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Evolução: Além de Darwin O que sabemos sobre a história e o destino da vida Reinaldo José Lopes Como ler este livro Nenhum aspecto da vida na Terra, das hélices moleculares das bactérias às emoções humanas, tem sentido sem a força iluminadora da teoria da evolução. Faz um século e meio que a biologia evolutiva foi fundada por Charles Robert Darwin (1809- 1882) com a publicação do livro Sobre a Origem das Espécies por Meio da Seleção Natural (normalmente encurtado para A Origem das Espécies em português). Desde então, o alicerce lançado por Darwin deu lugar a um edifício imponente, que confirmou a essência do que o naturalista britânico propunha e, ao mesmo tempo, ampliou de forma vertiginosa o conhecimento que temos sobre a origem e a natureza dos seres vivos. O livro que você tem em mãos é um passeio pela versão mais atualizada e empolgante desse legado. Na introdução, ou Você está aqui, como decidi batizar essa seção, meu objetivo é proporcionar uma visão telescópica, de longo alcance, da história da vida no nosso planeta, do começo obscuro nas fornalhas da atmosfera primitiva da Terra ao surgimento dos ancestrais da nossa própria espécie. Veremos que não havia nada de inevitável nesse caminho, que repetidas vezes o que chamamos de vida complexa chegou muito perto de ser aniquilada, apenas para voltar a florescer teimosamente neste cantinho do Universo. Por último, e não menos importante, lembraremos que, apesar da profusão de animais e plantas que parecem governar o mundo hoje, seria mais justo dizer que os donos da biosfera são os mesmos de 3,5 bilhões de anos atrás: as bactérias. Após esse panorama, começamos a examinar o papel fundamental do sexo para inúmeras formas de vida na seção Parceiros. Além de abordar a questão de 1 milhão de dólares (afinal, por que os seres vivos se dão ao trabalho de fazer sexo se dá para se reproduzir sem ele?), a ideia é mostrar como essa necessidade molda o comportamento humano e animal e as diferenças essenciais entre machos e fêmeas. A seção Mentes busca desmontar de vez o mito da inteligência como atributo exclusivo da nossa própria espécie (não que nove entre dez donos de cachorros alguma vez tenham aderido a essa doutrina estapafúrdia). A diferença entre nós e o resto das formas de vida nesse quesito é menor do que gostaríamos, e o estudo de seres como golfinhos, corvos e até polvos pode se tornar uma ferramenta valiosa para compreender a “receita” evolutiva responsável por inteligências avançadas. De quebra, espero lançar alguma luz sobre as raízes de algumas características básicas da mente humana. É bem possível que Darwin ficasse surpreso e encantado com as descobertas relatadas na seção Peças, porque elas envolvem descobertas relativamente recentes da biologia molecular. As “peças” em questão são os mecanismos biomoleculares básicos que ajudam a construir os corpos dos seres vivos e, assim, funcionam como matéria-prima para as novidades evolutivas de grande escala – coisas como a transformação de lagartos em cobras ou de células simples, bacterianas, nas células complexas e simbióticas que carregamos. Em seguida, a seção Elos mostra que tais transições têm muito pouco de especulação: os paleobiólogos de hoje contam com um conjunto impressionante de fósseis, documentando, muitas vezes passo a passo, a origem de criaturas tão complexas e adaptadas a seu ambiente quanto aves (“filhas” dos dinossauros) ou baleias (descendentes diretas de mamíferos terrestres de casco, como os porcos e hipopótamos). Dizer que não existe o “elo perdido” é ignorar que multidões de “elos perdidos” adornam as prateleiras dos museus do mundo. A seguir, voltando para o presente, Formas revela como as variantes mais bizarras e idiossincráticas da anatomia e da bioquímica dos seres vivos ganham sentido diante dos desafios evolutivos que tais criaturas, como ornitorrincos ou ratos-toupeiras- pelados, tiveram de enfrentar. A seção Esperanças mostra que uma teoria de poder explicativo tão grande inevitavelmente nos leva a repensar o nosso relacionamento com outras formas de vida, e o papel da espécie humana no planeta. O que deve mudar nas nossas tradições espirituais? É lícito tratar outros animais como totalmente separados e distintos de nós? Finalmente, a conclusão, que apelidei de Daqui para a frente, tenta condensar essas preocupações numa visão inevitavelmente pessoal do significado da compreensão da evolução para o nosso futuro na Terra. Boa leitura! Você está aqui Quase 4 bilhões de anos de história da vida na Terra por apenas alguns milhares de caracteres Nosso planeta já nasceu grávido de vida. A expressão, eu sei, é estranhíssima, e tem um quê de personificação exagerada, mas reflete o fato indiscutível de que vemos as pegadas dos seres vivos por aqui assim que a Terra se tornou minimamente hospitaleira. Os primeiros 600 milhões de anos do nosso lar planetário são justamente conhecidos como o Éon Hadeano, por analogia com o Hades, o submundo dos mortos na mitologia grega. Num Sistema Solar que ainda estava se estabilizando a duras penas, bombardeios implacáveis de asteroides e cometas, bem como pelo menos um choque com outro planeta de tamanho comparável a Marte, esmigalhavam repetidamente as rochas incandescentes que formavam a Terra-bebê. Então, há pouco menos de 4 bilhões de anos, as coisas finalmente se acalmaram, e o antigo Hades virou Éden, na mesma rapidez com que, nesta frase, saltamos da mitologia grega para a judaico-cristã. Rochas da atual Groenlândia, que estão entre as mais antigas do mundo, carregam carbonatos, minerais que em geral precisam da atividade de micróbios como as atuais bactérias para se formar. Mais algumas centenas de milhões de anos e dá para ver fósseis inequívocos das ditas cujas na Austrália. A vida, pelo visto, estava só esperando a primeira calmaria séria para desabrochar. Era o destino? É claro que respostas científicas a esse tipo de pergunta não existem e, além do mais, fica difícil afirmar qualquer coisa com alto grau de probabilidade quando só conhecemos um único exemplo de origem da vida no Universo inteiro (o nosso, no caso). De qualquer maneira, a rapidez com que os seres vivos se estabeleceram por aqui pode indicar que, longe de ser um evento vastamente improvável, a vida é um jeito tão natural de organizar matéria e energia que ela se estabelece a qualquer descuido do Cosmo. Matéria-prima, de fato, não falta. (Vamos deixar de lado a hipótese da panspermia, segundo a qual os seres vivos já chegaram “prontos” ao nosso planeta, vindos do espaço por acidente ou como “semeadura cósmica” de uma civilização de ETs. A ideia não serve para muita coisa porque só consegue criar uma regressão infinita: em algum lugar a vida precisa ter começado sozinha, certo?) Panspermia à parte, as chamadas moléculas orgânicas, cuja espinha dorsal é o elemento químico carbono e que marcam as reações características dos seres vivos, não precisam de microrganismos, animais ou plantas para existir. Nuvens cósmicas de gás possuem quantidades tão vastas de etanol (pois é, álcool etílico mesmo) que eu consigo imaginar os ricaços do futuro distante, caso nossa civilização realmente conquiste outros sistemas solares, encomendando garrafas e mais garrafas de Caipirinha Galáctica ou Uísque das EstrelasTM. O mesmo vale para os aminoácidos que compõem as proteínas e outros compostos orgânicos básicos: o Universo está cheio deles, assim como a Terra primitiva provavelmente estava. No entanto, como todos sabemos, empilhar tijolos não equivale a construir uma casa. O segredo da vida está na maneira inusitada como as moléculas orgânicas se organizam e se relacionam com o meio externo. Apesar das muitas histórias de sucesso da biologia evolutiva e de sua capacidade quase imbatível de explicar a saga da vida, a origem dos primeiros organismos de uma só célula continua sendo, para todos os efeitos, um mistério impenetrável.Há muitos modelos plausíveis para explicar esse Big Bang biológico, mas nenhum completo ou isento de dificuldades sérias. Ainda assim, o conhecimento aprofundado dos mecanismos básicos da vida no nível da célula permite aos cientistas esboçar alguns pré-requisitos. Correndo o risco de simplificar em excesso um debate complicadíssimo, pode-se dizer que os modelos sobre a origem dos seres vivos na Terra se concentram em dois polos opostos: “replicadores primeiro” ou “metabolismo primeiro”. O melhor exemplo de replicadores que temos hoje é o DNA, embora essa molécula seja demasiado complexa e frágil para ter emergido logo de cara, de acordo com os especialistas. A essência dos replicadores é a capacidade de se multiplicar e transmitir adiante informação genética com pelo menos algum grau de fidelidade. Uma comparação muito usada para esclarecer a natureza dos replicadores biológicos envolve o fogo. Um “incêndio-pai” é perfeitamente capaz de produzir dois “incêndios-filhos”, mas a semelhança entre eles é puramente acidental: não existe nenhuma essência da “fogueira paterna” que a “fogueira-filha” herda, além da capacidade de criar um estrago dos infernos. Um replicador biológico é diferente porque implica descendência com modificação: “filhos” herdam a maior parte das características dos “pais”, as quais, por sua vez, são passadas aos “netos”, mas com o porém importante de que sempre há uma variação casual nessa passagem do bastão de uma geração para outra. Com isso, alguns descendentes podem ter mais facilidade para produzir cópias de si mesmos do que outros, de maneira que um “jeito” de se replicar pode sobrepujar os demais e até exterminá-los, direta ou indiretamente. Esse é o mecanismo básico segundo o qual a seleção natural, e provavelmente o grosso da evolução, acontece. Por outro lado, o modelo que coloca o metabolismo em primeiro lugar argumenta, com alguma razão, que uma molécula replicadora, por si só, poderia ser facilmente engolfada no turbilhão de reações químicas da Terra primitiva. O passo essencial para o início da vida seria, portanto, a formação de uma membrana ou vesícula vagamente semelhante à das células atuais, controlando a passagem de substâncias de dentro para fora e de fora para dentro da membrana. No interior dela, um conjunto de moléculas orgânicas teria descoberto o segredo da autopoiese, do “fazer-se a si mesmo”, como indica essa palavra de origem grega. Por meio de um conjunto especial de reações químicas sustentáveis, a célula primeva era capaz de se manter organizada por muito tempo enquanto exportava os restos desordenados de seu metabolismo para o meio circundante. A capacidade autopoietica, de se autorrenovar, mais do que a capacidade de reprodução/replicação, seria definidora da vida, segundo esse ponto de vista. O elo entre os dois tipos de hipótese talvez seja o chamado “mundo de RNA”, no qual essa molécula-irmã do DNA teria sido capaz tanto de funcionar como replicador quanto de iniciar o metabolismo (embora não de delimitar, sozinha, a primeira célula). Por enquanto, a resposta mais honesta é um sonoro “não sabemos”. O que sabemos, sem sombra de dúvida, é que há uns 3,5 bilhões de anos atrás o domínio das bactérias já estava solidamente estabelecido. Tão solidamente, aliás, que o mais correto seria dizer que se trata de um reino que não terá fim enquanto a Terra for habitável. Perto das bactérias, todas as formas de vida, inclusive nós, não passamos de epílogo ou posfácio. (Razão pela qual você não encontrará um neste livro: ninguém lê posfácios. Um ou outro maluco ainda se arrisca a ler prefácios, mas posfácios? Nem sonhando.) Descontada a absurda vantagem numérica – há mais células de bactérias em você do que células de você em você, se é que me entende –, esses microrganismos de material genético “desorganizado”, sem um núcleo que o abrigue, são os verdadeiros carregadores de piano da biosfera, envolvidos em todos os fluxos de matéria e energia essenciais para que a vida continue vivendo, da fotossíntese que produz biomassa à decomposição que a quebra em seus pedaços constituintes de novo. Bactérias são duronas, e bem mais complicadas do que nossa mania de caricaturá-las sugere. Elas podem se organizar em comunidades e colônias de indivíduos que, à primeira vista, lembram seres de muitas células como nós. Podem trocar genes de maneira informal, um tipo de “sexo” que já foi comparado a alguém de olhos castanhos esbarrando num escandinavo e ganhando de repente cabelos louros e olhos azuis. Tal promiscuidade, aliás, é um dos principais obstáculos a construir a chamada Árvore da Vida, o esquema de descendência que liga todos os seres vivos a um longínquo, e talvez único, ancestral comum. As bactérias trocam material genético com tamanha facilidade que se pode conceber uma origem múltipla da vida, encimada por uma posterior uniformização de seus processos graças ao troca-troca de genes. De qualquer maneira, o metabolismo básico compartilhado entre as bactérias e todo o resto da vida indica que, se houve uma origem múltipla, seus traços acabaram sendo apagados. É impressionante como a essência molecular da célula é semelhante em todos os seres vivos da Terra. Semelhante, sim, mas não idêntica. Como você verá em um dos capítulos a seguir, o monopólio bacteriano foi interrompido há cerca de 1,5 bilhão de anos pela inaudita fusão permanente entre duas bactérias. Foi um daqueles casos em que o todo se tornou maior que a soma das partes. Surgiam os eucariontes, organismos cujo material genético está organizado num núcleo separado, como ocorre com o nosso. Antigas bactérias fundidas aos eucariontes ainda exercem funções como respirar oxigênio ou fazer fotossíntese. Enquanto as principais integrantes da biosfera continuavam, imperturbáveis, a tocar a vida, os eucariontes embarcaram de vez na estrada da complexidade – mas não imediatamente, nem inevitavelmente. O divisor de águas parece ter sido um conjunto de eras glaciais que afligiu o planeta entre 750 milhões e 600 milhões de anos atrás. Uma hipótese muito discutida, a chamada “Snowball Earth” ou “Terra Bola de Gelo”, propõe que a fase glacial foi tão severa que o gelo marinho teria chegado ao Equador. Nem todos concordam a esse respeito, mas a ideia é que a pressão ambiental severa teria conduzido ao menos alguns organismos eucariontes a se transformar no que hoje conhecemos como animais e plantas – criaturas multicelulares altamente organizadas e especializadas, que se reproduzem por meio do sexo de forma rotineira e geram “bebês”. A explicação – mais complexidade como mecanismo de sobrevivência – faz sentido enquanto você não se dá conta de que provavelmente seria muito mais fácil aguentar o aperto do frio na forma unicelular. Temos aí, portanto, mais um mistério. No caso dos animais, ele é seguido por outro, a Explosão Cambriana, registrada em fósseis com idade a partir de 540 milhões de anos. Animais primitivos tinham sido registrados antes disso, mas a Explosão Cambriana equivale ao aparecimento “repentino” (do ponto de vista geológico, claro, o que envolve alguns milhões de anos) de ancestrais de todos os grandes grupos modernos de bichos, incluindo artrópodes (insetos, crustáceos e companhia), moluscos (caramujos, polvos, ostras etc.) e vertebrados como nós. É de se imaginar que a evolução dos animais começou muito antes, sendo apenas difícil de detectar por causa da falta de corpos mais duros e “fossilizáveis”; de fato, já temos algumas indicações indiretas de que ela começou antes de 650 milhões de anos atrás. Mesmo assim, ainda falta uma explicação mais detalhada da natureza da Explosão Cambriana. Seja como for, esse início espetacular da vida de grande porte, restrita aos mares, representou apenas as primícias do que estava por vir. O registro fóssil, nas centenas de milhões de anos seguintes, revela saltos após saltos de diversidade, em geral associados à colonização de grandes ambientes virgens, como a chegada das plantas e dos vertebrados à terra firme, a invenção dos ovos de casca duraou do voo por insetos, répteis (pterossauros) e aves. Esses períodos de expansão, é bom que se diga, são pontuados por curtos episódios de horror absoluto, as chamadas extinções em massa, entre as quais os paleontólogos reconhecem as chamadas Big Five. Nessas cinco grandes catástrofes, pelo menos metade das espécies do planeta, e em alguns casos muitas mais, foram varridas do mapa num piscar de olhos geológico. A pior delas é a do Período Permiano, há 251 milhões de anos, quando a contagem de corpos chega a 90% ou mais; a mais conhecida é a do fim do Cretáceo, há 65 milhões de anos, quando os dinossauros sumiram do mapa, aparentemente exterminados pela queda de um asteroide com pelo menos 10 km de diâmetro. A força imaginativa da “cratera do Juízo Final” deixada por esse corpo celeste obscurece o fato de que a maioria desses desastres parece ter brotado de causas puramente terrenas, como vulcanismo acelerado, mudanças climáticas extremas ou variações bruscas no nível dos oceanos. Estudar com cuidado as extinções em massa também desmonta visões preconceituosas sobre os dinos ou qualquer outro animal engolido por elas: embora espécies sumam o tempo todo no mundo, as Big Five são viradas de mesa completas nas regras da vida. A matança é aparentemente aleatória, sem respeitar tamanho, tipo de metabolismo ou nicho ecológico: por mais bem adaptado que um animal esteja a seu ambiente, isso lhe dá zero garantia de sobrevivência. Pouca gente se lembra, por exemplo, de que vários grupos de mamíferos e aves primitivas também naufragaram no barco furado que carregava os dinossauros. Aparentemente, o único “seguro de vida” razoável diante de uma extinção em massa é uma distribuição geográfica ampla, o que significa simplesmente que a catástrofe não vai ser capaz de matar todos os membros da espécie em todos os lugares do mundo. Safety in numbers, ou “segurança graças à superioridade numérica”, portanto – não que isso sirva de consolo para os inúmeros indivíduos que morrem mesmo quando a espécie como um todo escapa. O que não se discute é que as Big Five realmente “reiniciaram” o programa da vida na Terra de maneira radical, como quem liga e desliga um computador recalcitrante. A mudança é de tal ordem que as relações ecológicas e a composição de espécies do globo sempre foram alteradas profundamente depois desse tipo de evento. Pode-se argumentar que, sem a hecatombe do Cretáceo, os mamíferos teriam pouca chance de virar os vertebrados terrestres dominantes do globo, e seria praticamente impossível que um certo grande macaco, há uns 6 milhões de anos, começasse a experimentar o andar ereto nas florestas da África. Alguns mamíferos até passaram por fases interessantes de aumento de tamanho e de diversificação antes do sumiço dos dinossauros, mas curiosamente essas linhagens mais saidinhas, por assim dizer, foram limadas junto com os antigos donos do globo. Dá para discutir se animais como nós são uma ocorrência provável Universo afora; mas, ao menos em parte, nossa existência não tinha nada de inevitável. O mero fato de estarmos aqui e sermos capazes de compreender boa parte dessa história complicada é motivo de assombro. E, agora, acho que você já sabe o bastante para continuar. Vamos ao que interessa: sexo. Parceiros Dos deleites e das agruras de se reproduzir fazendo sexo Meu coração é do papai Por que nossos genitores são o modelo do que achamos atraente. Não sei se alguém já enunciou formalmente a hipótese a seguir, mas eu seria capaz de apostar que 90% das verdades imutáveis sobre a natureza humana já foram enunciadas pela música popular. Repare. Quando a mesma ideia fica aparecendo espontaneamente nas letras de compositores diferentes, e até em países diferentes, é bom desconfiar. Para ser mais específico, estou pensando em coisas como a célebre performance de Marilyn Monroe cantando My heart belongs to Daddy (“meu coração pertence ao papai”); no clássico samba que diz “Ô coisinha tão bonitinha do pai”; e nas incontáveis canções em espanhol nas quais a intérprete se dirige a seu amado como papi, papito. Como é que se explica uma coisa dessas? Desejos latentes de incesto? Pedofilia? Nada disso. Uma das pesquisas responsáveis por deixar o mistério um pouco menos obscuro foi feita por cientistas da Universidade de Durham, no Reino Unido, junto com colegas da Academia Polonesa de Ciências e da Universidade de Wroclaw (também na Polônia). Resumindo: se você, mulher, teve uma boa relação com o papai na infância, tenderá a achar mais atraentes os rapazes que se parecem com ele. O estudo foi realizado com um bom grau de controle, para evitar vieses. Foram recrutadas 49 moças polonesas, todas filhas mais velhas. Os pesquisadores usaram um questionário padronizado para avaliar coisas como quanto tempo livre elas costumavam passar com seus pais e que contribuição eles deram para educar as próprias filhas. Depois, as polonesas viram uma galeria de 15 rostos masculinos diferentes. A equipe de cientistas teve o cuidado de obscurecer detalhes como orelhas, cabelo, pescoço, ombros e roupas, para evitar que esses elementos não- essenciais, sem relação direta com a aparência básica da face, influenciassem o resultado. Os pesquisadores também mediram as estruturas faciais desses rostos, bem como a dos pais das garotas, de maneira que já sabiam de antemão qual cara masculina era matematicamente mais parecida com a dos genitores delas. O resultado: as moças que se davam bem com seus pais normalmente consideravam mais atraentes os rostos mais parecidos com os deles. A associação sumia no caso das jovens que tiveram problemas com seus pais na infância. Apresso-me em lembrar que o fenômeno não é exclusivamente feminino. No caso de homens e suas mães, a recíproca também parece ser verdadeira. Existe uma literatura científica robusta mostrando que, em média (vejam bem, em média; essa é a expressão crucial aqui), as pessoas tendem a escolher como parceiros fixos homens ou mulheres parecidas com elas mesmas. E quais as pessoas que mais se parecem conosco? A não ser que você seja gêmeo idêntico, a resposta é óbvia: alguém que tenha 50% dos seus genes. Em língua de gente: seu pai ou sua mãe, seu irmão ou sua irmã. Não corte os pulsos ainda. Você está perfeitamente correto se reagiu com indignação; afinal poucas pessoas no mundo são menos atraentes do que os nossos pais ou irmãos. Ao contrário do que dizia Freud, é muito raro que, em qualquer fase da vida, pessoas normais se sintam sexualmente atraídas por esses parentes próximos. Mas o paradoxo interessante é que, pelo visto, as pessoas mais próximas de nós desempenham um papel crucial na formação da imagem de um parceiro desejável, e as provas a esse respeito têm se acumulado em humanos e animais. Não se trata, portanto, de atração verdadeira, mas da criação de modelos do que mais tarde vamos considerar como sexy. Para entender isso, é preciso lembrar o óbvio: ninguém nasce sabendo – pelo menos, não tudo. Nós e a maioria dos outros mamíferos somos bichos com sistema nervoso complicado, crescimento relativamente lento e vida social cheia de frescuras. É preciso aprender milhares de coisas antes de chegar à maturidade, e a relação dos filhotes com seus pais ou irmãos os ajuda a saber, por exemplo, qual tipo de criatura é almoço e qual é um parceiro em potencial. Pais ou parentes próximos viram, portanto, “padrões-ouro” do que é um possível companheiro – uma das funções do sistema conhecido pelos biólogos como imprinting (nesse caso, trata-se do imprinting sexual). Qualquer um que já tenha assistido a um desenho animado tem ao menos uma ideia grosseira de como o imprinting funciona: toda vez que um personagem dá o azar de segurar um ovo prestes a chocar, e o bebê que sai de dentro dele (pode ser um dragão, ou coisa pior) olha para o personagem e grita “mamãe!”, estamos presenciando uma das funções (um tantinho simplificada,digamos) desse sistema. O imprinting também “ensina” os filhotes a não ficarem atraídos diretamente pelos pais ou irmãos, e sim por indivíduos apenas parecidos com eles. As histórias tragicômicas de bichos criados por humanos mostram o que acontece quando o imprinting dá errado, em versões da vida real das confusões interespécies nos desenhos animados. (Imagine gansinhos achando que um par de botas é a mamãe, ou corujas tentando desesperadamente transar com um chapéu. Não é lá muito engraçado.) Por sorte, a imensa maioria dos imprintings sexuais humanos e animais funciona à perfeição. A coisa foi comprovada com rigor em laboratório: alguns ratinhos foram criados por mães cujas mamas e vaginas foram borrifadas com odor de limão. Depois de adultos, os roedores foram colocados em jaulas onde havia tanto fêmeas com cheiro de limonada quanto ratas sem cheiro nenhum. E eles caíram matando em cima das fêmeas com odor cítrico. Em humanos, ambos os lados do imprinting sexual já foram demonstrados. Estudos transculturais – do Chade, na África, à Europa e aos Estados Unidos – revelam que as pessoas tendem a escolher parceiros ligeiramente parecidos com eles. E não se trata só de cor dos olhos ou dos cabelos: entram na equação traços tão mínimos quanto a distância entre os olhos, circunferência do pulso ou tamanho do dedo médio! A correlação é pequena, mas estatisticamente significativa – provavelmente porque as pessoas estão usando um “padrão-ouro” composto por uma enormidade de traços diferentes, os quais, em média, acabam chegando a uma pessoa um pouquinho mais parecida com elas do que o normal da população. Ao mesmo tempo, e aí é que a coisa fica engraçada, mesmo “parentes” adotivos raramente se sentem atraídos uns pelos outros. Isso vale até para as crianças israelenses criadas em kibbutzim (singular: kibbutz), as fazendas coletivas que já foram muito comuns no país. As crianças dos kibbutzim eram criadas todas juntas, num regime quase comunitário, como se fossem todas irmãs. Resultado: de 2.769 casamentos estudados nas fazendas, só 13 – ou 0,47% do total – aconteceram entre pessoas nascidas no mesmo kibbutz. Isso sugere que nossa aversão natural a ir para a cama com irmãos e irmãs não deriva de algum sexto sentido capaz de farejar DNA parecido com o nosso, mas simples do estímulo inconsciente (ou contraestímulo, na verdade) surgido de anos de convivência na mesma casa, com os mesmos pais, desde a mais tenra infância. As razões por trás dessa sintonia fina ainda são nebulosas. Mas ela parece fazer algum sentido do ponto de vista da seleção natural, que tem impacto sobre todos os seres vivos e tende a favorecer sempre a produção de bebês saudáveis: por definição, apenas os mais hábeis na produção de crias viáveis conseguem legar seu material genético para as gerações futuras. Faz sentido não escolher como parceiro alguém completamente diferente: na natureza, “coisas completamente diferentes” costumam ser membros de outra espécie, com os quais normalmente não dá para produzir descendentes férteis, nem com muito amor e carinho, ainda que haja exceções a essa regra. Ao mesmo tempo, casar-se com um quase-clone de si mesmo do sexo oposto não é esperto: o excesso de semelhança genética entre pai e mãe acaba concentrando características potencialmente negativas nos filhos, tornando-os suscetíveis a doenças ou até portadores de sérios problemas congênitos. Isso acontece porque é muito mais provável a presença da mesma variante indesejável de um gene em você e sua irmã do que o azar de o mesmo acontecer com você e uma completa desconhecida. Como quase todo gene é herdado em duas cópias (uma paterna e outra materna), o risco de que um rebento gerado em incesto carregue ambas as versões “ruins” é implacavelmente maior. Isso faz uma diferença tremenda em doenças genéticas graves, como a anemia falciforme: enquanto apenas uma cópia do gene mal acarreta sintomas, portar duas cópias equivale a uma vida de sofrimento. Deixemos a genética de lado por um instante, no entanto. Acontece que existem fatores que ajudam a prever a escolha de parceiros de maneira muito mais clara e menos ambígua do que a semelhança física, geral ou em detalhes, de homens e mulheres. E adivinhe só: são fatores culturais. Embora a semelhança física tenha um impacto, a correlação entre coisas como religião, posição política, nível educacional e renda é muito mais forte entre parceiros fixos. Isso deveria ser o suficiente para afastar os temores de que entender as bases biológicas do comportamento humano nos transforma em autômatos genéticos, robozinhos que só pensam “naquilo” (ter o máximo possível de filhos e espalhar nosso DNA) e outras simplificações grosseiras do gênero. Como todas as coisas vivas, somos a somatória de tantos eventos improváveis e complicados que poucos fatores podem se arrogar o direito de explicação única – ainda que, como dizia Marilyn, no fundo o nosso coração pertença ao papai ou à mamãe. Helena de Darwin As mulheres foram mesmo a causa da guerra de Tróia? Historiadores e críticos literários normalmente dão uma risadinha de desprezo quando alguém diz que a guerra de Tróia aconteceu por causa da bela Helena. Quem estuda o conflito, que virou a mais famosa saga da literatura ocidental ao ser cantado pelo poeta Homero, costuma partir do princípio de que o rapto de Helena não passa de desculpa esfarrapada. No máximo, um pretexto para jogos bem mais sérios de poder e riqueza. Recapitulemos muito rapidamente a origem do conflito, segundo a mitologia grega e os textos homéricos. A briga toda teria começado quando a grega Helena, esposa de Menelau, rei da cidade grega de Esparta, é seduzida – ou carregada à força, dependendo da versão do relato – pelo príncipe troiano Páris. O casal foge para Tróia e, quando o marido corneado não recebe de volta a esposa depois de negociações diplomáticas, o tempo fecha. Menelau convoca seu irmão Agamêmnon, o rei mais poderoso da Grécia, bem como todos os antigos pretendentes de Helena (unidos por um juramento de defender o marido que ela escolhesse), para atacar Tróia. Depois de dez anos, a cidade é tomada, saqueada e destruída, os homens troianos são massacrados e as mulheres e meninas viram escravas e concubinas dos vencedores. As análises modernas afirmam que tudo isso é balela. Descontemos quem considera o episódio totalmente lendário – o consenso entre arqueólogos e historiadores é que a cidadela troiana realmente existiu na costa da atual Turquia e foi mesmo destruída por invasores por volta do ano 1200 a.C., época que bate com as histórias da tradição helênica sobre a guerra. Assumindo, portanto, que o conflito ocorreu, há quem diga que os gregos queriam mesmo era controlar as rotas de comércio da região de Tróia (versão dos historiadores) ou aproveitar o pretexto para ganhar glória imortal nos combates (versão mais romântica, defendida pelos críticos literários que estudam os poemas homéricos). No entanto, um pesquisador que busca unir no mesmo caldeirão biologia evolutiva humana e crítica literária, diz que as duas explicações não chegam nem perto da raiz da questão. E afirma que o estopim da pancadaria em Tróia foi mesmo Helena – sem falar, é claro, nas inúmeras outras mulheres jovens e atraentes, com ou sem marido, que viviam na cidade. Segundo essa perspectiva, a motivação dos gregos era igualzinha à de uma coalizão de chimpanzés machos: obter novas fêmeas a todo custo. A tese, que casa a poesia de Homero com algumas das ideias mais recentes sobre a origem evolutiva da guerra e do comportamento violento, é de Jonathan Gottschall, professor de literatura do Washington & Jefferson College, nos Estados Unidos. Ele é o autor de The Rape of Troy: Evolution, Violence and the World of Homer (O Estupro de Tróia: Evolução, Violência e o Mundo de Homero). Gottschall diz que sua intenção não é simplesmente jogar no lixo os milêniosde estudos sobre as obras-primas gregas, nem desdizer as outras explicações sobre o comportamento dos heróis de Homero, como a ideia de que eles lutam para eternizar sua fama. “As pessoas acham que Aquiles [o principal herói grego da guerra] tem como objetivo a glória eterna simplesmente porque ele diz isso”, explicou-me Gottschall. “Todos nós queremos esse tipo de glória – quem não gostaria de ganhar um Nobel e ser lembrado daqui a cem anos? A questão é que nós buscamos ter fama, ou ter um status profissional elevado, porque isso nos garante o acesso a uma série de recursos. E esses recursos, em última instância, servem para turbinar as chances de sobrevivência e reprodução dos que os adquirem, como em qualquer outra espécie.” Se esse papo todo está soando meio primitivo demais, é porque talvez o mundo de Homero fosse bastante tosco mesmo. A maioria dos especialistas atuais concorda que os dois poemas do grego – a Ilíada, que conta a fase crucial da guerra, e a Odisseia, sobre a volta para casa do herói helênico Ulisses – foram compostos por volta do ano 800 a.C. Já os dados arqueológicos indicam que a antiga Tróia, localizada no noroeste turco, teria sido arrasada cerca de quatro séculos antes, como já vimos. A diferença é importante porque, quando Tróia ainda estava de pé, a Grécia era dominada por uma série de palácios luxuosos, com governo burocrático, centralizado e “globalizado”, comerciando com o Egito e a Palestina. Esses reinos palacianos foram arrasados por invasores pouco depois da queda de Tróia, de forma que, quatrocentos anos depois da catástrofe, os gregos ainda viviam em vilarejos rurais, empobrecidos e nem um pouco refinados. Gottschall e outros especialistas propõem que a sociedade da Ilíada e da Odisseia reflete justamente esse período pobretão da história grega, próximo da época em que os poemas ganharam sua forma final. “É claro que há elementos de épocas mais antigas na trama, como o uso de armas de bronze, enquanto na época de Homero todo mundo já tinha armas de ferro. Mas esses elementos provavelmente foram preservados porque faziam parte das fórmulas da tradição oral herdada pelo poeta”, argumenta ele. O importante é, que no geral, a vida dos heróis homéricos é um perrengue de dar pena. Para se ter uma ideia, Homero diz, como quem não quer nada, que porcos e ovelhas ficam passeando nos palácios, que as rainhas vão pessoalmente buscar água nas fontes e que fiam pessoalmente a roupa de seus maridos. De quebra, os reis são relativamente pouco poderosos e raramente conseguem deixar o poder para seus filhos sem algum grau de luta. Nada disso parece ter acontecido nos reinos altamente centralizados da Grécia em 1200 a.C. O poeta, portanto, embora se referisse ao passado lendário, usava como modelo das relações sociais o que ele via entre seus próprios contemporâneos do ano 800 a.C. Resumindo, tal quadro significa que a sociedade homérica era uma cultura agrícola tribal, muito pouco diferente da dos índios ianomâmis ou dos nativos de Papua-Nova Guiné se deixarmos de lado o uso de armas e utensílios de metal. Estamos falando de pequenos grupos, liderados por chefes guerreiros e em conflito constante com os vizinhos. E qual a causa mais comum de briga interna e externa nesse tipo de sociedade? Acertou quem disse “mulheres”. Os dados recolhidos por antropólogos em grande parte dos povos tradicionais ao redor do mundo, seja na África, na Oceania ou entre os indígenas da América do Sul, mostram a prevalência endêmica dos conflitos envolvendo o rapto de moças. É simples assim: os chefes mais poderosos, com maior habilidade militar e maior número de guerreiros à sua disposição, são quase sempre os que possuem o maior número de esposas e concubinas. Aqui entra com força o pedaço darwinista da argumentação de Gottschall: com mais mulheres na mão do chefão, maior a chance de ele deixar uma família numerosa e poderosa - exatamente o maior prêmio que a evolução pode conceder a um ser vivo. A injustiça inerente à maneira como os mamíferos se reproduzem permite que apenas um homem gere dezenas ou até centenas de filhos ao longo da vida, desde que tenha mulheres suficientes à sua disposição, enquanto suas parceiras enfrentam as limitações impostas pelos longos tempos de gravidez e pela menopausa. Mas não pense que, na sociedade homérica e em outros bandos guerreiros tradicionais, qualquer tipo de bebê serve. Para ganhar a disputa com grupos rivais, cada grupo precisa da máxima quantidade possível de guerreiros – do sexo masculino, claro. O problema é que nasce sempre mais ou menos o mesmo número de meninos e meninas. A solução? Infanticídio. Gottschall lembra que a morte seletiva de menininhas parece ter sido comum durante toda a história grega (e em uma série de outras sociedades tradicionais guerreiras). O resultado de tudo isso só pode ser classificado como explosivo: uma falta endêmica de mulheres (por causa do infanticídio feminino e do monopólio das esposas na mão dos chefes) e um excesso de guerreiros jovens, loucos para “capturar” suas próprias esposas e concubinas. A única “solução” é mais guerra com os grupos vizinhos, o que vai tornando o ciclo de violência cada vez pior. De novo, os paralelos antropológicos são iluminadores: sabemos que as sociedades mais violentas, seja no Terceiro Mundo urbano de hoje, seja no passado remoto, são aquelas em que há um excedente de homens jovens tentando provar seu valor e competindo por status. Assim seria o mundo homérico, de acordo com o pesquisador. Todo esse quadro casa um bocado bem com a história de vida de inúmeras mulheres – e homens – envolvidos na guerra de Tróia, de acordo com a narrativa tradicional de Homero. Boa parte dos chefes gregos e troianos tem como esposa ou concubina uma ex-cativa capturada de alguma cidade inimiga. E, quando Agamêmnon, o líder do exército grego, resolve tomar para si a escrava preferida de Aquiles, o conflito entre os dois é tão sério que o maior herói grego quase faz as malas e vai para casa. Na verdade, o tema central da Ilíada é a chamada cólera de Aquiles, causada justamente por essa desfeita imperdoável. É importante lembrar que fenômenos assim estão bem documentados entre espécies de mamíferos cujos machos, por seu tamanho e ferocidade (os equivalentes do poderio militar homérico), conseguem controlar um grande número de fêmeas, formando haréns. É o caso de elefantes-marinhos ou gorilas, por exemplo. O grande diferencial homérico – e humano, se pensarmos em termos mais gerais – é a capacidade de formar coalizões entre grandes grupos de machos aparentados e até não-aparentados, o que pode levar ao surgimento da guerra em larga escala. Nada disso significa, porém, que as mulheres gregas e troianas se deixassem levar como meros joguetes do destino. O exemplo mais gritante do contra-ataque feminino envolve Clitemnestra, irmã de Helena e esposa do rei Agamêmnon. Enquanto o monarca grego está longe de casa, ela toma como amante outro homem e arquiteta o assassinato do marido – e da jovem e bela princesa troiana Cassandra, que Agamêmnon tinha transformado em sua concubina e já tinha até dado à luz um filho dele. Helena, por sua vez, usa seus encantos de tal forma que não apenas é poupada por Menelau, mas volta ao trono como rainha, vivendo ao lado dele pelo resto de seus dias. Você deve estar lembrado, no entanto, de que a guerra de Tróia comprovada pela arqueologia aconteceu muito antes da época em que os gregos estavam organizados socialmente como os ianomâmis. Será que isso quer dizer que o lado mais brutalmente darwinista dos poemas retrata apenas a sociedade de Homero, mas não o que aconteceu na Turquia em 1200 a.C.? Talvez não. Uma das ideias mais debatidas pelos arqueólogos envolve a ideia de que Tróia (bem como outros palácios brutalmente destruídos ao redor do Mediterrâneo na mesma época) teria sido arrasada por tribos de bárbaros, oriundas das beiradasdo mundo civilizado de então. Nesse caso, o ataque teria sido realizado não pelos gregos dos palácios, mas sim por tribos do norte da Grécia – o que indicaria uma civilização mais primitiva, e mais inclinada a simplesmente saquear e destruir a cidade asiática, levando as mulheres como parte do butim. A tese de Gottschall ainda deve gerar um grau considerável de polêmica, mas talvez seja bom prestar atenção em outra das falas de Aquiles na Ilíada: “Passei muitas noites insones e dias sangrentos na batalha, lutando com outros homens por suas mulheres”. Quem precisa disso? Os animais que não vão para a cama há 100 milhões de anos Confessemos o inconfessável: sexo é bom e todo mundo gosta, mas dá um trabalho dos infernos. Considere quanto sangue e suor, quantas lágrimas, notas de cem e faturas de cartão de crédito já foram empregados na história do cosmos para esse fim; quantas caudas de pavão e Ferraris, quantos vestidos decotados, sem falar no gasto de energia intelectual, como a invenção do soneto, os romances medievais sobre o amor cortês, o Cântico dos Cânticos. É muita dor de cabeça. Pela lógica, apenas as coisas indispensáveis são objeto de tamanha obsessão. Nós (e a grande maioria dos outros animais e plantas) só seríamos tão doidos por sexo porque não dá para sobreviver sem ele. O raciocínio é impecável. Mas no meio do caminho tinha um bdeloide. Aliás, umas 400 espécies de bdeloides, para ser mais exato. Os bdeloides a que me refiro estão entre os invertebrados mais estranhos do planeta – animais microscópicos de cabeça retrátil, muitas vezes rastejantes, como as minhocas. Formados por um número fixo de células, eles habitam a água doce e substratos úmidos de todos os tipos, sendo exímios comedores de qualquer coisa devorável e compatível com seu tamanhinho. Não existem machos bdeloides: todos são fêmeas e produzem descendentes por partenogênese, ou “geração virgem” (processo no qual os óvulos iniciam o desenvolvimento embrionário sem fecundação por espermatozoides). Temos boas razões para acreditar que esses bichos minúsculos abdicaram da vida sexual há cerca de 100 milhões de anos e, mesmo assim, conseguiram colonizar uma grande variedade de ambientes e se diversificaram, como qualquer outro grupo de animais – coisa que, em tese, não deveria ser possível. A trajetória evolutiva dos bdeloides indica que o sexo talvez seja menos indispensável do que se costuma imaginar. Entretanto, antes de entender que mágica essas criaturas estranhas estão fazendo para se livrar da alcova, é bom colocar algumas coisas em pratos limpos. Como dizíamos no começo deste capítulo, os seres vivos tendem a ficar fissurados apenas e tão somente por coisas que têm um impacto sobre sua sobrevivência e reprodução. Dizer que adoramos doces (ou sexo!) porque “é gostoso” não explica nada: não passa de uma tautologia, como dizer que “faz bem porque é bom”. Nosso sistema nervoso está programado para “traduzir” comida açucarada e/ou uma noite de amor na sensação subjetiva de “prazer” porque os doces são fontes concentradas de energia para o organismo e porque o sexo é o procedimento-padrão da nossa espécie para passar genes de geração em geração. O prazer é um incentivo – ou um suborno, se você quiser. É claro que, em criaturas de sistema nervoso suficientemente complexo (nós somos o exemplo extremo), pode acontecer de o suborno ficar desacoplado de seu objetivo inicial. Somos capazes, por exemplo, de fazer sexo insanamente – mas tomar pílula e/ou usar camisinha em todas as ocasiões. A força primordial do impulso, no entanto, só é tão avassaladora porque inicialmente ele era servo de uma função biológica de primeira grandeza: no caso, a reprodução. Mas a verdadeira questão é por que escolher o sexo como mecanismo reprodutivo. Do ponto de vista exclusivamente matemático, a opção preferencial pela vida romântica não faz sentido. O sexo, considerado unicamente como meio para passar adiante o DNA de um organismo, é decepcionante porque envolve obrigatoriamente uma divisão desse DNA (pela metade) e a mistura dele com o de outro organismo. Lembre-se de que 50% dos seus genes vieram do seu pai e a outra metade, da sua mãe. Em tese, seria muito mais negócio para cada indivíduo isolado transmitir a carga total de seu material genético para a geração seguinte, pelo simples mecanismo de produzir uma cópia de si mesmo. Além disso, sempre pode acontecer de você não achar a tampa da sua panela, por assim dizer – e, sem parceiros para ajudar, não dá para ter reprodução sexuada. E, no entanto, a imensa maioria dos animais, plantas e fungos, além de um bom número de microrganismos, contraria essa lógica aparentemente inescapável. Até as bactérias, famosas por sua capacidade estonteante de dividirem suas células únicas em novas “células-filhas”, aderem ocasionalmente a sessões de “sexo” não- formalizado, trocando genes com outras bactérias, às vezes até de outras “espécies” bacterianas. Se a comparação dessa atividade com o que chamamos de sexo sem aspas está correta, o impulso de trocar e misturar material genético existe até em organismos que se multiplicam via clonagem. Duas ideias mais ou menos parecidas e complementares estão entre as que buscam explicar esse paradoxo. A primeira vê a sexualidade como uma espécie de seguro de vida contra parasitas e ambientes em transformação. A reprodução sexual, ao misturar e embaralhar os genes de dois indivíduos diferentes, automaticamente cria combinações de DNA novas que podem derrotar parasitas (que não “conhecem” a nova mistura e, portanto, não estão equipados para vencê-la) e representar um “estoque” importante de novas soluções para alterações ambientais. Isso é muito importante até no seio de uma única família. O corpo de uma mãe não tem nada de imaculado: ele abriga invariavelmente uma multidão de espécies de microrganismos, alguns benignos, como a nossa flora intestinal, outros potencial ou completamente malignos. Durante a gestação e o parto, tudo o que esses bárbaros microscópicos querem é a oportunidade de saltar para o bebê, cujo sistema de defesa biológico ainda não está totalmente formado. O fato de o filhote carregar traços genéticos que, ao menos parcialmente, soam pouco familiares ao parasita é uma proteção considerável contra uma morte prematura por infecção. A segunda ideia propõe que o sexo ajuda no “controle de qualidade” genético de uma população. Em criaturas assexuadas, mudanças no conjunto do DNA só ocorrem por mutações – alterações químicas aleatórias nas “letras” químicas A, T, C e G que compõem a molécula da hereditariedade. Ora, a imensa maioria das mutações tende a ser nociva. De geração a geração, o acúmulo de alterações “do mal” poderia colocar os organismos celibatários em perigo. Mas, para produzir as células sexuais, as partes equivalentes do DNA que você recebeu do seu pai e da sua mãe são colocadas lado a lado e se recombinam, trocando pedaços de cromossomos (as estruturas enoveladas que abrigam o material genético). Com isso, mutações “ruins” num genitor podem ser “consertadas” pelo material genético do outro genitor. Mal comparando, é como pegar dois álbuns de figurinhas completos e idênticos, um dos quais possui uma figurinha rasgada: retira-se a figurinha intacta de um e ela é colocada no lugar da que estava adulterada. Depois de todo esse background, já podemos voltar aos nossos bdeloides, os mestres da castidade evolutiva. Se tudo o que foi dito nos parágrafos acima estiver correto, os bichos seriam um prato cheio para parasitas famintos e mudanças ambientais; de quebra, seu genoma (o conjunto de seu DNA) deveria estar caindo aos pedaços de tanta mutação deletéria. No entanto, lá estão eles, vivos, bem e bastante diversificados, rastejando sobre musgos e liquens e nadando em poças d’água e córregos. Quando falta água, eles entram numa espécie de animação suspensa conhecida como anidrobiose, até as condições melhorarem. O segredo dos bdeloides celibatários parece estar em características específicas do genoma das criaturas.O pesquisador americano David Mark Welch, do Laboratório de Biologia Marinha do Instituto Oceanográfico Woods Hole, mostrou que o DNA dos bichos é tetraploide – diferentemente de nós, que temos duas cópias de cada cromossomo, eles têm quatro. Tudo indica que, no passado remoto, o conjunto duplo normal de cromossomos sofreu uma reduplicação, transformando os bdeloides em tetraploides. Ora, situações de extrema secura, como a anidrobiose, deveriam causar grandes quantidades de dano ao DNA desses animais, mas não é o que acontece. Experimentos em que esses bichos foram bombardeados com radiação – outra fonte comum de erros no material genético – revelaram que eles aguentam mais radioatividade do que qualquer outro animal conhecido. O único jeito de explicar esse conjunto bizarro de características é imaginar que os cromossomos quadruplicados estão servindo como base para reconstruir o genoma bdeloide. Com várias cópias de cada gene à disposição, os animais conseguem corrigir rapidamente os erros que aparecem em uma, duas ou até três versões de um gene. Ou seja, em certo sentido, pode-se dizer que os bdeloides puderam abdicar da sexualidade porque internalizaram os benefícios evolutivos do sexo. Em vez de buscar genes bons em outro corpo, eles corrigem os problemas nos seus genes internamente. Funciona um bocado bem para eles, ao que tudo indica. Eu sei o que você deve estar pensando: eles não sabem o que estão perdendo. Pais de multidões Quer ter muitos descendentes? Seja um ditador sanguinário Um amigo meu, cansado de suas oportunidades sexuais limitadas, costumava brincar que todas as mulheres do mundo deviam estar na mão de algum macho alfa, esse ser mítico (bem, não tão mítico; ele existe, mas só em algumas espécies animais) que monopoliza as fêmeas. “Cadê esse macho alfa? Acha esse desgraçado que eu vou encher ele de porrada”, dizia. Mais fácil falar do que fazer, lógico. A julgar pelo que a genética anda descobrindo, o macho alfa clássico não é exatamente um sujeito bonzinho, que levaria umas bolachas sem reclamar. Na verdade, está mais para um Gêngis Khan – literalmente, aliás. A conclusão deriva das pistas deixadas pelos homens que, ao longo da história, foram os mais bem-sucedidos sexualmente, intrépido leitor. Usando uma mistura fascinante de dados genéticos e históricos, os cientistas estão começando a encontrar sinais de que uns poucos machos alfa da nossa espécie conseguiram deixar muito mais descendentes do que o mortal comum poderia sonhar. Gêngis Khan é um desses pais de multidões – e, a exemplo dele, as demais figuras da lista não são lá muito agradáveis. Ao que parece, o poderio militar e econômico foi a principal ferramenta para monopolizar mulheres – e, portanto, deixar muitos descendentes – ao longo da história. A característica genética mais marcante dos seres humanos do sexo masculino ajuda muito os cientistas na hora de fazer essas estimativas. (Grosso modo, o que vou dizer também se aplica a todos os mamíferos.) Trata-se do cromossomo Y, um dos dois cromossomos ligados à definição do sexo na nossa espécie. Todos temos 23 pares de cromossomos; como já vimos, um membro do par é legado pelo pai e o outro, pela mãe. Mulheres normais têm dois cromossomos X; homens normais, por sua vez, têm um X e um Y. A vantagem desse fato para a genética histórica é que o Y só é transmitido de pai para filho, numa sucessão ininterrupta ao longo de milhões de anos. E o Y não mistura (ou “recombina”, para usar o termo técnico) seu DNA com seu parceiro, o X. Ou seja, trata-se de um registro praticamente puro da linhagem paterna de um homem. Apenas as mutações ao acaso no material genético fazem com que um Y seja diferente do outro. Tais mutações são passadas para os descendentes masculinos de qualquer macho, o que ajuda a rastreá-los com precisão nas gerações seguintes. Em tese, esses poucos fatos simples nos permitem reconstruir a linhagem do Y de todos os homens vivos hoje a um único “Adão” primitivo – um macho humano do passado distante cujo cromossomo deu origem a todos os existentes na população de hoje. As estimativas para a idade desse Adão variam – uma das mais recentes fala em apenas 60 mil anos –, mas isso não significa que o “primeiro homem” viveu nessa época, ou que só ele existia então. É preciso entender que as linhagens do Y se perdem naturalmente ao longo do tempo. Basta pensar num sujeito que tenha dez filhas mulheres – e nenhum menino. A imensa maioria de seus genes estará preservada para a posteridade, mas seu Y terá desaparecido. Hoje, quando os pesquisadores comparam o DNA de todos os homens para remontar ao Y ancestral, seria como se o pai das dez garotas nunca tivesse existido – e isso influencia na estimativa de quando viveu o nosso “Adão do Y”. De qualquer maneira, o mesmo método também serve para estimar a origem de versões mais recentes do Y. Leva-se em conta a taxa mais provável de mutações ao longo do tempo, as diferenças e semelhanças entre o DNA dos cromossomos, o momento em que teria ocorrido a separação entre a linhagem humana e a dos nossos primos mais próximos, os chimpanzés, e voilà – é possível estimar uma data de origem comum, obviamente com uma margem de erro considerável. Mais do que o Adão ancestral, no entanto, está ficando claro que alguns homens tiveram sucesso em multiplicar exponencialmente a sua própria versão do cromossomo Y no mundo. Você provavelmente nunca ouviu falar de Niall dos Nove Reféns, a não ser que tenha nascido na Irlanda. Mas saiba que todo santo irlandês, britânico ou descendente de ambos com sobrenomes como O’Neill, O’Donnell e O'Reilly, entre outros, é tradicionalmente considerado um rebento da linhagem do velho Niall, que viveu no século V da Era Cristã. (O sobrenome O’Neill é simplesmente a forma modernizada de Uí Niall, ou “descendente de Niall”, em gaélico.) Niall era um típico chefe guerreiro celta, passando suas horas de lazer em expedições para capturar escravos ou extorquir chefes rivais (daí o apelido; os “reféns” eram usados para chantagear os inimigos). Pesquisadores do Trinity College, de Dublin, tiveram a ideia de verificar se essa montanha de sobrenomes realmente tem relação com a descendência deixada pelo senhor da guerra. Não deu outra. No noroeste da Irlanda, a base tradicional dos Uí Niall, nada menos que um quinto dos homens carrega uma assinatura genética em seu Y que pode ser remontada com razoável grau de precisão até a época de Niall. No oeste e no centro da Escócia, a proporção ultrapassa os 15%. E 2% dos homens nova-iorquinos – muitos dos quais descendentes de escoceses e irlandeses – têm o Y que parece ter pertencido a Niall. Os pesquisadores estimam que até 3 milhões de homens carreguem essa marca genética. Um caso parecido foi identificado pela equipe de Chris Tyler-Smith, do Instituto Sanger (Reino Unido), entre homens do nordeste da China e da Mongólia. O normal na maioria das populações humanas, como Tyler-Smith me explicou certa vez, é que todo homem tenha uma “assinatura” quase única em seu cromossomo Y – o que mostra que ele descende de ancestrais masculinos que continuaram deixando descendentes devagar e sempre. Mas, nas amostras da região, ele e seus colegas acharam uma forma do Y com frequência bem maior que a normal, chegando a 5% da população em algumas regiões. Ao estimar a origem desse Y – há cerca de 500 anos, no nordeste da China –, Tyler-Smith e companhia acreditam ter achado uma correlação com Giocangga, o fundador da dinastia Qing, a dos últimos imperadores da China. Tanto no caso de Niall quanto no de Giocangga, a tradição de coabitar com inúmeras concubinas e os fartos recursos destinados aos filhos (bastardos ou não) dos governantes e seus familiares parecem ser suficientes para explicar esse sucesso reprodutivo desproporcional. No caso de Giocangga, enquanto a média dos homens de seu tempo teria 20 descendentes masculinos vivos hoje, os orientais que carregam seu Y são cerca de 1,5 milhão. Ao que tudo indica, porém, ninguém ganha de Gêngis Khan. Usando os mesmos métodos,e com uma grande amostragem de homens (mais de 2.000 indivíduos de toda a Ásia, desde o Cáucaso até o Japão), Chris Tyler-Smith identificou o que chama de “aglomerado-estrela” – um grupo de variantes do Y muito próximas entre si, correspondente a cerca de 8% da amostragem. Origem estimada: cerca de 1.000 anos atrás, na Mongólia. E o único grupo do Paquistão no qual o aglomerado-estrela aparece é o dos hazaras – que se consideram descendentes do imperador bárbaro da Idade Média. Ao todo, Tyler-Smith calcula que 12 milhões de homens vivos hoje possam remontar seu Y a Gêngis Khan, ou Temujin (nome de “batismo” do líder guerreiro). Para o pesquisador britânico, a época e o local de origem, bem como as práticas do império mongol, apontam fortemente para Gêngis e sua família. O cromossomo nem precisa ter se originado precisamente com ele: pode ter surgido com seu avô ou outro ancestral próximo, sendo passado adiante sem muitas modificações desde então, que é o que normalmente acontece – se usássemos unicamente o Y como forma de identificação genética, o mais provável é que um homem qualquer pareceria indistinguível de seus irmãos ou de seu tio paterno. Gêngis e seus descendentes eram adeptos da poligamia e obviamente não gostavam de usar camisinha, mas também estupravam sistematicamente as mulheres das populações conquistadas. Como os parentes do guerreiro pelo lado masculino (primos, tios etc.) também foram beneficiados e carregavam um Y provavelmente idêntico ao dele, o efeito foi multiplicado, e o mesmo vale para os descendentes do Khan, muitos dos quais também foram imperadores. “Eu diria que Gêngis Khan é o exemplo mais extremo de algo que aconteceu outras vezes. Os homens têm uma tendência através da história a agir dessa forma quando as circunstâncias o permitem”, disse-me Tyler-Smith. O curioso é que alguns dos grandes conquistadores da Antiguidade tirariam notas pífias no “teste Gêngis Khan”. Dois exemplos que viriam à cabeça de qualquer historiador são Alexandre, o Grande e Júlio César – nenhum dos dois deixou descendentes masculinos. (Na verdade, o filho de Alexandre até sobreviveu ao pai, mas acabou sendo assassinado por um dos generais do rei macedônio.) Cá entre nós, eu adoraria ver a técnica aplicada aos primeiros colonizadores do Brasil. Afinal, sujeitos como João Ramalho, o português que se aliou aos tupiniquins e ajudou a fundar São Paulo, viraram polígamos assim que puseram os pés aqui e tiveram uma multidão de filhos com suas esposas indígenas. Também praticavam, em miniatura, o que Gêngis Khan fazia com suas populações conquistadas: a transformação de cativas de guerra em concubinas. O que nenhum desses superpais sabia, no entanto, é que ter tantos rebentos não era nenhuma garantia de imortalidade, como alguns deles acreditavam. Fora o cromossomo Y, um pedacinho minúsculo do material genético humano, temos a certeza matemática de que pouquíssimos genes desses sujeitos tão prolíficos continuam caminhando juntos. Isso porque, com a divisão do DNA pela metade antes da formação dos espermatozoides e dos óvulos, de modo que só 50% dos genes de qualquer pessoa derivam de seu pai, a herança genética vai sendo cada vez mais fracionada de filho para neto e de neto para bisneto. Tanto que, na quinta geração, os descendentes dos supermachos da história tinham só pouco mais de 3% de seu DNA. Portanto, se um dia você descobrir que seu Y cai no aglomerado-estrela, não se preocupe: há pouco perigo de você sair por aí queimando vilarejos e agarrando donzelas. Feto malvado, mamãe mão-de-vaca Embriões e seus truques sujos para extorquir as grávidas Engravidar causa enjoo, desejos gastronômicos bizarros e (para as mamães mais vaidosas) um certo desalinho na silhueta. Nenhuma controvérsia aí. Desconfio, no entanto, que quase nenhuma gestante pense nos seus meses de gravidez como uma queda-de- braço ou uma batalha: um cabo-de-guerra no qual ela ocupa uma das pontas e o feto crescendo em seu ventre, a outra. Ao contrário do que milênios de prosa e verso sobre as belezas da maternidade dizem, os interesses da mamãe e do bebê estariam longe de ser idênticos, segundo essa linha de pensamento. A ideia pode parecer mera intriga de quem ficou para titia, mas os fatos mais básicos da biologia dos mamíferos, se investigados com o devido cuidado, sugerem que essa é a mais pura verdade. Casando uma série de dados moleculares, fisiológicos e comportamentais, os cientistas estão usando o duelo entre fetos e grávidas para explicar estranhas doenças e até para entender por que os animais clonados raramente são saudáveis. O conceito-chave para entender essa bagunça toda tem um nome um tanto desajeitado: estampagem genômica (do inglês genomic imprinting). O que é “estampado”, ou seja, leva uma espécie de “carimbo” molecular, são os pedaços de DNA que todos carregamos no núcleo de nossas células. Dá para pensar nesses carimbos como uma espécie de certificado de procedência – materna ou paterna, já que, como vimos, nosso material genético tem sua origem dividida em meio a meio para cada genitor. Existem razões muito boas para acreditar que tal origem mista é uma receita para o conflito. Afinal, tanto machos quanto fêmeas “querem” (de forma quase sempre inconsciente, mesmo entre seres humanos) aumentar ao máximo as chances de transmitir seus genes para as futuras gerações. Só que cada lado da equação está usando, para isso, uma estratégia fundamentalmente diferente da do outro. Qualquer fêmea de mamíferos só consegue ter poucos filhotes por gestação, e por isso investe seu tempo e energia em cuidar bem deles dentro e fora do útero, para que todos tenham boas chances de sobreviver. Já o macho é capaz de engravidar um enorme número de fêmeas diferentes, se tiver sorte, mas não entra com as energias de seu próprio organismo para garantir que a filharada chegue à vida adulta. Aliás, é comum que não ajude nem na criação dos bebês: nesse ponto, como em outros, a nossa espécie é a exceção à regra. Ora, conforme as análises do funcionamento dos genes começaram a se sofisticar, os biólogos moleculares começaram a perceber um fenômeno esquisito. Uma proporção pequena (menos de 1%), mas significativa dos genes de mamíferos parecia sofrer um estranho “desligamento” seletivo: em alguns casos, era a versão paterna de um trecho de DNA que era desativada; em outra, a versão materna. Esse é o processo que ficou conhecido como estampagem genômica. Os “carimbos” no DNA (na verdade pequenas moléculas orgânicas, como o chamado grupo metil, formado por um átomo de carbono acompanhado de alguns de hidrogênio) ligam-se a determinado trecho de material genético num dos cromossomos e impedem que a célula use aquela informação como manual de instruções para fabricar proteínas. É como se o carimbo levasse os seguintes dizeres: “Função materna do gene. Não usar. Favor utilizar a versão paterna”. À primeira vista, o fato parecia simples burrice biológica. Como vimos ao estudar o estranho caso dos bdeloides e a função evolutiva do sexo, acredita-se que uma das vantagens de possuirmos duas cópias de cada gene é parecida com a precaução de guardar cópias extras de um arquivo ou documento importante. Se o arquivo original for destruído (ou seja, se uma das cópias do gene sofrer uma alteração que o impeça de funcionar direito), a cópia que sobrou ainda pode dar conta do recado. Por que, afinal, jogar fora logo de cara esse seguro de vida molecular? A coisa começa a soar menos maluca se imaginarmos, mais uma vez, que os genes paternos e os genes maternos podem ter “planos” muito diferentes para o pequeno ser que virá, seguindo o exemplo dos interesses diferenciados dos indivíduos de cada sexo. (Falamos de “planos” apenas no sentido de influências biomoleculares inconscientes que, no futuro, aumentarão as chances de que aquele tipo de gene se multiplique. É lógico que pedaços de DNA não fazem nada de caso pensado – são meros amontoados de carbono, hidrogênioe nitrogênio.) É bastante lógico supor, por exemplo, que uma mãe grávida tem a necessidade de contrabalançar a nutrição que dará a seus fetos com a própria saúde e com suas chances futuras de ter mais filhos. Afinal, engravidar de novo mais tarde é seu único caminho para espalhar ainda mais seus genes. Papai, por outro lado, pode muito bem dizer “eu não tenho nada com isso”. Seus interesses, nesse caso, coincidem em grande parte com os do feto. Enquanto está tentando inseminar outras fêmeas, ou mesmo que esteja só esperando a próxima chance de gerar filhotes com sua parceira fixa, é importante que seu filhão seja capaz de sugar o máximo possível de recursos da mãe, de forma a ter boas chances de virar um adulto saudável e fértil. Ou seja: nos casos de estampagem genômica, o esperado é que os genes paternos “desligados” sejam os que induzem maior retirada de nutrientes do organismo da grávida, enquanto os genes maternos “desativados” correspondam a uma diminuição do envio de recursos para os bebês. Isso, repito, é o esperado. Em tal cenário, o zero a zero acaba deixando tudo mais ou menos em equilíbrio. Será que ele se confirma na vida real? Por enquanto, tudo indica que sim. Um exemplo importante tem a ver com a formação da placenta. Acontece que, ao longo da gravidez, o transporte de nutrientes para o embrião não acontece só graças à bondade e ao carinho da mamãe: a placenta do feto lança projeções que invadem os tecidos da genitora e arrancam de lá os recursos necessários. Acontece que uma das doenças mais comuns ligadas a uma gestação, a pré-eclâmpsia (uma forma perigosa de pressão alta), parece estar ligada a uma substância que os fetos jogam na corrente sanguínea materna. Essa proteína impede que a mãe conserte pequenos danos nos seus vasos sanguíneos. Com isso, sua pressão arterial tende a aumentar, o que leva a aumentar a quantidade de sangue que chega até o feto via placenta. Quem cunhou o ditado caipira “bater na mãe por causa de mistura” (“mistura” em caipirês quer dizer o prato principal da refeição) parece ter profetizado essa estratégia chantagista dos bebês. Nesse caso em particular, a relação exata com a estampagem genômica ainda precisa ser elucidada, mas ela já ficou clara no caso de dois genes, o Igf2 e o Igf2r. Os nomes parecidos não foram dados por acaso: na verdade, um pode ser visto como o ataque e o outro, como o contra-ataque. Basta dizer que o Igf2 estimula o crescimento rápido dos fetos. Em geral, é a cópia do pai que está “ligada” nos embriões. Se ela for desativada, filhotes de camundongo nascem com 40% menos peso. Já o Igf2r funciona como inibidor do Igf2. Nesse caso, ocorre o contrário: a cópia paterna fica sempre desligada, para evitar filhotes muito pequenos. Se a cópia materna for desativada, parece que os limites ao crescimento fetal vão para o espaço, e os bebês-camundongos nascem com 125% mais peso. Outros estudos confirmaram um duelo parecido entre dois genes ligados ao desejo de amamentação dos filhotes muito pequenos. E mais alguns trabalhos sugerem que também há uma variação na severidade da estampagem genômica dependendo do grau de monogamia da espécie: se o casal for fiel, terá seus filhos sempre como uma unidade e, portanto, terá interesses genéticos parecidos na gestação e na criação deles, o que levaria a menos conflito ocasionado pela estampagem. Existem mesmo indícios de que os problemas de saúde dos animais clonados – muitos nascem com tamanho acima do normal ou matam a mãe de aluguel durante a gravidez – decorreriam de erros de estampagem genômica. Não é difícil entender o porquê. Em vez da junção entre óvulo e espermatozoide que caracteriza a formação de qualquer embrião, na clonagem o DNA de uma célula qualquer, já contendo todo o material genético do futuro organismo, é enfiado à força (com incentivos químicos e, às vezes, choques elétricos) num óvulo cujo núcleo foi removido previamente. Sem a fecundação normal, o padrão típico de ativação e desligamento dos genes maternos e paternos não seria capaz de se instalar, e teríamos então fetos tão "gulosos" que acabariam morrendo engasgados, por assim dizer, sugando mais recursos maternos do que deveriam consumir para o seu próprio bem. Em conjunto, essas descobertas traçam um retrato épico de golpes e contragolpes, num combate sem fim pelo sucesso reprodutivo e, em última instância, evolutivo. Definitivamente, “guerra dos sexos” e “conflito de gerações” não foram inventados pelo bicho homem. Arco-íris Como a homossexualidade pode ser consequência do sucesso reprodutivo A ideia pode ser deprimente ou estimulante, dependendo de como você a encara. Mas nenhuma disposição de espírito, negativa ou positiva, muda o fato inescapável de que, do ponto de vista biológico, nossa individualidade é um estado temporário, para não dizer ilusório. As pessoas gostam de imaginar que seus descendentes, daqui a 200 anos ou 500 anos, vão carregar uma fração significativa e reconhecível do que elas são hoje, mas nosso método de reprodução – aquela coisa chata envolvendo sexo, sabe – pressupõe uma divisão de DNA pela metade a cada geração. De metade em metade, após seis gerações, a proporção de genes legados por uma pessoa a qualquer de seus descendentes fica na casa de 1%. É muito pouco. Os conquistadores da cepa de Gêngis Khan, tão bem-sucedidos, como vimos, em legar seu cromossomo Y a gerações e gerações de homens, talvez ficassem desanimados com a futilidade do esforço: ao contrário do que dizia a sabedoria popular de sua época, a prole numerosa confere uma forma limitadíssima de imortalidade. (Não que os machos alfa fossem parar de agir como garanhões por causa de tal fato; é o tipo da coisa que tem benefícios mais, digamos, imediatos.) Pois bem: e o que a nossa impermanência biológica tem a ver com o arco-íris do título deste capítulo? Talvez muita coisa. O leitor mais perceptivo provavelmente já intuiu que estou me referindo à homossexualidade, uma característica um bocado comum dos vertebrados terrestres que, à primeira vista, parece ser uma violação flagrante da seleção natural, a regra número um da vida segundo a biologia evolutiva. Ninguém conseguiu refutar até hoje a ideia básica de que os seres vivos sempre tendem a maximizar suas oportunidades reprodutivas – ou, para ser menos pedante, tendem a produzir o maior número possível de descendentes viáveis, se todos os outros fatores forem iguais. Com exceção de um ou outro celibatário por vocação, a lógica aqui é implacável: os recursos do mundo não são infinitos, ninguém é imortal, e os que não se dedicam com afinco a gerar prole viável são, lenta e seguramente, eliminados da árvore da vida. Lógica implacável à parte, alguém pode me explicar porque porções pequenas, mas significativas das populações de aves, mamíferos e, claro, seres humanos preferem dedicar suas energias sexuais, no todo ou em parte, a uma prática, digamos, “infrutífera”? De um lado, é verdade que a presença da homossexualidade é minoritária, ainda que persistente (em torno de 10% ou pouco menos, de acordo com os dados mais confiáveis que temos sobre populações humanas modernas). De outro, a proporção é grande o suficiente para que ela tenha peso sobre a seleção natural. Imagine um subgrupo da população de qualquer espécie que seja exclusivamente heterossexual. Em tese, assumindo que a atração pelo mesmo sexo tem um componente biológico, esse subgrupo exclusivamente “espada” (uso a palavra por analogia com o inglês straight, que é normalmente o antônimo de gay; nenhum juízo de valor aí) deveria ter mais sucesso reprodutivo e, mais cedo ou mais tarde, fazer com que a proporção dos homossexuais da população como um todo decrescesse até sumir. Se existe uma coisa que deveria ser altamente “herdável”, ou seja, sujeita a influências genéticas e transmissível de geração em geração, deveria ser a atração pelo sexo oposto; afinal, eis aí a característica por excelência a ser favorecida pela seleção natural.Já sabemos, porém, que a eliminação progressiva do componente homossexual da população não é o que acontece. Os gays, ou ao menos o que classificaríamos como comportamento gay pelos padrões humanos, simplesmente não desaparecem. É claro que podemos propor explicações “culturais”, ou meramente comportamentais, sem uma faceta genética, para elucidar isso. A prática homossexual pode ser apenas “recreativa” entre animais e/ou humanos, ou funcionar de tal forma que ela afeta a reprodução de forma apenas marginal. Suponha, por exemplo, que todas as sociedades do mundo teriam preconceito zero em relação a seus homossexuais, desde que todos cumprissem a obrigação cívica de ter ao menos um filho antes de se casar com um companheiro do mesmo sexo. Fim do problema. (Meu exemplo favorito da vida real é mais ou menos desse tipo: se o fato de homens fazerem sexo com homens rotineiramente impedisse a produção de posteridade, as duas linhagens reais de Esparta, mais famoso viveiro de pederastas da Grécia Antiga, teriam durado 50 anos, e não 800 anos...) Não estou negando que esses fatores culturais e sociais sejam importantes, ou até cruciais, em alguns casos. A seleção natural, por poderosa que seja, não é a monarca absoluta que algumas visões mais redutoras da evolução nos querem fazer crer. Mas sempre estamos em solo mais seguro quando conseguimos incorporá-la à compreensão de qualquer fenômeno do mundo vivo. Um dado importante é que provavelmente há tanto um componente genético quanto outro ambiental por trás do comportamento homossexual. Se você tem um irmão gêmeo idêntico (para todos os efeitos, seu clone, com DNA 100% igual ao seu), suas chances de também ser homossexual são de 50% - bem mais do que o esperado pelo acaso, mas metade do que “deveria” ser caso a atração pelo mesmo sexo fosse uma característica determinada exclusivamente pelos genes. Indícios neurológicos e comportamentais também apontam um componente forte da biologia na definição da homossexualidade. Imagens funcionais do cérebro de homens e mulheres homossexuais sugerem que ele “imita” a anatomia e a fisiologia do cérebro do sexo oposto, ativando-se da mesma maneira que os tecidos neuronais de uma mulher ou homem heterossexual (respectivamente) diante de estímulos que despertam a libido. Mesmo assim, essas conclusões um tanto genéricas são insatisfatórias por não irem à raiz da questão. Outros modelos, como o do chamado ambiente uterino – de forma muito resumida, os homossexuais sofreriam uma ação diferenciada de hormônios sexuais ainda no útero da mãe, desencadeando mudanças que conduzem à sua orientação singular – continuam a não explicar muito bem a estranha estabilidade do comportamento sexual em termos populacionais. Quebrar esse impasse é o objetivo do trabalho intrigante, embora ainda preliminar, do italiano Andrea Camperio Ciani, da Universidade de Pádua. A hipótese de trabalho de Ciani é simples: se a seleção natural não podou a homossexualidade, pode ser que os componentes genéticos por trás dela tragam algum tipo de vantagem reprodutiva, por mais paradoxal que isso soe. E é aqui que voltamos à ideia apresentada no começo: a vantagem não precisa ser um favorecimento da reprodução do próprio homossexual (aliás, por definição, se ele for exclusivamente homossexual, não vai se reproduzir). Ela pode representar apenas um favorecimento dos genes ligados à atração gay, cujas cópias estariam presentes não apenas no DNA dos homossexuais, mas também no de seus parentes próximos que são héteros. Como, em última instância, são os genes que acabam funcionando como unidade de “longo prazo” da seleção natural e da evolução, eles é que ganham ou perdem. A existência temporária de homossexuais que não conseguem se reproduzir seria, desse ponto de vista, apenas um efeito colateral de uma possível estratégia reprodutiva bem-sucedida de longo prazo. OK, talvez pareça uma maluquice. Mas há maneiras de testar isso, e foi o que Ciani e seus colegas fizeram. Quer um exemplo? As mães de homossexuais masculinos, e as tias maternas (mas não as tias paternas) são mais férteis que a média das mulheres. Um estudo recente, sob a batuta de Ciani e companhia, mostrou que essencialmente a mesma afirmação vale para homens bissexuais. Os pesquisadores chegaram a criar uma simulação de computador, usando genes teóricos espalhados pelo DNA humano, para tentar estimar que fórmula genética poderia dar origem a essa situação paradoxal. Por enquanto, o mais provável parece ser a influência de dois ou mais genes para a manifestação da homossexualidade – e um deles estaria localizado no cromossomo X, precisamente a fatia de nosso DNA que todos nós, homens, herdamos de nossas mães. A contribuição materna é líquida e certa no caso do X porque todos os humanos do sexo masculino possuem um cromossomo X e Y, como talvez você se lembre; um homem que herdasse outro X do pai seria... bem, uma mulher, não um homem. É claro que o impacto preciso de genes teóricos é um bocado difícil de avaliar. Dadas as evidências disponíveis, porém, os cientistas italianos sugerem que o(s) gene(s) gay(s) não promovem diretamente a fertilidade, mas o que chamam de hiperheterossexualidade - ou seja, as mães (e tias) de homens homossexuais sentir-se-iam mais atraídas pelo sexo oposto do que a média das mulheres, e, portanto, tenderiam a ter mais filhos. A contrapartida irônica dessa hiperheterossexualidade num corpo feminino seria precisamente a homossexualidade, ou a bissexualidade, num corpo masculino. De novo, o importante aqui é considerar que genes são entidades evolutivas de longa duração, que viajam por corpos, sexos e gerações de forma um bocado fluida. Desde que o resultado líquido de sua ação seja multiplicador, aumentando as chances de que mais cópias deles circulem pelo material genético de uma espécie, os genes podem se dar ao luxo de perder uma batalha (a não-reprodução de gays convictos) para ganhar a guerra (os muitos filhos e filhas que as mães, tias, primas e sobrinhas deles trarão ao mundo). É difícil achar uma fresta nessa armadura lógica. Nem é preciso dizer (mas digo assim mesmo) que é muito, muito cedo mesmo para declarar que se trata de um caso encerrado, quanto mais para afirmar o que tudo isso significa. Mas o fato de que a existência de homossexuais masculinos possa ter uma relação estreita com o sucesso reprodutivo – que, para todos os efeitos, eles não possam ser considerados “infrutíferos”, mas sejam, ao contrário, o resultado do aumento líquido da fertilidade – deve dar o que pensar a muita gente. Mentes Da inteligência humana e de outras inteligências Mania de personificação Como surgiu nossa tendência a tratar objetos como gente A vida a dois, principalmente quando ela está começando, tem umas coisas engraçadas. Numa noite gelada de agosto, por exemplo, cheguei tarde do trabalho e me dirigi ao nosso quarto de casal. Ainda no escuro, cocei a cabeça ao ver uma figura pequenina embrulhada num cobertor idem, em cima da cama. Como a gente (ainda) não tem filhos, aquilo era no mínimo esquisito. Apertei o interruptor e desfiz o mistério: tratava-se de ninguém menos que o famoso Garfield, em versão pelúcia. Para explicar o fato, minha esposa saiu-se com esta: “É que se eu não cobri-lo ele vai sentir frio a noite inteira”. Havia mais por trás desse enigma. Descobri que, noite após noite, minha consorte repetia o ritual com todos os seus bichinhos de pelúcia (que incluem também um golfinho e um orangotango de Bornéu): embrulhava os ditos cujos em um cobertor e lhes dava um beijo de boa-noite. Como é que se explica uma coisa dessas? Uma mulher adulta, afinal de contas, deveria saber que pedaços de pano e plástico não sentem frio nem dormem melhor depois de ganhar um beijinho. Para ser justo, a minha surpresa só pode ter sido o resultado de uma cegueira temporária. Poder-se-ia muito bem argumentar que comportamentos
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