Buscar

André Decouflé - Sociologia das revoluções

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes
Você viu 3, do total de 139 páginas

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes
Você viu 6, do total de 139 páginas

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes
Você viu 9, do total de 139 páginas

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Prévia do material em texto

. SOCIOLOGIA DAS REVOLUÇÕES 
DO MESMO AUTOR 
"La spontanéité révolutionnaire dans une révolution popu­
laire. L'exemple de la Commune de Paris", Cahiers de 
Z'lnstitut de Bcienoe écOt110mique appliquée, S. 9, 1965, 
pp. 173-207. 
"L'a:ristocratie française devant l'opinion publique à la 
veille de Ia Révolution (1787-1789) ", Etudes d'Histoire 
économique et sociale du XVIJli! siecle, Presses Univer­
sitaires de France, 1966. 
La Commune de Paris (1811), Estudo sôbre a natu­
reza do poder revolucionário numa revolução popu­
lar. Cujas, 1968. 
COLEÇÃO �ABER ATUA� 
SOCIOlOCIA DAS RlYOlU�O[S 
por 
André DECOUFL:e 
Docteur en Droit 
Docteur es Bciences Politiques 
Tradução de 
HELOYSA DE LIMA DANTAS 
DIFUSÃO EUROPEI A DO L I VRO 
Rua Bento Freitas, 362, 6.• - Rua Marquês de Itu, 79 
SÃO PAULO 
Titulo do original: 
Socio/ogie des révolutiom 
(Coll. "Que sais-je?", n.• 1298 ) 
19 7 0 
Copyright by 
- Presses Universitaires de Fra'llCe, Paris 
Direitos exclusivos para a lingua portuguêsa: 
Difusdo Européia do Livro, São Paulo 
IN D I C E 
INTRODUÇÃO 
PÃGS. 
7 
CAPITULO I - O Projeto Revolucionário . . . . . . . . . . 21 
I - Revolução e sociedade global, 21; II - Os 
caracteres fundamentais do projeto revolucio­
nário, 3 1 ; III - Sociologia concreta do projeto. 
revolucionário, 62. 
CAPITULO II - A .Revolução Atuante . . . . . . . . . . . . . 66 
I - Espontaneidade e voluntarismo na revolução 
atuante, 67; II - A estrutura do cotidiano da 
revolução, 84; III - O govêrno revolucionário, 101 ; 
IV - O perlodo pós-revolucionário e os fenôme-
nos de defervescência revolucionária, 109. 
CAPITULO m - Sociologia da Contra-revolução . . . 113 
CONCLUSÃO . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 127 
BIBLIOGRAFIA SUMÃRIA . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 129 
5 
INTRO DUÇÃO 
"E ter-se-ia a revolução escondido por 
detrás dos professôres, atrás de suas frases pe­
dantes e obscuras em seus períodos passados e 
fastidiosos?" 
FRIEDRICB ENGELS 
Ludwig Feuerbach e o Fim da Filosofia 
Clássica Alemã. 
O s sociólogos concordam de maneira aparentemente 
unânime a respeito da observação que afirma ser a sociologia 
filha da Revolução Francesa: qual o motivo de ser tão negli­
genciada a própria sociologia das revoluções? Chateaubriand 
publica em Londres, em 1797, um Euai hiJtorique, poiitique 
et morai sur les révoiutirms considérées dans leurs rapports 
avec ia Révolution Française, baseado num método compara­
tivo que a sociologia contemporânea não renegaria. Com 
olhar singularmente moderno, êle aí vê a revolução corno 
uma ruptura da história, " linha divisória dos tempos - e, 
simultâneamente, dos pensamentos, costumes, curiosidades, 
leis e das próprias línguas - estabelecendo um antes e um 
depois absolutamente antagônicos e aparentemente irreconci­
liáveis" (1). Atribui à revolução seu espaço físico originá­
rio: o espaço de um círculo cuja circunferência é traçada ao 
infinito por um arquiteto misterioso - um deus ou um povo. 
( 1) J.-P. RICHARD, Paysage de Chateaubriand. 
7 
Descreve-a como que torturada pela "vaga sêde de alguma 
coisa" e comunicando tal sêde à história. A visão de Cha­
teaubriand permanecerá muito tempo sepulta nos subterrâneos 
das imagens por tal forma desarraigadas que não podem fi. 
gurar entre os instrumentos de investigação científica. Po­
de-se observar o quanto a historiografia das revoluções per· 
manece, ainda hoje, obstinadamente prêsa a discussões tão 
vãs quanto as que dizem respeito por exemplo à determina· 
ção das "causas" das revoluções (1) e de seus respectivos li­
mites cronológicos: terá a grande Revolução Francesa come­
çado somente em 1789, e não se prolongarão os seus efeitos 
até os nossos dias? Semelhantes querelas, quase tão artifi· 
ciais quanto as que continuam a dividir os " dantonistas" e 
os " robespierristas", exigem em contraposição um esfôrço de 
análise sociológica, no sentido mais estrito dêste ambíguo 
qualificativo. Parece, logo de saída, permitir uma conclusão 
pouco contestável: a maioria dos numerosos autores cuja am­
bição foi o estudo sistemático e comparativo das revoluções 
com o objetivo de reduzi-las a seus traços essenciais, pelos 
quais elas podem ser efetivamente comparadas, fêz da " so· 
ciologia das revoluções" uma cômoda bandeira sob a qual 
circulam mercadorias de proveniência, pêso e valor extrema· 
mente diversos. Recebem, as mais das vêzes, etiquêtas ideo­
lógicas evidentes à observação mais desprevenida, manifes­
tando desta maneira a permanência da carga efetiva da pró· 
( 1 ) São muitas vêzes suspeitas as "causas" invocadas pelos 
historiadores: a Revolução de 1789 foi feita não contra os pri­
vilégios mas em função de alterações ocorridas na repartição das 
fortunas entre aristocratas e burgueses no decorrer do século XVIII; 
não visando obter maiores liberdades individuais, sofrivelmente as· 
seguradas pela realeza, mas uma igualdade efetiva dos direitos po­
líticos entre as camadas sociais antigas e as novas, compreendida 
no sentido de uma igual repartição das maneiras de participar do 
poder, numa reação contra um sistema de govêrno que não oprime 
de modo algum o indivíduo, mas que o constrange continuamente a 
respeitar seu estatuto ancestral, sem que êste tenha ocasião de adap­
tar-se às mudanças econômicas e culturais. 
8 
pria palavra "revolução" em muitos espíritos. Não é fácil 
conseguir-se uma visão clara neste terreno, e ainda menos 
fácil tentar uma explicação sem nos limitarmos a colocar la­
do a lado revolucionários e contra-revolucionários de tôdas 
as categorias. 
O autor de um dos melhores e mais recentes trabalhos 
sObre os fenômenos revolucionários da Europa em via de 
industrialização, escreve que "êles têm como particularida­
de o fato de que as pessoas que não compreendem o inte­
rêsse que os mesmos podem apresentar, são incapazes de 
dizer algo de interessante a respeito, ao passo que as que o 
compreendem são incapazes de falar sôbre êles de maneira 
inteligivel para os demais" ( 1 ) . 
Ao nível de seu próprio discurso, com efeito, a socio­
logia das revoluções corre o risco, segundo seja escrita ou 
lida por êste ou por aquêle, de tornar-se elítica ou alusiva 
ou, o que não é menos grave, de se limitar a uma categori­
zação trivial. Pode-se imaginar, por exemplo, não ser indis­
pensável ao desenvolvimento do conhecimento sôbre as re­
voluções catalogar os líderes revolucionários - intelectuais, 
trabalhadores manuais, urbanos, camponeses, civis, milita­
res (2) - ou tentar precisar a noção tão vaga quão comu­
mente divulgada de "fôrças revolucionárias " extraindo sua 
existência latente daquela, que não o seria menos, de um 
( 1 ) Eric J. HOBSBA WN, Les primitif s de la ré volte dans 
l'Europe moderne. 
( 2 ) De espécie muito diferente é o esfôrço de Engels ao 
procurar classificar as heresias camponesas da Europa Central du­
rante a Idade Média, qualificadas de maneira muito convenien­
te, como "patriarcais" (a montanhesa: Vaudois ). "urbanas" (al­
bigenses. wyclefitas, hussitas) , "camponesas-plebéias" ( taboritas, 
münzerianas) . Cf. À Guerra dos Camponeses na Alemanha. En­
gels aí reconstitui os espaços humanos dos movimentos sociais por 
um processo do qual está excluída tôda normatividade fértil em 
"receitas" de revoluções. 
9 
fogo de ação coletiva efervescente" (G. Gurvitch) no seio 
da sociedade global. Essas " fôrças " seriam ora a classe ope­
rária, ora o campesinato, ora a camada de artífices e peque­
nos comerciantes, ora o conjunto da burguesia (como para 
Marx, em primeiro lugar); elas se " mobilizaram" atenden­
do ao apêlo de líderes e " sob a pressão" de acontecimen­
tos. . . revolucionários, nos quais sua " espontaneidade" nati­
va se manifestaria em tôda a sua pujança. :e êsse o esque­
ma típico do nominalismo canhestro de tantos ensaios socio­
lógicos. A sociologia das revoluções coligiu o seu bestialó­
gico antes mesmo de codificar-se: aí ficam mofando de cam­
bulhada,a " mentalidade revolucionária" nascida, como se sa­
be, de uma " tomada de consciência"; a " situação revolucio­
nária", expressão reveladora em que o qualificativo dispen­
sa o esfôrço de qualificação; a " fé revolucionária" que só 
dispõe de um tempo, coisa que tanto pode ser aplaudida 
como deplorada etc. Merleau-Ponty ridicularizava não há 
muito tempo a "honra revolucionária" mostrando que ela 
não passa de uma " variedade da dignidade burguesa" (Hu ­
mani.rmo e Terror) e suplicava que não se reduzissem a ex­
pressão tão medíocre o pensamento e a ação de heróis da 
revolução como são, por exemplo, em Malraux, os persona­
gens centrais da Condifão Humana: Kyo, May, Tchen e 
mesmo Gisors. O campo da investigação da sociologia das 
revoluções é afetado pela tragédia, a tragédia da esperança, 
do combate e da morte dos homens que não são de modo 
algum as categorias atravé s das quais os sociólogos se habi­
tuaram a situar a maioria de suas análises. Se, como o re­
cordava Fidel Castro em tôdas as ocasiões, " o dever do re­
volucionário é fazer revolução", o do sociólogo da revolução 
é fugir ao perigo normativo recusando simultâneamente: 
a) Uma resposta não menos banal a esta questão que 
lhe será multo provàvelmente proposta com sofreguidão: 
em que condições poderá uma revolução eclodir ? (Uma 
resposta não menos clássica a esta pergunta consiste em 
discorrer sõbre as razões pelas quais a revolução soviética 
10 
triunfou num pais "atrasado", "contràriamente" ao esquema 
de Marx. Um inquérito menos sôfrego de respostas pré­
-fabricadas, mostra que, por um lado, a Rússsia de 1917 
constituia um pais muito menos "atrasado" do que convi­
nha sustentar diante dos compradores de "fundos russos", 
e, por outro lado, ao invés de ter triunfado como que por 
obra de magia, a Revolução soviética teve de implantar-se 
progressivamente no imenso pais, de uma maneira renhida, 
e esta implantação durou o espaço de um.a geração.) Co­
mo se pode governar "revolucionàriamente" para e pelo 
povo? (0 caráter puramente subjetivo dêsses problemas 
se revela até na dificuldade de sua formulação: que signi­
fica "eclodir" ? "Para e pelo povo"? E ainda mais: "re­
volucionàriamente" ? Contudo, seria dificil exprimi-los de 
outra maneira.) Trata-se, de resto, de questões largamen­
te tratadas pelos ideólogos e teóricos revolucionários e a so­
ciologia das revoluções só poderia assim abordá-las pelo 
ângulo de uma sociologia das próprias doutrinas revolucio­
nárias, que contribuiria, por exemplo, para melhor situar o 
blanquismo, os anarquismos, as sociais-democracias, e mesmo 
o marxismo ortodoxo no espaço social do Ocidente a. ca­
minho da industrialização nos séculos XIX e XX, e possibi­
litaria sem dúvida a compreensão do sentido e do alcance 
das deformações que essas mesmas ideologias sofrem atual­
mente em outros espaços sociais como os dos paises em 
via. de recuperarem a própria soberania. 
b) Escolher aquilo que constituiria seus materiais de 
observação especifica no seio da maneira revolucionária. 
global, do mundo total da revolução constituldo de homens, 
de ações e de pensamentos humanos, de imagens, ideologias 
e interpretações. . . A sociologia das revoluções deve, por­
tanto, ter como igual fundamento a recusa da confusão com 
as doutrinas revolucionárias e a preocupação de efetuar 
uma análise global de comêço ao fim de seu discurso, de 
maneira a um tempo tão rigorosa e indüerenciada. quanto 
possivel. As revoluções pertencem ao número dêsses "fe­
nômenos sociais totais" a respeito dos quais Marcel Mauss 
escrevia que nêles se pode, "considerando o conjunto, per­
ceber o essencial, o movimento do todo, o aspecto vivo, o 
instante fugidio ( ... ) em que os homens adquirem cons­
ciência de si mesmos e de sua situação frente aos demais" 
(Ess� sur le don). 
1 1 
Em tais condições, não basta à sociologia das revolu­
ções distinguir os fenômenos revolucionários dos outros mo­
vimentos sociais e tentar em seguida conferir-lhes uma inte­
ligibilidade própria, comparando-os uns com os outros a fim 
de extrair esquemas de explicação susceptíveis de aumentar o 
conhecimento do domínio imenso das mudanças mentais e 
soaa1s. :f:-lhe ainda necessário, ao invés de buscar descre­
ver o modêlo de uma revolução-tipo que não deixaria de ser 
a revolução ideal sob pretexto de que ela teria passado pela 
"mesa do teórico" (Merleau-Ponty) , atribuir às revoluções 
uma razão, uma lei no sentido que Montesquieu emprestava 
à palavra, uma significação comunicável. Se a sociologia das 
revoluções pode ser - e haverá acôrdo a êste respeito desde 
êste estágio da análise - o arquétipo da sociologia das trans­
formações mentais e sociais, e se o sociólogo é, por seu tur­
no, como escreve Jean Duvignaud, "o intelectual privilegia­
do cujo terreno de experimentação se mede pelo seu próprio 
grau de participação na crise que atravessa uma sociedade" 
(lntroduction à la socio/ogie), o problema do estatuto prõ­
priamente filosófico da sociologia das revoluções não pode 
ser afastado, nem tratado isoladamente daquele da figura 
do próprio sociólogo das revoluções. 
A tentação e o fracasso da redução ao modêlo fornecem 
uma justificação bastante aceitável para esta exigência. O 
modêlo que se pode ver delinear no plano ou a conclusão 
dêste ou daquele estudo é geralmente inspirado pela Revolu­
ção Francesa : a um derradeiro sobressalto das classes domi­
nantes da antiga sociedade (revolta aristocrática ou nobiliá­
ria) sucederia uma primeira fase da revolução burguesa, logo 
sobrepujada por uma vaga de revolução popular que encon­
traria, por sua vez, o seu final num termidor que prepararia 
a consolidação de um amálgama de revolução popular e de 
revolução burguesa, pela intervenção ou não de uma ditadura. 
Tal o esquema proposto pelo ensaio de Grane Brinton (The 
Anatomy of Revolution) . Trotsky já qualificava, em A Re-
12 
vol11fáo Traída, a tomada do poder por Stalin de "termidor 
soviético". 
Há aí muito exagêro. Se há uma lição que a sociologia 
das revoluções pode oferecer, apoiando-se no estudo de um 
número conveniente de movimentos revolucionários, é, sem 
dúvida, a da irredutibilidade da maioria dêsses movimentos 
a um esquema-tipo de desenvolvimento e, mais ainda, a da 
inanidade de uma pesquisa desta ordem: se a revolução po­
pular é sempre semelhante a si mesma, é no cotidiano e no 
final, mas não certamente nesse nível intermediário de inter­
pretação no qual o procedimento do teórico e mesmo o do his­
toriador pretenderiam imobilizá-la. Apreende-se a revolu­
ção em sua natureza além do tempo - no imediato que ain­
da não o constitui e na duração que lhe escapa. Esta "trans­
-temporalidade" (Merleau-Ponty) da revolução confere-lhe, 
com relação às categorias clássicas da história, uma historici­
dade particular capaz de fundar, a rigor, sua própria sociolo­
gia e de lhe fornecer um estatuto científico ( cf. infra, cap. 1). 
Está na hora de precisar alguns têrmos, a começar pe­
lo de revolução, do qual Littré nos fornece a chave desde 
a primeira acepção que nos propõe: "Retôrno de um astro 
ao ponto de onde partira" - isto é, se nos é permitido per­
manecer um instante nas categorias gerais da astronomia: 
reinicio do espaço por complementação do tempo. Littré 
enriquece o conhecimento da palavra propondo um segundo 
sentido: a revolução é também "o estado de uma coisa que 
se enrola". . . As acepções banais que aparecem a partir 
do sexto significado não são menos portadoras de reflexão 
e de sonho: 
"6.• Antigo têrmo de medicina. Revolução de humo­
res, movimento extraordinário entre os humores. 
"7.• Mudança nas coisas do mundo, nas opiniões. 
"8.• Mudança brusca e violenta na politica e no govêr­
no de um Estado ( ... ) . De maneira abstrata, a revolução, 
sistema de opiniões compostas de hostilidade ao passado e 
de busca de um nôvo porvir, por oposição ao sistema con­
servador. 
13 
"9.• Aplica-se aos acontecimentos naturais que transtor­
naram e mudaram a face do globo." 
Quantoa "revolucionário", fala-se em "medidas adota­
das em tempo de revolução, de caráter violento, extrale­
gal". Desliza-se aqui bruscamente da imanência à presen­
ça: a revolução bate às portas do Dicionário: "Com efei­
to, eu possuía então, na Rue d'Ouest, hoje Rue d' Assas, 
um minúsculo e incômodo alojamento ( ... ) que o pessoal 
da Comuna ocupou durante três dias em maio de 1871 ( ... ) . 
Quando fugiram, desalojados dali como de outros lugares, 
tiveram o cuidado de não partir sem antes provocar um 
incêndio no rés-do-chão. A casa inflamou-se, mas a tropa 
ao chegar dominou o incêndio como o da residência fron­
teira onde morava o Sr. Michelet, felizmente ausente e que 
os incendiários não haviam esquecido" (Comment j'ai fait 
mon Diction·naire de 7,a Zangue française). Por ai se vê 
que a revolução, na presteza de seu movimento, sabe se 
tornar detestada por aquêles mesmos que lhe fornecem quer 
o sinal, quer o estatuto. Voltemos, porém, à semântica que 
ainda não esgotou seus recursos. 
Littré pertence a uma época que julgou necessário tor­
nar insípida a revolução a fim de garantir a vitória da or­
dem até mesmo nas palavras, em que Fustel de Coulanges 
consagra um livro inteiro da Cidade Antiga intitulado "As 
Revoluções", à descrição das conseqüências nefastas para 
Roma do "apagamento das crenças antigas" que "fêz desa­
bar o edifício social construido por essas crenças e que só­
mente elas poderiam sustentar". O século XVII francês, 
que estudos recentes revelaram ter sido também tão rico 
em revoluções ( 1) , já havia distinguido com precisão im­
pecável, a emoção ( que é, em sentido estrito, o ato de pôr 
em movimento uma massa popular: a sediçélo, têrmo forte 
para designar a constituição de uma parte do povo em 
ameaça organizada de poder oposto ao poder estabelecido; 
o levante, a rebelião, o motim e a revolta, outros tantos 
estados sucessivos da sedição constituida. ltste vocabulá­
rio não deve induzir ao pitoresco: a bandeira vermelha flu­
tua em 1635 sôbre Bordeaux, onde já aparecem as barrica-
( 1) Boris PORCHNEV, Les soulevements p.opulaires en 
France de 1623 à 1648. Roland MOURIER, Fureurs paysannes. 
Les paysans dans les rlvoltes du XVJle Siecle (France, Chine, 
Russe) . 
14 
das que surgirão em Agen e em Rouen em 1639. As mo­
dalidades e os simbolos da revolução popular são tão in­
temporais quanto suas causas: Bayonne presencia em 1641 
uma "paralisação geral do trabalho", uma greve de protes­
to contra a chegada de um navio de guerra real enviado 
para fazer respeitar os editos fiscais. 
A irrupção da revolução no vocabulário da ciência poll­
tica produzir-se-á no século XVIll, quando Montesquieu 
enunciar que o despotismo é o regime natural das revolu­
ções populares (Do Espírito das Leis, V. II). Mas nem 
os Enciclopedistas, nem Rousseau, nem os próprios revolu­
cionários de 1789 lhe renovaram a acepção e caberá à tra­
dição contra-revolucionária dos séculos XIX e XX, e à tra­
dição socialista da mesma época, que conseguiram se pôr 
de acõrdo pelo menos uma vez, a tarefa de empobrecer e 
de vulgarizar o vocabulário: "A revolução, escreve Ch. 
Rappoport na Encyclopédie socialiste, consagrada pelos di­
rigentes da II Internacional à glória do movimento operá­
rio, é uma transformação radical ou fundamental, uma mu­
dança de regime, de direção, de principio. A revolução é 
um ato de emancipação humana e social" (A Revoluç4o 
Social) : ninguém conseguiria exprimir-se de maneira mais 
ôca. A historiografia revolucionária, com Aulard e Ma­
thiez, não imprimirá nenhum progresso à reflexão a nê.o ser 
solicitando que também se coloque a revolução no terreno, 
sem dúvida essencial, de regime da propriedade. Além de 
outras revoluções, será imprescindivel esta lenta decanta­
ção de discurso que marca de maneira tão nitida o pen­
samento moderno, para chegarmos a encontrar sob a pena 
de um autor já citado, esta proposição tão simples: o que 
vem a ser, afinal de contas, a revolução senão a "criação 
de um conjunto histórico? (1). Semelhante acepção da re­
volução não pode ser justificada através de umas poucas 
fórmulas, e um dos objetivos dêste ensaio será sugerir uma 
demonstração das mesmas; terá ela a vantagem de afastar 
radicalmente do debate a oposição clássica entre reforma 
e revolução, por exemplo, tirando também algo do interêsse 
atribuido a uma distinção mais ponderada que separaria 
"revolução" de "insurreição", deixando de lado as relações 
entre história e revolução que serão caracterizadas mais 
adiante. A revolução situa-se na duração, espaço temporal 
( 1) MERLEAU-PONTY, As Aventuras da Dialética. 
15 
da imanência: torna-se assim possivel não confundir uma 
insurreição prolongada com uma revolução, por mais breve 
que esta seja. A "Revolução" de 1830 é uma insurreição 
que "dura" dezoito anos no tempo. A Comuna de 1871, 
que seus adversários procuraram reduzir à escala de sim­
ples insurreição, é uma revolução que ocupou apenas algu­
mas semanas no espaço banal da história. o que não faz 
senão acentuar ainda mais intensamente talvez seu caráter 
"trans-histórico" (l). Esta distinção entre revolução e in­
surreição não se superpõe à que Lênine sistematizava redu­
zindo a insurreição a uma técnica particular de tomada 
do poder, a fim de lhe opor a densidade cientifica da revo­
lução, esforçando-se assim por romper com a tradição blan­
quista de insurreição cujo fim reside nela mesma. 
Semelhante concepção da revolução não é apenas de 
molde a evitar muitas querelas jâ desgastadas: permite 
atribuir à categoria das revoluções, ao mesmo tempo, uma 
extensão e um rigor inusitados. Serão assim colocadas ao 
nivel das revoluções autênticas as Cruzadas medievais, com 
relação ao "fato essencial desta história da alma coletiva: 
o lento desaparecimento da Cruzada dentre os acontecimen­
tos da história e sua latência manifesta, mais ou menos 
submersa através dos Tempos modernos e pronta para uma 
nova vida quando êstes se encerram - hoje em dia" (A. 
Dupront). 
Pode parecer que o primeiro mandamento da sociolo­
gia consiste em não reverenciar os mitos antes de transfor­
má-los em objeto de estudo (2) . Não serão encontradas, a 
( 1) Henri LEFtBVRE, La proclamation de la Com­
mune. 
( 2) Como observa François Bourricaud, também o mito re­
volucionário possui uma categoria de impostura final, aproximan­
do-se nesse ponto do mito burguês: a do "país real". Não há, 
observa êle, entre os fenômenos revolucionários contemporâneos 
na América andina, nenhum preconceito tão difundido quanto o 
da oposição entre um "país real" em estado de rebelião latente e 
um "país oficial" constituído por uma camarilha cega, uma oli­
garquia egoísta. tste estereótipo é dotado de tal poder sôbre os 
espíritos que grande número de intelectuais toma incautamente tal 
ou qual epifenômeno de violência camponesa por um sinal precur­
sor da inevitável revolução neste ou naquele país ( cf. infra) . 
16 
seguir, considerações exageradas sôbre o igualitarismo e a li­
berdade, mas não nos furtaremos ao exame de suas contradi­
ções obstinadas : a diferença das condições, a exigência de to­
talidade assim que se trate de homem, a servidão e a aliena­
ção contlnuamente combatidas e contlnuamente triunfantes. 
Monk, personagem célebre nos anais da contra-revolução, é 
impelido para o proscênio pela mesma história que impele 
Bonaparte: "Niveladores" e Enragés clamam por um nivela­
mento pela fôrça, o mesmo nivelamento que não consegui­
ram impor com o auxílio dos princípi·os. 
Resulta do precedente, e julgamos havê-lo suficiente­
mente sugerido, que a sociologia das revoluções está ainda 
no limiar da existência. Foram as revoluções sobretudo que 
ocuparam o espírito dos teóricos políticos e dos psicólogos 
sociais: não será inútil esquematizar as principais vias de aces­
so pelas quais, há um século principalmente, os fenômenos 
revolucionários vêm sendo solicitados no sentido de desven­
dar seu conteúdo e suas leis. A historiografia revolucionária 
permanece essencialmenteligada a um acontecimento : a cha­
mada Revolução Francesa (1789-1799) , e continua dividida 
entre duas escolas irreconciliáveis: a de Thiers e da revolu­
ção "infalível" e "generosa" ; a escola de Michelet e da revo­
lução frágil e dolorosa, que domina os trabalhos contempo­
râneos, com Daniel Guérin (La lutte de classes sous la Pri­
miere République) e Albert Soboul (Les sans-culottes pari­
siens en /' an II) . 
A teoria política francesa do século XIX julgou poder 
integrar a revolução em seus sistemas. Imaginou, com Toc­
queville, que, visto "não ter havido jamais acontecimentos 
mais importantes, dirigidos de mais longe, melhor prepara­
dos e menos previstos" que a Revolução de 1789, o progres­
so da ciência de governar caminharia pari passu com o me­
lhor conhecimento daquilo que surgia doravante como um 
elemento constitutivo da crescente democratização das socie­
dades industriais. Et'lvidou esforços no sentido de se recon-
17 
ciliar com a revolução, concedendo-lhe um lugar em sua vi­
são da história, reduzindo-a a uma categoria familiar ao po­
lítico. Julgou que um esfôrço de reflexão, na cúpula, e de 
educação, na base, recolocaria na norma as revoluções dís­
pares que atulham a história do progresso da humanidade 
consciente. Decorre daí, sem dúvida, o fato de ser a França 
tão rica em psicólogos do movimento revolucionário e par­
ticularmente dos "estados de multidão" (Tarde, Le Bon, de 
Feiice etc., cf. infra. cap. III) , sendo, em contraposição, tão 
pobre em sociólogos, voltados para as mesmas preocupa­
ções. Se hoje em dia Merleau-Ponty (Humanismo e Ter­
ror, As Aventuras da Dialética) e Sartre (Critique de la 
raison dialectique, Os Comunistas e a Paz) fizeram preparar 
consideràvelmente, embora colocando-se em posições opos­
tas, a reflexão filosófica sôbre a revolução, é do estrangeiro 
que vêm os trabalhos mais importantes no domínio da socio­
logia propriamente dita dos movimentos revolucionários. 
Menção especial deve ser feita à obra recente de Sar­
tre. Na Critique de la raison dialectique, êle retoma, apoian­
do-se na historiografia da Revolução Francesa, a filosofia 
e a sociologia, entremeadas, do grupo. :tlle o descreve como 
um processo de reconquista coletiva por homens situados 
em um projeto (o projeto revolucionário) de uma praxis 
comum, rompendo com a "serialidade", isto é, um tipo de 
estatuto coletivo em que cada qual é idêntico para o outro 
e intercambiável com quem quer que seja. 
A Critique desenvolve, com um rigor que muitos soció­
logos poderiam invejar ao filósofo, a teoria da relação dia­
lética entendida como "lógica da ação criadora, isto é, como 
lógica da liberdade" que relaciona o grupo com a história: 
o que vem a ser a tomada da Bastilha senão a "descoberta 
de uma terrivel liberdade comum" pela mediação de um 
"nõvo reagrupamento dissolvendo uma serialidade costu­
meira na homogeneidade de uma cidade em fusão" ? Não 
se tentará aqui apelar para uma pretensa "tomada de cons­
ciência revolucionária" : o problema proposto simultânea­
mente ao filósofo e ao sociólogo consiste em "saber em que 
medida a multiplicidade das slnteses individuais pode fun­
damentar, enquanto tal, a comunidade dos objetivos e das 
18 
ações". No estatuto de grupo, o individuo é "metamorfo­
seado", desalienado no projeto comum: êle a1 ascende à 
socialidade por uma participação de cada instante à tota­
lização comum. Há muita distância, portanto, entre o gru­
po e o povo revolucionários em ação, e Sartre nos alerta 
contra uma sociologia apressada: "A maneira pela qual 
se fala a respeito das transformações dialéticas das mas­
sas é sempre metafórica." Não há situação "tipicamente 
revolucionária" assim como "não há uma idéia platônica 
do Terror; há apenas terrores e se o historiador tiver de 
lhes atribuir alguns caracteres comuns, deverá fazê-lo ba­
seando-se em comparações muito cautelosas". Não deixa 
de haver, entretanto, uma função do Terror que o soció­
logo pode verificar ao término da análise do grupo e como 
que em resposta a outra análise, a do juramento que insti­
tucionaliza o grupo revolucionário e o constitui em atos 
frente à contra-revolução; o Terror torna a introduzir no 
seio do grupo a alienação portadora de serialidade e inércia 
- êste prático-inerte pelo qual Sartre designa "as ativida­
des humanas enquanto mediadas por um material rigoro­
samente objetivo que as faz retornar à objetividade". E 
sua ordem metodológica de partida - "é preciso passar pe­
la mediação dos homens concretos, do caráter que o condi­
cionamento de base lhes criou, dos instrumentos ideológi­
cos que utilizam, do meio real da revolução". - Merleau­
-Ponty outrora a acoimava de indeterminação, suspeitan­
do, através da revolução realizada na U.R.S.S., que "o 
meio da revolução consistia cada vez menos nas relações 
entre pessoas e cada vez mais nas coisas e suas necessi­
dades imanentes" (As Aventuras da Dialética). 
Pode-se propor com algum fundamento a questão de 
saber que uso poderia a sociedade fa2.er da revolução cons­
tituída em objeto de análise. Lê-se num recente Ensaio Sôbre 
a Revolução : "Na luta que divide o mundo atualmente (o 
autor mostrará que se trata, em sua opinião, da luta entre 
uma civilização da liberdade e uma civilização da igualda­
de) e do qual dependem tantas coisas; sairão vencedores 
aquêles que compreenderem a revolução . . . " (Hannah 
Ahrendt. ) A sociologia hoje dominante - a sociologia ame­
ricana do meado do século - está marcada pelo traumatis­
mo revolucionário. Sorokin, Moreno, Parsons etc., foram 
19 
testemunhas chocadas ou comentadores apavorados da Re­
volução Russa de 1917 e de seus prolongamentos no Ociden­
te europeu nos dias subseqüentes à Primeira Guerra Mundial. 
Observaram, em contraposição, a ordem e a liberdade prati­
cadas pela democracia de tipo norte-americano e acreditaram 
poder conciliar o rigor científico e o combate em prol da 
causa mais justa construindo sistemas de legitimação daquilo 
que êles, com tôda a certeza, veriam com muito espanto 
qualificar como a forma contemporânea mais perfeita de 
projeto contra-revolucionário. Empenharam-se em tomar ao 
pé da letra a Revolução Russa e a Revolução Austro-Alemã 
e em conceber wna operação de conversão semântica pela qual 
as "idéias" revolucionárias, despidas de sua violência e 
de seu moralismo, seriam novamente injetadas no corpo 
da sociedade industrial pela seringa asséptica do sociólogo, 
cujas análises tornam consciente a existência de obstáculos 
maciços às mudanças, que são inerentes à estrutura da socie­
dade e à do caráter" do homem (D. Riesman) . 
A atitude mais significativa dêste estado d e espirito 
parece ser a de Sorokin. Publicou êle, em 1925, uma Socio­
Zogie dea révolutions baseada, segundo confessa sem rebu­
ços, na experiência por êle vivida durante os primeiros anos 
da Revolução Soviética. O livro centraliza-se em tõrno de 
uma noção principal: a perversão dos comportamentos hu­
manos ligada ao processo revolucionário (perversão do sen­
timento de propriedade, das relações de trabalho, dos com­
portamentos sexuais (sic), das relações de hierarquia e 
de subordinação, das atitudes religiosas, morais, estéti­
cas etc.). Esta recensão prolonga-se num requisitório sô­
bre as "ilusões revolucionárias". A Revolução mercadora 
de ilusões é, com efeito, para Sorokin como para tantos ou­
tros, a mulher de vida airada da patriarcal ordem social. 
A imagem sexual que serve de guia para Sorokin, a demons­
tração que êle se empenha em fornecer "da mudança 
na composição biológica da população e do processo de re­
produção e de seleção" da ef!pécie humana por ela realiza­
da, não constituem apenas uma singularidade de linguagem. 
i!lste tema será novamente encontrado no âmago do pan­
teão contra-revolucionário (cf. infra, cap. III). 
20 
CAPITULO 1 
O PROJETO REVOLUCIONÁRIO 
Cidadãos redatores, 
"Teria havido um trabalho preparatório 
à Revolução, de grande utilidade : o da 
classificação das idéias, tanto as revolucioná­rias quanto as que tais se pretendem" 
ANDRÉ LEO 
Carta aos redatores de 
La Sociale, 14 de maio de 1871 
Antes de observar os atos da revolução, devemos anali­
sar-lhe o projeto. J!ste se define em três níveis que repre­
sentam outras tantas etapas de seu estudo sociológico: as re­
lações gerais da revolução com a sociedade global; os carac­
teres próprios do projeto revolucionário; as modalidades de 
apreensão dos aspectos concretos do projeto revolucionário em 
cada revolução. 
1 - Revolução e sociedade global. 
:e muito freqüente a associação entre "situação revolu­
cionária" e miséria generalizada, e os trabalhos de Ernest 
Labrousse sôbre as origens econômicas da Revolução Fran-
21 
cesa proporcionaram um interêsse renovado a uma interpre­
tação há muito tempo considerada como preceito histórico: 
"Deve-se recear, já escrevia a Richelieu em 1633, o Duque 
de :Epernon, governador-geral de Guyenne (1), que a extre­
ma penúria dos povos não lhes suscite alguns maus con­
selhos." Não é nada difícil, entretanto, admitir a necessida­
de de ultrapassar êste nível de explicação: a revolução não 
está obrigatoriamente ligada à pobreza ou à miséria. Esta 
verificação, menosprezada muitas vêzes pelos propagandis­
tas mais inclinados às referências ideológicas que à obser­
vação da realidade, se vê aparentemente ilustrada em tôdas 
as sociedades contemporâneas, quaisquer que sejam seus ní­
veis re�pectivos de desenvolvimento. A começar pelas so­
ciedades industriais que têm seus "marginais": vagabundos, 
clochards, subproletários das favelas . . . os quais não pa­
recem movidos por qualquer sentimento de revolta contra 
a ordem dominante que nêles possa fundamentar um pro­
jeto revolucionário. Esta observação parece valer também 
para as massas camponesas e urbanas mais miseráveis da Asia, 
da Africa e da América Latina, isto é, para a grande maio­
ria das populações dos países "subdesenvolvidos". 
Contudo, devido à sua própria generalização, esta apro­
ximação deve levar a propor uma distinção elementar entre 
dois níveis de pobreza em seu relacionamento com aquilo 
que a sociologia pode qualificar como projetos coletivos. 
Torna-se necessário precisar preliminarmente a noção 
de projeto: o sociólogo, escreve Alain Touraine, não pode 
"jamais prescindir de todo de uma hipótese a respeito dos 
determinantes da ação social : a miséria não explica a re­
volta e menos ainda a revolução, pois esta supõe um obje-
( 1 ) A Guyenne é uma das províncias da antiga França, ca­
pital Bordeaux. Foi, durante longos anos, disputada pelos inglêses 
que a ela se julgavam com direito, devido ao casamento de Hen­
rique II com Eleonora de Aquitaine. (N. do T. ) 
22 
tivo, uma imagem da liberdade que permita pelo menos re­
conhecer a miséria". Com efeito, a imagem surge como 
elemento constitutivo do projeto: "imagem projetante e 
anelante" (François Perroux ) , "imagem-guia" (Paul-Hen­
ri-Chombart de Lauwe) : entretanto, o projeto coletivo é 
mais que a imagem pura; êle é a imagem que se torna. in­
teligivel e comunicável - no limite, comum ao grupo, 
e a.té mesmo à sociedade globa.I: um encontro da. imagem e 
da linguagem. Podem-se distinguir dois tipos de projetos 
coletivos: o projeto estabelecido ou projeto dominante e o 
projeto revolucioná.rio. 
O projeto estabelecido é aquêle que parece ( explici­
tamente ou não) aceito como receptáculo, na. sociedade con­
siderada, do sistema vigente de pressões, de instituições e 
de transformações. Comporta múltiplas moda.Iidades: libe­
ral ( quando o projeto coletivo é concebido como uma so­
ma harmoniosa de projetos individuais) , neo-liberal (no 
qua.I se opera um deslocamento do centro de gravidade das 
pressões e das instituições em beneficio das pressões e ins­
tituições públicas ou parapúblicas) , socialista (no qual 11. 
apropriação coletiva dos meios de produção acarreta um 
sistema de pressões e de instituições essencialmente públi­
cas e no qual os projetos individuais só aparecem como 
residuais) etc. 
O projeto revolucionário constitui essencialmente uma. 
contradição com o projeto estabelecido. Antes mesmo de 
caracterizá-lo de maneira mais pormenorizada., importa su­
blinhar que, por hipótese, êle é sempre coletivo. De res­
to, esta qualificação não deve iludir. Seu único significa.do 
consiste em excluir do projeto revolucioná.rio, o revoltado 
solitário. Sabemos, sem que êste julgamento se estenda ao 
conjunto do livro, que a confusão quanto a êste ponto atin­
ge o auge no ensaio de Albert Camus em que o Homem 
revoltado - o homem que não diz não - sublima inutil­
mente seu protesto individual em "revolta. metafisica.": "opõe 
o principio de justiça nêle existente ao principio de in­
justiça que vê no mundo". Ca.mus não pode deixar de 
abordar o problema da revolta coletiva, mas o faz partindo 
da obsessão hegeliana da história, de reconhecido caráter 
totalitário . uma critica implacável do projeto marxista busca 
reduzi-lo a um acúmulo de paradoxos. O proletariado 
perde tôda. "missão" histórica ( porém, terá. Marx jamais 
incorrido em tal aproximação? ) : ":f::le é apenas um recur­
so poderoso, entre outros tantos, nas mãos de ascetas revo-
23 
lucionários." O homem revoltado que, pelo fato de ser ho­
mem nã.o pode ser solitário, afirma Camus, veste a roupa­
gem do revolucionário profissional : "0 revoltado recusa 
assim a divindade a fim de compartilhar das lutas e do des­
tino comum." Mas, confundir sem-cerimoniosamente Lênine 
com Stalin? Saint-Just com Robespierre? Münzer com 
Lutero? A generosidade de muitas de suas fórmulas nã.o 
tira do ensaio de Camus o caráter de discurso sõbre a re­
volução, coisa que deve ser evitada pela sociologia da massa. 
A qualificação de "coletivo", aplicada à noção de pro­
jeto revolucionário não significa em compensação que êste 
não possa sofrer uma clivagem segundo o tipo de repre­
sentações mentais por êle suscitadas nos diferentes grupos 
sociais que concerne: tais clivagens subsistem vivazes, em 
urna sociedade de memória coletiva pejada de revoluções 
como a sociedade francesa contemporânea; entre outras 
razões, elas explicam a eclosão por objetivos de suas "fôrças 
revolucionárias" potenciais: pacifistas, não-violentos, leigos, 
dissidentes coletivistas de extrema esquerda, anarquistas, 
surrealistas, situacionistas etc. Uma distinção já sugertda 
entre imagem e projeto, pode neste ponto evitar um equi­
voco. A análise do vocabulário da revolução lhe traz sua 
contribuição. Ela comprova a defasagem entre a expres­
são popular do projeto revolucionário em estado bruto e a 
oferecida pelos diferentes grupos que lutam pelo sacrificio 
do poder. Permite precisar o tema, tão caro aos lideres, 
da "comunhão com o povo" que constitui para os maiores 
dentre êles a um tempo a verdade e a impostura de seu es­
tatuto. A ruptura semântica atinge até mesmo os intér­
pretes da revolução: "Eu nasci povo, tinha o povo no co­
ração ( ... ) mas sua Ungua, era-me inacessivel. NA.o pu­
de fazê-lo falar", reconhece Michelet. 
A revolução não é redutível nem a uma acumulação de 
violência, nem mesmo a um conjunto de instituições, pois se 
baseia num "projeto visando um outro mundo - vislumbra­
do antes de ser construído" (François Perroux) , devendo 
por isto ser analisada em suas representações mentais coleti­
vas, tanto quanto em seus atos. O projeto revolucionário 
se revela à observação mais corriqueira como o "mundo a 
ser ganho'', evocado pelo Manifesto Comunista. Louise Mi­
chel, heroína da Comuna de 1871, escreverá a respeito: "Ti-
24 
nha-se pressa de escapar do velho mundo". A "Revolução 
cultural" chinesa de 1966-1968 tem início com um editorial 
do Diário do Povo (8 de junho de 1966): "Nós critica­
mos o velho mundo." "Transformar a vida" : o grito gra­
vado por Rimbaud para todo o sempre, pôs em movimento, 
desde que a história aprendeu a colocar seus pontos de re­
ferência, massas humanas que a terminologia moderna pre­
dominante, a das sociedades sem miséria generalizada, irá 
qualificar como"revolucionárias". 
:e portanto conveniente precisar o segundo têrmo da 
análise: o da pobreza, não tanto distinguindo-a sutilmente da 
miséria, quanto buscando situá-la em dois níveis com relação 
ao projeto revolucionário (e acessoriamente ao projeto esta­
belecido) : no nível da pobreza generalizada (caso dos paí­
ses subdesenvolvidos) e no da pobreza residual (caso das 
sociedades industrializadas) . Progrediremos desta maneira 
na senda da reflexão sôbre a gênese e o destino do próprio 
projeto revolucionário. 
1. Caso de pobreza generalizada (ou pobreza de mas­
Jas) - O projeto estabelecido é aqui, por hipótese, projeto 
de um grupo (ou conjunto de grupos) minoritário com rela­
ção à grande massa dos pobres. Os poderosos - designá­
-los-emos com esta cômoda expressão - excluem os pobres 
de tôda participação na criação e gestão do projeto e asse­
guram esta exclusão pelo jôgo de instituições de contrôle 
da pobreza (obras assistenciais, serviços) cuja função essen­
cial é manter uma distância conveniente entre a massa dos 
pobres e os grupos mantenedores do projeto estabelecido. 
Serão os pobres necessàriamente compelidos por esta exclu­
são a um projeto revolucionário do qual seriam os criadores 
e os portadores? Parece duvidosa qualquer resposta global 
a semelhante indagação. 
O mal-estar revelado nesse ponto por certas interpreta­
ções de situações sociais qualificadas como "explosivas" de-
25 
riva da excessiva permeabilidade das mesmas a uma concep­
ção clâssica da revolução que não está longe de rebaixar 
esta última à categoria de simples manifestação da "vio­
lência" coletiva (cf. infra, cap. II): de fato, a.s massas mi­
seráveis de que tratamos aqui, aparecem de longe em longe 
agitadas por revoltas espontâneas ( e, de resto, estritamente 
localizadas) . São essas revoltas invariàvelmente esmagadas, 
segundo a expressão consagrada, por operações de repres­
são cujo resultado, obtido com relativa facilidade, deveria 
elucidar os estrategistas a respeito da verdadeira natureza 
dos movimentos em questão. Uma contraprova da distinção 
necessária entre revolta e projeto revolucionário pode ser 
extraida da singular realização de certas "revoluções" di­
rigidas por pequenos grupos de "revolucionários profissio­
nais" sem a participação de massas populares ainda dema­
siadamente miseráveis para alcançar a consciência de um 
projeto revolucionário. Referimo-nos aqui ao exemplo da 
Revolução Mexicana do inicio do século XX, há longo tem­
po congelada em instituições hoje obrigadas a se defende­
rem contra os movimentos neo-rcvolucionários de massas, 
que elas outrora auxiliaram a se libertar da alienação de 
uma miséria demasiadamente radical. As "doenças infan­
tis" dos movimentos revolucionários nos paises subdesen­
volvidos, catalogadas de maneira tão complacente pelos 
comentadores, bem poderiam encontrar uma explicação co­
mum numa constatação desta espécie. 
Todavia, a observação atenta das motivações e dos 
comportamentos dêsses subconjuntos miseráveis, dêsses ex­
cluídos sociais reduzidos ao último grau da exclusão, 
é pródiga em ensinamentos para a sociologia das revoluções. 
Revela, particularmente, a capacidade de que é dotada a ex­
trema miséria para engendrar mitos (messianismos, micro­
-religiões dissidentes etc.) cujo florescimento e destino po· 
dem esclarecer a pré-história de numerosos fenômenos revo­
lucionários que lhes conservam muito tempo a marca. "Cul­
tos proféticos de liberação" (1) sustentam, na maioria das 
sociedades pré-industriais, as lutas pela independência poli-
( 1 ) V. LANTERNARI, Les mouvements religieux des 
peuples opprimls. 
26 
t1ca. Produtos de choques entre sistemas culturais assumem, 
as mais das vêzes, a forma de milenarismos e de messianis­
mos integrando elementos colhidos nas religiões tradicionais 
e tomados, inclusive os próprios deuses, aos colonizadores; 
êstes bem cedo começam a se preocupar com os fermentos 
de "espírito revolucionário" por êles mesmos desenvolvidos 
entre os indígenas, sendo entretanto incapazes de avaliar o 
conteúdo efetivo da mensagem que transmitem: a mensa­
gem de um mundo possível no qual, como nos cargo-cults 
melanésios, uma era a um tempo imemorial e eterna de bem­
-estar e de abundância virá, com a partida dos " brancos", 
estabelecer a liberdade coletiva. Como se vê, projetos revo­
lucionários rudimentares, nos quais a parte religiosa é tanto 
mais invasora quanto mais distante estiver o combate político 
de seus caminhos próprios; de resto, isto manifesta a religio­
sidade essencial de todo projeto revolucionário (cf. infra). 
A sociologia das transformações mentais e sociais des­
creve a função ambígua dos messianismos nos países coloni­
zados: forma de resistência popular ao domínio estrangeiro 
(cf. os trabalhos de G. Balandier) , assume muitas vêzes, já 
que é perseguida e combatida pelo colonizador, a aparência 
e a mentalidade de seita religiosa, tornando-se assim porta­
dora, segundo os ambientes ou as conjunturas, de concen­
tração em si-mesma e de conservadorismo, tanto quanto de 
projeto revolucionário: os fenômenos de " revolta cultural" 
analisados por Roger Bastide nas comunidades negro-afri­
canas do Brasil moderno, testemunham esta contradição ine­
rente a tôda revolta de grupos relativamente restritos, com 
relação à sociedade global. 
:S:, pois, conveniente evitar uma interpretação apressa­
da que veria nesses movimentos messia.nicos uma pré-his­
tória revolucionária correspondendo a outra arqueologia: 
a da industrialização do próprio desenvolvimento econômico 
e social. Uma correlação desta ordem parece mais sedu­
tora que significativa aos olhos do sociólogo que vê prolon­
garem-se, destacando-se progressivamente das leis de um 
27 
projeto revolucionário em via de purificação e de continuo 
despojamento, os temas messiânicos e milenaristas no seio 
das mais industrializadas sociedades. Cuidadosamente ana­
lisados em seus respectivos tempos e espaços sociais, não 
podem deixar de esclarecer o processo de constituição do 
projeto revolucioná.rio em busca de um mundo nõvo e aberto. 
jtste julgamento parecerá. excessivamente limitado 
àqueles que, com Abdulaye Ly (Les masses africaines et 
la conditkm humaine) e Frantz Fanon (Les damnés de la 
t6TTe) admitem que a revolução mundial dêste século -
a revolução autêntica, a que trará. a redenção de tõda a 
humanidade - será. a revolta universal dos campesinatos 
famintos e miseráveis. inflamando com a sua violência sal­
vadora "as cidades tranqüilas e grandiloqUentes" ( Frantz 
Fanon) . Esta interpretação saudosista dos movimentos 
populares dos séculos longinquos na Europa Ocidental jé. 
constituia seu milenarismo e sua violência em elementos da 
pré-história das revoluções modernas ( 1 ) . Nunca será. de­
mais incitar tanto à relativização constante da análise co­
mo à imperiosa necesidade de ser esta sempre concebida 
num quadro da referência global. 
2 . Ca.ro de pobreza residual - O projeto estabeleci­
do é aqui muito mais difuso e pluralista; subdivide-se com 
muita freqüência em subprojetos, com relação aos quais o 
pobre não fica excluído, porém marginalizado, como de­
mostraram inúmeros trabalhos sociológicos (A. Vexiliard, J. 
Labbens, J. Wresinski, A. Mattelart . . . ) . Como vimos, 
a exclusão se define por uma oposição acrescida de distân­
cia; a marginalidade, apenas pela distância, oferecendo, por 
isto mesmo, uma fisionomia ambígua. O pobre marginaliza­
do parece impermeável às influências da ordem e do projeto 
estabelecidos precisamente por estar em contato permanente 
com êles. A distância que os separa, é, a um tempo, relati­
vamente reduzida e incapaz de avaliar-se a si mesma e esta 
incapacidade funciona integralmente contra o marginal, visto 
ser êste, sob outro ponto de vista, minoritário num tipo de 
( 1 ) Cf. N. COHN, Les fanatiques de l' Apocalypse. 
28 
sociedade em que as instituições e os sistemas de contrôle 
baseiam-se nos mitos conjugados do igualitarismo e da lei 
da maioria.A marginalidade afeta o marginal de uma es­
pécie de ilegitimidade implícita, enquanto a exclusão demons­
tra a ilegitimidade do grupo que exclui. A ambigüidade da 
marginalidade impregna as relações entre pobreza residual e 
projeto revolucionário. O conjunto das alienações oriundas da 
marginalidade - mais sub-reptícías por serem mais difusas que 
as da exclusão - acarreta a formação de uma "cultura de 
pobreza" (Oscar Lewis) que constitui os grupos de pobres 
marginais, no seio da sociedade global, em subconjuntos ao 
mesmo tempo homogêneos e fechados: suficientemente ho­
mogêneos para caracterizá-la, de uma sociedade para outra, 
por motivações e comportamentos comparáveis; suficiente­
mente fechados para confiná-los numa situação incapaz de 
fundar uma consciência coletiva de adesão a uma categoria 
soàal separada das outras por um modo de vida e um sis­
tema de valores suscetíveis de confronto e de transforma­
ção. Para elas não existe aspiração coletiva a um mundo 
melhor, ou pelos menos, a um mundo diferente daquele que 
circunscreve sua vida cotidiana a uma miséria aparentemen­
te sem remédio. De resto, o comportamento dos grupos de 
marginais nas sociedades industriais não é marcado, em face 
da sociedade circundante e do projeto estabelecido, por ne­
nhum dêsses fenômenos de violência coletiva tão caracterís­
ticos do comportamento da pobreza de massas. :Ele é, as­
sim, finalmente, incapaz de ir desembocar na revolta. A 
violência da pobreza residual circunscreve-se no interior 
de si mesma: na ausência de qualquer outra instituição ou 
sistema de relações interpessoais suficientemente estável, ela 
desempenha a função de contrôle social indispensável à exis­
tência do grupo. 
Nessas condições, diflcilmente se concebe que os po­
bres possam ascender, numa situação de marginalidade, ao 
nível de aspiração mínima que criaria as condições psico-
29 
lógicas indispensáveis à formação de um projeto revolucio­
nário: consciência da existência de relações necessárias de 
complementaridade ou de oposição entre seus grupos e os 
grupos portadores do projeto estabelecido; consciência de sua 
própria existência singular na acumulação do cotidiano. 
Aborda-se, assim, o exame dos caracteres fundamentais 
do próprio projeto revolucionário: totalidade (e universa­
lidade) , inserção específica na história da sociedade global 
considerada. Antes de lá chegarmos, extrairemos do conjun­
to dessas constatações iniciais as razões de uma distinção útil 
entre duas acepções possíveis da expressão tão ambígua quão 
comumente difundida, da "tomada de consciência" graças 
à qual tantos raciocínios sociológicos encontram uma espécie 
de alento suplementar, em face do acúmulo excessivo de rea­
lidade social. Uma correlação estabelecida sem matizes entre 
miséria e revolução, busca seu fundamento implícito numa 
concepção pseudodeterminista da "tomada de consciência", 
que deve ser afastada, segundo parece, Pº! uma observação 
mais atenta: a massa de uma população não adquire cons­
ciência de um estado de miséria que ela decidiria um dia, 
devido a um reflexo coletivo de segundo grau, fazer desem­
bocar numa revolução. Ela conhece sua miséria, que vive 
com ela e é uma coisa familiar em sua memória e em sua 
vida cotidiana. Charles Péguy o recordava: "O miserável 
não vê o mundo como o vê o sociólogo; o miserável está na 
i.ua miséria ( . . . ) , a miséria constitui tôda a sua vida ( . . . ) , 
é a penetração universal da morte na vida, um ressaibo de 
morte infiltrada em tôda vida . . . (De fean Coste) . 
"Dies irae, dia de cólera", continua Péguy no mesmo 
tom. Dies irae : um dia de violência se ergue, nasce um 
dia a rebelião e cresce a revolução -- onde está nesse dia 
a "tomada de consciência" ? Podemos julgar que nos en­
contramos aqui diante de coisa muito diferente : de um 
afloramento ao cotidiano da sensibilidade coletiva de uma 
longa história da miséria que, bruscamente, se atualiza, 
adota um fim diverso de si mesma, rompe as amarras, sai 
30 
de seu desencanto secular, de sua passividade que os comen­
tários dos poderosos já haviam transformado em provér­
bio. Ela se transmuda em ruptura com uma história re­
pulsiva cuja continuação se torna impossivel depois do dia 
de cólera em que surgiu em tôda a sua verdade, a da morte 
insidiosa e demasiadamente familiar, a da ausência de vida. 
Em janeiro de 1905, após o "Domingo vermelho" que 
liquidou centenas dêles, os operários de São Petersburgo 
dirigem ao czar uma súplica na qual se condensa o nasci­
mento exato do projeto revolucionário : "Mergulhamos na 
miséria, somos oprimidos, sobrecarregam-nos com um tra­
balho esmagador, insultam-nos; em nós · não reconhecem 
homens, tratam-nos como escravos que devem . suportar seu 
amargo e triste destino e calar-se. E nós o suportamos. 
Mas nos impelem cada vez mais para o abismo da miséria, 
da ausência de direito, da ignorâncis.; o despotismo e a mi­
séria nos esmagam e estamos sufocando. Estamos esgo­
tados, Sire! Ultrapassamos o limite da paciência. Chega­
mos ao terrlvel momento em que mais vale a morte que 
o prolongamento de sofrimentos intoleráveis ( . . . ) . li: pou­
co o que pedimos. Não desejamos senão aquilo sem o que 
a vida não é vida mas sim uma galé e uma infinita tor­
tura . . . " 
II - Os caracteres fundamentais do projeto revolucionário 
Para tentar precisá-los, partiremos da dura base da re­
volução constituída pelo absurdo e pela angústia da vida 
cotidiana. O projeto revolucionário que, por sua natureza, 
transcende e modifica tudo que abarca, será a redenção pos­
sível da "vida inumana do homem" (Marx) , imagem e sinal 
que lhe emprest;un finalmente outro sentido que não o do 
revelar uma forma degradada e irremediável da condição 
humana? 
Dois exemplos colhidos nas grandes agitações sociais da 
Idade Média e da Renascença, demonstrarão talvf'Z ainda 
melhor que as revoluções dos séculos mais próximos o sen­
tido da questão proposta. As Cruza.das têm a dupla função 
- segundo sua qualificação do ponto de vista dos podero-
31 
sos ou do interior do povo - de livrar o espaço ocidental 
cristão das turbulências populares que se haviam tornado 
intoleráveis com a aproximação do ano Mil e de possibilitar 
a redenção da pobreza pelo estabelecimento dos pobres na 
Terra Santa (ou, mais exatamente, daquilo que subsistisse, 
por ocasião da chegada à Terra Santa, das imensas multi­
dões congregadas pelo a pêlo de pregadores e de visionários) . 
Ambigüidade trágica do projeto revolucionário, interpretado, 
logo de saída, pelos poderosos, como a oportunidade para 
uma sangria ou um exílio coletivo que garantiriam durante 
algum tempo a ordem social absoluta contra o desespêro e o 
desencanto, ao passo que a massa viu aí uma nova existên­
cia, um renascimento coletivo cotidiano. 
P. Alphandéry e A. Dupront, incomparáveis analistas 
desta escatologia popular em projetos e em atos, reescre­
viam há tempos "a história da Cruzada em suas realidades 
de significado e de espiritualidade coletivas a partir de um 
inventário das experiências, das imagens, das tradições ins­
critas no inconsciente coletivo do Ocidente cristão". (La 
chrétienté et l'idée de croisade. ) Traziam assim à sociolo­
gia das revoluções uma contribuição modelar pelo rigor e 
pela riqueza, mostrando os liames de fenômenos aparente­
mente tão dispares quanto as "emigrações motivadas pela 
fome, grupos penitentes espontê.neos, construtores de locais 
de culto, penitência coletiva ritualizada, encontrando o in­
tenso movimento social do século Xll, as primeiras migrações 
de uma classe operária e sobretudo o desenvolvimento das 
comunas". Esta visão total da Cruzada, talvez a mais per­
feita da historiografia dos grandes movimentos sociais, abre­
·se num paralelo natural entre Cruzada e revolução, elabo­
rado por A. Dupront em posfácio ao estudo : "Que encer­
rarão em si mesmas essas massas pobres, guardiãs da tradi­
ção de Cruzada a não ser a pujança da Revolução justicei­
ra ( . . . ) como uma sociedadedo reino, sem classes, justa, 
harmoniosa. Ai está a realização comum da Cruzada e da 
Revolução. Ambas marchando para o advento e para que o 
reino seja feito . . . " 
:Ili uma busca parusiaca da mesma espécie que tenta 
na inquieta Alemanha do século XVI Thomas Münzer, "teó­
logo da revolução" : assim o qualifica Ernest Bloch em um 
32 
livro que constitui também uma importante contribuição 
à filosofia e à sociologia interligadas das revoluções po­
pulares ( 1 ) • 
Emest Bloch não cuida de modo algum de descrever os 
pormenores dos acontecimentos que constituem a "Guerra 
dos Camponeses", nem sequer busca esquematizar a histó­
ria e a filosofia religiosa dos anabatistas. Num ritmo ern 
que se mistura, em singular convergência, a influência 
da psicanálise freudiana com a teoria lukacsiana da nar­
ração, Bloch provoca o encontro do padre "revoltado ern 
Cristo", Thomas Münzer, com a revolução camponesa mi­
lenarista : "Sucede, escreve Münzer em 1524, num impul­
so de visionário da revolução, que um homem se levanta à 
hora do jantar e caminha ainda porque uma igreja se er­
gue num lugar qualquer, no Oriente", recuperando o ve­
lho sonho messiânico que havia impelido as multidões do 
século XI para as estradas que levam à Terra Santa, num 
projeto revolucionário total, o da recriação em tOmo do 
túmulo de Cristo, de uma sociedade dos pobres, igualitária 
e livre, da qual seriam excluidos os ricos e os poderosos. 
A procura do "Reino milenar, ao mesmo tempo harém 
e falanstério", é a revolução nua; Bloch torna senslvel a 
imagem da revolução no espirito dos camponeses münze­
rianos quando escreve : "Era preciso não somente que as 
coisas se decidissem em seu favor, mas ainda que elas tor­
nassem a voltar ao ponto exato em que haviam estado 
outrora, quando êles ainda eram homens livres, no seio de 
suas livres comunidades . . . Exatamente àquele ponto -
mesmo que os camponeses outrora já sofressem (era, po­
rém, o sofrimento diferente ) : a revolução é êsse retomo 
do tempo ao ponto em que êste começou a escapar do go­
vêmo dos homens livres e iguais. quando se instalou a 
noite. Retomo do dia, e. coisa singular, dêsse dia primevo 
quando, prossegue Bloch, "em seu frescor primitivo, os 
campos estavam abertos a todos como um prado comunal" ; 
a revolução camponesa para Thomas Münzer é a violência 
em ação do povo que se recorda e simultâneamente se re­
cobra a si mesmo em sua verdade histórica. Considerando 
bem, gnose tanto quanto anamnese : a revolução münze-
( 1 ) Thomas Münzer, théologien de la révolution. Miguel 
de Unamuno retomará o mesmo tema em A Vida de Dom Quixote 
e de Sancho Pança. 
33 
riana "não foi de modo algum um fato histórico, porém, 
mais propriamente, uma idéia mantida viva, semi-aba­
fada sob um oceano de ódio e de injustiça, centelha sempre 
presente, transmitida através da nobre cadeia de uma tra­
dição secreta, alçando-se no donúnio interior da utopia, 
na nústica do reino que formam um 11nico tema universal 
atribuído à história humana". A Revolutio temporis une­
-se à restitutio omnium, o retômo escatológico de tôdas 
as coisas à sua perfeição primitiva, que lhes realiza o des­
tino último. 
A revolução camponesa dirigida - contra Lutero -
por Thomas MUnzer, não passa de uma das encarnações 
da busca imanente do reino. Estudando as revoltas rurais 
dos últimos cento e cinqüenta anos na Europa meridional, 
E. Hobsbawn assim caracteriza seu projeto comum : "não 
um mundo nôvo e perfeito, porém um mundo ancestral, 
em cujo seio o homem é tratado com FqUidade". Alfred 
Metraux, ao cabo de uma pesquisa sôbre os indios perua­
nos, sabia não estar profetizando levianamente ao escrever : 
"Quando amanhã as massas indigenas se sublevarem, para 
exigir que justiça lhes seja feita e que lhes seja restituida 
a terra que lhes foi arrebatada, assistiremos a um terceiro 
renascimento do inca ( . . . ) . Será restaurado o império dos 
incas e a felicidade reinará de nôvo sôbre o velho Peru." 
O jornalista K. S. Karol, descrevendo a China moderna, 
identifica nas obras da revolução maoista "a espantosa 
encarnação de um sonho igualitário de camponeses pobres". 
Por mais contundente que fôsse em sua critica da revolução 
institucionalizada, Merleau-Ponty apontava no próprio pro­
jeto soviético - e até mesmo em suas formas stalinianas 
- "a fraternidade revolucionária, a recuperação do pas­
sado ( 1 ) , a unidade da história". Nicolas Berdiaev, adver­
sário ferrenho da Revolução bolchevista, reconhecia que ela 
havia "liberado as fôrças populares, devolvendo-as à reali­
dade histórica : nisto reside todo o seu significado". 
Até Chateaubriand, o bardo da Contra-Revolução es­
clarecida, concita-nos a ver na tomada da Bastilha, "não 
o ato violento da emancipação de um povo, mas a própria 
emancipação, resultado dêste ato". E denuncia os comen-
( 1) Não confundir com o tema da "eterna Rússia" e do 
apêlo ao patnot1smo organizado por Stalin durante a Segunda 
Guerra Mundial. 
34 
tários apressados até de revolucionários, vitimas da pró­
pria realização cotidiana de seus atos : "Admirou-se o que 
se devia condenar, o acidente, e não se foi procurar no fu­
turo os destinos realizados de um povo, a transformação 
dos costumes, das idéias, dos podêres poUticos, uma reno­
vação da espécie humana . . . " (Memórias de Além-Tú­
mulo, V, 8 ) . 
A revolução popular é também a maneira de u m povo 
recuperar o dominio de sua história, a partir do ponto em 
que as predominâncias de classe o privaram do poder so­
berano de constitui-la livremente. dia após dia, deixando­
-lhe tão-sõmente o direito de a ela submeter-se diàriamen­
te, numa reiteração que em vez de liberdade se tornou 
servidão. 
Através destas diversas análises, a começar pelas de 
Ernest Bloch, de P. Alphandéry e de A. Dupront, percebem­
-se os caracteres originais do projeto revolucionário que po­
demos ordenar em tôrno de duas noções principais : totali­
dade e historicidade. A princípio, o projeto revolucionário 
constitui totalização e universalidade. Envolve todo o ho­
mem e, indo além da ordem social que pretende renovar, 
ambiciona comunicar sua visão do mundo nôvo a tôda a hu­
manidade. Relaciona-se êste estatuto particular com seu ou­
tro caráter : é, a um tempo, profundamente incrustado na his­
tória e situado fora dela: tem seu próprio passado e seu por­
vir singular. 
Totalidade e historicidade específica estão intimamente 
ligadas ao projeto revolucionário e permitem assim atribuir 
à revolução uma fisionomia individual na espêssa massa dos 
processos coletivos de transformações sociais e mentais, al­
guns dos quais coexistem no projeto revolucionário com êste 
ou aquêle aspecto das mesmas. Tentaremos, portanto, efe­
tuar uma demonstração conjunta e interligada dos paralelos 
e das diferenças; será lícito situá-la, de início, por referên­
cia ao sabor único que tem a revolução popular para o pró­
prio revolucionário: êste torna seu projeto individual e o 
projeto coletivo, no qual se vê ao mesmo tempo abolido e 
35 
exaltado, irredutíveis às categorias empobrecedoras da contra­
-revolução que destrói, assim como às da sociologia que trun­
ca ou mutila. O revolucionário conhece sua revolução, como 
o miserável conhece sua miséria (1) . 
A análise da totalidade do projeto revolucionário será 
colhida em filósofos - Hegel, Marx, Lukacs - por um pro­
cesso cuja razão será conveniente explicar sucintamente: a 
sociologia das revoluções não deve deixar de privar-se do 
concurso da filosofia a fim de precisar suas categorias fun­
damentais; será somente sob esta condição que ela poderá 
conservar-se numa inteligibilidade que a acumulação de refe­
rências fatuais não basta, nem de longe, para constituir. Co­
mo é natural, a análise da historicidade específica, por sua 
vez, partirá da intuição profunda dos próprios historiadores. 
1 - Projeto revolucionário e totalidade 
"Transformar a vida" 
ARTHUR RIMBAUD 
O apêlo à cidade futura, a fé ativa em um mundo me­
lhor, circunscreve o projeto revolucionário,afastando-o, ao 
( 1 ) Na verdade, bastaria continuar citando Péguy. Totali­
dade: "As revoluções só assumem alguma proporção, só começam 
a obter êxito quando pretendem derrubar, transformar todo um 
sistema social, moral e mental . . . uma revolução nada represen­
tará a não ser que signifique a introdução de um nôvo plano; a 
não ser que implique uma nova maneira de encarar as coisas, urna 
nova visão, tôda uma vida nova . . . uma revolução só é revolução 
quando é integral, total, global, absoluta . . . " Historicidade : 
"Uma revolução representa o apêlo de urna tradição menos per­
feita . . • um ultrapassar em profundidade, uma pesquisa em fon­
tes mais profundas; um recurso, no sentido literal da palavra" 
( Cahiers de la Quinzaine. Advertência no Cahier XI da 5.9 
série) . 
36 
mesmo tempo, de uma indeterminação desnorteante para o 
intérprete que vê alinharem-se na mesma categoria o sonho 
pequeno-burguês da Frente Popular francesa, o combate dos 
guerrilheiros nos maq11is do Vietnã ou dos países andinos, 
a industralização em escala continental - tal como a da 
China de Mao Tsé-tung - e a ação rica e diversa dos "pro­
testadores" ocidentais cansados das sociedades de dinheiro. 
E, portanto, indispensável um critério de classificação que 
estabeleça a separação entre as aspirações mais ou menos 
vagas de uma coleção de indivíduos ou de pequenos grupos 
e a lenta ou brusca concretização de um projeto coletivo nu­
ma revolução em ação. Este critério talvez possa ser encon­
trado na noção de totalidade-universalidade do projeto revo­
lucionário. 
Este diz respeito a todo o homem e a tudo do homem 
no conjunto social. Afirma, logo de saída, sua vocação para 
o universal, como já acontecia com Rousseau: "Aquêle que 
ousa empreender a tarefa de instituir um povo, enuncia o 
Contrato Social, deve se sentir em condições de mudar, por 
assim dizer, a natureza humana, de transformar cada indi­
víduo que, por si mesmo, é um todo perfeito e solitário, em 
parte de um todo mais amplo, do qual êste indivíduo rece­
ba, de certa forma, a vida e o ser." Marx afirmará sua con­
vicção de que a revolução há de produzir por si mesma "uma 
modificação nas condições e nas relações humanas e uma 
transformação da personalidade", e Malraux irá assim carac­
terizar Saint-Just, o revolucionário por excelência: "Em seu 
tempo, que representou uma das maiores épocas da esperan­
ça, ninguém esperou com mais paixão transformar o homem, 
compelindo-o a uma epopéia transfiguradora". Visto que 
seu predicado e seu objeto confundidos são o homem, o pro­
jeto revolucionário só pode situar a transformação que traz 
consigo no nível da totalidade e da universalidade: só se 
conforma com a idéia de um homem amesquinhado por um 
excesso de alienações (especificadas no projeto marxista) a 
fim de liberá-lo e transfigurá-lo em homem total, em pie-
37 
na posse de si mesmo e do mundo (1) . Podemos assim ca­
carterizar os líderes revolucionários mais autênticos como sen­
do aquêles dentre os condutores de revoltas que souberam 
conciliar em seu próprio íntimo a dupla exigência de repos­
sessão do mundo e de repossessão de si mesmos: Münzer, 
mas também Pedro o Eremita; Saint-Just, mas também Babeuf; 
Lênine e Mao Tsé-tung, mas também Karl Liebknecht e Rosa 
Luxemburgo, assim como hoje em dia, sem dúvida, os obscuros 
chefes guerrilheiros na África e na América Latina. E André 
Malraux, conseguindo realizar essa dupla exigência através dos 
povos de seus livros, como Marx, antes dêle. 
A totalidade do projeto revolucionário pertence à ordem 
da imagem e não à do sonho; à da realidade e não à da uto­
pia. l! habitada, no sentido renovado do têrmo, pelo sen­
timento do trágico (]. M. Domenach) que distingue duas 
categorias de revolucionários : os revoltados contra a ordem 
do mundo, que querem mudar essa ordem, e os revoltados 
contra o mundo, que, tendo perdido a esperança de trans­
formá-lo verdadeir3..1J?.ente, querem pelo menos transformar 
a vida cotidiana do maior número possível de homens e 
permanecem indiferentes à sua própria sorte: sabem-se vota­
dos à morte na solidão absoluta e consciente, essa morte pe­
culiar ao revolucionário e que obseda e apavora Malraux. 
Mais ainda que o marxismo, que reconhece, no entanto, seu 
próprio desencanto, o anarquismo constitui o refúgio privi­
legiado dêste niilismo revolucionário que é a revolução úl­
tima, cansada de lutar contra a história absurda e somente 
empenhada em reconquistar essa história cada dia que passa. 
"Não espero nenhum auxílio para uma revolução libertária 
( 1 ) "Criar um tipo de "homem nôvo" implica uma ação 
total, não descurando nenhum dos aspectos da vida; daí decorre 
a multiplicidade de 6rgãos de formação, de enquadramento, de 
participação, visando apressar a transformação dos indivíduos", 
escreve Albert Meister a propósito do projeto iugoslavo (So­
eialisme et autogestion) . 
38 
por parte de govêrno algum do mundo", declara em 193 6, 
no auge das discussões sôbre a internacionalização da guerra 
da Espanha, o dirigente anarquista Durruti. :e peculiar à 
atitude dos maiores líderes revolucionários um certo tipo de 
fatalismo, um fatalismo particular, pois nunca é feito de de­
sespêro ou de desânimo, mas apenas de lucidez entristecida 
e, aliás, as mais das vêzes, muito discreta: a conversão dos 
espíritos e dos corações, as transformações mentais e sociais 
não obedecem a ordens como se se tratasse de exercícios mi­
litares, e a repressão e a morte estão mais próximas de alcan­
ce que a criação do homem nôvo. "Cabe a vós decidir se o 
povo francês deverá ser comerciante ou conquistador", lança 
Saint-Just à Convenção. "Paris fêz um pacto com a morte", 
escreve o fourn:il officiel de la C.ommune de 1871, alguns 
dias antes da Semana sangrenta. "Quaisquer que sejam as 
circunstâncias, escreve Mao Tsé-tung em 1945, "e por mais 
difíceis que sejam, o exército popular lutará até o último 
homem." Antônio Conselheiro, que funda em 1896 na 
caatinga brasileira uma república social milenarista, defen­
de-a até a última gôta de sangue: as tropas da reconquista 
social triunfam, no derradeiro ataque, apenas sôbre mortos 
que não abandonaram sua revolução e lhe prolonga até hoje 
a presença obsessiva nas lendas do Sertão. 
A totalidade do projeto revolucionário possui também 
sua armadura propriamente filosófica, reconhecivel com di­
versos conteúdos, em Marx, Hegel e Lukacs. 
Hegel jâ assinalava que a revolução "trespassa" os 
individuos e "soergue da esfera que lhe era atribuida" na 
ordem antiga cada consciência singular : envolvida doravan­
te pelo projeto revolucionãrlo, esta jã não pode "atualizar­
-se a não ser num trabalho que represente o trabalho to­
tal ( . . . ) ; seu objetivo é o objetivo universal ; sua lingua­
gem, a lei universal" (Fenomenologia do Espírito ) . Hegel 
estabelece sôbre esta base o caráter totalitário e destruidor 
do Terror revolucionário, encarnação trágica da liberdade 
absoluta condenada a ser apenas "a fúria da destruição" e 
culminando no reinado da "morte mais fria e mais inslgni-
39 
ficante" - "tão vazia de sentido, acrescenta êle, quanto 
a ação de cortar uma cabeça de repolho ou de engolir um 
pouco de água" : explicar-se-á mais adiante ( infra, cap. II) 
em que ponto esta opinião pode ser refutada. Existe no 
término do projeto revolucionário totalizante, uma função 
especlfica do Terror totalitário. Existe da mesma forma, 
no cotidiano revolucionário, um traumatismo de Terror cuja 
marca está presente na reflexão de Hegel : sua análise do 
Noventa-e-Três o leva a assimilar totalização revolucioná­
ria e supressão da consciência do eu. 
Marx, a partir da famosa fórmula dll.S Teses s6bre 
Feuerbach - "os filósofos não fizeram mais que interpre­
tar o mundo de diferentes maneiras; trata-se agora de 
transformá-lo" - vai conservar a concepção hegeliana da 
totalidade do projeto revolucionário; ligando-a porém à no­
ção de realidade, êle lhe transformará radicalmente o senti­
do. Ao invés deimobilizar o projeto revolucionário num 
mecanismo abstrato a que o reduzem tantos seguidores de 
um "materialismo dialético" controvertido, Marx o situa 
no âmago do mundo real, no cotidiano mais imediato e ao 
mesmo tempo, numa totalidade perpêtuamente atuante. l!'l 
êste o fundo da distinção de base que êle opera entre a 
revolução "politica" cujo ponto de vista é o do Estado, de 
uma entidade abstrata que só existe graças à sua separação 
da vida real", em que se limita a substituir uma classe do­
minante por outra, sem atingir em ponto algum a natureza 
social do homem - e a revolução "social" que "possui um 
caráter de universalidade, visto constituir um protesto do 
homem contra sua vida inumana, e porque parte do ponto 
de vista do individuo pa..-rticular real e também porque a 
cidade social da qual o individuo recusa doravante perma­
necer separado representa a verdadeira natureza social do 
homem, a natureza humana" ( 1 ) . O projeto revolucioná­
rio, como o próprio homem revolucionário, está no mundo 
que existe de chôfre para êle, em sua totalidade, ou como 
diz Marx, em sua universalidade. 
G. Lukacs retornará esta tese marxista fundamental em 
História e Ocmsciéncia de Classe, e vai mostrar, de acôrdo 
com Marx e contrariando Hegel ( na medida em que a to­
talização hegeliana constitui, afinal de contas, o estatuto 
( 1 ) Artigo do Vorwaerts ( 1844 ) , citado por M. RUBEL 
na coletânea de MARX, Pour une éthique socialiste. 
40 
de uma filosofia totalitária da história) , que o projeto re· 
volucionário, por êle denominado "objetivo final", "não é 
um estado que espera o proletariado ao término do movi­
mento" : "Não é um estado que se possa, por conseguinte, 
esquecer tranqüilamente nas lutas cotidianas e invocar quan­
do muito nos sermões donunicais como um momento de eleva­
ção oposta às preocupações diárias : não é um "dever", umo. 
"idéia" que desempenharia um papel regulador com rela­
ção ao processo "real". O objetivo final é, antes, esta re­
laçllo com a totalidade (com a totalidade da sociedade con­
siderada como processo) pela. qual cada momento da luta 
adquire um sentido revolucionário; uma relação inerente a 
cada momento precisamente em seu aspecto cotidiano, seu 
aspecto ma.is simples e mais prosaico ( . . . ) ; assim, êsse 
momento da luta coitidlana se eleva do nivel da facticldade. 
da simples existência, para o da realidade" ( 1) . Ao caracte­
rizar o laço profundo existente entre o cotidiano e a tota­
lidade do projeto revolucionário, Lukacs estabelece sua rea­
lidade absoluta, separa-o do mito e da utopia ( cf. infra) . 
Instala-o na existência concreta da revolução com estatuto 
plenário, coloca-o face a face com a revolução atuante, sem 
escapatória, nem recurso. Ernesto Guevara - o Ohe -
não separa a "consciência da necessidade da tra.nsfo1·ma­
ção revolucionária" da. "certeza de sua possibilidade". 
A totalidade do projeto revolucionário o institui como 
realidade necessária e ao mesmo tempo traz ainda mais im­
plicações : aposta vital sôbre o homem nos confins de seu de-
( 1 ) História e Consci;ncia de Classe. Uma página da 
Te,oria do Romance (obra de Lukacs, anterior à precedente) ilus· 
tra ainda melhor talvez esta noção de totalidade-realidade ab­
soluta no sentido em que ela a vincula à historicidade particular 
do projeto revolucionário : "Não há possibilidade de haver to­
talidade a não ser onde tudo já é homogêneo antes de ser in­
vestido pelas formas, onde as formas não constituem opressões 
mas a simples tomada de consciência, a eclosão de tudo aquilo 
que, no âmago, do que deve receber forma, permanecia latente 
com.o uma obscura aspiração." A concepção fenomenológica da 
"sintese universal do tempo transcendental" também não separa 
em HUSSERL totalidade e consciência imanente da duração 
(Segunda Meditação Cartesiana) . 
41 
vir como na banalidade mais imediata de seu cotidiano, o proje­
to revolucionário implica que a revolução se basta a si mesma. 
Ela parece fazê-lo pelo menos nos símbolos de sua lingua­
gem; no auge do Terror de Noventa e Três, legitimava-se 
o envio de suspeitos à guilhotina com a só expressão, cúmulo 
do totalitarismo até em seu pudor, de "tratamento revolucio­
nário". Ela o faz na medida, crescente com o seu curso, em 
que distingue o destino prometido aos puros, do destino re­
servado aos maus, segundo a lei de um maniqueísmo elemen­
tar que põe suas comodidades a serviço dos procedimentos 
do poder revolucionário, condenado a revolucionar-se a si 
mesmo incessantemente a fim de não trair sua própria rea­
lização. O pro1eto revoluc10nário é assim, em sua totalida­
de, expressamente totalitário; não nos equivoquemos, pois é 
conveniente despojar êste vocábulo da acepção trivial que lhe 
atribui a contra-revolução contemporânea, baseando-se em pa­
ralelos sumários entre stalinismo e hitlerismo. O projeto re­
volucionário exclui, por hipótese, a destruição do homem, 
visto ser êle a sua regenerescência: e não o destrói, de fato, 
a despeito dos horríveis empreendimentos de alguns de seus 
dirigentes. Muito acima de qualquer propaganda, é o que 
demonstra de maneira mais que suficiente a crônica atuaJ 
da U . R . S . S . 
2 - Projeto revolucionário e hiitoricidaáe 
"Os séculos impelem, diante de si, desesperadas, 
A3 revoluções, monstruosas marés, 
Oceanos formados com as lágrimas do gênero humano" 
VrcTOll Huoo 
Escrito em 1946 
A revolução surge simultâneamente como ruptura e des­
vio da história. Hugo atribui a Enjolras, o homem que "tra­
zia em si a plenitude da revolução", uma frase que resume 
42 
o outro caráter essencial do projeto revolucionário: "O 
século XIX é grandioso, mas o século XX será feliz. Nada 
mais haverá então que se assemelhe à velha História ( . . . ) , 
não se terá mais que recear a fome, a exploração, a prosti­
tuição por desgraça, a miséria por falta de trabalho, e o ca· 
dafalso, e a espada, e as batalhas, e tôdas as rapinagens do 
acaso na floresta dos acontecimentos. Poder-se-ia quase di­
zer: não haverá mais acontecimentos. Seremos felizes. O 
gênero humano cumprirá sua lei, como o globo terrestre 
cumpre a dêle . . . (Os Miseráveis, V. l, v. ) . 
A s revoluções não representam nem uma sucessão de 
datas, nem uma acumulação de atos : são - ou procuram 
ser - um "nôvo cartear" da história, um empreendimento 
original em que nada mais tem sentido porque tudo passou 
a ter um nôvo sentido que repudia e desvaloriza os compor· 
tamentos e as atitudes antigas. "Transformar a vida e o 
mundo" implica a criação coletiva cotidiana de um nôvo "con­
junto histórico situado na "duração" que liga a história de 
outrora à história de hoje - o cotidiano - e ao mundo de 
amanhã: o projeto revolucionário é imanente no mundo e, 
ao mesmo tempo, ingênua tomada de posse do cotidiano da 
vida. A cotidianidade da revolução atuante e a imanência 
do projeto revolucionário não se opõem: são as duas faces 
de uma mesma realidade. A "República social", esta ver· 
são francesa do projeto revolucionário, oferece um belo 
exemplo
. 
desta ambivalência: assim que é percebida em 
sua realização possível (para o sociólogo, o problema não 
está em dissertar sôbre as condições de sua realização efe­
tiva) , ela se imobiliza na eternidade de seu projeto. :e o 
fim da história, doravante despida de sentido por haver 
realizado êsse sentido. :e a história que, na acepção própria 
da expressão popular, já "cumpriu o seu tempo" . Nessas 
condições, só o que lhe resta é durar eternamente em suas 
promessas e em seus ritos. Babeuf denuncia os "governan· 
tes" que "só fazem revoluções para continuar governan· 
do para sempre". "O ato insurgente" por êle codifi-
43 
cado fará "enfim uma revolução com o objetivo de asse­
gurar para sempre a felicidade do povo pela verdadeira de­
mocracia" . O projeto revolucionário é ilimitado, no senti­
do em que não pode estabelecer para si mesmo nenhum pra­
zo cronológico : sua ausência de historicidade (na acepção 
clássica do vocábulo) é um dos aspectos de

Outros materiais