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1 A FORMAÇÃO POLÍTICA DO TRABALHADOR: A EDUCAÇÃO COMO INSTRUMENTO DE TRANSFORMAÇÃO SOCIAL 1 CARLOS BAQUEIRO 2 RESUMO: O presente artigo buscou analisar e discutir sobre a situação atual de como se encontra o mundo, de forma bem geral, e, de forma particular, como se encontra o Brasil, no que tange a exploração a que é submetida a maioria da população, e a violência que permeia de maneira incisiva todas as grandes cidades e suas periferias. E a partir dessa constatação, procurou-se analisar algumas propostas de alternativa a tal quadro, concentrando-se em pensadores (e praticantes) que propunham a necessidade de a educação ser parte primordial de uma transformação social. Em todo conjunto do texto foi privilegiada a questão da educação política sindical, dentro de um conjunto maior de propostas. PALAVRAS-CHAVE: Formação Sindical; Anarquismo; Marxismo; Educação; Revolução; Consciência de Classe. Quem, melhor que os oprimidos, está preparado para compreender o terrível significado de uma sociedade opressora? Quem sofre os efeitos da opressão com mais intensidade que os oprimidos? Quem com mais clareza que eles pode captar a necessidade da libertação? Os oprimidos não obterão a liberdade por acaso, senão procurando-a em sua práxis e reconhecendo nela que é necessário lutar para consegui-la. E esta luta, por causa da finalidade que lhe dão os oprimidos, representará realmente um ato de amor, oposto à falta de amor que se encontra no coração da violência dos opressores, falta de amor ainda nos casos em que se reveste de falsa generosidade (FREIRE, 2001, p.67). Paulo Freire INTRODUÇÃO Escrever este artigo é um ato de esperança. Esperança de poder sistematizar um pouco do que aprendi durante anos e anos sobre as possibilidades de mudança do 1 Artigo elaborado para a disciplina Educação, Formação e Subjetividade, do Programa de Pós- Graduação em Educação e Contemporaneidade da UNEB sob a orientação das professoras Liége Sitja Fornari e Tânia Regina Dantas. 2 Carlos Baqueiro trabalha como técnico, desde 1982, em áreas de indústrias de petróleo. É formado em História pela Universidade Católica do Salvador. Fez Curso de Especialização em História e Educação pela mesma Universidade, além de ser graduado em Jornalismo pela Faculdade da Cidade do Salvador. 2 mundo através da educação. E, mais especificamente, através da educação do trabalhador. Mas também esperança, sem soberbas, de que as pessoas leiam o que escrevo e reconheçam que uma mudança é necessária, e que é possível. Para isso transitarei por dois modelos de educação (referentes primordialmente à classe trabalhadora). Apresentarei algumas ideias marxistas a respeito da educação, e também as nuances da pedagogia libertária, ou anarquista. A escolha desses modelos não é, absolutamente, querendo transformá-los em esquemas herméticos, mas puramente desejando uma sistematização que permita um sentido para a produção do artigo, pois sabemos muito bem que, por exemplo, marxistas podem se mirar em educadores anarquistas. E libertários utilizam-se, por vezes, de métodos marxistas. No que tange ao modelo marxista me debruço sobre dois autores: Antônio Gramsci e Herbert Marcuse. Com relação ao primeiro, usarei seu texto Necessidade de uma Preparação Ideológica de Massa, escrito em 1925. Do segundo, usarei basicamente o terceiro capítulo do livro Ideologia da Sociedade Industrial (O Homem Unidimensional), A Oportunidade das Alternativas. Quanto à educação libertária, lanço mão de Fernand Pelloutier e Mikhail Bakunin. O primeiro, um sindicalista revolucionário dos primeiros anos do Séc. XX, através do livro quase biográfico, Instruir para Revoltar, de Grégory Chambat, e o segundo, um anarquista russo oitocentista, com seu texto clássico sobre A Instrução Integral. UM MODO DE VER O MUNDO A percepção de que havia algo de errado na política de funcionamento do mundo me chegou bem cedo. Eu tinha nove anos quando um primo meu foi preso durante os anos de chumbo do governo de Emílio Garrastazu Médici. Ele fazia parte de um grupo clandestino chamado MR8 (Movimento Revolucionário Oito de Outubro, em memória da captura de Ernesto Che Guevara em 1967 pelo exército boliviano) e adorava passar as noites conversando sobre política com meu pai, também petroleiro, como eu viria a ser mais tarde. Após a prisão, alguns homens de óculos escuros invadiram a casa onde eu morava no bairro do Uruguai, criaram uma série de constrangimentos, derrubaram livros das estantes, vasculharam armários na cozinha e quartos. Abriram e vasculharam gavetas e amedrontaram gentilmente meus irmãos (mais velhos que eu), minha mãe e 3 minha tia, que morava conosco, repetindo várias vezes que não teríamos nada a temer. Era apenas uma investigação de rotina. Saíram da casa deixando uma marca permanente no meu modo de ver o mundo. De uma forma ou de outra, a História do ser humano na Terra dá outras demonstrações insistentemente angustiantes de que vivemos em um mundo em que a vida da maioria da população é desrespeitada por uma minoria. Senhores feudais exploraram servos, guerreiros poderosos escravizaram inimigos, plebeus foram e continuam sendo desprezados pelos reis, ditadores torturam subversivos, homens de partidos enganam seus eleitores. E mesmo nas entranhas microscópicas da sociedade, em uma perversa ironia, aquele tipo de poder coercitivo se espalha. E assim professores torturam psicologicamente seus alunos através da violência simbólica a que são submetidos (TRAGTEMBERG, 2001), supervisores desprezam subordinados e os ameaçam através de assédio moral, cobradores de ônibus distratam passageiros, maridos violentam esposas. A violência, dessa forma, vai permeando as vidas de todos, particularmente em países de terceiro mundo. Nos bairros periféricos das cidades desse mundo, a violência chega a níveis assustadores e mata centenas de indivíduos em pouco mais de 30 dias. A polícia mata, os traficantes matam, os torcedores se matam, os familiares se matam. No Brasil, seja na democracia (que sai da sua adolescência) ou na ditadura dos generais, aquela violência avança. Como podemos ver no filme Cidade de Deus, de Fernando Meirelles, os vinte e um anos de militarismo não conseguiram conter o inferno do tráfico nas favelas cariocas. E hoje os presidentes eleitos diretamente não conseguem frear as estatísticas de assassinatos que começam a aparecer bem abaixo de seus olhos. Quando falo de esperança de mudança, é desse estado de coisas. Dessa estrutura em que o mundo se transformou e que não me parece ser um mundo agradável para ninguém (ou pelo menos para a maioria absoluta dos seus habitantes). E é neste sentido que temos que teorizar sobre a educação, e educação dos trabalhadores de uma forma particular. Que educação nós desejamos? Uma que 4 reproduza, de uma maneira ou de outra, o mundo que nos faz temer sair de casa, ou uma que pelo menos tente transformar de verdade as estruturas básicas desse mundo? Neste aspecto é recomendável que façamos um pequeno resumo do que se propôs, pelo mundo afora até hoje sobre a educação transformadora, buscando sempre as interfaces políticas e filosóficas dos modelos estudados. Essas análises se tornam indispensáveis para que se possa opinar que tipo de educação realmente traz mudanças. As análises, obviamente, têm a ver com minhas perspectivas políticas, e, por isso não deixam de ser parciais. Minha régua e compasso com relação à sistematização dos estudos e pesquisas históricas me foram dadas pelo Curso de Bacharelado em História que conclui no final dos anos 1990. Foi ali, nas disciplinas finais de pesquisa, que compreendi que não é possível ao historiador resgatar os fatos e acontecimentos do passado de forma neutra e imparcial, ao gosto da historiografia positivista.A escrita da história é, na realidade, essencialmente seletiva e interpretativa. É necessário se destacar de antemão que as posições adotadas neste texto sofrem interferências dos possíveis discursos do nosso tempo. Sendo, na realidade, bem mais interpretações de fatos e acontecimentos, de ideias e movimentos, que reprodução de tudo aquilo que é chamado de passado (JENKINS, 2001). Portanto, quando estiver falando das perspectivas de Marcuse, Bakunin, Pelloutier, ou qualquer outro, com relação à educação, eu estarei, na realidade, desenvolvendo uma narrativa que existe nas minhas perspectivas sobre o pensamento de todos eles. Com certeza, minhas diversas identidades como petroleiro, historiador, jornalista ou anarquista (e outras tantas) importam e muito nos resultados do que escrevo. Quando falo de Classe Trabalhadora neste trabalho, por exemplo, tenho em mente um conceito de classe de E.P. Thompson, no qual os trabalhadores constroem a classe não de uma forma transcendental, nem determinista, pois desta forma não estariam construindo nada. Mas classe como relação histórica. Que surge e se mantém tanto a partir das ações humanas, assim como dos condicionamentos estruturais: A classe acontece quando alguns homens, como resultado de experiências comuns (herdadas ou partilhadas), sentem e articulam a identidade de seus interesses entre si, e contra outros homens cujos interesses diferem (e geralmente se opõem) dos seus (THOMPSON, 1987, P.10). 5 Não tendo esta classe um interesse único, nem uma consciência ideal, “mas que tampouco é algo inexistente, uma mera construção ideológica, como pretendem certos cientistas sociais, pois sem ela não seriam possíveis greves gerais ou revoluções” (BATALHA, 1988). GRAMSCI: COMO PREPARAR AS MASSAS PARA A REVOLUÇÃO O meu primeiro encontro com Antônio Gramsci aconteceu com as apostilas que recebi em um dos cursos que fiz no antigo STIEP (Sindicato dos Trabalhadores da Indústria do Petróleo). As apostilas faziam parte do conjunto de ferramentas que tinham o objetivo de dar embasamento para os Cursos de Formação Política. Não me lembro de quem ministrava o curso, talvez um professor de sociologia da UFBA (Universidade Federal da Bahia), mas com certeza lembro que era um marxista heterodoxo, daqueles que acreditavam em socialismo com democracia, e que se opunham aos métodos que se tornaram hegemônicos, por exemplo, após a Revolução Russa, em 1917. Era o ano de 1987, e eu já tinha feito o meu primeiro aniversário trabalhando na área de sondas de perfuração terrestres da Petrobras. No curso os participantes ouviam, mas também conversavam com o professor. Ouvíamos sobre como o marxista italiano tinha participado da construção de uma teoria sobre a necessidade de uma transformação social. E falávamos com o professor sobre o nosso dia a dia nas sondas, e outras instalações dentro da indústria de petróleo. Íamos discutindo sobre como os trabalhadores criavam ali uma identidade, e como fortalecíamos laços de amizade ao compartilhar as mesmas mazelas da exploração do trabalho. E íamos construindo uma interface entre aquela identidade de classe trabalhadora e a necessidade de organização, para quem sabe, um dia, buscar aquelas transformações a que Gramsci se referia nas palavras dentro das apostilas. Ali também nos foi dito que para Gramsci as massas são, dentro do capitalismo, educadas para serem conformistas e para não lutarem, nem mesmo pelas necessidades imediatas. Durante as discussões, moderadas pelo instrutor, não foi difícil perceber que aquela educação seria papel das escolas, das religiões e das artes. Mais tarde, lendo o texto que Gramsci escreveu em 1925, sobre a Necessidade de uma Preparação Ideológica de Massas, percebi que o meu curso de formação de 1987, fazia parte daquela preparação revolucionária indicada pelo italiano. Para ele “a luta do 6 proletariado contra o capitalismo se desenvolve em três frentes: a econômica, a política e a ideológica” (GRAMSCI, 2011, p.98). Alguns dos que faziam parte da CUT (Central Única dos Trabalhadores) acreditavam nas palavras de Gramsci. O STIEP, como entidade representante dos trabalhadores da produção em Petróleo na Bahia, naquele período não era vinculado organicamente a CUT, mas alguns de seus diretores, e muitos trabalhadores da base, já participavam daquela organização criada em agosto de 1983 com a pretensão de unificar a luta dos trabalhadores brasileiros. Todos eles acreditavam que o sindicato tinha um papel bem claro. Sua função fundamental seria melhorar as condições econômicas e de qualidade de vida dos trabalhadores. Mas, para alguns dos que vivenciavam a construção da CUT e a organização do STIEP, como também para Gramsci, para que a luta sindical se transformasse em algo revolucionário, teria que vir acompanhada da luta política. Além da luta ideológica, com mais intensidade ainda, para que o trabalhador tivesse consciência de que estaria lutando pela transformação social, e pelo socialismo. É necessário o elemento “consciência”, o elemento “ideológico”, ou seja, a compreensão das condições em que se luta, das relações sociais em que o operário vive, das tendências fundamentais que operam no sistema dessas relações, do processo de desenvolvimento que a sociedade sofre pela existência em seu seio de antagonismos inelimináveis etc (GRAMSCI, 2011, P.99). Porém, para Gramsci o sucesso dessa luta, acompanhando as ideias do leninismo, não aconteceria graças aos sindicatos. Mas a partir de uma organização maior, o Partido da Classe Operária, que deveria coordenar os três níveis de lutas (sindical, política e ideológica). Não seria possível, para ele, esperar que o trabalhador, tendo um cotidiano de alienação, percebendo apenas parte do problema maior, tivesse condições de compreender a complexa função da classe a qual pertencia. Isso deveria ser exigido dos membros do Partido. Não é possível propor, antes da conquista do Estado, a modificação completa da consciência de toda classe operária; isso seria utópico, já que a consciência da classe enquanto tal só se modificará quando o modo de viver da própria classe também se modificar, ou seja, quando o proletariado se transformar em classe dominante, quando tiver à sua disposição o aparelho de produção e de troca e o poder estatal (GRAMSCI, 2011, P.99). Isso, de certo, forneceu aos partidos comunistas a força de organização hierárquica que os transformou em governantes em diversas nações. Essa forma de organizar a transformação de maneira sistemática e centralizada lhes deu a capacidade 7 de, aparentemente, destruir o capitalismo, e chegar ao poder através de revoluções na URSS, na China, em Cuba. Mas foi também esta maneira de interpretar a complexidade do mundo em que vivemos que produziu naqueles países uma espécie de totalitarismo absolutamente contrário ao sistema de igualdade e liberdade que se desejava. MARCUSE: COMO LUTAR CONTRA A SOCIEDADE INDUSTRIAL Aquele quadro pessimista produzido pelo Partido Comunista Soviético é percebido quarenta anos depois por outro marxista. Herbert Marcuse é um dos estudiosos do que se convencionou chamar de Escola de Frankfurt. Entre os pesquisadores ligados ao grupo de Frankfurt, aparecem nomes como Walter Benjamin, Theodor Adorno e Max Horkheimer, e também se podendo fazer uma ligação ao pensamento mais contemporâneo de Jürgen Habermas, todos marxistas. Marcuse escreve em 1958 um livro chamado Marxismo Soviético onde deixa clara sua antipatia pelo caminho tomado pela Revolução Russa de 1917. Naquela obra, ele revela as formas pelas quais o sistema soviético assemelha-se à sociedade industrial do capitalismo ocidental, partilhando com ela a profunda adesão à lógica da racionalidade tecnológica para o controle dos homens e da natureza (KLEIN, 2006,p.13). Outra característica inerente ao pensamentode Marcuse pode ser evidenciada em uma pequena experiência (com um objetivo lúdico) que fiz há algumas semanas atrás. Questionei dentro de uma rede social sobre quem seria o autor de uma frase: Sob o julgo de um todo repressivo, a liberdade pode ser transformada em poderoso instrumento de dominação. O alcance da escolha aberta ao indivíduo não é fator decisivo para a determinação do grau da liberdade humana, mas o que pode ser escolhido. Perguntei se aquela seria uma frase de Felix Guattari, Mikhail Bakunin ou Herbert Marcuse? E eis que muita gente, a maioria absoluta, respondeu que seria do filósofo francês, que escreveu Revolução Molecular nos anos de 1980. Bem, não é a toa que Marcuse foi um dos gurus intelectuais da Revolta de Maio de 1968 em Paris. Esse trecho foi transcrito da página 28 do livro Ideologia da Sociedade Industrial (traduzido da edição inglesa intitulada One-Dimensional Man). A obra torna-se um clássico da crítica ao capitalismo, e à sociedade industrial de uma forma geral, e muita gente andava com ele debaixo do braço, tanto na revolta parisiense, quanto naquelas que aconteciam em Berkeley, na Califórnia, ou nas ruas do Rio de Janeiro em 1968, ou 8 mesmo nas praças da Tchecoslováquia, quando os tanques russos passavam por cima dos sonhos da Primavera de Praga em 1969. No título da introdução ao livro ele usa o seguinte termo para mostrar sua total repulsa ao sistema construído com uma abrangência mundial até aquele momento: “A paralisia da crítica: Sociedade sem oposição”. Abarcando temas tão diversos como a ameaça de uma catástrofe nuclear (não podemos esquecer que naquele momento URSS e EUA se digladiavam literalmente em uma Guerra Fria), ou como o racionalismo exacerbado nas Universidades, ou o que ele denominava como as novas formas de controle, incluindo a mídia, como ferramenta para tal fim, Marcuse vai sedimentando uma crítica voraz a saciedade do sistema sobre os indivíduos, saciedade da razão sobre a emoção (lembrando aqui também que Marcuse é um exímio conhecedor das teorias de Sigismund Freud). Não é tão difícil perceber certa semelhança entre as ideias de Marcuse naquele momento com as de um jornalista, mais contemporâneo: Nas democracias atuais, cada vez mais cidadãos livres sentem-se atolados, lambuzados por um tipo de doutrina viscosa que, imperceptivelmente, envolve todo raciocínio rebelde, inibi-o, desorganiza-o, paralisa-o e termina por asfixiá-lo. Essa doutrina constitui o “pensamento único”, única autorizada por um invisível e onipresente controle de opinião (RAMONET, 1997, p.23). Ignácio Ramonet, um dos diretores da revista Le Monde Diplomatique adverte neste pequeno parágrafo sobre a capacidade de um sistema cada vez mais global e homogêneo estar comprometendo a humanidade do ser humano. Marcuse anteviu o espírito do Pensamento Único como a panaceia da sociedade industrial que tentaria tornar as forças sociais centrífugas cada vez menos resistentes a um sistema perverso de controle, “mais pela Tecnologia do que pelo Terror” (MARCUSE, 1967, p.14). Marcuse não vê outra saída senão o estabelecimento da construção de uma Teoria de Análise Crítica para que se contraponha à construção de uma sociedade que se diz absolutamente racional, mas que no seu âmago é irracional como um todo. E essa teoria teria de ser construída, particularmente, a partir de um juízo de valor: O julgamento de que a vida humana vale a pena ser vivida, ou melhor, pode ser ou deve ser tornada digna de se viver. Este julgamento alicerça todo esforço intelectual; é apriorístico para a teoria social, e sua rejeição (que é perfeitamente lógica) rejeita a própria teoria (MARCUSE, 1967, p.14). 9 Ao contrário de Gramsci, o marxismo de Marcuse recusava a ideia de uma revolução produzida por uma classe específica, e a construção de uma Ditadura do Proletariado, como meio de chegada ao Comunismo. Ele se convence, a partir da própria história das revoluções e mantendo-se fiel ao método materialista-histórico de Karl Marx, de que seria necessário reexaminar (e refutar) alguns dos postulados do marxismo dogmático (leninismo e stalinismo, particularmente). Dois deles em particular: (a) a revolução é a tomada violenta do poder do Estado pela classe operária organizada em partido, instituindo a ditadura do proletariado para destruir as relações de produção baseadas na propriedade privada dos meios de produção; (b) o sujeito da revolução socialista é o proletariado. Definido pela ausência da propriedade privada, ele é a negação determinada da ordem burguesa que, como toda classe social revolucionária, projetará sua própria condição como princípio da nova sociedade (KLEIN, 2006, p.59). Essa perspectiva de Marcuse permitiu que suas ideias permeassem várias revoltas nas décadas de 1960 e 1970, tanto em países capitalistas, quanto em comunistas. Mesmo em sociedades desenvolvidas economicamente, sem tanta desigualdade social, como Alemanha, Estados Unidos ou França. A revolta na Paris de Maio de 1968 não se inicia como um ato de proletários insurrectos, desesperados com a necessidade de sobrevivência, mas por estudantes desejosos com a possibilidade de namorar dentro das residências universitárias e dentro da própria universidade. Em Praga a revolta ocorre por uma exploração, mais política e existencial, do que econômica. Ambos contra um aparato opressor que Marcuse chamou de Sociedade Industrial, que ele mesmo considerava como uma “sociedade em bom funcionamento”. O importante nesse momento é perceber como esse pensamento crítico é tão parecido com outros tantos que vêm explodindo desde final do Século XX até a atualidade, a partir de tantos pensadores, como Michel Foucault, Gilles Deleuze, Gilles Lipovetsky, Antonio Negri, Zygmunt Bauman, ou Félix Guattari. Pensamentos que fazem crítica a todo um sistema disciplinar, opressor e autoritário, mesmo sob um manto pretensamente democrático. Sistemas construídos por sociedades de controle, sociedades consumistas, sociedades fluidas, que subjugam os indivíduos, desqualificando-os como sujeitos de suas próprias vidas. Faz alguns anos que comecei um trabalho de conclusão de curso de especialização em jornalismo online abordando a Sociedade de Controle sobre a qual Gilles Deleuze já advertia da sua existência no começo dos anos 1990. Para Deleuze essa sociedade 10 começava a se sobrepor sobre outra (a sociedade disciplinar teorizada por Foucault) justamente com as ferramentas tecnológicas de informação e comunicação. O controle tenderia a deixar de ser punitivo, de ser panóptico, para começar a viver permeando cada milímetro/segundo das nossas vidas. Naquele formato de sociedade (quando ele escreveu em 1992 os computadores pessoais estavam engatinhando, em relação à velocidade de processamento, mas já havia a existência de algumas redes telemáticas) o poder “seria cada vez mais ilocalizável, porque disseminado entre os nós das redes. Sua ação não seria mais vertical, como anteriormente, mas horizontal e impessoal” (COSTA, 2004, p.162). O interesse educacional sobre Marcuse se dá justamente porque ele constrói durante sua vida uma importante perspectiva crítica da sociedade opressora (seja que conotação se der a ela, à esquerda ou à direita do espectro político), junto com uma coleção de alternativas não autoritárias e democráticas, como, por exemplo, em um confronto entre ele e Karl Popper, onde ele reafirma suas opções sobre a necessária transformação social gerada nas experiências concretas dos indivíduos: É, obviamente, a pergunta acerca do sujeito da transformação: quem é o sujeito da revolução? Esta pergunta não me parece razoável [unvernünftig], pois o sujeito da revolução somente pode desenvolver-se em meio ao processo de transformação. Não é uma coisa que simplesmente exista e que somente precisa ser encontrado em algum lugar. Osujeito da revolução nasce com a prática, com o desenvolvimento da consciência e o desenvolvimento da ação (MARCUSE & POPPER, 1974, p.15). BAKUNIN E PELLOUTIER: VISÕES ANARQUISTAS DA EDUCAÇÃO Tanto Mikhail Bakunin, quanto Fernand Pelloutier, ambos fazem parte da tradição socialista que tem em mente justamente a ideia de que, como oprimidos, os operários podem (e devem) se rebelar e transformar a sociedade capitalista, rumo a um mundo melhor para todos. Mas, para o grupo particular ao qual eles pertencem, os anarquistas, toda transformação deve ser construída, com a formação prévia de consciências e vontades. Isso teria de ser efetuado por meio de organizações dos próprios oprimidos. No caso dos trabalhadores, os sindicatos (ao contrário do Partido de Gramsci) poderiam ser sua correia de transmissão das mudanças. Mas, primordialmente, isso deveria ser construído a partir de um processo de educação libertária (ou instrução e aprendizagem, como afirmavam os ácratas de fins do século XIX e começo do XX). 11 Assim, a prática sindical cotidiana, se ela entende permanecer fiel à sua dimensão revolucionária, não poderia negligenciar a iniciativa educativa. Compreende-se, lendo Pelloutier, o que distingue radicalmente o funcionamento da organização sindical da concepção autoritária do Partido operário. O sindicalismo põe sua dinâmica coletiva a serviço do desenvolvimento dos indivíduos, não o inverso. O pensamento revolucionário de Pelloutier é fundamentalmente dialético: nada de revolução sem educação, nada de educação sem revolução (CHAMBAT, 2006, p.18). Um processo de educação realmente popular e transformador não poderia ser construído de cima para baixo, em um modelo heterogestionário. Um processo desse porte deveria ter seu nascedouro nas próprias organizações populares, como as associações de trabalhadores, como sindicatos, nas associações de bairro, nos grupos estudantis. Foi assim que floresceram as ideias anarco-sindicalistas, acerca da educação, que vindas da Europa, chegaram ao Brasil em finais do Século XIX. Os anarquistas (imigrantes e brasileiros) tinham a certeza de que não era possível se chegar a uma sociedade libertária e igualitária sem que as pessoas estivessem minimamente preparadas para tal sociedade. Para isso a educação seria fundamental. Mas não o tipo de educação que os liberais desejavam como panaceia do progresso, nem a que os marxistas heterodoxos colocavam como oposição aos liberais. Nem qualquer coisa parecida com uniformização de pensamentos: Inúmeros textos militantes do começo do Século XX também evocam a necessidade de uma educação moral do operário, mas essa educação nada tem a ver com uma tentativa qualquer de moralização e uniformização da consciência proletária. Essa educação inscreve-se por inteiro na lógica do texto de Fernand Pelloutier e participa da realização “de uma sociedade de homens orgulhosos e livres” (LENOIR, 2007, p.17). Para essa educação moral libertária os anarquistas dos sindicatos brasileiros durante a República Velha procuravam construir uma cultura também libertária. Assim a educação proposta por eles não se encontrava apenas em escolas, mas nos jornais dos próprios sindicatos e federações operárias, nas peças de teatro escritas e produzidas pelos próprios trabalhadores, por poesias declamadas nos “meetings” e “picknics” montados para criar um vínculo com as famílias dos trabalhadores (PRADO, 1986) 3 . 3 Todo o livro de Antonio Arnoni Prado é um resumo de como os anarquistas entendiam que a educação libertária deveria ser trabalhada em todos os espaços possíveis de existência: Desde o feminismo individualista de Maria Lacerda de Moura ao uso da literatura, jornalismo e do teatro como ferramentas de emancipação. 12 Francisco Hardman (2002, p.24) faz uma comparação bem interessante, que serve como evidência dessa construção de uma cultura operária naqueles anos. Ele compara anúncios de uma Festa-Comício do Partido dos Trabalhadores em 1980 e de um Festival Operário por volta de 1920. O primeiro anúncio conclamando a população a ir assistir as falações de senadores, e outros políticos, e também a presença de artistas como Antonio Marcos, Regina Duarte, Beth Mendes e outros. O segundo chamando os trabalhadores para assistir as falações de gente que continuava no chão das fábricas, lado a lado com os trabalhadores, e para ver artistas da própria base operária, sem vínculos com a indústria cultural construída, hegemonicamente, pela burguesia e com base no próprio capitalismo o qual se enfrenta. E com esta mesma visão emancipatória não se pode esquecer Mikhail Bakunin, com seu radicalismo. É esse radicalismo que ainda hoje podemos ouvir das palavras de ordem em manifestações por todo o mundo, desde Seattle em 1999, até junho de 2013 nas ruas de Salvador, São Paulo ou Rio de Janeiro. Como Marcuse frequenta as ideias dos revoltosos em Paris de 1968, o rosto de Bakunin está até mesmo nas fotos das camisas do pessoal que ocupou uma das praças de Wall Street em Nova York e se rebelava contra as grandes corporações e o Estado norte-americano. O anarquista russo, que escreveu seus textos nos longínquos anos finais do Século XIX, tem uma bela obra sobre a necessidade de uma educação integral para a massa de operários: A Instrução Integral. Apenas com essa educação completa, filosófica, técnica, científica e moral, os trabalhadores teriam condições de compreender a complexidade das relações de exploração a que estão submetidos. Não é evidente que entre dois homens dotados de uma inteligência natural mais ou menos igual, o que for mais instruído, cujo conhecimento se tenha ampliado pela ciência e que compreendendo melhor o encadeamento dos factos naturais e sociais, compreenderá com mais facilidade e mais amplamente o carácter do meio em que se encontra, que se sentirá mais livre, que será mais hábil e forte que o outro. Quem souber mais dominará naturalmente a quem menos sabe e não existindo em princípio entre duas classes sociais mais que esta só diferença de instrução e de educação, essa diferença produzirá em pouco tempo todas as demais e o mundo voltará a encontrar-se em sua situação atual, isto é, dividido numa massa de escravos e num pequeno número de dominadores, os primeiros trabalhando, como hoje em dia, para os segundos (BAKUNIN, 1979, p.29). CONSIDERAÇÕES FINAIS Não existe caminho fácil para uma emancipação dos trabalhadores, e da maioria da população, sobre a exploração e a opressão que o capitalismo lhes impõe. Mas a 13 educação, com certeza, está presente em qualquer alternativa que possa ser experimentada eficientemente. A compreensão das ideias sobre emancipação pela educação daqueles que já passaram pelo planeta é importante para podermos começar a experimentar a partir das possibilidades que eles nos trazem, e das suas próprias experiências com as práticas educativas que tiveram durante suas vidas. Também é importante compreender o que já se fez acerca da formação política nesses últimos anos, particularmente a partir do final da Ditadura Militar, quando alguns sindicatos, como no exemplo que dei no início deste texto, se interessaram e colocaram em prática experiências razoavelmente autônomas, mas que em pouco tempo caíram em uma espécie de conformismo (TUMOLO, 2002) 4 . Hoje chegamos a ver, pasmem, ONGs e empresas particulares de educação criando cursos prontos (produzidos por “especialistas” em educação) comprados pelos sindicatos e centrais sindicais. Mas é importante também que, se queremos transformar o mundo, se queremos ter a esperança de que é possível se viver em um mundo onde todos se considerem realmente iguais perante os outros, sem preconceitos e sem a violência desenfreada a que chegamos, é importante que comecemos a experimentar, nós mesmos, asalternativas que nos permitem combater o sistema de exploração, em qualquer micro espaço possível. Só assim poderemos alimentar a esperança de melhorarmos a humanidade a partir de nós mesmos, a partir do que Pelloutier chamou de uma paixão da cultura de si mesmo (CHAMBAT, 2006, p.18). E então a revolução que começa em nossos cérebros se expande. Se ela deixa de se expandir deixa de ser revolução. A experiência de Paulo Freire confirma: Porque os homens são seres históricos incompletos, e têm consciência de sê-lo, a revolução é uma dimensão humana tão natural e permanente como a educação. Somente uma mentalidade mecanicista acredita que a educação pode cessar a um certo nível ou que a revolução pode deter-se quando obteve o poder. Para ser autêntica, uma revolução deve ser um acontecimento contínuo, ou então cessará de ser revolução e se converterá numa burocracia esclerosada (FREIRE, 2001, p.108). 4 No livro o autor faz uma abordagem histórica e crítica acerca da evolução política da CUT, e ao final defende a possibilidade de mudança de rumos da Formação Política por ela implantada. 14 REFERÊNCIAS BAKUNIN, Mijail. La Instrucción Integral. Barcelona: Calamvs Scriptorivs, 1979. BATALHA, Cláudio. Da Ótica do Trabalhador. Revista Teoria e Debate. Num.03. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 1988. CHAMBAT, Grégory. 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