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O GOVERNO BOLSONARO Ofensiva burguesa e Resistência proletária cemflores.org 2019 Sumário Apresentação 4 As eleições de 2018 e a necessidade de continuar e aprofundar a resistência das classes dominadas 11 A conjuntura econômica no começo do governo Bolsonaro: continuidade da crise do capital, estagnação e aumento do desemprego 19 A reforma da previdência faz parte do programa de classe da burguesia, de opressão e exploração dos trabalhadores 43 Aumentar a informalidade para aumentar a exploração do trabalho: a reforma trabalhista e sindical de Bolsonaro 51 O governo Bolsonaro e a ofensiva reacionária na educação 66 Aumento da repressão à população pobre e trabalhadora como necessidade do capital em crise: programa do governo Bolsonaro 83 O hipócrita patriotismo burguês de Bolsonaro e seus objetivos 104 O governo Bolsonaro: Ofensiva burguesa e Resistência proletária 4 Apresentação Camaradas e leitores. Passados mais de sete meses das eleições presidenciais do ano passado e cinco meses da posse de Bolsonaro, já nos parece possível e necessário realizar uma análise mais abrangente e profunda das características principais desse governo. Esta é a proposta deste livro: apresentar, para o debate com camaradas e leitores, uma análise do governo Bolsonaro que busque partir de uma perspectiva marxista, proletária, ou seja, do ponto de vista da classe operária, dos trabalhadores, das classes dominadas. Os leitores não deverão esperar dos textos aqui reunidos nem uma proposta de “política econômica” para a crise em que vivemos, nem uma proposta de solução de “políticas públicas” para enfrentar o descalabro social no qual o Cem Flores (cemflores.org) 5 país está atolado, nem tampouco uma alternativa de “políticas de geração de emprego e renda” para iludir as dezenas de milhões de desempregados e subempregados que são vítimas da crise capitalista no Brasil. Não existe “solução" para o capitalismo, do ponto de vista dos trabalhadores, que não seja varrê-lo da face da Terra. Nossa “proposta” de “política pública” é a revolução proletária – possível, como mostraram as diversas experiências socialistas do século XX, através da luta dura e constante pela autonomia e independência política e teórica desta classe. Nos artigos que compõem este livro procuramos mostrar o caráter de classe burguês do governo Bolsonaro e (como já demonstramos em outros textos em nosso site) que se trata, portanto, de um governo que dá continuidade à dominação capitalista no Brasil, buscando adequá-la aos novos tempos de crise, necessariamente tempos de maior exploração e repressão. Ou seja, Bolsonaro é mais um coordenador da recente ofensiva burguesa vivenciada em nosso país. Mas queremos mostrar também que é possível, e necessário!, combatê-lo. Aliás, é o que as massas têm feito, nos quatro cantos do país: os trabalhadores que não aceitam ainda mais exploração; os estudantes e professores que reivindicam condições dignas de estudo e trabalho; as mulheres, os indígenas, os negros e os moradores das periferias, em defesa de suas vidas. Lutas nas quais nos somamos e às quais buscamos impulsionar e fazer avançar, inclusive com uma análise concreta de nosso inimigo e de nossas forças. Nossa análise marxista busca partir do fundamental, da luta de classes. Luta, concreta, entre classes antagônicas e inconciliáveis (burguesia x proletariado) que define essas próprias classes (e as demais) e o modo de produção capitalista. Essa análise toma, obviamente, o ponto de vista da classe revolucionária, do proletariado. Isso quer dizer que combatemos tanto a burguesia exploradora quanto os “vendedores de ilusões” reformistas, que pregam a contínua subordinação dos trabalhadores aos patrões, defendem os patrões na esperança de receber algumas migalhas e, com isso, minam a organização e a luta independente da classe operária e demais classes exploradas. Outro ponto relevante de nossa análise, um princípio para os que querem realizar uma análise marxista, é sobre o papel do Estado. No O governo Bolsonaro: Ofensiva burguesa e Resistência proletária 6 capitalismo (ou em qualquer sociedade de classes), o Estado é um instrumento de dominação e de repressão a serviço da classe dominante. Sua função principal é garantir a reprodução das relações de produção dominantes, função que é travestida de várias figuras ideológicas tais como a defesa do “desenvolvimento nacional”, do “crescimento econômico”, das “melhorias sociais" etc. Figuras ideológicas que sempre escondem que esse “desenvolvimento”, esse “crescimento”, essas “melhorias” são sempre para o próprio sistema capitalista, sistema baseado na exploração da força de trabalho dos trabalhadores e na opressão das grandes massas, no roubo da riqueza produzida pela classe operária e pelo povo, sistema capitalista regido pelas leis férreas da reprodução ampliada, com pouquíssima (quase nenhuma e cada vez menos) margem de manobra para os governos de plantão. Não é esse o crescimento ou o desenvolvimento que atende às necessidades das classes dominadas. Assim, uma análise concreta de um determinado governo de um país capitalista, deve sempre partir das determinações (em última instância, sem qualquer mecanicismo) da luta de classes econômica, política, ideológica; dos interesses das classes em disputa e da concorrência entre as frações de classe que estão no poder. A ausência desse, digamos, “cuidado básico” é uma das responsáveis pela enorme quantidade de sandices que lemos e ouvimos constantemente, principalmente da “esquerda acadêmica” no Brasil. Além do seu reformismo, é claro... Na análise do governo Bolsonaro duas características mais profundas são determinantes e devem ser consideradas: • a profunda crise pela qual passa o modo de produção capitalista, no Brasil e no mundo, há vários anos, e; • a profunda crise que atinge o marxismo, o movimento proletário, no Brasil e no mundo, também há vários anos. Essas duas características deixam seu selo, sua marca, nas formas concretas com que a luta de classes se apresenta hoje. É a profunda crise econômica que está na base da crise política estabelecida no Brasil. Crise política que tem nas manifestações de 2013 um marco. A crise empurra, por um lado, a classe dominante a se lançar de forma mais ofensiva em sua luta, a aprofundar os mecanismos de exploração e dominação capitalista. Por outro, estimula objetivamente, a Cem Flores (cemflores.org) 7 resistência das classes dominadas, cada vez mais conscientes de que estão sendo “enroladas” por um ou outro gestor capitalista de plantão. Isso gera o aprofundamento da contradição principal do modo de produção capitalista, a contradição entre a burguesia (os detentores dos meios de produção) e a classe operária (os verdadeiros produtores de toda riqueza existente). Esse acirramento gera o aumento da repressão e da ideologia que a legitima. A cooptação e a “enrolação”, que caracterizaram o período petista no governo, servindo às classes dominantes, já não funcionam mais tão bem. O capital põe em campo suas armas e suas forças sempre presentes (legais ou não) treinadas, estimuladas e ampliadas nos governos anteriores, e avança no combate, desesperado para tentar retomar as taxas de lucro combalidas pela crise. Os trabalhadores, ainda pouco organizados, divididos pelo oportunismo e pelo reformismo, com quase a totalidade de suas entidades representativas na mão de pelegos, lutando muitas vezes (involuntariamente) com a posição do inimigo, sobrevivem e resistem como podem, e aprendem nesse processo que não devem depender de ninguém, a não ser de sua força e capacidade de luta e enfrentamento. Concomitante a essa ofensiva burguesa, a resistência proletáriase tornou visível em diversos eventos. Sua força se fez presente na luta nos grandes projetos como as hidrelétricas de Jirau e Santo Antônio, nas “greves selvagens” por fora do aparelho sindical pelego; nas jornadas de 2013 e nas manifestações contra a Copa e as Olimpíadas; nas lutas por transporte, terra e moradia; nas ocupações de escolas por estudantes; na Greve Geral de abril de 2017; na greve dos caminhoneiros e nas outras milhares de greves, inclusive em setores e categorias mais precarizados... E, propriamente relacionadas a Bolsonaro e seu governo, tivemos, ainda em 2018, a luta nacional das mulheres no #EleNão, contra a extrema-direita que o candidato e seus apoiadores representavam; as lutas contra os aumentos de tarifas de transporte público em alguns estados, que abriram o ano de 2019; os protestos contra a reforma da previdência já em março desse ano; além da atual e imensa luta contra o corte na educação, que tem tomado as ruas de todo o país. Muitos outros exemplos menores e mais cotidianos poderiam ser ressaltados. Exemplos que demonstram a necessidade e a disposição de luta O governo Bolsonaro: Ofensiva burguesa e Resistência proletária 8 do proletariado e das classes dominadas. São todas valiosas lições na luta da classe operária! Lições que devemos aprender e desenvolver, teórica e praticamente, para a reconstrução de uma alternativa proletária, revolucionária. Neste livro estão reunidos, além desta Apresentação, sete artigos publicados no site http://cemflores.org/. Com esses artigos buscamos englobar os principais aspectos do governo empossado em janeiro de 2019: seus aspectos econômicos (política econômica, reformas da previdência e trabalhista, desmonte do aparelho sindical), as mudanças propostas para o aparelho ideológico escolar, o reforço do aparelho repressivo, a ofensiva ideológica conservadora, além de uma análise do resultado das eleições. E, claro, as respectivas resistências. O primeiro artigo, As Eleições de 2018 e a Necessidade de Continuar e Aprofundar a Resistência das Classes Dominadas, publicado dois dias após o segundo turno, faz uma análise das eleições presidenciais, das lutas que ocorreram naquele período e aponta as tendências já visíveis do então novo governo eleito. No segundo, A Conjuntura Econômica no Começo do Governo Bolsonaro: continuidade da crise do capital, estagnação e aumento do desemprego, de 24 de maio, apresenta e analisa os principais dados da conjuntura econômica brasileira, demonstrando a continuidade da crise do capital no país e os sinais claros do seu agravamento neste começo de 2019. O terceiro artigo do livro, A Reforma da Previdência Faz Parte do Programa de Classe da Burguesia, de Opressão e Exploração dos Trabalhadores, publicado em 20 de fevereiro, poucos dias após o governo encaminhar ao Congresso Nacional sua proposta de reforma da previdência, apresenta os objetivos dessa reforma para o capital e o discurso ideológico burguês que busca justificá-la. No quarto artigo, Aumentar a Informalidade para Aumentar a Exploração do Trabalho: a reforma trabalhista e sindical de Bolsonaro, de 19 de abril, atualizamos a análise do cenário de avanço da burguesia contra os trabalhadores (continuando os governos petistas e de Temer) visando reformular o mercado de trabalho brasileiro para ampliar a exploração dos trabalhadores, tentando retomar as taxas de lucro e de Cem Flores (cemflores.org) 9 acumulação de capital em nosso país através da redução dos salários e o aumento da exploração capitalista. O quinto artigo, O Governo Bolsonaro e a Ofensiva Reacionária na Educação, publicado em 17 de março, detalha a ofensiva do governo contra o sistema educacional brasileiro, buscando reformá-lo de maneira reacionária, restringindo-o e adaptando-o às necessidades políticas e econômicas da conjuntura atual de ofensiva burguesa contra os trabalhadores. O sexto artigo do livro, Aumento da Opressão à População Pobre e Trabalhadora como Necessidade do Capital em Crise: programa do governo Bolsonaro, de 28 de abril, mostra o avanço neste governo das funções de violência/repressão, intrínsecas ao Estado, buscando manter as classes dominadas acuadas e amedrontadas em sua justa luta de resistência. O sétimo e último artigo deste livro, O Hipócrita Patriotismo Burguês de Bolsonaro e seus Objetivos, publicado em 8 de fevereiro, mostra, como o título indica, que o tal patriotismo de Bolsonaro é hipócrita, pois subserviente aos interesses dos EUA, e burguês, porque só considera os interesses das classes dominantes brasileiras. * * * Aos comunistas e revolucionários brasileiros uma questão é fundamental e incontornável: a classe operária e os trabalhadores precisam retomar sua luta de classes com sua posição de classe, própria e independente, eliminando (ou pelo menos reduzindo) a presença e a influência do inimigo de classe dentro de suas fileiras. É central eliminar a presença das posições dos inimigos dos trabalhadores que sempre apresentam soluções ilusórias que nos distanciam dos nossos objetivos e nos dificultam a capacidade de combater. Como já afirmamos em outros momentos, para nós, do Cem Flores, a primeira e principal razão do recuo das classes dominadas na luta de classes é a longa ausência de um partido revolucionário dotado de uma teoria revolucionária e presente na classe operária. Por isso reafirmamos sempre nossas tarefas, base de nossa constituição como coletivo: “Primeira, retomar o marxismo-leninismo no nível de desenvolvimento em que se encontra hoje. Segunda, O governo Bolsonaro: Ofensiva burguesa e Resistência proletária 10 reconstruir o partido revolucionário, unidade indissolúvel da teoria e da prática. Terceira, aprofundar nossas ligações com as massas dentro do princípio de que só as massas dirigidas pela classe operária e seu partido, armado da teoria revolucionária, podem fazer a revolução”. ☭ Cem Flores 31 de maio de 2019 Cem Flores (cemflores.org) 11 As eleições de 2018 e a necessidade de continuar e aprofundar a resistência das classes dominadas Como já era apontado pelas pesquisas de intenções de voto, o candidato fascista, de extrema-direita, será o novo presidente do Brasil a partir de janeiro de 2019. Contados os votos do segundo turno, novamente mais de um quarto do eleitorado brasileiro não compareceu à votação, votou em branco ou anulou o seu voto – por volta de 42,5 milhões de pessoas, número maior que o do primeiro turno. Dos 105 milhões que votaram em algum candidato, Bolsonaro (PSL) venceu, com 55%, e o candidato Haddad (PT) ficou com 45%. A vitória da chapa dos militares reformados – o capitão Bolsonaro e o general Mourão – coroa a ascensão da extrema-direita no cenário político brasileiro, que vem sendo construída (pelo menos) desde 2014 e já foi vista O governo Bolsonaro: Ofensiva burguesa e Resistência proletária 12 nitidamente no primeiro turno e durante o violento processo eleitoral deste ano. Tal ascensão não se encerra em nossas fronteiras, pelo contrário, tem semelhanças com outros casos no cenário internacional. Afinal, não é apenas no Brasil que organizações e candidaturas de extrema-direita ou mesmo abertamente fascistas têm se consolidado enquanto alternativas políticas do imperialismo desde sua última, profunda e inacabada crise. Estamos a presenciar um importante, mas não único, momento desse processo global da nova rodada de agravamento da barbárie capitalista. Cabe aos que se entrincheiram do lado das classes exploradas fazer um balanço desse evento da luta de classes, que também inclui uma leva de candidatos a governador mais à direita ou abertamente reacionários eleitos nesse segundo turno, além do resultado das eleições parlamentares, com um Congresso Nacional mais fragmentadoe conservador. Essa análise é parte imprescindível da resistência que já se iniciou. Resistência que, no entanto, precisa ser aprofundada urgentemente. Com a análise justa da conjuntura aberta e a disposição ideológica de enfrentar o inimigo de classe é que conseguiremos dar passos mais seguros no combate ao “novo” governo burguês e à tendência de fascistização que este representa. Como chegamos até aqui? Karl Marx, em seu famoso O 18 de Brumário de Luís Bonaparte, ao falar sobre o diferencial de sua análise sobre o golpe de Estado ocorrido na França em 1851, afirma: “eu demonstro como a luta de classes na França criou circunstâncias e condições que permitiram a um personagem medíocre e grotesco desempenhar o papel do herói”. Com as devidas ressalvas, e entendendo a luta de classes como um processo objetivo e constitutivo do modo de produção capitalista, podemos nos inspirar nas palavras de Marx para esta nossa análise. Ora, como a luta de classes no Brasil criou circunstâncias e condições que permitiram a um Bolsonaro medíocre e grotesco ser eleito Presidente da República? Como um abjeto e insignificante representante da última ditadura militar conseguiu despontar como a alternativa burguesa na atual conjuntura ―democrática‖ – sobrepujando o PT (Haddad), o PSDB Cem Flores (cemflores.org) 13 (Alckmin), o PDT (Ciro), o MDB (Meirelles), entre outros candidatos também burgueses? Para fazer essa análise concreta e responder às perguntas acima, é fundamental compreender que as eleições burguesas de 2018 ocorreram em cenário de profundas e interligadas crises econômica e política. A crise econômica, efeito dos impactos da crise imperialista iniciada em 2007/2008, lança a burguesia em uma violenta ofensiva pela retomada da acumulação capitalista e da taxa de lucro, o que significa aumento da exploração do proletariado e demais trabalhadores. Assim, deteriorando profundamente as condições de vida, trabalho e luta das classes exploradas. Analisamos essa crise econômica neste livro, no capítulo A Conjuntura Econômica no Começo do Governo Bolsonaro: continuidade da crise do capital, estagnação e aumento do desemprego. Tal profunda e prolongada crise (ainda longe de encerrada) é o pano de fundo da crise política, que não só transformou os governos Dilma e Temer em sucessivos campeões de impopularidade, como também vem afetando a legitimidade do próprio sistema político burguês (crise da dominação burguesa no Brasil), que, por sua vez, vê-se afundado em agudos e instáveis “conflitos institucionais”, sobretudo desde o início da Lava-Jato. Ambas as crises, mesmo após as eleições, não possuem quaisquer indícios de que caminham para seu fim. Apenas tendem a mudar de patamar e forma. Nossa análise mais detida dessas crises se encontra em nosso primeiro documento sobre essas eleições, publicado em 11 de setembro no site do Cem Flores [1] . Tais graves crises ocorrem sem uma posição proletária independente e organizada para construir uma alternativa revolucionária. Portanto, as “saídas” apresentadas até o momento se encerraram no campo das classes dominantes e na radicalização de sua ofensiva de classe. Estas classes e suas frações precisam driblar a crise política e de legitimidade, buscando representantes políticos minimamente aceitáveis para a população e sustentáveis diante da guerra de facções políticas em cenário de reorganização da representação burguesa. Ao mesmo tempo, precisam aplicar e aprofundar o seu programa de “reformas” para tentar sair da crise econômica – ou, em bom português, para estabelecer um novo patamar de exploração e de opressão da força de trabalho. O governo Bolsonaro: Ofensiva burguesa e Resistência proletária 14 Ao longo do processo eleitoral, de início aparentemente com poucos recursos e poucas condições de vitória em condições “normais”, Bolsonaro foi aos poucos se firmando enquanto a alternativa para a burguesia nesse quadro específico. De um lado, acenou às classes dominantes não ter nenhum desconforto – pelo contrário! – em continuar as reformas do capital emperradas no governo Temer, fazer uma nova e radical rodada de privatizações, ampliar a repressão e a disciplinarização às classes dominadas, inclusive com forte apoio das Forças Armadas. Assim, levou à euforia o “mercado” e foi trazendo para seu lado setores empresariais, seus assumidos “patrões”, além de alas inteiras da representação política burguesa. Sem contar que contou com a plena conivência do Judiciário (que, não esqueçamos, faz parte do aparelho repressivo do Estado capitalista, tal qual as Forças Armadas e as polícias – tema que é desenvolvido no capítulo Aumento da repressão à população pobre e trabalhadora como necessidade do capital em crise: programa do governo Bolsonaro deste livro), perceptível ao longo de toda a campanha. Sobre esse aspecto, a participação ativa do Judiciário na campanha eleitoral e na sanção de um novo regime político de maior repressão e censura às manifestações dos dominados, merece especial destaque as determinações judiciais para as ações de repressão policial mediante invasões de dezenas de universidades em campanha anti-fascista na última semana. O Judiciário só “restabeleceu a normalidade” depois que os objetivos desse estado de exceção já haviam sido alcançados e, principalmente, seu recado bem dado e compreendido. De outro, e com ajuda de grupos de direita há anos consolidados no país e com uma imensa presença nas redes sociais através de grandes fábricas de fake news, tanto uns quanto outros fortemente financiados pelo capital, cresceu e mobilizou a insatisfação popular contra o sistema político e a crise, explodida em um governo supostamente “de esquerda”. Ou seja, conseguiu firmar-se enquanto alternativa “radical” ao status quo, colocando-se como o único sujeito capaz de colocar ordem no caos social vivido no país de dezenas de milhões de desempregados e violência típica de guerra civil. Mais um (pseudo) outsider (pretenso) salvador da pátria (como Collor no Brasil em 1989 ou Trump nos EUA de 2016). Também não foi a primeira vez que a burguesia e as camadas médias recorrem à Cem Flores (cemflores.org) 15 figura das Forças Armadas e à ideologia militar como aqueles que socorrem a nação quando esta se encontra “em perigo”. O PT, ávido para se manter enquanto representante máximo da burguesia tupiniquim mais uma vez, buscou a estratégia de transferir os votos de Lula preso para Haddad. A grande rejeição ao PT, depois de décadas de oportunismo, que culminaram com os seus vários e apodrecidos governos abertamente burgueses, não permitiu que essa estratégia desse certo desta vez. A todo momento o PT, como partido burguês que é, empurrou para o ambiente institucional o “embate” com Bolsonaro, reforçando até o fim a ideologia jurídica burguesa e as ilusões reformistas com as eleições e a justiça eleitoral do Estado capitalista. Fez seu papel social-democrata de sempre: semeando ilusões, desarmando as massas. E agora, mais uma vez descartado pela burguesia, tende a voltar a ser oposição, volta e meia denunciando a falta de “lisura” nas eleições burguesas (sic!), indo cinicamente contra as medidas que eles mesmos aplicariam se tivessem sido eleitos ou mesmo aquelas que apenas são o reforço das medidas tomadas pelo PT quando governo. Aliás, é sintomático desse aspecto que Bolsonaro tenha falado recentemente, como uma de suas primeiras medidas, em qualificar ações do MST e do MTST como terrorismo, se fundamentando em uma lei que foi sancionada por Dilma, no apagar das luzes de seu governo (Lei 13.260, de 16 de março de 2016). O que esperar? O segundo turno reforçou as tendências já apontadas no primeiro: à fascistização e ao aumento da repressão. Tendências já presentes na conjuntura nacional há alguns anos, que deverão se aprofundar,não apenas como resultado direto das eleições, mas sim como consequência das graves crises nas quais estamos enfiados. Os contornos dessa violência de classe ainda estão em parte indefinidos, mas tendem a alcançar outro patamar, sobretudo quando se fortalecer uma resistência que apresente grave ameaça à aplicação do programa hegemônico da burguesia. O uso das Forças Armadas e mecanismos de Estado de Exceção contra as classes dominadas podem ser O governo Bolsonaro: Ofensiva burguesa e Resistência proletária 16 aprofundados, apesar do regime se manter com as vestes de “democracia” e das “instituições em pleno funcionamento” – para a burguesia, de fato! O apoio popular dado nessas eleições à extrema-direita dá também mais liberdade e estimula a atuação de agrupamentos fascistas e paramilitares, que agiram já no processo eleitoral, contra os identificados enquanto “esquerda” ou demais bodes expiatórios (LGBTs, negros, pobres etc.), em graus variados de violência, chegando ao assassinato. Essas ações de repressão e violência tendem a ser complementadas, em termos legais, por reformas a serem aprovadas pelo novo Congresso conservador. Estão em discussão tanto medidas como a mencionada qualificação de terroristas aos movimentos sociais e manifestações proletárias e populares, quanto retrocessos em relação ao aborto, direitos das minorias, laicidade do estado, educação pública, científica e plural. Por fim, a pauta das “reformas” para o capital prevê cortes adicionais e significativos nos orçamentos públicos (educação, saúde, transportes, etc.), ratificação e aprofundamento da nova legislação trabalhista aprovada por Temer (tema analisado no capítulo Aumentar a informalidade para aumentar a exploração do trabalho: a reforma trabalhista e sindical de Bolsonaro), privatizações, etc. Que fazer? O crescimento da alternativa Bolsonaro, no processo eleitoral, foi respondido por um significativo movimento de massas pelo país, liderado por mulheres e seus coletivos – movimento que ficou conhecido internacionalmente como #EleNão. Aliás, esse movimento traz similaridades às resistências à extrema-direita ocorridas em outros países – por exemplo, o movimento de mulheres contra Trump. Foram dias de importantes manifestações, em centenas de cidades, fora a constante mobilização e início de uma organização mais consolidada. As tentativas de aparelhar eleitoralmente esse movimento pelo reformismo e pelo oportunismo (PT e outros) foram um fato, assim como o abraço “crítico” à candidatura de Haddad por muitos do movimento. O que em nada reduz sua relevância e importância política para uma perspectiva concreta de Cem Flores (cemflores.org) 17 resistência ao governo Bolsonaro, nas ruas e nas massas, em outro campo em relação às disputas intra-burguesas e parlamentares. A capacidade de coletivos de gênero, raça etc. mobilizarem e terem apoio de massa não é um mero detalhe fortuito. É resultado de um trabalho constante com suas bases, relações de apoio e luta em pautas e problemas concretos. Trabalho cada vez mais fundamental e antes realizado por centros comunitários, sindicatos, associações e partidos que, em grande parte, e sobretudo desde o petismo, se afundaram na institucionalidade burguesa e nas tramas da “governabilidade” – e, como resultado, perderam o mínimo contato que ainda tinham com a classe. No entanto, a lição e as potencialidades trazidas por esse movimento não devem ser tomadas sem a avaliação dos limites em que estão enredados. A compreensão também dos limites ainda presentes desse movimento é fundamental para aprofundar e aprimorar a resistência que deverá ser bem mais dura e em contexto mais repressivo a partir de agora. Tais coletivos e movimentos não ficaram imunes, em parte, à ideologia burguesa: também alimentam forte crença nas instituições burguesas (crença nas “políticas públicas”, na representatividade etc.), e possuem dificuldade em enxergar que Bolsonaro não representa apenas mais discriminação e violência contra minorias, mas também mais exploração e opressão contra a maior parte do povo, a classe operária e as classes exploradas. Ou seja, um aprofundamento da repressão e exploração a que já estávamos submetidos. Por isso, faz-se necessário pensar e praticar articulações entre todos os setores das classes dominadas que já sofrem e irão sofrer com a repressão e as medidas do governo Bolsonaro. Mas ter clareza também que se trata de luta de classes: a mesma que fez Bolsonaro se erguer como alternativa burguesa. Ou seja, a fascistização não irá ser derrotada pelas instituições burguesas, pela oposição parlamentar ou pelo “amor” contra o ódio, a violência e a intolerância. A tendência ao fascismo, expressão política típica da etapa imperialista do capitalismo, só se rebate com o socialismo; com a reorganização do proletariado, hoje em parte aguardando que esse governo possa ser menos pior, mas que estará no centro de seus ataques e precisará reagir contra ele. O governo Bolsonaro: Ofensiva burguesa e Resistência proletária 18 [1] Sobre as eleições 2018. Análise da crise econômica e política no Brasil hoje. http://cemflores.org/index.php/2018/09/11/sobre-as-eleicoes-2018-analise-da-crise- economica-e-politica-no-brasil-hoje/. Cem Flores (cemflores.org) 19 A conjuntura econômica no começo do governo Bolsonaro: continuidade da crise do capital, estagnação e aumento do desemprego. Neste primeiro semestre de 2019, a dominação burguesa no Brasil permanece em crise, uma crise que se desdobra e se entrelaça nos seus aspectos de crise política e crise econômica desde, pelo menos, 2013. Dados os acontecimentos deste começo de ano e de governo, tanto no campo econômico quanto no político, não parece haver qualquer perspectiva de resolução dessa crise de dominação à vista. O governo Bolsonaro não é a solução burguesa para o final dessa crise. Pelo contrário, ele a agrava. Em relação a uma solução proletária, ela não está presente na conjuntura, considerando a ausência de uma linha marxista-leninista, revolucionária, com força de massas, no seio da classe operária e das demais classes dominadas no país. Criar as condições para essa solução proletária à crise de dominação burguesa no Brasil é a tarefa de todos os comunistas. O governo Bolsonaro: Ofensiva burguesa e Resistência proletária 20 Por crise política, no contexto brasileiro atual, entendemos a situação na qual o domínio das classes dominantes e de suas frações sobre a superestrutura política e de Estado não é capaz de permitir que essas funcionem de maneira estável e eficiente, de forma a implementar o programa político-econômico dessas classes. Podemos adotar como marco (político) inicial da crise política o Junho de 2013, com as enormes manifestações de rua que marcaram aquele mês. Por um lado, a crise política ocasiona avanços, divisões, recuos e incertezas quanto à implementação efetiva do programa da burguesia, com óbvios impactos de agravamento da crise econômica. Veja-se, por exemplo, o caso da reforma da previdência, um dos principais itens do programa econômico burguês no Brasil de hoje. Em moldes similares ao atual, a burguesia tenta aprovar essa reforma desde o primeiro governo Dilma (fizemos uma análise da proposta de reforma da previdência de Bolsonaro/Guedes no próximo artigo deste livro). Por outro, a crise política se expressa na erosão da aceitação desses representantes das classes dominantes junto às camadas médias e classes dominadas, expressos, por exemplo, nos baixos níveis de popularidade de todos os políticos e partidos depois de Junho de 2013, assim como no decrescente grau de legitimidade conferida às diversas instituições burguesas (Judiciário, Congresso etc.). Bolsonaro iniciou seu governo com o maisbaixo nível de popularidade de qualquer presidente eleito em primeiro mandato desde Collor. Essa rejeição alimenta uma oposição/resistência ao governo de plantão e seu programa. Por fim, a resistência das classes dominadas e de setores das camadas médias também é relevante nesse contexto de crise política. Resistência impulsionada pela deterioração das condições de vida e de trabalho, agravadas pela crise econômica; pela rejeição aos representantes políticos das classes dominantes; e pela ofensiva burguesa que sofremos. Essa resistência se manifesta desde as formas mais latentes, como o difuso ódio ao Estado brasileiro e seus representantes, até as formas mais diretas e organizadas, como nas greves e paralisações, nas ocupações e manifestações de rua. Vimos um brilhante exemplo no último dia 15 de maio (Greve Nacional da Educação). Se essa resistência ainda é pequena e Cem Flores (cemflores.org) 21 fragmentada, tendo em vista o tamanho dos ataques da burguesia, tudo indica que ela tende a crescer e se fortalecer. Afinal, a ofensiva burguesa, apesar das dificuldades que tem sofrido no atual contexto de crise, continua e não deixa alternativas aos dominados. Por crise econômica tratamos especificamente do período inaugurado pela recessão (iniciada em 2014) e ainda não encerrado. Essa recessão histórica – de dimensões iguais ou maiores que a dos anos 1980 ou mesmo que aos efeitos no país da grande depressão mundial dos anos 1930 – durou de meados de 2014 ao final de 2016, de acordo com os economistas burgueses. O período de crise, no entanto, contempla também os dois anos e meio que se passaram a partir do final da recessão – ou seja, do começo de 2017 até hoje –, caracterizados pela dificuldade do capital em retomar sua acumulação, pela estagnação econômica e pela permanência do elevado desemprego. Isso indica que estamos na pior “recuperação” (sic!) econômica pós-recessão na história do país. Como sintetizou Cláudio Considera, economista com passagens pelo Ipea, pelo IBGE, pela UFF e atualmente na FGV: “Foi a pior recessão da história e está sendo a recuperação mais lenta da história”. Na verdade, como veremos mais adiante, a economia está estagnada, à beira de uma nova recessão, em cenário que já se aproxima de uma depressão. Sobre essa crise é importante retomar alguns pontos do nosso documento de abril de 2017, Teses Sobre a Crise do Capital e a Luta de Classes no Brasil [1] : - A atual crise do capital no Brasil integra a crise do imperialismo inaugurada em 2008 e ainda não encerrada. Ou seja, a crise do imperialismo e os movimentos do capital que ela causa (buscando retomar a taxa de lucro, redefinindo a divisão internacional do trabalho, etc.) são importantes determinantes da crise no Brasil. Por exemplo, o fim do superciclo de commodities, atingindo diretamente a acumulação e lucratividade dos setores capitalistas mais dinâmicos do país, como o agronegócio e a indústria extrativa mineral, ambas para exportação. O governo Bolsonaro: Ofensiva burguesa e Resistência proletária 22 - O agravamento das contradições da acumulação de capital no país após o miniciclo de expansão capitalista (2005-2010) e o esgotamento do dinamismo dessa acumulação são as causas diretas da atual crise do capital no Brasil. Um exemplo é o crescimento do crédito, que acabou por gerar “bolhas” de consumo via sobre-endividamento das empresas e das pessoas e que, não apenas contribuiu para o início e a magnitude da crise (pelo corte do crédito) como também tem dificultado a retomada (pelo elevado endividamento e a consequente “desalavancagem”). - As políticas econômicas adotadas desde 2015, já com a recessão instalada, têm o objetivo claro de agravar a recessão, para que essa possa cumprir seu papel de recolocar as condições de acumulação e a taxa de lucro, mediante o aumento significativo do desemprego e a precarização dos postos de trabalho restantes, a redução dos salários, o aumento da intensidade do trabalho etc. - A crise do capital deve ser entendida, portanto, como a tentativa forçada de recolocar as condições propícias para a acumulação e lucratividade do capital, com o aumento da exploração sobre o proletariado e demais classes dominadas. Neste texto pretendemos analisar e apresentar aos camaradas e leitores do Cem Flores a situação atual da economia brasileira nesses primeiros meses de 2019, que nos parece ser não apenas a continuidade da estagnação de 2017-2018, mas uma piora maior do que já estava ruim, com possível novo mergulho na recessão ou mesmo numa depressão. Sem essa análise, avaliamos não ser possível fazer a análise concreta da situação concreta da conjuntura econômica, política e social da luta de classes no país neste começo de governo Bolsonaro. Os dados da conjuntura econômica brasileira É imprescindível o acompanhamento dos fatos e dos dados da conjuntura para fazer a análise concreta da situação concreta da luta de classes no nosso país. Por isso, nos esforçamos para consolidar e quantificar, a seguir, Cem Flores (cemflores.org) 23 as informações empíricas da economia brasileira que avaliamos as mais relevantes para a análise do cenário atual. A magnitude da recessão A recessão de 2014-2016 foi uma das maiores da história econômica do Brasil, quer consideremos o tamanho da redução do PIB que ela causou, quer o tempo em que a economia permaneceu em queda livre. Essa recessão de magnitude excepcional expressa, por um lado, o peso da crise do imperialismo em uma economia dominada tão integrada à economia mundial quanto a brasileira. Por outro, o nível a que chegou o agravamento das contradições do capitalismo no nosso país. Se a recessão já mostrou características excepcionais, a estagnação que se seguiu foi absolutamente única em sua incapacidade de retomar a acumulação capitalista. O gráfico abaixo, publicado pela Folha de São Paulo a partir de estudo do banco americano Goldman Sachs, mostra o crescimento médio do PIB per capita no Brasil por década desde o começo do século XX. A taxa média anual de “crescimento” de 2011 a 2018 foi negativa, igualando a chamada “década perdida” dos anos 1980, da hiperinflação e das sucessivas crises da dívida externa. Esse dado permite avaliar a magnitude da atual crise do capital na história do capitalismo brasileiro. O governo Bolsonaro: Ofensiva burguesa e Resistência proletária 24 O gráfico seguinte mostra esse mesmo dado – crescimento médio do PIB per capita por década – em perspectiva internacional. O Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getúlio Vargas (FGV-Ibre) fez essa conta a partir da base de dados do FMI, desde 1980. Na década atual, 85% dos países do mundo deverão ter crescimento médio anual superior ao brasileiro. Isso mostra que, mesmo considerando os impactos da crise do imperialismo na economia mundial, a magnitude da crise do capital no Brasil se destaca. Esses elementos são indispensáveis para contextualizarmos a ofensiva (em todas as frentes) da burguesia na sua luta de classes contra o proletariado e demais classes dominadas, bem como sua agressividade (pensemos nas odiosas reformas, aprovadas ou planejadas, por exemplo). Cem Flores (cemflores.org) 25 O mesmo FGV-Ibre calculou a redução do PIB e dos seus componentes na recessão. A queda do PIB foi de 8% nos dois anos e meio de recessão. A indústria caiu quase 14%, com a construção civil despencando 27%, também afetada pelo impacto da Lava-Jato em todas as maiores empreiteiras do país. As importações caíram 23%, mas o maior impacto ocorreu no investimento (Formação Bruta de Capital Fixo), cuja queda atingiu 30%. Esse efeito sobre o investimento constitui aspecto fundamental da crise: a crise provoca a redução da produção e da demanda e a ociosidadedos fatores de produção – máquinas e equipamentos sem uso, trabalhadores desempregados. A queda da utilização da capacidade instalada na indústria e em outros setores da produção provoca a desvalorização do capital, importante consequência da crise para a tentativa de retomada. Essa mesma capacidade ociosa também dificulta novos investimentos, contribuindo para o rebaixamento da produtividade da economia, logo, do crescimento da mais-valia relativa. Assim, cresce a importância, para a burguesia, do aumento da extração de mais-valia absoluta, o aumento da exploração mais direta e agressiva contra a classe operária e demais classes dominadas, como forma de buscar retomar suas taxas de lucro. O governo Bolsonaro: Ofensiva burguesa e Resistência proletária 26 Essa mesma tabela também quantifica o que o país precisaria crescer para voltar ao patamar anterior ao início da crise (primeiro trimestre de 2014). Ou seja, apenas para voltar para os níveis de cinco anos atrás, o PIB precisa crescer 5%; a indústria, 14%; as importações, 18% e o investimento 35%! Com o ritmo de crescimento de 1% observado em 2017, 2018 e, ao que tudo indica, em 2019 (pode ser menos!), esses números só seriam alcançados no final de 2023... A estagnação atual. Rumo a uma nova recessão ou a uma depressão? A estagnação da economia brasileira pode ser comprovada pelas pífias taxas de crescimento após o final da recessão. O PIB cresceu 1,1% tanto em 2017 quanto em 2018 e deve crescer por volta disso neste ano (ou ainda menos!), pois quanto mais o tempo passa, mais as projeções de crescimento para o ano são reduzidas. Medido pelo PIB per capita, o “crescimento” foi de apenas 0,3% em 2017 e 2018, devendo permanecer nesse ritmo estagnado. O gráfico abaixo compara a trajetória de recessão/recuperação nas oito recessões brasileiras dos últimos quarenta anos, medidas a partir da evolução do PIB per capita. A excepcionalidade dessa “recuperação”, na realidade estagnação, é patente. Tabela 1 – Variação acumulada da recessão aos dias atuais e a necessidade de crescimento para retornar ao mesmo nível de 2014/I – PIB e componentes (%) Completo Recessão Estagnação "Retomada" De 2014/II a 2018/IV De 2014/II a 2016/IV De 2017/I a 2018/IV Crescimento para igualar 2014/I, a partir de 2018/IV PIB -5,1 -8,2 3,4 5,3 Transformação -13,2 -16,7 4,2 15,2 Construção -30,5 -27,1 -4,7 43,8 Total da Indústria -12,1 -13,8 1,9 13,8 Comércio -11,1 -16,1 5,9 12,5 Formação Bruta de Capital Fixo -25,9 -30,1 6,1 34,9 Importação -15,1 -23,2 10,6 17,8 PIB e Componentes Variação acumulada no período, em termos reais - % Cem Flores (cemflores.org) 27 Mas essa é apenas uma parte da história. Olhando mais de perto, a realidade está ficando pior. A economia desacelera desde o final do ano passado, quando o PIB cresceu apenas 0,1% no último trimestre. O primeiro trimestre deste ano deverá ser negativo, de acordo com as projeções do Bradesco e do Itaú. O gráfico abaixo mostra como têm evoluído as projeções para o crescimento deste ano. De 2,6% que chegaram a ser previstos no começo do ano passou-se a 1,45% e a projeção mais recente é de 1,24%, número que deve continuar diminuindo, pois o Bradesco já projeta 1,1% e o Itaú, 1%. O governo Bolsonaro: Ofensiva burguesa e Resistência proletária 28 Com esses resultados, um novo mergulho na recessão está cada vez mais provável. Os próprios economistas e institutos burgueses já começam a falar em “cheiro de recessão”, “possível recessão técnica”, e “flerte com a recessão”. Só para lembrar, o mesmo Paulo Guedes que hoje diz que a economia está no “fundo do poço”, como forma de pressionar o Congresso a aprovar suas reformas, no final do ano passado falava em crescimento de 3% a 3,5% neste ano... A confirmação desse ciclo recessão-estagnação-nova recessão pode caracterizar uma depressão na economia brasileira. Da mesma forma que a crise do imperialismo (recessão seguida de estagnação) e uma possível nova recessão nos países imperialistas (que já começou em alguns países europeus, como a Itália) leva analistas burgueses a falar em uma “estagnação secular” e marxistas como Michael Roberts a falar em uma longa depressão, situação similar pode estar ocorrendo no Brasil. Dentre os economistas burgueses, quem levantou essa hipótese foi ninguém menos que Afonso Celso Pastore, uma espécie de decano dos espadachins mercenários do capital no país. Em estudo “A Depressão Depois da Recessão”, conforme matéria da Folha de São Paulo, ele afirma que “o Brasil não apenas está vivendo a mais lenta retomada da história como caminha para a depressão. Com a renda per capita mantendo-se por três anos 8% abaixo do pico prévio, só nos resta definir a situação como característica de uma depressão. O país está parado. Depois da recessão, https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2019/04/frustracao-precoce-com-gestao-bolsonaro-retarda-retomada-da-economia.shtml https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2019/04/frustracao-precoce-com-gestao-bolsonaro-retarda-retomada-da-economia.shtml https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2019/03/empresas-ja-projetam-que-retomada-da-economia-vira-apenas-em-2020.shtml https://temas.folha.uol.com.br/e-agora-brasil-mercado-de-trabalho/introducao/retomada-lenta-expoe-marcas-da-crise-e-desafios-para-recuperacao-do-emprego.shtml https://www1.folha.uol.com.br/colunas/viniciustorres/2019/04/brasil-um-pais-1-emprego-e-impostos-indicam-que-economia-anda-no-ritmo-de-2017-e-2018.shtml Cem Flores (cemflores.org) 29 ainda não tivemos recuperação. Se isso não é sinal de depressão, não sei o que é”. Indústria: mais que recessão, uma verdadeira depressão O setor mais afetado pela crise do capital no Brasil – podemos mesmo afirmar que constitui o centro da crise – é a indústria, mais especificamente a indústria de transformação (ou seja, excluindo a indústria extrativa). Olhando em horizonte mais amplo, trata-se da continuidade do processo de desindustrialização do país, dada a inserção do Brasil na divisão internacional do trabalho do imperialismo, com uma cada vez maior especialização na produção de commodities para exportação (já analisamos o fenômeno da desindustrialização em nosso site [2] ). Como vimos na tabela do FGV/Ibre, a queda da indústria de transformação foi o dobro da do PIB, e a do investimento, o dobro da queda da indústria. A magnitude dessas quedas passadas, somadas à total incapacidade de recuperação e às novas quedas deste ano, caracterizam uma real depressão industrial. O crescimento do PIB industrial em 2017 e 2018 foi praticamente nulo e, no primeiro trimestre deste ano, houve contração de 2,2% na produção industrial. Essa retração da indústria também puxa para baixo os serviços, que tiveram queda de 1,7% no mesmo período. O governo Bolsonaro: Ofensiva burguesa e Resistência proletária 30 O gráfico acima, do Instituto de Estudos para o Desenvolvimento Industrial (IEDI), mostra uma queda de quase 20% na produção industrial do início da recessão até seu momento mais grave, no começo do último trimestre de 2016, e também o impacto paralisante da greve dos caminhoneiros (que analisamos em nosso site) em maio de 2018. Para este texto, no entanto, importa destacar a sequência de quedas mês a mês que a produção industrial vem tendo desde então, caracterizando o agravamento da crise no setor industrial em recessão, e também já em depressão. O mesmo comportamento é encontrado no nível de utilização da capacidade instalada da indústria (estoque de máquinas e equipamentos prontos para o uso) que já se encontra no mesmo patamar do final de 2016 e da greve dos caminhoneiros (pelo indicador mais amplo, da Confederação Nacional da Indústria, CNI). Esses indicadores se traduzem em estagnação também nas taxas de crescimentoanual da produtividade. Em geral, com menor nível de investimento, menores serão os ganhos de produtividade. A produtividade é elemento fundamental para ampliar a escala de produção de mercadorias, possibilitar seu barateamento e ampliar as taxas de mais-valia e de lucros. Assim, capitais que geram menores ganhos de produtividade tornam-se, por um lado, mais frágeis na concorrência com outros capitais, tendendo a desaparecer, e, por outro, seu setor de atividade tende a receber menos capitais (investimentos), que são dirigidos aos setores mais produtivos e lucrativos dessa economia ou das demais economias concorrentes. Não é por outra razão que vemos um contínuo crescimento do agronegócio no Brasil nas últimas décadas, em fenômeno por vezes chamado de “reprimarização” (sobre o qual já nos posicionamos em nosso site [3] ). Uma medida agregada de produtividade do agronegócio pode ser obtida a partir da divisão da produção agrícola (quantidade produzida, em toneladas de grãos) pela dimensão da área plantada (em hectares). De 1990 a 2018, usando dados da Conab disponíveis no Ipeadata, enquanto a área plantada cresceu 58,5%, a produção de grãos aumentou 290,9%. Dividindo esses resultados, temos um aumento da produtividade de 146,5% no período, ou um crescimento médio anual de 3,28% por ano nas últimas quase três décadas. O maior dinamismo do agronegócio nas últimas décadas é Cem Flores (cemflores.org) 31 importante para explicar diversas mudanças na estrutura econômica do país, da composição das exportações (e também das importações) até uma nova geografia da produção e da renda, mais descentralizada, com o crescimento relativo de novos polos no interior do país. É também imprescindível para analisar o bloco de frações de classe dominante no poder e sua influência nas decisões de política econômica e na representação política, principalmente nos estados. Por fim, voltando à indústria, as informações mais recentes das pesquisas da FGV com os empresários industriais mostram uma queda da confiança e das perspectivas de produção para os próximos seis meses nos últimos dois/três meses. Ou seja, os empresários parecem dizer que aquele otimismo com a eleição de Bolsonaro e com o programa econômico de Guedes está se esvaindo dada a crise política que vem sendo um obstáculo à aprovação das “reformas” e os próprios números mais recentes da economia. Crédito: depois da contração, estagnação Todos sabemos o papel que o capital de empréstimo, capital portador de juros, desempenha como alavanca da acumulação, ao possibilitar a cada burguês um potencial de ampliação de sua produção acima da capitalização de mais-valia obtida do seu próprio capital (constante mais variável). O contrário, no entanto, uma contração da oferta de crédito representa não apenas a inviabilização da continuidade desse ritmo de crescimento como também um peso sobre o ritmo de acumulação anterior (sem crédito), dado que um determinado montante da mais-valia obtida deverá, agora, ser repassado ao banqueiro na forma de juros. Esse processo de crescimento com “bolha” de crédito, seguido da recessão com excesso de endividamento, foi característico da última crise do imperialismo em praticamente todos os países e, também, no Brasil. Esse excesso de endividamento restringe a oferta de crédito novo pelos bancos e força uma “desalavancagem” por parte das empresas, que reduz sua produção (ou o crescimento da mesma) para quitar dívidas. O governo Bolsonaro: Ofensiva burguesa e Resistência proletária 32 Ou seja, o cenário mostrado pelo gráfico abaixo, retirado de publicação do IEDI, mostra a contribuição da restrição de crédito para a perda de dinamismo do capitalismo brasileiro, gerando um ciclo vicioso, no qual os bancos não ofertam crédito pelo excesso de endividamento das empresas e essas não demandam mais crédito, não apenas pelo endividamento, mas também pela estagnação econômica. Um ciclo similar de endividamento também afeta camadas médias e trabalhadores que agora, não apenas tem que pagar suas dívidas, como enfrentam dificuldades em manter sua própria renda, desempregados ou ameaçados de desemprego. A retração e a posterior estagnação do crédito são fatores importantes na recessão/estagnação da economia brasileira atual. O mercado de trabalho continua piorando A classe operária e os demais trabalhadores do campo e da cidade têm sido os principais atingidos pela crise do capital no Brasil, seja de forma “direta”, com o aumento do desemprego e a piora das condições de trabalho e aumento da exploração dos que permanecem empregados, seja de maneira “indireta”, pelo efeito dos sucessivos “cortes de gastos” na qualidade dos serviços públicos de saúde e educação, na piora da “qualidade” de vida (mais exposição à violência, “tragédias” “naturais”...) etc. A lógica do capital na sua luta de classe para retomar sua taxa de lucro envolve, necessariamente, o aumento da exploração da força de trabalho e uma concomitante deterioração das condições de reprodução da mesma. Cem Flores (cemflores.org) 33 Na atual crise brasileira, essa deterioração do mercado de trabalho tem, ao menos, as seguintes características: aumento do desemprego, aumento da subutilização da força de trabalho, aumento da informalidade e da precarização (com novos limites legais, cada vez mais rebaixados), piora das condições de trabalho e dos salários e ataques da burguesia contra os sindicatos (nosso último texto sobre os efeitos da reforma trabalhista, ver o quarto artigo deste livro) e outras formas de organização e luta dos trabalhadores. Na recessão, a taxa de desemprego calculada pelo IBGE, que era de 7,2%, em março de 2014, quase dobrou para 13,7%, em março de 2017. Passados dois anos, a mesma permanece em 12,7%. Ou seja, em relação a 2014 são quase 6 milhões de desempregados a mais, em um número que já soma 13,4 milhões de trabalhadores a procura do emprego para sustentar a si e sua família. Só que a piora do mercado de trabalho pode ser melhor analisada com a nova estatística do IBGE, uma espécie de conceito amplo de desemprego, na qual são acrescidas à taxa de desemprego a população subocupada (trabalho em tempo parcial) e a desalentada (que não foi procurar emprego pois sabia que não ia achar mesmo). Nesse conceito, o desemprego não parou de subir, mesmo já tendo se passados dois anos e meio do final da recessão! A chamada “taxa de subutilização da força de trabalho” bateu recorde em março de 2019, atingindo um quarto da população economicamente ativa do país. São 28,3 milhões de trabalhadores nessa condição. O governo Bolsonaro: Ofensiva burguesa e Resistência proletária 34 Taxa Composta de subutilização da força de trabalho – trimestres de janeiro a março – 2012/2019 - Brasil (%) Esse contingente desempregado/subutilizado exerce significativa pressão de redução sobre os salários e demais condições de trabalho dos que permanecem empregados, o que faz parte da ofensiva burguesa para reduzir os salários e aumentar seus lucros. Isso pode ser visto analisando as condições de trabalho do contingente dos trabalhadores empregados. Primeiramente, vamos focar nos empregados com carteira assinada, o mercado de trabalho formal. 2018 foi o primeiro ano desde 2014 com mais contratações que demissões, segundo dados do Caged, do finado Ministério do Trabalho. Dessas contratações, 86% foram para empregos de até dois salários mínimos. As principais profissões contratadas no ano passado foram: vendedores e demonstradores (1,8 milhão), auxiliares administrativos (1,1 milhão), síndicos, porteiros e zeladores (1 milhão) e serviços de hotelaria e administração (0,9 milhão). Ou seja, nenhuma na área de produção, comprovando a estagnação/depressão do setor, todasna área de comércio ou serviços, em geral, com menores qualificação, salários e condições de trabalho. Outra face da piora dos postos de trabalho é o aumento da informalidade. De acordo com dados compilados pelo site Nexo, de 2015 a 2018, o número de trabalhadores por conta própria, nome “oficial” do IBGE para o emprego informal, aumentou em 2,1 milhões, enquanto os “empregados do setor privado” tiveram queda de 2,5 milhões de postos e o emprego doméstico aumentou em quase 300 mil. Houve, portanto, uma Cem Flores (cemflores.org) 35 “troca” perversa para o trabalhador: após a demissão, só se consegue arrumar empregos informais (aqueles que conseguem). Em relação à mulher trabalhadora, além da informalidade, voltou a crescer uma ocupação “típica”, a de prestar serviços domésticos nas casas da burguesia e da classe média brasileira. Outra face dessa “troca” é a redução de postos na indústria (menos 2,6 milhões) – em geral com maior percentual de trabalho formal – pelo setor de comércio e serviços (mais 2,4 milhões) – onde há proporção maior de trabalho informal. Nesse contexto, os rendimentos médios permanecem estagnados. De acordo com o IBGE, de 2014 a 2019 (dados para março), o “rendimento médio mensal real habitualmente recebido de todos os trabalhos” aumentou, em termos acumulado, pífios 0,75%... E essa média ainda pode dar uma falsa impressão da realidade. Vejamos a afirmação do coordenador do IBGE responsável por esses números: “O mercado jogou 1,2 milhão de pessoas na desocupação e a carteira de trabalho não teve recuperação. Os trabalhadores sem carteira que tinham sido contratados como temporários para vendas, como na Black Friday e no Natal, ou que trabalharam nas eleições, saíram do emprego no início do ano. Como esses postos de trabalho pagam menos, a média de rendimentos do setor aumentou sem que houvesse um ganho real nos rendimentos dos trabalhadores”. É importante ressaltar que essa deterioração do mercado de trabalho faz parte do programa econômico da burguesia na crise do capital para retomar suas taxas de lucro. E, inclusive por isso, tais medidas fazem parte do próprio programa político da burguesia na sua luta de classes contra o proletariado, visando limitar sua organização e capacidade de manifestação e resistência. E, não custa lembrar, se isso não for suficiente, a burguesia conta com o reforço dos aparelhos repressivo e ideológicos de estado (que analisaremos no quinto e no sexto artigos deste livro). Desigualdade crescente Considerando todos os fatos e dados da realidade econômica brasileira já expostos neste texto, a conclusão sobre a desigualdade no Brasil não poderia ser outra senão a de um crescimento dessa medida já O governo Bolsonaro: Ofensiva burguesa e Resistência proletária 36 absurdamente alta na comparação internacional. Isso mesmo levando em consideração apenas os estudos provenientes das estatísticas oficiais de rendimentos (PNAD-IBGE) e renda/patrimônio (Imposto de Renda). Hoje sabemos que, ao contrário da propaganda dos governos petistas, a desigualdade se manteve estável ou com ligeiro crescimento naqueles anos. Sobre o período de 2006 a 2012, afirmam os autores desses estudos [4] : “Entre 2006 e 2012 cresceu a participação dos rendimentos de capital no topo da distribuição de renda. Esses rendimentos são extremamente concentrados: três quartos dos lucros e dividendos, três quartos das rendas de aplicações financeiras e quatro quintos de todos os ganhos de capital dos 10% mais ricos são apropriados pelo 1% mais rico. Essas frações expressam, aproximadamente, a concentração na população inteira. O comportamento da desigualdade de renda entre 2006 e 2012 decorre de um aumento das rendas de capital no topo da distribuição compensando uma desconcentração dos rendimentos do trabalho, o que em parte explica a divergência de comportamento da desigualdade em relação à estimada em pesquisas domiciliares”. Essa frase sintetiza à perfeição os governos petistas: a mais ampla liberdade para a acumulação de capital pela burguesia, enquanto se jogam os trabalhadores assalariados uns contra os outros, dividindo-os entre “privilegiados” e “pobres”. Não é à toa que vemos esse velho bordão repaginado para a defesa da reforma da previdência. Inegavelmente, as consequências da recessão/estagnação com a contração dos salários e o aumento do desemprego acarretam aumento da desigualdade. Ainda que não conheçamos estatísticas comparáveis de PNAD-Imposto de Renda para os anos mais recentes, a própria evolução do Índice de Gini (rendimentos apenas) atesta a crescente desigualdade. O gráfico abaixo, elaborado pela FGV-Ibre a partir dos dados do IBGE, mostra que esse indicador de desigualdade cresce a 17 trimestres consecutivos e está no maior nível em pelo menos sete anos. Cem Flores (cemflores.org) 37 Da mesma forma que a desigualdade, a recessão/estagnação também aumentou a pobreza em mais 7,4 milhões de pessoas de 2014 a 2017, de acordo com estudo do Banco Mundial. A continuar a estagnação/depressão, outros 14 milhões podem ser adicionados ao contingente de pobres, segundo o mesmo estudo. Esses números, no entanto, são “apenas um pálido retrato da extrema ‗desigualdade social‘ do país”, pois não dão conta da “própria produção da riqueza no capitalismo, que necessariamente, como nos mostra Marx, é desigual, posto que fundada na exploração do trabalho assalariado, isto é, na expropriação da mais-valia”, conforme afirmamos em texto de 2014 sobre desigualdade social, a propaganda de sua diminuição e seus propósitos ideológicos [5] . Afinal de contas, a tendência do capitalismo, sociedade de classes, é exatamente a de perpetuar, ampliar e aprofundar a desigualdade. Como concluímos naquele texto: “Marx nos diz também que o desenvolvimento histórico do modo de produção capitalista é regido pela „lei geral da acumulação capitalista‟, e que esse desenvolvimento „(…) ocasiona uma acumulação de miséria correspondente à acumulação de capital. A acumulação da riqueza num polo é, portanto, ao mesmo tempo, a acumulação de miséria, tormento de trabalho, escravidão, ignorância, brutalização e degradação moral no polo oposto.‘ (K. O governo Bolsonaro: Ofensiva burguesa e Resistência proletária 38 Marx, O Capital, Livro II, Capítulo XXIII, Abril Cultural, 1985, p. 210)”. O que sabemos sobre a tendência recente da taxa de lucro no Brasil? É fundamental para a análise econômica marxista da conjuntura e da luta de classes o estudo da evolução da taxa de lucro. No entanto, essa variável é complexa de ser calculada de acordo com as definições da teoria marxista, consideradas as insuficiências das estatísticas oficiais. No Brasil, os estudos de Miguel Bruno e Adalmir Marquetti têm buscado calcular empiricamente a taxa de lucro em termos marxistas. No entanto, os estudos mais recentes desses autores têm dados apenas até 2015. Bruno Theodosio, em recente trabalho acadêmico coorientado por Marquetti (Determinantes da acumulação de capital no Brasil entre 2000 e 2016: lucratividade, distribuição, tecnologia e financeirização), atualiza esse cálculo até 2016, conforme gráfico abaixo. Vemos então claramente o aumento da taxa de lucro no período do mini-ciclo de expansão de 2005-2010 e seu esgotamento/reversão a partir de 2011/2012, antecedendo o início da recessão, conforme esperado. A taxa de lucro continua em queda até o fim da série, em 2016, ano de encerramento da recessão. Cem Flores (cemflores.org) 39 A questão mais relevante para a análise da situação atual é: e depois da recessão, o que aconteceu com a taxa de lucro? Não existem dados similares ao do gráfico acima, portanto devemos contar com aproximações empíricas e com a intuição teórica. Teoricamente,as consequências da recessão/estagnação que exploramos neste texto implicaram, para as classes dominadas, aumento do desemprego, piora nas condições de trabalho, redução dos salários e aumento da exploração. Todos esses fatores são contrarrestantes da tendência de queda da taxa de lucro. O próprio objetivo da crise econômica, de acordo com o marxismo, é a reposição das condições de acumulação para um novo ciclo expansivo, dentre elas o aumento das taxas de lucro. A intuição teórica nos diz, portanto, que as taxas de lucro devem ter aumentado a partir de 2017, ainda que de forma insuficiente para o aumento dos investimentos e retomada sustentada da acumulação capitalista no país. As informações de lucratividade empresarial para o período de 2017 a 2019 (primeiro trimestre) resumem-se aos balanços das empresas. Ou são apurações dos lucros brutos ou de rentabilidade, dividindo os lucros pelos ativos ou pelo patrimônio líquido. Não são, portanto, equivalentes ao cálculo da taxa de lucro de acordo com a teoria marxista. A empresa Economática consolida sistematicamente os lucros de por volta de 300 empresas listadas na bolsa de valores. Em 2017, essas empresas aumentaram em 17,1% seus lucros. Em 2018, esse crescimento foi de 41,8%. No primeiro trimestre de 2019, novo aumento, de 9,1%. Esses resultados incluem os bancos, mas a tendência de crescimento dos lucros se mantém se forem consideradas apenas as empresas não financeiras. O IEDI também realizou cálculos sobre lucratividade empresarial para 2018. Considerando mais de 300 empresas não financeiras, sem Petrobrás, Vale e Eletrobrás (que distorcem o número dado seu tamanho), “a margem passou de 4,5% para 5,9%, retornando ao nível de 2014 (5,6%)”. Com essas três empresas atingiu 7,6% em 2018. Assim como a Economática, o IEDI destaca a concentração desses lucros em alguns setores, como O governo Bolsonaro: Ofensiva burguesa e Resistência proletária 40 comércio e serviços. Embora a lucratividade industrial tenha melhorado, o resultado de 2018, 4,6%, permaneceu abaixo do de 2014, 5,7%, e foi concentrado na indústria extrativa (mesmo excluindo Petrobrás e Vale) e em insumos básicos. Como podemos ver no gráfico abaixo, retirado do estudo do IEDI, a “margem líquida de lucro” começou a se recuperar a partir de 2016, enquanto a taxa de lucro calculada por Theodosio continuava em queda. Essa margem continuou aumentando em 2017 e 2018, resultado que parece consistente com nossa intuição teórica. Prováveis “cenários” Se esses resultados se confirmarem em termos de taxa de lucro, de acordo com a teoria marxista, teríamos então as seguintes possibilidades: 1) a contínua elevação da taxa de lucro estimularia os investimentos e a acumulação (portanto, a exploração), encerrando a estagnação, ou 2) o aumento da taxa de lucro se mostraria pequeno e insustentável, voltando a se reduzir e indicando uma nova recessão à vista. Considerados os elementos apresentados neste texto, que constituem a crise econômica e a crise política atuais, somados à desaceleração da Cem Flores (cemflores.org) 41 economia mundial como um todo, principalmente nos EUA e na China, a hipótese 2 – de continuidade da estagnação e/ou de uma nova recessão – nos parece ser a mais provável atualmente. Esse cenário tenderia a agravar as condições de dominação burguesa, acirrando a luta de classes em nosso território. A burguesia, vendo a necessidade de ainda mais arrocho, repressão e reformas em seu instrumento de dominação (Estado); o proletariado, empurrado a se organizar e resistir para manter suas (mínimas) condições de vida e trabalho. E, como dissemos no início do texto, para sair desse inferno sem fim que é o capitalismo, cabem à classe operária e aos comunistas construírem a única alternativa possível: a revolucionária. O governo Bolsonaro: Ofensiva burguesa e Resistência proletária 42 [1] Teses Sobre a Crise do Capital e a Luta de Classes no Brasil. http://cemflores.org/index.php/2017/04/16/teses-sobre-a-crise-do-capital-e-a-luta-de- classes-no-brasil/ [2] Brasil: Crise e Regressão (Parte 2). http://cemflores.org/index.php/2014/12/09/brasil-crise-e-regressao-parte-2/ [3] Brasil: Crise e Regressão (Parte 3). http://cemflores.org/index.php/2015/01/21/265/ [4] Marcelo Medeiros e Fábio Ávila de Castro. A composição da renda no topo da distribuição: evolução no Brasil entre 2006 e 2012, a partir de informações do Imposto de Renda. Economia e Sociedade, 2018. [5] A propaganda da diminuição da ―desigualdade social‖ no Brasil e seu propósito ideológico. http://cemflores.org/index.php/2014/12/17/a-propaganda-da-diminuicao-da- desigualdade-social-no-brasil-e-seu-proposito-ideologico/ Cem Flores (cemflores.org) 43 A reforma da previdência faz parte do programa de classe da burguesia, de opressão e exploração dos trabalhadores Na quarta-feira, dia 20 de fevereiro, o circo (de horrores!) foi montado em Brasília. Sob o aplauso unânime e entusiástico da grande imprensa, da grande indústria, dos grandes bancos e do capital internacional, o governo entregou ao Congresso Nacional sua proposta de “reforma” (sic!) da previdência. O documento celebrado pelos funcionários do capital visa baratear o valor da força de trabalho no país, tornando-a mais lucrativa para os patrões; permitir a redução da carga tributária das empresas, também ampliando seus lucros; ao mesmo tempo em que prolonga o suplício do trabalho assalariado, piora as condições de vida dos trabalhadores da cidade e do campo e agrava a desigualdade, a exploração e a miséria na sociedade brasileira. Em primeiro lugar, vale lembrar que a “reforma da previdência”– sob o pretexto explícito de reduzir o déficit público via diminuição dos gastos O governo Bolsonaro: Ofensiva burguesa e Resistência proletária 44 do governo; e com os objetivos encobertos de ampliar o tempo útil da força de trabalho para o capital, aumentar a quantidade de trabalhadores disponíveis e, com isso, reduzir seu valor e ampliar a lucratividade – tem sido uma bandeira da burguesia, dos seus governos e dos seus economistas no mundo inteiro, especialmente após a grande crise do capital iniciada em 2007/08. Vários são os exemplos: França, Rússia, Espanha, Argentina... Em todos esses casos, como agora no Brasil, a capacidade dos operários, dos camponeses e dos demais trabalhadores assalariados para organizar protestos, manifestações e greves, em todo o país, foi (e continua sendo) decisiva para sua vitória contra mais essa ofensiva burguesa. No Brasil, o mantra da “reforma da previdência” ameaça os trabalhadores já faz mais de vinte anos. Pelo menos desde FHC, todos os governos burgueses (FHC, Lula, Dilma, Temer e, agora, Bolsonaro) manobraram mundos e fundos para cumprir essa meta do programa acordado com seus patrões. Tal qual Bolsonaro nesta semana, Lula também foi pessoalmente ao Congresso em 2003 entregar a sua “reforma”, vista, na época, como um desdobramento necessário dos compromissos assumidos com a burguesia na sua “Carta aos Brasileiros”. Dilma buscou ir além: não apenas “reformou” a previdência em 2015 criando a regra de aposentadoria variando conforme a expectativa de vida– o famoso trabalhar até morrer – como insistiu até o final do seu mandato em fazer mais uma “reforma”, dessa vez, com foco na idade mínima, o mesmo da proposta atual. Esse mesmo item, por sinal, era um dos focos da proposta de “reforma da previdência” do PT na última campanha eleitoral, com Haddad. A “reforma da previdência” é tema comum do programa da burguesia brasileira há décadas, quer seja de sua ala direita (FHC, Temer), quer seja de sua ala “esquerda” (Lula, Dilma), e também,agora, de sua vertente de extrema-direita (Bolsonaro). Diante dessa constatação e do conteúdo das seguidas “reformas” propostas (aprovadas ou não), podemos concluir que as mesmas objetivam, em geral, a retomada das condições de acumulação do capital, via aumento da exploração da força de trabalho, redução dos salários e piora nas condições de vida e reprodução dos trabalhadores. Cem Flores (cemflores.org) 45 Os objetivos da “reforma da previdência” para o capital Especificamente em relação à proposta de “reforma da previdência” apresentada por Bolsonaro-Guedes, afirmamos que seus objetivos principais são: Ampliar a disponibilidade de força de trabalho para o capital Para alcançar esse objetivo, a “reforma” propõe as seguintes regras gerais: 1. eliminar a possibilidade de aposentadoria por tempo de contribuição – e não devemos esquecer que, antes das “reformas” das duas últimas décadas, o conceito era aposentadoria por tempo de trabalho!; 2. aumentar a idade mínima para 65 anos para homens e 62 anos para mulheres; 3. revisar para cima essa idade mínima a cada quatro anos; 4. ampliar a contribuição mínima de 15 para 20 anos, e 5. elevar para 40 anos o tempo de contribuição mínimo para aposentadoria integral (servidores públicos) ou no teto do INSS (setor privado). Com isso, a proposta busca explicitamente incorporar na força de trabalho ativa, disponível à exploração do capital, um contingente de trabalhadores que poderia estar aposentado pelas regras atuais. Esse dispositivo da proposta tende a afetar diretamente a parcela dos operários e demais trabalhadores dos setores formalizados e/ou de maior tradição de representatividade sindical, como servidores públicos, metalúrgicos, bancários, petroleiros, etc. dentre os quais era mais comum a aposentadoria por tempo de contribuição. Também são atingidas diretamente categorias que tinham tempo menor para aposentadoria, como professores, com a fixação de idade mínima de 60 anos – independente de gênero –, com contribuição mínima de 30 anos. A mulher trabalhadora também é duramente atingida por essa proposta. Não apenas no caso das professoras, mas também no das trabalhadoras rurais, a idade para aposentadoria feminina foi, não apenas elevada (60 anos nos dois casos), mas igualada à masculina, ignorando as diferenças O governo Bolsonaro: Ofensiva burguesa e Resistência proletária 46 concretas nas condições de vida e de trabalho entre homens e mulheres na nossa sociedade, capitalista e machista. Embora existam diferenças específicas e relevantes entre as diversas categorias de trabalhadores, o objetivo da “reforma” Bolsonaro-Guedes em relação aos trabalhadores assalariados é um só: ampliar a disponibilidade de força de trabalho para o capital. Dessa forma, a resposta da classe operária e do conjunto dos trabalhadores também deve ser única: derrotar nas ruas, nas lutas, nas manifestações e nas greves mais essa ofensiva da luta de classes burguesa. Baratear o valor da força de trabalho para o capital A própria ampliação do tempo em que os trabalhadores assalariados deverão ficar à disposição do capital antes de poderem se aposentar, ao contribuir para o aumento do contingente de trabalhadores trabalhando ou em busca de emprego, contribui para o rebaixamento dos salários. Não contentes com esse mecanismo geral, a dupla Bolsonaro-Guedes ainda inclui requintes de crueldade na proposta, para demonstrar que a sede de lucro não tem limites e que, se o trabalhador não consegue contribuir para a geração desses lucros, então é inteiramente descartável. A “reforma” reduz as aposentadorias por invalidez (de 100% da base de cálculo do benefício para 60% até 20 anos de contribuição e mais 2% por ano adicional); permite pensão por morte abaixo de um salário mínimo; reduz o PIS/Pasep de 2 para 1 salário mínimo; e também reduz o benefício de prestação continuada, pago aos mais miseráveis dentre nós. De um salário mínimo, o idoso de 65 anos passa a receber R$400 até completar 70 anos. Morra!, diz o gerente do capital ao trabalhador inválido, deficiente ou idoso… Esse mecanismo de contenção salarial permite, de maneira direta, a ampliação dos lucros (que também é um dos objetivos/efeitos da reforma trabalhista de Temer, que Bolsonaro-Guedes querem ampliar, cada vez mais em direção à “formalidade informal”) e uma maior competitividade ao capital que acumula no país. Cem Flores (cemflores.org) 47 Permitir a redução dos impostos sobre o capital Essa “reforma da previdência” também é o primeiro passo da “reforma tributária” tão desejada por Guedes e pelo conjunto da burguesia. De acordo com a propaganda do Ministério da Economia, o governo poderá chegar a economizar mais de R$1 trilhão em dez anos com a “reforma”. O que significa essa quantia astronômica? Tão somente que, ao impedir os trabalhadores assalariados de se aposentar pelas já duras regras atuais: i) o governo vai coletar impostos (contribuição previdenciária) desses trabalhadores durante muito mais tempo, logo aumentando a sua arrecadação, e ii) vai pagar aposentadorias e pensões, para quem conseguir chegar lá, de valor menor e por menos tempo, portanto reduzindo seus gastos. Dessa forma, ao longo do tempo a “reforma” tende a criar tendência crescente nas receitas previdenciárias e tendência decrescente nas despesas. O gasto público líquido se reduz fortemente (os citados R$1 trilhão). O próximo passo é reduzir a carga tributária para as empresas. Com isso, Bolsonaro-Guedes terão feito a “mágica” da “reforma tributária” do capital: reduzir os impostos sobre o capital, aumentando os impostos sobre o trabalho assalariado. Aumento da massa de dinheiro à disposição do capital O aumento da receita previdenciária e a redução da despesa previdenciária permitem ampliar a massa de dinheiro arrecadado dos trabalhadores assalariados que o Estado burguês pode dirigir para a acumulação e o lucro dos capitalistas. Se isso parece esquisito, pensemos nos recursos do FGTS, arrecadados de cada trabalhador, reunidos no FAT e que são graciosamente colocados à disposição do BNDES para emprestar a juros baixos para os capitalistas… Embora por diferentes caminhos, via orçamento público e outros, o processo é o mesmo aqui. Mas a “reforma” Bolsonaro-Guedes quer ir ainda mais longe que esse caminho, digamos, tradicional. Ao propor para as futuras gerações de trabalhadores o regime de capitalização para aposentadoria, o mecanismo se torna mais simples e direto. Sem a intermediação do Estado, o “imposto” cobrado dos trabalhadores já vai direto para as mãos dos fundos de pensão O governo Bolsonaro: Ofensiva burguesa e Resistência proletária 48 e similares. Esses fazem uma parte do papel dos bancos: reúnem uma massa gigantesca de dinheiro e o transformam em capital ao emprestar para os capitalistas ampliarem sua acumulação e seus lucros, dos quais recebem uma generosa porção. O discurso ideológico de justificação da “reforma” Mas, obviamente, esses objetivos da “reforma da previdência” não são apresentados dessa maneira aos operários e à toda a população. Existe todo um discurso ideológico da “reforma da previdência” que vem se desenvolvendo nas últimas décadas e que culminou na patética afirmação de que o primeiro princípio dessa “reforma” é criar um ―sistema justo e igualitário (rico se aposentará na idade do pobre)‖. Não era de outra forma que Lula justificava sua “reforma” em 2003: “Nas justificativas que enviou com as propostas de mudanças constitucionais, o presidente Lula assinala que elas são fundamentais para tornar a Previdência mais justa”. Da semelhança entre as duas frases, podemos ver que está em curso operação ideológica semelhante à que caracterizou o lulismo: o discurso de redução das desigualdades. No caso do PT, a
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