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1 Prelúdio: o Mundo Romano Transformado (c.300-c.600) 1 Bárbara Rosenwein No século III, o Império Romano cercava o Mar Mediterrâneo como uma pinça (veja o mapa 1.1). Mais fino na costa do Norte da África, ele era largo na atual Espanha, Inglaterra, Gales, França e Bélgica, além de se prolongar para o Sul do rio Danúbio, seguindo o rio para o Leste, ocupando o que hoje conhecemos como Balcãs (Sudeste Europeu, inclusive a Grécia), cruzando o Helesponto e aprofundando-se no atual território da Turquia, boa parte da Síria, e todo o moderno Líbano, Israel e Egito. Todo este espaço, exceto a atual Itália, fazia parte do que os Romanos chamavam de “províncias”. Este foi o Império Romano que "declinou e caiu", numa famosa frase proclamada pelo historiador do século XVIII Edward Gibbon. Mas, de fato, seu veredito estava errado. O Império jamais foi mais vivo do que em seu fim. É verdadeiro que as antigas elites das cidades, especialmente da própria Roma, reclamaram profundamente sobre as mudanças que ocorreram entre c.250-350. Eles testemunharam o fim de sua liderança política, militar, religiosa, econômica e cultural, que foi transmitida para as províncias. Mas, para os provinciais (os romanos que viviam fora da Itália), este foi, de muitas maneiras, um período de ápice, a vinda de uma era por muito adiada. Eles não reclamaram quando o imperador Diocleciano (r.284-305) dividiu o Império Romano em quatro partes, cada uma governada por um homem diferente. Este governo, chamado de Tetrarquia, reconhecia tacitamente a importância das províncias. Alguns, porém, reclamaram sobre a perda de “seu lugar ao sol”, como ocorreu entre c.400-500, para os povos que viviam longe, que os romanos chamavam de “bárbaros”. Por sua vez, os bárbaros ficaram honrados em tornarem-se os herdeiros do Império Romano, ainda que eles tenham contribuído para sua transformação (c.450-600). 1 O texto original encontra-se em ROSENWEIN, Bárbara. Prelude: The Roman World Transformed (c.300-c.600) In: __________. A Short History of the Middle Ages. Toronto: Toronto University Press, 2014, pp. 1-36. Esta tradução adaptada, a cura do Prof. Dtdo. Renan Marques Birro (UNIFAP), foi realizada para fins didáticos apenas para ministrar a disciplina “História Medieval” desta instituição. As páginas seguem o texto original, exceto na conclusão das sentenças. Email: rbirro@usp.br. 2-3 4 A Provincialização do Império (c.250-c.350) O Império Romano era muito grande para ser governado por apenas um homem em um lugar, exceto em momentos de paz. Isso ficou claro durante a “crise do século III”, quando dois grupos de direções diferentes chegaram às fronteiras do Império. Do Norte, para além do Reno e do Danúbio, vieram os povos que os romanos chamaram de “bárbaros”; do Leste vieram os persas. Para conter esses ataques, os governantes romanos responderam com reformas de ampla envergadura, que colocaram as províncias em proeminência. Acima de tudo, o governo expandiu o exército, estabelecendo novas forças móveis enquanto reforçava o exército permanente. Soldados-construtores erguiam novas fortificações, cidades foram circuladas com muralhas, fazendas ganharam torres e cercas. Não era fácil encontrar recrutas suficientes para adotar esse sistema de defesa expandido. Antes da crise, as legiões tinham sido perpetuadas por si. Estes soldados, retirados principalmente das famílias provinciais locais, assentaram-se permanentemente nas fronteiras e criaram seus filhos, que se tornavam a próxima geração de recrutas. Porém, esse suprimento de homens estava em crise: a taxa de nascimento declinou e, entre c.252-267, uma epidemia de sarampo devastou a população. Deste modo, os recrutas vieram de mais longe, da Germania (a região para além das fronteiras do Império) e mais além. De fato, antes disso, guerreiros germânicos eram membros regulares das unidades do exército romano; Eles cumpriam suas demandas e depois retornavam para sua terra. Mas, no século III, o governo romano reorganizou o processo. Eles assentaram germânicos e outros grupos “bárbaros” no Império, dando-lhes terras em troca de serviço militar. O termo “crise do século III” refere-se não apenas às guerras que o Império lutou em suas fronteiras, mas também para a crise política de sucessão: mais de vinte homens reclamaram o título de imperador e perderam suas vidas entre os anos de 235 e 284. A maioria desses homens foram criaturas do exército, escolhidos para governar por suas tropas. Imperadores que competiam frequentemente ampliavam sua autoridade para diferentes regiões ao mesmo tempo. Eles tinham pouco interesse na cidade de Roma, que, de qualquer forma, estava muito longe dos campos de guerra que serviam como quartéis generais. Por esta razão, o imperador Maximiniano (r.286-305) transformou Milão na nova cidade capital, erguendo um palácio imperial, banhos, muros e circo. Logo outras cidades favoritas além de Milão, como Trier, Sárdica, Nicomédia e, eventualmente, Constantinopla, lançaram sombras sobre Roma. Assim, o novo exército e os novos assentos imperiais pertenciam as províncias. A primazia das províncias foi posteriormente aperfeiçoada pela necessidade de alimentar e suprir o exército. Para atender a demanda de dinheiro rápido, o governo romano diminuiu a quantidade de prata por outros metais mais baratos na moeda. Conquanto prático num prazo curto, tal política produziu uma inflação severa. Pressionado pela necessidade, o Estado aumentou as taxas e usou seu poder para requerer bens e serviços. Para vestir as tropas, ele confiscava uniformes; Para armar os homens, ele estabelecia uma cota de Estado para os armeiros. Alimentos deveriam ser produzidos e entregues ao exército; aqui o Estado também dependia de padeiros, agricultores e mercadores. Novas taxas foram criadas para a terra e per capita, que passaram a ser coletados intensamente. 5 A riqueza e o labor do Império moviam-se, deste modo, inexoravelmente para as províncias, as “zonas quentes” onde os exércitos lutavam. Organizado para a guerra, o Império inteiro tornou-se militarizado. Em meados do século III, o imperador Galieno (r.253-268) proibiu a aristocracia senatorial - a antiga elite romana - a liderar o exército; homens das fileiras foram promovidos para comando em seu lugar. Não é de se estranhar que esses homens também se tornassem imperadores. Eles trouxeram novos gostos provinciais e sensibilidades para verdadeiro coração do Império, como veremos. Diocleciano, um provinciano da Dalmácia (atual Croácia), colocou a crise sobre controle, e Constantino (r.306-337), proveniente da Moesia (atual Sérvia e Bulgária), encerrou a crise. Para fins administrativos, Diocleciano dividiu o Império em quatro partes, posteriormente reduzida a duas partes. Embora os imperadores que governassem essas divisões devessem supostamente conferenciar sobre todos os assuntos, a divisão administrativa foi uma prévia das coisas que viriam, quando as porções oriental e ocidental do Império seguiram caminhos diferentes. Entrementes, as guerras de sucessão imperial cessaram com o estabelecimento da dinastia de Constantino, e a estabilidade trouxe um fim às guerras fronteiriças. Uma nova religião O império de Constantino foi planejado para ser um Império Romano restaurado. Todavia, nada havia de muito diferente em relação ao antigo Império Romano. O governo de Constantino marca o início do que os historiadores chamam de “Antiguidade Tardia”, um período transformado pela cultura e religião das províncias. A província da Palestina - para os romanos da Itália uma cortina d'água distante - tinha sido, de fato, uma "cama quente" de criativas ideias religiosas e sociais no período que nós chamamos de primeiro milênio. Afundados na dominação romana, experimentandonovas noções de moralidade e novas formas de vida éticas, os judeus da Palestina deram à luz a novos grupos religiosos de grande originalidade. Um coadunou em torno de Jesus. Após sua morte, e sob o ímpeto do judeu-tornado-cristão Paulo (†c.67), um novo braço do monoteísmo sob o nome de Jesus foi ativamente pregado aos gentios (não-judeus), não apenas na Palestina, mas também além. O núcleo dessa crença foi que os homens e mulheres foram salvos - redimidos e permitidos a adentrar na vida eterna no Paraíso - pela fé em Jesus Cristo. No início, o Cristianismo foi quase indiferente para os romanos de elite, que estavam devotados aos deuses que eles serviam durante o período de conquista e prosperidade. O Cristianismo não atraiu até mesmo as classes mais baixas, que estavam firmemente agarradas às práticas religiosas tradicionais. Os romanos nunca insistiram que os provinciais que fossem conquistados abandonassem suas crenças: eles apenas inseriam os deuses oficiais romanos ao panteão local. Para a maioria das pessoas, tanto ricos quanto pobres, a rica textura da vida religiosa no nível local foi simultaneamente confortável e satisfatória. Nos sonhos eles encontravam seus deuses pessoais, que os serviam como guardiães e amigos. Em casa eles encontravam seus deuses domésticos, evocando ancestrais familiares. Fora, nas tuas, eles visitavam templos e monumentos aos deuses, que lembravam o orgulho da cidade natal. Aqui e ali poderiam ser vistos monumentos ao “imperador divino”, erguidos pelos benfeitores ricos da cidade. Todos envolviam-se nos festivais de culto público, e essas cerimônias davam ritmo ao ano. Deste modo, o paganismo era simultaneamente pessoal, familiar, local e imperial. Mas o Cristianismo também tinha seus atrativos. Romanos e outros moradores da cidade de classe média nunca poderiam esperar fazer parte do grupo educado superior. O Cristianismo deu a eles a dignidade de substituir a elite pelos “eleitos”. A 6 educação, demorada e cara, era o ticket para a alta sociedade romana. Os cristãos, por outro lado, tinham seu conhecimento próprio sólido e mais barato. Esta era a chave para uma sociedade ainda mais “alta”. Nas províncias, o Cristianismo atraiu homens e mulheres que nunca tiveram chances de se sentir verdadeiramente romanos (a cidadania não foi garantida a todos os provincianos até o ano de 212). A nova religião era confiante, esperançosa e universal. Como o Império atravessava um período de pacífica complacência no século II, a periferia recebia influências do centro e vice-versa. Homens e mulheres que anteriormente não dispunham de horizontes para além de sua própria vila agora poderiam tomar as estradas ou comerciar, um choque cosmopolita logo às portas. Firmados nas velhas tradições, eles encontraram conforto nas pequenas assembléias (ecclesia) onde eles foram bem vindos como iguais e onde o Deus era o mesmo, não importasse de qual região o membro da igreja era proveniente. Os romanos perseguiam os cristãos, mas inicialmente apenas localmente, esporadicamente e, acima de tudo, em tempos de crise. Em certos momentos, os romanos temeram que os deuses estivessem direcionando sua fúria sobre o Império porque os cristãos não faziam os sacrifícios apropriados. De fato, os judeus também se recusavam a honrar os deuses romanos, mas os romanos poderiam usualmente tolerar - ainda que a contragosto - as práticas judaicas como parte de sua própria identidade cultural. Os cristãos, porém, diziam que o seu Deus não era apenas o deus deles, mas de todos. A maioria das perseguições oficiais do governo começou na década de 250, com a crise do século III. Entrementes, a comunidade cristã organizava-se. Em 304, às vésperas da promulgação do último grande edito persecutório de Diocleciano, quando talvez apenas 10% da população fosse cristã, muitas igrejas dotavam a paisagem imperial (veja o mapa 1.2). Cada igreja dispunha de dois grupos. Na parte inferior havia o povo (os laicos, do grego laikos, que significa “do povo”). Acima deles havia os clérigos (de kleros, ou “porção do Senhor”). Por sua vez, o clero era supervisionado pelo bispo (do grego episkopos, “over-seer”), assistido por seus presbíteros (do grego presbyteros, “anciãos”, ou seja, os clérigos que serviam com o bispo), diáconos e servidores menores. Alguns bispos, como o de Alexandria, Antioquia, Cartago, Jerusalém e Roma (este último tornou-se o papa), eram mais importantes que os outros. Nenhuma religião estava melhor preparada para o reconhecimento oficial. Este direito foi recebido em 313, no assim nomeado Edito de Milão. Os imperadores Licínio e Constantino declararam a tolerância a todas as religiões imperiais, “pois assim qualquer divindade entronada nos céus poderá ser grata e favorável a nós”. De fato, o Edito ajudou os cristãos acima de tudo: eles tinham sido perseguidos e, agora, como consequência da tolerância declarada no Edito, eles recuperavam sua propriedade. Constantino foi o “cabeça” por trás do Edito: ele foi criado pouco após a triunfante batalha do rio Milviano em 312, contra Maxêncio, rival do imperador, uma vitória que ele atribuiu ao Deus dos cristãos. 7 Constantino parece ter se convertido ao Cristianismo; ele certamente o favoreceu, construindo e favorecendo igrejas cristãs, garantindo que as propriedades eclesiais tomadas durante as perseguições fossem devolvidas e dando privilégios especiais aos padres. Sob ele, a antiga cidade grega de Bizâncio se tornou a nova cidade cristã, a residência dos imperadores e nomeada em homenagem ao próprio imperador: Constantinopla. O bispo de Constantinopla se tornou um patriarca, isto é, um “superbispo”, igual ao bispo de Antioquia e Alexandria, mas não tão importante quanto o bispo de Roma. Numa das atitudes mais notórias de sua carreira, Constantino convocou e presidiu o primeiro concílio ecumênico (universal) da Igreja, o Concílio de Nicéia (325). Ali os bispos reunidos discutiam sobre a lei canônica e as doutrinas da Igreja cristã. Após Constantino, foi apenas uma questão de tempo até que a maioria das pessoas considerasse a conversão boa e necessária. Conquanto muitos imperadores esposassem formas de Cristianismo heréticas (inaceitáveis), e um (Juliano, o "apóstata) professasse o paganismo, o fim estava próximo. Numa série de leis que tiveram início em 380 com o Edito de Tessalônica e continuaram durante o reino do imperador Teodósio (r.379-395), este líder declarou que a forma do Cristianismo determinado pelo Concílio de Nicéia seria aplicado a todos os romanos; Ele ainda baniu todas as formas anteriores de culto público e privado. O Cristianismo tornou-se, assim, a religião oficial do Império Romano. Em alguns locais, grupos cristãos começaram a atacar templos pagãos regionais. 8 A partir destes modos - via lei, coerção e convicção -, uma religião frágil provinda da mais recôndita das províncias triunfou em todas as partes do Império Romano. Mas o “Cristianismo” não é simples ou apenas um. No Norte da África, os Donatistas - que se consideravam mais puros que os outros cristãos porque não retrocederam durante as perseguições - lutaram ferozmente com universais durante todo o século IV, desejando matar e morrer de tal maneira que “os relapsos” não poderiam “manter cargos eclesiásticos novamente”. Como o paganismo saiu de cena, os desacordos cristãos afloraram: qual era a natureza de Deus? Onde estava Deus e onde o sagrado poderia ser encontrado? Como Deus se relaciona com a humanidade? Nos séculos IV e V, os cristãos lutaram veementemente entre si sobre a doutrina e a localização do sagrado. Doutrina Os chamados “pais da Igreja” foram os vitoriosos da batalha sobre a doutrina. Ainda no tempo de Constantino, santo Atanásio (c.295-373), então secretário do bispo de Alexandria e posteriormente como bispo, liderou o desafio contraos crentes do Cristianismo “vizinho”. Ele os chamou de “arianos” em vez de cristãos, sobretudo após a ascensão do clérigo Ário (c.250-336), outro alexandrino e foco competidor de lealdades locais. Atanásio promoveu suas leituras no Concílio de Nicéia (325) e venceu. É por esta razão que Atanásio é o “pai” do Catolicismo ortodoxo e Ário é um “herético”. Para ambos, Atanásio e Ário, deus é uma trindade, ou seja, três pessoas em um: o Pai, o Filho e o Espírito Santo. O debate, porém, corria sobre a natureza dessas pessoas. Para os arianos, o pai era somente Deus-Pai, enquanto o Filho (Cristo) foi criado. Cristo foi, no entanto, carne, mas não “carne"”, ou seja, nem puramente humano ou apenas divino, mas um mediano entre os dois. Para Atanásio e os bispos reunidos em Nicéia, isso era uma heresia - a “escolha” errada (a raiz do termo grego hairesis) e uma fé danada. O Concílio de Niceia acrescentou na oração, deste modo, alguns elementos: “Nós acreditamos em um Deus, o Pai todo-poderoso [...] e em seu único filho, Jesus Cristo, o filho de Deus, pertencente ao Pai [...] pertencente mas não feito, de mesma substância [homousios] do Pai”. Ário foi condenado e banido. Sua doutrina, não obstante, persistiu: ele foi o braço do esforço cristianizador de Úlfila (c.311-382), um bispo godo com conexões romanas que pregou aos godos ao longo do Danúbio e, ao mesmo tempo, que traduziu a Bíblia para a língua gótica. O Arianismo foi apenas a ponta do iceberg. De fato, o período entre 350-450 pode ser chamada de “Era das doutrinas competitivas”. Os concílios reunidos da Igreja, principalmente Éfeso (431) e Calcedônia (451), delimitaram ainda mais os contornos da doutrina oficial, cada vez mais múltipla. Monofisitas (um termo conveniente para todos que se opunham aos decretos de Calcedônia) mantinham que a “carne” que deus assumiu como Cristo era divina. Essa visão eventualmente tendia a assimilar a carne humana a carne de Cristo, e então divinizar a humanidade, o que deu origem as igrejas cristãs armênia, cóptica (egípcia) e etíope. Por outro lado, Pelágio (da Britania, †.c.418) estava menos interessado na natureza de Cristo do que na da humanidade: para ele o batismo removia todos os pecados, e assim as pessoas poderiam seguir Deus sob sua própria vontade. Santo Agostinho (354-430), bispo de Hipona e o mais influente homem da Igreja daquele tempo, opunha-se inteiramente ao que Pelágio defendia. 9 Para Agostinho, os seres humanos não eram capazes de nada sem a graça de Deus: “Venha, Senhor, aja sobre nós, nos erga e nos chame novamente! Queime-nos, nos atinja, permitas que tua doce fragrância cresça em nós”. Os debates doutrinais eram discutidos em todos os lugares de maneira passional. Gregório de Nissa (c.335-395) testemunhou que, em Constantinopla, Se alguém pergunta a outro por mudança, ele irá discutir ou que o Filho foi criado, ou que o Filho não foi criado. Se ele perguntar sobre a qualidade do pão, você irá receber a resposta que “o Pai é maior, o Filho é menor”. Se você sugerir que um banho é desejável, lhe dirão “nada havia até que o Filho fosse criado”. Como os argumentos sobre os esportes hoje em dia, essas disputas foram mais do que fofocas: elas identificavam lealdades locais. Elas também traziam Deus a terra. Deus tinha diminuído a si mesmo para tomar a forma humana. Saber como ele fez isso e o que significava para o resto da humanidade foram questões do dia. Para esses debates, santo Agostinho escreveu a maioria das respostas definitivas do Ocidente, ainda que elas tenham sido modificadas e retrabalhadas durante os séculos. Na Cidade de Deus, um grande e notório trabalho, ele definiu duas cidades: a terrena, onde nossos pés estão plantados, onde nascemos, onde aprendemos a ler, casamos, envelhecemos e morremos; e a celestial, onde nossos corações e mentes estão fixados. A primeira, a “Cidade do Homem” é passageira, sujeita ao fogo, guerra, fome e doenças; a segunda, a “Cidade de Deus”, é a oposta. Apenas ali a verdadeira e eterna felicidade pode ser encontrada. A primeira, porém, ainda que imperfeita, é onde as instituições da humanidade (igrejas locais, escolas, governo) fazem a ligação com a segunda. Assim, “se alguém aceita a vida atual de tal maneira que ele a usa tendo em mente a visão da Cidade de Deus [...] este homem pode sem dúvidas ser chamado de feliz, mesmo agora”. Nas mãos de Agostinho, as velhas estruturas do Mundo Antigo foram reusadas e reorientadas numa nova sociedade cristã. A fonte da graça divina A Cidade do Homem era afortunada. Ali Deus havia instituído sua Igreja. Cristo tinha dito a Pedro, o principal de seus apóstolos (seus “mensageiros”): Tu és Pedro [de Petros, ou “pedra” em grego], e sobre esta pedra edificarei minha igreja, e os portões do inferno nunca prevalecerão sobre ela. Eu te darei a chave do reino dos Céus e o que ligares na terra será ligado nos céus, e o que desligares na terra será desligado nos céus (Mt 16:18-19). Ainda que interpretado de maneiras diversas (principalmente pelos papas de Roma, que interpretaram que, como sucessores de Pedro, o primeiro bispo de Roma, eles guardam as chaves), ninguém duvidava que esta declaração confirmava a supra importância dos poderes de ligar (impor penitência) e desligar (perdoar) pecadores que estavam nas mãos dos herdeiros de Cristo, os clérigos e bispos. 10 Na Missa, a liturgia central da Igreja terrena, o pão e o vinho sobre o altar tornam-se o corpo e o sangue de Cristo, a “Eucaristia”. Através da Missa o fiel se junta ao outro, à alma dos mortos, que são lembrados na liturgia, e ao próprio Cristo. A Eucaristia era a principal fonte da graça divina. Havia outras. Acima de tudo, havia certas pessoas tão amadas por Deus e imbuídas da sua graça que eles foram tomados como modelos de virtude e poderosos milagreiros. Estes eram os santos. Na Igreja primitiva, os santos foram principalmente os mártires, mas o martírio terminou com Constantino. Os novos santos dos séculos IV e V tinham que encontrar meios de serem mártires ainda vivos, como são Simeão (c.390-459), eles subiam em pilares e lá ficavam por décadas; ou, como santo Antão (250-356), eles entravam em tumbas e lutavam, heroicamente e com sucesso, contra os demônios (cuja existência era pouco questionada em época como a existência dos germes atualmente). Eles foram os "atletas de Cristo", admirados amplamente pela comunidade circundante. Purgados dos pecados pelos seus rigores ascéticos - expulsando as possessões, jejuando, orando, não dormindo, não fazendo sexo - homens e mulheres santos ofereciam modelos de conduta. Asella, com doze anos e nascida de uma família romana de alto escalão, foi inspirada por esses modelos a permanecer virgem: ela se trancou numa pequena cela e se isolou do mundo onde, como registrado por são Jerônimo, “o jejum era seu prazer e a fome seu deleite”. Para além dos modelos de virtude cristã, os santos intercediam com Deus a favor de seus vizinhos e agiam como guardiães da paz. Santo Atanásio contou a história de santo Antão: após anos de solidão e asceticismo o santo emergiu Como se de algum santuário, iniciado nos mistérios e cheio de Deus [...] Quando ele viu a coroa [aguardando-o], ele não se preocupou, mas ele regozijou-se e agradeceu a muitas pessoas [...] Ademais, através de Antão, Deus curou muitos corpos sofredores, e outros ele purificou dos demônios. Ele deu a Antão a graça do discurso, e então ele confortou muitos que estavam tristes e reconciliou amigos que estavam brigados. Curador de doenças e de disputas, Antão trouxe a paz espiritual, física e cívica. De fato, isso era poder. Mas quem poderia controlar isso? O bispo Atanásio de Alexandria reclamou o legado de Antônio escrevendo sobre ele. Naquela época, escrever era uma das maneiras de se apropriar do poder dos santos. Quando homense mulheres santos morriam, seu poder vivia em suas relíquias (qualquer coisa que eles deixavam para trás: seus ossos, cabelo, roupas, certas vezes até mesmo o pó de suas tumbas). Pessoas piedosas sabiam disso bem. Eles desejavam acessar esses “mortos especiais”. Romanos ricos e influentes construíam suas necrópoles santas simplesmente movendo os ossos santos para dentro delas. 11 Homens como santo Ambrósio (339-397), bispo de Milão, tentavam fazer os clérigos, não apenas os laicos, os overseers de relíquias. Ambrósio tinha recém- descoberto as relíquias de Gervásio e Protásio: ele as moveu de seu local de descanso original para sua nova catedral e os enterrou sob o altar, o foco da adoração comunal. Deste modo, ele aliou a si próprio, seus sucessores e toda a comunidade cristã de Milão com o poder destes santos. Mas os laicos continuaram a encontrar formas privadas de manter pedaços do santo próximo a eles, como os relicários posteriores atestam. Arte das Províncias para o Centro Assim como o Cristianismo veio da periferia para transformar o centro, o mesmo ocorreu com a tradição artística provincial. A arte clássica romana, exemplificada muito bem pelas pinturas murais de Pompéia (imagens 1.1., 1.2 e 1.3) foram categorizadas pela luz e sombra, uma sensação de atmosfera (terra, céu, ar, luz), além da sensação de movimento, ainda que em meio à calmaria; figuras “plásticas” que sugeriam volume e peso real no cenário, como interação, tocando algo ou alguém, ou ainda conversando, preocupando-se pouco ou nada com o observador. A figura 1.1. descreve um evento bem conhecido pelos romanos a partir de seus mitos. Um homem bonito remove o véu que cobre uma bela mulher, expondo seu corpo nu para o deleite mútuo. Um garoto alado, com uma alça sobre o ombro e uma flecha na mão, voa próximo, enquanto outro garoto, sob o casal, brinca com o elmo do homem. Qualquer romano poderia reconhecer esta “iconografia” - o significado simbólico dos elementos: o homem era o deus Marte, a mulher a deusa Vênus, e os dois garotos são seus filhos, sendo o alado Cupido. Vênus era casada com Vulcano, mas ela e Marte tinham um caso de amor até que Vulcano os prendeu numa rede e os exibiu aos outros deuses em sinal de vergonha. O artista escolheu descrever o momento sedutor antes do embaraço. Ainda que a lenda tenha sido ilustrada para o deleite dos observadores, as figuras agem como se ninguém as observasse. Elas são auto absortas, como se uma janela opaca as mantivesse em seu mundo privado. Este mundo é reconhecidamente natural, o mesmo em que os observadores viviam. Na imagem 1.2, uma íngreme montanha é o foco. Um pastor, pintado como num esboço, puxa uma cabra para um santuário, talvez para sacrificá-la. À esquerda, outro caprino pasta. Sombras de ovelhas e cabras foram dispostas ao longe. A cena é baseada na observação do mundo natural, aqui interpretado tanto como tranquilo quanto grande. Os motivos decorativos recorrem a natureza. A figura 1.3, um afresco de uma casa em Boscoreale, ao Norte de Pompéia, descreve uma cidade cheia de casas (uma delas projeta um alpendre) numa paisagem de terraços. Cortando a cena, à direita, uma coluna com ornamentos dourados florais e faustosos em gemas, um modelo florido decorativo baseado na vegetação. O relevo do sarcófago romano (um caixao de pedra) gravado no século II (imagem 1.4) descreve uma procissão funeral do herói mítico Meleager. Ele demonstra ainda que, no meio da escultura, artistas clássicos estavam preocupados com a atmosfera e o movimento, com figuras virando e interagindo umas com as outras, e o espaço tratado em “perspectiva”, onde alguns elementos estão ao fundo enquanto outros se destacam. 12 13 14 15 Mas, mesmo no período clássico, havia outras convenções artísticas e tradições do Império Romano. Por muitos anos essas tradições artísticas provinciais foram obscurecidas pela gigantesca hegemonia política e cultural romana. Mas, no terceiro século, com o aumento de importância das províncias, essas tradições regionais reemergiram. Os militares provinciais tornaram-se os heróis e imperadores, e os gostos artísticos mudaram. O centro - Roma, Itália e Constantinopla - agora tomavam os estilos artísticos das províncias emprestados. Para entender algumas tradições regionais, considere a escultura de Vênus do Norte da Britania (imagem 1.5); uma pedra tumular da região de Cartago - Túnis, atual Tunísia (imagem 1.6); e uma grande caixa funeral para manter os ossos dos mortos em Jerusalém (imagem 1.7). Todas elas foram feitas sob a sombra da regra imperial romana. Ainda assim tem pouco nelas dos trabalhos de arte romana. Acima de tudo, os artistas que fizeram essas peças valorizaram elementos decorativos alheios às formas naturais. A caixa funeral de Jerusalém joga com o formal, padrões solenes geométricos de luz e sombra. A pedra tumular preocupa-se com as figuras, variando elas entre ao gravar linhas para as mãos, roupas e olhos. Qualquer sensação de movimento aqui vem dos padrões de incisão, não de figuras rigidamente frontais. Até mesmo na Vênus da Britania, claramente com bases clássicas, foi criado por um artista que tinha amor pela decoração. A “paisagem” consistia de linhas grossas, e as faces marcadas com incisões simples. Aqui podemos presumir a ideia que estes trabalhos são “inferiores” aos produtos romanos - mas não muito. Os artistas que os fizeram tinham seus próprios valores e não estavam interessados nas noções clássicas de beleza. A Vênus da Britania é claramente o trabalho de um escultor que desejava demonstrar a oposição da interação humana. Ainda que a Vênus fosse atendida por duas ninfas d'água, elas olham diretamente para o observador, não entre si. Elas existem num espaço abstrato alheio aos padrões naturais. Cabelos e terra são indicados por linhas. 16 Os olhos estão fixos no espaço. Tudo isso sugere uma sensação de visão de outro mundo, como se a Vênus existisse num lugar transcendente do aqui e agora do mundo natural. A mesma ênfase de transcendência explica as zonas horizontais da pedra tumular (imagem 1.6). Parece absurdo comparar esta peça a pintura de pompeiana de montanhas e do pastor (imagem 1.2). Mas é crucial notar que o sujeito são os mesmos: uma pessoa e animais participando de um sacrifício religioso. É a aproximação que difere. Na pedra tumular provincial, a ênfase está na ordem hierárquica. No centro da zona superior está Deus. Na zona intermédia são pessoas ocupadas com cerimônias religiosas apropriadas. Na parte inferior, a menos importante, há três pessoas rezando. A ordem do cosmos, não a ordem natural, é o foco. Essa pedra tumular não é uma janela para o mundo privado; ela ensina e prega aos que olham para ela. A caixa tumular (imagem 1.7) é inteiramente decorativa. Como nós vemos, o coração dos elementos decorativos romanos (imagem 1.3) assenta-se no mundo natural. O escultor da caixa, por sua vez, nas formas geométricas e nos padrões criados em repetição. As colunas que separam os limites da caixa tem o mesmo propósito do afresco em Boscoreale; mas, na caixa, eles foram decorados com designs abstratos. Apenas nos limites do retângulo central há uma sugestão natural: folhas formal figuras retangulares nas quinas. 17 18 19 20 O desenvolvimento extraordinário do século quarto foi uma apropriação do centro dos estilos artísticos provinciais. A demonstração pode ser ilustrada pela base de mármore feita em Constantinopla c.390 para suportar um antigo e gigantesco obelisco, transportado da costa do Egito e instalado com certa dificuldade no Hipódromo, a grande arena de esportes. A base de quatro lados expõe jogos e povos que tomam lugar no estádio. O lado apontado na imagem 1.8 é decisivamente dividida em duaspartes. No topo está a família imperial e outros dignitários, formais, frontais e para frente. No centro, diretamente, está o grupo imperial, maior que os demais. Abaixo, na seção inferior, estão bárbaros peludos e barbudos, trazendo humildes oferendas. Os dois níveis foram separados com ornamentos decorativos, com uma grosseira indicação de "caixas do céu" habitada pelo imperador e os seus. Os detalhes são graciosos, mas estilizados. Confira os tipos de cabelo. A forma de gravação sugere o significado de pregação da verdade eterna: a grandeza do poder imperial e a transcendência do tempo e espaço. Apesar desse estilo de arte não ser inicialmente cristão, ele foi rapidamente adotando por esses. Ela foi adequada para uma religião que via o valor flutuante da Cidade do Homem e o desejo de transcender o mundo, além de ter uma mensagem para pregar. Um bom exemplo é a pintura mural do século IV num pequeno confessio - local onde os mártires e suas relíquias eram enterrados. 21 (veja a imagem 1.9). O muro, originalmente na alcova de uma casa privada em Roma, hoje está numa igreja dedicada aos santos-mártires Giovani e Paulo. A pintura demonstra um homem em pé na antiga "posição de orador", como as figuras na parte inferior da pedra tumular da imagem 1.6. Seja quem for o representado (há interpretações conflitantes), ele claramente domina a cena, enquanto os pés de duas figuras estão em postura de humildade, sugerindo uma hierarquia espiritual. As cortinas podem sugerir um local de descanso eterno. Certamente o afresco, como a pedra tumular, marcavam um túmulo, pois atrás do orador estavam os restos do mártir (ou mártires). Como nas figuras na pedra tumular, nas figuras do afresco não há peso, não há paisagem, não há interação com alguém. Nós veremos a continuidade da influência do estilo transcendental na Idade Média. Outrossim, ao mesmo tempo, o afresco foi produzido num estilo mais próximo do clássico, ainda que fazendo um pequeno retorno no contexto cristão. Algumas vezes chamado de "renascença dos séculos IV e V", esta é a primeira de muitas infusões do espírito clássico na arte medieval. Considere o sarcófago de Júnio Basso, esculpido em 359 (imagem 1.10). Olha para a parte inferior do painel central, que demonstra um homem num cavalo-jegue. Dois homens o cumprimentam, um atrás de um carvalho, outro sob uma capa. As roupas do cavaleiro oferecem formas convincentes de seu corpo, com peso, volume e plasticidade. Há um senso de profundidade e vida na interação humana, como no sarcófago de Meleager (imagem 1.4). Mas este é um caixão cristão e o cavaleiro é Cristo adentrando em Jerusalém. Os bárbaros O estilo clássico exemplificado por Júnio Basso não sobreviveu ao saque de Roma pelos Visigodos em 410. O saque foi um golpe lancinante. Como um casal num divórcio rancoroso, romanos e godos estavam forçosamente unidos; eles tinham sido mutuamente e confortavelmente dependentes; eventualmente eles traíam e golpeavam. A experiência visigótica não foi única. Os francos tinham sido igualmente recrutados nas fronteiras do Império Romano, e alguns de maneira pacífica assentaram-se nas fronteiras imperiais. A experiência burgúndia foi similar. Os romanos chamavam esses povos de “bárbaros”. Eles chamavam alguns deles de “Germani” - germânicos - porque eles surgiram para além do Reno, na região que os romanos chamavam de Germania. Os historiadores hoje tendem a diferenciar esses povos linguisticamente: “povos germânicos” são aqueles que falavam línguas germânicas. Seja qual for o nome dado a eles (eles certamente não dispunham de nomes para si próprios), esses povos estavam, no século IV, muito acostumados à vida sedentária. Arqueólogos encontraram evidências no Norte da Europa de casebres construídos e continuamente habitados durante séculos por grupos germânicos antes de adentrar o Império. Um assentamento próximo a Wijster, no Mar do Norte (atual Holanda), é um bom exemplo deste tipo de comunidade. 22 Amplamente habitada entre c.150 e c.400, esta comunidade consistia de aproximadamente cinquenta moradias de madeira largas e retangulares - elas eram particionadas internamente para serem divididas por homens e animais - e muitos outros prédios menores, alguns deles usados como celeiros ou oficinas, outros como moradia. Paliçadas - cercas de estacas de madeira - cerceava cada um desses complexos. As pessoas que viviam em Wijster cultivavam grãos e criavam grado. Eles também criavam cavalos, algo perceptível pois eles frequentemente enterravam seus cavalos em covas cavadas cuidadosamente em retângulos. Alguns homens eram artesãos, como os carpinteiros que construíam as casas, os ferreiros que faziam as ferramentas, ou o sapateiro que fazia um dos sapatos encontrados no sítio. Alguns foram artesãs femininas, como as tecelãs que usavam rocas encontradas ali. O tamanho diferenciado das casas sugere que a comunidade de Wijster dificilmente era igualitária. O cemitério aponta o mesmo, pois, enquanto a maioria das covas apresenta bens em geral, poucos foram ricamente preenchidos com armas, colares e jóias. Parece que os ricos também tinham acesso aos produtos romanos: os arqueólogos descobrir um par de moedas romanas, pedaços de vidro romano e numerosos fragmentos de potes romanos provinciais. Mas até mesmo os ricos em Wijster foram provavelmente pouco poderosos: é provável que ali, como em todo Mundo Germânico, reis militares governassem a comunidade, comandando os serviços braçais e uma percentagem da produção agrícola. Como os habitantes mais ricos de Wijster conseguiram os bens romanos? Eles provavelmente produziam excedentes para negociar outros bens. Em toda fronteira imperial, comerciantes germânicos trocavam com provinciais romanos. Nenhum traço físico distinguia compradores de vendedores. Mas bárbaros e romanos apresentavam numerosas diferenças étnicas - diferenças criadas pelas preferências e costumes acerca dos alimentos, linguagem, roupa, estilo de cabelo e conduta, além de todos os elementos que conferem um senso de identidade. As etnicidades germânicas estavam frequentemente em fluxo, conforme as tribos se unissem e se separassem (e a identidade étnica romana também mudou, pois alguns começaram a usar roupas germânicas). Considere os Godos. Sua “etnogênese” - as etnicidades que surgem e mudam com o tempo - fez deles não um povo, mas vários. Se é verdadeiro que um grupo chamado “Godos” (Gutones) pode ser traçado no século primeiro de nossa era no Noroeste da atual Polônia, isso não quer dizer que eles fossem semelhantes aos “Godos” que, no século terceiro, organizaram e dominaram uma confederação de povos das estepes e moradores da floresta de diferentes origens que viviam na região do Mar Negro (atual Ucrânia). O segundo grupo de godos foi um splinter do primeiro; com o tempo eles chegaram ao Mar Negro e uniram-se a outros muitos grupos. Em suma, os Godos eram multiétnicos. Tomando vantagem - e depois fazendo parte - da crise do século III, os Godos do Mar Negro invadiram e saquearam as províncias do Império Romano que estavam próximas. Os romanos responderam inicialmente com pagamentos anuais para comprar a paz, mas logo eles pararam, preferindo o confronto. Em c.250, godos e outros invasores e piratas saquearam os Balcãs e a Anatólia (atual Turquia). Foram muitos anos de duras batalhas dos exércitos romanos, reforçado por Godos e outros mercenários, para interromper essas incursões. A seguir, novamente transformados, os Godos emergiram como dois grupos diferentes: 23 orientais (posteriormente Ostrogodos), novamente ao Norte do Mar Negro, e ocidentais (posteriormente Visigodos), na atual Romênia. Em meados de 330, os Visigodos se tornaram aliados do Império e lutaram em seus exércitos. Alguns ascenderam a liderança militar. No final do século IV, muitos exércitos romanosforam formados com tribos inteiras - Godos ou Francos, por exemplo - lutando contra “federados” para o governo romano, sob seus próprios chefes. Este foi o casamento. Todavia, ele ruiu sob a pressão dos Hunos, um povo nômade das planícies (ou “terra das estepes”) cobertas por grama e semiáridas da Ásia Central/Ocidental. Os Hunos invadiram a região do Mar Negro em 376, atacando e destruindo assentamentos como um relâmpago e movendo-se para a Romênia. Os Visigodos, juntamente com outros refugiados impelidos pelos Hunos, peticionaram ao imperador Valeno (r.364- 378) para serem admitidos no Império. Ele concordou. Os bárbaros tinham assentado por muito tempo nas fronteiras como recrutas do exército. Mas, neste caso, os números foram sem precedentes: dezenas de milhares, talvez mais de 200.000 pessoas. Os romanos estavam superados, despreparados e ressentidos. Aproximadamente dois séculos depois, o historiador godo Jordanes rememorou uma crise humanitária: [Os godos] cruzaram o Danúbio e assentaram a Dacia Ripensis, Moésia e Trácia com a permissão do imperador. Logo a fome e o desejo caíram sobre eles, como frequentemente acontece com um povo mal assentado na terra. Seus príncipes [...] começaram a lamentar a condição de seu exército e imploraram a Lupicinus e Maximus, os líderes romanos, a abrir um mercado. Mas o que a "maldição da ganância pelo ouro" não compele os homens a fazer? Os generais, cobertos pela avareza, vendeu a eles não apenas carne de ovelhas e boi, mas até mesmo carcaças de cães e de animais impuros, de maneira que um escravo poderia ser barganhado por um pedaço de pão ou dez libras de carne. Quando seus bens e riquezas falharam, a ganância dos comerciantes exigiu seus filhos em troca pelas necessidades da vida. E os pais consentiram até mesmo com isso. Mas os pais não consentiram por muito tempo: em 378, os Visigodos se rebelaram contra os romanos, matando o imperador Valeno na Batalha de Adrianópolis. A derrota não significou somente a morte do imperador: ela ainda enfraqueceu profundamente o exército romano. Como os imperadores precisavam de soldados e os Visigodos precisavam de comida e de um local para habitarem, vários acordos foram tentados: tratados fazendo dos Visigodos federados; promessas de pagamento e recompensa. Mas as recompensas foram consideradas insuficientes, e sob o líder Alarico (d.410), os Visigodos começaram a vingar seus erros e a procurar por terra. O saque de Roma em 410 inspirou Agostinho a escrever A Cidade de Deus. Em 418, os Visigodos assentaram no Sul da Gália, e em 484 eles tomaram a maior parte da atual Espanha. O impacto dos Visigodos no Império Romano foi tão decisivo que alguns historiadores tomam a data de 378 como o marco do fim do Império Romano, enquanto outros preferem 410 (outros historiadores, para ser honesta, discordam com ambas as datas!). Entrementes, em 406, tardiamente e talvez impelidos pelos Hunos, outros grupos bárbaros - Alanos, Vândalos e Suevos - entraram no Império cruzando o rio Reno. Eles primeiro foram à Gália, depois para a Espanha. Os Vândalos cruzaram para o Norte da África. 24 Mapa do Antigo Império Ocidental, c.500. Os Suevos permaneceram na atual Espanha, ainda que os Visigodos conquistassem a maior parte do reino daqueles no século VI. Quando, após a morte do líder huno Átila em 453, o Império que tinha sido criado ao longo da fronteira do Danúbio colapsou, outros grupos - Ostrogodos, Rugi, Gépidas - moveram para o Império Romano. Cada um deles chegou a um “acordo” com o governo romano; eles esperavam trabalhar por Roma e receber suas recompensas. Em 476, o último imperador romano do Ocidente, Rômulo Augústulo (r.475-476), foi deposto por Odoacro (433-493), um bárbaro (de uma tribo menor, Sciri) que liderava tropas romanas. Odoacro prontamente declarou a si próprio como rei da Itália e, no intuito de “unir” o Império, enviou as insígnias imperiais de Augústulo para o imperador Zeno (r.474-491). Mas Zeno, por sua vez, autorizou Teodorico, rei dos Ostrogodos, a atacar Odoacro em 489, quatro anos depois, a conquista da Itália por Teodorico estava completa. Não muito depois, os francos, que lutaram pelos romanos durante um período longo, conquistaram a Gália sob Clóvis (r.481/482-511), um oficial romano e rei dos francos, ao derrotar um governador provincial da Gália e diversos bárbaros rivais. Enquanto isso, outros grupos bárbaros definiam seus próprios reinos. Em c.500, o antigo Império Romano não mais parecia uma pinça em torno do Mediterrâneo; ele era um mosaico (mapa 1.3). O Nordeste da África era agora o reino vândalo, a atual Espanha o reino Visigodo, a Gália o reino Franco, e a Itália o reino dos Ostrogodos. Os Anglo-Saxões ocuparam o Sudeste da Britania; os Burgúndios formaram um reino centralizado na atual Suíça. Apenas a metade Oriental do Império - o longo final da pinça - permaneceu intacto. 25 A nova ordem O que havia de novo sobre a "nova ordem" do século VI era menos a ascensão dos reinos bárbaros do que foi, no Ocidente, o declínio das cidades e a vitalidade do campo, num crescente domínio dos ricos, e uma quieta domesticação do Cristianismo. No Oriente, o Império Romano continuou e finalmente adotou uma entidade autônoma: o Império Bizantino. A ruralização do Ocidente Onde os bárbaros assentavam, eles conseguiram apenas poucos grupos de descontentes entre as elites articuladas romanas. Era costumeiro pensar que o Império Romano garantiu aos invasores vastas porções de terras confiscadas dos proprietários romanos. Agora parece verossímil que os novos governantes tribais estavam frequentemente contentes em viver nas cidades ou nas cercanias de fortes, coletando taxas rurais em vez da terra. Para os Romanos, a objeção principal para os novos senhores bárbaros foi as crenças cristãs arianas (lembre-se que Úlfila havia pregado este braço do Cristianismo aos Godos). Clóvis, rei dos Francos, pode ter sido o primeiro rei germânico a superar tal problema (Sigismundo, rei dos Burgúndios, foi provavelmente o segundo). Clóvis flertou com o Arianismo no início, mas ele logo se converteu ao Cristianismo niceno de seus vizinhos galo-romanos. Em outras matérias, os novos governantes tomaram instituições romanas; eles promulgaram leis, por exemplo. O Código Visigodo - conforme precedentes imperiais romanos como o Código de Teodósio, sobre a regulação da vida rural encontrada nos códigos provinciais romanos, e possivelmente sobre as leis dos costumes tribais - foi proposto durante o curso dos séculos V ao século VII. Sigismundo, rei dos Burgúndios (r.516-524), promulgou um código burgúndio em 517. Um código de leis franco foi compilado sob Clóvis, numa fusão da lei provincial romana e dos procedimentos legais germânicos num só. Escritas em latim, essas leis revelam a inspiração romana até mesmo na língua. Os reis bárbaros - alguns deles receberam a boa educação da época - dependiam de assessores treinados nos clássicos para escrever as cartas e leis. Na Itália, em particular, um grupo fora do comum de administradores romanos, juízes e oficiais serviu ao rei ostrogodo Teodorico, o Grande (r.493-526). Dentre eles, havia o sapiente Boécio (†525-526) que escreveu a tranquila obra A Consolação da Filosofia enquanto aguardava a execução por traição, e o enciclopédico Cassiodoro (490-483), que escreveu cartas a favor de Teodorico à guisa de um pio “criador de leis”. “Como é meu desejo, quando peticionado, a dar conselhos em direito, de maneira que eu não desejo que a lei sirva aos meus favores, especialmente nos assuntos a respeito da reverência a Deus”, Cassiodoro escreveu (em nome de Teodorico) aos judeus de Gênova, permitindo que leis, conforme a lei romana e reverente a Deus, a inserir um telhado em sua sinagoga, mas nada mais. Desde o século IV, os romanos estavam acostumados comlíderes bárbaros; no século VI, nada havia de estranho em tê-los como reis. Por outro lado, foi muito estranho o desaparecimento da “classe média” urbana. As novas taxas do século IV tinham muito a ver com isso. Os conselheiros citadinos - os curiales, líderes tradicionais e que discursavam a favor das cidades - 26 estavam acostumados a coletar taxas em suas comunidades, não aceitando nenhum credor e recolhendo as recompensas de prestígio que o cargo oferecia. No século IV, ovas terras e taxas per capita empobreceram os curiales, enquanto muitos proprietários rurais ricos - no campo, cercados por guarda-costas e escravos - simplesmente não pagavam as taxas. Agora, o peso das taxas caía sobre o povo pobre. Famílias inteiras, pressionadas a pagar as taxas que eles não poderiam arcar, fugiram para as propriedades dos ricos, desistindo de seu status livre em troca de terra e proteção. No século VII, os ricos venceram; os reis bárbaros não mais se preocupavam em coletar taxas gerais. As cidades, a maioria delas com muros dos tempos da crise do século III, não mais “explodiam” com os excessos populacionais, conquanto permanecessem como centros políticos e religiosos. Por exemplo, o complexo episcopal de Tours (na Gália) estava cercado por muros erguidos em c.400 (veja o mapa 1.4). A cidade ainda funcionava como uma instituição de religião e governo, mas quase ninguém, comparado ao passado, vivia nela. Mas, fora de Tours, nos cemitérios que os romanos cuidadosamente assentaram fora da região ordinariamente habitada, uma nova igreja foi construída com as relíquias do santo local, Martinho. Este templo serviu como um imã para o povo circundante que vivia no campo e ainda mais longe. Um batistério foi logo construído, para batizar as crianças dos peregrinos e outros que fossem ao túmulo de são Martinho em busca de um milagre. Algumas pessoas permaneciam por anos. Gregório, bispo de Tours (b.573-594), nossa fonte principal da História da Gália no século VI, descreveu Chainemunda, uma mulher cega: Ela era uma mulher muito piedosa, e cheia de fé para venerar o abençoado bispo Martinho. Ela estava [...] [cega e ] coberta por abrasões em todo seu corpo. Uma doença a atacou com pústulas seus membros, e sua aparência era tão horrível e repulsiva que, ao olhar, ela era considerava pelo povo como leprosa. Cada dia ela tomava seu caminho até o túmulo do glorioso campeão. Após quase três anos, enquanto ela permanecia em frente ao túmulo, seus olhos foram abertos e ela viu tudo claramente. Toda a doença em seus membros desapareceu [...] e a saúde da pele retornou. Com pessoas como Chainemunda dirigindo-se ao túmulo, não é incomum que arqueólogos tenham encontrado evidência de habitação semipermanente ao lado do cemitério. A mudança de assentamentos urbanos para assentamentos rurais promoveu um novo localismo. O comércio ativo de longa distância via Mediterrâneo declinou, embora não tenha sido completamente interrompido, pois permanecia nas regiões costeiras. Considere o destino da cerâmica, uma necessidade barata do Mundo Antigo. 27 No século VI, uma fina cerâmica vermelha produzida em massa na África adornava até mesmo a casa dos humildes na costa do Mar Mediterrâneo. No interior, porém, a maioria da população tinha que contar com cerâmicas locais, e as redes regionais de troca erodiram as conexões de longa distância. Para alguns - os ricos - as desconexões da paisagem rural para amplo mundo tinha suas vantagens. Quando eles desejassem, ainda era possível adquirir bens de luxo. Em algumas regiões eles poderiam ainda gozar uma vida de esplêndido isolamento: No topo de um alto monte seu palácio magnífico foi construído [...] colunas de mármore sustentavam a estrutura imponente; do alto você pode ver botes flutuando na superfície do rio no tempo de verão [...] a água foi canalizada em dutos que seguiam os contornos da montanha [...] nestas costas íngremes, outrora estéreis, Nicétio plantou uvas suculentas, e cachos de uvas verdes adornam as rochas altas que estavam acostumadas a nada vestir, exceto espinhos. Orquídeas em árvores frutíferas cresciam aqui e ali, enchendo o ar com o perfume de suas flores. O proprietário deste paraíso foi Nicétio (m.c.566), bispo de Trier em meados do século VI. Ele dirigia-se para este palácio quando seu exercício pastoral permitia. Bispos como Nicétio estavam entre os ricos; a maioria alcançava o status episcopal em seus últimos anos, após serem casados e ter engendrado filhos para herdar suas propriedades (suas esposas continuavam a viver com eles, mas, ao menos era esperado, que elas não dormissem com eles). Grandes senhores laicos, reis, rainhas, guerreiros e cortesãos controlavam e monopolizavam a maioria da riqueza Ocidental, baseada principalmente na terra. Mosteiros também começaram a se tornar importantes para os proprietários rurais. No século VI, muitos monges viviam em comunidades afastadas o suficiente dos centros de poder do sagrado, mas próximos o suficiente para serem importantes. Monges não eram laicos (uma vez que devotavam inteiramente suas vidas para a religião), ainda que não fossem clérigos (pois raramente eram ordenados), mas algo intermediário e cada vez mais admirados. Frequentemente dizem que santo Antão foi o “primeiro monge” e, ainda que não fosse verdade estrita, não é algo tão distante da realidade. Como Antão, os monges viviam sua vida diária de martírio, abandonando sua saúde, família e ofícios mundanos. Como Antão, que no final de sua vida foi para as tumbas que antes ele havia negado para não viver cercado por outras pessoas, os monges viviam em comunidades. Algumas comunidades eram apenas masculinas, algumas apenas femininas, algumas mistas (mas viviam em porções separadas). Seja qual for o tipo, os monges viviam em obediência a um tipo de “regra”, que oferecia a eles uma forma de vida estável e ordeira. A regra poderia não ser escrita, como em são Maurício d’Agaune, uma comunidade monástica registrada em 515 por Sigismundo às vésperas de sua ascensão ao trono burgúndio. Os monges de Agaune, divididos em grupos, dirigiam à igreja em sinal de respeito e seguiam um regime rígido de não interromper as orações diárias. Erguido fora da capital burgúndia de Genebra, no alto de um morro vinculado ao martírio heróico de uma legião romana cristã, o mosteiro vinculava-se a paisagem sagrada e ligava Sigismundo aos seus assessores episcopais. 28 Outras regras foram escritas. Cesário, bispo de Arles (r.502-542) escreveu uma para sua mulher, a abadessa (cabeça) do mosteiro feminino. Ele escreveu outra para seu sobrinho, o abade do mosteiro masculino. Na Itália, são Bento (d.c.550/560) escreveu a mais famosa regra monástica entre 530 e 560. Adotada posteriormente pelos reis carolíngios do século IX, esta regra tornou-se a norma monástica no Ocidente. Diferente da regra da Agaune, onde a oração era a pedra basilar, a regra beneditina dividia o dia em períodos discetos de oração, leitura e trabalho. Conudo, o núcleo deste programa, assim como em Agaune, era a “liturgia” - não apenas a Missa, mas também uma elaborada e formal adoração que toma lugar em sete intervalos do dia e da noite. Nestes intervalos específicos, os monges cantavam os “ofícios”, a maioria deles consistida de Salmos, um grupo de 150 poemas do Velho Testamento: Durante o inverno [...] este verso desse ser dito três vezes: “Senhor, tu abrirás meus lábios, e minha boca proclamará seu louvor”. Além disso, deve ser cantado o Salmo 3 e o Gloria [um hino curto de adoração]. Após isso, o Salmo 94 com uma antífona [espécie de coro], ou ao menos cantado. Por fim, o hino ambrosiano [escrito por santo Ambrósio de Milão] deve ser seguido, e então seis salmos com antífonas”. No final de cada semana, os monges deveriam completar todos os 150salmos. O mosteiro de Bento, em Monte Cassino, estava nas sombras de Roma, longe o distante para “escapar” da sociedade, mas próximo o suficiente para vinculá-lo ao papado. O papa Gregório, o Grande (590-604), responsável por fazer do papado o maior poder na Itália, escreveu em seu tempo uma biografia de Bento para elogiar sua regra. Mosteiros, por sua ostentosa rejeição da riqueza e poder, tornaram-se parceiros dos poderosos. Os monges foram vistos como modelos de virtude, acreditava-se que suas orações alcançavam os ouvidos de Deus. Deste modo, a aliança com eles era crucial. Aos poucos, a religião cristã foi domesticada as necessidades da nova ordem, ainda que fosse moldada para atender suas demandas. Chainemunda não temia em ir para o cemitério fora de Tours. Não havia demônio ali: eles tinham sido afastados pelo poder de são Martinho. A fama de são Bento, Gregório dizia, fez que “homens pios de Roma”, que “deixaram seus filhos com ele para serem ensinados nos serviços de Deus”. Os mosteiros de Bento se tornaram alternativas aceitáveis para os antigos píncaros de prestígio: os batalhões e as escolas. Santa Radegunda, fundadora do convento de Poitiers (não longe de Tours), obteve um fragmento da Santa Cruz e de outras relíquias preciosas para suas monjas. Uma de suas hagiógrafas, Baudonívia, escreveu que “ela conseguiu o que ela desejava em orações: que ela pudesse ter a glória da abençoada madeira da cruz do senhor dentro de um relicário de ouro e gemas, além de muitas outras relíquias de santos que foram obtidas e permaneciam naquele local [seu mosteiro]”. Os relicários que “encerravam” as relíquias eram por si objetos preciosos, como no assim chamado relicário de Teuderico (imagem 1.11), uma pequena caixa dourada com botões de metal e gemas. Tumbas sagradas e relíquias traziam o sagrado para o campo, para os conventos citadinos, e davam textura para a vida cotidiana. 29 *** A crise do século III demoveu a antiga elite romana, trazendo novos grupos para o foco. Entre esses estavam os cristãos, que insistiam em um Deus e uma via para adorá-lo. Tornada a religião oficial do Império sob Teodósio, o Cristianismo redefiniu o local do sagrado: não mais nas casas privadas ou nos templos das cidades, mas nas preciosas relíquias e na Eucaristia; ela seria ministrada por aqueles que guardavam a igreja na terra (os bispos); e aqueles que viviam do ascetismo heróico (os monges). Politicamente, o Império, um vasto conglomerado de províncias conquistadas, foi transformado amplamente pela conquista da periferia. À revelia de si próprios, os romanos tacitamente reconheceram e exploraram a interdependência entre o centro e a periferia. Eles convidaram os bárbaros a entrar, mas então declinaram ao reconhecer as necessidades de seus visitantes. O repúdio foi muito posterior. Os bárbaros foram parte do Império e tomaram a metade Ocidental. No século seguinte, eles poderiam demonstrar o quanto eles tinham aprendido com seus antigos hospedeiros.
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