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ESTUDO DA SOCIEDADE Marli de Fátima Silva Aspectos geográficos Objetivos de aprendizagem Ao final deste texto, você deve apresentar os seguintes aprendizados: � Reconhecer que o homem elabora o espaço geográfico e constrói paisagens humanizadas conforme sua apropriação do espaço natural. � Explicar como o espaço geográfico é qualificado nos aspectos naturais e sociais, resultando em uma diversidade de territorialidades. � Descrever as diversas escalas do espaço: local, regional, nacional e global. Introdução Neste capítulo, será apresentado que o espaço geográfico constitui o esteio espacial das relações sociais. Trata-se do fruto do trabalho humano sobre o espaço, para a construção de uma espacialidade humanizada e múltipla, onde ocorrem as práticas sociais e culturais. Entre as especificidades espaciais, serão estudadas as modulações espaciais, como o “lugar”, de escala íntima, pois se trata da porção das práticas sociais cotidianas, e o “território”, onde ocorre um maior dimensionamento das relações sociais no contexto do espaço huma- nizado e a ideia de paisagem que embasa tais modulações do espaço geográfico (e natural). O espaço geográfico O espaço onde vivemos é qualificado de modo natural e cultural. Cícero, escritor latino, afirmou (apud SMITH, 1984, p. 16) que: [...] à nossa disposição estão montanhas e planícies. Nossos rios e lagos. Colhemos o milho e plantamos árvores. Fertilizamos o solo pela irrigação. Represamos os rios para orientá-los a nosso bel-prazer. Pode-se dizer que com nossas mãos tentamos criar uma segunda natureza no mundo natural. Para Milton Santos, o espaço, construído historicamente, corresponde à acu- mulação desigual de tempos. Desse modo, um conceito de grande importância em sua reflexão cultural é o de “rugosidade”, isto é, aquilo que permanece do passado como forma, espaço construído, paisagem. A cultura diz respeito à produção simbólica. Assim, como afirmou o influente antropólogo Claude Lévi-Strauss, é própria da linguagem, ou seja, pode ser traduzida. Se não fosse assim, não seria linguagem, visto que não apresentaria um sistema de signos equivalente a outro por meio de uma trans- formação (STRAUSS, 1989). Como vemos, a cultura é carregada de complexidade, e sua compreensão constitui uma das empreitadas mais caras às ciências sociais, como a antropo- logia e a sociologia da cultura. O esforço de promover uma segunda natureza, conforme expressão de Cícero, pertence ao universo da cultura, assim como os modos de pensar, de agir e de sentir. Naturalmente, a cultura não está circunscrita apenas ao mundo da an- tropologia, mas há um ramo da ciência geográfica, a geografia cultural, que reflete a distribuição geográfica do fenômeno cultural. Linda MacDowell define cultura como: [...] um conjunto de ideias, hábitos e crenças que dá forma às ações das pessoas e à sua produção de artefatos materiais, incluindo a paisagem e o ambiente construído. A cultura é socialmente definida e socialmente determinada. Ideias culturais são expressas nas vidas de grupos sociais que articulam, expressam e contestam esses conjuntos de ideias e valores, que são eles próprios específicos no tempo e no espaço (MCDOWELL, 1995, p. 161). Escolheu-se essa definição de cultura por se tratar de uma conceituação marcada pela espacialidade, que é a base dos aspectos geográficos em geral, sejam naturais ou humanos. Enfim, ao se apropriar do espaço natural, homens e mulheres elaboram o espaço geográfico e constroem paisagens humanizadas que expressam (e são expressão) a cultura da sociedade que o desenvolveu ao longo de sua história. A Figura 1 ilustra o processo de desenvolvimento da cidade de Nova York ao longo do tempo. Aspectos geográficos2 Figura 1. Evolução da cidade de Nova York ao longo dos anos. Fonte: Just Something (2014, documento on-line). Do local ao global: o espaço e suas diversas escalas Refletir geograficamente é reconhecer que os seres humanos, em momentos históricos particulares, construíram, destruíram e reconstruíram paisagens, e que estas possuem conteúdos sociais, políticos, econômicos e culturais e interagem com outras paisagens, desenvolvendo espaços carregados de cama- das de tempos históricos que constituem os chamados espaços geográficos. Desse modo, o espaço geográfico comporta uma multiplicidade de catego- rias espaciais, e esse universo é contraditório por natureza, desde o local até o global, passando por seus mediatos — o território e a fronteira, por exemplo. Uma vez que a geografia reflete o espaço, torna-se uma ciência permanente- mente à berlinda, pois este é dotado de uma gigantesca dinâmica diante das obsessões materiais de certas sociedades — a maioria, claro. Some a tudo que foi dito o impacto do desenvolvimento tecnológico que tornou o mundo ambivalente, pois este de um lado é vasto e, de outro, cabe 3Aspectos geográficos dentro de um chip. O geógrafo britânico David Harvey, em um livro muito influente, lembra que a: [...] aceleração do tempo de giro na produção envolve acelerações parale- las na troca e no consumo. Sistemas aperfeiçoados de troca e de fluxos de informações, associados com racionalizações nas técnicas de distribuição (empacotamento, controle de estoques, conteinerização, retorno do mercado etc.), possibilitam a circulação de mercadorias no mercado a uma velocidade maior. Os bancos eletrônicos e o dinheiro de plástico foram algumas das inovações que aumentaram a rapidez do fluxo de dinheiro inverso. Serviços e mercados financeiros (auxiliados pelo comércio computadorizado) também foram acelerados, de modo a fazer, como diz o ditado, ‘vinte e quatro horas ser um tempo bem longo’ nos mercados globais de ações (HARVEY, 1993, p. 257-258). A multiplicação das possibilidades que se abrem aos seres humanos nesta era tecnológica aviva contradições: crença e descrença revestem o caráter do sistema-mundo contemporâneo, pois, se estamos próximos da cura das mais variadas doenças, por outro lado, há uma crise de empregabilidade que afasta um número significativo de pessoas da produção de renda, de modo que comunguem de baixa qualidade de vida, enquanto as grandes fortunas se multiplicam. Se, após séculos de resistência, a mulher conseguiu diminuir o abismo de oportunidades e direitos que a separavam do homem, na atualidade multipli- cam-se e aprofundam-se os fundamentalismos. E tantas outras contradições poderiam ser trazidas à tona. O espaço geográfico e suas modulações escalares Importantes geógrafos definem o espaço geográfico como o objeto de estudo da geografia. Trata-se, então, da porção espacial que foi alterada pelas ações humanas, ou seja, é produto do trabalho humano a partir da apropriação do “espaço natural”, que corresponde ao conjunto de elementos não alterados pela ação humana, isto é, o espaço da natureza. O geógrafo Manuel Correia de Andrade nos ensina que a “geografia é a ciência que estuda o espaço geográfico, espaço produzido pelo homem ao intervir no meio natural, adaptando-o à sua exploração, à utilização dos seus recursos, segundo as formas institucionais e as disponibilidades culturais, técnicas e econômicas de que dispõe”. Aspectos geográficos4 Entre a multiplicidade de espaços existentes, há o “espaço da produção”, que envolve fábricas, campos de cultivo e oficinas, entre outros; o “espaço da circulação”, correspondente a ruas, praças e rodovias, por exemplo; o “espaço das ideias”, representado por escolas, quartéis, igrejas e mídia. Além disso, em tempos de globalização, há um espaço carregado por uma densidade muito específica, caso do “espaço virtual”. Desse modo, para se compreender o espaço geográfico, é necessário analisar tanto sua face visível (aspectos físicos e modificações introduzidas pelo ser humano) como sua parte não visível, o que implica conhecer a sociedade e seus aspectos políticos, econômicos e culturais. O espaço geográfico compreende outras categorias espaciais, como lugare território, que possuem uma dimensão visual relacionada à paisagem, que, por seu turno, pode ser natural, constituída por fenômenos como clima, vege- tação, relevo, solo, hidrografia etc.; e cultural (ou geográfica), quando reflete o espaço constituído pela produção de bens materiais e de infraestruturas, como habitação, estradas, pontes, cidades etc. Milton Santos (1986, p. 37) afirma que a: [...] paisagem não tem nada de fixo, de imóvel. Cada vez que a sociedade passa por um processo de mudança, as relações sociais e políticas também mudam, em ritmos e intensidade variados. A mesma coisa acontece em re- lação ao espaço e à paisagem, que se transforma para se adaptar às novas necessidades da sociedade. Lugar é um dos conceitos-chaves fundamentais da geografia. De fato, para se entender a espacialidade em sua dimensão mais profunda, é necessário reconhecer que o espaço se materializa na forma de objetos concretos, mas possui uma estrutura simbólica de extrema importância. O lugar corresponde a uma porção ou parte do espaço onde vivemos, ou seja, trata-se de uma porção espacial produzida ao longo de um determinado tempo, apresentando enormes singularidades, pois carrega grande carga simbólica e agrega ideias e sentidos produzidos por aqueles que o habitam. Para o mestre baiano, “Os elementos fixos, fixados em cada lugar, permitem ações que modificam o próprio lugar, fluxos novos ou renovados que recriam as condições ambientais e as condições sociais, e redefinem cada lugar”, ou, ainda, “[...] conjunto indissociável de sistemas de objetos e sistemas de ações” (SANTOS, 1996, p. 21). Então, em sua concepção mais ampla, o espaço geográfico contempla uma gama de lugares, de territórios e, portanto, de territorialidades, sendo o lugar, 5Aspectos geográficos segundo Santos (2002, p. 256), “[...] o acontecer solidário da vida cotidiana e cada lugar se define pelas existências corpórea e relacional”. Além disso, ainda segundo o autor, o espaço constitui o: “[...] momento do imenso movimento do mundo, apreendido em um ponto geográfico [...]. Por isso mesmo, os lugares mudam de significação, graças ao movimento social: a cada instante as frações da sociedade que lhe cabem não são as mesmas” (SANTOS, 1992, p. 21-23). Ao discutir o conceito de lugar, Milton Santos introduz dois outros con- ceitos de grande interesse, a tecnoesfera e a psicoesfera, que corresponde ao “reino das ideias, crenças, paixões e lugar da produção de um sentido, também faz parte desse meio ambiente, desse entorno da vida, fornecendo regras à racionalidade ou estimulando o imaginário”. Milton segue adiante e ensina que tanto “[...] a tecnoesfera (mundo dos objetos) quanto a psicoesfera (esfera da ação) são locais, mas constituem o produto de uma sociedade bem mais ampla que o lugar. Sua inspiração e suas leis têm dimensões mais amplas e mais complexas” (SANTOS, 2002, p. 256). Enfim, entender o espaço demanda a percepção de que existem diversas escalas espaciais, que vão desde a local até a global, passando pela regional e nacional, e que todas apresentam impactos sobre a organização social, desde o impacto sobre o cotidiano mais íntimo, a vida cultural e o imaginário, até os impactos de ordem material. Em entrevista ao programa Roda Viva (31/03/1997), o geógrafo Milton Santos debate uma variedade de temas relacionados ao tema aqui trabalhado. https://goo.gl/79xBps Espacialidades e cultura: o caso do território Como vimos, o espaço geográfico é qualificado pela natureza e pela cultura — o que passa por diversos desdobramentos, como a economia, a política, a língua, as leis e a religião, entre outros. Assim, a cultura constitui uma Aspectos geográficos6 baliza social na produção e na reprodução espacial, ordenando um conjunto de localidades e territorialidades. O território é um conceito-chave espacial básico, sendo, também, passível de reelaborações: se em tempos passados foi conceituado como o principal meio de materialização da soberania e do poder nacional, atualmente podemos interpretá-lo de acordo com outros olhares. O território pode ser apreendido segundo duas concepções tradicionais que apresentam pontos de intersecção entre si; assim, conforme nos lembra Raffestin (1993, p. 143), é: [...] essencial compreender bem que o espaço é anterior ao território. O território se forma a partir do espaço, é o resultado de uma ação conduzida por um ator sintagmático (ator que realiza um programa) em qualquer nível. Ao se apropriar de um espaço, concreta ou abstratamente [...] o ator “territorializa” o espaço. Por outro lado, território pode vir a ser encarado: [...] tanto como o que se encontra no território, estando sujeito a sua gestão, como, ao mesmo tempo, o processo subjetivo de conscientização da população de fazer parte de um território, de integrar-se em um Estado [...]. A formação de um território dá às pessoas que nele habitam a consciência de sua partici- pação, provocando o sentido da territorialidade que, de forma subjetiva, cria uma consciência de confraternização entre elas (ANDRADE, 1995, p. 20). No entanto, em um mundo marcado pela globalização mediada por agentes transnacionais e por suas técnicas de informação e circulação, o território passa a desenvolver uma multiplicidade de territorialidades, o que implica a necessidade de uma definição de território capaz de contemplar as variadas realidades. Para o geógrafo Rogério Haesbaert, o território possui três vertentes básicas mutuamente excludentes, embora se integrem em um contexto de relações socioespaciais na promoção de uma territorialidade passível de ser compre- endida a partir da justaposição desta tríade conceitual: 1. jurídico-política, na qual “[...] o território é visto como um espaço delimitado e controlado sobre o qual se exerce um determinado poder, especialmente o de caráter estatal” (HAESBAERT apud SPOSITO, 2004, p. 18); 2. cultural(ista), responsável por dar prioridade às “[...] dimensões sim- bólicas e mais subjetivas, o território visto fundamentalmente como 7Aspectos geográficos produto da apropriação feita através do imaginário e/ou identidade social sobre o espaço” (HAESBAERT apud SPOSITO, 2004, p. 18); 3. econômica, “[...] que destaca a desterritorialização em sua perspectiva material, como produto espacial do embate entre classes sociais e da relação capital-trabalho” ( HAESBAERT apud SPOSITO, 2004, p. 18). Se, conforme Giles Deleuze e Felix Guatari — criadores da expressão desterritorialização —, território é o espaço de um certo ordenamento, prati- camente sinônimo de apropriação e subjetivação humanas, desterritorializar constitui uma ação de desordem. O geógrafo Rogério Haesbaert vem, há tempos, discutindo o conceito de território vinculado a um processo contínuo de desterritorialização (e reterritorialização). A desterritorialização abarca os mecanismos que apartam o território das suas “raízes” sociais e culturais, enquanto a reterritorialização, por outro lado, busca a criação de novos vínculos no lugar daquelas que se perderam. O vídeo Cortiços do Centro do Rio de Janeiro tem como finalidade provocar o debate sobre o cortiço — forma de moradia utilizada no Brasil desde o século XIX. No Rio de Janeiro, cenário do vídeo, o cortiço não é sequer contabilizado nos diagnósticos da Prefeitura sobre moradia; assim, sua existência é marcada pela marginalidade. Os moradores dos cortiços cobram a regulamentação dos locais para que políticas públicas e programas sociais possam se estender até eles. https://goo.gl/QrfALz Como já mencionado, em uma referência a Manuel Correa de Andrade (1995), no processo de construção de um determinado território, as pessoas que o habitam desenvolvem a consciência de sua participação, o que provoca o sentido da territorialidade e de confraternização entre si. Desse modo, desterritorializar corresponde à retirada do território de alguém, como no caso da construção de uma barragem, quando pessoassão retiradas de seu contexto espacial. O mundo contemporâneo é marcado pelo fenômeno da migração, o qual provoca o sentimento de desterritorialização, caso, por exemplo, do dramático Aspectos geográficos8 deslocamento dos refugiados, já que esses migrantes, geralmente, se tornam desterrados de maneira violenta. Várias manifestações artísticas, como a música, a literatura e a HQ, produ- ziram obras prestigiosas a respeito da desterritorialização, algumas refletindo o tema propriamente dito, outras o tangenciando sem pautar-se em sua reflexão específica. A música “Sobradinho”, composição de Sá e Guarabyra (1971), interpretada originalmente pela própria dupla é um exemplo: “Remanso, Casa Nova, Sento-Sé, Pilão Arcado e Sobradinho” são cidades da Bahia difundidas por meio da música. Seu refrão — “O Sertão vai virar mar, dá no coração, um medo que algum dia o mar também vire Sertão” — é um dos mais famosos da MPB. Ao final da canção, os cantores dizem adeus àquelas cidades, em uma referência à inundação que sofreram para a instalação da represa de So- bradinho, um dos maiores lagos artificiais do mundo (4.214 km2), construído na década de 1970, a fim de controlar a vazão do rio São Francisco, para a produção de energia hidrelétrica. A construção da represa constitui um modo radical de intervenção humana sobre a “primeira natureza”, para a elaboração de um espaço artificial. Apesar de retirar pessoas de seus lugares, a represa não assegurou cidadania aos mais necessitados. Comunidades que vivem nas proximidades do rio (conhecido carinhosamente como Velho Chico) dependem de suas águas para atender a necessidades básicas; porém, nem sempre tais agrupamentos humanos dispõem de meios para se apropriarem desse recurso vital: mal e mal matam a sede e alimentam os animais — apesar de se tratar de uma gente que margeia o curso fluvial. Os intérpretes da música flagraram o “Sertão nordestino” no momento em que essa sub-região tornou-se, literalmente, um mar de água doce. Nesse contexto, os versos “[...] debaixo d’água lá se vai a vida inteira” se referem a cerca de 70 mil pessoas que, em meados dos anos de 1970, pegaram seus escassos pertences e seguiram para uma das novas cidades construídas pela Companhia Hidroelétrica do São Francisco (CHESF), enquanto as águas do rio inundavam suas casas. Na ocasião, o deslocamento das pessoas era pautado pela esperança por dias melhores, afinal, desterrados, deveriam receber algum benefício que amainasse suas magras existências. Entretanto, aos poucos, a desesperança se sobrepôs aos sonhos, do mesmo modo que as águas do “Velho Chico” afogaram suas geografias particulares, pois na atualidade essas cidades são muito pouco lembradas pelos poder público, como diz o morador João Olim- pio Pereira, de 47 anos, em reportagem do “Correio da Bahia”, publicado no 9Aspectos geográficos Jornal do Meio Ambiente, em 29 de junho de 2005: “A gente mora dentro do rio e morre de sede”. Em Estorvo, primeiro romance de Francisco Buarque de Holanda, publicado em 1991 (o músico consagrado carregava a experiência da novela Fazenda Modelo e de peças teatrais, como Calabar: o elogio da traição), o autor narra, em primeira pessoa, a história de um homem de nome não identificado, que, cansado da rotina e das pessoas que o cercam — mãe, irmã, ex-mulher e amigos —, vaga pelas ruas de uma grande cidade. Embora esta não seja identificada, é visível que se trata do Rio de Janeiro, espaço flagrado em toda a carga explosiva de tensões que encerra. Com pena pesada, o autor coloca em evidência a cidade e sua sociedade vincadas pela violência — violências, aliás, que se entrecruzam para criar um espaço de “delicadeza perdida”, conforme expressão presente no título de um documentário dedicado à sua obra musical (Chico ou o país da delicadeza perdida, 1989), a qual aborda de modo intenso a perda da aura romântica da antiga capital brasileira, sobretudo em sua versão “anos dourados”, para ceder lugar ao espaço crivado de violência. O ensaísta e crítico literário Ro- berto Schwarz afirma que essa obra realiza a metáfora do Brasil, em uma “[...] disposição absurda de continuar igual em circunstâncias impossíveis” (SCHWARZ, 1999, p. 181). No poema “Evocação do Recife”, inserido por Manuel Bandeira no livro Libertinagem, publicado em 1930, fica explícita a preocupação do autor com a disposição gráfica, por meio da força da palavra coloquial e cotidiana, e, naturalmente, por seus aspectos sonoros — esse recurso de expressão imprime um ritmo harmonioso ao poema, que, por fim, dado seu timbre onírico, ganha ares de canção, característica que se torna ainda mais forte quando o poema é interpretado pelo poeta. Ao rememorar a cidade de Recife da sua infância, Manuel Bandeira de- sencadeia uma multiplicidade de lugares que coexistem no interior de um mesmo espaço urbano, e constrói uma polifonia territorial e cultural, que se encerra como forma de desterritorialização em razão da emigração do poeta em direção à capital do país, Rio de Janeiro. Assim, no poema, Bandeira rememora a Recife da infância da qual foi descontextualizado. Já o escritor, jornalista e quadrinista, Joe Sacco, fala de territórios sitiados e da vida dentro da adversidade, refletindo os casos da Palestina, da Bósnia e da Sérvia, nas histórias em quadrinho Palestina – uma nação ocupada (2004) e Uma história de Sarajevo (2005). A temática palestina-israelense é uma das mais encanecidas entre os tantos conflitos territoriais e culturais que assolam e/ou assombram o mundo contem- Aspectos geográficos10 porâneo: uma armadilha preparada com esmero pelos vaivéns e pelos revezes do tempo. Afinal, suas raízes remontam a um período remoto da história, e em um contexto de retumbante desvantagem dos palestinos. “Sacco dá uma cara aos árabes sem cara”, diz José Arbex na introdução do livro-reportagem em quadrinhos que “[...] mostra o sofrimento das mães palestinas, a ansiedade das crianças, o terror dos homens diante de um Exército formidável, poderoso e fascistoide, que é o israelense” (SACCO, 2004, p. 5), afirma o jornalista. Apesar do teor da afirmação de Arbex, o desenhista e jornalista não produz um panfleto palestino, assim como não o fizera com o caso bósnio nos livros Uma história de Sarajevo e Área de segurança Gorazde – a guerra na Bósnia Oriental (1992-1995) (SACCO, 2005). Da parte do autor há, na verdade, uma intenção de vasculhar o campo da tragédia que permeia o cotidiano da vida humana na Palestina, território sitiado pelos israelenses, povo também antigo da região, e que esteve forçosamente fora de sua terra por aproximadamente dois mil anos. Desse modo, Sacco traz à tona heróis e covardes, assim como as esperanças e frustrações dos palestinos. Assim, diz Arbex, “nisso reside a legitimidade e o poder deste livro: no mundo em que im- pera as imagens, Sacco produz as suas próprias imagens de mundo para subverter, questionar uma percepção uniformizada pela grande mídia” (SACCO, 2004, p. 6). Essas três obras denunciam as agruras de povos que vivem (ou viveram) a dura desterritorialização, caso dos palestinos, mas também do povo bósnio, que, destarte a menor intensidade quando comparado à desterritorialidade palestina, no limite sofre algum modo de desterritorialização, afinal, em razão da distância de sua cultura com relação ao cânone europeu, o país é, de algum modo, desterrado no próprio território. Desse modo, Sacco fala da experiência de pessoas que vivem ou viveram sitiadas no território que lhes pertence por herança cultural, mostrando um exemplo sobre o tema estudado, a fim de que o leitor o compreenda de maneira mais eficaz. ANDRADE, M. C. A questão do território no Brasil. São Paulo: Hucitec; Recife: IPESPE, 1995, p. 20. BANDEIRA, M. Evocação do Recife. In: BANDEIRA, M. Libertinagem. São Paulo: Nova Fronteira, 1930. 11Aspectos geográficos CHICO OU O PAÍS DA DELICADEZA PERDIDA. Direção: Valter Salles. Rio de Janeiro: Videofilmes,1989.CORREIO DA BAHIA. Comunidades rurais de Juazeiro sofrem com a escassez de água. Jornal do Meio Ambiente, Salvador, 29 jun. 2005. HAESBAERT, R. O mito da desterritorialização, do “fim dos territórios” à multiterritorialidade. Rio de Janeiro: Bertrand do Brasil, 2004. HARVEY, D. A condição pós-moderna. São Paulo: Edições Loyola, 1993. p. 257-258). HOLANDA, F. B. Estorvo. São Paulo: Companhia das Letras, 1991. JUST SOMETHING. World cities before after. 2014. <https://justsomething.co/wp-content/ uploads/2014/05/world-cities-before-after-3.jpg>. Acesso em: 3 ago. 2018. MCDOWELL, L. A transformação da geografia cultural. In: GREGORY, D.; MARTIN, R., SMITH, G. Geografia humana: sociedade, espaço e ciência social. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1995, pp 159-188. RAFFESTIN, C. Por uma geografia do poder. São Paulo: Ática, 1993. p. 143. SÁ; GUARABYRA. Sobradinho. In: SÁ; GUARABYRA. Pirão de peixe com pimenta .São Paulo: Som Livre, 1977. 1 disco sonoro. Lado A, faixa 1. SACCO, J. Área de segurança Gorazde – a guerra na Bósnia Oriental (1992-1995). São Paulo: Conrad, 2005. SACCO, J. Palestina – uma nação ocupada. São Paulo: Conrad, 2004. SACCO, J. Uma história de Sarajevo. São Paulo: Conrad, 2005. SANTOS, M. Pensando o espaço do homem. São Paulo: Hucitec, 1986, p. 37 SANTOS, M. A natureza do espaço. São Paulo: USP, 2002. SCHWARZ, R. Sequências brasileiras. São Paulo: Companhia das Letras, 1999. p. 181. SMITH, N. A produção da natureza. Geografia. v. 9, n. 17-18, p. 16, 1984. SPOSITO, E. S. Sobre o conceito de território: um exercício metodológico para a leitura da formação territorial do sudoeste do Paraná. In: RIBAS, A. D.; SPOSITO, E. S.; SAQUET, M. A. Território e desenvolvimento: diferentes abordagens. Francisco Beltrão: Unioeste, 2004. STRAUSS, L. O pensamento selvagem. Campinas: Papirus, 1989. Leituras recomendadas CUCHE, D. A noção de cultura nas ciências sociais. Bauru: Edusc, 2002. GODOY, P. Uma reflexão sobre a produção do espaço. 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