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UND1- ASPECTOS GEOGRAFICOS

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ESTUDO DA 
SOCIEDADE
Marli de Fátima Silva
Aspectos geográficos
Objetivos de aprendizagem
Ao final deste texto, você deve apresentar os seguintes aprendizados:
 � Reconhecer que o homem elabora o espaço geográfico e constrói 
paisagens humanizadas conforme sua apropriação do espaço natural.
 � Explicar como o espaço geográfico é qualificado nos aspectos naturais 
e sociais, resultando em uma diversidade de territorialidades.
 � Descrever as diversas escalas do espaço: local, regional, nacional e 
global.
Introdução
Neste capítulo, será apresentado que o espaço geográfico constitui 
o esteio espacial das relações sociais. Trata-se do fruto do trabalho 
humano sobre o espaço, para a construção de uma espacialidade 
humanizada e múltipla, onde ocorrem as práticas sociais e culturais. 
Entre as especificidades espaciais, serão estudadas as modulações 
espaciais, como o “lugar”, de escala íntima, pois se trata da porção 
das práticas sociais cotidianas, e o “território”, onde ocorre um maior 
dimensionamento das relações sociais no contexto do espaço huma-
nizado e a ideia de paisagem que embasa tais modulações do espaço 
geográfico (e natural).
O espaço geográfico
O espaço onde vivemos é qualificado de modo natural e cultural. Cícero, 
escritor latino, afirmou (apud SMITH, 1984, p. 16) que:
[...] à nossa disposição estão montanhas e planícies. Nossos rios e lagos. 
Colhemos o milho e plantamos árvores. Fertilizamos o solo pela irrigação. 
Represamos os rios para orientá-los a nosso bel-prazer. Pode-se dizer que 
com nossas mãos tentamos criar uma segunda natureza no mundo natural. 
Para Milton Santos, o espaço, construído historicamente, corresponde à acu-
mulação desigual de tempos. Desse modo, um conceito de grande importância 
em sua reflexão cultural é o de “rugosidade”, isto é, aquilo que permanece 
do passado como forma, espaço construído, paisagem.
A cultura diz respeito à produção simbólica. Assim, como afirmou o 
influente antropólogo Claude Lévi-Strauss, é própria da linguagem, ou seja, 
pode ser traduzida. Se não fosse assim, não seria linguagem, visto que não 
apresentaria um sistema de signos equivalente a outro por meio de uma trans-
formação (STRAUSS, 1989).
Como vemos, a cultura é carregada de complexidade, e sua compreensão 
constitui uma das empreitadas mais caras às ciências sociais, como a antropo-
logia e a sociologia da cultura. O esforço de promover uma segunda natureza, 
conforme expressão de Cícero, pertence ao universo da cultura, assim como 
os modos de pensar, de agir e de sentir. 
Naturalmente, a cultura não está circunscrita apenas ao mundo da an-
tropologia, mas há um ramo da ciência geográfica, a geografia cultural, que 
reflete a distribuição geográfica do fenômeno cultural. Linda MacDowell 
define cultura como: 
[...] um conjunto de ideias, hábitos e crenças que dá forma às ações das pessoas 
e à sua produção de artefatos materiais, incluindo a paisagem e o ambiente 
construído. A cultura é socialmente definida e socialmente determinada. Ideias 
culturais são expressas nas vidas de grupos sociais que articulam, expressam e 
contestam esses conjuntos de ideias e valores, que são eles próprios específicos 
no tempo e no espaço (MCDOWELL, 1995, p. 161). 
Escolheu-se essa definição de cultura por se tratar de uma conceituação 
marcada pela espacialidade, que é a base dos aspectos geográficos em geral, 
sejam naturais ou humanos. 
Enfim, ao se apropriar do espaço natural, homens e mulheres elaboram o 
espaço geográfico e constroem paisagens humanizadas que expressam (e são 
expressão) a cultura da sociedade que o desenvolveu ao longo de sua história. 
A Figura 1 ilustra o processo de desenvolvimento da cidade de Nova York 
ao longo do tempo.
Aspectos geográficos2
Figura 1. Evolução da cidade de Nova York ao longo dos anos.
Fonte: Just Something (2014, documento on-line).
Do local ao global: o espaço e 
suas diversas escalas
Refletir geograficamente é reconhecer que os seres humanos, em momentos 
históricos particulares, construíram, destruíram e reconstruíram paisagens, 
e que estas possuem conteúdos sociais, políticos, econômicos e culturais e 
interagem com outras paisagens, desenvolvendo espaços carregados de cama-
das de tempos históricos que constituem os chamados espaços geográficos.
Desse modo, o espaço geográfico comporta uma multiplicidade de catego-
rias espaciais, e esse universo é contraditório por natureza, desde o local até o 
global, passando por seus mediatos — o território e a fronteira, por exemplo. 
Uma vez que a geografia reflete o espaço, torna-se uma ciência permanente-
mente à berlinda, pois este é dotado de uma gigantesca dinâmica diante das 
obsessões materiais de certas sociedades — a maioria, claro.
Some a tudo que foi dito o impacto do desenvolvimento tecnológico que 
tornou o mundo ambivalente, pois este de um lado é vasto e, de outro, cabe 
3Aspectos geográficos
dentro de um chip. O geógrafo britânico David Harvey, em um livro muito 
influente, lembra que a:
[...] aceleração do tempo de giro na produção envolve acelerações parale-
las na troca e no consumo. Sistemas aperfeiçoados de troca e de fluxos de 
informações, associados com racionalizações nas técnicas de distribuição 
(empacotamento, controle de estoques, conteinerização, retorno do mercado 
etc.), possibilitam a circulação de mercadorias no mercado a uma velocidade 
maior. Os bancos eletrônicos e o dinheiro de plástico foram algumas das 
inovações que aumentaram a rapidez do fluxo de dinheiro inverso. Serviços 
e mercados financeiros (auxiliados pelo comércio computadorizado) também 
foram acelerados, de modo a fazer, como diz o ditado, ‘vinte e quatro horas 
ser um tempo bem longo’ nos mercados globais de ações (HARVEY, 1993, 
p. 257-258).
A multiplicação das possibilidades que se abrem aos seres humanos nesta 
era tecnológica aviva contradições: crença e descrença revestem o caráter 
do sistema-mundo contemporâneo, pois, se estamos próximos da cura das 
mais variadas doenças, por outro lado, há uma crise de empregabilidade que 
afasta um número significativo de pessoas da produção de renda, de modo 
que comunguem de baixa qualidade de vida, enquanto as grandes fortunas 
se multiplicam.
Se, após séculos de resistência, a mulher conseguiu diminuir o abismo de 
oportunidades e direitos que a separavam do homem, na atualidade multipli-
cam-se e aprofundam-se os fundamentalismos. E tantas outras contradições 
poderiam ser trazidas à tona.
O espaço geográfico e suas modulações escalares
Importantes geógrafos definem o espaço geográfico como o objeto de estudo 
da geografia. Trata-se, então, da porção espacial que foi alterada pelas ações 
humanas, ou seja, é produto do trabalho humano a partir da apropriação do 
“espaço natural”, que corresponde ao conjunto de elementos não alterados 
pela ação humana, isto é, o espaço da natureza. O geógrafo Manuel Correia de 
Andrade nos ensina que a “geografia é a ciência que estuda o espaço geográfico, 
espaço produzido pelo homem ao intervir no meio natural, adaptando-o à sua 
exploração, à utilização dos seus recursos, segundo as formas institucionais e 
as disponibilidades culturais, técnicas e econômicas de que dispõe”.
Aspectos geográficos4
Entre a multiplicidade de espaços existentes, há o “espaço da produção”, 
que envolve fábricas, campos de cultivo e oficinas, entre outros; o “espaço da 
circulação”, correspondente a ruas, praças e rodovias, por exemplo; o “espaço 
das ideias”, representado por escolas, quartéis, igrejas e mídia. Além disso, 
em tempos de globalização, há um espaço carregado por uma densidade muito 
específica, caso do “espaço virtual”. 
Desse modo, para se compreender o espaço geográfico, é necessário analisar 
tanto sua face visível (aspectos físicos e modificações introduzidas pelo ser 
humano) como sua parte não visível, o que implica conhecer a sociedade e 
seus aspectos políticos, econômicos e culturais. 
O espaço geográfico compreende outras categorias espaciais, como lugare território, que possuem uma dimensão visual relacionada à paisagem, que, 
por seu turno, pode ser natural, constituída por fenômenos como clima, vege-
tação, relevo, solo, hidrografia etc.; e cultural (ou geográfica), quando reflete 
o espaço constituído pela produção de bens materiais e de infraestruturas, 
como habitação, estradas, pontes, cidades etc.
Milton Santos (1986, p. 37) afirma que a: 
[...] paisagem não tem nada de fixo, de imóvel. Cada vez que a sociedade 
passa por um processo de mudança, as relações sociais e políticas também 
mudam, em ritmos e intensidade variados. A mesma coisa acontece em re-
lação ao espaço e à paisagem, que se transforma para se adaptar às novas 
necessidades da sociedade.
Lugar é um dos conceitos-chaves fundamentais da geografia. De fato, para 
se entender a espacialidade em sua dimensão mais profunda, é necessário 
reconhecer que o espaço se materializa na forma de objetos concretos, mas 
possui uma estrutura simbólica de extrema importância. O lugar corresponde 
a uma porção ou parte do espaço onde vivemos, ou seja, trata-se de uma 
porção espacial produzida ao longo de um determinado tempo, apresentando 
enormes singularidades, pois carrega grande carga simbólica e agrega ideias 
e sentidos produzidos por aqueles que o habitam. 
Para o mestre baiano, “Os elementos fixos, fixados em cada lugar, permitem 
ações que modificam o próprio lugar, fluxos novos ou renovados que recriam 
as condições ambientais e as condições sociais, e redefinem cada lugar”, ou, 
ainda, “[...] conjunto indissociável de sistemas de objetos e sistemas de ações” 
(SANTOS, 1996, p. 21).
Então, em sua concepção mais ampla, o espaço geográfico contempla uma 
gama de lugares, de territórios e, portanto, de territorialidades, sendo o lugar, 
5Aspectos geográficos
segundo Santos (2002, p. 256), “[...] o acontecer solidário da vida cotidiana e 
cada lugar se define pelas existências corpórea e relacional”. Além disso, ainda 
segundo o autor, o espaço constitui o: “[...] momento do imenso movimento do 
mundo, apreendido em um ponto geográfico [...]. Por isso mesmo, os lugares 
mudam de significação, graças ao movimento social: a cada instante as frações 
da sociedade que lhe cabem não são as mesmas” (SANTOS, 1992, p. 21-23).
Ao discutir o conceito de lugar, Milton Santos introduz dois outros con-
ceitos de grande interesse, a tecnoesfera e a psicoesfera, que corresponde ao 
“reino das ideias, crenças, paixões e lugar da produção de um sentido, também 
faz parte desse meio ambiente, desse entorno da vida, fornecendo regras à 
racionalidade ou estimulando o imaginário”. Milton segue adiante e ensina 
que tanto “[...] a tecnoesfera (mundo dos objetos) quanto a psicoesfera (esfera 
da ação) são locais, mas constituem o produto de uma sociedade bem mais 
ampla que o lugar. Sua inspiração e suas leis têm dimensões mais amplas e 
mais complexas” (SANTOS, 2002, p. 256).
Enfim, entender o espaço demanda a percepção de que existem diversas 
escalas espaciais, que vão desde a local até a global, passando pela regional e 
nacional, e que todas apresentam impactos sobre a organização social, desde 
o impacto sobre o cotidiano mais íntimo, a vida cultural e o imaginário, até 
os impactos de ordem material.
Em entrevista ao programa Roda Viva (31/03/1997), o 
geógrafo Milton Santos debate uma variedade de temas 
relacionados ao tema aqui trabalhado. 
https://goo.gl/79xBps
Espacialidades e cultura: o caso do território
Como vimos, o espaço geográfico é qualificado pela natureza e pela cultura 
— o que passa por diversos desdobramentos, como a economia, a política, 
a língua, as leis e a religião, entre outros. Assim, a cultura constitui uma 
Aspectos geográficos6
baliza social na produção e na reprodução espacial, ordenando um conjunto 
de localidades e territorialidades. 
O território é um conceito-chave espacial básico, sendo, também, passível 
de reelaborações: se em tempos passados foi conceituado como o principal 
meio de materialização da soberania e do poder nacional, atualmente podemos 
interpretá-lo de acordo com outros olhares.
O território pode ser apreendido segundo duas concepções tradicionais 
que apresentam pontos de intersecção entre si; assim, conforme nos lembra 
Raffestin (1993, p. 143), é:
[...] essencial compreender bem que o espaço é anterior ao território. O território 
se forma a partir do espaço, é o resultado de uma ação conduzida por um ator 
sintagmático (ator que realiza um programa) em qualquer nível. Ao se apropriar 
de um espaço, concreta ou abstratamente [...] o ator “territorializa” o espaço.
Por outro lado, território pode vir a ser encarado: 
[...] tanto como o que se encontra no território, estando sujeito a sua gestão, 
como, ao mesmo tempo, o processo subjetivo de conscientização da população 
de fazer parte de um território, de integrar-se em um Estado [...]. A formação 
de um território dá às pessoas que nele habitam a consciência de sua partici-
pação, provocando o sentido da territorialidade que, de forma subjetiva, cria 
uma consciência de confraternização entre elas (ANDRADE, 1995, p. 20).
No entanto, em um mundo marcado pela globalização mediada por agentes 
transnacionais e por suas técnicas de informação e circulação, o território 
passa a desenvolver uma multiplicidade de territorialidades, o que implica a 
necessidade de uma definição de território capaz de contemplar as variadas 
realidades.
Para o geógrafo Rogério Haesbaert, o território possui três vertentes básicas 
mutuamente excludentes, embora se integrem em um contexto de relações 
socioespaciais na promoção de uma territorialidade passível de ser compre-
endida a partir da justaposição desta tríade conceitual:
1. jurídico-política, na qual “[...] o território é visto como um espaço 
delimitado e controlado sobre o qual se exerce um determinado poder, 
especialmente o de caráter estatal” (HAESBAERT apud SPOSITO, 
2004, p. 18); 
2. cultural(ista), responsável por dar prioridade às “[...] dimensões sim-
bólicas e mais subjetivas, o território visto fundamentalmente como 
7Aspectos geográficos
produto da apropriação feita através do imaginário e/ou identidade 
social sobre o espaço” (HAESBAERT apud SPOSITO, 2004, p. 18);
3. econômica, “[...] que destaca a desterritorialização em sua perspectiva 
material, como produto espacial do embate entre classes sociais e da 
relação capital-trabalho” ( HAESBAERT apud SPOSITO, 2004, p. 18).
Se, conforme Giles Deleuze e Felix Guatari — criadores da expressão 
desterritorialização —, território é o espaço de um certo ordenamento, prati-
camente sinônimo de apropriação e subjetivação humanas, desterritorializar 
constitui uma ação de desordem. O geógrafo Rogério Haesbaert vem, há 
tempos, discutindo o conceito de território vinculado a um processo contínuo 
de desterritorialização (e reterritorialização). A desterritorialização abarca 
os mecanismos que apartam o território das suas “raízes” sociais e culturais, 
enquanto a reterritorialização, por outro lado, busca a criação de novos vínculos 
no lugar daquelas que se perderam.
O vídeo Cortiços do Centro do Rio de Janeiro tem como finalidade provocar o debate 
sobre o cortiço — forma de moradia utilizada no Brasil desde o século XIX. No Rio 
de Janeiro, cenário do vídeo, o cortiço não é sequer contabilizado nos diagnósticos 
da Prefeitura sobre moradia; assim, sua existência é marcada pela marginalidade. 
Os moradores dos cortiços cobram a regulamentação dos locais para que políticas 
públicas e programas sociais possam se estender até eles. 
https://goo.gl/QrfALz
Como já mencionado, em uma referência a Manuel Correa de Andrade 
(1995), no processo de construção de um determinado território, as pessoas 
que o habitam desenvolvem a consciência de sua participação, o que provoca 
o sentido da territorialidade e de confraternização entre si. Desse modo, 
desterritorializar corresponde à retirada do território de alguém, como no 
caso da construção de uma barragem, quando pessoassão retiradas de seu 
contexto espacial.
O mundo contemporâneo é marcado pelo fenômeno da migração, o qual 
provoca o sentimento de desterritorialização, caso, por exemplo, do dramático 
Aspectos geográficos8
deslocamento dos refugiados, já que esses migrantes, geralmente, se tornam 
desterrados de maneira violenta.
Várias manifestações artísticas, como a música, a literatura e a HQ, produ-
ziram obras prestigiosas a respeito da desterritorialização, algumas refletindo 
o tema propriamente dito, outras o tangenciando sem pautar-se em sua reflexão 
específica. A música “Sobradinho”, composição de Sá e Guarabyra (1971), 
interpretada originalmente pela própria dupla é um exemplo: “Remanso, Casa 
Nova, Sento-Sé, Pilão Arcado e Sobradinho” são cidades da Bahia difundidas 
por meio da música. Seu refrão — “O Sertão vai virar mar, dá no coração, um 
medo que algum dia o mar também vire Sertão” — é um dos mais famosos 
da MPB. Ao final da canção, os cantores dizem adeus àquelas cidades, em 
uma referência à inundação que sofreram para a instalação da represa de So-
bradinho, um dos maiores lagos artificiais do mundo (4.214 km2), construído 
na década de 1970, a fim de controlar a vazão do rio São Francisco, para a 
produção de energia hidrelétrica.
A construção da represa constitui um modo radical de intervenção humana 
sobre a “primeira natureza”, para a elaboração de um espaço artificial. Apesar 
de retirar pessoas de seus lugares, a represa não assegurou cidadania aos mais 
necessitados. Comunidades que vivem nas proximidades do rio (conhecido 
carinhosamente como Velho Chico) dependem de suas águas para atender a 
necessidades básicas; porém, nem sempre tais agrupamentos humanos dispõem 
de meios para se apropriarem desse recurso vital: mal e mal matam a sede 
e alimentam os animais — apesar de se tratar de uma gente que margeia o 
curso fluvial.
Os intérpretes da música flagraram o “Sertão nordestino” no momento 
em que essa sub-região tornou-se, literalmente, um mar de água doce. Nesse 
contexto, os versos “[...] debaixo d’água lá se vai a vida inteira” se referem 
a cerca de 70 mil pessoas que, em meados dos anos de 1970, pegaram seus 
escassos pertences e seguiram para uma das novas cidades construídas pela 
Companhia Hidroelétrica do São Francisco (CHESF), enquanto as águas do 
rio inundavam suas casas.
Na ocasião, o deslocamento das pessoas era pautado pela esperança por 
dias melhores, afinal, desterrados, deveriam receber algum benefício que 
amainasse suas magras existências. Entretanto, aos poucos, a desesperança 
se sobrepôs aos sonhos, do mesmo modo que as águas do “Velho Chico” 
afogaram suas geografias particulares, pois na atualidade essas cidades são 
muito pouco lembradas pelos poder público, como diz o morador João Olim-
pio Pereira, de 47 anos, em reportagem do “Correio da Bahia”, publicado no 
9Aspectos geográficos
Jornal do Meio Ambiente, em 29 de junho de 2005: “A gente mora dentro do 
rio e morre de sede”.
Em Estorvo, primeiro romance de Francisco Buarque de Holanda, publicado 
em 1991 (o músico consagrado carregava a experiência da novela Fazenda 
Modelo e de peças teatrais, como Calabar: o elogio da traição), o autor narra, 
em primeira pessoa, a história de um homem de nome não identificado, que, 
cansado da rotina e das pessoas que o cercam — mãe, irmã, ex-mulher e 
amigos —, vaga pelas ruas de uma grande cidade. Embora esta não seja 
identificada, é visível que se trata do Rio de Janeiro, espaço flagrado em toda 
a carga explosiva de tensões que encerra.
Com pena pesada, o autor coloca em evidência a cidade e sua sociedade 
vincadas pela violência — violências, aliás, que se entrecruzam para criar um 
espaço de “delicadeza perdida”, conforme expressão presente no título de um 
documentário dedicado à sua obra musical (Chico ou o país da delicadeza 
perdida, 1989), a qual aborda de modo intenso a perda da aura romântica 
da antiga capital brasileira, sobretudo em sua versão “anos dourados”, para 
ceder lugar ao espaço crivado de violência. O ensaísta e crítico literário Ro-
berto Schwarz afirma que essa obra realiza a metáfora do Brasil, em uma 
“[...] disposição absurda de continuar igual em circunstâncias impossíveis” 
(SCHWARZ, 1999, p. 181).
No poema “Evocação do Recife”, inserido por Manuel Bandeira no livro 
Libertinagem, publicado em 1930, fica explícita a preocupação do autor com 
a disposição gráfica, por meio da força da palavra coloquial e cotidiana, e, 
naturalmente, por seus aspectos sonoros — esse recurso de expressão imprime 
um ritmo harmonioso ao poema, que, por fim, dado seu timbre onírico, ganha 
ares de canção, característica que se torna ainda mais forte quando o poema 
é interpretado pelo poeta.
Ao rememorar a cidade de Recife da sua infância, Manuel Bandeira de-
sencadeia uma multiplicidade de lugares que coexistem no interior de um 
mesmo espaço urbano, e constrói uma polifonia territorial e cultural, que se 
encerra como forma de desterritorialização em razão da emigração do poeta 
em direção à capital do país, Rio de Janeiro. Assim, no poema, Bandeira 
rememora a Recife da infância da qual foi descontextualizado.
Já o escritor, jornalista e quadrinista, Joe Sacco, fala de territórios sitiados 
e da vida dentro da adversidade, refletindo os casos da Palestina, da Bósnia e 
da Sérvia, nas histórias em quadrinho Palestina – uma nação ocupada (2004) 
e Uma história de Sarajevo (2005).
A temática palestina-israelense é uma das mais encanecidas entre os tantos 
conflitos territoriais e culturais que assolam e/ou assombram o mundo contem-
Aspectos geográficos10
porâneo: uma armadilha preparada com esmero pelos vaivéns e pelos revezes 
do tempo. Afinal, suas raízes remontam a um período remoto da história, e 
em um contexto de retumbante desvantagem dos palestinos. “Sacco dá uma 
cara aos árabes sem cara”, diz José Arbex na introdução do livro-reportagem 
em quadrinhos que “[...] mostra o sofrimento das mães palestinas, a ansiedade 
das crianças, o terror dos homens diante de um Exército formidável, poderoso 
e fascistoide, que é o israelense” (SACCO, 2004, p. 5), afirma o jornalista.
Apesar do teor da afirmação de Arbex, o desenhista e jornalista não produz 
um panfleto palestino, assim como não o fizera com o caso bósnio nos livros 
Uma história de Sarajevo e Área de segurança Gorazde – a guerra na Bósnia 
Oriental (1992-1995) (SACCO, 2005).
Da parte do autor há, na verdade, uma intenção de vasculhar o campo da 
tragédia que permeia o cotidiano da vida humana na Palestina, território sitiado 
pelos israelenses, povo também antigo da região, e que esteve forçosamente fora 
de sua terra por aproximadamente dois mil anos. Desse modo, Sacco traz à tona 
heróis e covardes, assim como as esperanças e frustrações dos palestinos. Assim, 
diz Arbex, “nisso reside a legitimidade e o poder deste livro: no mundo em que im-
pera as imagens, Sacco produz as suas próprias imagens de mundo para subverter, 
questionar uma percepção uniformizada pela grande mídia” (SACCO, 2004, p. 6).
Essas três obras denunciam as agruras de povos que vivem (ou viveram) 
a dura desterritorialização, caso dos palestinos, mas também do povo bósnio, 
que, destarte a menor intensidade quando comparado à desterritorialidade 
palestina, no limite sofre algum modo de desterritorialização, afinal, em 
razão da distância de sua cultura com relação ao cânone europeu, o país é, 
de algum modo, desterrado no próprio território. Desse modo, Sacco fala da 
experiência de pessoas que vivem ou viveram sitiadas no território que lhes 
pertence por herança cultural, mostrando um exemplo sobre o tema estudado, 
a fim de que o leitor o compreenda de maneira mais eficaz.
ANDRADE, M. C. A questão do território no Brasil. São Paulo: Hucitec; Recife: IPESPE, 
1995, p. 20.
BANDEIRA, M. Evocação do Recife. In: BANDEIRA, M. Libertinagem. São Paulo: Nova 
Fronteira, 1930.
11Aspectos geográficos
CHICO OU O PAÍS DA DELICADEZA PERDIDA. Direção: Valter Salles. Rio de Janeiro: 
Videofilmes,1989.CORREIO DA BAHIA. Comunidades rurais de Juazeiro sofrem com a escassez de água. 
Jornal do Meio Ambiente, Salvador, 29 jun. 2005. 
HAESBAERT, R. O mito da desterritorialização, do “fim dos territórios” à multiterritorialidade. 
Rio de Janeiro: Bertrand do Brasil, 2004.
HARVEY, D. A condição pós-moderna. São Paulo: Edições Loyola, 1993. p. 257-258).
HOLANDA, F. B. Estorvo. São Paulo: Companhia das Letras, 1991.
JUST SOMETHING. World cities before after. 2014. <https://justsomething.co/wp-content/
uploads/2014/05/world-cities-before-after-3.jpg>. Acesso em: 3 ago. 2018.
MCDOWELL, L. A transformação da geografia cultural. In: GREGORY, D.; MARTIN, R., 
SMITH, G. Geografia humana: sociedade, espaço e ciência social. Rio de Janeiro: Jorge 
Zahar, 1995, pp 159-188. 
RAFFESTIN, C. Por uma geografia do poder. São Paulo: Ática, 1993. p. 143.
SÁ; GUARABYRA. Sobradinho. In: SÁ; GUARABYRA. Pirão de peixe com pimenta .São 
Paulo: Som Livre, 1977. 1 disco sonoro. Lado A, faixa 1.
SACCO, J. Área de segurança Gorazde – a guerra na Bósnia Oriental (1992-1995). São 
Paulo: Conrad, 2005.
SACCO, J. Palestina – uma nação ocupada. São Paulo: Conrad, 2004.
SACCO, J. Uma história de Sarajevo. São Paulo: Conrad, 2005.
SANTOS, M. Pensando o espaço do homem. São Paulo: Hucitec, 1986, p. 37
SANTOS, M. A natureza do espaço. São Paulo: USP, 2002.
SCHWARZ, R. Sequências brasileiras. São Paulo: Companhia das Letras, 1999. p. 181.
SMITH, N. A produção da natureza. Geografia. v. 9, n. 17-18, p. 16, 1984.
SPOSITO, E. S. Sobre o conceito de território: um exercício metodológico para a leitura 
da formação territorial do sudoeste do Paraná. In: RIBAS, A. D.; SPOSITO, E. S.; SAQUET, M. 
A. Território e desenvolvimento: diferentes abordagens. Francisco Beltrão: Unioeste, 2004. 
STRAUSS, L. O pensamento selvagem. Campinas: Papirus, 1989.
Leituras recomendadas
CUCHE, D. A noção de cultura nas ciências sociais. Bauru: Edusc, 2002.
GODOY, P. Uma reflexão sobre a produção do espaço. Revista Estudos Geográficos, n. 
2, p. 29-41, 2004.
Aspectos geográficos12
HISSA, C. E. V. A Mobilidade das fronteiras: inserções da geografia na crise da moderni-
dade. Belo Horizonte: UFMG, 2006.
OBSERVATÓRIO DAS METRÓPOLES METRODATA. Corticos - Projeto viver no centro 2018. 
Youtube, 2018. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=eEBmAmS_oNg>. 
Acesso em: 3 ago. 2018.
RODA VIVA. Milton Santos - 31/03/1997. Youtube, 2015. Disponível em: <https://goo.
gl/79xBps>. Acesso em: 3 ago. 2018.
13Aspectos geográficos
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