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BPI – Biblioteca Pública Independente www.bpi.socialismolibertario.com.br MAL-BH – Movimento Anarquista Libertário www.socialismolibertario.com.br MULHERES NA REVOLUÇÃO RUSSA Salete Oliveira 2007 Zona é uma palavra russa que designa campo prisional. Esta palavra foi absorvida pelo idioma português, no Brasil, e passou a designar, mais recentemente, bagunça, baderna.... No entanto, do ponto de vista histórico-político, assumiu estatuto equivalente ao sinônimo zona de tolerância, território de prostituição, espaço ilegal tolerado e administrado legalmente quando serve à manutenção da estabilidade do matrimônio, a pacificação do sexo. Sexo, uma das interdições da política moderna. Proibição moral que incidiu e incide com mais contundência sobre corpos de crianças, jovens e mulheres. A anarquista Emma Goldman foi sensível a este problema específico e em momento algum negligenciou os efeitos da interdição do sexo e das condições históricas de emergência e continuidade dos encarceramentos de corpos. E, quando foi preciso fez de tudo, inclusive prostituir-se, para livrar seu homem, o anarquista Alexandre Berkman, seu Sasha, da prisão. A vida é mesmo incompatível com a moral: Emma, arruinou a palavra zona, duplamente, abalando a moral que reserva às mulheres os lugares complementares de esposa e mãe; puta e santa. Como anarquista não deixou de estar atenta ao fato de que a punição, talvez, seja a questão principal da própria política. http://www.bpi.socialismolibertario.com.br/ http://www.socialismolibertario.com.br/ Emma Goldman estava habituada em freqüentar as cadeias americanas, pois foi presa inúmeras vezes e identificada como elemento socialmente perigoso por suas práticas anarquistas. Após o término de sua última temporada na prisão, que durara dois anos, por agitar contra a primeira Guerra Mundial, Emma, no final do ano de 1919, foi deportada dos Estados Unidos para a Rússia na companhia de Alexandre Berkman e mais 61 anarquistas. Naquela ocasião, os assinantes da Revista Mother Earth, fundada por Emma em 1906, e que continuava a circular até então, foram convocados a se apresentar perante a justiça americana para prestar depoimentos e esclarecimentos sobre suas ligações com práticas políticas subversivas. Emma Goldman aportou na Rússia animada com a perspectiva da revolução social. Mas, não foi preciso muito tempo para perceber que aquela não era a sua revolução. A historiadora Margareth Rago singulariza as mulheres anarquistas por alguns atributos diferenciados, dentre os quais um coração bem grande. O imenso coração de Emma foi ficando cada vez mais apertado e seus olhos estarrecidos diante do curso que a Revolução Russa tomava. Emma Goldman narra que na América uma das principais atividades dos anarquistas era arrancar pessoas da prisão, contudo jamais imaginou que esta passaria a ser, também, uma de suas principais ocupações na Rússia Soviética. No gabinete com Alexandra Kollontai, muitas palavras Há tempos, Emma Godman ouvira falar de Alexandra Kollontai, a conhecida comunista defensora da emancipação feminina. Certa vez, soube que ela estava de passagem por Nova York em companhia de Trotsky. Pretendendo encontrar-se com Kollontai, compareceu ao comício em que Trotsky discursava. Relembra que ficou impressionada com o poder de oratória, e a capacidade de inflamar as pessoas com as palavras, daquele que mais tarde viria a comandar o Exército Vermelho. Contudo, seria na Rússia e não na América que ela e Kollontai se conheceriam pessoalmente. Foi ainda no início de sua estadia na Rússia, que duraria até 1921, que Emma procurou Alexandra. Foi ao encontro da primeira mulher que ocupou um cargo de comissária no governo bolchevista, na tentativa de que ela intercedesse diante da situação de miséria dos trabalhadores, da caça generalizada impetrada pela Cheka, dos aprisionamentos e execuções de socialistas revolucionários e anarquistas; ou de qualquer um que pensasse diferente do governo da ditadura do proletariado. Adentrou no gabinete e surpreendeu-se com a suntuosidade das acomodações. Sobre a escrivaninha de Kollontai havia rosas vermelhas. Era a primeira vez que Emma via flores desde que chegara à Rússia e elas, viçosas sobre a mesa, contrastavam com a desolação de pessoas famintas, perseguidas, jogadas nos cárceres, enviadas para campos de concentração e mortas pela revolução. Enquanto reconhecia o ambiente, pensava: que revolução era aquela que substituía tiranias? Quando voltou seus olhos para a mulher que lhe aguardava, deparou-se com a figura majestosa de uma grande dama, uma mulher linda, distante e fria, diferente da revolucionária apaixonada que imaginara. O aperto de mão frouxo que Alexandra lhe deu deixou a anarquista alerta, ainda que a comunista lhe dissesse que estava contente em conhecê-la. Após ouvi-la impassível, Kollontai restringiu-se a dizer que as pequenas coisas não importam. Emma não se deu por vencida e rebateu que as pequenas coisas as quais ela se referia são as vitais. Incólume, sua interlocutora afirmou que tal situação em um panorama revolucionário de tal magnitude é inevitável diante de um país e de um povo tão atrasados. A situação, continuava ela, iria se modificar quando cessasse a guerra civil interna e a condição do nível mental das massas fosse elevado. Foi nesse momento que Alexandra Kollontai propôs a Emma Goldman que parasse de dar voltas em torno de uma luta inútil, para se juntar a ela na grande tarefa revolucionária de trabalhar com as mulheres, ignorantes nos princípios mais básicos da vida, começando por conscientizá-las de seu papel de mães e cidadãs. Emma Goldman, segundo suas próprias palavras, sentiu que um frio gelado penetrava até a medula de seus ossos. Recusou o convite e retirou-se do gabinete. Lênin afirmava que nenhum governo fez mais pelas mulheres do que o soviético. Alexandra Kollontai foi a primeira mulher eleita para o Comitê Central, ainda em 1917, votando a favor da sublevação de outubro; a primeira mulher a ocupar um cargo no governo bolchevista, assumindo o posto de Comissária do Povo para a Saúde e fez parte da elaboração do Código de 1918. Ficou conhecida na grande história por ter vinculado a questão das mulheres à luta de classes e ao partido; foi, ainda, criadora do dia internacional da mulher. Sua crítica ao aborto baseava-se na defesa da maternidade como um dever de todas as mulheres. Em 1922 tornou-se embaixadora mundial, partiu de Moscou, e iniciou uma carreira diplomática internacional que durou até 1945. No quartinho com Angélica Balabanoff, poucas palavras Emma Godman pensava consigo: será Angélica Balabanoff tão fria e insensível ao sofrimento das pessoas quanto Kollontai? Acreditando na revolução social e investindo as suas forças na perspectiva de uma mudança radical do curso dos acontecimentos, partiu em busca da comunista Balabanoff. Localizá-la não foi muito difícil, e após descobrir que eram praticamente vizinhas, foi visitá-la. Encontrou Angélica, num fim de tarde, deitada em um sofá adoentada, no pequeno quartinho que habitava. Segundo Emma, ele era escuro, frio e úmido. Miserável... Parecia mais uma cela do que uma residência. No encontro entre as duas mulheres a conversa foi tecida por densos silêncios, decisivos para o início de uma amizade que seguiria vigorosa a partir de então. Seus grandes olhos tristes esbanjavam uma ternura atenta ao sofrimento do povo russo e àquela que lhe procurava. Emma soube, sem demora, que era entendida em sua aflição e dúvidas sem precisar pronunciar uma só palavra. Comeram uma gelatina, pequeno luxo, que Angélica dividiu com Emma, não sem antes alertá-la quanto às restrições que passaria, e para as condições de pobreza que deveria se preparar para enfrentar. Mas, enfatizou vigorosa que poderia contar com ela para o que fosse preciso, de forma incondicional. A generosidade de Angélica levouEmma a um pranto convulsivo. Era a primeira vez que chorava desde que partiu da América em direção à Rússia Soviética. Outros encontros, outras tantas palavras Emma sabia que as duas mulheres comunistas mais importantes da Rússia eram Alexandra Kollontai e Angélica Balabanoff. Contudo, o que faltava à Alexandra era abundante em Angélica. Balabanoff foi a responsável, a pedido de Emma, por conseguir marcar uma audiência entre ela, Alexandre Berkman e Lênin. Lênin, aliado a Trotsky, não cedeu e persistiu no que ele, já em janeiro de 1918, denominava a organização da emulação, segundo suas própria palavras, a limpeza da terra russa de todos e quaisquer insetos nocivos: elementos estranhos, os indignos de confiança, mas não só, também os operários negligentes ao trabalho, enfim, a peste da revolução deveria ser extirpada. Angélica não cessou jamais de se mostrar solidária e possibilitou junto a várias instâncias do governo bolchevista o acesso de Emma Goldman, Alexandre Berkman e outros anarquistas às fábricas, hospitais, prisões e campos de concentração, juntando-se a eles na luta contra os aprisionamentos e execuções. Nestes lugares Emma se encontraria com inúmeras outras mulheres. Na fábrica, certa vez, o encontro se daria com uma ex-funcionária da Cheka que passava a assumir a direção daquele espaço, imbuída do desejo de lá imprimir a mesma disciplina no trabalho defendida por Trotsky e aprendida pela introdução do taylorismo na economia soviética. Em sua casa - um encontro insólito, faria Emma explicitar, sem meias palavras, sua repulsa por mulheres que preferem o cômodo lugar de esposas e fazem disso um título de autoridade -, quando voltava de uma visita a um hospital Emma se depara com uma jovem anônima lhe aguardando. No momento em que ela se identificou como a esposa do chefe da Cheka, Emma apontando a porta da rua disse que se retirasse. A tal mulher, então, perguntou- lhe se ela não temia represálias por expulsar da sua casa a esposa do chefe da polícia política. Emma, destemida, respondeu-lhe que se negava a respirar o mesmo ar de uma mulher que fosse capaz de viver com um carniceiro e, a pôs para fora. Noutra ocasião, quando visitava uma prisão atulhada de gente, presenciou a cena de uma velha camponesa ucraniana jogada em uma cela de prisão que delirava; balbuciava que a tirassem dali, que não sabia de nada, que não sabia de Makhno. Da cela ao lado ecoavam os gritos de um homem: assassinos, carniceiros! Algum tempo depois, adviria outro encontro com mulheres presas em campos de concentração. Uma carta, escrita por uma mulher que assinava “T”, chegava às mãos de Emma por mil subterfúgios. Trazia notícias de Fania Baron e de outros anarquistas que haviam sido transferidos da prisão de Butyrki para o campo de concentração de Ryazan. Na noite da transferência a Cheka invadiu Burtiky e ordenou que os mais de 400 prisioneiros, que lá se encontravam, recolhessem seus pertences, pois seriam mandados para outras instituições penais. Os presos, receando irem para a execução se recusavam a sair e foram duramente espancados. A carta narrava que especialmente as mulheres foram maltradas e as que resistiam eram arrancadas de lá pelos cabelos. Era o encontro com o Gulag. A antiga prática czarista, exercitada desde o século XVIII, foi redimensionada pelo governo bolchevista, incorporando-o ao próprio modo de produção, aliando em campos específicos, o aprisionamento; o trabalho escravo e o extermínio. O Gulag, desde a Revolução Russa, tornou-se parte indissociável da economia comunista. Nos Gulag´s os que se recusam a se submeter ao trabalho forçado ou não cooperam são mortos. A anarquista Fania Baron que conseguira, posteriormente, fugir do campo de Ryazan seria caçada. Algumas semanas após ser recapturada, o Moscou Izvestia publicava o relatório oficial do Veh-Tcheka sobre o banditismo anarquista e anunciava que dez anarquistas haviam sido fuzilados sumariamente. Dentre eles estava Fania Baron. Em 1918, Lênin já exigia que os indignos de confiança e os inimigos em potencial fossem encarcerados em campos de concentração fora das cidades principais. Em 1921, já havia 84 campos de concentração espalhados em 43 províncias. Desde então, o Gulag não cessou de crescer e se alastrar pelos 12 fusos horários do território soviético. Após o final da Segunda Guerra Mundial um terço da riqueza da União Soviética provém do trabalho escravo dos Gulag´s. O Gulag visto pelo olhar de uma criança pequena, silêncio Vera, pequena prisioneira de um dos muitos campos para crianças, quando colocada frente ao desenho de uma casa não soube dizer o que era aquilo. Anastas, um pouco maior que ela, respondeu rápido: um alojamento. Diante um gato rabiscado sobre o papel os dois ficaram mudos. Nunca haviam visto o tal bicho. Vera se alegrou quando conseguiu finalmente dar o nome para algo que reconhecia cotidiano e nítido. Diante do desenho de cruzes de arame farpado dispostas em um círculo a menina gritou encantada por seu acerto: a zona prisional. Bibliografia GOLDMAN, Emma. Viviendo mi vida, vol. I e vol II. Tradução de Antonia Ruiz Cabezas. Madri: Fundación de Estúdios Libertários Anselmo Lorenzo, 1996. VERVE, revista semestral autogestionária V. 12. São Paulo: Nu-Sol, 2007. RAGO, Margareth e BIAJOLI, Maria Clara Pivato. “Mujeres libres” da Espanha: documentos da Revolução Espanhola. Rio de Janeiro: Achiamé, 2008. (Inclui carta de Emma Goldman ao coletivo Mujeres Libres) APPLEBAUM, Anne. Gulag: uma história dos campos de prisioneiros soviéticos. Tradução de Mário Vilela e Ibraíma Dafonte. Rio de Janeiro: Ediouro, 2004. Núcleo de Sociabilidade Libertária - Nu-Sol Texto extraido de http://www.nu-sol.org. Acessado em: 03/01/2012.
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