário, Lukacs estabelece sua rea lidade absoluta, separa-o do mito e da utopia ( cf. infra) . Instala-o na existência concreta da revolução com estatuto plenário, coloca-o face a face com a revolução atuante, sem escapatória, nem recurso. Ernesto Guevara - o Ohe - não separa a "consciência da necessidade da tra.nsfo1·ma ção revolucionária" da. "certeza de sua possibilidade". A totalidade do projeto revolucionário o institui como realidade necessária e ao mesmo tempo traz ainda mais im plicações : aposta vital sôbre o homem nos confins de seu de- ( 1 ) História e Consci;ncia de Classe. Uma página da Te,oria do Romance (obra de Lukacs, anterior à precedente) ilus· tra ainda melhor talvez esta noção de totalidade-realidade ab soluta no sentido em que ela a vincula à historicidade particular do projeto revolucionário : "Não há possibilidade de haver to talidade a não ser onde tudo já é homogêneo antes de ser in vestido pelas formas, onde as formas não constituem opressões mas a simples tomada de consciência, a eclosão de tudo aquilo que, no âmago, do que deve receber forma, permanecia latente com.o uma obscura aspiração." A concepção fenomenológica da "sintese universal do tempo transcendental" também não separa em HUSSERL totalidade e consciência imanente da duração (Segunda Meditação Cartesiana) . 41 vir como na banalidade mais imediata de seu cotidiano, o proje to revolucionário implica que a revolução se basta a si mesma. Ela parece fazê-lo pelo menos nos símbolos de sua lingua gem; no auge do Terror de Noventa e Três, legitimava-se o envio de suspeitos à guilhotina com a só expressão, cúmulo do totalitarismo até em seu pudor, de "tratamento revolucio nário". Ela o faz na medida, crescente com o seu curso, em que distingue o destino prometido aos puros, do destino re servado aos maus, segundo a lei de um maniqueísmo elemen tar que põe suas comodidades a serviço dos procedimentos do poder revolucionário, condenado a revolucionar-se a si mesmo incessantemente a fim de não trair sua própria rea lização. O pro1eto revoluc10nário é assim, em sua totalida de, expressamente totalitário; não nos equivoquemos, pois é conveniente despojar êste vocábulo da acepção trivial que lhe atribui a contra-revolução contemporânea, baseando-se em pa ralelos sumários entre stalinismo e hitlerismo. O projeto re volucionário exclui, por hipótese, a destruição do homem, visto ser êle a sua regenerescência: e não o destrói, de fato, a despeito dos horríveis empreendimentos de alguns de seus dirigentes. Muito acima de qualquer propaganda, é o que demonstra de maneira mais que suficiente a crônica atuaJ da U . R . S . S . 2 - Projeto revolucionário e hiitoricidaáe "Os séculos impelem, diante de si, desesperadas, A3 revoluções, monstruosas marés, Oceanos formados com as lágrimas do gênero humano" VrcTOll Huoo Escrito em 1946 A revolução surge simultâneamente como ruptura e des vio da história. Hugo atribui a Enjolras, o homem que "tra zia em si a plenitude da revolução", uma frase que resume 42 o outro caráter essencial do projeto revolucionário: "O século XIX é grandioso, mas o século XX será feliz. Nada mais haverá então que se assemelhe à velha História ( . . . ) , não se terá mais que recear a fome, a exploração, a prosti tuição por desgraça, a miséria por falta de trabalho, e o ca· dafalso, e a espada, e as batalhas, e tôdas as rapinagens do acaso na floresta dos acontecimentos. Poder-se-ia quase di zer: não haverá mais acontecimentos. Seremos felizes. O gênero humano cumprirá sua lei, como o globo terrestre cumpre a dêle . . . (Os Miseráveis, V. l, v. ) . A s revoluções não representam nem uma sucessão de datas, nem uma acumulação de atos : são - ou procuram ser - um "nôvo cartear" da história, um empreendimento original em que nada mais tem sentido porque tudo passou a ter um nôvo sentido que repudia e desvaloriza os compor· tamentos e as atitudes antigas. "Transformar a vida e o mundo" implica a criação coletiva cotidiana de um nôvo "con junto histórico situado na "duração" que liga a história de outrora à história de hoje - o cotidiano - e ao mundo de amanhã: o projeto revolucionário é imanente no mundo e, ao mesmo tempo, ingênua tomada de posse do cotidiano da vida. A cotidianidade da revolução atuante e a imanência do projeto revolucionário não se opõem: são as duas faces de uma mesma realidade. A "República social", esta ver· são francesa do projeto revolucionário, oferece um belo exemplo . desta ambivalência: assim que é percebida em sua realização possível (para o sociólogo, o problema não está em dissertar sôbre as condições de sua realização efe tiva) , ela se imobiliza na eternidade de seu projeto. :e o fim da história, doravante despida de sentido por haver realizado êsse sentido. :e a história que, na acepção própria da expressão popular, já "cumpriu o seu tempo" . Nessas condições, só o que lhe resta é durar eternamente em suas promessas e em seus ritos. Babeuf denuncia os "governan· tes" que "só fazem revoluções para continuar governan· do para sempre". "O ato insurgente" por êle codifi- 43 cado fará "enfim uma revolução com o objetivo de asse gurar para sempre a felicidade do povo pela verdadeira de mocracia" . O projeto revolucionário é ilimitado, no senti do em que não pode estabelecer para si mesmo nenhum pra zo cronológico : sua ausência de historicidade (na acepção clássica do vocábulo) é um dos aspectos de
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