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Prévia do material em texto

Evolução: Além de Darwin
O que sabemos sobre a história e o destino da vida
 
Reinaldo José Lopes
 
Como ler este livro
 
Nenhum aspecto da vida na Terra, das hélices moleculares das
bactérias às emoções humanas, tem sentido sem a força
iluminadora da teoria da evolução. Faz um século e meio que a
biologia evolutiva foi fundada por Charles Robert Darwin (1809-
1882) com a publicação do livro Sobre a Origem das Espécies por
Meio da Seleção Natural (normalmente encurtado para A Origem
das Espécies em português). Desde então, o alicerce lançado por
Darwin deu lugar a um edifício imponente, que confirmou a essência
do que o naturalista britânico propunha e, ao mesmo tempo, ampliou
de forma vertiginosa o conhecimento que temos sobre a origem e a
natureza dos seres vivos. O livro que você tem em mãos é um
passeio pela versão mais atualizada e empolgante desse legado.
 Na introdução, ou Você está aqui, como decidi batizar
essa seção, meu objetivo é proporcionar uma visão telescópica, de
longo alcance, da história da vida no nosso planeta, do começo
obscuro nas fornalhas da atmosfera primitiva da Terra ao surgimento
dos ancestrais da nossa própria espécie. Veremos que não havia
nada de inevitável nesse caminho, que repetidas vezes o que
chamamos de vida complexa chegou muito perto de ser aniquilada,
apenas para voltar a florescer teimosamente neste cantinho do
Universo. Por último, e não menos importante, lembraremos que,
apesar da profusão de animais e plantas que parecem governar o
mundo hoje, seria mais justo dizer que os donos da biosfera são os
mesmos de 3,5 bilhões de anos atrás: as bactérias.
 Após esse panorama, começamos a examinar o papel
fundamental do sexo para inúmeras formas de vida na seção
Parceiros. Além de abordar a questão de 1 milhão de dólares
(afinal, por que os seres vivos se dão ao trabalho de fazer sexo se
dá para se reproduzir sem ele?), a ideia é mostrar como essa
necessidade molda o comportamento humano e animal e as
diferenças essenciais entre machos e fêmeas.
 A seção Mentes busca desmontar de vez o mito da
inteligência como atributo exclusivo da nossa própria espécie (não
que nove entre dez donos de cachorros alguma vez tenham aderido
a essa doutrina estapafúrdia). A diferença entre nós e o resto das
formas de vida nesse quesito é menor do que gostaríamos, e o
estudo de seres como golfinhos, corvos e até polvos pode se tornar
uma ferramenta valiosa para compreender a “receita” evolutiva
responsável por inteligências avançadas. De quebra, espero lançar
alguma luz sobre as raízes de algumas características básicas da
mente humana.
 É bem possível que Darwin ficasse surpreso e encantado
com as descobertas relatadas na seção Peças, porque elas
envolvem descobertas relativamente recentes da biologia molecular.
As “peças” em questão são os mecanismos biomoleculares básicos
que ajudam a construir os corpos dos seres vivos e, assim,
funcionam como matéria-prima para as novidades evolutivas de
grande escala – coisas como a transformação de lagartos em
cobras ou de células simples, bacterianas, nas células complexas e
simbióticas que carregamos. Em seguida, a seção Elos mostra que
tais transições têm muito pouco de especulação: os paleobiólogos
de hoje contam com um conjunto impressionante de fósseis,
documentando, muitas vezes passo a passo, a origem de criaturas
tão complexas e adaptadas a seu ambiente quanto aves (“filhas”
dos dinossauros) ou baleias (descendentes diretas de mamíferos
terrestres de casco, como os porcos e hipopótamos). Dizer que não
existe o “elo perdido” é ignorar que multidões de “elos perdidos”
adornam as prateleiras dos museus do mundo.
 A seguir, voltando para o presente, Formas revela como as
variantes mais bizarras e idiossincráticas da anatomia e da
bioquímica dos seres vivos ganham sentido diante dos desafios
evolutivos que tais criaturas, como ornitorrincos ou ratos-toupeiras-
pelados, tiveram de enfrentar. A seção Esperanças mostra que uma
teoria de poder explicativo tão grande inevitavelmente nos leva a
repensar o nosso relacionamento com outras formas de vida, e o
papel da espécie humana no planeta. O que deve mudar nas
nossas tradições espirituais? É lícito tratar outros animais como
totalmente separados e distintos de nós? Finalmente, a conclusão,
que apelidei de Daqui para a frente, tenta condensar essas
preocupações numa visão inevitavelmente pessoal do significado da
compreensão da evolução para o nosso futuro na Terra. Boa leitura!
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
Você está aqui
Quase 4 bilhões de anos de história da vida na Terra por apenas
alguns milhares de caracteres
 
Nosso planeta já nasceu grávido de vida. A expressão, eu sei, é
estranhíssima, e tem um quê de personificação exagerada, mas
reflete o fato indiscutível de que vemos as pegadas dos seres vivos
por aqui assim que a Terra se tornou minimamente hospitaleira. Os
primeiros 600 milhões de anos do nosso lar planetário são
justamente conhecidos como o Éon Hadeano, por analogia com o
Hades, o submundo dos mortos na mitologia grega. Num Sistema
Solar que ainda estava se estabilizando a duras penas,
bombardeios implacáveis de asteroides e cometas, bem como pelo
menos um choque com outro planeta de tamanho comparável a
Marte, esmigalhavam repetidamente as rochas incandescentes que
formavam a Terra-bebê. Então, há pouco menos de 4 bilhões de
anos, as coisas finalmente se acalmaram, e o antigo Hades virou
Éden, na mesma rapidez com que, nesta frase, saltamos da
mitologia grega para a judaico-cristã. Rochas da atual Groenlândia,
que estão entre as mais antigas do mundo, carregam carbonatos,
minerais que em geral precisam da atividade de micróbios como as
atuais bactérias para se formar. Mais algumas centenas de milhões
de anos e dá para ver fósseis inequívocos das ditas cujas na
Austrália. A vida, pelo visto, estava só esperando a primeira
calmaria séria para desabrochar.
 Era o destino? É claro que respostas científicas a esse tipo
de pergunta não existem e, além do mais, fica difícil afirmar
qualquer coisa com alto grau de probabilidade quando só
conhecemos um único exemplo de origem da vida no Universo
inteiro (o nosso, no caso). De qualquer maneira, a rapidez com que
os seres vivos se estabeleceram por aqui pode indicar que, longe de
ser um evento vastamente improvável, a vida é um jeito tão natural
de organizar matéria e energia que ela se estabelece a qualquer
descuido do Cosmo. Matéria-prima, de fato, não falta. (Vamos deixar
de lado a hipótese da panspermia, segundo a qual os seres vivos já
chegaram “prontos” ao nosso planeta, vindos do espaço por
acidente ou como “semeadura cósmica” de uma civilização de ETs.
A ideia não serve para muita coisa porque só consegue criar uma
regressão infinita: em algum lugar a vida precisa ter começado
sozinha, certo?)
Panspermia à parte, as chamadas moléculas orgânicas, cuja
espinha dorsal é o elemento químico carbono e que marcam as
reações características dos seres vivos, não precisam de
microrganismos, animais ou plantas para existir. Nuvens cósmicas
de gás possuem quantidades tão vastas de etanol (pois é, álcool
etílico mesmo) que eu consigo imaginar os ricaços do futuro
distante, caso nossa civilização realmente conquiste outros sistemas
solares, encomendando garrafas e mais garrafas de Caipirinha
Galáctica ou Uísque das EstrelasTM. O mesmo vale para os
aminoácidos que compõem as proteínas e outros compostos
orgânicos básicos: o Universo está cheio deles, assim como a Terra
primitiva provavelmente estava.
 No entanto, como todos sabemos, empilhar tijolos não
equivale a construir uma casa. O segredo da vida está na maneira
inusitada como as moléculas orgânicas se organizam e se
relacionam com o meio externo. Apesar das muitas histórias de
sucesso da biologia evolutiva e de sua capacidade quase imbatível
de explicar a saga da vida, a origem dos primeiros organismos de
uma só célula continua sendo, para todos os efeitos, um mistério
impenetrável.Há muitos modelos plausíveis para explicar esse Big
Bang biológico, mas nenhum completo ou isento de dificuldades
sérias. Ainda assim, o conhecimento aprofundado dos mecanismos
básicos da vida no nível da célula permite aos cientistas esboçar
alguns pré-requisitos.
Correndo o risco de simplificar em excesso um debate
complicadíssimo, pode-se dizer que os modelos sobre a origem dos
seres vivos na Terra se concentram em dois polos opostos:
“replicadores primeiro” ou “metabolismo primeiro”. O melhor
exemplo de replicadores que temos hoje é o DNA, embora essa
molécula seja demasiado complexa e frágil para ter emergido logo
de cara, de acordo com os especialistas. A essência dos
replicadores é a capacidade de se multiplicar e transmitir adiante
informação genética com pelo menos algum grau de fidelidade. Uma
comparação muito usada para esclarecer a natureza dos
replicadores biológicos envolve o fogo. Um “incêndio-pai” é
perfeitamente capaz de produzir dois “incêndios-filhos”, mas a
semelhança entre eles é puramente acidental: não existe nenhuma
essência da “fogueira paterna” que a “fogueira-filha” herda, além da
capacidade de criar um estrago dos infernos. Um replicador
biológico é diferente porque implica descendência com modificação:
“filhos” herdam a maior parte das características dos “pais”, as
quais, por sua vez, são passadas aos “netos”, mas com o porém
importante de que sempre há uma variação casual nessa passagem
do bastão de uma geração para outra. Com isso, alguns
descendentes podem ter mais facilidade para produzir cópias de si
mesmos do que outros, de maneira que um “jeito” de se replicar
pode sobrepujar os demais e até exterminá-los, direta ou
indiretamente. Esse é o mecanismo básico segundo o qual a
seleção natural, e provavelmente o grosso da evolução, acontece.
Por outro lado, o modelo que coloca o metabolismo em primeiro
lugar argumenta, com alguma razão, que uma molécula replicadora,
por si só, poderia ser facilmente engolfada no turbilhão de reações
químicas da Terra primitiva. O passo essencial para o início da vida
seria, portanto, a formação de uma membrana ou vesícula
vagamente semelhante à das células atuais, controlando a
passagem de substâncias de dentro para fora e de fora para dentro
da membrana. No interior dela, um conjunto de moléculas orgânicas
teria descoberto o segredo da autopoiese, do “fazer-se a si mesmo”,
como indica essa palavra de origem grega. Por meio de um conjunto
especial de reações químicas sustentáveis, a célula primeva era
capaz de se manter organizada por muito tempo enquanto
exportava os restos desordenados de seu metabolismo para o meio
circundante. A capacidade autopoietica, de se autorrenovar, mais do
que a capacidade de reprodução/replicação, seria definidora da
vida, segundo esse ponto de vista.
O elo entre os dois tipos de hipótese talvez seja o chamado “mundo
de RNA”, no qual essa molécula-irmã do DNA teria sido capaz tanto
de funcionar como replicador quanto de iniciar o metabolismo
(embora não de delimitar, sozinha, a primeira célula). Por enquanto,
a resposta mais honesta é um sonoro “não sabemos”. O que
sabemos, sem sombra de dúvida, é que há uns 3,5 bilhões de anos
atrás o domínio das bactérias já estava solidamente estabelecido.
Tão solidamente, aliás, que o mais correto seria dizer que se trata
de um reino que não terá fim enquanto a Terra for habitável. Perto
das bactérias, todas as formas de vida, inclusive nós, não passamos
de epílogo ou posfácio. (Razão pela qual você não encontrará um
neste livro: ninguém lê posfácios. Um ou outro maluco ainda se
arrisca a ler prefácios, mas posfácios? Nem sonhando.) Descontada
a absurda vantagem numérica – há mais células de bactérias em
você do que células de você em você, se é que me entende –,
esses microrganismos de material genético “desorganizado”, sem
um núcleo que o abrigue, são os verdadeiros carregadores de piano
da biosfera, envolvidos em todos os fluxos de matéria e energia
essenciais para que a vida continue vivendo, da fotossíntese que
produz biomassa à decomposição que a quebra em seus pedaços
constituintes de novo.
Bactérias são duronas, e bem mais complicadas do que nossa
mania de caricaturá-las sugere. Elas podem se organizar em
comunidades e colônias de indivíduos que, à primeira vista,
lembram seres de muitas células como nós. Podem trocar genes de
maneira informal, um tipo de “sexo” que já foi comparado a alguém
de olhos castanhos esbarrando num escandinavo e ganhando de
repente cabelos louros e olhos azuis. Tal promiscuidade, aliás, é um
dos principais obstáculos a construir a chamada Árvore da Vida, o
esquema de descendência que liga todos os seres vivos a um
longínquo, e talvez único, ancestral comum. As bactérias trocam
material genético com tamanha facilidade que se pode conceber
uma origem múltipla da vida, encimada por uma posterior
uniformização de seus processos graças ao troca-troca de genes.
De qualquer maneira, o metabolismo básico compartilhado entre as
bactérias e todo o resto da vida indica que, se houve uma origem
múltipla, seus traços acabaram sendo apagados. É impressionante
como a essência molecular da célula é semelhante em todos os
seres vivos da Terra.
Semelhante, sim, mas não idêntica. Como você verá em um dos
capítulos a seguir, o monopólio bacteriano foi interrompido há cerca
de 1,5 bilhão de anos pela inaudita fusão permanente entre duas
bactérias. Foi um daqueles casos em que o todo se tornou maior
que a soma das partes. Surgiam os eucariontes, organismos cujo
material genético está organizado num núcleo separado, como
ocorre com o nosso. Antigas bactérias fundidas aos eucariontes
ainda exercem funções como respirar oxigênio ou fazer
fotossíntese.
Enquanto as principais integrantes da biosfera continuavam,
imperturbáveis, a tocar a vida, os eucariontes embarcaram de vez
na estrada da complexidade – mas não imediatamente, nem
inevitavelmente. O divisor de águas parece ter sido um conjunto de
eras glaciais que afligiu o planeta entre 750 milhões e 600 milhões
de anos atrás. Uma hipótese muito discutida, a chamada “Snowball
Earth” ou “Terra Bola de Gelo”, propõe que a fase glacial foi tão
severa que o gelo marinho teria chegado ao Equador. Nem todos
concordam a esse respeito, mas a ideia é que a pressão ambiental
severa teria conduzido ao menos alguns organismos eucariontes a
se transformar no que hoje conhecemos como animais e plantas –
criaturas multicelulares altamente organizadas e especializadas, que
se reproduzem por meio do sexo de forma rotineira e geram
“bebês”. A explicação – mais complexidade como mecanismo de
sobrevivência – faz sentido enquanto você não se dá conta de que
provavelmente seria muito mais fácil aguentar o aperto do frio na
forma unicelular. Temos aí, portanto, mais um mistério.
No caso dos animais, ele é seguido por outro, a Explosão
Cambriana, registrada em fósseis com idade a partir de 540 milhões
de anos. Animais primitivos tinham sido registrados antes disso,
mas a Explosão Cambriana equivale ao aparecimento “repentino”
(do ponto de vista geológico, claro, o que envolve alguns milhões de
anos) de ancestrais de todos os grandes grupos modernos de
bichos, incluindo artrópodes (insetos, crustáceos e companhia),
moluscos (caramujos, polvos, ostras etc.) e vertebrados como nós.
É de se imaginar que a evolução dos animais começou muito antes,
sendo apenas difícil de detectar por causa da falta de corpos mais
duros e “fossilizáveis”; de fato, já temos algumas indicações
indiretas de que ela começou antes de 650 milhões de anos atrás.
Mesmo assim, ainda falta uma explicação mais detalhada da
natureza da Explosão Cambriana.
Seja como for, esse início espetacular da vida de grande porte,
restrita aos mares, representou apenas as primícias do que estava
por vir. O registro fóssil, nas centenas de milhões de anos seguintes,
revela saltos após saltos de diversidade, em geral associados à
colonização de grandes ambientes virgens, como a chegada das
plantas e dos vertebrados à terra firme, a invenção dos ovos de
casca duraou do voo por insetos, répteis (pterossauros) e aves.
Esses períodos de expansão, é bom que se diga, são pontuados por
curtos episódios de horror absoluto, as chamadas extinções em
massa, entre as quais os paleontólogos reconhecem as chamadas
Big Five. Nessas cinco grandes catástrofes, pelo menos metade das
espécies do planeta, e em alguns casos muitas mais, foram varridas
do mapa num piscar de olhos geológico. A pior delas é a do Período
Permiano, há 251 milhões de anos, quando a contagem de corpos
chega a 90% ou mais; a mais conhecida é a do fim do Cretáceo, há
65 milhões de anos, quando os dinossauros sumiram do mapa,
aparentemente exterminados pela queda de um asteroide com pelo
menos 10 km de diâmetro.
A força imaginativa da “cratera do Juízo Final” deixada por esse
corpo celeste obscurece o fato de que a maioria desses desastres
parece ter brotado de causas puramente terrenas, como vulcanismo
acelerado, mudanças climáticas extremas ou variações bruscas no
nível dos oceanos. Estudar com cuidado as extinções em massa
também desmonta visões preconceituosas sobre os dinos ou
qualquer outro animal engolido por elas: embora espécies sumam o
tempo todo no mundo, as Big Five são viradas de mesa completas
nas regras da vida. A matança é aparentemente aleatória, sem
respeitar tamanho, tipo de metabolismo ou nicho ecológico: por mais
bem adaptado que um animal esteja a seu ambiente, isso lhe dá
zero garantia de sobrevivência. Pouca gente se lembra, por
exemplo, de que vários grupos de mamíferos e aves primitivas
também naufragaram no barco furado que carregava os
dinossauros. Aparentemente, o único “seguro de vida” razoável
diante de uma extinção em massa é uma distribuição geográfica
ampla, o que significa simplesmente que a catástrofe não vai ser
capaz de matar todos os membros da espécie em todos os lugares
do mundo. Safety in numbers, ou “segurança graças à superioridade
numérica”, portanto – não que isso sirva de consolo para os
inúmeros indivíduos que morrem mesmo quando a espécie como
um todo escapa.
O que não se discute é que as Big Five realmente “reiniciaram” o
programa da vida na Terra de maneira radical, como quem liga e
desliga um computador recalcitrante. A mudança é de tal ordem que
as relações ecológicas e a composição de espécies do globo
sempre foram alteradas profundamente depois desse tipo de
evento. Pode-se argumentar que, sem a hecatombe do Cretáceo, os
mamíferos teriam pouca chance de virar os vertebrados terrestres
dominantes do globo, e seria praticamente impossível que um certo
grande macaco, há uns 6 milhões de anos, começasse a
experimentar o andar ereto nas florestas da África. Alguns
mamíferos até passaram por fases interessantes de aumento de
tamanho e de diversificação antes do sumiço dos dinossauros, mas
curiosamente essas linhagens mais saidinhas, por assim dizer,
foram limadas junto com os antigos donos do globo. Dá para discutir
se animais como nós são uma ocorrência provável Universo afora;
mas, ao menos em parte, nossa existência não tinha nada de
inevitável. O mero fato de estarmos aqui e sermos capazes de
compreender boa parte dessa história complicada é motivo de
assombro. E, agora, acho que você já sabe o bastante para
continuar. Vamos ao que interessa: sexo.
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
Parceiros
Dos deleites e das agruras de se reproduzir fazendo sexo
 
Meu coração é do papai
Por que nossos genitores são o modelo do que achamos atraente.
 
Não sei se alguém já enunciou formalmente a hipótese a seguir,
mas eu seria capaz de apostar que 90% das verdades imutáveis
sobre a natureza humana já foram enunciadas pela música popular.
Repare. Quando a mesma ideia fica aparecendo espontaneamente
nas letras de compositores diferentes, e até em países diferentes, é
bom desconfiar. Para ser mais específico, estou pensando em
coisas como a célebre performance de Marilyn Monroe cantando My
heart belongs to Daddy (“meu coração pertence ao papai”); no
clássico samba que diz “Ô coisinha tão bonitinha do pai”; e nas
incontáveis canções em espanhol nas quais a intérprete se dirige a
seu amado como papi, papito. Como é que se explica uma coisa
dessas? Desejos latentes de incesto? Pedofilia? Nada disso.
 Uma das pesquisas responsáveis por deixar o mistério um
pouco menos obscuro foi feita por cientistas da Universidade de
Durham, no Reino Unido, junto com colegas da Academia Polonesa
de Ciências e da Universidade de Wroclaw (também na Polônia).
Resumindo: se você, mulher, teve uma boa relação com o papai na
infância, tenderá a achar mais atraentes os rapazes que se parecem
com ele.
 O estudo foi realizado com um bom grau de controle, para
evitar vieses. Foram recrutadas 49 moças polonesas, todas filhas
mais velhas. Os pesquisadores usaram um questionário
padronizado para avaliar coisas como quanto tempo livre elas
costumavam passar com seus pais e que contribuição eles deram
para educar as próprias filhas. Depois, as polonesas viram uma
galeria de 15 rostos masculinos diferentes. A equipe de cientistas
teve o cuidado de obscurecer detalhes como orelhas, cabelo,
pescoço, ombros e roupas, para evitar que esses elementos não-
essenciais, sem relação direta com a aparência básica da face,
influenciassem o resultado. Os pesquisadores também mediram as
estruturas faciais desses rostos, bem como a dos pais das garotas,
de maneira que já sabiam de antemão qual cara masculina era
matematicamente mais parecida com a dos genitores delas. O
resultado: as moças que se davam bem com seus pais normalmente
consideravam mais atraentes os rostos mais parecidos com os
deles. A associação sumia no caso das jovens que tiveram
problemas com seus pais na infância.
 Apresso-me em lembrar que o fenômeno não é
exclusivamente feminino. No caso de homens e suas mães, a
recíproca também parece ser verdadeira. Existe uma literatura
científica robusta mostrando que, em média (vejam bem, em média;
essa é a expressão crucial aqui), as pessoas tendem a escolher
como parceiros fixos homens ou mulheres parecidas com elas
mesmas. E quais as pessoas que mais se parecem conosco? A não
ser que você seja gêmeo idêntico, a resposta é óbvia: alguém que
tenha 50% dos seus genes. Em língua de gente: seu pai ou sua
mãe, seu irmão ou sua irmã.
 Não corte os pulsos ainda. Você está perfeitamente correto
se reagiu com indignação; afinal poucas pessoas no mundo são
menos atraentes do que os nossos pais ou irmãos. Ao contrário do
que dizia Freud, é muito raro que, em qualquer fase da vida,
pessoas normais se sintam sexualmente atraídas por esses
parentes próximos. Mas o paradoxo interessante é que, pelo visto,
as pessoas mais próximas de nós desempenham um papel crucial
na formação da imagem de um parceiro desejável, e as provas a
esse respeito têm se acumulado em humanos e animais. Não se
trata, portanto, de atração verdadeira, mas da criação de modelos
do que mais tarde vamos considerar como sexy.
 Para entender isso, é preciso lembrar o óbvio: ninguém
nasce sabendo – pelo menos, não tudo. Nós e a maioria dos outros
mamíferos somos bichos com sistema nervoso complicado,
crescimento relativamente lento e vida social cheia de frescuras. É
preciso aprender milhares de coisas antes de chegar à maturidade,
e a relação dos filhotes com seus pais ou irmãos os ajuda a saber,
por exemplo, qual tipo de criatura é almoço e qual é um parceiro em
potencial.
 Pais ou parentes próximos viram, portanto, “padrões-ouro”
do que é um possível companheiro – uma das funções do sistema
conhecido pelos biólogos como imprinting (nesse caso, trata-se do
imprinting sexual). Qualquer um que já tenha assistido a um
desenho animado tem ao menos uma ideia grosseira de como o
imprinting funciona: toda vez que um personagem dá o azar de
segurar um ovo prestes a chocar, e o bebê que sai de dentro dele
(pode ser um dragão, ou coisa pior) olha para o personagem e grita
“mamãe!”, estamos presenciando uma das funções (um tantinho
simplificada,digamos) desse sistema. O imprinting também “ensina”
os filhotes a não ficarem atraídos diretamente pelos pais ou irmãos,
e sim por indivíduos apenas parecidos com eles. As histórias
tragicômicas de bichos criados por humanos mostram o que
acontece quando o imprinting dá errado, em versões da vida real
das confusões interespécies nos desenhos animados. (Imagine
gansinhos achando que um par de botas é a mamãe, ou corujas
tentando desesperadamente transar com um chapéu. Não é lá muito
engraçado.)
 Por sorte, a imensa maioria dos imprintings sexuais
humanos e animais funciona à perfeição. A coisa foi comprovada
com rigor em laboratório: alguns ratinhos foram criados por mães
cujas mamas e vaginas foram borrifadas com odor de limão. Depois
de adultos, os roedores foram colocados em jaulas onde havia tanto
fêmeas com cheiro de limonada quanto ratas sem cheiro nenhum. E
eles caíram matando em cima das fêmeas com odor cítrico. 
 Em humanos, ambos os lados do imprinting sexual já foram
demonstrados. Estudos transculturais – do Chade, na África, à
Europa e aos Estados Unidos – revelam que as pessoas tendem a
escolher parceiros ligeiramente parecidos com eles. E não se trata
só de cor dos olhos ou dos cabelos: entram na equação traços tão
mínimos quanto a distância entre os olhos, circunferência do pulso
ou tamanho do dedo médio! A correlação é pequena, mas
estatisticamente significativa – provavelmente porque as pessoas
estão usando um “padrão-ouro” composto por uma enormidade de
traços diferentes, os quais, em média, acabam chegando a uma
pessoa um pouquinho mais parecida com elas do que o normal da
população.
 Ao mesmo tempo, e aí é que a coisa fica engraçada,
mesmo “parentes” adotivos raramente se sentem atraídos uns pelos
outros. Isso vale até para as crianças israelenses criadas em
kibbutzim (singular: kibbutz), as fazendas coletivas que já foram
muito comuns no país. As crianças dos kibbutzim eram criadas
todas juntas, num regime quase comunitário, como se fossem todas
irmãs. Resultado: de 2.769 casamentos estudados nas fazendas, só
13 – ou 0,47% do total – aconteceram entre pessoas nascidas no
mesmo kibbutz. Isso sugere que nossa aversão natural a ir para a
cama com irmãos e irmãs não deriva de algum sexto sentido capaz
de farejar DNA parecido com o nosso, mas simples do estímulo
inconsciente (ou contraestímulo, na verdade) surgido de anos de
convivência na mesma casa, com os mesmos pais, desde a mais
tenra infância.
 As razões por trás dessa sintonia fina ainda são nebulosas.
Mas ela parece fazer algum sentido do ponto de vista da seleção
natural, que tem impacto sobre todos os seres vivos e tende a
favorecer sempre a produção de bebês saudáveis: por definição,
apenas os mais hábeis na produção de crias viáveis conseguem
legar seu material genético para as gerações futuras. Faz sentido
não escolher como parceiro alguém completamente diferente: na
natureza, “coisas completamente diferentes” costumam ser
membros de outra espécie, com os quais normalmente não dá para
produzir descendentes férteis, nem com muito amor e carinho, ainda
que haja exceções a essa regra.
 Ao mesmo tempo, casar-se com um quase-clone de si
mesmo do sexo oposto não é esperto: o excesso de semelhança
genética entre pai e mãe acaba concentrando características
potencialmente negativas nos filhos, tornando-os suscetíveis a
doenças ou até portadores de sérios problemas congênitos. Isso
acontece porque é muito mais provável a presença da mesma
variante indesejável de um gene em você e sua irmã do que o azar
de o mesmo acontecer com você e uma completa desconhecida.
Como quase todo gene é herdado em duas cópias (uma paterna e
outra materna), o risco de que um rebento gerado em incesto
carregue ambas as versões “ruins” é implacavelmente maior. Isso
faz uma diferença tremenda em doenças genéticas graves, como a
anemia falciforme: enquanto apenas uma cópia do gene mal
acarreta sintomas, portar duas cópias equivale a uma vida de
sofrimento.
 Deixemos a genética de lado por um instante, no entanto.
Acontece que existem fatores que ajudam a prever a escolha de
parceiros de maneira muito mais clara e menos ambígua do que a
semelhança física, geral ou em detalhes, de homens e mulheres. E
adivinhe só: são fatores culturais. Embora a semelhança física tenha
um impacto, a correlação entre coisas como religião, posição
política, nível educacional e renda é muito mais forte entre parceiros
fixos.
 Isso deveria ser o suficiente para afastar os temores de que
entender as bases biológicas do comportamento humano nos
transforma em autômatos genéticos, robozinhos que só pensam
“naquilo” (ter o máximo possível de filhos e espalhar nosso DNA) e
outras simplificações grosseiras do gênero. Como todas as coisas
vivas, somos a somatória de tantos eventos improváveis e
complicados que poucos fatores podem se arrogar o direito de
explicação única – ainda que, como dizia Marilyn, no fundo o nosso
coração pertença ao papai ou à mamãe.
 
Helena de Darwin
As mulheres foram mesmo a causa da guerra de Tróia?
 
Historiadores e críticos literários normalmente dão uma risadinha de
desprezo quando alguém diz que a guerra de Tróia aconteceu por
causa da bela Helena. Quem estuda o conflito, que virou a mais
famosa saga da literatura ocidental ao ser cantado pelo poeta
Homero, costuma partir do princípio de que o rapto de Helena não
passa de desculpa esfarrapada. No máximo, um pretexto para jogos
bem mais sérios de poder e riqueza.
 Recapitulemos muito rapidamente a origem do conflito,
segundo a mitologia grega e os textos homéricos. A briga toda teria
começado quando a grega Helena, esposa de Menelau, rei da
cidade grega de Esparta, é seduzida – ou carregada à força,
dependendo da versão do relato – pelo príncipe troiano Páris. O
casal foge para Tróia e, quando o marido corneado não recebe de
volta a esposa depois de negociações diplomáticas, o tempo fecha.
Menelau convoca seu irmão Agamêmnon, o rei mais poderoso da
Grécia, bem como todos os antigos pretendentes de Helena (unidos
por um juramento de defender o marido que ela escolhesse), para
atacar Tróia. Depois de dez anos, a cidade é tomada, saqueada e
destruída, os homens troianos são massacrados e as mulheres e
meninas viram escravas e concubinas dos vencedores.
 As análises modernas afirmam que tudo isso é balela.
Descontemos quem considera o episódio totalmente lendário – o
consenso entre arqueólogos e historiadores é que a cidadela troiana
realmente existiu na costa da atual Turquia e foi mesmo destruída
por invasores por volta do ano 1200 a.C., época que bate com as
histórias da tradição helênica sobre a guerra. Assumindo, portanto,
que o conflito ocorreu, há quem diga que os gregos queriam mesmo
era controlar as rotas de comércio da região de Tróia (versão dos
historiadores) ou aproveitar o pretexto para ganhar glória imortal nos
combates (versão mais romântica, defendida pelos críticos literários
que estudam os poemas homéricos). No entanto, um pesquisador
que busca unir no mesmo caldeirão biologia evolutiva humana e
crítica literária, diz que as duas explicações não chegam nem perto
da raiz da questão. E afirma que o estopim da pancadaria em Tróia
foi mesmo Helena – sem falar, é claro, nas inúmeras outras
mulheres jovens e atraentes, com ou sem marido, que viviam na
cidade. Segundo essa perspectiva, a motivação dos gregos era
igualzinha à de uma coalizão de chimpanzés machos: obter novas
fêmeas a todo custo.
 A tese, que casa a poesia de Homero com algumas das
ideias mais recentes sobre a origem evolutiva da guerra e do
comportamento violento, é de Jonathan Gottschall, professor de
literatura do Washington & Jefferson College, nos Estados Unidos.
Ele é o autor de The Rape of Troy: Evolution, Violence and the
World of Homer (O Estupro de Tróia: Evolução, Violência e o Mundo
de Homero). Gottschall diz que sua intenção não é simplesmente
jogar no lixo os milêniosde estudos sobre as obras-primas gregas,
nem desdizer as outras explicações sobre o comportamento dos
heróis de Homero, como a ideia de que eles lutam para eternizar
sua fama.
 “As pessoas acham que Aquiles [o principal herói grego da
guerra] tem como objetivo a glória eterna simplesmente porque ele
diz isso”, explicou-me Gottschall. “Todos nós queremos esse tipo de
glória – quem não gostaria de ganhar um Nobel e ser lembrado
daqui a cem anos? A questão é que nós buscamos ter fama, ou ter
um status profissional elevado, porque isso nos garante o acesso a
uma série de recursos. E esses recursos, em última instância,
servem para turbinar as chances de sobrevivência e reprodução dos
que os adquirem, como em qualquer outra espécie.”
 Se esse papo todo está soando meio primitivo demais, é
porque talvez o mundo de Homero fosse bastante tosco mesmo. A
maioria dos especialistas atuais concorda que os dois poemas do
grego – a Ilíada, que conta a fase crucial da guerra, e a Odisseia,
sobre a volta para casa do herói helênico Ulisses – foram
compostos por volta do ano 800 a.C. Já os dados arqueológicos
indicam que a antiga Tróia, localizada no noroeste turco, teria sido
arrasada cerca de quatro séculos antes, como já vimos. A diferença
é importante porque, quando Tróia ainda estava de pé, a Grécia era
dominada por uma série de palácios luxuosos, com governo
burocrático, centralizado e “globalizado”, comerciando com o Egito e
a Palestina. Esses reinos palacianos foram arrasados por invasores
pouco depois da queda de Tróia, de forma que, quatrocentos anos
depois da catástrofe, os gregos ainda viviam em vilarejos rurais,
empobrecidos e nem um pouco refinados.
 Gottschall e outros especialistas propõem que a sociedade
da Ilíada e da Odisseia reflete justamente esse período pobretão da
história grega, próximo da época em que os poemas ganharam sua
forma final. “É claro que há elementos de épocas mais antigas na
trama, como o uso de armas de bronze, enquanto na época de
Homero todo mundo já tinha armas de ferro. Mas esses elementos
provavelmente foram preservados porque faziam parte das fórmulas
da tradição oral herdada pelo poeta”, argumenta ele. O importante é,
que no geral, a vida dos heróis homéricos é um perrengue de dar
pena. Para se ter uma ideia, Homero diz, como quem não quer
nada, que porcos e ovelhas ficam passeando nos palácios, que as
rainhas vão pessoalmente buscar água nas fontes e que fiam
pessoalmente a roupa de seus maridos. De quebra, os reis são
relativamente pouco poderosos e raramente conseguem deixar o
poder para seus filhos sem algum grau de luta. Nada disso parece
ter acontecido nos reinos altamente centralizados da Grécia em
1200 a.C. O poeta, portanto, embora se referisse ao passado
lendário, usava como modelo das relações sociais o que ele via
entre seus próprios contemporâneos do ano 800 a.C.
 Resumindo, tal quadro significa que a sociedade homérica
era uma cultura agrícola tribal, muito pouco diferente da dos índios
ianomâmis ou dos nativos de Papua-Nova Guiné se deixarmos de
lado o uso de armas e utensílios de metal. Estamos falando de
pequenos grupos, liderados por chefes guerreiros e em conflito
constante com os vizinhos. E qual a causa mais comum de briga
interna e externa nesse tipo de sociedade? Acertou quem disse
“mulheres”. Os dados recolhidos por antropólogos em grande parte
dos povos tradicionais ao redor do mundo, seja na África, na
Oceania ou entre os indígenas da América do Sul, mostram a
prevalência endêmica dos conflitos envolvendo o rapto de moças.
 É simples assim: os chefes mais poderosos, com maior
habilidade militar e maior número de guerreiros à sua disposição,
são quase sempre os que possuem o maior número de esposas e
concubinas. Aqui entra com força o pedaço darwinista da
argumentação de Gottschall: com mais mulheres na mão do chefão,
maior a chance de ele deixar uma família numerosa e poderosa -
exatamente o maior prêmio que a evolução pode conceder a um ser
vivo. A injustiça inerente à maneira como os mamíferos se
reproduzem permite que apenas um homem gere dezenas ou até
centenas de filhos ao longo da vida, desde que tenha mulheres
suficientes à sua disposição, enquanto suas parceiras enfrentam as
limitações impostas pelos longos tempos de gravidez e pela
menopausa.
 Mas não pense que, na sociedade homérica e em outros
bandos guerreiros tradicionais, qualquer tipo de bebê serve. Para
ganhar a disputa com grupos rivais, cada grupo precisa da máxima
quantidade possível de guerreiros – do sexo masculino, claro. O
problema é que nasce sempre mais ou menos o mesmo número de
meninos e meninas. A solução? Infanticídio. Gottschall lembra que a
morte seletiva de menininhas parece ter sido comum durante toda a
história grega (e em uma série de outras sociedades tradicionais
guerreiras). O resultado de tudo isso só pode ser classificado como
explosivo: uma falta endêmica de mulheres (por causa do
infanticídio feminino e do monopólio das esposas na mão dos
chefes) e um excesso de guerreiros jovens, loucos para “capturar”
suas próprias esposas e concubinas. A única “solução” é mais
guerra com os grupos vizinhos, o que vai tornando o ciclo de
violência cada vez pior. De novo, os paralelos antropológicos são
iluminadores: sabemos que as sociedades mais violentas, seja no
Terceiro Mundo urbano de hoje, seja no passado remoto, são
aquelas em que há um excedente de homens jovens tentando
provar seu valor e competindo por status. Assim seria o mundo
homérico, de acordo com o pesquisador.
 Todo esse quadro casa um bocado bem com a história de
vida de inúmeras mulheres – e homens – envolvidos na guerra de
Tróia, de acordo com a narrativa tradicional de Homero. Boa parte
dos chefes gregos e troianos tem como esposa ou concubina uma
ex-cativa capturada de alguma cidade inimiga. E, quando
Agamêmnon, o líder do exército grego, resolve tomar para si a
escrava preferida de Aquiles, o conflito entre os dois é tão sério que
o maior herói grego quase faz as malas e vai para casa. Na
verdade, o tema central da Ilíada é a chamada cólera de Aquiles,
causada justamente por essa desfeita imperdoável.
 É importante lembrar que fenômenos assim estão bem
documentados entre espécies de mamíferos cujos machos, por seu
tamanho e ferocidade (os equivalentes do poderio militar homérico),
conseguem controlar um grande número de fêmeas, formando
haréns. É o caso de elefantes-marinhos ou gorilas, por exemplo. O
grande diferencial homérico – e humano, se pensarmos em termos
mais gerais – é a capacidade de formar coalizões entre grandes
grupos de machos aparentados e até não-aparentados, o que pode
levar ao surgimento da guerra em larga escala.
 Nada disso significa, porém, que as mulheres gregas e
troianas se deixassem levar como meros joguetes do destino. O
exemplo mais gritante do contra-ataque feminino envolve
Clitemnestra, irmã de Helena e esposa do rei Agamêmnon.
Enquanto o monarca grego está longe de casa, ela toma como
amante outro homem e arquiteta o assassinato do marido – e da
jovem e bela princesa troiana Cassandra, que Agamêmnon tinha
transformado em sua concubina e já tinha até dado à luz um filho
dele. Helena, por sua vez, usa seus encantos de tal forma que não
apenas é poupada por Menelau, mas volta ao trono como rainha,
vivendo ao lado dele pelo resto de seus dias.
 Você deve estar lembrado, no entanto, de que a guerra de
Tróia comprovada pela arqueologia aconteceu muito antes da época
em que os gregos estavam organizados socialmente como os
ianomâmis. Será que isso quer dizer que o lado mais brutalmente
darwinista dos poemas retrata apenas a sociedade de Homero, mas
não o que aconteceu na Turquia em 1200 a.C.? Talvez não. Uma
das ideias mais debatidas pelos arqueólogos envolve a ideia de que
Tróia (bem como outros palácios brutalmente destruídos ao redor do
Mediterrâneo na mesma época) teria sido arrasada por tribos de
bárbaros, oriundas das beiradasdo mundo civilizado de então.
Nesse caso, o ataque teria sido realizado não pelos gregos dos
palácios, mas sim por tribos do norte da Grécia – o que indicaria
uma civilização mais primitiva, e mais inclinada a simplesmente
saquear e destruir a cidade asiática, levando as mulheres como
parte do butim.
 A tese de Gottschall ainda deve gerar um grau considerável
de polêmica, mas talvez seja bom prestar atenção em outra das
falas de Aquiles na Ilíada: “Passei muitas noites insones e dias
sangrentos na batalha, lutando com outros homens por suas
mulheres”.
 
Quem precisa disso?
Os animais que não vão para a cama há 100 milhões de anos
 
Confessemos o inconfessável: sexo é bom e todo mundo gosta,
mas dá um trabalho dos infernos. Considere quanto sangue e suor,
quantas lágrimas, notas de cem e faturas de cartão de crédito já
foram empregados na história do cosmos para esse fim; quantas
caudas de pavão e Ferraris, quantos vestidos decotados, sem falar
no gasto de energia intelectual, como a invenção do soneto, os
romances medievais sobre o amor cortês, o Cântico dos Cânticos. É
muita dor de cabeça. Pela lógica, apenas as coisas indispensáveis
são objeto de tamanha obsessão. Nós (e a grande maioria dos
outros animais e plantas) só seríamos tão doidos por sexo porque
não dá para sobreviver sem ele. O raciocínio é impecável. Mas no
meio do caminho tinha um bdeloide. Aliás, umas 400 espécies de
bdeloides, para ser mais exato.
Os bdeloides a que me refiro estão entre os invertebrados mais
estranhos do planeta – animais microscópicos de cabeça retrátil,
muitas vezes rastejantes, como as minhocas. Formados por um
número fixo de células, eles habitam a água doce e substratos
úmidos de todos os tipos, sendo exímios comedores de qualquer
coisa devorável e compatível com seu tamanhinho. Não existem
machos bdeloides: todos são fêmeas e produzem descendentes por
partenogênese, ou “geração virgem” (processo no qual os óvulos
iniciam o desenvolvimento embrionário sem fecundação por
espermatozoides).
Temos boas razões para acreditar que esses bichos minúsculos
abdicaram da vida sexual há cerca de 100 milhões de anos e,
mesmo assim, conseguiram colonizar uma grande variedade de
ambientes e se diversificaram, como qualquer outro grupo de
animais – coisa que, em tese, não deveria ser possível. A trajetória
evolutiva dos bdeloides indica que o sexo talvez seja menos
indispensável do que se costuma imaginar.
Entretanto, antes de entender que mágica essas criaturas estranhas
estão fazendo para se livrar da alcova, é bom colocar algumas
coisas em pratos limpos. Como dizíamos no começo deste capítulo,
os seres vivos tendem a ficar fissurados apenas e tão somente por
coisas que têm um impacto sobre sua sobrevivência e reprodução.
Dizer que adoramos doces (ou sexo!) porque “é gostoso” não
explica nada: não passa de uma tautologia, como dizer que “faz
bem porque é bom”. Nosso sistema nervoso está programado para
“traduzir” comida açucarada e/ou uma noite de amor na sensação
subjetiva de “prazer” porque os doces são fontes concentradas de
energia para o organismo e porque o sexo é o procedimento-padrão
da nossa espécie para passar genes de geração em geração. O
prazer é um incentivo – ou um suborno, se você quiser. É claro que,
em criaturas de sistema nervoso suficientemente complexo (nós
somos o exemplo extremo), pode acontecer de o suborno ficar
desacoplado de seu objetivo inicial. Somos capazes, por exemplo,
de fazer sexo insanamente – mas tomar pílula e/ou usar camisinha
em todas as ocasiões. A força primordial do impulso, no entanto, só
é tão avassaladora porque inicialmente ele era servo de uma função
biológica de primeira grandeza: no caso, a reprodução.
Mas a verdadeira questão é por que escolher o sexo como
mecanismo reprodutivo. Do ponto de vista exclusivamente
matemático, a opção preferencial pela vida romântica não faz
sentido. O sexo, considerado unicamente como meio para passar
adiante o DNA de um organismo, é decepcionante porque envolve
obrigatoriamente uma divisão desse DNA (pela metade) e a mistura
dele com o de outro organismo. Lembre-se de que 50% dos seus
genes vieram do seu pai e a outra metade, da sua mãe. Em tese,
seria muito mais negócio para cada indivíduo isolado transmitir a
carga total de seu material genético para a geração seguinte, pelo
simples mecanismo de produzir uma cópia de si mesmo. Além
disso, sempre pode acontecer de você não achar a tampa da sua
panela, por assim dizer – e, sem parceiros para ajudar, não dá para
ter reprodução sexuada.
E, no entanto, a imensa maioria dos animais, plantas e fungos, além
de um bom número de microrganismos, contraria essa lógica
aparentemente inescapável. Até as bactérias, famosas por sua
capacidade estonteante de dividirem suas células únicas em novas
“células-filhas”, aderem ocasionalmente a sessões de “sexo” não-
formalizado, trocando genes com outras bactérias, às vezes até de
outras “espécies” bacterianas. Se a comparação dessa atividade
com o que chamamos de sexo sem aspas está correta, o impulso de
trocar e misturar material genético existe até em organismos que se
multiplicam via clonagem. 
Duas ideias mais ou menos parecidas e complementares estão
entre as que buscam explicar esse paradoxo. A primeira vê a
sexualidade como uma espécie de seguro de vida contra parasitas e
ambientes em transformação. A reprodução sexual, ao misturar e
embaralhar os genes de dois indivíduos diferentes,
automaticamente cria combinações de DNA novas que podem
derrotar parasitas (que não “conhecem” a nova mistura e, portanto,
não estão equipados para vencê-la) e representar um “estoque”
importante de novas soluções para alterações ambientais. Isso é
muito importante até no seio de uma única família. O corpo de uma
mãe não tem nada de imaculado: ele abriga invariavelmente uma
multidão de espécies de microrganismos, alguns benignos, como a
nossa flora intestinal, outros potencial ou completamente malignos.
Durante a gestação e o parto, tudo o que esses bárbaros
microscópicos querem é a oportunidade de saltar para o bebê, cujo
sistema de defesa biológico ainda não está totalmente formado. O
fato de o filhote carregar traços genéticos que, ao menos
parcialmente, soam pouco familiares ao parasita é uma proteção
considerável contra uma morte prematura por infecção.
A segunda ideia propõe que o sexo ajuda no “controle de qualidade”
genético de uma população. Em criaturas assexuadas, mudanças
no conjunto do DNA só ocorrem por mutações – alterações
químicas aleatórias nas “letras” químicas A, T, C e G que compõem
a molécula da hereditariedade. Ora, a imensa maioria das mutações
tende a ser nociva. De geração a geração, o acúmulo de alterações
“do mal” poderia colocar os organismos celibatários em perigo. Mas,
para produzir as células sexuais, as partes equivalentes do DNA
que você recebeu do seu pai e da sua mãe são colocadas lado a
lado e se recombinam, trocando pedaços de cromossomos (as
estruturas enoveladas que abrigam o material genético). Com isso,
mutações “ruins” num genitor podem ser “consertadas” pelo material
genético do outro genitor. Mal comparando, é como pegar dois
álbuns de figurinhas completos e idênticos, um dos quais possui
uma figurinha rasgada: retira-se a figurinha intacta de um e ela é
colocada no lugar da que estava adulterada.
Depois de todo esse background, já podemos voltar aos nossos
bdeloides, os mestres da castidade evolutiva. Se tudo o que foi dito
nos parágrafos acima estiver correto, os bichos seriam um prato
cheio para parasitas famintos e mudanças ambientais; de quebra,
seu genoma (o conjunto de seu DNA) deveria estar caindo aos
pedaços de tanta mutação deletéria. No entanto, lá estão eles,
vivos, bem e bastante diversificados, rastejando sobre musgos e
liquens e nadando em poças d’água e córregos. Quando falta água,
eles entram numa espécie de animação suspensa conhecida como
anidrobiose, até as condições melhorarem.
O segredo dos bdeloides celibatários parece estar em
características específicas do genoma das criaturas.O pesquisador
americano David Mark Welch, do Laboratório de Biologia Marinha
do Instituto Oceanográfico Woods Hole, mostrou que o DNA dos
bichos é tetraploide – diferentemente de nós, que temos duas
cópias de cada cromossomo, eles têm quatro. Tudo indica que, no
passado remoto, o conjunto duplo normal de cromossomos sofreu
uma reduplicação, transformando os bdeloides em tetraploides.
Ora, situações de extrema secura, como a anidrobiose, deveriam
causar grandes quantidades de dano ao DNA desses animais, mas
não é o que acontece. Experimentos em que esses bichos foram
bombardeados com radiação – outra fonte comum de erros no
material genético – revelaram que eles aguentam mais
radioatividade do que qualquer outro animal conhecido. O único jeito
de explicar esse conjunto bizarro de características é imaginar que
os cromossomos quadruplicados estão servindo como base para
reconstruir o genoma bdeloide. Com várias cópias de cada gene à
disposição, os animais conseguem corrigir rapidamente os erros que
aparecem em uma, duas ou até três versões de um gene.
Ou seja, em certo sentido, pode-se dizer que os bdeloides puderam
abdicar da sexualidade porque internalizaram os benefícios
evolutivos do sexo. Em vez de buscar genes bons em outro corpo,
eles corrigem os problemas nos seus genes internamente. Funciona
um bocado bem para eles, ao que tudo indica. Eu sei o que você
deve estar pensando: eles não sabem o que estão perdendo.
 
Pais de multidões
Quer ter muitos descendentes? Seja um ditador sanguinário
 
Um amigo meu, cansado de suas oportunidades sexuais limitadas,
costumava brincar que todas as mulheres do mundo deviam estar
na mão de algum macho alfa, esse ser mítico (bem, não tão mítico;
ele existe, mas só em algumas espécies animais) que monopoliza
as fêmeas. “Cadê esse macho alfa? Acha esse desgraçado que eu
vou encher ele de porrada”, dizia. Mais fácil falar do que fazer,
lógico. A julgar pelo que a genética anda descobrindo, o macho alfa
clássico não é exatamente um sujeito bonzinho, que levaria umas
bolachas sem reclamar. Na verdade, está mais para um Gêngis
Khan – literalmente, aliás.
A conclusão deriva das pistas deixadas pelos homens que, ao
longo da história, foram os mais bem-sucedidos sexualmente,
intrépido leitor. Usando uma mistura fascinante de dados genéticos
e históricos, os cientistas estão começando a encontrar sinais de
que uns poucos machos alfa da nossa espécie conseguiram deixar
muito mais descendentes do que o mortal comum poderia sonhar.
Gêngis Khan é um desses pais de multidões – e, a exemplo dele, as
demais figuras da lista não são lá muito agradáveis. Ao que parece,
o poderio militar e econômico foi a principal ferramenta para
monopolizar mulheres – e, portanto, deixar muitos descendentes –
ao longo da história.
A característica genética mais marcante dos seres humanos do
sexo masculino ajuda muito os cientistas na hora de fazer essas
estimativas. (Grosso modo, o que vou dizer também se aplica a
todos os mamíferos.) Trata-se do cromossomo Y, um dos dois
cromossomos ligados à definição do sexo na nossa espécie. Todos
temos 23 pares de cromossomos; como já vimos, um membro do
par é legado pelo pai e o outro, pela mãe. Mulheres normais têm
dois cromossomos X; homens normais, por sua vez, têm um X e um
Y. A vantagem desse fato para a genética histórica é que o Y só é
transmitido de pai para filho, numa sucessão ininterrupta ao longo
de milhões de anos. E o Y não mistura (ou “recombina”, para usar o
termo técnico) seu DNA com seu parceiro, o X. Ou seja, trata-se de
um registro praticamente puro da linhagem paterna de um homem.
Apenas as mutações ao acaso no material genético fazem com que
um Y seja diferente do outro. Tais mutações são passadas para os
descendentes masculinos de qualquer macho, o que ajuda a
rastreá-los com precisão nas gerações seguintes.
Em tese, esses poucos fatos simples nos permitem reconstruir a
linhagem do Y de todos os homens vivos hoje a um único “Adão”
primitivo – um macho humano do passado distante cujo
cromossomo deu origem a todos os existentes na população de
hoje. As estimativas para a idade desse Adão variam – uma das
mais recentes fala em apenas 60 mil anos –, mas isso não significa
que o “primeiro homem” viveu nessa época, ou que só ele existia
então. É preciso entender que as linhagens do Y se perdem
naturalmente ao longo do tempo. Basta pensar num sujeito que
tenha dez filhas mulheres – e nenhum menino. A imensa maioria de
seus genes estará preservada para a posteridade, mas seu Y terá
desaparecido. Hoje, quando os pesquisadores comparam o DNA de
todos os homens para remontar ao Y ancestral, seria como se o pai
das dez garotas nunca tivesse existido – e isso influencia na
estimativa de quando viveu o nosso “Adão do Y”. De qualquer
maneira, o mesmo método também serve para estimar a origem de
versões mais recentes do Y. Leva-se em conta a taxa mais provável
de mutações ao longo do tempo, as diferenças e semelhanças entre
o DNA dos cromossomos, o momento em que teria ocorrido a
separação entre a linhagem humana e a dos nossos primos mais
próximos, os chimpanzés, e voilà – é possível estimar uma data de
origem comum, obviamente com uma margem de erro considerável.
Mais do que o Adão ancestral, no entanto, está ficando claro que
alguns homens tiveram sucesso em multiplicar exponencialmente a
sua própria versão do cromossomo Y no mundo. Você
provavelmente nunca ouviu falar de Niall dos Nove Reféns, a não
ser que tenha nascido na Irlanda. Mas saiba que todo santo
irlandês, britânico ou descendente de ambos com sobrenomes
como O’Neill, O’Donnell e O'Reilly, entre outros, é tradicionalmente
considerado um rebento da linhagem do velho Niall, que viveu no
século V da Era Cristã. (O sobrenome O’Neill é simplesmente a
forma modernizada de Uí Niall, ou “descendente de Niall”, em
gaélico.) Niall era um típico chefe guerreiro celta, passando suas
horas de lazer em expedições para capturar escravos ou extorquir
chefes rivais (daí o apelido; os “reféns” eram usados para
chantagear os inimigos). Pesquisadores do Trinity College, de
Dublin, tiveram a ideia de verificar se essa montanha de
sobrenomes realmente tem relação com a descendência deixada
pelo senhor da guerra.
Não deu outra. No noroeste da Irlanda, a base tradicional dos Uí
Niall, nada menos que um quinto dos homens carrega uma
assinatura genética em seu Y que pode ser remontada com
razoável grau de precisão até a época de Niall. No oeste e no centro
da Escócia, a proporção ultrapassa os 15%. E 2% dos homens
nova-iorquinos – muitos dos quais descendentes de escoceses e
irlandeses – têm o Y que parece ter pertencido a Niall. Os
pesquisadores estimam que até 3 milhões de homens carreguem
essa marca genética.
Um caso parecido foi identificado pela equipe de Chris Tyler-Smith,
do Instituto Sanger (Reino Unido), entre homens do nordeste da
China e da Mongólia. O normal na maioria das populações
humanas, como Tyler-Smith me explicou certa vez, é que todo
homem tenha uma “assinatura” quase única em seu cromossomo Y
– o que mostra que ele descende de ancestrais masculinos que
continuaram deixando descendentes devagar e sempre. Mas, nas
amostras da região, ele e seus colegas acharam uma forma do Y
com frequência bem maior que a normal, chegando a 5% da
população em algumas regiões.
Ao estimar a origem desse Y – há cerca de 500 anos, no nordeste
da China –, Tyler-Smith e companhia acreditam ter achado uma
correlação com Giocangga, o fundador da dinastia Qing, a dos
últimos imperadores da China. Tanto no caso de Niall quanto no de
Giocangga, a tradição de coabitar com inúmeras concubinas e os
fartos recursos destinados aos filhos (bastardos ou não) dos
governantes e seus familiares parecem ser suficientes para explicar
esse sucesso reprodutivo desproporcional. No caso de Giocangga,
enquanto a média dos homens de seu tempo teria 20 descendentes
masculinos vivos hoje, os orientais que carregam seu Y são cerca
de 1,5 milhão.
Ao que tudo indica, porém, ninguém ganha de Gêngis Khan.
Usando os mesmos métodos,e com uma grande amostragem de
homens (mais de 2.000 indivíduos de toda a Ásia, desde o Cáucaso
até o Japão), Chris Tyler-Smith identificou o que chama de
“aglomerado-estrela” – um grupo de variantes do Y muito próximas
entre si, correspondente a cerca de 8% da amostragem. Origem
estimada: cerca de 1.000 anos atrás, na Mongólia. E o único grupo
do Paquistão no qual o aglomerado-estrela aparece é o dos hazaras
– que se consideram descendentes do imperador bárbaro da Idade
Média. Ao todo, Tyler-Smith calcula que 12 milhões de homens
vivos hoje possam remontar seu Y a Gêngis Khan, ou Temujin
(nome de “batismo” do líder guerreiro). Para o pesquisador britânico,
a época e o local de origem, bem como as práticas do império
mongol, apontam fortemente para Gêngis e sua família. O
cromossomo nem precisa ter se originado precisamente com ele:
pode ter surgido com seu avô ou outro ancestral próximo, sendo
passado adiante sem muitas modificações desde então, que é o que
normalmente acontece – se usássemos unicamente o Y como forma
de identificação genética, o mais provável é que um homem
qualquer pareceria indistinguível de seus irmãos ou de seu tio
paterno. 
Gêngis e seus descendentes eram adeptos da poligamia e
obviamente não gostavam de usar camisinha, mas também
estupravam sistematicamente as mulheres das populações
conquistadas. Como os parentes do guerreiro pelo lado masculino
(primos, tios etc.) também foram beneficiados e carregavam um Y
provavelmente idêntico ao dele, o efeito foi multiplicado, e o mesmo
vale para os descendentes do Khan, muitos dos quais também
foram imperadores. “Eu diria que Gêngis Khan é o exemplo mais
extremo de algo que aconteceu outras vezes. Os homens têm uma
tendência através da história a agir dessa forma quando as
circunstâncias o permitem”, disse-me Tyler-Smith.
O curioso é que alguns dos grandes conquistadores da Antiguidade
tirariam notas pífias no “teste Gêngis Khan”. Dois exemplos que
viriam à cabeça de qualquer historiador são Alexandre, o Grande e
Júlio César – nenhum dos dois deixou descendentes masculinos.
(Na verdade, o filho de Alexandre até sobreviveu ao pai, mas
acabou sendo assassinado por um dos generais do rei macedônio.)
Cá entre nós, eu adoraria ver a técnica aplicada aos primeiros
colonizadores do Brasil. Afinal, sujeitos como João Ramalho, o
português que se aliou aos tupiniquins e ajudou a fundar São Paulo,
viraram polígamos assim que puseram os pés aqui e tiveram uma
multidão de filhos com suas esposas indígenas. Também
praticavam, em miniatura, o que Gêngis Khan fazia com suas
populações conquistadas: a transformação de cativas de guerra em
concubinas.
O que nenhum desses superpais sabia, no entanto, é que ter tantos
rebentos não era nenhuma garantia de imortalidade, como alguns
deles acreditavam. Fora o cromossomo Y, um pedacinho minúsculo
do material genético humano, temos a certeza matemática de que
pouquíssimos genes desses sujeitos tão prolíficos continuam
caminhando juntos. Isso porque, com a divisão do DNA pela metade
antes da formação dos espermatozoides e dos óvulos, de modo que
só 50% dos genes de qualquer pessoa derivam de seu pai, a
herança genética vai sendo cada vez mais fracionada de filho para
neto e de neto para bisneto. Tanto que, na quinta geração, os
descendentes dos supermachos da história tinham só pouco mais
de 3% de seu DNA. Portanto, se um dia você descobrir que seu Y
cai no aglomerado-estrela, não se preocupe: há pouco perigo de
você sair por aí queimando vilarejos e agarrando donzelas.
 
Feto malvado, mamãe mão-de-vaca
Embriões e seus truques sujos para extorquir as grávidas
 
Engravidar causa enjoo, desejos gastronômicos bizarros e (para as
mamães mais vaidosas) um certo desalinho na silhueta. Nenhuma
controvérsia aí. Desconfio, no entanto, que quase nenhuma
gestante pense nos seus meses de gravidez como uma queda-de-
braço ou uma batalha: um cabo-de-guerra no qual ela ocupa uma
das pontas e o feto crescendo em seu ventre, a outra. Ao contrário
do que milênios de prosa e verso sobre as belezas da maternidade
dizem, os interesses da mamãe e do bebê estariam longe de ser
idênticos, segundo essa linha de pensamento.
 A ideia pode parecer mera intriga de quem ficou para titia,
mas os fatos mais básicos da biologia dos mamíferos, se
investigados com o devido cuidado, sugerem que essa é a mais
pura verdade. Casando uma série de dados moleculares,
fisiológicos e comportamentais, os cientistas estão usando o duelo
entre fetos e grávidas para explicar estranhas doenças e até para
entender por que os animais clonados raramente são saudáveis. O
conceito-chave para entender essa bagunça toda tem um nome um
tanto desajeitado: estampagem genômica (do inglês genomic
imprinting).
 O que é “estampado”, ou seja, leva uma espécie de
“carimbo” molecular, são os pedaços de DNA que todos carregamos
no núcleo de nossas células. Dá para pensar nesses carimbos como
uma espécie de certificado de procedência – materna ou paterna, já
que, como vimos, nosso material genético tem sua origem dividida
em meio a meio para cada genitor.
 Existem razões muito boas para acreditar que tal origem
mista é uma receita para o conflito. Afinal, tanto machos quanto
fêmeas “querem” (de forma quase sempre inconsciente, mesmo
entre seres humanos) aumentar ao máximo as chances de transmitir
seus genes para as futuras gerações. Só que cada lado da equação
está usando, para isso, uma estratégia fundamentalmente diferente
da do outro. Qualquer fêmea de mamíferos só consegue ter poucos
filhotes por gestação, e por isso investe seu tempo e energia em
cuidar bem deles dentro e fora do útero, para que todos tenham
boas chances de sobreviver. Já o macho é capaz de engravidar um
enorme número de fêmeas diferentes, se tiver sorte, mas não entra
com as energias de seu próprio organismo para garantir que a
filharada chegue à vida adulta. Aliás, é comum que não ajude nem
na criação dos bebês: nesse ponto, como em outros, a nossa
espécie é a exceção à regra.
 Ora, conforme as análises do funcionamento dos genes
começaram a se sofisticar, os biólogos moleculares começaram a
perceber um fenômeno esquisito. Uma proporção pequena (menos
de 1%), mas significativa dos genes de mamíferos parecia sofrer um
estranho “desligamento” seletivo: em alguns casos, era a versão
paterna de um trecho de DNA que era desativada; em outra, a
versão materna. Esse é o processo que ficou conhecido como
estampagem genômica. Os “carimbos” no DNA (na verdade
pequenas moléculas orgânicas, como o chamado grupo metil,
formado por um átomo de carbono acompanhado de alguns de
hidrogênio) ligam-se a determinado trecho de material genético num
dos cromossomos e impedem que a célula use aquela informação
como manual de instruções para fabricar proteínas. É como se o
carimbo levasse os seguintes dizeres: “Função materna do gene.
Não usar. Favor utilizar a versão paterna”.
 À primeira vista, o fato parecia simples burrice biológica.
Como vimos ao estudar o estranho caso dos bdeloides e a função
evolutiva do sexo, acredita-se que uma das vantagens de
possuirmos duas cópias de cada gene é parecida com a precaução
de guardar cópias extras de um arquivo ou documento importante.
Se o arquivo original for destruído (ou seja, se uma das cópias do
gene sofrer uma alteração que o impeça de funcionar direito), a
cópia que sobrou ainda pode dar conta do recado. Por que, afinal,
jogar fora logo de cara esse seguro de vida molecular?
 A coisa começa a soar menos maluca se imaginarmos,
mais uma vez, que os genes paternos e os genes maternos podem
ter “planos” muito diferentes para o pequeno ser que virá, seguindo
o exemplo dos interesses diferenciados dos indivíduos de cada
sexo. (Falamos de “planos” apenas no sentido de influências
biomoleculares inconscientes que, no futuro, aumentarão as
chances de que aquele tipo de gene se multiplique. É lógico que
pedaços de DNA não fazem nada de caso pensado – são meros
amontoados de carbono, hidrogênioe nitrogênio.) É bastante lógico
supor, por exemplo, que uma mãe grávida tem a necessidade de
contrabalançar a nutrição que dará a seus fetos com a própria
saúde e com suas chances futuras de ter mais filhos. Afinal,
engravidar de novo mais tarde é seu único caminho para espalhar
ainda mais seus genes. Papai, por outro lado, pode muito bem dizer
“eu não tenho nada com isso”. Seus interesses, nesse caso,
coincidem em grande parte com os do feto. Enquanto está tentando
inseminar outras fêmeas, ou mesmo que esteja só esperando a
próxima chance de gerar filhotes com sua parceira fixa, é importante
que seu filhão seja capaz de sugar o máximo possível de recursos
da mãe, de forma a ter boas chances de virar um adulto saudável e
fértil. Ou seja: nos casos de estampagem genômica, o esperado é
que os genes paternos “desligados” sejam os que induzem maior
retirada de nutrientes do organismo da grávida, enquanto os genes
maternos “desativados” correspondam a uma diminuição do envio
de recursos para os bebês. Isso, repito, é o esperado. Em tal
cenário, o zero a zero acaba deixando tudo mais ou menos em
equilíbrio. Será que ele se confirma na vida real?
 Por enquanto, tudo indica que sim. Um exemplo importante
tem a ver com a formação da placenta. Acontece que, ao longo da
gravidez, o transporte de nutrientes para o embrião não acontece só
graças à bondade e ao carinho da mamãe: a placenta do feto lança
projeções que invadem os tecidos da genitora e arrancam de lá os
recursos necessários. Acontece que uma das doenças mais comuns
ligadas a uma gestação, a pré-eclâmpsia (uma forma perigosa de
pressão alta), parece estar ligada a uma substância que os fetos
jogam na corrente sanguínea materna. Essa proteína impede que a
mãe conserte pequenos danos nos seus vasos sanguíneos. Com
isso, sua pressão arterial tende a aumentar, o que leva a aumentar a
quantidade de sangue que chega até o feto via placenta. Quem
cunhou o ditado caipira “bater na mãe por causa de mistura”
(“mistura” em caipirês quer dizer o prato principal da refeição)
parece ter profetizado essa estratégia chantagista dos bebês.
 Nesse caso em particular, a relação exata com a
estampagem genômica ainda precisa ser elucidada, mas ela já ficou
clara no caso de dois genes, o Igf2 e o Igf2r. Os nomes parecidos
não foram dados por acaso: na verdade, um pode ser visto como o
ataque e o outro, como o contra-ataque. Basta dizer que o Igf2
estimula o crescimento rápido dos fetos. Em geral, é a cópia do pai
que está “ligada” nos embriões. Se ela for desativada, filhotes de
camundongo nascem com 40% menos peso. Já o Igf2r funciona
como inibidor do Igf2. Nesse caso, ocorre o contrário: a cópia
paterna fica sempre desligada, para evitar filhotes muito pequenos.
Se a cópia materna for desativada, parece que os limites ao
crescimento fetal vão para o espaço, e os bebês-camundongos
nascem com 125% mais peso.
 Outros estudos confirmaram um duelo parecido entre dois
genes ligados ao desejo de amamentação dos filhotes muito
pequenos. E mais alguns trabalhos sugerem que também há uma
variação na severidade da estampagem genômica dependendo do
grau de monogamia da espécie: se o casal for fiel, terá seus filhos
sempre como uma unidade e, portanto, terá interesses genéticos
parecidos na gestação e na criação deles, o que levaria a menos
conflito ocasionado pela estampagem. Existem mesmo indícios de
que os problemas de saúde dos animais clonados – muitos nascem
com tamanho acima do normal ou matam a mãe de aluguel durante
a gravidez – decorreriam de erros de estampagem genômica. Não é
difícil entender o porquê. Em vez da junção entre óvulo e
espermatozoide que caracteriza a formação de qualquer embrião,
na clonagem o DNA de uma célula qualquer, já contendo todo o
material genético do futuro organismo, é enfiado à força (com
incentivos químicos e, às vezes, choques elétricos) num óvulo cujo
núcleo foi removido previamente. Sem a fecundação normal, o
padrão típico de ativação e desligamento dos genes maternos e
paternos não seria capaz de se instalar, e teríamos então fetos tão
"gulosos" que acabariam morrendo engasgados, por assim dizer,
sugando mais recursos maternos do que deveriam consumir para o
seu próprio bem.
 Em conjunto, essas descobertas traçam um retrato épico
de golpes e contragolpes, num combate sem fim pelo sucesso
reprodutivo e, em última instância, evolutivo. Definitivamente,
“guerra dos sexos” e “conflito de gerações” não foram inventados
pelo bicho homem.
 
Arco-íris
Como a homossexualidade pode ser consequência do sucesso
reprodutivo
 
A ideia pode ser deprimente ou estimulante, dependendo de como
você a encara. Mas nenhuma disposição de espírito, negativa ou
positiva, muda o fato inescapável de que, do ponto de vista
biológico, nossa individualidade é um estado temporário, para não
dizer ilusório. As pessoas gostam de imaginar que seus
descendentes, daqui a 200 anos ou 500 anos, vão carregar uma
fração significativa e reconhecível do que elas são hoje, mas nosso
método de reprodução – aquela coisa chata envolvendo sexo, sabe
– pressupõe uma divisão de DNA pela metade a cada geração. De
metade em metade, após seis gerações, a proporção de genes
legados por uma pessoa a qualquer de seus descendentes fica na
casa de 1%. É muito pouco. Os conquistadores da cepa de Gêngis
Khan, tão bem-sucedidos, como vimos, em legar seu cromossomo Y
a gerações e gerações de homens, talvez ficassem desanimados
com a futilidade do esforço: ao contrário do que dizia a sabedoria
popular de sua época, a prole numerosa confere uma forma
limitadíssima de imortalidade. (Não que os machos alfa fossem
parar de agir como garanhões por causa de tal fato; é o tipo da
coisa que tem benefícios mais, digamos, imediatos.) Pois bem: e o
que a nossa impermanência biológica tem a ver com o arco-íris do
título deste capítulo? Talvez muita coisa.
 O leitor mais perceptivo provavelmente já intuiu que estou
me referindo à homossexualidade, uma característica um bocado
comum dos vertebrados terrestres que, à primeira vista, parece ser
uma violação flagrante da seleção natural, a regra número um da
vida segundo a biologia evolutiva. Ninguém conseguiu refutar até
hoje a ideia básica de que os seres vivos sempre tendem a
maximizar suas oportunidades reprodutivas – ou, para ser menos
pedante, tendem a produzir o maior número possível de
descendentes viáveis, se todos os outros fatores forem iguais. Com
exceção de um ou outro celibatário por vocação, a lógica aqui é
implacável: os recursos do mundo não são infinitos, ninguém é
imortal, e os que não se dedicam com afinco a gerar prole viável
são, lenta e seguramente, eliminados da árvore da vida.
 Lógica implacável à parte, alguém pode me explicar porque
porções pequenas, mas significativas das populações de aves,
mamíferos e, claro, seres humanos preferem dedicar suas energias
sexuais, no todo ou em parte, a uma prática, digamos, “infrutífera”?
De um lado, é verdade que a presença da homossexualidade é
minoritária, ainda que persistente (em torno de 10% ou pouco
menos, de acordo com os dados mais confiáveis que temos sobre
populações humanas modernas). De outro, a proporção é grande o
suficiente para que ela tenha peso sobre a seleção natural. Imagine
um subgrupo da população de qualquer espécie que seja
exclusivamente heterossexual. Em tese, assumindo que a atração
pelo mesmo sexo tem um componente biológico, esse subgrupo
exclusivamente “espada” (uso a palavra por analogia com o inglês
straight, que é normalmente o antônimo de gay; nenhum juízo de
valor aí) deveria ter mais sucesso reprodutivo e, mais cedo ou mais
tarde, fazer com que a proporção dos homossexuais da população
como um todo decrescesse até sumir. Se existe uma coisa que
deveria ser altamente “herdável”, ou seja, sujeita a influências
genéticas e transmissível de geração em geração, deveria ser a
atração pelo sexo oposto; afinal, eis aí a característica por
excelência a ser favorecida pela seleção natural.Já sabemos, porém, que a eliminação progressiva do
componente homossexual da população não é o que acontece. Os
gays, ou ao menos o que classificaríamos como comportamento gay
pelos padrões humanos, simplesmente não desaparecem. É claro
que podemos propor explicações “culturais”, ou meramente
comportamentais, sem uma faceta genética, para elucidar isso. A
prática homossexual pode ser apenas “recreativa” entre animais
e/ou humanos, ou funcionar de tal forma que ela afeta a reprodução
de forma apenas marginal. Suponha, por exemplo, que todas as
sociedades do mundo teriam preconceito zero em relação a seus
homossexuais, desde que todos cumprissem a obrigação cívica de
ter ao menos um filho antes de se casar com um companheiro do
mesmo sexo. Fim do problema. (Meu exemplo favorito da vida real é
mais ou menos desse tipo: se o fato de homens fazerem sexo com
homens rotineiramente impedisse a produção de posteridade, as
duas linhagens reais de Esparta, mais famoso viveiro de pederastas
da Grécia Antiga, teriam durado 50 anos, e não 800 anos...)
 Não estou negando que esses fatores culturais e sociais
sejam importantes, ou até cruciais, em alguns casos. A seleção
natural, por poderosa que seja, não é a monarca absoluta que
algumas visões mais redutoras da evolução nos querem fazer crer.
Mas sempre estamos em solo mais seguro quando conseguimos
incorporá-la à compreensão de qualquer fenômeno do mundo vivo.
Um dado importante é que provavelmente há tanto um componente
genético quanto outro ambiental por trás do comportamento
homossexual. Se você tem um irmão gêmeo idêntico (para todos os
efeitos, seu clone, com DNA 100% igual ao seu), suas chances de
também ser homossexual são de 50% - bem mais do que o
esperado pelo acaso, mas metade do que “deveria” ser caso a
atração pelo mesmo sexo fosse uma característica determinada
exclusivamente pelos genes. Indícios neurológicos e
comportamentais também apontam um componente forte da
biologia na definição da homossexualidade. Imagens funcionais do
cérebro de homens e mulheres homossexuais sugerem que ele
“imita” a anatomia e a fisiologia do cérebro do sexo oposto,
ativando-se da mesma maneira que os tecidos neuronais de uma
mulher ou homem heterossexual (respectivamente) diante de
estímulos que despertam a libido.
 Mesmo assim, essas conclusões um tanto genéricas são
insatisfatórias por não irem à raiz da questão. Outros modelos,
como o do chamado ambiente uterino – de forma muito resumida,
os homossexuais sofreriam uma ação diferenciada de hormônios
sexuais ainda no útero da mãe, desencadeando mudanças que
conduzem à sua orientação singular – continuam a não explicar
muito bem a estranha estabilidade do comportamento sexual em
termos populacionais. Quebrar esse impasse é o objetivo do
trabalho intrigante, embora ainda preliminar, do italiano Andrea
Camperio Ciani, da Universidade de Pádua. A hipótese de trabalho
de Ciani é simples: se a seleção natural não podou a
homossexualidade, pode ser que os componentes genéticos por
trás dela tragam algum tipo de vantagem reprodutiva, por mais
paradoxal que isso soe.
 E é aqui que voltamos à ideia apresentada no começo: a
vantagem não precisa ser um favorecimento da reprodução do
próprio homossexual (aliás, por definição, se ele for exclusivamente
homossexual, não vai se reproduzir). Ela pode representar apenas
um favorecimento dos genes ligados à atração gay, cujas cópias
estariam presentes não apenas no DNA dos homossexuais, mas
também no de seus parentes próximos que são héteros. Como, em
última instância, são os genes que acabam funcionando como
unidade de “longo prazo” da seleção natural e da evolução, eles é
que ganham ou perdem. A existência temporária de homossexuais
que não conseguem se reproduzir seria, desse ponto de vista,
apenas um efeito colateral de uma possível estratégia reprodutiva
bem-sucedida de longo prazo.
 OK, talvez pareça uma maluquice. Mas há maneiras de
testar isso, e foi o que Ciani e seus colegas fizeram. Quer um
exemplo? As mães de homossexuais masculinos, e as tias
maternas (mas não as tias paternas) são mais férteis que a média
das mulheres. Um estudo recente, sob a batuta de Ciani e
companhia, mostrou que essencialmente a mesma afirmação vale
para homens bissexuais. Os pesquisadores chegaram a criar uma
simulação de computador, usando genes teóricos espalhados pelo
DNA humano, para tentar estimar que fórmula genética poderia dar
origem a essa situação paradoxal. Por enquanto, o mais provável
parece ser a influência de dois ou mais genes para a manifestação
da homossexualidade – e um deles estaria localizado no
cromossomo X, precisamente a fatia de nosso DNA que todos nós,
homens, herdamos de nossas mães. A contribuição materna é
líquida e certa no caso do X porque todos os humanos do sexo
masculino possuem um cromossomo X e Y, como talvez você se
lembre; um homem que herdasse outro X do pai seria... bem, uma
mulher, não um homem.
 É claro que o impacto preciso de genes teóricos é um
bocado difícil de avaliar. Dadas as evidências disponíveis, porém, os
cientistas italianos sugerem que o(s) gene(s) gay(s) não promovem
diretamente a fertilidade, mas o que chamam de
hiperheterossexualidade - ou seja, as mães (e tias) de homens
homossexuais sentir-se-iam mais atraídas pelo sexo oposto do que
a média das mulheres, e, portanto, tenderiam a ter mais filhos. A
contrapartida irônica dessa hiperheterossexualidade num corpo
feminino seria precisamente a homossexualidade, ou a
bissexualidade, num corpo masculino. De novo, o importante aqui é
considerar que genes são entidades evolutivas de longa duração,
que viajam por corpos, sexos e gerações de forma um bocado
fluida. Desde que o resultado líquido de sua ação seja multiplicador,
aumentando as chances de que mais cópias deles circulem pelo
material genético de uma espécie, os genes podem se dar ao luxo
de perder uma batalha (a não-reprodução de gays convictos) para
ganhar a guerra (os muitos filhos e filhas que as mães, tias, primas
e sobrinhas deles trarão ao mundo). É difícil achar uma fresta nessa
armadura lógica.
 Nem é preciso dizer (mas digo assim mesmo) que é muito,
muito cedo mesmo para declarar que se trata de um caso
encerrado, quanto mais para afirmar o que tudo isso significa. Mas o
fato de que a existência de homossexuais masculinos possa ter uma
relação estreita com o sucesso reprodutivo – que, para todos os
efeitos, eles não possam ser considerados “infrutíferos”, mas sejam,
ao contrário, o resultado do aumento líquido da fertilidade – deve
dar o que pensar a muita gente.
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
Mentes
Da inteligência humana e de outras inteligências
 
Mania de personificação
Como surgiu nossa tendência a tratar objetos como gente
 
A vida a dois, principalmente quando ela está começando, tem
umas coisas engraçadas. Numa noite gelada de agosto, por
exemplo, cheguei tarde do trabalho e me dirigi ao nosso quarto de
casal. Ainda no escuro, cocei a cabeça ao ver uma figura pequenina
embrulhada num cobertor idem, em cima da cama. Como a gente
(ainda) não tem filhos, aquilo era no mínimo esquisito. Apertei o
interruptor e desfiz o mistério: tratava-se de ninguém menos que o
famoso Garfield, em versão pelúcia. Para explicar o fato, minha
esposa saiu-se com esta: “É que se eu não cobri-lo ele vai sentir frio
a noite inteira”.
 Havia mais por trás desse enigma. Descobri que, noite
após noite, minha consorte repetia o ritual com todos os seus
bichinhos de pelúcia (que incluem também um golfinho e um
orangotango de Bornéu): embrulhava os ditos cujos em um cobertor
e lhes dava um beijo de boa-noite. Como é que se explica uma
coisa dessas? Uma mulher adulta, afinal de contas, deveria saber
que pedaços de pano e plástico não sentem frio nem dormem
melhor depois de ganhar um beijinho.
 Para ser justo, a minha surpresa só pode ter sido o
resultado de uma cegueira temporária. Poder-se-ia muito bem
argumentar que comportamentosdesse tipo são a regra, e não a
exceção, entre os seres humanos como os conhecemos.
 Não acredita, hein? Pois tente se lembrar das vezes em
que você despejou uma enxurrada de palavrões em cima de uma
TV ou de um carro “rebeldes”, que não funcionam. Ou de
expressões como “sol inclemente”, “vento calmo”, “árvore
acolhedora”. Ou, só para voltarmos ao nosso ponto de partida, o
que faz uma criança chamar uma trouxinha de pelúcia de “golfinho”
ou “girafa” com tanta convicção, quando sabemos que golfinhos e
girafas de verdade guardam só uma semelhança remota e
metafórica com o objeto em questão?
 O fato é irrefutável: nossa mente gosta de misturar as
estações, de fundir o social e o natural, o vivo e o inanimado, o real
e o imaginário. E o engraçado é que, aparentemente, nós também
temos uma capacidade inata muito afiada de discernir entre os
domínios, quando nos convém. Não é que as pessoas não saibam a
diferença entre o mundo real e o mundo que só existe na cabeça
delas. Talvez seja justamente o contrário: é o faro para essas
diferenças que serve de combustível para os voos mais desvairados
da nossa imaginação. Correndo o inevitável risco de simplificar
demais as coisas, eu ousaria dizer que as pessoas mais inteligentes
e criativas são justamente as capazes de tomar partido dessas duas
propriedades da mente: o discernimento entre domínios do mundo e
a capacidade de ver relações até então impensáveis entre eles – o
que a gente chamaria de analogia ou metáfora por excelência.
 Acontece que existem indicações intrigantes de que essa
nossa compulsão por metáforas – vamos chamá-la de fluidez
cognitiva, como faz o arqueólogo britânico Steven Mithen – foi
fundamental para que nos tornássemos os senhores da Terra.
Temos, inclusive, boa probabilidade de datar o aparecimento dessa
faculdade – com aquele bom, velho e inevitável problema da
margem de erro: certamente não antes de 80 mil anos atrás, e não
depois de 35 mil anos atrás. Já explicou.
 Até uns 100 mil anos antes do presente, embora a Terra já
estivesse povoada por criaturas com capacidade cerebral e
estrutura corporal virtualmente idênticas às nossas, o
comportamento desses ancestrais (entre eles os neandertais e os
primeiros Homo sapiens) não tinha quase nada a ver com o nosso.
Não há sinal de arte, adornos corporais, túmulos para os mortos ou
qualquer coisa que sugerisse uma capacidade de pensar por
símbolos. (Na verdade, é melhor você colocar um asterisco mental
ao lado da palavra “túmulos” acima. Décadas atrás, muitos
pesquisadores davam como certo o hábito de enterrar os mortos
entre os neandertais. O problema é que a evidência é inconclusiva –
as camadas nos sítios arqueológicos são um tanto estranhas, e há
poucos sinais de oferendas aos mortos nesses “túmulos”
neandertais. A maior parte das pessoas hoje acha que não se
tratam de enterros, afinal. Vamos em frente.)
 Além da pobreza simbólica dos ancestrais da humanidade,
no período anterior a 100 mil anos atrás também não há indícios de
inovação tecnológica de qualquer espécie, muito menos de
diferenças significativas entre estilos regionais de fabricar
ferramentas ou outros objetos. A mesma série chatíssima e
interminável de machados de pedra, bem-feitos, mas
estereotipados, estende-se do sul da África ao Oriente Médio e à
Península Ibérica. E, falando em pedra, essa é, ao lado da madeira,
a única matéria-prima que ocorria aos nossos ancestrais utilizar.
Chifre, osso, marfim – tudo isso ia para o lixo, e a máxima
complexidade de uma ferramenta era empregar duas peças,
frouxamente unidas, como, por exemplo, uma ponta de pedra unida
a um cabo simples de madeira.
 De repente, porém, a começar por algumas contas de colar
feitas com conchas na África do Sul, surgem os primeiros adornos.
Ferramentas de marfim, finamente trabalhadas, e uma nova forma
de modelar a pedra, em que várias peças se unem para um
propósito específico. E tudo culmina, há pouco mais de 30 mil anos,
com a invenção da pintura e da escultura nas cavernas da Europa,
onde seres teriantrópicos (meio animais e meio humanos) são
representados, não muito diferentes dos centauros ou esfinges da
mitologia grega.
 Coincidência ou não, é nesse momento que os neandertais
deixam de existir e nós viramos os únicos atores que sobraram no
palco da evolução dos hominídeos, grupo que inclui o Homo sapiens
e todos as espécies fósseis mais próximas de nós do que dos
chimpanzés. O que Steven Mithen e outros estudiosos da evolução
humana propõem é que essa é a hora da explosão da fluidez
cognitiva. Os neandertais provavelmente eram caçadores
competentes (sabiam raciocinar sobre o comportamento animal) e
bons artesãos (suas lanças eram eficazes dentro dos limites que a
tecnologia deles impunha). Mas jamais ocorreria a eles misturar o
mundo vivo com o mundo da técnica para criar um mortífero arpão
de marfim.
 Bichos para eles eram comida, não matéria-prima. Da
mesma forma, eles provavelmente tinham uma organização social
elaborada, mas nunca seriam capazes de usar uma mistura de
humano e animal para criar um deus ou totem que uniria a
comunidade em torno de um símbolo cultural comum, poderoso e
indestrutível. Com nossos ancestrais, no entanto, a coisa era
diferente. Para entender melhor a diferença entre os dois tipos de
mente, talvez seja útil usar a analogia do canivete suíço. O termo é
muito empregado pelos psicólogos evolutivos, que tentam entender
como os desafios do passado da nossa espécie moldaram a
maneira como o nosso cérebro funciona. Um canivete suíço, como
todos sabemos, é formado por um conjunto variado de lâminas
especializadas: uma funciona como uma boa faca, outra pode virar
chave de fenda e, com sorte, você encontra até uma tesourinha de
unha ali dentro. Se compararmos cada lâmina do canivete a um
“módulo” mental – um conjunto de mecanismos especializados do
cérebro –, poderíamos dizer que os neandertais e os primeiros
Homo sapiens já tinham uma mente tipo canivete suíço, capaz de
lidar com vários tipos diferentes de tarefas cognitivas.
 Essas tarefas incluíam domínios como a interação social, o
conhecimento “naturalista” (saber quais espécies de animais são
“caçáveis”, por exemplo) e a capacidade técnica de criar
ferramentas de pedra. Em certo sentido, a nossa própria mente
também é um canivete suíço – tanto que o cérebro humano é
dividido em áreas especializadas, cada uma responsável pelo
controle de diferentes atividades. Mas, no nosso caso, há momentos
em que a analogia com o canivete fica em pedacinhos, porque os
estilos de processamento de um módulo cognitivo “vazam” para o
outro. Um exemplo vem da minha própria alcova: o emprego de
elementos de raciocínio ligados a entidades biológicas e sociais –
sentir frio, ser acariciado – a entes que são objetos puros, sem mais
sentimentos que uma ponta de lança de pedra (os bichinhos de
pelúcia).
 O mais engraçado é que talvez nenhuma mudança radical
na estrutura da nossa mente tenha sido necessária para que essa
revolução acontecesse. Se os sistemas mentais usados para
raciocinar sobre os vários domínios do mundo já estivessem no
lugar certo – de novo, esse parece ter sido o caso dos neandertais –
bastaria que “buracos na parede” de cada um deles surgissem.
Como uma represa cujo dique se rompeu, as águas fluiriam – e a
primeira metáfora nasceria.
 E eis que o primeiro homem (ou mulher) caminharia sobre
a Terra. Metafórico, analógico, criativo – e carinhosamente agarrado
ao seu mamute de pelúcia.
 
Carinhas de bebê
O que há de irresistível num rostinho de filhote?
 
É sempre horrível quando você descobre que virou alvo de uma
chantagem emocional, daquelas bem safadas, e caiu feito um
patinho. Estou me referindo a um sujeito felpudo cuja história
comoveu o mundo e garantiu a audiência de muitas TVs, inúmeros
sites e outros meios de comunicação durante meses em 2007. Aliás,
ouso dizer que, se você passou por esse ano fatídico sem terouvido
falar ao menos uma vez da saga do ursinho Knut, provavelmente
estava em animação suspensa ou temporariamente abduzido em
algum deserto de Marte.
Caso você seja um desses raros casos, aqui vai um resumo
rápido da história toda. No começo de 2007, Knut era um filhote
recém-nascido de urso-polar, órfão de pai e abandonado pela mãe,
cuja criação acabou ficando a cargo de um tratador do Zoológico de
Berlim. Por si só, a história triste bastaria para garantir ao pequeno
ursídeo seus 15 minutos de fama, estampado em fotos lacrimosas
mundo afora. Mas Knut logo se tornou o pivô de uma grita
internacional que nem casos de genocídio costumam provocar.
Tudo porque ninguém conseguia engolir a proposta, feita por alguns
ativistas dos direitos dos animais alemães, de sacrificar o bichinho.
(O argumento deles: Knut teria uma criação “não-natural” e sofreria
demais com a separação inevitável de seu tratador; portanto, seria
melhor “colocá-lo para dormir”). Bastou que a ideia fosse levantada
– e olha que o Zoológico de Berlim nem quis discutir a proposta –
para que gente do mundo todo tomasse a mídia de assalto e
exigisse a proteção incondicional da integridade física do ursinho.
Como é que alguém seria capaz de erguer a mão contra uma fofura
daquelas? Era simplesmente desumano.
Vamos admitir: qualquer pessoa normal (OK, menos ativistas
alemães) se derrete diante de filhotes como Knut. É um troço
visceral. Daí a minha acusação feita lá em cima – por favor, não
entenda errado – de chantagem emocional. A carinha de um urso-
polar bebê é o equivalente psicológico de um golpe baixo, atravessa
as nossas defesas, comove corações de pedra. Em certo sentido,
não é exagero dizer que a mente humana está programada para
gostar do ursinho Knut.
Mas essa propriedade da nossa mente tem repercussões muito
mais profundas do que uma vontade louca de encher ativistas
alemães de pancada. Há indícios intrigantes de que a predileção por
traços fofos moldou coisas tão díspares quanto a aparência dos
animais domésticos e o processo que conduz os seres humanos do
nascimento à idade adulta. Como? Acompanhe nos próximos
parágrafos, intrépido leitor.
Diz um ditado oriental que o começo da sabedoria é dar o nome
certo às coisas. Portanto, anote aí na sua caderneta: pedomorfose.
É grego. Quer dizer, literalmente, “forma de menino”, e é um termo
empregado pelos biólogos do desenvolvimento para definir a
retenção de características infantis em animais adultos.
Você provavelmente está se perguntando por que diabos um bicho
maduro iria querer ter cara de criança. Mas, antes, vamos dar uma
boa olhada em Knut (se uma busca na internet não ajudar você a
refrescar a memória, pense em qualquer ursinho de pelúcia),
recordar todos os outros filhotes fofinhos (bebês humanos incluídos)
que já vimos e tentar generalizar. Há alguma coisa em comum entre
todos eles? A resposta é um enfático sim. Os padrões de
desenvolvimento dos filhotes de vertebrados são
surpreendentemente parecidos entre si, desde os peixes até o
Homo sapiens, graças à origem evolutiva comum que
compartilhamos. Por isso, além da óbvia pequenez, muitos dos
nossos filhotes têm a cabeça desproporcionalmente grande em
relação ao resto do corpo, olhos muito grandes e focinhos curtos.
Entre os mamíferos, o pacote é completado por pelos e pele mais
macios e, às vezes, mais claros, além de gordurinhas que tendem a
gerar aquele aspecto fofinho.
Características visualmente tão óbvias têm uma função também
óbvia. Nas imortais palavras de Baby, da série televisiva Família
Dinossauros, a mensagem que eles passam é “PRECISA ME
AMAR! PRECISA ME AMAR!”. Os traços infantis são sinalizadores
imediatos de vulnerabilidade e necessidade de cuidados, e as
espécies de vertebrado entre as quais a ajuda dos pais é essencial
para que o bebê chegue à idade adulta estão geneticamente
programadas para responder favoravelmente a eles. (Aliás, os
bebês-dinossauros da vida real, conforme o testemunho de diversos
ovos e filhotes fossilizados, tinham cabeça e olhos enormes. Por
essas e outras razões, que vamos ter ocasião de discutir quando
falarmos sobre a relação evolutiva entre dinos e aves, acredita-se
que os pais-dinossauros cuidavam de sua prole por um bom tempo
após o nascimento.) Pode ser que originalmente essa aparência
tenha sido só um subproduto do desenvolvimento embrionário –
afinal, muitos vertebrados não cuidam de seus filhotes -, mas, uma
vez estabelecida geneticamente, ficou fácil utilizá-la como
sinalizador, e os que a possuíam em grau elevado tinham mais
chance de ser paparicados pela mamãe e sobreviver. Estabeleceu-
se uma espécie de corrida armamentista ou, para usar um termo
ainda mais específico, um feedback positivo: quanto mais clara a
sinalização de vulnerabilidade, mais o instinto materno/paterno era
despertado, de forma que a geração seguinte tinha ainda mais
probabilidade de usar esses sinais em sua aparência física. Ser fofo
fazia bem para a saúde e para o sucesso evolutivo.
Que o digam os animais domésticos, em especial os nossos cães,
que hoje alcançam uma população inacreditavelmente mais
numerosa do que a que teriam se tivessem permanecido selvagens.
Um grande volume de pesquisas mostra que os bichos
domesticados tendem a ser uma versão pedomórfica – voltamos à
pedomorfose – de seus ancestrais selvagens. Inconscientemente,
nossos ancestrais tendiam a selecionar para reprodução suas
mascotes com aparência mais infantil, em parte porque ela tende a
estar correlacionada com outras características desejáveis, como a
docilidade.
O caso dos cachorros, como eu disse, é emblemático. Traços como
orelhas caídas, rabinhos que abanam, pelo com manchas e
propensão a latir em vez de uivar são encontrados não nos lobos
adultos (a espécie ancestral do cão doméstico), mas entre os
filhotes de lobo. Uma experiência fascinante, que começou há
décadas na Rússia e ainda está em curso, mostra como o fenômeno
pode ter acontecido. Os cientistas começaram a selecionar raposas
unicamente pela docilidade (outro traço pedomórfico): as que eram
mais mansas e menos ariscas eram escolhidas para se reproduzir.
Gerações depois, o resultado são raposas de orelhas caídas e pelo
manchado, que mais parecem cachorros.
Por fim, algumas características intrigantes da biologia humana
indicam que nós somos quase uma versão pedomórfica de nossos
primos de primeiro grau, os grandes macacos. Comparações
detalhadas entre o processo de crescimento de chimpanzés e
pessoas indicam que nossos crânios são muito mais parecidos com
os de bebês-macacos do que com os de primatas adultos. Há quem
veja em outros elementos, como os nossos escassos pelos, traços
pedomórficos. A nossa preferência por esse tipo de traço é tamanha
que ela parece influenciar até a evolução cultural, ao menos de
acordo com uma análise divertidíssima do saudoso paleontólogo e
divulgador científico Stephen Jay Gould (1941-2002). Gould
analisou um dos ícones da fofice mundial, Mickey Mouse em
pessoa, mostrando que o famoso camundongo “nasceu” com traços
um pouco mais adultos e foi s e tornando progressivamente mais
pedomórfico conforme os anos passavam. Inconsciente ou
conscientemente, os desenhistas da Disney foram tornando o
personagem cada vez mais agradável aos olhos humanos – o que
significou dar a ele traços mais infantis.
Ao que parece, a base genética para esse tipo de transformação é a
mudança no ritmo do desenvolvimento, com uma espécie de atraso
estratégico: alterações morfológicas que conduziriam à formação de
uma “cara” de adulto acontecem mais tarde do que o normal, ou até
são adiadas indefinidamente. Há um grau inevitável de especulação
na hora de tentar explicar o porquê disso em organismos adultos,
mas uma teoria interessante aposta na chamada seleção sexual: os
traços infantilizados, com seu ar de “me ame e me proteja, por
favor”, teriam sido considerados atraentes por parceiros sexuais e
se tornado dominantes ao longo da evolução humana. Também
sinalizariam falta de agressividade, confiabilidade e até fidelidade.
Chame isso de “sobrevivênciados mais fofos”, se preferir.
Portanto, da próxima vez que você vir sua esposa ou namorada se
derretendo por causa de Knut ou qualquer outro animalzinho que
ainda está nos cueiros, deixe de lado o ciúme e aceite a chantagem
emocional. É por essas e outras que sua consorte gosta de chamar
você de “neném” de vez em quando.
 
Mistério de muitos braços
Lulas, polvos e sua sofisticação intelectual
 
A imagem do livro de zoologia não passava de um desenho em
preto e branco, mas ficou grudada na minha memória. A ilustração
mostrava um polvo-comum (Octopus vulgaris), que parecia imenso,
usando seus tentáculos para tirar a tampa de um garrafão e
arrancar lá de dentro um daqueles navios em miniatura
ultradetalhados que os fãs de tecnologia naval gostam de montar.
Parecia chocante que um bicho que nem mesmo tinha ossos fosse
capaz de entender o conceito de “tampa” (“Rá! Então isso aqui tapa
a garrafa”, deve ter pensado o polvo) e conseguisse arrancá-la,
aparentemente, só de brincadeira.
Algumas décadas se passaram desde que vi o famigerado
desenho pela primeira vez, e parece que o espanto causado pelos
moluscos com muitas pernas – polvos, lulas, sibas e assemelhados
– anda ganhando cada vez mais razões de ser. O mais frustrante –
ou o mais legal, dependendo do ponto de vista – é que, embora os
cientistas estejam descobrindo mais e mais detalhes sobre como
esses bichos funcionam, os mistérios ainda se acumulam. Uma
série de capacidades impressionantes, que fazem deles os
Einsteins entre os invertebrados, ainda precisam ser elucidadas
para valer: curiosidade, maquiavelismo, uma possível “linguagem de
sinais” baseada em mudanças da cor do próprio corpo e até senso
de humor. A recompensa para quem conseguir entender esses
comportamentos é das grandes: a chave para explicar por que,
afinal de contas, a inteligência evolui.
Para começo de conversa, vamos ser justos: não dá para acusar os
biólogos de incompetência quando eles apanham para “quebrar o
código” de polvos, lulas e companhia. Eles simplesmente são
alienígenas demais: os termos de comparação que permitem que a
gente pelo menos ache que entende criaturas como cães e cavalos
não valem para os cefalópodes, como são chamados esses bichos
aquáticos.
Talvez valha a pena, mesmo assim, tentar começar nossa análise
com o que é parecido e só depois partir para a doideira. Os olhos,
por exemplo: fora a pupila bizarra em forma de W, os de uma lula ou
de um polvo funcionam de forma impressionantemente parecida
com os nossos e são quase tão bons quanto eles, embora tenham
evoluído de forma independente. (Informação básica para fazer o
queixo cair: a linhagem de animais que deu origem aos humanos se
separou da que gerou os cefalópodes entre 1 bilhão e 600 milhões
de anos atrás, segundo as estimativas mais embasadas.)
O cérebro dos bichos também não é de se jogar fora. Em relação ao
peso do corpo, são os maiores miolos entre os invertebrados, e
proporcionalmente mais avantajados que os de anfíbios e répteis,
embora ainda percam da maioria dos mamíferos. São órgãos
anatomicamente complexos, com texturas e rugosidades para todo
lado – coisas que costumam ser a marca de processamento neural
sofisticado, do tipo que ocorre no cérebro cheio de dobrinhas dos
humanos.
E aqui começa a loucura, nobre leitor. Aqueles olhos tão
sedutoramente familiares não enxergam cores, mas são capazes de
detectar o plano da luz polarizada – uma propriedade do espectro
eletromagnético que os torna muito mais sensíveis a contrastes do
que nós. Quanto ao cérebro, sua massa de neurônios circunda o
esôfago dos bichos. (Imagine que delícia seria se os seus miolos
estivessem logo abaixo da sua garganta. “Dá um trabalho do cão”,
diriam os polvos: volta e meia os cientistas acham espinhas de
peixe enfiadas no cérebro deles.)
Para sorte do cérebro dos cefalópodes, não é ele que faz todo o
trabalho. Para solucionar o problema de controle dos muitos
tentáculos, que os ajudam a manipular objetos com precisão,
capturar presas e muito mais, os bichos simplesmente deslocaram
parte de sua capacidade de processamento do centro cerebral para
esses membros. Estudos recentes indicam que o cérebro só dá
indicações gerais para o tentáculo: é o membro que decide
“sozinho” os passos finais e cruciais de várias ações.
O troféu de bizarrice número um, porém, certamente vai para o
funcionamento da pele dos cefalópodes. A maior parte deles foi
agraciada pela evolução com órgãos conhecidos como cromatóforos
(algo como “carregadores de cor”, em grego). Milhares ou até
milhões de cromatóforos, formados por sacos de pigmento
vermelho, amarelo e marrom e fibras musculares, conseguem se
retrair ou se estender em frações de segundo, mudando
radicalmente a aparência do polvo ou da lula em questão. Há
registros de animais que mudaram de aparência mil vezes ao longo
de apenas sete horas – quase uma apresentação de Powerpoint
com “perninhas”.
Na prática, isso permite que um polvo “finja” de forma quase perfeita
ser uma pedra ou uma massa de algas. É uma mão na roda para
escapar de predadores e para armar uma tocaia contra possíveis
presas. O grau de detalhamento possível é tamanho que as sibas
(bicho famoso por causa de sua tinta, usada para fazer o corante de
cor sépia) conseguem assumir vários padrões ao mesmo tempo.
Digamos que sua cabeça esteja em cima de uma pedra
esbranquiçada, o meio do corpo sobre um pedaço de coral mais
escuro e a ponta sobre uma moita de algas. Baba de moça: ela
simplesmente fica “listrada”, com cada pedaço do corpo parecido
com o substrato mais próximo.
Ser uma apresentação de Powerpoint ambulante (o sonho de muito
escritor de autoajuda por aí, imagino) teria outra vantagem óbvia:
comunicação. Os dados a esse respeito ainda são poucos, mas
parece que as sibas e lulas, bichos relativamente sociais (os polvos
costumam ser solitários), conseguem usar as mudanças de aspecto
pelo menos para anunciar seu sexo e seu estado emocional
(agressivo ou pacífico) a companheiros de espécie. Há relatos de
um siba macho que usou, de um lado do corpo, o chamado “display
de zebra intenso” – com listras fortes, indicando agressividade –
para “falar” com outro macho, e uma coloração calma e amena
diante de uma fêmea que se aproximava do outro lado do corpo. (É
como se você conseguisse dizer “sai pra lá, rapaz!” com metade da
boca e “olá, gatinha!” com a outra metade.) Pior: outras observações
indicam disfarces enganosos, como os machos pequenos de siba
que usam “roupa de mulher” para tentar não apanhar dos machos
maiores. Funciona bem, menos quando o macho grandalhão resolve
tentar acasalar com aquela “mocinha” tão simpática...
Essa capacidade de arquitetar o engano de um companheiro de
espécie nos leva de volta ao debate sobre quão inteligentes essas
criaturas podem ser. (O engano pressupõe, ao menos na maior
parte das vezes, alguma intuição sobre o que pode se passar na
cabeça de outrem, uma operação mental considerada bastante
complicada e incomum no reino animal.) Outros indícios sugerem
um tipo de mente pelo menos tão complexa quanto a de mamíferos
e aves. Alguns polvos, por exemplo, parecem capazes de aprender
comportamentos simplesmente observando companheiros fazerem
a coisa em questão. Eles também gostariam de brincar: garrafas
plásticas “dadas de presente” a polvos de aquários nem sempre são
destruídas, mas às vezes ficam sendo sopradas para cá e para lá
com o jato d’água que o bicho possui, quase como uma criança que
fica fazendo uma bola quicar. E os cefalópodes aparentemente
dormem – um comportamento que, em outros animais, ajuda a
consolidar memórias e facilita o aprendizado.
Ao mesmo tempo, testes em laboratório muitas vezes parecem
mostrar bichos curiosamente lerdos, ou pelo menos “de lua” –
capazes de aprender um truque com facilidade para depois não
repetir a brincadeira com sucesso. Alguns cientistas questionam a
ideia de que bichos solitários como polvos sejam realmente capazes
de algum aprendizado social. Seriam simplesmente
temperamentais? “Talvez a grande questão seja: será que eu sousuficientemente inteligente para tentar descobrir o quão inteligentes
eles são?”, brinca a bióloga americana Jean Boal, que estuda sibas.
De fato, talvez os cefalópodes sejam o nosso teste definitivo de
compreensão do que significa ter um cérebro complexo. Se um dia
dermos de cara com alguma forma de inteligência alienígena, não
há razão para acreditar que a forma de pensar “deles” seja parecida
com a nossa. Mesmo que não sejam verdadeiros gênios, lulas e
polvos continuarão a nos dar pistas preciosas sobre como uma
mente fundamentalmente diferente da nossa enfrenta os desafios de
um ambiente e de um corpo complexos.
Pense nessas criaturas como um símbolo do que a evolução
dos seres vivos significa: nós e eles estamos separados por uma
profunda bifurcação na estrada da vida na Terra. Viemos de lugares
diferentes e, por isso, os caminhos que usamos para chegar até
aqui têm muito pouco a ver um com o outro. Mas aqui estamos:
podemos nos olhar, olho no olho, com o mesmo brilho de
curiosidade nas pupilas (redondas ou em forma de W, pouco
importa). Alguém duvida de que coisas ainda mais assombrosas nos
esperam lá fora, num Universo do tamanho do nosso?
 
Até logo, e obrigado pelos peixes
Baleias e golfinhos têm o cérebro mais avançado da Terra?
 
- Alô, é da Terra? Aqui é uma forma avançada de inteligência
alienígena. Eu poderia estar falando com a espécie inteligente
responsável do planeta, por favor?
- Uau… putz… é um ET mesmo. Minha Nossa Senhora… oi, pode
falar, moço. Eu sou um representante da espécie inteligente da
casa. Sou humano. Homo sapiens. Gente, sabe.
- Ah… humano. Hã… Certo. Só um minuto, senhor. Vou estar
checando com o meu superior, OK?
Segundos intermináveis de silêncio. O atendente de telemarketing
alienígena reaparece.
- Alô, senhor? Obrigado por aguardar. Será que o senhor poderia
colocar o golfinho mais próximo na linha?
Seria muita sacanagem se as décadas da nossa busca por
vida inteligente fora da Terra terminassem desse jeito inglório,
mesmo porque aqueles malditos golfinhos precisariam do nosso
aparato tecnológico para falar com o operador de telemarketing de
Andrômeda. O que, aliás, prova que o diálogo acima só funciona
como piada. A espécie mais inteligente do planeta teria de ser
capaz, por definição, de desenvolver uma civilização tecnológica -
do contrário, não seria digna do título. Certo?
Aqui, como em quase qualquer outro contexto, as coisas não são
nem de longe tão simples quanto parecem. Vamos deixar de lado a
questão da tecnologia por alguns parágrafos e nos concentrar no
órgão que é a sede da inteligência: o cérebro. Acontece que os
seres humanos, apesar da massa encefálica proporcionalmente
imensa e um bocado complexa, não são os campeões
incontestáveis nesse quesito. Dependendo de como você faz a
conta, quem ganha são os odontocetos - nome dado aos golfinhos,
às orcas e aos outros animais com dentes (daí o “odonto”) do grupo
das baleias. Em vários atributos - tamanho absoluto, tamanho
relativo e até quantidade de “dobrinhas” no córtex cerebral -, o
cérebro desses bichos parece ganhar do nosso. Tais dados se
juntam a uma série de evidências comportamentais para demonstrar
que existe algo de muito incomum nas capacidades mentais desses
mamíferos marinhos. Quão incomum? Ninguém ainda está em
posição de dizer com certeza absoluta.
Nem sempre foi assim, contudo. Os primeiros cetáceos, ancestrais
dos golfinhos e das baleias, começaram seu retorno aos mares há
cerca de 55 milhões de anos, como mostram os fósseis.
Inicialmente, não passavam de mamíferos terrestres de casco,
primos dos modernos hipopótamos e porcos que não eram
exatamente filósofos natos.
Deixar de lado os cascos de hipopótamo e ganhar a aparência de
um peixe é uma transição evolutiva das mais complicadas. Para
alguns cientistas, céticos quanto à inteligência dos cetáceos atuais,
essa metamorfose já seria suficiente para explicar os cérebros
estranhamente grandes e complexos dos bichos: eles seriam
apenas uma resposta ao novo ambiente. Uma hipótese mais
específica diz que, no caso dos odontocetos, o surgimento de uma
massa encefálica supercrescida teve relação com o esfriamento dos
oceanos no começo do Oligoceno, há 34 milhões de anos. As
células responsáveis por essa inflação cerebral seriam meras
produtoras de calor. Ou seja, o cérebro dos odontocetos teria
aumentado não como adaptação para ficar mais esperto, mas para
não congelar. (Um rápido parêntese: o uso um tanto casual que faço
da preposição “para” na frase acima obviamente não significa que
as baleias ancestrais “sabiam” o que fazer para corrigir o próprio
metabolismo quando os mares esfriaram. Trata-se apenas de um
atalho linguístico para ir direto ao resultado de um processo guiado
pela seleção natural.)
Seja como for, a hipótese do resfriamento é uma beleza, mas ela
parece não casar com alguns fatos. O principal deles é que o
tamanho corporal dos odontocetos diminuiu nessa época, em vez de
aumentar. Se o frio marinho do Oligoceno fosse um incômodo, era
de esperar que eles crescessem, pelo simples fato de que bichos
maiores perdem calor mais devagar que bichos menores. Além
disso, há uma espécie de fronteira de tamanho acima da qual os
animais de sangue quente ficam praticamente protegidos da perda
de calor (a não ser em condições muito adversas e raras, claro).
Ora, os odontocetos já tinham cruzado essa fronteira também e,
pelo visto, não tinham necessidade nenhuma de esquentar os
próprios miolos.
No entanto, há alguns indícios fósseis de que, nessa mesma época,
a arquitetura cerebral dos bichos mudou, com uma reorganização
do órgão em áreas bem desenvolvidas e especializadas que
lembram as dos golfinhos, orcas e cachalotes modernos. Ao mesmo
tempo, a evolução estaria ocupada em “inventar” o sistema de sonar
desses bichos - uma forma de usar sons parecidos com “cliques” e
seus ecos para localizar objetos debaixo d’água, mais ou menos
como os morcegos fazem no ar. Nesse sofisticado mecanismo de
localização, os sons que ricocheteiam no ambiente subaquático são
usados para criar uma espécie de imagem acústica do que existe
em volta do cetáceo. Talvez a mistura do sonar com a vida social
altamente complexa de golfinhos e assemelhados tenha sido
suficiente para deflagrar o aumento descontrolado do cérebro.
Vamos, no entanto, aos números comparativos entre o cérebro
deles e o nosso, gentilmente compilados pelo neurocientista
americano R. Douglas Fields. Talvez um dos jeitos menos
enganosos de comparar nosso cérebro com o dos odontocetos é
tomar como base a quantidade de dobras e sulcos no córtex, a
região cerebral considerada a sede do processamento inteligente.
Quanto mais dobras e sulcos, maior a área do cérebro - é como
pegar uma folha de papel toda amassada e transformá-la num
objeto liso e plano de novo.
Bem, a área do córtex humano é de 2.275 centímetros quadrados
(equivalente à de um guardanapo), enquanto a do golfinho-comum
(Delphinus delphis) é de 3.745 centímetros quadrados (ou seja,
mais ou menos uma folha de jornal aberta). OK, o bicho é bem
maior que uma pessoa. Mas, peso por peso, o cérebro do bicho
ainda é mais cheio de dobrinhas: cerca de 50% mais
circunvoluções, como são chamadas - e elas são consideradas um
indício confiável de inteligência.
Um especialista em cetáceos mais impaciente provavelmente diria
que esse monte de contas é desnecessário. O fato é que temos
evidências abundantes de comportamento complexo e inteligente
entre as mais variadas espécies de odontocetos - e até entre os
misticetos, as baleias “não-dentadas”, como as jubartes e francas.
Para citar os mais óbvios: formação de alianças; uso de “dialetos”
diferentes na comunicação por cliques; capacidade avançadíssima
de imitação de sons e comportamentos, aparentemente melhor que
a de qualquer outro animal do planeta; provável presença de cultura
- ou seja, comportamentos que são aprendidos, são relativamente
independentes de pressões ambientais para surgir e variam de
bando para bando de golfinhos ou orcas. (O meu favorito é o uso de
esponjas para manipularpeixes espinhentos sem machucar o
rostro, ou focinho, presente numa população de golfinhos-nariz-de-
garrafa.)
Mas há mais. Como nós, os golfinhos se reconhecem no espelho,
comportamento que parece ser um dos embriões da
autoconsciência tão típica dos seres humanos. (Se você não sabe o
que acontece quando animais menos intelectualmente sofisticados
são postos diante de um espelho, faça uma experiência com seu
cachorro e depois me conte.) E, segundo dados recentes, esses
cetáceos podem até se chamar pelo “nome”, usando seus estalidos
de sonar - cada golfinho parece usar um “assobio-assinatura” para
si mesmo, além de identificar os assobios únicos pertencentes aos
vários membros de seu grupo.
Por outro lado, algumas diferenças relevantes parecem existir entre
o cérebro dos cetáceos e o nosso. Sabe-se que eles têm cinco
camadas especializadas de neurônios em seu córtex, enquanto o
nosso possui seis. Além disso, possuem muito mais células gliais -
companheiras dos neurônios que parecem funcionar como uma
espécie de “suporte de vida” deles. Por outro lado, alguns estudos
recentes sugerem que as células gliais também podem participar do
processamento de informações. Nesse caso, a maior presença
delas não poderia ser necessariamente considerada uma
desvantagem em termos de capacidade mental.
O que tudo isso aponta é que, apesar da semelhança superficial em
anatomia e comportamento, nossa cabeça e a dos cetáceos
funcionam de forma vastamente diversa. E, é claro, baleias e
golfinhos não possuem mãos. Falta-lhes a capacidade de
manipulação delicada de objetos que parece estar na raiz do
desenvolvimento tecnológico que nos trouxe até aqui.
É melhor não ficar imaginando que, para nós, talvez tivesse sido
uma boa coisa não ter essa capacidade manipuladora. Já virou um
lugar-comum algo deplorável dizer que baleias e golfinhos são tão
inteligentes quanto nós, mas mais sábios, por terem se “recusado” a
seguir o mesmo caminho dos seres humanos, vivendo em harmonia
com seu ambiente e consigo mesmos. Bobagem: golfinhos praticam
estupro grupal e infanticídio; as orcas matam e comem outras
baleias (o que talvez possa ser comparado ao hábito humano de
comer carne de chimpanzé e gorila, comum em algumas regiões
africanas). A sorte deles é que não possuem os meios para a
matança em larga escala. No fundo, esse tipo de raciocínio é só
uma versão ambientalista do velho mito do bom selvagem, segundo
o qual as sociedades ditas “primitivas” da América pré-colombiana
ou da Polinésia seriam paraísos de paz e harmonia, ainda não
corrompidos pela cultura ocidental. Quem argumenta isso não
considera a considerável complexidade cultural desses povos (e,
por que não, dos golfinhos) e, ao mesmo tempo, deixa-se levar por
uma visão bastante ingênua sobre como animais sociais funcionam.
Remova inteiramente as limitações ambientais e biológicas e você
verá o estrago que até um golfinho é capaz de causar.
A verdadeira lição que talvez se possa tirar do que já aprendemos
sobre a inteligência dos cetáceos é de natureza cósmica: só
arranhamos a complexidade do mundo vivo aqui na Terra. É
absurdamente difícil tentar entrar na cabeça de outra espécie ou
tentar decifrar sua linguagem (se é que isso existe). Mas, se e
quando chegar a hora de lidar com uma inteligência realmente
alienígena, não haverá ferramenta mais valiosa do que a
compreensão da mente dos demais habitantes do nosso planeta, a
exemplo do que temos visto ao estudar a inteligência dos polvos e
lulas, outros fascinantes gênios marinhos.
Dadas as diferenças inevitavelmente brutais que bilhões de anos de
evolução em planetas separados vão engendrar, talvez o mais
racional seja sonhar menos com o contato improvável entre a nossa
civilização e um ET e se concentrar nos alienígenas que já estão
entre nós - criaturas cujo berço é o mesmo que o nosso, cujo
sangue quente difere muito pouco do que corre nas nossas veias.
Desse ponto de vista, chega a ser absurdo ficar se perguntando se
estamos sozinhos no Universo. Não estamos. Nunca estivemos.
 
—–
 
Gostaria de dedicar este capítulo à memória de Douglas Adams,
autor da série “O Guia do Mochileiro das Galáxias”, de quem roubei
descaradamente (mas afetuosamente, se serve de desculpa) o título
lá de cima.
 
Pensamento e memória
Os corvos: de carniceiros a construtores de ferramentas
 
Os antigos escandinavos costumavam retratar o chefão de seus
deuses, o caolho Odin, com dois corvos pousados nos ombros. A
missão dos bichos era sobrevoar os Nove Mundos da mitologia
nórdica, observar tudo o que estava acontecendo e trazer as
notícias de volta para o deus, em cujo ouvido eles cochichavam as
fofocas. O nome da dupla? Hugin e Munin, ou seja, “pensamento” e
“memória” em islandês antigo. Pode ter sido clarividência ou um
simples chute bem-dado viking, mas o fato é que todos os corvos do
planeta, e não só os asseclas de Odin, talvez mereçam os títulos de
Hugin e Munin.
Esqueça por um momento os chimpanzés e os golfinhos que
tanto nos empolgaram no capítulo anterior. As estrelas em ascensão
dos estudos sobre a inteligência animal são essas aves de fama
sombria e plumagem idem. Aqui, no entanto, vale a pena se despir
de alguns preconceitos. Apesar do gosto por carniça, os corvos
estão entre as criaturas mais brincalhonas e curiosas da Terra.
Essas características, associadas a uma vida social complexa e
cheia de malandragem, fazem com que eles se comportem - por
mais bizarro que soe a afirmação - um pouco como primatas com
penas.
Não é pouca coisa, convenhamos. Se as pistas que os cientistas
estão seguindo sobre a estrutura da mente corvídea forem mesmo
quentes, estaremos cada vez mais próximos de escrever o que
poderíamos chamar de “receita-padrão” da inteligência - as
características cruciais para que essa qualidade relativamente rara
no mundo animal acabe aparecendo.
As evidências de que há algo de muito especial acontecendo na
cabeça dos corvos são multifacetadas. Vamos começar com o
básico: como era de esperar, o cérebro dos corvídeos tem
dimensões avantajadas para pássaros do tamanho deles. Há
inúmeras maneiras de computar o grau de encefalização (grosso
modo, a importância proporcional do cérebro perto dos outros
órgãos) de uma espécie, nem todas muito confiáveis, mas nesse
quesito os corvos parecem chegar perto de grandes macacos e
cetáceos. Além do tamanho bruto e ponderado, o cérebro deles
também apresenta razoável complexidade na área equivalente ao
nosso córtex - a área superficial do órgão, considerada a sede da
consciência e das funções mentais mais “elevadas”. (Digo “área
equivalente” porque a estrutura geral do cérebro das aves é um
pouco diferente da nossa e seguiu um caminho evolutivo
independente, de forma que a correspondência não é mesmo
perfeita, ao contrário do que acontece quando estamos falando de
mamíferos.)
Massa encefálica à parte, as pessoas observam sinais de
inteligência entre corvos e assemelhados desde tempos imemoriais.
Eles são tradicionalmente considerados bichos “sábios” em muitas
culturas, o que explica o mito de Hugin e Munin ou as histórias de
certas tribos do Pacífico norte-americano - entre elas, o corvo não
só é um trickster (um trapaceiro legendário, meio como o nosso
saci-pererê) como também é venerado como o criador do mundo.
Atribuir sabedoria divina aos bichos é claramente um exagero, mas
os corvos são capazes de feitos cognitivos um bocado
interessantes. Como relatam Bernd Heinrich, da Universidade de
Vermont (EUA), e Thomas Bugnyar, da Universidade de St. Andrews
(Reino Unido), a principal preocupação de um corvo adulto é vencer
a constante competição por comida em seu ambiente natural. E,
para isso, eles lançam mão da mesma estratégia comumente
empregada por suas contrapartes mitológicas: a trapaça.
Trata-se de uma consequência lógica do fato de que os corvos
gostam de recolher comida e escondê-la em inúmeras pequenas
“despensas”, cuidadosamente camufladas, para consumo futuro.
Isso pode ser uma estratégia de um casal de corvos, tentando
monopolizar o alimento encontrado no seu território.Por outro lado,
os corvos que não formaram uma relação conjugal, incluindo
indivíduos jovens e “solteirões” mais idosos, ficam o tempo todo de
olho nas “despensas” dos casais, tentando arrombá-las quando eles
estão distraídos ou mesmo querendo tomá-las pela força, quando se
juntam em bandos. Finalmente, as aves também precisam trapacear
para obter a comida - que muitas vezes se resume a carniça - de
carnívoros maiores, que caçaram a presa originalmente. Assim, os
bichos precisam tentar enganar membros de outras espécies e seus
companheiros de espécie o tempo todo; ao mesmo tempo, precisam
estar sempre atentos para não serem enganados. Heinrich e
Bugnyar tiveram a ideia de testar repercussões desse cenário na
maneira de “pensar” dos bichos. Será que eles eram capazes de
imaginar o que outro corvo estava pensando?
Uma resposta preliminar veio de um experimento que a gente
poderia apelidar de “a gaiola do bisbilhoteiro”. A dupla colocou um
dos corvos solto num aviário, com comida à vontade. Rapidamente,
o bicho se pôs a organizar suas despensas ocultas. Perto dela,
foram colocadas duas gaiolas. Uma tinha uma “janelinha” através da
qual outro corvo conseguia ver seu companheiro escondendo as
iguarias. A outra tinha uma cortina por cima dessa janela, embora o
corvo que escondia a comida ainda pudesse ouvir os barulhos nada
discretos emitidos pelo outro companheiro.
Depois dessa primeira fase, eles puseram o corvo que havia
colocado o alimento nos esconderijos secretos lado a lado com cada
participante do experimento, um de cada vez. E o que aconteceu é
que, quando confrontado com o corvo “bisbilhoteiro”, ele tendia a
recolher rapidamente as guloseimas, para evitar ser roubado -
embora nem se desse ao trabalho de fazer o mesmo quando a outra
ave estava presente. A explicação mais provável é que o bicho
“sabia que o outro sabia” ou “sabia que o outro não sabia” onde a
comida estava - uma capacidade raríssima entre animais. Existe
muita controvérsia sobre esse fenômeno, mas há quem diga que
nem chimpanzés, nossos primos-irmãos evolutivos, possuem tal
capacidade. Outro indício forte de “saber que o outro sabe”, ou de
posse de uma teoria da mente, como tal habilidade é conhecida
entre os cientistas, vem do autorreconhecimento no espelho. Um
trabalho publicado por pesquisadores alemães em 2008 verificou
que a pega-europeia (Pica pica), ave que também faz parte do
grupo dos corvídeos, é tão boa quanto chimpanzés, golfinhos e
elefantes na hora de perceber que o indivíduo no espelho é ela
própria, e não um companheiro de espécie. Muita gente argumenta
que o reconhecimento no espelho é o primeiro passo para a teoria
da mente, porque primeiro seria preciso delimitar bem a própria
autoimagem antes de especular sobre a mente alheia.
Falando em chimpanzés, os primeiros animais não-humanos cujo
uso de ferramentas foi comprovado, é bom lembrar que os corvos
também são capazes de fabricar e utilizar instrumentos. Nesse
quesito, o campeão parece ser o corvo-da-nova-caledônia (Corvus
moneduloides), nativo da Oceania. Na natureza, eles modificam
galhos para desenterrar larvas nutritivas da casca de árvores. Em
laboratório, pesquisadores da Universidade de Oxford deram
apenas arames retos aos corvos-da-caledônia, e os bichos
aprenderam a dobrar o arame na forma de ganchinhos, usados
então para extrair pequenos baldes cheios de carne de porco do
interior de um aparato, obviamente com a ajuda do bico.
Heinrich e Bugnyar relatam outra situação no mínimo curiosa
envolvendo um experimento com comida. Eles amarraram um
pedaço de carne a um fio comprido, que por sua vez foi
dependurado de um galho. Como os corvos não são beija-flores e
não conseguem ficar parados voando, não havia maneira de eles
simplesmente arrancarem a comida em pleno voo. Era preciso ficar
empoleirado no galho e ir subindo o fio devagar, prendendo-o
pedaço por pedaço debaixo da pata até que a carne finalmente
chegasse ao alcance. Ora, os corvos submetidos a essa prova, diz a
dupla, simplesmente ficaram olhando o fio com a carne por alguns
minutos - e, de repente, empoleiraram-se no galho e fizeram tudo
certinho, em questão de segundos. Era como se tivessem analisado
a situação, planejado sua ação “racionalmente” (talvez após algum
tipo de insight sobre o problema) e só então atuado.
É sempre complicado atribuir, sem a devida cautela, capacidades e
intenções humanas a outras espécies, e o caso dos corvos ainda
precisa ser estudado com mais detalhes, sem dúvida. No entanto, é
bem possível que ele nos traga um conjunto importante de lições
sobre a capacidade flexível de resolução de problemas que nós
costumamos apelidar de inteligência.
A primeira tem a ver com o próprio ciclo de vida dos corvos: são
bichos que crescem relativamente devagar, com infâncias longas e
espaço de sobra para atividades que só poderiam ser classificadas
como brincadeiras. Antes de esconder comida para valer em
despensas ou roubar comida de predadores, os jovens corvos
brincam de esconder objetos e atazanam lobos, linces e outros
carnívoros aparentemente apenas pelo prazer de fazer isso - mas,
ao que tudo indica, essas atividades os ajudam a desenvolver
talentos cruciais para o futuro.
No entanto, parece que o grande motor da inteligência corvídea é a
necessidade de simular cenários e se proteger contra coisas que
podem ser imprevisíveis, como o comportamento de um predador
ou o de um companheiro de espécie. Para conseguir conceber a
mente de outra criatura, o único jeito é refinar a própria mente.
Quem diria que um pássaro comedor de carniça seria capaz de
inventar a imaginação, tal como nós?
 
Invasores de corpos
Quando parasitas manipulam mentes
 
Eu diria, sem muito medo de errar, que poucas ocasiões são
capazes de levar as pessoas a sentirem pena de uma barata. Afinal,
nada traz mais deleite ao ouvido masculino humano (e horror ao
ouvido feminino humano) do que escutar aquele barulhinho de
barata sendo esmagada por chinelo de dedo. Mas sou capaz de
apostar que você sentiria ao menos um pouco de compaixão ao
saber do que acontece com certas baratas. Com uma ferroada
certeira, elas são transformadas em zumbis e devoradas vivas. Bem
devagar.
A responsável por transformar a criaturinha em personagem de
filme B é outro inseto, a vespa Ampulex compressa, que certamente
mereceria o apelido de “Alien” (é, aquele da série com a Sigourney
Weaver). A vespa usa duas ferroadas certeiras para selar o destino
de sua vítima. A primeira deixa a barata paralisada por um instante.
A segunda, ainda mais precisa, parece agir apenas sobre uma
subdivisão do cérebro da barata, eliminando seu reflexo de fuga. Ela
volta a ser capaz de se mexer – só não tem mais a motivação
necessária para fazê-lo sozinha. O que acontece então? Os
cientistas israelenses que estudam a Ampulex compressa dizem
que a vespa passa a conduzir a barata “como uma pessoa que puxa
um cachorro pela coleira”.
A coleira, no caso, são as antenas do inseto, que é arrastado até o
ninho da vespa. O parasita bota um ovo na barriga da barata, do
qual emerge uma larva. A larva, por sua vez, penetra no ventre da
barata. E mastiga, mastiga e mastiga, devorando lentamente a
barata zumbi ainda viva durante oito dias, até formar um casulo e
finalmente emergir da cavidade corporal do pobre bicho como vespa
adulta, cerca de quatro semanas depois.
Ufa. Sinceramente espero que as suas mãos estejam suando frio –
as minhas estavam quando li uma versão da história acima pela
primeira vez. O fato é que ela ilustra com perfeição aterradora um
dos fatos mais comuns e, ao mesmo tempo, menos conhecidos da
relação parasita-hospedeiro. Estamos acostumados a imaginar que
um parasita – o fungo que causa frieira nos pés, digamos – só
manipula a parte “não-pensante” do nosso organismo, sugando
nosso sangue ou devorando outro tecido. Nada mais longe da
verdade. Um olhar mais detalhado sobre vários tipos de parasita
mostra que eles são mestres em ludibriar o sistema nervoso de suas
vítimas, às vezes com precisão de encher de inveja o mais
habilidoso neurocirurgiãohumano. Aliás, não pense que a nossa
orgulhosa espécie esteja livre desse tipo de manipulador, como
pretendo mostrar nos parágrafos abaixo.
A habilidade maquiavélica da Ampulex compressa é sem dúvida
espantosa, mas pelo menos trata-se de um jogo, digamos, igual –
um inseto manipulando outro. Infinitamente mais maluco é imaginar
criaturas que nem têm sistema nervoso controlando o
comportamento de animais complexos. Bem, acho que essa é a
minha deixa para apresentar o fungo Cordyceps. Tal como outros
fungos, ele se propaga por esporos. Se não parece emocionante,
pergunte aos insetos que são infectados pelo Cordyceps.
Acontece que o parasita insufla em suas vítimas uma paixão pelas
alturas. O malfadado inseto cujo organismo for invadido pelo
Cordyceps fica com uma comichão irresistível para escalar até o
topo o ramo de planta onde se encontrar no momento. E aí a magia
– negra, claro – acontece. O inseto morre e, do seu corpo, brota
uma delgada haste de fungo, pronta para salpicar seus esporos
sobre uma ampla área. É isso mesmo que você entendeu: o fungo
força seu hospedeiro a subir para ganhar vantagens no seu
espalhamento para novos hospedeiros.
Eu poderia continuar a contar essas histórias indefinidamente – o
verme semiaquático que invade gafanhotos e os leva ao suicídio (os
bichos saltam para dentro de piscinas, por exemplo) para poder
voltar à água, e por aí vai. Mas prefiro ir direto ao prato principal.
Neste exato momento, um ser microscópico e de uma só célula
pode estar influenciando seus pensamentos. Falo do parasita
conhecido como Toxoplasma gondii, o causador da toxoplasmose.
Segundo as memoráveis palavras de um parasitologista brasileiro
cujo nome não revelarei aqui, “tudo o que o Toxoplasma quer é
transar nas tripas de um gato”. Explica-se: o microrganismo infecta
grande variedade de mamíferos e aves, mas os felinos são
considerados seu hospedeiro “definitivo”. Isso porque é só no
sistema digestivo dos gatos que o T. gondii é capaz de se reproduzir
sexualmente. Nos outros hospedeiros, ele ainda é capaz de se
reproduzir de forma assexuada, dividindo suas células em clones
iguais, mas o sexo parece ser uma parte essencial de seu ciclo de
vida, provavelmente pelo elemento de novidade genética que traz
ao jogo da reprodução, como já vimos anteriormente.
Como o parasita é passado para as fezes dos felinos, o único jeito
de ele pular de um gato para outro seria o contato dos bichos com
os dejetos dos vizinhos. Certo? Não exatamente. Imagine que outro
animal – um rato, por exemplo – acabe tendo contato com os cistos
de T. gondii oriundos das fezes felinas, bebendo água contaminada.
Eis que outra espécie agora carrega o microrganismo em seu corpo.
Ora, o micróbio que passasse por essa situação teria uma vantagem
óbvia se conseguisse sobreviver a essa reviravolta inusitada e voltar
para as tripas de algum gato. De que jeito? Levando seu novo
hospedeiro a ser engolido pelo hospedeiro preferencial. Manipular o
infeliz ratinho para que ele perca o medo dos bichanos parece uma
boa pedida para alcançar esse objetivo.
Acredite ou não, é exatamente isso que o causador da
toxoplasmose parece fazer. Evidências experimentais recorrentes
mostram que roedores infectados com o parasita perdem a reação
inata de medo que normalmente demonstram diante do cheirinho de
urina de felino. Também se tornam mais dados a explorar o
ambiente e menos medrosos em geral. Imagens funcionais do
cérebro dos ratinhos sugerem que o T. gondii está agindo de forma
específica sobre a amígdala (não confundir com a da garganta, por
favor). É a região cerebral associada fortemente ao aprendizado
emocional.
Seres humanos também são frequentemente infectados com o
parasita. Os dados ainda são preliminares, mas há indícios de que
os portadores do microrganismo são mais destemidos e/ou
descuidados que a média das pessoas. Mais intrigante ainda, uma
mulher que carrega o T. gondii em seu organismo e está grávida vê
aumentarem suas chances de ter um filho homem (enquanto em
geral 51% dos nascimentos é de meninos, as mães com a criatura
em seu organismo dão à luz garotos em 72% dos casos). E, como
estamos todos carecas de saber, os machos de nossa espécie são
os mais dados a fazer coisas corajosas, ou, vendo a coisa por outro
ângulo, estúpidas. Pode ser só coincidência, claro – mas eu não
apostaria nisso. Não seria o primeiro caso de parasita unicelular
manipulando a proporção entre os sexos na espécie de hospedeiro
para seus próprios fins; a única diferença é o nível de sutileza (a
busca por indivíduos menos medrosos) que aparece no caso que
discutimos.
Dá quase para ficar com dó do pobre T. gondii – alguém precisa
avisá-lo de que seres humanos correm pouco risco de ser
devorados por leões, tigres e onças no século 21, e que, portanto,
toda essa trabalheira bioquímica dele nos nossos cérebros
provavelmente não vai dar em nada.
Todos esses casos de dança macabra entre parasita e hospedeiro
podem parecer mera curiosidade, mas são muito mais do que isso.
A sutileza da manipulação mental empregada pelos vilões das
histórias acima pode, decerto, ensinar um bocado sobre como
funcionam os sistemas nervosos de animais e humanos, e até
ajudar a combater pragas: basta decifrar as bases moleculares da
interação entre aproveitador e vítima. Acima de tudo, porém, elas
revelam como é vã a visão dos seres vivos como uma escada
hierárquica, com criaturas mais “evoluídas” (feito nós) no topo e
outras “primitivas” rastejando lá embaixo. O T. gondii não precisa de
cérebro nem de órgãos dos sentidos – aliás, não precisa nem de um
corpo macroscópico – para manipular a criatura de mente mais
complexa do Universo conhecido. Se esse não é um dos
argumentos mais acachapantes em favor de uma humanidade mais
humilde, eu não sei qual seria.
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
Peças
Dos blocos que montam a diversidade da vida
 
Legolândia
Os tijolos de DNA que fazem um braço virar asa
 
Quem nunca se aventurou na terra-de-ninguém do jornalismo online
mal pode conceber o grau de notoriedade que alguns temas
inusitados alcançam. O caso da celebridade instantânea do ursinho
Knut, que nos ajudou a entender os meandros da pedomorfose
alguns capítulos atrás, é de longe um dos menos exóticos nessa
fauna da audiência na web. Por volta da mesma época em que o
filhote de urso-polar alemão foi alçado ao estrelato, internautas de
toda parte foram magnetizados por... Stumpy, o patinho de quatro
patas.
 Nascido numa fazenda a 150 km de Londres, Stumpy, por
incrível que pareça, chegou à idade adulta com saúde (o caso já foi
registrado em inúmeros outros animais, mas poucos têm a sorte de
sobreviver tanto tempo). Além de ter virado celebridade no mundo
todo, ninguém pode negar que o bichinho está em excelente
companhia. Com suas quatro patas totalmente funcionais, ele
integra uma estirpe das mais nobres, a dos vertebrados com mais
de quatro membros. Criaturas de pedigree elevadíssimo e reputação
literalmente lendária fazem companhia à ave, como as muitas
variedades de dragões alados (bichos de seis membros, tal qual
Stumpy) ou Sleipnir, o cavalo de oito patas do deus escandinavo
Odin. É muita moral para um patinho da roça.
Estranhou a associação, estimado leitor? Pois faz muito bem.
O esquisito na trinca Stumpy/dragões alados/Sleipnir é que só o
patinho-celebridade (infelizmente, na minha opinião de apaixonado
por mitologia) existe no mundo real. Por alguma razão, a natureza
não é muito chegada em vertebrados terrestres com mais de quatro
membros.
A parte legal, no entanto, é que as patinhas extras do pato estão
longe de ser mera aberração. Elas são a ilustração perfeita de um
princípio para lá de comum na evolução dos animais, responsável,
entre outras coisas, pela existência da nossa coluna vertebral ou da
variedade acachapante de insetos que rastejam, saltitam ou voam
por aí. E nem é tão difícil entender o porquê.
Para tanto, comecemos com uma das minhas analogias favoritas:
em certo sentido, o corpo humano e o da maioria dos outros animaisvivos hoje funciona como aquelas famosas pecinhas de Lego.
(Explicação rápida para quem não teve infância: as peças de Lego,
um típico brinquedo “educativo”, costumam ter tamanhos e formas
padronizadas, mas permitem montar toda sorte de objetos, de
casinhas a submarinos.) O termo técnico para objetos que
apresentam essa característica que é a essência das peças de Lego
é modularidade. Objetos modulares, embora apresentem grande
variedade de forma quando vistos no conjunto (já montados, por
assim dizer), são formados pela repetição, às vezes um pouquinho
modificada, de unidades básicas.
A modularidade é provavelmente o segredo por trás da variedade de
formas e adaptações que caracterizam o reino animal. Para
reconhecer a veracidade dessa afirmação, é só pensar nos
artrópodes, o grupo de invertebrados que responde pela imensa
maioria das espécies animais vivas hoje e que engloba
principalmente insetos, crustáceos, aranhas e escorpiões. Se você
já viu um camarão com casca, sabe que o corpo do bicho (assim
como o de toda a parentada citada acima) é dividido em segmentos
- pequenos anéis que aparecem claramente como vincos na casca
da futura guloseima.
Dividir seu corpo em segmentos abre as porteiras para a evolução
de formas cada vez mais sofisticadas por dois motivos. O primeiro é
que não é preciso nenhuma modificação genética radical para que o
número de segmentos cresça ou diminua. Não é muito difícil que um
bicho mais curto dê origem a outro mais comprido, ou vice-versa.
Em segundo lugar, a segmentação também pode ajudar a criar
redundância. Imagine uma criatura com um número reduzido de
segmentos. Todos eles são usados para funções completamente
essenciais do organismo - comer, defecar e se mexer, digamos. Se
por algum motivo esse bicho gera um descendente com segmentos
extras, é bem possível que as partes sobressalentes não sejam um
fardo muito grande e, de quebra, fiquem disponíveis para o uso em
novas funções - desenvolver uma antena, ou um ferrão, por
exemplo.
Tanto é assim que estruturas maravilhosamente complicadas, como
as pinças de uma lagosta, são claramente modificações de coisas
mais simples que existiam quando havia pouca especialização de
segmentos. O mesmo vale para a nossa coluna vertebral (as
vértebras, embora com uma origem comum, são modificadas de
forma específica se você é um primata ou uma cobra) e para o
comprimento e a conformação dos dedos, cinco entre humanos,
apenas um, totalmente transformado em casco, entre os cavalos.
Com esses requisitos mínimos dá para fazer maravilhas, acredite. A
prova mais cabal desse fato é que a imensa maioria dos animais
usa o mesmo “kit de ferramentas” genético para gerar, durante a
formação do embrião, toda a diversidade que se vê mundo afora. Os
principais pedaços desse kit são conhecidos como genes Hox, e as
mesmíssimas famílias deles estão presentes tanto numa mosca-
das-frutas quanto em todos nós.
A elegância dos genes Hox é que eles não especificam exatamente
o que é “construído” pelo montador de Lego chamado
desenvolvimento embrionário, mas sim onde cada coisa é
construída. Pense numa série de setinhas, que indicam coisas
como: “segmento do tipo X até aqui”; “insira aqui um par de pernas”;
“insira aqui um olho”. Trata-se de um sistema para especificar
informações posicionais dentro dos módulos, quase um GPS
genético.
Meu exemplo favorito é um gene que não é exatamente Hox, mas
tem parentesco com o grupo. Seu nome é ey, e ele coordena a
formação de olhos em moscas-das-frutas. O olho dos insetos,
multifacetado, não tem aparentemente nada a ver com o nosso olho
em câmara dos vertebrados. Muita gente costumava assumir que
eles evoluíram de forma totalmente independente, porque os passos
de desenvolvimento embrionário que poderiam ligar um tipo de olho
ao outro são incrivelmente difíceis de imaginar. Não é a mesma
coisa que acontece com os membros dos vertebrados, onde
praticamente todos os ossos do nosso pulso e da nossa mão, por
exemplo, têm correspondentes claros em ancestrais que ainda eram
peixes. No entanto, o que acontece quando se insere um gene ey
num embrião de camundongo? Ele leva à produção de olhos - não
de mosca, mas de camundongo. Os mamíferos possuem sua
própria versão do ey, chamado Pax6. Ele claramente se originou do
mesmo gene ancestral do ey.
 Em seres como nós e os demais vertebrados, que não
possuem casca com “gominhos” divisores para indicar onde está
cada peça de Lego, fica um pouco difícil imaginar como funciona a
tal modularidade. Mas é só questão de achar o modelo certo para
deixar as coisas claras. Uma sugestão interessante? Um embrião de
cobra. Um estudo recente, capitaneado por Céline Gómez e Olivier
Pourquié, do Instituto Stowers de Pesquisa Médica (Kansas City,
EUA), usou serpentes ainda no ovo para estudar os chamados
somitos, cujo número aparece a conta-gotas nas diferentes fases do
desenvolvimento embrionário da cobra. Os somitos são as peças de
Lego com as quais o seu corpo de vertebrado foi montado. Deles
derivam, em última instância, sua pele, seus músculos e suas
vértebras. Pequenas alterações no mesmo somito “básico” podem
criar todo tipo de corpo, se forem auxiliadas por pequenas
alterações em cada um dos módulos ou segmentos.
Uma serpente de quase 300 vértebras, como a cobra-do-milho
(Pantherophis guttatus), é um exemplo vivo dessa lógica levada às
últimas consequências. Afinal, o bicho quase inteiro não passa de
uma repetição de vértebras, músculo e pele - antigos somitos,
resumindo - com pequenas alterações. Das 296 vértebras, 219 são
vértebras torácicas (ou seja, é como se a cobra fosse 75% tórax).
Como uma fórmula tão extrema para produzir um corpo acabou
aparecendo?
É exatamente esse o charme do trabalho dos pesquisadores. Eles
mediram o “tique-taque” dos somitos - o ritmo com que eles vão
sendo produzidos ao longo do desenvolvimento embrionário - na
cobra-do-milho e em outros vertebrados muito comuns nos
laboratórios: paulistinhas (um tipo de peixe de aquário), frangos e
camundongos. Todos são bichos com um número vastamente
menor de vértebras e somitos. Dá para comparar o surgimento e a
multiplicação desses segmentos com uma espécie de “onda” que
começa abaixo da cabeça do animal e vai se espalhando na direção
da cauda. Nessa onda, uma série de genes vão sendo ativados e
desativados de forma periódica, sinalizando a formação e conclusão
de um novo somito - é quase como se novos segmentos fossem
sendo feitos a partir do “molde” dos anteriores, embora a analogia
não corresponda exatamente à realidade.
Aparentemente, as cobras são mais lerdas nesse processo do que
os outros tipos de vertebrado, mas a vagareza é ilusória. Quando se
compara o “tique-taque” das serpentes com o ritmo geral de seu
crescimento - levando em conta quantas vezes é preciso dividir suas
células para obter o efeito, por exemplo -, dá para perceber que ele,
é proporcionalmente, quatro vezes mais rápido do que o observado
em outros vertebrados. Fora isso, no entanto, os mecanismos são
basicamente os mesmos, inclusive com o “uso” de versões dos
mesmos genes pelo organismo de todos os vertebrados estudados.
A única diferença é que as cobrinhas produzem mais e menores
somitos quando estão no ovo.
O significado de tudo isso em termos evolutivos é mais interessante
do que a simples descrição pode deixar entrever. Uma das grandes
perguntas da biologia evolutiva é saber qual a fonte das novidades
morfológicas dos seres vivos: como, por exemplo, antigos lagartos
se transformaram em serpentes? Ora, o que esse estudo simples e
elegante sugere é que não é necessário “inventar” novos genes ou
reorganizar radicalmente as funções dos genes que já existem. Uma
alteração relativamente simples no padrão temporal - de novo, o
famoso tique-taque - com que certos trechos de DNA são ativados é
suficiente para alterar a forma básica de um corpo.
Para terminar a nossa jornada pela modularidade animal, voltemos
ao nosso patinho Stumpy. Ninguém fez uma análise genética do
bicho ainda, o que torna obscura a origem de sua estranhamorfologia. Nos casos já conhecidos de multiplicação de membros
em vertebrados, a culpa normalmente é de parasitas que levam a
uma multiplicação descontrolada das células responsáveis por
“construir” as futuras patas no embrião. Apesar disso, se
encararmos a situação do ponto de vista genético, Stumpy parece
um bocado o tipo de coisa que aconteceria com um vertebrado que
passasse por alguma disfunção no seu sistema Hox, ou nos genes
que são regulados por esse sistema. Nesse caso, a informação
“construa aqui um par de patas” teria sido duplicada, tendo como
resultado Stumpy, com seu par de “estabilizadores” (como definiu o
fazendeiro que o cria), além das patas normais. A ideia é menos
maluca do que parece: nas boas e velhas moscas-das-frutas,
animais cujo desenvolvimento embrionário tem sido estudado nos
detalhes mais mínimos em laboratório, as confusões afetando genes
Hox levam, por exemplo, ao surgimento de pernas na cabeça, ou de
pares extras de asas.
A grande pergunta é: por que Stumpy, apesar de ter se formado
com a ajuda de regras genéticas comuns a boa parte do reino
animal, é uma exceção? Vamos descontar as afirmações do
fazendeiro que o cria, segundo o qual o bichinho é saudável e não
tem problemas por causa das patinhas a mais. Pode até ser que o
patinho consiga se reproduzir, mas a ausência completa de qualquer
espécie de vertebrado na qual todos os indivíduos tenham mais de
quatro membros provavelmente quer dizer alguma coisa.
E o que seria? Eis o mistério, e aparentemente ainda estamos longe
de ter uma resposta específica a essa pergunta. Em linhas gerais,
porém, parece que cada linhagem de seres vivos tem suas próprias
possibilidades e limitações evolutivas - algo como uma fronteira
dentro da qual ela pode se mover, mas além da qual ela não pode ir.
Nem tudo é possível para a seleção natural: uma vez que ela
“escolha” para uma linhagem de seres uma estrada muito distante
na história da vida, não há como pegar um atalho – pelo menos, não
sempre. Ao contrário dos artrópodes, quatro patas (vá lá,
modificadas, encurtadas ou encompridadas, ou até transformadas
em asas) é o limite da viabilidade para nós, vertebrados terrestres.
Admito que talvez seja uma pena - nós provavelmente nunca vamos
cavalgar um dragão alado. Mas um dragão-de-komodo já é
sensacional o suficiente.
 
Inimigo meu
O genoma é um cemitério – ou uma fábrica – de vírus
 
Alguém já disse que o DNA de uma espécie é a soma de seus
ambientes passados - os genes de um camelo falam de deserto e
estepe, os de um cachalote descrevem lulas e as profundezas do
mar, e por aí vai. Outro jeito de pensar no material genético, no
entanto, é vê-lo como um conjunto de cicatrizes de batalha,
acumuladas ao longo de milhões de anos. Todas as vezes que um
ancestral tomou uma pancada bioquímica e sobreviveu para contar
a história - a cada infecção, picada de inseto ou mordida de cobra -,
cresceram as chances de que seus descendentes portassem a
marca desse golpe rebatido, mostrando que não serão mais presas
fáceis do golpe que vitimou seus avós.
Ainda assim, a analogia é imperfeita. No caso de quase 10%
do genoma humano, o DNA que herdamos está menos para cicatriz
de combate e mais para ponta de flecha, fragmento de lança ou bala
alojada. Isso porque esse material genético é formado por pedaços,
hoje inofensivos, dos próprios inimigos. São, para todos os efeitos,
vírus fósseis que viraram parte de nós. Agora, cientistas do mundo
todo estão tentando ressuscitá-los.
Um deles, aliás, já voltou dos mortos, por obra e graça da moderna
biologia molecular. Thierry Heidmann, o cientista francês
responsável pela façanha, foi logo batizando o vírus redivivo de
“Fênix”. É inevitável se perguntar se essa não é uma monumental
ideia de jerico, mas o fato é que temos muito a aprender com esses
assassinos domados. Para começar, há quem diga que eles trarão
pistas valiosas sobre como os atuais matadores de gente - entre
eles o HIV - podem ser detidos. E alguns indícios sugerem que, se
nós conseguimos “humanizar” esses vírus, eles também podem ter
nos “humanizado”, proporcionando mudanças genéticas cruciais
para a trajetória evolutiva da nossa espécie. Antes dessa viagem, no
entanto, é preciso um pequeno beabá para entender como tais vírus
foram parar no núcleo das nossas células.
Os vírus de que estamos falando são conhecidos como retrovírus
endógenos e, de uma forma ou de outra, compõem 8% do genoma
humano. A segunda parte do apelido é só um jeito cientificamente
preciso de dizer que eles são parte do nosso próprio material
genético. A primeira, porém, pode suscitar associações bem mais
sombrias, em especial para quem sabe como a Aids funciona. Isso
porque o próprio HIV é um retrovírus.
Anos atrás, o americano Robert Gallo, normalmente considerado um
dos descobridores do HIV, explicou-me ao telefone por que
considerava o vírus da Aids tão difícil de combater. “Ele se integra
ao DNA do hospedeiro. E, uma vez que faz isso, fica praticamente
impossível tira-lo de lá”, disse-me Gallo.
O truque operado pelos retrovírus é ainda mais sofisticado do que
essa afirmação pode sugerir. Ao contrário de todos os seres vivos
(sim, a controvérsia ainda não foi resolvida, mas a maioria dos
cientistas opina que os vírus NÃO estão vivos), os retrovírus não
possuem DNA. Seu material genético é formado por outra sigla
famosa, o RNA. Essa molécula-irmã do DNA é diferente, entre
outras coisas, por apresentar uma cadeia química única, em vez da
famosa dupla hélice ou escada torcida de sua “parenta” mais
famosa.
Os retrovírus são provavelmente o ápice do parasitismo: não fazem
quase nada sozinhos, mas são mestres em escravizar as células
vivas para realizarem seu serviço sujo. Com a ajuda de uma
molécula especial conhecida como transcriptase reversa, eles
forçam a célula invadida a transformar o RNA que carregam em
DNA (uma “transcrição reversa”, já que o normal é que o DNA sirva
de molde para o RNA); depois, o DNA do vírus é contrabandeado
para dentro do genoma do hospedeiro. E voilà: agora é a célula
sequestrada a responsável por fabricar mais retrovírus, que invadem
mais células e integram seu material genético a mais cópias do
genoma… bom, você já deve estar imaginando no que isso vai dar.
É mais ou menos o que o vírus da Aids faz.
Alguns retrovírus são tão agressivos que, feito garimpeiros
gananciosos demais, esgotam sua mina de ouro muito cedo. O
resultado é a morte do hospedeiro antes que o parasita consiga
saltar para outro “veio”. Outros realizam essa transferência com
sucesso. E, vez por outra, um retrovírus pode se integrar ao DNA de
uma célula germinativa, como os óvulos e os espermatozoides que
produzimos para gerar bebês. O resultado de uma fecundação em
que um dos componentes sofreu a “integração forçada” de um
retrovírus é o surgimento de um parasita genético hereditário,
passado de pai para filho ao longo de gerações.
Acontece, contudo, que a transmissão dos retrovírus para a prole
tende a obedecer às mesmas regras do que se vê entre
hospedeiros não-aparentados. Isso significa que a agressividade
dos vírus nem sempre é uma estratégia esperta: talvez valha a pena
(de forma inconsciente, é claro; partículas microscópicas não fazem
análise de risco) ficar quietinho e deixar o hospedeiro viver e se
multiplicar, simplesmente pegando carona nele.
Por outro lado, o processo de cópia do DNA não está isento de
erros. Se, por acaso, a replicação da molécula de DNA apresentar
um desses erros bem em cima do “código” do retrovírus, ele pode
deixar de ser funcional. Mal comparando, seria como uma frase que
faz sentido, como:
“A aranha arranha o jarro”,
fosse mal digitada e virasse:
“Arnha ranh jrro”.
Como as máquinas celulares de leitura do DNA não têm a mesma
facilidade de inferir sentidos pelo contexto que o nosso cérebro tem,
a “frase” bioquímica virou, para todos os efeitos, um blábláblá
ininteligível. Com isso, as instruções para produzir o vírus funcional
se perdem e seu DNA se torna um prisioneiro do genoma que
invadiu - como uma bala alojada num osso, digamos.Os biólogos moleculares, no entanto, estão criando técnicas cada
vez mais apurados para inferir a existência desses erros de cópia.
Também conseguem comparar o “texto truncado” do DNA com o de
vírus ativos, de forma que é possível reconhecer o parentesco de
uma sequência do nosso genoma com o de um dos parasitas. Foi
assim, comparando os “textos truncados” presentes em várias
pessoas, que Thierry Heidmann conseguiu fazer o vírus Fênix
ressurgir das cinzas. Aos poucos, outros pesquisadores estão
repetindo a façanha, e os resultados poderão ser de grande
utilidade médica no futuro. Achava-se, por exemplo, que o vírus HIV
não era capaz de atingir as células germinativas e se integrar a elas,
mas um parente próximo do vilão fez exatamente isso numa espécie
de coelho.
Por outro lado, cientistas flagraram um retrovírus endógeno de
macacos que, por motivos ainda não muito claros, parece conferir
proteção contra os sintomas causados pelo vírus da Aids - os
chimpanzés podem ser infectados pelo HIV, mas não ficam doentes.
Curiosamente, nós estamos protegidos do retrovírus endógeno dos
símios - é como se o organismo pudesse fazer uma coisa OU outra,
mas não as duas.
Entender essas danças e contradanças delicadas entre parasitas e
hospedeiros é a melhor maneira de achar os pontos fracos dos
retrovírus. Mas acho que vocês me desculparão se eu disser que as
implicações mais interessantes desse tipo de trabalho é passar a
ver os vírus como arquitetos negligenciados da nossa história
evolutiva.
Um exemplo que eu só posso descrever como maluco é a placenta -
a estrutura que permite que a maioria dos mamíferos passe por uma
longa e protegida gestação no interior de suas mães. Acontece que,
para evitar que o embrião seja rejeitado como um corpo estranho, é
preciso diminuir com precisão cirúrgica a atividade do sistema de
defesa do organismo materno na placenta, que é justamente a
interface entre o bebê e a mãe. Quem faz esse serviço? Moléculas
produzidas por retrovírus endógenos, ora. Ou seja: sem eles, talvez
ainda estivéssemos botando ovos, como os ornitorrincos.
Outros supostos “parasitas” do genoma, os retrotransposons,
também estão se revelando atores importantes na evolução. Os
retrotransposons também parecem ter origem viral, mas ainda são
capazes de saltar de um ponto a outro do DNA, usando a boa e
velha transcriptase reversa para isso. Conforme me contou o
biólogo brasileiro Marcelo Nóbrega, da Universidade de Chicago,
alguns retrotransposons estão maravilhosamente “conservados” - ou
seja, sem alterações em sua sequência de DNA - ao longo de
dezenas de milhões de anos, aparecendo em todos os mamíferos.
A evolução normalmente só conserva dessa maneira trechos de
DNA que têm funções importantes para o organismo. E, de fato,
conta Nóbrega, muitos desses retrotransposons “saltaram” para
regiões reguladores de genes - áreas que determinam como e
quando um determinado gene é “ativado”, por exemplo. O
pesquisador aposta que, ao saltar para novas regiões reguladoras,
eles podem ter desencadeado mudanças importantes para a
evolução das várias linhagens de mamíferos. Invertendo o poeta
brasileiro Augusto dos Anjos, será que “a mão que apedreja é a
mesma que afaga”? Teríamos de agradecer à insídia dos retrovírus
por ter nos dado novas oportunidades evolutivas? É de se pensar.
 
Centauros, quimeras, eucariontes
Fusão de criaturas independentes deu à luz os organismos
complexos
 
A imaginação humana faz as coisas mais absurdamente
improváveis parecerem quase necessárias - como se elas fossem
uma peça do quebra-cabeça do mundo que, por algum motivo,
acabou não vindo da fábrica. OK, talvez eu esteja exagerando, mas
é assim que sempre me senti em relação aos centauros. Não tem
nada mais disparatado do que um torso de gente colado onde
deveria estar a cabeça de um cavalo, mas ver a imagem sempre me
fez desejar profundamente que algo daquele tipo existisse. (De
preferência sem clavas nem mania de raptar moças bonitas, como
os bichos – ou seria “a tribo”? - Faziam na mitologia grega.) Talvez a
biologia evolutiva tenha atendido as minhas preces. O fato, por mais
maluco que isso pareça, é que eu, você e todas as formas de vida
complexas deste planeta somos o resultado de uma fusão de
opostos tão improvável quanto a que produziu os centauros.
Não se trata de mera esquisitice biológica. Nossa natureza de
centauro atende por outro simpático nome grego - somos
eucariontes. E o fato de que essa fusão aparentemente impossível
tenha ocorrido em algum momento do passado determinou os
rumos mais básicos da vida no planeta, da nossa necessidade de
respirar oxigênio ao papel de alicerce dos ecossistemas que as
plantas têm hoje. Aliás, trata-se de uma mistura que ocorreu
múltiplas vezes no mesmo organismo, de forma que algumas
criaturas deixaram de ser centauros (homem + cavalo) e se
parecem mais com a lendária Quimera (outro monstro grego que
juntava pedaços de cabra, leão e serpente). E tudo começou com
uma indigestão monumental.
 Durante bilhões de anos, como vimos na seção que abre
este livro, a vida na Terra foi sinônimo de bactérias. (Daria muito
bem para argumentar que continua sendo: existem mais células de
bactéria do que células de gente num corpo humano, só para citar
um exemplo.) Até cerca de 2 bilhões de anos atrás, esses
microrganismos relativamente simples, com genoma em versão
“básica” e DNA solto no interior da célula, dominavam a biosfera.
Não é nada esperto subestimá-los. Todos os jeitos possíveis de
obter energia para a vida foram originalmente inventados por
bactérias. (E alguns continuam sendo especialidade exclusiva delas,
como usar o sulfeto de hidrogênio como fonte de energia - nada
menos que o equivalente a, digamos, respirar pum. É um trabalho
fedido, mas alguém tem de fazê-lo.)
Pela simplicidade relativa de sua organização celular, as
bactérias são chamadas de procariontes. Imagine que duas
criaturas desse tipo primitivo flutuavam no oceano primordial 2
bilhões de anos atrás. Alguns procariontes, como as nossas plantas,
são pacíficos mestres da fotossíntese, usando a luz do Sol e o gás
carbônico para produzir seu próprio alimento. Outros, no entanto,
são predadores, devorando moléculas orgânicas e inorgânicas que
encontram pelo caminho.
Tudo indica que o ancestral dos futuros eucariontes era um
predador especialmente avantajado nessa época. Provavelmente se
alimentava de bactérias pequenas, englobando-as com sua
membrana celular e lentamente digerindo seu conteúdo. Esse
banquete primitivo deve ter acontecido incontáveis vezes, mas em
dado momento ele parece ter dado errado. A bactéria englobada
pelo predador não conseguiu ser digerida - na verdade, conseguiu
sobreviver e até se multiplicar no interior da célula de seu algoz.
Parece insano, de fato - é como se você engolisse um morango
inteiro e, em vez de ele ser “quebrado” em carboidratos, proteínas e
outras moléculas mais básicas, ele começasse a produzir mais
morangos na sua barriga. No entanto, se você pegar qualquer célula
do seu corpo, vai observar um detalhe estranho. Ela está povoada
por pequenos corpúsculos chamados de mitocôndrias, que
possibilitam que seu organismo use o oxigênio do ar para produzir
energia. As mitocôndrias possuem seu próprio DNA, que
praticamente não tem semelhanças com o DNA “principal” da célula.
Também se multiplicam sozinhas. Adivinhe o que aconteceu quando
esse DNA mitocondrial foi comparado com o de outros seres vivos?
A maior semelhança foi justamente com um grupo específico de
bactérias, cujo metabolismo lembra muito o de uma mitocôndria.
Acredita-se que o ancestral remoto das mitocôndrias conseguiu
escapar da digestão no interior da célula de seu predador por
alguma falha bioquímica. Um mecanismo possível para isso tem a
ver com a formação do fagossomo, a vesícula que surge após um
microrganismo englobar um bocado de comida. Em geral, o
fagossomo se funde a outra vesícula, o lisossomo, cujo conteúdo
ácido finalmente digere o microrganismo menor que foi devorado.
No entanto, se acontecesse deo micróbio comido em tempos
remotos escapar do fagossomo antes de tal fusão, ele poderia
continuar existindo de forma relativamente independente dentro da
célula predadora. Uma vez lá dentro, a bactéria engolida podia usar
a química interna de seu predador para sobreviver, ao mesmo
tempo em que gerava energia por meio de suas habilidades de
manipulação do oxigênio - uma energia que teria sido altamente
benéfica para o organismo hospedeiro. Quando o predador se
reproduziu dividindo sua célula em duas células-filhas, cópias da
bactéria original foram passadas adiante. E assim continua a
acontecer, na verdade - herdamos nossas mitocôndrias do óvulo de
nossa mãe, muito maior do que o espermatozoide paterno.
Tudo indica que um mecanismo parecido é responsável pela
capacidade de fazer fotossíntese das plantas. Elas possuem
cloroplastos - estruturas que também têm DNA próprio e capacidade
independente de replicação. E, como não podia deixar de ser, o
DNA dos cloroplastos é muito parecido com a das cianobactérias -
micróbios de vida livre que também fazem fotossíntese. Nesse caso,
houve uma fusão secundária, pelo que sabemos: um microrganismo
que já tinha mitocôndrias englobou uma cianobactéria e ganhou, ao
longo do tempo, os cloroplastos.
O mais bizarro dessas uniões é que elas parecem ter algo em
comum com o parasitismo, ou com a domesticação de animais.
Parasitas normalmente tendem a simplificar seu organismo,
reduzindo-o ao mínimo necessário, já que quem “cuida” deles é o
hospedeiro. Animais domésticos, com algumas exceções, também
tendem a apresentar cérebros e órgãos dos sentidos menores que
os de seus parentes selvagens, porque sofrem menos pressão da
seleção natural do que eles. Da mesma forma, mitocôndrias e
cloroplastos perderam a maior parte de seu genoma original para o
hospedeiro, que agora assumiu uma série de funções essenciais -
quase como um país ocupado que, em vez de montar um
movimento de resistência contra o conquistador, cede o controle de
serviços essenciais ao exército de ocupação.
Os críticos da teoria da evolução muitas vezes reclamam que nada
do que ela diz pode ser verificado experimentalmente, porque tudo
aconteceu no passado remoto. No caso dessas simbioses bizarras,
no entanto, isso não poderia estar mais longe da verdade. É o caso
da ameba Paulinella chromatophora. O estudo do microrganismo,
que é um eucarionte unicelular capaz de fazer fotossíntese, fornece
indícios fortíssimos de que a fusão entre células diferentes não é um
evento evolutivo tão incomum ou improvável. A P. chromatophora
parece ter englobado uma cianobactéria há relativamente pouco
tempo quando se compara a ameba com as plantas e seus
plastídios.
 As pistas a esse respeito são múltiplas. Uma análise
genética conduzida recentemente por Debashish Bhattacharya,
pesquisador da Universidade de Iowa (Estados Unidos), mostrou
que o plastídio carregado pela ameba tem um genoma várias vezes
maior do que o presente nas estruturas análogas em plantas,
provavelmente porque a transferência de material genético da ex-
bactéria para o núcleo da célula do organismo “chefe” ainda não
avançou muito. Bhattacharya conseguiu ligar o “plastídio em
formação” do micróbio com um grupo específico de cianobactérias,
as do gênero Synechococcus, graças à similaridade genética entre
ambos. Outro detalhe importante é que a cianobactéria recém-
englobada ainda consegue realizar fixação de nitrogênio, um
processo bioquímico que é muito custoso em termos de energia e,
além do mais, precisa acontecer na ausência de oxigênio. Por causa
desse tipo de dificuldade técnica, os plastídios que hoje integram
outras plantas e algas perderam o gene que contém o código para
as “ferramentas” bioquímicas da fixação de nitrogênio. E, falando
outra vez em análise genômica, é no mínimo curioso que a ameba
que tem parentesco mais próximo com a P. chromatophora, a P.
ovalis, seja idêntica em quase tudo – menos na posse de um
plastídio. Em resumo, é praticamente impossível explicar todos
esses detalhes convergentes sem postular uma endossimbiose
recente, realizada apenas pela linhagem de microrganismo que
daria origem à P. chromatophora.
A teoria evolutiva costuma ser retratada como um combate
sanguinolento de vida e morte, que nunca acaba. O curioso, porém,
é que a complexidade das células de animais e plantas jamais teria
surgido sem uma trégua - forçada, é verdade - nesse combate. Só
estamos aqui e viramos equivalentes improváveis de centauros
porque predador e presa tiveram de cooperar.
 
Tudo o que é vivo morre?
O que é inevitável e o que é acidental no fim que nos aguarda
 
O conselho é mais velho do que andar para a frente, mas não é
menos válido por causa disso: cuidado com o que você deseja.
O exemplo mais aterrador de falta de cuidado com desejos que
me vem à cabeça envolve um sujeito chamado Titono, personagem
da mitologia grega. Eis um cara que tinha tudo: príncipe de Tróia,
um dos homens mais belos de seu tempo, reza a lenda que ele era
tão charmoso que nem Eos, a deusa da Aurora, resistiu aos seus
encantos. Apaixonada pelo rapaz, Eos pediu que Zeus, o chefão
dos deuses, transformasse Titono em imortal. Mas o desejo da
deusa tinha sido terrivelmente mal formulado: ela esquecera de
pedir que Titono também ficasse eternamente jovem. O resultado é
que, embora não morresse, ele foi se tornando cada vez mais
enrugado e carcomido, até acabar virando... um gafanhoto imortal.
(Releve a falta de verossimilhança; afinal, é mitologia.)
Titono pode não passar da criação de algum bardo grego com
imaginação hiperativa, mas a ideia de que algo intrinsecamente
horrendo está associado à busca pela imortalidade continua a nos
acompanhar. Como de hábito, no entanto, isso não tem impedido os
cientistas de investigar o misterioso processo que produz a velhice e
a morte. E o que eles andam descobrindo é surpreendente.
Em primeiro lugar, pode ir tirando da cabeça aquela velha definição
sobre os seres vivos que a sua professora do ensino fundamental
certamente fazia a classe repetir em uníssono. (Aposto que ela dizia
algo como “os seres vivos NASCEM, CRESCEM, REPRODUZEM-
SE, ENVELHECEM e MORREM”, certo?) Acontece, porém, que
envelhecer e morrer aparentemente são processos que não estão
no mesmo nível dos três anteriores.
Os seres vivos complexos e de muitas células, como plantas, fungos
e animais humanos e não-humanos, possuem um programa
genético detalhado para guiar seu nascimento, crescimento e
reprodução, mas pelo visto não existe nenhum programa parecido
que guie a velhice e a morte. É certo que algumas de nossas células
naturalmente se encaminham para a morte celular programada, ou
apoptose, mas isso é uma parte natural do crescimento: sem a
apoptose, nossos dedos seriam grudados uns nos outros, só para
dar um exemplo. De qualquer maneira, a maior parte dos indícios
que recolhemos até agora sugerem que envelhecer e morrer são
acidentes de percurso, efeitos colaterais de processos que não têm
relação direta com um fim “intencional” da vida. Resumindo: a
mortalidade seria, em princípio, algo evitável.
Se você duvida, pergunte a qualquer bactéria. Em condições ideais,
esses microrganismos são literalmente imortais. Abasteça uma
bactéria com uma situação ambiental hospitaleira e muita comida e
você verá a criatura clonar a si mesma num ritmo alucinante, sem
nenhum sinal de velhice. É claro que, como não existem recursos
infinitos nem ambientes eternamente aconchegantes no mundo real,
esse tipo de explosão nunca dura muito; ademais, mutações
aleatórias no DNA desses seres podem incapacitar sua reprodução
clonal. Mas, em princípio, as bactérias só morrem de morte matada,
nunca de morte morrida, para usar a terminologia dos cangaceiros.
A morte morrida é uma doença sexualmente transmissível, até onde
sabemos. Embora as bactérias sejam capazes de trocar genes entre
si, o sexo de verdade é uma invenção dos eucariontes, criaturas de
células complexas e com núcleo organizado tal como nós, conforme
vimos ao discutir a endossimbiose no último capítulo.Os primeiros eucariontes, porém, tinham uma célula só, tal como
muitos de seus descendentes modernos. Vários desses eucariontes
primitivos de hoje ainda fazem sexo apenas ocasionalmente (bem,
alguns humanos também...). Normalmente eles se contentam com a
boa e velha reprodução assexuada, dividindo-se em duas células-
filhas. Mas, em momentos de escassez de comida ou estresse
ambiental, eles parecem recorrer a uma estratégia diferente: duas
células diferentes se unem e viram uma só, mais resistente que a
soma das duas e capaz de “hibernar”, por assim dizer. Quando as
coisas melhoram, a junção de células termina e elas voltam a se
reproduzir assexuadamente, como sempre tinham feito.
Em algum momento do passado remoto (há mais de 1 bilhão de
anos, provavelmente), alguns eucariontes mudaram de estratégia
sem querer. Para todos os efeitos, a fusão entre as células que se
uniam passou a ser permanente: elas deram origem a seres com
dois conjuntos diferentes de material genético misturados para
sempre (da mesma maneira que os seres humanos de hoje ganham
metade de sua herança genética do pai e metade da mãe).
Parece uma mudança boba, mas é algo portentoso. A célula (e mais
tarde o corpo) dessas novas criaturas, na prática, deixou de
pertencer a elas. O objetivo perpétuo passou a ser a produção de
células especializadas, com um único conjunto de DNA, capazes de
se unir a outras células do mesmo tipo para gerar um novo adulto
“duplo” e “misto”.
Esse adulto virou um mero intermediário. Forçando um pouco a
barra, e olhando a coisa do ponto de vista dos animais (plantas e
fungos fazem a mesma coisa de um jeito um pouco diferente), pode-
se dizer que o nosso corpo deixou de ser imortal para que os
nossos óvulos e espermatozoides, as tais células especializadas,
ganhassem uma versão da vida eterna, tal como os infinitos clones
de bactérias que poderiam existir num ambiente ideal. Mas com
uma diferença importante: não eram mais clones. Cada geração,
agora, tinha uma combinação genética única.
A boa notícia, ao menos para quem gostaria de adiar bastante ou
até indefinidamente o próprio encontro com a morte, é que o limite
imposto à vida pela reprodução sexuada é bem elástico. Tudo
parece ser uma questão de estratégia: qual é a melhor maneira de
se dar bem reprodutivamente? Como quase tudo nesse mundo, a
resposta é “depende”.
Se você vive num ambiente pobre e/ou muito incerto, que alterna
abundância com penúria extrema, e se você corre risco permanente
de virar almoço, a coisa sensata a fazer é não perder tempo.
Chegue à puberdade logo, transe loucamente, tenha bilhões de
filhotes e, com o futuro genético assegurado graças a eles, pode
bater as botas sossegado. É como aplicar na bolsa de valores:
riscos altos, retornos idem.
Por outro lado, se você ocupa uma posição relativamente
confortável, com comida sempre abundante e quase nenhum
inimigo, não há razão para ter pressa. Você pode muito bem investir
todo o seu tempo e paciência em poucos bebês, que crescem
devagar e precisam de cuidados intermináveis – mas, quando
chegam à sua idade, são quase invulneráveis. É como investir numa
poupança ou previdência privada.
Como a velhice e a morte entram nessa equação? Como trade-offs,
como se diz no jargão de biologia evolutiva, ou “compensações”, em
linguagem de gente. Tudo indica que o envelhecimento não é um
processo programado nos mínimos detalhes. Ele acontece em ritmo
desigual, afetando alguns órgãos e tecidos em ritmo diferente do
que afeta outros, por meio da acumulação aleatória, lenta e gradual
de defeitos moleculares que vão minando as forças do organismo.
Além do mais, a seleção natural, que sempre favorece os indivíduos
mais capazes de se reproduzir, não deveria dar colher de chá para a
infertilidade e a morte trazidas pelo envelhecimento. Então, por que
ele ocorre?
Porque a seleção natural funciona, quase sempre, em termos de
relação custo-benefício – os tais trade-offs. Em primeiro lugar, ficar
corrigindo as falhas do organismo, assim como protegê-lo de
ameaças externas, é caro. Exige um gasto substancial de energia
preciosa, a qual poderia estar sendo direcionada ao objetivo máximo
da reprodução, também muito custoso energeticamente. O
organismo tem de “escolher” (se é que se pode usar essa palavra
ao falar de algo que não tem consciência) – e acaba escolhendo ter
bebês a ficar eternamente sem celulite ou problemas cardíacos.
Dois outros problemas importantes e relacionados têm a ver com a
maneira como certas características genéticas aparentemente ruins
se manifestam. Sabemos que alguns dos piores males ligados à
velhice, como as doenças de Alzheimer e Parkinson, osteoporose,
enfermidades cardíacas etc. quase sempre se manifestam tarde na
vida, embora estejam sob influência de componentes genéticos que
estão no lugar desde a concepção. São bombas-relógio biológicas,
por assim dizer.
Mas, por só detonarem muito tarde, elas têm pouco impacto sobre o
sucesso reprodutivo dos organismos-bomba. É perfeitamente
possível ter montes de filhos e morrer de Alzheimer aos 70 anos –
tendo passado adiante para a prole a predisposição genética para
um dos piores males da velhice. A seleção natural deixa de valer – e
em muitos casos pode até favorecer o DNA que causa o problema,
caso ele tenha um efeito benéfico na juventude, o que parece ser o
caso de muitos genes ligados ao metabolismo energético, ou
mesmo ao câncer. Algumas pesquisas mostram que essencialmente
os mesmos pedaços de DNA ligados ao aparecimento de tumores
também favorecem a produção acelerada de espermatozoides, por
exemplo. Há um tema biológico comum aos dois fenômenos: a
multiplicação de células (um tumor não passa de uma subpopulação
de células que passou a se dividir de forma desordenada, às custas
do resto do organismo). São, portanto, genes de dois gumes como
esses que ajudam a criar o envelhecimento e as mazelas
associadas a ele.
O que acontece, no entanto, se o equilíbrio de trade-offs é
modificado com o aparecimento de uma estratégia que privilegia o
longo prazo, e não o curto prazo? Por sorte, a natureza já fez essa
experiência para nós. Pequenos mamíferos terrestres, como os
camundongos, em geral vivem só dois ou três anos; mas bichos de
tamanho e metabolismo comparável, como pequenos morcegos,
podem viver até 30 anos. (As aves pequenas também vivem muito
mais do que os roedores.) Qual a diferença entre esses bichos?
Asas, ora. A capacidade de voar faz dos morcegos presas bem
menos fáceis do que os camundongos, e assim eles têm um
incentivo para viver vidas mais longas.
Experimentos em laboratório, envolvendo o vermezinho C. elegans,
moscas-das-frutas e camundongos, tornam essa história ainda mais
fascinante. Uma série de pesquisas realizadas ao longo da década
passada verificou de forma impressionante o que acontecia quanto
os trade-offs eram modificados colocando, por exemplo, essas
criaturas sob uma dieta muito rigorosa, o chamado regime de
restrição calórica (no qual os bichos passam fome, mas não chegam
a ficar desnutridos porque a comida é pouca, porém balanceada);
“desligando” genes que controlam o metabolismo energético e o
crescimento; e esterilizando os animais.
A interpretação dos resultados ainda é controversa, mas os dados
em si deixam pouca margem de discussão. Em poucas palavras,
passar fome sem ficar desnutrido parece transformar os C. elegans
em verdadeiros Matusaléns. Os bichos conseguem viver 90 dias
(normalmente, morrem após duas semanas de vida) – o equivalente
de um humano com mais de 600 anos. Efeitos parecidos acontecem
quando as células reprodutivas dos bichos são extirpadas com laser.
Curiosamente, no caso dos vermes que vivem sob restrição
calórica, assim como entre as moscas e roedores, surge uma
associação entre passar fome e ficar infértil.
É quase como se o organismo, confrontado com a impossibilidade
de deixar descendentes, direcionasse todas as suas energias para a
autopreservação, na esperança de que condições melhores
permitam, algum dia, que ele possa ter descendentes.
Aparentemente, a modificaçãoalimentar – ou sexual/metabólica –
envia sinais bioquímicos em cascata que modificam todo o
funcionamento da criatura.
Neste momento, experimentos parecidos estão em curso em
macacos resos, com resultados ainda preliminares. No entanto, se o
que se vê em roedores se repetir nesses primatas, parentes muito
próximos do homem, não é difícil prever uma corrida para tentar
simular, em humanos comilões, os mesmos efeitos bioquímicos da
restrição calórica – se é que isso é possível. Alguns afoitos, em
busca de uma velhice bem mais longa e saudável do que a que
espera o comum dos mortais, dispuseram-se a fazer o experimento
em si mesmos nos Estados Unidos, mas por enquanto ainda vale o
conselho: não tente fazer isso em casa.
Figuras científicas mais ousadas, como o pesquisador britânico
Aubrey de Grey, falam até em usar os conhecimentos obtidos com
esses estudos para criar uma “engenharia da imortalidade”: vencer
os trade-offs evolutivos no próprio jogo deles para impedir o
acúmulo de danos moleculares e celulares e aumentar
drasticamente a nossa expectativa de vida. No momento, o objetivo
da imensa maioria dos pesquisadores sérios é bem menos
ambicioso. Eles acreditam que os estudos com animais podem nos
ajudar a criar um novo tipo de velhice, com mais qualidade de vida e
menos medo de males degenerativos e incapacitantes. Vamos
supor, no entanto, que as ideias de Grey sejam viáveis. A questão,
nesse caso, fica fora dos limites da ciência: será que devemos
engenheirar nossa própria imortalidade?
 
Quatro por quatro
Genoma quadruplicado pode ser a chave da origem dos vertebrados
 
Embora os resultados mais espetaculares da evolução normalmente
só apareçam em intervalos de milhões ou dezenas de milhões de
anos, nunca é demais lembrar que o processo em si acontece sem
parar, a passo de formiguinha, nos mesmos momentos fugazes que
você gasta ao ler este capítulo. Ou ao menos essa é a visão
ortodoxa da coisa. De fato, pequenas mudanças cumulativas – um
gene que fica inutilizado aqui, outro cuja regulação muda
ligeiramente ali – podem, se extrapoladas ao longo do tempo
geológico, desembocar em modificações das grandes. No entanto,
ao menos no nível do material genético que é a matéria-prima da
evolução, saltos de complexidade às vezes acontecem. E um deles,
a julgar por análises recentes de DNA, talvez esteja por trás do
sucesso dos vertebrados – peixes, anfíbios, répteis, aves e
mamíferos que hoje, juntos, colonizam todo tipo de ambiente e
assumem as formas mais variadas. Tudo indica que se trata de um
salto duplo: o genoma da nossa linhagem, o conjunto do nosso
DNA, teria simplesmente dobrado duas vezes seguidas.
 Um par de siglas inglesas é usado para designar essa
hipótese surpreendente: WGD (“duplicação de genoma inteiro”) e
2R (“duas rodadas”). A ideia foi proposta inicialmente pelo biólogo
japonês naturalizado americano Susumu Ohno em 1970, mas só ao
longo da última década é que os cientistas se tornaram capaz de
testá-la, com o advento de máquinas e técnicas capazes de “ler”
bilhões de letras do alfabeto químico do DNA em relativamente
pouco tempo. Muitos pesquisadores à moda antiga criticaram, com
certa razão, a moda da genômica, ramo da biologia que se dedica à
soletração e análise do DNA em larga escala. Os críticos afirmam
que a genômica é mera linha de montagem, produzindo leituras de
genes sem se perguntar para que vai servir tudo aquilo, mas num
ponto a genômica é um bocado útil: nunca tivemos tanta informação
biológica potencialmente preciosa à espera de ser minerada. A
hipótese do “genoma 4x4”, se podemos chamá-la assim, é uma
ótima maneira de escarafunchar esse tesouro.
 Entre os indícios de que a ideia tem ao menos alguma
substância está a proporção de genes Hox, nossos velhos
conhecidos dos últimos capítulos, no genoma de vertebrados e
invertebrados. A proporção, como sugere a hipótese, é de quatro
genes desse tipo nos vertebrados para cada gene do mesmo grupo
nos invertebrados. Cabe aqui um parêntese importante: genes,
assim como indivíduos, podem muito bem formar “famílias”.
Considerando que todas as formas de vida na Terra atual
provavelmente descendem de um ancestral comum, a conclusão
lógica é que os genes também foram se multiplicando e ganhando
novas funções ao longo do tempo. Existe aí uma tensão
interessante entre semelhança e diferenciação: apesar da
sequência de DNA de tais genes, bem como as proteínas que eles
codificam, tornarem-se distintas, ainda é possível inferir a origem
comum dentro dessas famílias de genes, tal e qual um padrão
específico de mutações ajuda a rastrear os parentes de um homem
pelo lado masculino com a ajuda do cromossomo Y. 
 Temos boas razões para acreditar que a duplicação de
genes representaria ao menos algumas vantagens do ponto de vista
da seleção natural. Se um gene, por si só, sofre uma mutação, a
probabilidade de que ela seja neutra ou até nociva ao organismo
que o carrega é considerável: afinal, aquele pedaço de DNA, para
chegar até aquele corpo, provavelmente já passou por rodadas e
rodadas de triagem implacável. A coisa muda um pouco de figura
quando falamos de um gene duplicado. Para começar, o gene
original continua lá, de forma que o crivo da seleção natural sobre a
nova cópia fica menos draconiano. Ele ganha relativa liberdade para
passar por alterações e, entre outras coisas, tornar-se
complementar ao gene original (isso é o que parece ter acontecido
com os diversos genes humanos da hemoglobina, pigmento
vermelho do sangue que ajuda no transporte de oxigênio e gás
carbônico) ou até adquirir funções bioquímicas totalmente novas. E,
claro, nada impede que ele perca totalmente suas funções ou até se
torne nocivo, o que acabará levando ao seu desaparecimento e à
volta do status quo, ou seja, um único gene.
 Com esses dados teóricos na cabeça, imagine agora a
abertura gigantesca de oportunidades evolutivas que uma
quadruplicação do genoma poderia ocasionar. De uma coisa
sabemos: não tem nada de ficção científica no conceito em si.
Criaturas como choupos (uma árvore do hemisfério Norte) e sapos
africanos parecem ter atravessado uma duplicação integral do
genoma em tempos bem recentes. Um simples erro no processo de
desenvolvimento seria suficiente – algo como um óvulo recém-
fecundado que multiplica seus cromossomos, preparando-se para a
divisão celular, mas “esquece” de separar as células. Uma vez que o
embrião em estágio inicial prosseguisse com uma nova
multiplicação e divisão celular depois disso, ele deixaria de ser
diploide – possuidor de dois conjuntos de cromossomos – para ser
tetraploide, ou seja, com um quarteto de cada cromossomo. Repita
o processo e você tem aquela sigla dupla lá de cima – WGD, 2R.
 Paramvir Dehal e Jeffrey Boore, dupla de pesquisadores do
Laboratório Nacional Lawrence Berkeley e da Universidade da
Califórnia em Berkeley, nos Estados Unidos, pôs-se a testar a
presença desse tipo de fenômeno no passado longínquo dos
vertebrados fazendo uma comparação extensa entre os genomas
de espécies já estudadas de forma intensiva: pessoas,
camundongos, o baiacu Takifugu rubripes (peixe muito importante
como organismo-modelo) e, como toque final, a Ciona intestinalis,
um tunicado – invertebrado filtrador que provavelmente é um dos
parentes vivos mais próximos dos vertebrados. A presença da C.
intestinalis nesse balaio de gatos é importantíssima porque ela
serve de “outgroup”, ou grupo externo – ou seja, ajuda os cientistas
a saberem o que é geneticamente único dos vertebrados e o que
eles compartilham com os invertebrados.
 A análise dessa batelada de dados não começou muito
animadora. Embora quase 35% dos genes derivados do ancestral
comum de todos os vertebrados mostrassem sinais de duplicação
antes da separação de peixes e vertebrados terrestres, só uns 11%
pareciam ter passado pelo processo duas vezes seguidas.
Aparentemente, portanto, uma má notícia para a hipótese “4x4”. No
entanto, a coisa ficou bem melhor quando esse mesmo “conjunto
básicode genes vertebrados” foi examinado no interior do genoma
humano, o mais bem estudado de todos até agora. Esses genes,
repito, foram herdados pelos ancestrais da nossa espécie antes que
nossa linhagem se separasse da que originou os peixes modernos.
E eles estão distribuídos pelo DNA humano numa espécie de
compasso quaternário: quartetos de genes, cada um deles
aparentado ao outro, espalhados por quatro grandes regiões dos
cromossomos, digamos.
 Estamos falando de blocos tão avantajados de DNA que
seria bem difícil uma duplicação gene a gene: o mais provável é que
cromossomos inteiros tenham sido “dobrados”, e isso é o que se
esperaria de uma WGD 2R. Apesar de 450 milhões de anos de
evolução separada, a marca do fenômeno estava lá, para quem
quisesse ver. É tentador imaginar que a imensa diversidade de
formas que os vertebrados assumem tenha a ver com essa
quadruplicação, em especial quando se pensa nos genes Hox, os
quais, como talvez você se lembre, têm um papel importantíssimo
na determinação da estrutura corporal. Por enquanto, é difícil
afirmar qualquer coisa com certeza a esse respeito. 
 A saga da duplicação genômica, no entanto, não termina
aqui. Há alguns indícios intrigantes de que o grupo dominante de
peixes ósseos marinhos (com ossos no esqueleto, ao contrário dos
tubarões e companhia, que só possuem cartilagens) sejam 3R, ou
seja, tenham passado por uma terceira rodada de duplicação
genômica total. Não que eles tenham ficado contentes com isso:
Roderick Nigel Finn, da Universidade de Bergen, da Noruega,
propõe que essa duplicação do genoma foi encimada, como cereja
do bolo, por duplicações dos genes que codificam as vitelogeninas,
proteínas dos ovos dos vertebrados.
 O raciocínio é de uma elegância a toda prova. Primeiro, é
preciso lembrar que os peixes ósseos que dominam os mares hoje,
os Acantomorpha, descendem de ancestrais de água doce e só
passaram por uma explosão evolutiva nos oceanos uns 60 milhões
de anos atrás, talvez após a extinção dos dinossauros. Um aspecto
central da fisiologia deles trai a origem em rios e lagos: seu
organismo perde água para o mar, enquanto ganha água em
ambientes fluviais. Isso significa que eles evoluíram para viver na
concentração de sais presentes na água doce, tanto que possuem
rins, aparato feito para se livrar do excesso de água num ambiente
(o mar) onde eles não vão obter esse excedente nem que a vaca
tussa.
 Ora, a situação é ainda mais crítica para os ovos desses
peixes: os embriões simplesmente não têm formas de evitar a perda
catastrófica de água que os animais correm o risco de sofrer em
ambiente marinho. Para tirar os filhotes dessa enrascada, os genes
duplicados da vitelogenina codificam uma mudança completa do
conteúdo dos ovos, de maneira que, mesmo na água salgada do
mar, eles ganham o precioso líquido do meio circundante, em vez de
perdê-lo. A alteração metabólica ainda permite que os ovos desse
tipo de peixe flutuem mar adentro.
 Outros exemplos da magia biológica realizada pela
duplicação do genoma inteiro ou de pedaços dele certamente vão
continuar a emergir. O que parece indiscutível, de qualquer forma, é
o fato de que a caricatura linear da evolução – mutação a mutação,
gene a gene – esconde uma natureza muito mais apressadinha do
que imaginávamos antes.
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
Elos
Dos intermediários que comprovam o passado das espécies
 
Arbusto genealógico
Origem da humanidade é muito mais complexa que um elo perdido
 
Brigar com décadas de tradição iconográfica, com imagens que o
olho de qualquer pessoa aprendeu a reconhecer, é tarefa inglória –
meio como querer apagar da memória coletiva o logotipo
inconfundível da Coca-Cola. O meu problema, no entanto, não é
que com as corporações capitalistas malvadas, mas com a imagem
tradicional da evolução humana como uma “grande caminhada”, que
começa com um macaquinho encurvado e segue com exemplares
cada vez mais eretos e menos peludos, até o ápice da vida animal –
nós, é claro, a consequência inevitável e necessária do processo
todo. Incontáveis versões dessa imagem foram reproduzidas em
livros didáticos, pôsteres e obras antigonas de divulgação científica
(sem falar nas propagandas de cerveja, de cursinhos pré-
vestibulares, de carros...) e o resultado só pode ser classificado
como desastroso. Não estou falando só do fato de que ela reflete
uma visão caricaturesca, cheia de preconceitos do século 19, sobre
como nossos ancestrais andavam e se comportavam. Ela também
está factualmente errada. Não existe uma escadinha evolutiva que
conduza a nós. Existe um arbusto, e nós somos um dos galhos.
Para ser um pouco mais claro, o suposto fracasso em achar o
“elo perdido” entre humanos e demais primatas, bem como as
dúvidas que ainda pairam sobre a relação exata entre os diversos
membros extintos da nossa linhagem e nós, podem muito bem não
ser uma coisa ruim do ponto de vista científico. Esses dois pontos,
infelizmente, são muito salientados pelos velhos criacionistas e sua
versão repaginada, os proponentes do chamado design inteligente,
que recusam a validade científica da teoria evolutiva. No entanto, é
preciso ver esses elementos como triunfos, e não como fraquezas.
Eles são exatamente o que se espera – e o que se vê – na trajetória
evolutiva de qualquer espécie. E nós estamos nos encaixando
nesse quadro.
A imagem refletida na “caminhada evolutiva” dos velhos pôsteres é
a de uma linha ininterrupta que leva dos australopitecos – criaturas
que surgiram há cerca de 4 milhões de anos – rumo ao Homo
habilis, primeiro membro do nosso gênero, depois ao Homo erectus,
ao chamado Homo sapiens arcaico e, finalmente, ao ápice da
evolução, nós, o Homo sapiens moderno. Alguns dos problemas
com essa visão exageradamente arrumadinha são conceituais,
outros factuais. Vamos por partes.
Ninguém discute a criatividade e o poderio da raça humana
moderna diante das outras espécies de seres vivos, mas desenhar a
evolução dos hominídeos (nome tradicionalmente empregado para
designar a nós e a todos os nossos parentes extintos mais próximos
do que os chimpanzés; hoje, o termo cientificamente mais aceito é
homininos, mas ainda não “pegou”) como uma estrada em que
todos os caminhos levam ao Homo sapiens é forçar a barra. Os
seres vivos existem no curto prazo: são as pequenas mudanças
casuais em sua estrutura genética que, acumuladas, acabam
levando a grandes transformações evolutivas. Para isso, eles
precisam ser bem-sucedidos no imperativo “crescei e multiplicai-
vos” aqui e agora. Nenhum australopiteco passou a vida impaciente,
sonhando com “o que você quer ser quando evoluir” (Homo habilis,
ou Homo sapiens): como diria o Skank, mil acasos levaram alguns
dos descendentes dele (não todos, é bom frisar!) até nós.
É exatamente por causa disso que a maior das falácias criacionistas
– formulada na velha pergunta “Se nós evoluímos dos macacos, por
que ainda existe essa macacada toda por aí?” - é facilmente
derrubável. Não estou falando nem do detalhe importante de que
descendemos de uma forma extinta de primata, e não de algum dos
macacos vivos hoje. O que acontece é que virar bípede, ficar pelado
e fabricar ferramentas complexas funcionou para a nossa linhagem,
mas os outros modos de vida possíveis para um primata – beber
seiva de árvores, como alguns saguis, ou mastigar toneladas de
folhas e caules, feito os gorilas – continuaram viáveis. E, portanto,
os outros primatas continuam por aqui, e não pararam no tempo de
nenhuma forma significativa.
A demonstração mais eloquente de que isso aconteceu são os
múltiplos galhos do nosso arbusto evolutivo que surgiram e
prosperaram lado a lado com os prováveis ancestrais diretos do
homem. Supostamente, a invenção das ferramentas teria sido um
ponto de virada na nossa carreira, como representado de forma
antológica pelo filme "2001 – Uma Odisseia no Espaço". No entanto,
mais ou menos na época em que os primeiros membros do gênero
Homo se aventuravam como criadores de instrumentos,os
chamados australopitecíneos robustos – normalmente classificados
no gênero Paranthropus – simplesmente mandaram tudo às favas e
foram comer... raízes duras.
O crânio dos Paranthropus parece o de alguém que resolveu fazer
um corte de cabelo moicano no próprio osso. Ele é encimado por
uma crista óssea que ajudava a ancorar poderosos músculos
mastigatórios, os quais desciam por bochechas alargadíssimas.
Muita gente acredita que a linhagem humana prosperou graças ao
uso cada vez mais freqüente de alimentos altamente nutritivos e
fáceis de mastigar, que teriam turbinado o crescimento do cérebro.
Mas os Paranthropus representam um passo na direção justamente
oposta. Viraram especialistas em comer vegetais duros e fibrosos,
embora provavelmente também não dispensassem proteína animal
caso dessem a sorte de adquiri-la. De qualquer maneira,
sobreviveram por cerca de 1 milhão de anos.
Talvez o mesmo fenômeno, apenas um pouco mais sutil, aconteça
com outros membros do gênero Homo, como os Homo rudolfensis
(mais ou menos contemporâneos do Homo habilis) ou os
neandertais. Em quase todos os grupos de animais, incluindo
mamíferos de grande porte como nós, a evolução de uma linhagem
tende a se dar com o aparecimento de um número considerável de
espécies aparentadas, como os tigres, leões e onças (gênero
Panthera) entre os felinos. É notoriamente complicado distinguir
entre um e outro com base apenas nos fósseis, mas sabemos que,
no mundo real, esses grupos de espécies atuam em nichos
ecológicos que são ligeira mas significativamente diferentes.
Diferentes, repito: nem melhores, nem piores.
É bem provável que um fenômeno parecido esteja obscurecendo a
nossa percepção sobre a origem da característica que define a
nossa linhagem: o bipedalismo, a capacidade de andar com duas
pernas. O problema aqui é o estado fragmentado dos fósseis e a
proximidade deles no tempo. Um dos principais candidatos a
primeiro hominídeo (ou hominino) e primeiro primata bípede é o
Sahelanthropus tchadensis, com pouco mais de 6 milhões de anos.
Também com cerca de 6 milhões de anos, o Orrorin tugenensis é o
outro grande concorrente a primeiro hominídeo. Os dois seriam
bípedes, embora o S. tchadensis dependa de uma característica
indireta para ser classificado assim (a posição da abertura de seu
crânio que leva ao pescoço), porque seus membros não foram
preservados. Como essa abertura, conhecida como foramen
magnum, está posicionada diretamente embaixo do crânio da
criatura, parece que seu pescoço e tronco seguiam uma linha reta,
indicando seu bipedalismo. Há quem diga que ambos os bichos
possuem características estranhamente “à frente de seu tempo”,
que não batem com sua inclusão entre os hominídeos tradicionais.
Outros chegam mesmo a questionar o status de bípede dos dois.
De novo, talvez a confusão seja só o esperado. Não é inconcebível
que o aparecimento do bipedalismo tenha sido acompanhado de
uma miniexplosão evolutiva. Nela, primatas diferentes, talvez com
origens relativamente distantes entre si, podem ter explorado de
formas ligeiramente distintas as possibilidades oferecidas pelo novo
modo de vida. (Quais seriam essas oportunidades? Ainda não
sabemos. A velha ideia de que viramos bípedes para desbravar o
ambiente aberto da savana africana caiu por terra quando os
paleoantropólogos viram que os hominídeos mais antigos viviam em
matas mais ou menos fechadas.) É natural que seja difícil distinguir
quem é quem. O que não se pode questionar é a relativa
completude do registro fóssil que conduz de grandes macacos
parecidos com os atuais chimpanzés até os paulistanos – e os
britânicos, e os chineses – modernos. A linha reta não existe, mas
vemos antecedentes claros e graduais de características como o
nosso cérebro volumoso, as proporções do nosso corpo, o tamanho
modesto dos nossos dentes.
Pode ser que nunca tenhamos dados suficientes para reconstruir
com clareza cada passo, mas pode ser também que seja melhor
assim. O modelo do arbusto confunde um pouco, mas também traz
perspectiva e reconduz a humanidade ao labirinto luxuriante de
ramos – todos com valor, todos com uma história. Há grandeza
nessa visão da vida.
 
Da água à terra
Como as patas surgiram para nadar
 
Se um dia eu tivesse de fazer uma lista de dez mandamentos da
ciência, o primeiro e mais importante de todos provavelmente seria:
“Não imporás teus próprios preconceitos à natureza”. Caso ele fosse
seguido à risca, 90% das escorregadas científicas da história teriam
sido evitadas. Mas cientista também é gente, o que significa ficar
enredado, volta e meia, nas intuições completamente naturais – e
factualmente erradas – da nossa espécie. Tomemos um caso
clássico: por que alguns vertebrados desenvolveram patas? Durante
muito tempo, a resposta científica padrão foi aquela que todos nós
daríamos sem pestanejar: para andar na terra, ué. Próxima
pergunta?
 No entanto, a resposta óbvia está um bocado longe da
verdade, e vem levando um zero da natureza há algumas décadas.
Escavando fósseis em regiões remotas do globo ou recuperando-os
nos baús de museus, os paleontólogos estão traçando um quadro
incrivelmente detalhado da origem dos nossos braços e pernas. O
fato é que alguns peixes “criaram” patas não para se locomover em
terra firme, mas como uma ferramenta para enfrentar um
determinado tipo de ambiente aquático. Caminhar com elas foi,
desse ponto de vista, apenas uma aplicação secundária de um
órgão que já estava pronto, ao menos em suas linhas gerais.
 Quase todo mundo já viu aquelas animações sobre a
transição “da água à terra” dos vertebrados (eu me lembro de uma
fofíssima, de massinha de modelar e técnica “stop and motion”, na
qual o peixinho fica encalhado na praia e ganha patas). Esses
desenhos animados são uma apresentação simplificada do cenário
proposto originalmente pelo paleontólogo americano Alfred Romer
nos remotos anos 1950. Com poucos dados fósseis diretos sobre a
transição entre vertebrados d'água e vertebrados da terra (os
chamados tetrápodes, ou “de quatro patas”, em grego), Romer se
pôs a elucubrar. Ele sugeriu que, em condições periódicas de seca,
alguns peixes teriam ficado sem seu meio natural. Usando
nadadeiras musculosas, como as dos atuais celacantos e peixes
pulmonados, alguns desses bichos teriam conseguido se arrastar de
poça em poça, recuperando o elemento respirável. Com o tempo, os
animais mais bem-sucedidos na proverbial luta pela sobrevivência
eram aqueles cujas nadadeiras tinham melhor capacidade de
locomoção a pé enxuto, por assim dizer. E voilà: nascem as patas.
 Romer até tinha algumas pistas intrigantes para construir
esse roteiro, como a existência moderna de peixes que conseguem
extrair oxigênio do ar emergencialmente ou o fato de que alguns
deles realmente conseguem usar as nadadeiras para se arrastar em
terra. Mas ele não tinha como enxergar esse processo acontecendo
no passado remoto porque só havia pontas soltas no registro fóssil.
 De um lado estava o Eusthenopteron, um peixe de
nadadeiras musculosas; e, do outro, havia o Ichthyostega, um
tetrápode “pronto” demais para que fosse possível detalhar a
transição entre uma forma e outra. Os fósseis estavam espalhados
por um período que ia de 400 milhões a 350 milhões de anos atrás –
pouco menos que o tempo que nos separa dos dinossauros.
 A coisa começou a mudar de figura no fim dos anos 1980,
quando veio à tona o esqueleto pós-craniano – ou seja, do pescoço
para baixo – do tetrápode primitivo Acanthostega, que viveu na
Groenlândia há uns 360 milhões de anos. O bicho tinha, para
começar, quatro membros bem formados, só que com oito dedos
cada. A estrutura desses membros, no entanto, era muito parecida
com a de remos, sendo incapaz de apoiar o peso do bicho se ele
quisesse ficar de pé.
 De quebra, havia duas outras adaptações aquáticas claras:
uma cauda que aparentemente terminava numa nadadeira e
brânquias totalmente funcionais, embora o bicho também mostrasse
sinais de que usava a respiração pulmonarquando isso era
necessário. No conjunto, a única conclusão razoável a se tomar era
que os membros desse bicho tinham sido “projetados” pela seleção
natural para a vida na água, e não na terra.
 A partir daí os estudos sobre tetrápodes que documentam a
transição água-terra não pararam mais, em parte porque as
características do Acanthostega ajudaram os cientistas a identificar
bichos aparentados mesmo quando o esqueleto não era tão
completo ou até tinha ficado pegando poeira num museu durante
décadas. Isso permitiu criar um quadro geral bastante preciso, e
surpreendente, dos primeiros vertebrados com patas.
 A característica mais misteriosa deles são os oito, sete ou
seis dedos – hoje, nenhum bicho terrestre nasce com mais de cinco
dedos, nosso número “mágico”, sabe-se lá o porquê. De acordo com
a paleontóloga britânica Jenny Clack, da Universidade de
Cambridge, é possível que o exemplo mais antigo de tetrápode com
cinco dígitos é o Pederpes, animal de uns 340 milhões de anos.
Suas patas de trás parecem ter sido pentadáctilas, embora não seja
possível ter certeza, porque o espécime está incompleto (já as da
frente talvez ainda tenham contado com seis ou mais dedos). Clack
aposta que a diminuição do número de dedos tenha de fato a ver
com a locomoção em terra firme: o “número mágico” de cinco
combinaria flexibilidade com estabilidade e compensaria a perda da
membrana existente entre cada dígito, além de facilitar o controle
motor individual de cada dedo. 
 Estamos, no entanto, avançando bastante no futuro. Os
primeiríssimos tetrápodes, além de polidáctilos (com mais de cinco
dedos), invariavelmente vêm de rochas de origem aquática, em
geral de água doce, têm tamanho considerável – um metro ou mais
de comprimento – e são predadores. Essa descrição geral ainda
deixa de fora o enigma dos enigmas, ou seja, o surgimento das
patas. Pelo menos o aspecto aritmético do mistério – o porquê das
quatro patas – está bastante claro, ainda de acordo com Clack. Os
dois pares de patas correspondem a um par de nadadeiras peitorais
e um par de nadadeiras pélvicas, padrão estabelecido nos
ancestrais da maioria dos peixes atuais dezenas de milhões de anos
antes do início da linhagem dos tetrápodes.
 A grande questão é saber por que nadadeiras peitorais e
pélvicas começaram a passar por modificações anatômicas que as
transformariam em patas. Os achados paleontológicos mais
recentes mostram que parece haver uma correlação entre os
ambientes dos primeiros tetrápodes e as transformações em seus
membros e crânios. De forma muito resumida, pode-se dizer que
eles viviam em águas rasas, cheias de vegetação e matéria
orgânica, onde era difícil extrair oxigênio. A solução? Respirar mais
ar, é claro.
 Para fazer isso, os membros parecem ter funcionado como
uma espécie de “apoio para flexões” - o bicho simplesmente usava
as patas da frente para erguer a cabeça acima do nível da água.
Esse mesmo movimento, igual ao de um humano fazendo flexões,
por exemplo, ajudaria o bicho a se estabilizar n'água enquanto
tentava capturar suas presas. As alterações foram acompanhadas
por mudanças que favoreceram a respiração aérea, e outras na
ligação da cabeça com o resto do corpo: surgia o pescoço!
 O mais recente tijolinho a se integrar a esse edifício cada
vez mais sólido de ideias é o Tiktaalik. Esse bicho do Canadá, cujo
nome científico deriva de um idioma dos nativos do Ártico, foi
carinhosamente apelidado de “peixápode” (mistura de peixe com
tetrápode. Pegou?) por um de seus descobridores, o americano Neil
Shubin. Entre as características importantes do bicho, que teria
vivido há uns 380 milhões de anos, está a ausência de dedos, mas
a presença de pescoço e de um rudimento de “pulso” nas
nadadeiras. Ou seja, mesmo sem dígitos de verdade, a criatura já
seria capaz de fazer as tais flexões.
 Começamos esta breve exposição sobre a origem das
nossas pernas e braços com uma exortação contra o preconceito
evolutivo, e me parece importante voltarmos a ela. Uma das lições
que estamos aprendendo com os tetrápodes primitivos é que um
aparente “objetivo” evolutivo - andar em terra firme – tem pouco a
ver com o que as criaturas individuais estão fazendo em
determinado momento. Seu único interesse é usar todos os meios
necessários para seguir o imperativo número 1 da vida, a
sobrevivência e a multiplicação - mesmo que para isso elas tenham
de usar os membros para nadar e fazer flexões, e não para o que
eles “deveriam” fazer, que é andar, segundo a nossa perspectiva
humana limitada.
 Finalmente, é bom ter em conta que a evolução é um
arquiteto fissurado em reciclagem. Os órgãos que possuímos hoje
podem parecer estar profundamente adaptados às suas funções
atuais, mas nada garante que eles tenham aparecido para
desempenhar tarefas profundamente diferentes. Foram cooptados,
milhões de anos depois, para fazer outras coisas, mas as marcas de
sua origem tendem a continuar visíveis.
 
Da terra à agua
Os mamíferos de casco que deram origem às baleias
 
Todo interessado em evolução deveria ingerir uma dose extra de
humildade antes de se arriscar a falar sobre a origem dos cetáceos.
Afinal, o próprio Charles Darwin acabou passando vergonha quando
tentou montar um cenário evolutivo para o surgimento desses
bichos na primeira edição de seu clássico A Origem das Espécies.
Darwin propôs que um urso nadando com a boca aberta para
capturar insetos boiando n'água poderia ser um protótipo
interessante de pré-baleia. O pobre naturalista foi tão ridicularizado
por causa do chute – “zoado” talvez seja uma palavra melhor – que
reformulou totalmente a frase nas edições seguintes do livro.
 Por sorte, aprendemos uma coisinha ou duas desde o fim
do século 19. Embora Darwin tivesse uma capacidade quase
sobrenatural para propor linhas de pesquisa à frente de seu tempo,
ele não dispunha das ferramentas da biologia molecular, nem de
alguns fósseis espetaculares descobertos dos anos 1980 para cá.
Com essas novas pistas, a gênese das baleias perdeu muito da
aura de mistério que tinha.
 Embora ainda pairem dúvidas sobre os momentos mais
antigos do processo, contamos hoje com um registro quase
ininterrupto de formas intermediárias – do nosso ponto de vista
moderno, claro – entre as criaturas maravilhosamente
transformadas pelo meio aquático de hoje e um grupo apenas
ligeiramente esquisito de mamíferos terrestres de 50 milhões de
anos atrás. Levando em conta as incertezas que ainda existem,
convido-o, nobre leitor, a entender a essa jornada evolutiva de trás
para frente: partindo dos cetáceos modernos para chegar aos mais
primitivos.
 O desafio imposto pelas baleias à biologia evolutiva tem a
ver com o incrível conjunto de adaptações aquáticas do grupo.
Graças a elementos como o sangue quente, a viviparidade
(gestação dos filhotes no interior do corpo da mãe) e a produção de
leite, seria impossível não classificar os cetáceos como mamíferos,
mas é difícil imaginar formas de transição entre seus corpos de
nadadores e qualquer bicho terrestre conhecido.
 No entanto, como dizia um finado cientista, “a evolução é
mais esperta que você”. As antigas patas de trás das baleias e
golfinhos desapareceram quase por completo nas espécies
modernas, embora suas barbatanas dianteiras não passem de
braços modificados. É nesse vão que entra o Basilosaurus, uma
baleia esquisitíssima que mais lembra uma serpente marinha e
viveu no mar que recobria parte do Egito há uns 40 milhões de
anos.
 Não há dúvidas de que o Basilosaurus era um cetáceo,
mas a parte traseira de seu corpanzil de 18 metros era adornada por
duas patinhas com menos de 50 centímetros de comprimento.
Levando em conta todo o resto da anatomia da criatura, é certo que
elas jamais conseguiriam suportar seu peso fora d’água, mas, de
qualquer maneira, estavam inequivocamente lá. Em algum momento
do passado remoto, as baleias tiveram patas de trás.
 Ossedimentos marinhos egípcios onde o leviatã em
questão foi encontrado estão no meio do Deserto Ocidental egípcio,
mas, como eu disse, um dia estiveram debaixo das águas do mar de
Tétis. Essa massa de água salgada rasa, batizada em homenagem
à deusa marinha (nereida) e mãe do herói Aquiles na mitologia
grega, recobriu por milhões de anos várias áreas do Velho Mundo.
Fazia todo o sentido procurar pistas ainda mais antigas em outros
sedimentos do mar de Tétis.
 Vários paleontólogos seguiram essa trilha, e o resultado foi
a descoberta de mais fósseis espetaculares, desta vez no
Paquistão, batizados de Ambulocetus natans (algo como “baleia
andante que nada”), que tem uns 50 milhões de anos de idade. O
maluco em relação ao Ambulocetus é que o bicho é quase uma
versão mamífera dos crocodilos, com corpo longilíneo, bocarra
alongada, olhos no alto da cabeça e narinas na pontinha do focinho.
Seus dentes e ossos do ouvido deixam clara a relação com as
baleias. A evidência oriunda do ouvido é crucial porque o aparato
necessário para ouvir bem debaixo d'água é totalmente diferente do
que funciona no ar.
 Tudo indica que o Ambulocetus, no entanto, não estava
adaptado exatamente a ouvir debaixo d'água, mas a receber
vibrações sonoras do chão a partir de sua mandíbula, como os
crocodilos e jacarés modernos fazem. Isso levou os pesquisadores
a propor que o bicho, exatamente como esses répteis, poderia ficar
de tocaia à beira d'água até detectar essas vibrações. Depois, com
sua cauda poderosa e pés que mais parecem remos, poderia nadar
rapidamente até a presa incauta e abocanhá-la.
 O consenso entre os paleontólogos é que todas essas
características eram uma pré-adaptação à vida aquática plena. Isso
não quer dizer que Ambulocetus e companhia estivessem só
“esperando” para virar baleias. Pelo contrário, sua anatomia estava
adaptada às necessidades de curto prazo desses animais. Mas ela
também facilitou que alguns de seus descendentes, por meio de
novas mutações que cooptaram as adaptações antigas, tivessem
sucesso em mergulhar cada vez mais fundo.
 A pergunta que não quer calar, no entanto, é: que
vantagem Maria levava? Por que um mamífero terrestre – muito
provavelmente com cascos nas patas, e parente próximo dos
ancestrais dos modernos hipopótamos – arriscar-se-ia nos sete
mares? De novo, talvez esse seja o jeito errado de formular as
coisas. Os seres vivos não colonizam novos nichos ecológicos com
os olhos postos no futuro distante, e não têm a menor chance de
influenciar conscientemente os próximos passos de sua linhagem.
São alterações aleatórias em seu material genético, aliadas a
oportunidades fortuitas no ambiente ao seu redor, que podem levá-
los, passo a passo, a modificações que parecerão radicais caso
vistas com o telescópio da paleontologia. Pequenas mudanças
levam à sobrevivência da próxima geração no jogo da seleção
natural; o acúmulo delas leva a coisas como o nascimento evolutivo
das baleias.
 Pode ser que simples tocaias à beira d'água tenham
empurrado os cetáceos para o meio líquido. Pode até ser que o
contrário tenha acontecido: o Indohyus, um mamífero do tamanho
de um cachorro e parecido com um veado pequeno, descrito no ano
passado, mostra elos anatômicos com outras baleias primitivas e
ossos que lhe permitiam ficar submerso durante algum tempo. Seus
descobridores propõem que ele fazia isso para escapar aos
predadores, de forma que só mais tarde as pré-baleias teriam se
adaptado à caça.
 Seja como for, o mistério sobre a origem dos cetáceos
ainda deve manter os paleontólogos ocupados – e se divertindo à
beça – durante um bom tempo.
 
Tiranossauros no galinheiro
Os dinossauros não se extinguiram: viraram aves
 
“T. rex: provavelmente tem gosto de frango.” A manchete foi
empregada por um dos jornalões mais respeitados do Reino Unido,
o “Daily Telegraph”, tempos atrás, e deveria ser estudada em aulas
de jornalismo científico mundo afora. O título é primoroso por
conseguir, em poucas palavras, chamar a atenção do leitor, contar
uma piada e ainda transmitir a informação essencial da reportagem.
Duvido que alguém consiga ficar impune ao fascínio de um
Tyrannosaurus rex, por mais que diga que “dinossauros são coisa
de criança”; em inglês, afirmar que algo “tem gosto de frango” é
meio como dizer, em português, que não tem gosto de nada; e a
brincadeira é um ótimo resumo da notícia porque se trata de um
relato sobre a obtenção de colágeno, uma proteína estrutural dos
músculos, ossos e outros tecidos, a partir de um fóssil de
tiranossauro. E com que forma de colágeno moderno a proteína
dinossauriana mais se parece? Com o colágeno de frango, é claro.
 A semelhança molecular inconfundível entre “carne” de
dino e frango assado é só a demonstração mais dramática de um
fato cada vez mais aceito pela comunidade científica: as aves do
planeta não passam de dinossauros emplumados (eu já ia
acrescentar “e voadores”, mas o fato é que, tal como muitos de seus
primos e ancestrais mais remotos, várias aves não ligam muito para
voar). Essa descoberta é uma das histórias de sucesso mais
espetaculares da biologia evolutiva das últimas décadas. Antes que
a paleontologia e a teoria da evolução lançassem bases sólidas,
poucos grupos animais pareciam tão únicos, tão isolados em meio
ao tecido da vida, quanto os penosos; agora, a proximidade entre
eles e seus parentes de 65 milhões de anos atrás (ou mais) está tão
bem desenhada que virou rotina entre os pesquisadores usar a
expressão “dinossauros não-avianos” – só para deixar claro que
estamos falando dos dinos extintos, e não dos que ainda bicam
migalhas de pão em praças. Como escreveu certa vez o
pesquisador americano Richard H. Prum, da Universidade Yale,
esse reconhecimento “redefiniu a ciência da ornitologia como
biologia de dinossauros vivos”. O melhor de tudo – bem, ao menos
para quem é louco por uma janela para o passado – é que o
paralelo entre esses bichos aparentemente tão distintos está
trazendo informações cruciais sobre o metabolismo, o ciclo de vida
e o comportamento dos dinossauros, detalhes que são quase
impossíveis de extrair do registro fóssil “pelado”. Poucas coisas são
mais iluminadoras do que a possibilidade de fazer esse tipo de
comparação.
 Alguém mais chato talvez dissesse que os paleontólogos
passaram mais de um século dormindo no ponto antes de
finalmente acordar para a semelhança. Afinal, foi no distante ano de
1861 – apenas dois anos depois da publicação de A Origem das
Espécies por um certo Darwin –, que o esqueleto fossilizado da
criatura conhecida como Archaeopteryx lithographica viu a luz do dia
pela primeira vez. “Esqueleto” com algo mais, diga-se de passagem:
o espécime oriundo das rochas calcárias do sul da Alemanha
também preservava impressões de penas no corpo todo – penas
indistinguíveis das que existem nas aves modernas, com estrutura
assimétrica que permitiria gerar sustentação durante o voo. “É uma
ave, claro”, diria você – afinal, nenhuma outra criatura do mundo
hoje exibe penas no corpo. O problema é que o exemplar, com
cerca de meio metro de comprimento, não tinha o bico que
esperamos ver em todos os emplumados modernos, mas uma boca
cheia de pequenos dentes, com ar reptiliano; e, horror dos horrores,
suas asas terminavam em três dedos com garras afiadas. O quadro
era completado por uma cauda longa e ossuda. Era, portanto, a
quintessência do que as pessoas gostam de chamar de “elo
perdido”: um réptil voador coberto de penas. Hoje, sabemos que o
Archaeopteryx viveu há cerca de 150 milhões de anos.
 Não demorou muito para que um dos principais
evolucionistas do século 19, Thomas Henry Huxley (carinhosamente
apelidado de “buldogue de Darwin” graças à sua defesa
intransigente do pai da teoria evolutiva), percebesse a semelhança
entre dinos e aves, mas curiosamente o elo que ele usou não foi a
ave primitiva alemã, mas o Megalosaurus, um dinossauro carnívoro
com nada menos que 9 metros de comprimento. Em 1870,Huxley,
um anatomista muito habilidoso para a época, fez uma lista de 35
características do esqueleto do Megalosaurus que também
apareciam nos avestruzes – e que não estavam presentes em
outras criaturas. A pista era quente, mas acabou não sendo seguida
com o devido afinco porque outros naturalistas vitorianos alegaram
que a semelhança se devia à convergência evolutiva: ambos os
bichos, por serem bípedes de grande porte, teriam “desenvolvido”
soluções anatômicas parecidas sem que houvesse necessariamente
uma relação de parentesco.
 A coisa ficou nesse pé durante a maior parte do século 20 –
o consenso dizia que, sem dúvida, as aves tinham surgido a partir
de ancestrais reptilianos, mas ninguém se arriscava a dizer quem
eram esses vovôs misteriosos. O impasse finalmente foi resolvido
graças a John Ostrom, paleontólogo americano responsável por
descrever o Deinonychus, dino carnívoro com tamanho equivalente
ao de uma pessoa, o qual se parece um bocado com o Velociraptor
da série “Parque dos Dinossauros” (os verdadeiros Velociraptor
provavelmente tinham metade do tamanho visto nos filmes). Ao
longo dos anos 1970, Ostrom conseguiu mostrar de forma
convincente a semelhança entre o Deinonychus, o Archaeopteryx e
vários outros terópodes, como é conhecido o grupo de dinossauros
bípedes e carnívoros que inclui o T. rex. A conclusão era
inescapável: as aves não passavam de terópodes pequenos,
emplumados e, em alguns casos, voadores.
 A argumentação de Ostrom foi desenvolvida nos anos
posteriores por outros pesquisadores, com o levantamento
minucioso das chamadas sinapomorfias. Eu sei que a palavra é
horrível, mas ajuda quebrá-la em seus pedacinhos gregos originais:
syn é a preposição “com”, apó equivale mais ou menos à nossa
preposição “de” na frase “sair de casa”, e o final da palavra
claramente tem a ver como “morfologia” ou simplesmente “forma”.
Sinapomorfias, portanto, são traços (normalmente morfológicos,
porque afinal é o que sobra nos fósseis) herdados conjuntamente
por dois ou mais grupos a partir de um ancestral comum. Esse
último ponto é crucial porque, digamos, o fato de tanto humanos
quanto aves serem bípedes não diz absolutamente nada sobre o
nosso parentesco evolutivo com as bichinhas, pois sabemos que o
bipedalismo surgiu de forma totalmente independente nos dois
grupos. Para o conceito funcionar, as sinapomorfias precisam ser
notadas a partir de um ancestral comum e, a partir daí, rastreadas
em todos os seus descendentes.
 Terminado esse pequeno e importante desvio
metodológico, vamos ao que interessa: de fato, existem caminhões
de sinapormofias que unem aves e terópodes em geral e, em
especial, aves e um subgrupo de terópodes pesos-leves conhecidos
como Maniraptora. Fora a postura ereta e bípede, que
provavelmente era a condição ancestral dos dinos antes que eles
começassem a se diversificar para valer, podemos citar as patas da
frente relativamente compridas (transformadas em asas mais tarde),
“mãos” com três dedos e dedo do meio alongado (sim, aves têm
dedos “ocultos” sob a estrutura alar, que ainda podem ser
identificados), patas de trás compridas e com três dedos usados
para andar e pelve que aponta para trás. São todas características
que, num ancestral não-aviano, provavelmente favoreciam a captura
de presas por meio da agilidade e da capacidade de correr. Como
em tantos outros casos, esses elementos já “prontos” foram
adaptados para favorecer o voo quando parte dos Maniraptora
passaram a seguir esse novo caminho evolutivo.
 Os paleontólogos, com uma ou outra exceção, deram-se
por satisfeitos com essa lista secona de características anatômicas,
mas sou capaz de apostar que ela é insatisfatória para a imaginação
das pessoas. Nada tema, nobre leitor: esse problema foi
plenamente sanado com a descoberta de dinossauros com penas. E
quando eu digo isso quero dizer muitos dinossauros com penas. Em
grande parte, devemos essa explosão de monstros pré-históricos
emplumados à província chinesa de Liaoning, aparentemente
colocada na Terra só para o deleite dos paleontólogos. Liaoning é o
equivalente de Pompéia, a cidade romana soterrada pelas cinzas do
vulcão Vesúvio, no Período Cretáceo. A forte atividade vulcânica do
local lançava material incandescente de forma tão intensa que os
animais e plantas da região eram enterrados quase de forma
instantânea debaixo do dilúvio abrasante. A rapidez e a completude
do processo protegeram os cadáveres resultantes da
decomposição, de forma que grande quantidade dos fósseis de
Liaoning envolve exemplares articulados, com a anatomia na
mesma posição que tinha em vida, e com partes moles preservadas
– impressões incrivelmente claras de músculos, pele, pelos e penas.
 Alguns dos dinossauros penosos mais impressionantes
voltaram a ver a luz do dia sob a batuta de Xing Xu, do Instituto de
Paleontologia de Vertebrados e Paleoantropologia da Academia
Chinesa de Ciências. A galeria é ampla e envolve todo tipo de
terópode, mas o lugar de honra provavelmente é devido ao
Microraptor gui, um Maniraptora de menos de 50 cm (e parente
próximo do Velociraptor) que aparenta ter quatro “asas” – na
verdade, o fóssil traz impressões claras de penas assimétricas,
aquelas que, como vimos, sustentam as aves no voo, tanto nos
membros da frente quanto nos membros de trás. Não se sabe
exatamente como o animal usava braços e pernas para se manter
no ar, ou mesmo se ele era capaz de decolar por suas próprias
forças ou só planava, mas ele é o exemplo mais claro de dinossauro
não-aviano com adaptações aéreas.
 Xu e companhia também encontraram o que pode ser um
ancestral direto do próprio T. rex, o Dilong paradoxus, cujo corpo
aparentemente era coberto por versões primitivas e simplificadas de
penas. Nenhuma cobertura semelhante até hoje foi encontrada nos
próprios tiranossauros, o que levou alguns paleontólogos, talvez na
tentativa de resguardar a dignidade do bicho, a postular que seus
ancestrais as perderam ao longo do tempo evolutivo. Graças a seu
tamanhão (mais de 12 m de comprimento), o animal teria perdido a
plumagem para não superaquecer, mesmo motivo que explica a
ausência de pelos em grandes mamíferos como elefantes e
rinocerontes.
 Seja como for, a grande variedade de tipos de penas nos
dinos extintos, das assimétricas, adaptadas ao voo, a simples tubos
delgados de tegumento (variante mais primitiva anatomicamente,
que Xu e companhia acabam de descobrir), não deixa de ser
reveladora. Elas espelham com considerável precisão os chamados
modelos desenvolvimentais das penas – basicamente simulações
dos vários estágios evolutivos dessas estruturas, baseadas no que
se vê entre as aves ainda no interior do ovo. É como se cada
espécie de dino emplumado espelhasse, em parte, os eventos que
levam à formação das penas em embriões modernos, de um
simples tubo na epiderme às penas especializadas no voo,
passando por penugens fofinhas e penas “adultas”, mas ainda
simétricas. Ao casar os dois tipos de pista – fósseis mais
desenvolvimento embrionário –, os especialistas percebem que voar
foi uma função secundária e relativamente tardia das penas. É mais
provável que elas tenham surgido como maneira de reter o calor
corporal – tal como os mamíferos, os pequenos terópodes, e talvez
a maioria dos dinos, parecem ter tido sangue quente. Outra função
possível para as penas mais primitivas, especula Xu em seu mais
recente trabalho sobre o tema, não seria muito diferente do que
vemos na cauda de um pavão: o chamado display, ou
demonstração de superioridade social e sexual, favorecido pelas
protoplumas eriçadas.
 Com tudo isso, foi se tornando cada vez mais difícil negar a
conexão entre aves e dinossauros, mas nenhuma pesquisa em
biologia evolutiva hoje fica realmente completa sem o lado
molecular. A anatomia de um animal pode se parecer com a de
outro por evolução convergente com alguma frequência, mas é bem
mais difícil (embora não impossível) que esse tipo de semelhança
sem ligaçãocom o parentesco apareça também nas moléculas
orgânicas que compõem os seres vivos, como o DNA e as
proteínas. E isso nos leva de volta à famigerada coxinha de
tiranossauro. Até pouco tempo atrás, considerava-se um sonho
quase inatingível obter material genético, proteínas ou mesmo
células de criaturas como os dinos, extintas há dezenas de milhões
de anos. A coisa, no entanto, começou a mudar radicalmente a
partir de 2005. Sob a liderança dos paleontólogos americanos Mary
Schweitzer e Jack Horner, os pesquisadores descobriram que
alguns fósseis bem preservados de dinos podem conter vasos
sanguíneos, células inteiras e até as cobiçadas proteínas (o DNA,
cujas ligações químicas são mais frágeis, continua, por enquanto,
fora do alcance deles).
Aparentemente, o tipo “certo” de fóssil é, por exemplo, um
fêmur de tiranossauro, suficientemente espesso para que seu
interior não sofra a maior parte da ação destrutiva de bactérias e
outros microrganismos “lixeiros”. A quantidade de colágeno obtida
pelos cientistas a partir do osso de T. rex foi muito baixa, mas
suficiente para que a contagem dos blocos formadores da proteína,
os aminoácidos, fosse feita e comparada a uma série de formas de
colágeno em animais modernos. A semelhança com o colágeno de
galinha foi clara. O importante da técnica é sua aplicabilidade a
perguntas bem mais sofisticadas: se outros tipos de proteína
puderem ser obtidos dos fósseis de dinos, detalhes de sua fisiologia
– tal como o sangue quente – talvez possam ser verificados
diretamente, e não apenas virar objeto de inferências com base na
anatomia.
 Do ponto de vista de quem quer saber como esses bichos
tão fascinantes se comportavam, no entanto, é possível que o
grande resultado da pesquisa de Schweitzer e companhia tenha
vindo de um tipo peculiar de tecido ósseo detectado por eles.
Também estudando o interior de um fóssil de T. rex, eles detectaram
o chamado osso medular, uma massa de tecido esponjoso que
também aparece, por exemplo, no fêmur das aves atuais. O osso
medular serve de fonte de cálcio para as fêmeas que estão botando
ovos, “alimentando” a casca em formação dos ditos cujos. Daqui
para a frente, portanto, quem estiver interessado em saber o sexo
de um dinossauro só precisa fatiar seu fêmur em busca do osso
medular.
Nas mãos certas, a sacada ajudou a revelar ainda mais
segredos da vida dinossauriana. Uma equipe liderada pelo também
americano David J. Varricchio, da Universidade do Estado de
Montana, teve a ideia de estudar três pequenos terópodes –
Troodon, Oviraptor e Citipati – que já foram encontrados em
associação com ninhos bem montados, repletos de ovos. Quando o
osso medular desses bichos foi examinado, veio a surpresa: eles
não tinham osso medular, na verdade. Por isso, é bem provável que
os responsáveis pelo cuidado com o ninho e com os filhotes
pequenos nessas espécies fossem os machos, e não as fêmeas. O
padrão comportamental é semelhante ao que encontramos no grupo
mais primitivo de aves modernas, formado, em geral, por
grandalhonas não-voadoras, como as emas e os avestruzes.
Nessas espécies, o macho possui haréns de fêmeas, as quais são
poedeiras de mão cheia, mas não chocam os próprios ovos. O que
acontece é que, para permitir que as fêmeas botem muitos ovos, os
machos se encarregam do cuidado com a prole, já que as parceiras
não teriam energia para produzir as ninhadas e, ainda por cima,
cuidar delas. A ideia de que isso é o que acontecia entre os
pequenos terópodes é reforçada pelo volume dos ninhos quando
comparado ao tamanho corporal dos adultos: as fêmeas de dinos só
dariam conta dessa superprodução se fossem auxiliadas pelos
parceiros, tal como as emas modernas.
Com ferramentas comparativas poderosíssimas – como essa – nas
mãos, é de se imaginar que os segredos da biologia e do
comportamento dos dinos não continuarão inacessíveis por muito
tempo. Dois grandes enigmas ainda permanecem em suspenso: a
origem do voo (os dinossauros decolaram do chão ou das árvores?)
e os ancestrais imediatos do Archaeopteryx. Apesar dos passos
intermediários entre dinossauros e aves que podem ser enxergados
entre os Maniraptora e até entre terópodes mais primitivos, a mãe
alemã das aves é mais velha que os dinos emplumados da China,
tendo ao menos algumas dezenas de milhões de anos a mais. Eis aí
um prêmio considerável a ser perseguido por novas gerações de
paleontólogos. Enquanto isso, se você realmente quer ver um
Velociraptor em ação, deixe Spielberg um pouco de lado e observe
uma seriema correndo.
 
 
 
 
A antiga serpente
Tocas na terra e fundo do mar disputam posto de berço das cobras
 
Por algum motivo inexplicável, as cobras mexem com a imaginação
das pessoas (ah, e não seja malicioso, por favor; não estou me
referindo ao aspecto fálico do réptil). Um misto de fascínio e repulsa
parece ser a reação instintiva de quase todo mundo diante das
escamas lustrosas e da língua bífida do bicho. Talvez seja nossa
memória coletiva do passado remoto ecoando: gerações e gerações
de mamíferos cujos ancestrais e/ou parentes pequenos, felpudos e
quentinhos foram parar no papo de uma serpente, milhões de anos
atrás. Experimentos com bebês novinhos e macacos mostram que
se borrar de medo diante de um ofídio, ou de qualquer coisa que se
pareça com um e se mexa como um, é a atitude imediata de onze
entre dez primatas. Fazer de um exemplar do grupo o vilão
primordial foi um dos toques de mestre do escritor judeu anônimo
que deu forma ao livro do Gênesis, o primeiro da Bíblia. De fato, a
serpente era a melhor atriz para o papel.
 O que esse gênio israelita certamente não imaginava,
contudo, é a história bizarra por trás de sua vilã – uma história que,
como a de tantos outros organismos, é um testemunho vivo dos
caminhos malucos que a evolução pode seguir. O pedaço mais
irônico dessa trama é que, enquanto a serpente do Gênesis foi
amaldiçoada com o destino de rastejar e comer pó pelos séculos
dos séculos, suas primas não-literárias parecem ter surgido
justamente da necessidade de se enfiar terra adentro.
 É claro que, tal como em tudo que se refere ao passado
remoto dos seres vivos, há controvérsias. Duas hipóteses
costumavam bater cabeça na tentativa de explicar a origem das
cobras. Antes delas, porém, vamos começar com um fato
incontroverso: toda serpente é um lagarto sem pernas. Fim de papo.
Aliás, ainda há cobras por aí que carregam no corpo a marca de
seus antigos membros. Se você for corajoso o suficiente para
manusear uma jiboia ou um píton (devo dizer que já peguei uma
jiboia na mão – com todo o respeito, é claro – e as escamas até que
são agradáveis ao toque), não vai precisar de muito esforço para
identificar os resquícios de patinhas.
 Conhecidas tecnicamente como “esporas anais”, elas se
parecem mais com garras, na verdade. Como se trata de algo
muitíssimo menor que um membro funcional, os bichos cooptaram o
restolho para um uso muito mais agradável do que simplesmente
caminhar: os machos o utilizam para “firmar” o corpo da fêmea
durante o ato sexual.
 Após esse parêntese tátil e, por que não dizer, sensual,
voltemos agora às nossas duas hipóteses concorrentes. Fósseis de
serpentes que ainda apresentam características mais claras de
lagarto começam a pipocar entre rochas do Período Cretáceo, o
último da Era dos Dinossauros, que vai de 140 milhões a 65 milhões
de anos atrás. Esses bichos bizarros possuem vestígios mais
visíveis de patas traseiras, e muitos dos fósseis deles vêm, imagine
você, de sedimentos marinhos, ou seja, rochas que só poderiam ter
se formado debaixo d’água.
 Portanto, poderíamos apelidar essa primeira ideia de
“hipótese da serpente marinha”. Seus defensores têm, inclusive,
uma linha de raciocínio ainda mais pitoresca para defendê-la. Eles
enxergam semelhanças de anatomia entre as primeiras cobras e os
mosassauros, ferozes lagartões marinhos (os menores tinham cerca
de 3 m de comprimento) que também viveram no período em queos
dinossauros governavam a Terra.
 É para contradizer essa proposta que entra em cena a
segunda hipótese e seu maior baluarte, a Najash rionegrina. O bicho
de 90 milhões de anos é argentino, mas tem entre seus
descobridores um brasileiro, Hussam Zaher, do Museu de Zoologia
da USP. Ela não é mais antiga do que qualquer outra das serpentes
fósseis, mas conta com um trunfo inequívoco: um sacro.
 Antes que você solte um monumental “e daí?”, eu explico: o
sacro é a região da coluna vertebral que serve para sustentar o
peso do corpo – isso, obviamente, num bicho com patas (caso
contrário, não há nada a ser sustentado). A presença clara do sacro
e as patinhas que podem ser vistas com clareza no fóssil da espécie
fazem da Najash rionegrina uma fortíssima candidata ao posto de
cobra mais primitiva do planeta. Primitiva no sentido que a biologia
evolutiva dá à palavra: o de um animal que retém as características
originais do grupo ao qual pertence.
 E adivinhe só: o bicho vem de sedimentos terrestres,
continentais. Nada de água por perto. Isso levou Zaher e seu colega
Sebastián Apesteguía, do Museu Argentino de Ciências Naturais
Bernardino Rivadavia, a postular que, na verdade, as primeiras
serpentes eram animais que perderam seus membros como
adaptação a uma vida rastejante, abrindo tocas no solo. Isso
explicaria o porquê da semelhança com supostas modificações para
a vida aquática: para nadar ou para rastejar, é interessante alongar
o corpo e encolher os membros.
 O achado pode ter providenciado o “por que” da história –
ainda é cedo para dizer –, mas ainda não nos dá o “como”. E é
nesse ponto que a moderna biologia molecular pode trazer
informações preciosas para entender como a evolução da forma dos
seres vivos acontece – um tema que tem relação muito próxima
como as serpentes, como já vimos alguns capítulos atrás.
Colocando a questão em termos mais diretos: com quantas
vértebras se faz um corpo de cobra?
 Acontece que a estrutura corporal dos vertebrados é
determinada em grande medida por um conjunto de genes da
família Hox, responsáveis por indicar, como talvez você se recorde,
as informações essenciais sobre a posição do corpo onde um
membro ou apêndice corporal deve aparecer. Um dos membros
dessa família de genes, o Hoxc6, diz até onde devem ir as vértebras
cervicais, ou seja, as que têm formato adequado para formar o
pescoço. Depois delas vêm as vértebras torácicas, ou do tórax.
 Ora, o que acontece nas serpentes é que o gene Hoxc6
praticamente não se expressa (ou seja, não está ativo) abaixo da
cabeça. Dali para baixo, as vértebras são todas torácicas.
Traduzindo para o português mais direto possível: um dos primeiros
passos para transformar um lagarto em cobra seria simplesmente
transformar o pescoço inteiro num prolongamento do tórax.
 Note que, ao menos para essa mudança, não foi preciso
nem o surgimento de um gene novo – bastou modificar o local onde
um gene que era velho conhecido costuma se manifestar. Há quem
veja a evolução como um artista preguiçoso e não muito hábil,
experimentando a esmo com tintas meio velhas e até com telas já
usadas. Como no caso das jiboias, dá até para ver a pintura antiga
por trás da nova. Mas o efeito do quadro, apesar de tudo, ainda é de
tirar o fôlego.
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
Formas
Das maneiras fascinantes e bizarras de se construir um corpo
 
Technicolor
“Design” avançado e imperfeições: uma breve história da visão em
cores
 
Eu devia ser multado por usar o velho golpe do olho para falar de
evolução dos órgãos dos sentidos, mas é meio inevitável diante das
bobagens que a gente escuta por aí. Supostamente, o olho humano
– e o de outros animais – é um órgão de perfeição tão extrema que
jamais poderia ter surgido por um processo evolutivo lento e
gradual. Bastaria uma pecinha fora do lugar para que ele fosse
inútil. É mais ou menos o que dizem os opositores da teoria
evolutiva desde os tempos mais recuados. Está na cara que eles
nunca ouviram falar em daltonismo.
 Se a última frase não ficou muito clara, eu explico: a
capacidade de perceber cores no reino animal é um dos exemplos
mais acabados de como a evolução consegue produzir uma
aparente “perfeição” de forma completamente bagunçada. A
percepção “colorida” que a maioria dos seres humanos têm do
mundo é resultado de uma história complicada de idas e vindas,
sem nenhuma progressão linear. Aliás, em termos de percepção de
cores, nossa espécie tem de se curvar à superioridade de... um
crustáceo. Isso mesmo: quando se trata de perceber cores, a
criatura mais sofisticada da Terra é um primo dos camarões.
 A capacidade de detectar cores depende primordialmente
das opsinas, uma classe de proteínas que absorvem determinadas
“fatias” do espectro luminoso, correspondentes ao que o nosso
cérebro aprendeu a discriminar como os vários tipos de cor. Dizer
que um objeto tem essa ou aquela cor é só uma forma
descomplicada de dizer que ele absorve toda a luz que chega até
ele, menos um determinado comprimento de onda luminosa. Essa
pequena parcela refletida chega até os cones, células receptoras de
luz e carregadas de opsinas nos nossos olhos.
 As opsinas são apenas parte do aparato de percepção de
cores. Antes de a informação chegar ao cérebro, é preciso
processá-la de forma adequada. É por isso que os olhos também
contam com sistemas especializados para comparar os “sinais” de
cada pedaço do espectro luminoso com os outros, criando um
contraste que é interpretado pelo cérebro como uma diferença de
cor entre um objeto e outro, por exemplo.
 Tudo indica que essa base inicial da percepção de cor é
incrivelmente antiga. Algumas estimativas sugerem que os mais
antigos animais, que talvez tenham vivido há 800 milhões de anos,
já possuíam formas primitivas das opsinas atuais. Outra pista crucial
sobre a antiguidade desses pigmentos sensíveis à luz vem das
lampreias, peixes sem mandíbula que parecem estar na base da
árvore genealógica dos vertebrados vivos ainda hoje. Esses bichos
já possuem quatro tipos diferentes de genes com a “receita” para a
produção de opsinas, o que sugere que a base molecular para ver o
mundo em cores surgiu nas fases mais primitivas da nossa
linhagem.
 Enquanto os vertebrados seguiam seu próprio caminho
rumo à visão colorida, criaturas como insetos, moluscos e
crustáceos começaram a experimentar formas de enxergar o mundo
que nós só poderíamos chamar de exóticas. As abelhas, por
exemplo, usam três tipos diferentes de cones, como nós, mas um
dos membros do trio é sensível à fatia ultravioleta do espectro
luminoso. A comparação entre imagens de flores feitas apenas na
faixa da luz visível (para nós, quero dizer) e na faixa do ultravioleta
mostram que pétalas “brancas”, completamente sem graça para
primatas da nossa estirpe, apresentam desenhos berrantes diante
dos olhos das abelhas. Eis aí um ponto em que as nossas
capacidades linguísticas de descrever o mundo simplesmente se
despedaçam. Ainda que as abelhas pudessem falar e pudéssemos
perguntar a elas “mas de que cor é o ultravioleta, afinal de contas?”,
não adiantaria de nada – a cor não pareceria com nada do que o
nosso cérebro é capaz de compreender.
 No entanto, a visão ultravioleta dos insetos é fichinha perto
das capacidades dos estomatópodes, ou camarões-louva-deus,
crustáceos marinhos que possuem 12 tipos diferentes de receptores
de cor. Ainda não se sabe exatamente como esse aparato funciona,
mas o certo é que ele consegue captar tanto infravermelho quanto
ultravioleta (deixando as abelhas roxas de inveja, sem dúvida) e
ainda detectar detalhes da polarização das ondas de luz – uma
propriedade física que os nossos sentidos mal conseguem
conceber.
 Essas capacidades aparentemente mágicas de abelhas e
crustáceos muito provavelmente foram moldadas pela seleção
natural: se detalhes relevantes do ambiente, dos alimentos ou dos
companheiros de espéciedos bichos podem ser captados usando
tais informações, aumentam os “incentivos” para que a capacidade
de os perceber surja. Mutações nos genes que codificam as opsinas
podem muito bem levar um animal a ganhar tais capacidades,
porque o princípio básico de usar o pigmento para absorver certas
faixas do espectro continua sendo o mesmo. Só é preciso “deslocar”
um pouco essa faixa de absorção.
 Entre as muitas cenas hilárias da série “Shrek”, a minha
preferida é a que mostra o Burro Falante procurando uma flor azul
com espinho vermelho, para usar como remédio contra a flechada
que seu amigo ogro levou no traseiro. “Flor azul, espinho vermelho...
flor azul, espinho vermelho... seria mais fácil se eu enxergasse
cores!”, berra o pobre burro. Eu realmente detesto estragar o timing
de comédia do Eddie Murphy, mas o Burro Falante disse uma meia-
verdade: a grande maioria dos mamíferos enxerga pelo menos
algumas cores, inclusive os cães, famosos por supostamente ver
em “preto e branco”.
 Voltando ao nosso tema da pseudoperfeição, a evolução
visual dos mamíferos é um exemplo claro de que, muitas vezes,
modificação não equivale a aperfeiçoamento. A visão humana
normal é conhecida como tricromática (por causa da sensibilidade
dos nossos cones a três fatias do espectro relacionadas, grosso
modo, ao azul, verde e vermelho). No entanto, a análise dos genes
que codificam as opsinas mostram que nós recuperamos essa
capacidade “adaptando” genes mais antigos que só permitiam a
visão dicromática.
 Isso significa que a maioria dos outros mamíferos (Burro
Falante e cachorros incluídos) enxergam o mundo de maneira que
lembra os humanos daltônicos ou com outros problemas de visão de
cores – ou seja, eles não distinguem o que podemos chamar de
faixa vermelha do espectro. Poucos mamíferos realmente veem em
preto e branco – entre eles estão as focas e as baleias, além de
várias espécies de hábitos noturnos.
 Ora, outros tipos de vertebrados têm uma visão de cores
bem mais elaborada. Alguns usam até gotas especiais de óleo para
processar a absorção de luz das opsinas de maneiras mais
sofisticadas e precisas. O principal motivo para a simplicidade dos
mamíferos nessa área é provavelmente o fato de que nosso grupo
começou sua existência levando uma vida noturna, no começo da
Era dos Dinossauros. A necessidade de discriminar cores com
precisão não existia, e essa se tornou uma bagagem evolutiva que
muitos mamíferos carregam até hoje.
 A exceção a essa regra parecem ser os primatas como nós
– em especial os primatas do Velho Mundo. Os motivos por trás da
nossa visão colorida mais complexa ainda não estão claros, embora
existam várias hipóteses, como a capacidade de discriminar com
precisão frutos maduros em meio à folhagem do alto das árvores. A
visão tricromática aparece, em geral, de forma “alternada” entre os
macacos do Novo Mundo, como os brasileiros – é comum as
fêmeas serem tricromatas e os machos serem dicromatas.
 O curioso é que estudos recentes estão levantando um
fenômeno parecido entre humanos. Há indícios de que algumas
mulheres podem ser tetracromatas, deixando os homens para trás
nesse quesito. O fato, na verdade, casa muito bem com a incidência
masculina mais alta de problemas com visão de cores. Como muitos
genes que codificam opsinas estão localizados no cromossomo X,
as mulheres estão mais protegidas por terem duas cópias desse
cromossomo; se há uma falha numa cópia do gene, a outra serve de
“backup”. Já os homens, como possuem um cromossomo X e um Y,
não têm a mesma sorte.
 A mesma vantagem feminina poderia estar por trás de sua
visão tetracromática. Alguns pesquisadores propõem que, como as
mulheres eram as principais coletoras de frutos e outros vegetais ao
longo da evolução humana, faz sentido que elas tivessem essa
visão mais apurada para detalhes de cor. Se for verdade, será mais
uma prova de que, embora esse negócio de perfeição dos seres
vivos seja uma bobagem, as coisas quase sempre podem ser
melhoradas.
 
O efeito David
Atirar pedras teria sido o empurrão inicial para criar mãos humanas
 
Tem sempre um engraçadinho disposto a estragar os momentos
mais solenes. Trêmulo de emoção e expectativa, eu estava frente a
frente com um bando de chimpanzés; pela primeira vez na vida,
poucos centímetros me separavam dos parentes mais próximos da
humanidade. De repente, um dos bichos começou a atirar o que
pareciam ser pedrinhas na minha direção. Digo “pareciam” porque
seu Pedro, o responsável por cuidar dos bichos em seu santuário de
animais selvagens perto de Sorocaba (SP), logo me alertou para
não pegar os objetos: aquilo não era pedra, era cocô ressecado
mesmo. Lindo.
Assim que me recuperei daquela indignidade, percebi duas
coisinhas: a chuva de fezes petrificadas continuava, mas tanto a
mira quanto a força dos petardos eram sofríveis. Por alguma razão
que me escapava, o chimpa responsável lançava os projéteis de um
jeito esquisito, com a palma da mão para cima. O que nos leva ao
tema desta coluna: atirar pedras (e outras coisas menos
recomendáveis) com força e precisão parece ser uma característica
exclusivamente humana. Tão exclusivamente humana, aliás, que
pode ter ligações perigosas e estreitas com as mãos hábeis de que
tanto nos orgulhamos.
Trocando em miúdos, pode ser que nossa anatomia manual tenha
sido esculpida pela evolução de forma a favorecer o singelo ato de
tacar pedra no vizinho – e, estando ele ao alcance de mão, também
o de agarrar um pedaço de pau e dar com ele na cabeça do safado.
A hipótese junta de um jeito coerente (e, por que não dizer, um
bocado divertido) uma série de pistas díspares da anatomia
comparada e da paleoantropologia – e até do registro arqueológico,
como veremos a seguir.
Um argumento inicial em favor da ideia, proposto em detalhes por
Richard W. Young, professor emérito da Escola Médica da
Universidade da Califórnia, é a diferença brutal entre o que as mãos
de humanos e as mãos de chimpanzés e outros grandes macacos
são capazes de fazer. Para começar, embora a presença de
polegares aparentemente bem desenvolvidos nas mãos de nossos
parentes primatas seja clara, a verdade é que eles estão bem longe
de serem polegares de verdade, diz Young. Ou seja: eles não
possuem a capacidade opositora que caracteriza os nossos mata-
piolhos.
Um chimpanzé dependurado num galho, por exemplo, usa quatro
dedos – nenhum deles correspondente ao nosso polegar – para se
agarrar à árvore, numa espécie de gancho. Não é para menos, uma
vez que o polegar de chimpa é relativamente pequeno, fraco e
imóvel, tendo dificuldades para apertar o objeto agarrado contra a
palma da mão. Os músculos que controlam esse dedo são menores
que os homólogos (equivalentes em termos de origem biológica) em
seres humanos; de quebra, nossa versão do dedo conta com três
músculos adicionais, inexistentes em outros primatas, que tornam o
polegar humano mais robusto e mais fácil de controlar.
As diferenças, porém, estendem-se também a outros dedos – os
dos macacos parecem ter apostado em comprimento e alta
flexibilidade (aliás, são naturalmente curvos, o que facilita a
capacidade de agarrar galhos de árvores), enquanto os nossos são
mais curtos e robustos. Outra diferença importante na hora de
agarrar e manipular objetos: as pontas dos dedos da mão humana
possuem “almofadinhas” largas de tecido carnudo, inexistentes nos
chimpanzés, que se adaptam à superfície das coisas que agarramos
e distribuem de forma regular a pressão do “agarramento”.
Tradicionalmente, os anatomistas resumem as características
típicas da mão humana em dois tipos básicos de “pegada”: a de
precisão e a de força. A pegada de precisão é a que você utiliza ao
segurar uma caneta; a de força é usada quando você segura uma
vassoura. E é dessas propriedades duais da mão humana que vem
outro argumento de Young: a pegada de precisão nada mais seria
que um sistema para atirar pedras (ou outros objetos de tamanho
equivalente), enquanto a de força teria surgido parasegurar um
pedaço de pau como arma.
“Eles poderiam ser chamados de ‘agarramento de esfera’ e
‘agarramento de cilindro’, com base na forma que eles são capazes
de agarrar com máxima eficiência”, escreve o pesquisador. De fato,
a combinação entre polegar, indicador e médio – a mais utilizada
para a pegada de precisão – parece funcionar de forma exata para
agarrar pedras de tamanho mediano, incluindo até uma curvatura
oblíqua dos dois últimos dedos para fechá-los em volta do polegar.
De quebra, a estrutura das falanges dos dedos, bem como as
almofadinhas em sua ponta, impedem que haja dano à mão quando
um projétil é rapidamente lançado. No caso do uso da mão para
agarrar tacapes, barras de ferro e afins, o pesquisador nota que,
sem a configuração de polegar ultrafuncional e pontas “agarradoras”
nos dedos, seria um bocado difícil segurar objetos cilíndricos com
força suficiente para usá-los como arma.
Por enquanto, a coisa parece estar indo bem. Mas o que dizer
quanto as fósseis? Será que a nossa linhagem se diferencia desde
os primórdios por capacidades como atirar pedras e segurar
tacapes? Pode ser só coincidência, mas alguns dados
fragmentários, mas intrigantes sugerem que esse pode mesmo ter
sido o caso. Em termos anatômicos, por exemplo, os indícios de um
encurtamento e robustecimento dos dedos estão presentes já com o
Ardipithecus kadabba, hominídeo que teria vivido entre 5 milhões e
6 milhões de anos atrás, nos primórdios da linhagem que daria
origem ao Homo sapiens. Ele é só ligeiramente mais “jovem” (em
termos geológicos, claro) do que o Sahelanthropus tchadensis, o
qual, como vimos, é por enquanto o melhor candidato a primeiro
membro de nossa linhagem.
Mais adiante no tempo, os primeiros membros do gênero
Australopithecus, como a famosa Lucy, que viveu há pouco mais de
3 milhões de anos, revelam uma mão ainda mais parecida com a
nossa, com polegar reforçado e capaz dos dois tipos de “pegada”,
embora ainda apresentasse uma ligeira curvatura nas falanges dos
dedos, provavelmente associada a uma vida parcialmente arbórea.
Outros detalhes da anatomia de Lucy e seus parentes reforçam a
ideia de que ela passava ao menos parte de seu tempo nas árvores,
tal como suas pernas relativamente mais curtas que as nossas e
seus braços relativamente mais longos.
Uma última peça no cenário da mão humana como adaptação para
atirar pedras talvez possa ser adicionada pelo trabalho do
engenheiro e arqueólogo amador Alan Cannell, britânico residente
no Brasil há 30 anos. Ele notou que os misteriosos “manuports”,
pedras redondas muito comuns nos mais antigos sítios
arqueológicos da África, se encaixam exatamente no tamanho e no
peso que se esperaria de uma pedrada humana, cerca de 500 g
(coincidência ou não, o valor fica próximo do das bolas de handebol
oficiais de hoje).
Os “manuports” estão presentes antes da invenção das ferramentas
de pedra propriamente ditas – uma capacidade que aparentemente
emergiu um tanto tarde entre nossos ancestrais, por volta de 2,5
milhões de anos atrás, ou talvez até um pouco mais tarde. Cannell
aposta que os hominídeos utilizavam as pedradas como armas
importantes na defesa contra grupos rivais ou predadores. Isso
explicaria como a capacidade de atirar pedras foi favorecida pela
seleção natural, tornando os capazes desse comportamento – e,
podemos imaginar, também os que conseguiam usar tacapes –
vitoriosos na batalha pela sobrevivência e pela reprodução. Por
sorte, as mesmas adaptações que favoreceram tais técnicas de
combate também teriam tornado nossos membros “pré-adaptados”
para tarefas de precisão mais complicadas, o que finalmente
desembocaria na fabricação deliberada de ferramentas de pedra.
Se a ideia estiver mesmo certa, nada mais justo do que propor uma
adição aos velhos termos “Idade da Pedra Lascada” e “Idade da
Pedra Polida” (na verdade, mais conhecidos, respectivamente,
como Paleolítico e Neolítico pelos cientistas de hoje). Foi na Idade
da Pedra Atirada que tudo teria começado para valer.
 
Donald, o bem-dotado
Batalha sexual faz dos patos os campeões penianos do mundo
 
Os cientistas em geral não gostam de admitir, principalmente em
público, mas às vezes eles são tão parciais quanto a torcida do
Corinthians vendo um jogo do Palmeiras. E nem é por mal: certos
vieses inconscientes são difíceis de combater – como o fato de que
a comunidade científica é esmagadoramente masculina e, portanto,
tem uma tendência inata a pensar com a própria cueca.
Nos últimos tempos, por exemplo, os biólogos ficaram de
queixo caído ao descobrir que certas espécies de pato contam com
os machos mais, digamos, bem-dotados do reino animal. Com
quase 45 centímetros de membro, para ser mais exato. (Imaginem
os convites para fazer um filme pornô com alguma ex-BBB ou ex-
namorada de jogador de futebol.) Ninguém sabia muito bem o
porquê de tanto exagero. “É para intimidar os outros machos”,
diziam alguns. “É para lançar o esperma o mais longe possível”,
afirmavam outros. Adivinha se alguém foi ver o que as fêmeas de
pato achavam disso?
Bem, finalmente se deram a esse trabalho. (Coincidência ou não, foi
uma equipe científica liderada por uma mulher. Como queríamos
demonstrar.) E a anatomia das moças revelou que elas estão longe
de ser receptáculos passivos da exuberância masculina. Pelo
contrário: ao que tudo indica, as genitálias dos bichos estão
envolvidas num combate evolutivo de proporções épicas, no qual
machos e fêmeas buscam preservar seus interesses com unhas e
bicos. A nossa guerra dos sexos em torno do controle remoto da TV
é fichinha, nobre leitor. Mas, como no caso humano, tudo começa
por causa da monogamia.
Acontece que várias espécies de patos e assemelhados formam
casais fiéis, que cuidam juntos do ninho... durante uma estação
reprodutiva. É a chamada monogamia serial, já que os bichos
tendem a trocar de parceiro a cada ano. (Particularmente, eu
preferiria o termo “monogamia-Hollywood” para designar esse tipo
de vida marital, mas talvez não soe muito científico.)
Contudo, o fato de que uma Margarida já achou o seu Donald não é
o suficiente para manter certos machos sequiosos de sexo longe
dela. Sem a menor preocupação com a moral e os bons costumes,
eles se aproveitam das ausências do pato titular para forçar a pobre
patinha a ceder a seus desejos sórdidos. Os cientistas usam a sigla
inglesa FEPC (“cópula forçada extra-par”) para designar esse
comportamento. (É, tucanaram o estupro.)
O estranho nessa história toda é que os membros gigantes dos
patos machos estão longe de ser a regra entre as aves. Na verdade,
só 3% das espécies do grupo apresentam alguma coisa parecida
com um pênis; as outras parecem se virar muito bem com um
simples buraquinho. Parece haver uma correlação clara entre
membros masculinos barrocos e FEPCs: os machos com genitálias
mais elaboradas são justamente os pertencentes a espécies nas
quais o estupro é mais comum. Assim, seria um mero caso de
“quem tem o maior ganha”? Afinal, o macho com o falo mais
avantajado teria mais chances de fertilizar as fêmeas, por bem ou
por mal.
O caso parecia quase encerrado, mas a americana Patricia
Brennan, do Departamento de Ecologia e Biologia Evolutiva da
Universidade Yale, resolveu dissecar e medir as estruturas vaginais
das fêmeas de 16 espécies da família dos patos. Os resultados
estão descritos num artigo publicado na revista científica “PLoS
One”, uma das mais importantes do mundo. Surpresa: as garotas
parecem estar revidando a sacanagem masculina – e revidando
pesado.
O primeiro dado obtido por Brennan parece meio óbvio: quanto mais
comprido o membro do macho, mais comprida é a vagina. Mas não
é que ela simplesmente cresça de tamanho. O pênis das aves
(quando existe) é um tanto diferente do humano: no caso dos patos,
é uma estrutura em forma de saca-rolhas com uma espécie de
canaleta na parte de cima. O esperma é despejado por fora do
órgão, e não por dentro dele, deslizando por essa canaleta. O dado
curioso é que, enquanto o “saca-rolhas” masculino tem espirais no
sentido anti-horário, a vagina das patas seespirala no sentido
contrário, ou seja, em sentido horário. É como se a anatomia delas
dificultasse de propósito a penetração.
Calma, fica pior ainda. A análise cuidadosa feita por Brennan mostra
que o órgão feminino está cheio de bolsas na sua parte mais funda,
perto do local onde o óvulo é fecundado. São verdadeiros becos
sem saída, aparentemente feitos para impedir que o membro do
macho fique totalmente “ereto” e consiga depositar o esperma do
bicho no lugar certo. Os espermatozoides presos nessas bolsas
provavelmente têm muita dificuldade de atingir o óvulo e produzir
patinhos. De novo, a correlação entre complicação vaginal e FEPCs
é clara: quanto mais tarados os machos da espécie, mais
contorcidas as genitálias femininas.
As fêmeas têm um motivo muito bom para se dar ao trabalho de
contra-atacar. Afinal, elas escolhem seus pares por suas qualidades
como futuros papais, por sua capacidade de proporcionar a elas
filhotes fortes e sadios, e é por isso que passam a estação
reprodutiva inteira com eles. É muito injusto que um qualquer se
aproveite delas e ainda consiga espalhar seus genes de malandro
com isso.
E o mais impressionante é que a estratégia feminina, pelo menos
em algumas espécies, parece estar funcionando. Estudos genéticos
revelaram que, embora os estupros correspondam a cerca de um
terço de todos os acasalamentos, só três em cada cem patinhos
nascidos são frutos da malandragem masculina.
Como as fêmeas dão um jeito de conseguir isso ainda é um
mistério. Brennan diz acreditar que elas conseguem contrair a
vagina e levar o esperma do macho indesejado até as regiões “beco
sem saída”, das quais o sêmen é expelido. (Já posso ver a
manchete em capas de revistas femininas: “É de enlouquecer:
Margarida ensina suas técnicas de pompoarismo!”)
Resumo da ópera: nossa espécie não está sozinha na quantidade
de aparentes besteiras que faz por causa de um sexozinho. A
chance de passar os genes adiante por meio dessa técnica tão
interessante é, pelo menos do ponto de vista biológico, o passaporte
para a imortalidade. Machos e fêmeas batem cabeça porque, por
definição, suas táticas nesse jogo são diferentes, e o resultado às
vezes é essa espiral maluca de ataques e contra-ataques. C’est la
guerre.
 
Sexto sentido
Visão, audição, tato, paladar, olfato – e eletricidade?
 
Qualquer um que já tenha visto um ornitorrinco (Ornithorhynchus
anatinus), seja ao vivo, seja em filmes ou fotografias, costuma
concordar que não dá pra ser mais esquisito que esse bicho. Se não
tivesse a desagradável mania de se mexer e mostrar que é de
verdade, seria mais fácil achar que ele é o produto de algum
empalhador com senso de humor mórbido, que inventou de colar o
bico de um pato e o rabo de um castor no corpo de algum animal
peludo genérico. OK, deixemos o bicho ser bizarro. Mas sexto
sentido? Aí já é demais.
É demais, mas é verdade. Todos nós sabemos o que significa
ver, ouvir, cheirar, sentir ou degustar, mas essa esquisitice
australiana usa um sentido extra para navegar o ambiente aquático,
de olhos, narinas e ouvidos fechados, quase como um Professor
Xavier felpudo, navegando o “plano astral” de olhos fechados. O
mais impressionante é que ele não está sozinho: uma multidão de
outras espécies animais é capaz de truques parecidos, usando
ferramentas desenvolvidas para a tarefa de forma independente.
Como funciona esse sexto sentido? Uma dica: nunca deixe as pilhas
do seu radinho perto de um ornitorrinco se você for ouvir o jogo do
Tricolor no dia seguinte.
Um time de pesquisadores australianos e alemães fez a experiência
– enterrou algumas pilhas debaixo d’água, deixando-as invisíveis –
e acabou presenciando um selvagem ataque antibateria logo
depois. Acontece que aquele bico de pato (que, na verdade, é
borrachudo ao toque) é um órgão de detecção de eletricidade à
distância.
Os ornitorrincos são caçadores de invertebrados subaquáticos,
bichos que se escondem no leito de rios, e os nossos sentidos
tradicionais não servem para muita coisa em meio ao lodo de um
riacho. Mas o corpo de um pequeno caramujo, assim como o de
bichos muito maiores, emite um campo elétrico fraquinho toda vez
que eles usam seus músculos. Se os ornitorrincos fossem capazes
de detectar esse campo elétrico, realmente não precisariam dos
demais sentidos para achar sua presa. De fato, é o que parece
acontecer: os bichos mergulham de olhos fechados, narinas e
ouvidos selados, como se quisessem deixar de lado toda e qualquer
informação irrelevante.
É aqui que o comportamento e a neurobiologia desses estranhos
mamíferos botadores de ovos se encontram. Apesar da postura zen
debaixo d’água, eles não cessam de fazer movimentos
característicos com o bico, quase como quem tenta ajustar uma
antena de radinho de pilha em busca do programa desejado. O
mapeamento do controle de movimentos e de informação sensorial
no cérebro dos bichos dá outra pista da importância do bico: o
espaço dedicado ao processamento de informação do órgão no
cérebro é um despropósito, maior que todas as outras partes do
corpo da criatura combinadas.
E o que uma olhada mais atenta na estrutura do bico revela? Poros
– poros para todo lado. Há receptores diretamente sensíveis a
campos elétricos, que na verdade são glândulas modificadas, e
outros que respondem a pressão mecânica, provavelmente
parecidos com os que existem na pele humana e nos permitem
sentir o toque de uma mão ou do vento. Os cientistas acham que os
dois tipos de receptores funcionam em conjunto: enquanto os
elétricos trazem uma informação do tipo “tem coisa viva por aqui”,
os de pressão captam movimentos de nado de um pequeno
camarão de água doce, por exemplo.
A informação combinada poderia dar ao ornitorrinco caçador a
posição da presa: bastaria que ele registrasse o campo elétrico
(que, como a luz, viaja de forma quase instantânea) e depois o
movimento da presa. O intervalo de tempo entre um e outro
revelaria a distância aproximada do futuro jantar – meio como contar
os segundos entre o relâmpago e o trovão para saber a que
distância o raio caiu.
É uma habilidade impressionante, mas outras pesquisas andam
mostrando que o ornitorrinco é praticamente um amador entre as
espécies com sexto sentido elétrico. A habilidade é relativamente
comum entre vários tipos de peixe, como os tubarões, arraias,
peixes-espada e peixes elétricos (muitos deles presentes na
Amazônia e outros grandes rios tropicais).
Entre os tubarões, por exemplo, o serviço de detecção elétrica é
realizado por poros especializados conhecidos como ampolas de
Lorenzini. Os canais das ampolas, repletos de uma espécie de gel
condutor, levam a informação do campo elétrico biológico das
presas para células detectoras especializadas, as quais, por sua
vez, carregam os dados para o cérebro. O sistema é tão apurado
nos tubarões que eles são capazes de captar apenas um
milionésimo de volt na água do mar. Há até planos para criar
“defletores de tubarão” usando ímãs, que distorcem o sentido
elétrico dos bichos.
Vários peixes elétricos vão ainda mais longe. Eles produzem seu
próprio campo elétrico alinhando seus músculos como se eles
fossem baterias paralelas (várias pilhas num rádio portátil maior,
digamos). Ao entrar em contato com obstáculos ou outros animais, o
campo elétrico se distorce, e o objeto é detectado.
Aliás, é por isso que tais peixes não usam movimentos ondulantes
para nadar – ficar retorcendo o corpo atrapalharia a formação do
campo elétrico. Acredita-se que os peixes elétricos mais poderosos,
aqueles que conseguem matar uma presa ou um agressor usando
seu próprio campo eletromagnético, são animais que “aprenderam”
a usar de forma mais agressiva seu antigo detector de obstáculos.
A maravilha menos fácil de perceber nesse catálogo variado de
criaturas com sexto sentido é o fato de que grande parte delas
desenvolveu sua percepção elétrica de forma independente ao
longo de milhões de anos de evolução. Nenhum dos ancestrais
terrestres do ornitorrinco tinha essa capacidade; o mesmo acontece
com os tubarões e os peixes elétricos, que estão separadosevolutivamente há muito tempo e usam órgãos relativamente
distintos para fazer serviços parecidos debaixo d’água. Eis um ótimo
argumento para acabar com a mania de considerar o ornitorrinco um
mamífero “primitivo”. A criatura pode botar ovos e não ter mamilos –
as fêmeas produzem um leite que escorre diretamente das
glândulas –, mas não temos a menor razão para acreditar que sua
evolução “estacionou”. Embora faça parte de uma linhagem
antiquada, o ornitorrinco moderno é uma criatura
especializadíssima, tão “evoluída” quanto a nossa própria espécie.
Esse é o milagre da evolução convergente: ambientes parecidos
acabam exigindo soluções semelhantes de criaturas cuja história
não poderia ser mais diferente. Ou, como diria meu personagem
favorito na série Parque dos Dinossauros, “Life finds a way”- a vida
sempre dá um jeito.
 
Colmeia
O estranho caso do mamífero que virou inseto
 
As mais de 5.000 espécies de mamíferos do planeta evoluíram para
assumir quase todo tipo de forma ou tamanho, colonizaram o ar (no
caso dos morcegos) e as profundezas dos oceanos (como mostram
baleias e peixes-boi), os trópicos e o gelo dos polos. Em meio a
tanta diversidade, esquisitice é o que não falta. Mas, diante do corpo
totalmente desprovido de pelos e enrugado feito um maracujá de
gaveta do rato-toupeira-pelado (Heterocephalus glaber), fica difícil
não dar a esse bicho o troféu de mais estranho de todos. Ele é, para
todos os efeitos, o que acontece com um mamífero quando ele vira
inseto.
E não qualquer inseto, apresso-me a acrescentar. Os ratos-
toupeiras-pelados (ufa!) são criaturas eussociais, ou seja,
apresentam um modo de vida incrivelmente parecido com o de
abelhas, formigas e cupins. Isso inclui uma divisão social dos papéis
reprodutivos que, pode apostar, ninguém imaginaria ser possível
entre mamíferos. E esse é só o começo. Várias outras
características fisiológicas e comportamentais inusitadas fazem
desses bichos uma prova viva de como a adaptação a um novo
ambiente pode virar do avesso uma espécie.
Se não fosse pela feiura, um observador mais apressado poderia
achar que não há nada de muito especial nesses roedores. De fato,
a aparência deles é só uma versão exagerada do que acontece com
inúmeros outros bichos que se adaptam a uma vida fossorial, ou
seja, em tocas debaixo da terra. Os ratos-toupeiras-pelados se
inserem num grupo bem maior de roedores que cavam galerias
subterrâneas com os dentes incisivos (e, em menor grau, com as
patinhas da frente).
Como os peixes que vivem em cavernas, muitos ratos-toupeiras são
virtualmente cegos, o que faz todo o sentido quando se considera
que eles não estão em contato com a luz do Sol durante 99,99% de
suas vidas. Antes que alguém acuse este pobre colunista de
lamarckismo (a ideia de que a simples falta de uso dos olhos levou
ao seu sumiço, como propunha o francês Jean-Baptiste Lamarck no
século 18), o que quero dizer é que a falta de visão significa apenas
a “perda da força” da seleção natural sobre os olhos, agora
desnecessários. Portanto, mutações que levassem ao
enfraquecimento da vista e da formação dos órgãos visuais não
seriam penalizadas com dificuldades para sobreviver; aliás,
poderiam até ser positivas, já que a energia que seria gasta em
fabricar olhos inúteis poderia ir para pedaços realmente importantes
do organismo. Daí a natureza cegueta dos bichos e seus parentes.
Terminado o nosso rápido excurso antilamarckista, voltemos ao que
é único dos ratos-toupeiras-pelados. Com apenas 10 cm de
comprimento, os bichinhos geram extensas redes de túneis debaixo
da savana da Etiópia, da Somália e do Quênia – por coincidência,
justamente o ambiente nativo da maioria dos ancestrais da
humanidade nos últimos milhões de anos. Não é muito
surpreendente que eles se alimentem de raízes. O que é realmente
surpreendente é como eles fazem sexo e têm filhos.
Numa mesma rede de tocas, dentro do mesmo grupo social, vivem
entre 70 e quase 300 ratos-toupeiras – uma quantidade de
indivíduos bastante grande quando comparada com o que se vê
entre outros mamíferos não-humanos. Mas talvez seja mais correto
chamar esse grupo enorme de colônia ou colmeia, porque é grande
a chance de que todos os animais sejam filhos da mesma mãe e
apenas dois ou três machos.
É exatamente isso: os ratos-toupeira têm uma “rainha”, tal como as
abelhas, as formigas e os cupins. O termo inclui, por incrível que
pareça, coisas que são típicas das rainhas desses insetos. As ratas-
toupeiras rainhas são bem maiores que as fêmeas normais, são as
únicas a produzir novos filhotes (em grandes ninhadas, com até 12
bebês) e sua presença, de alguma forma, “inibe” a capacidade
reprodutiva de suas filhas. As demais roedoras da colônia não são
fisiologicamente estéreis, mas seu organismo simplesmente não
produz filhotes enquanto a rainha está viva. Quando ela morre, as
fêmeas remanescentes lutam, muitas vezes com alto grau de
violência, para assumir a posição vaga.
Os paralelos com os insetos eussociais ficam ainda mais detalhados
e bizarros. Parece haver, por exemplo, uma especialização de
papéis parecida com as das formigas – haveria ratos-toupeiras
“soldados”, “operários” e por aí vai. Alguns abrem túneis, outros
limpam túneis (levando a terra excedente para fora das galerias),
outros trazem para dentro das tocas as raízes ricas em carboidratos
que são o menu principal dos bichos. (Diz a lenda que um único
grupo é capaz de detonar uma plantação inteira de batata-doce.)
Como se não bastasse, essas criaturas ainda trabalham juntas para
manter constante a temperatura das tocas e dos seus próprios
corpos, coisa que pode ser observada também nas colmeias
“verdadeiras” habitadas por abelhas, por exemplo. Por razões que
ainda não estão muito claras, os ratos-toupeiras não mantêm
constante a temperatura de seu organismo, como os demais
mamíferos, e por isso se juntam ou se afastam para controlá-la. Há
uma correlação entre o fato de terem, na prática, “sangue frio” (com
metabolismo relativamente baixo), e sua longevidade de quase 30
anos, um bocado alta para roedores, cuja condição normal é
viverem dois ou três anos, no máximo, antes da morte por velhice.
A vida eussocial dos bichos é, ao menos num primeiro nível, menos
misteriosa do que parece. A estratégia de delegar a reprodução do
grupo a uma única fêmea e a um número limitado de machos
funciona bem em insetos porque, na prática, todo mundo está se
reproduzindo por tabela. Isso é explicado pela chamada teoria da
seleção de parentesco. Compartilhamos grande quantidade de
nossos genes com nossos parentes próximos – 50% com irmãos de
pai e mãe, a mesma proporção com nossos genitores, 25% com
avós ou tios, e por aí vai, como nossas jornadas pela função
evolutiva do sexo demonstraram capítulos atrás. Dessa maneira, um
animal pode estar muito bem representado geneticamente na
geração seguinte mesmo sem ter filhos.
O maluco é imaginar por que, entre todas as espécies de
mamíferos, só essa tomou um caminho tão parecido com o dos
insetos sociais, as criaturas evolutivamente mais bem-sucedidas da
Terra. Até onde sei, ninguém até agora propôs um cenário
convincente para explicar o fenômeno. A vida subterrânea poderia
levar alguém a sugerir uma analogia com cupins e formigas,
também eussociais, mas inúmeros outros mamíferos são quase tão
subterrâneos quanto os ratos-toupeiras-pelados, sem nem por isso
terem se transformado em insetos que mamam.
Ao mesmo tempo, há poucas dúvidas sobre o parentesco da
espécie com outros roedores muito diferentes. Contra todas as
probabilidades, mudaram para se transformar em algo fora de
qualquer padrão. Uma das ideias mais interessantes dos últimos
tempos em biologia evolutiva é o do “landscape”, algo como
topografia biológica. Sob esse ponto de vista, as espécies estariam
distribuídas por “vales”, “morros” e “montanhas” do espaço
evolutivo. Elas conseguiriam, no máximo, “descer” um morro –
grosso modo, um modo de vida específico, uma adaptação – e
escalar outro próximo, mas jamais saltar do monte Branco ao
Everest, ou seja, transformarde forma radical sua biologia e seu
estilo de vida.
No entanto, em alguns momentos, parece que surge um rombo no
“landscape”. Como quem atravessa um daqueles túneis
dimensionais ou “wormholes” cogitados pelos físicos teóricos, os
nossos ratos-toupeiras foram parar num pedaço diametralmente
oposto do espaço evolutivo. É raro, portanto, mas acontece. Os
bichos podem ser feios, mas o que eles dizem sobre o que a vida é
capaz de fazer não deixa de ser um bocado bonito.
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
Esperanças
Do certo, do errado, da fé e da razão
 
Alargando o círculo
Os grandes macacos merecem direitos humanos?
 
Luiza, dois aninhos, estava me olhando com aquele misto de
curiosidade e receio típico dos bebês por trás das grades da casa
onde mora com a mãe. De repente, começou a “brincar de cuti”,
como dizem lá na minha terra. Aposto que você conhece a
brincadeira, mesmo que estranhe o nome: ela se escondia atrás da
parede e logo depois espichava o pescoço para mostrar a carinha
de novo, repetindo o processo várias e várias vezes. Crianças
novinhas, por um desses mistérios do Universo, adoram fazer isso.
(O adulto que entra no jogo fica encarregado de exclamar “cuti!”
toda vez que o bebê mostra o rosto de novo, daí o nome da
brincadeira.)
Luiza é um bebê chimpanzé, o que explica o meu espanto ao
vê-la brincar exatamente como uma criança humana da mesma
idade. O fato é que nenhum compêndio sobre comportamento
primata, nenhum documentário de TV é capaz de preparar alguém
para o primeiro contato direto com um grande macaco – a categoria
que engloba, além dos chimpanzés comuns, os bonobos (ou
chimpanzés-pigmeus), gorilas e orangotangos. As últimas décadas
de pesquisa mostraram com riqueza de detalhes como a vida social,
comportamental e cognitiva desses bichos é complexa e – sem
querer fugir do clichê – demasiado humana. O que nos leva à
questão óbvia: o que devemos fazer com esse conhecimento?
Alguns dos mais destacados cientistas e filósofos do mundo, entre
eles o zoólogo Richard Dawkins e a primatóloga Jane Goodall,
dizem saber a resposta. Para eles, a única atitude moralmente
aceitável é instituir uma Declaração Universal dos Direitos dos
Grandes Macacos, promulgada pela ONU, à semelhança da
Declaração Universal dos Direitos Humanos. Esse é o objetivo do
GAP (sigla inglesa para “Projeto Grandes Macacos”), que prevê três
direitos inalienáveis para esses primatas: o direito à vida; o direito à
liberdade; e o direito a não ser torturado.
Parece loucura? Não depois de uma visita ao lar de Luiza, o
santuário de chimpanzés em Sorocaba, no interior paulista, que é o
braço brasileiro do GAP. (Nós já tivemos ocasião de mencionar o
local alguns capítulos atrás: foi lá também que um dos “moradores”
me bombardeou com pedaços de fezes endurecidas.) Nesse lugar,
o empresário de origem cubana Pedro Ynterian abriga cerca de 40
animais, quase todos oriundos de zoológicos ou circos, muitos com
histórico de maus-tratos. A analogia que vem à mente para
descrever o santuário é uma mistura de orfanato com hospital
psiquiátrico.
Para os bichos mais jovens ou para Luiza, que tem a sorte de contar
com a companhia da mãe desde o nascimento, ainda são grandes
as chances de levar uma vida normal. Os adultos, porém, têm
sequelas visíveis. O lado ruim de pertencer a uma espécie muito
inteligente e com vocação para a vida social complexa é que
qualquer perturbação nessa trajetória pode causar problemas
sérios.
É o caso de vários dos chimpanzés do santuário, muitos dos quais
“adotados” ainda bebês por famílias humanas, sem que elas se
dessem conta de que, em quatro ou cinco anos, o bichinho de
estimação teria dentes afiados e uma força equivalente à de um
homem adulto. O resultado para os bichos: dentes arrancados ou
marcas de correntes pesadas no corpo. Viver cercado por gente
também deixou os macacos totalmente despreparados para o
contato com membros da própria espécie – quase todos os machos
do santuário são impotentes, e as fêmeas, caso engravidem, correm
o risco de não saber cuidar dos próprios filhotes, ou até de
machucá-los. Há pouquíssima esperança de que mesmo os mais
jovens consigam aprender a se virar sozinhos na natureza algum
dia, o que significa que, para todos os efeitos, eles estão
“condenados” à vida em ambientes humanos para sempre. Por isso,
santuários de chimpanzés no mundo todo não costumam encorajar
a reprodução em cativeiro, ao menos por enquanto, porque não há
esperança de devolver os animais ao seu habitat.
Somam-se ao efeito devastador do cativeiro sobre esses bichos os
feitos de que eles são capazes. Os grandes macacos se
reconhecem no espelho, como você deve se lembrar; são mestres
em fabricar e usar instrumentos; e possuem suas próprias tradições
culturais (que variam de lugar para lugar, e de bando para bando).
Têm laços familiares e amizades duradouras, além de alianças
“políticas”. E, ao que tudo indica, travam “guerras” em que membros
de outros grupos são atacados, feridos e até mortos, e fêmeas do
bando perdedor podem ser incorporadas à comunidade que venceu
a disputa.
Esse potencial bélico, no entanto, não é nem de longe suficiente
para protegê-los de nós. Entre a caça para a obtenção de carne e a
destruição de seu habitat, os grandes macacos estão sendo
empurrados para a extinção. Nenhuma das espécies dos bichos
conta hoje com uma população superior a poucas dezenas de
milhares de indivíduos, e o ritmo da devastação das florestas onde
vivem é tão acelerado que os orangotangos, por exemplo, talvez
não existam mais na natureza por volta de 2020, se nada mudar.
Olhando a questão exclusivamente do ponto de vista científico, não
dá para pensar numa perda mais irreparável. A proximidade
evolutiva entre nós e eles significa que chimpanzés, gorilas e
orangotangos são o modelo mais próximo que temos para entender
as origens da humanidade, as raízes daquilo que nos torna únicos
como espécie. Não dá para dizer que eles são uma janela para o
passado – nenhuma população de seres vivos fica simplesmente
“parada no tempo”, “sem evoluir” –, mas comparações com a
biologia, o comportamento e a herança genética deles
decididamente podem dizer muito sobre nossas próprias origens, de
uma maneira que os simples fósseis são incapazes de evocar.
O trabalho do GAP tem conseguido alguns avanços importantes em
busca de melhores condições de vida para essas criaturas únicas –
o governo britânico, por exemplo, proibiu recentemente o uso de
grandes macacos para pesquisa médica. Por outro lado, é
compreensível que muita gente critique o que considera exagero
nesse tipo de iniciativa.
Para começo de conversa, a semelhança impressionante entre nós
e eles não anula o fato de que ainda há um abismo nos separando.
As pessoas adoram citar o número mágico de 99% de semelhança
nas “letras” químicas de DNA entre humanos e chimpanzés. Mas,
como bem lembra o meu amigo Marcelo Nóbrega, geneticista da
Universidade de Chicago (EUA), essa diferença aparentemente
mínima se reflete em nada menos que 55% dos nossos genes: essa
é a fração das nossas proteínas (codificadas pelos genes) que são
diferentes das dos nossos primos. E, afinal de contas, será que já
não temos problemas suficientes para fazer com que respeitem os
direitos humanos? Para que inventar?
Em última instância, e independentemente do que o GAP
conseguirá, esse me parece um daqueles casos em que a nova
perspectiva do mundo trazida pela ciência precisa ter um impacto
sobre a maneira como lidamos com esse mundo. No fundo, o que
menos importa é saber se os grandes macacos são capazes de
sentir e pensar exatamente como nós.
Nós não condicionamos a dignidade humana de um deficiente físico
ou mental à sua capacidade de entender o teorema de Pitágoras ou
de usar um computador, mas ao fato de pertencer à família humana.
Da mesma forma, está mais do que na hora de respeitar a
complexidade e o potencial de outras formas de vida não pelos
moldes nos quais queremos encaixá-las, mas pelo que elas são –
membros da nossa família, parentes apenas um pouco mais
distantes.
Não vejocomo esse salto de imaginação possa desviar nossa
atenção do esforço para que os direitos da humanidade sejam mais
respeitados. Não dizem por aí que o que mais falta é tolerância com
as diferenças? Pois os grandes macacos nos põem diante do
desafio de encarar a quintessência do diferente e, ao olhá-lo com o
devido cuidado, reconhecer finalmente que ele é também nosso
igual.
 
A catedral da mente
Como a evolução do cérebro nos predispôs a ter fé
 
Você pode ou não acreditar nela, mas é inegável que a liturgia feita
para comemorar a morte e ressurreição de Jesus alcança, em vários
momentos, uma beleza arrebatadora. Talvez o elemento mais
tocante seja o que, na Inglaterra medieval, costumava-se chamar de
harrowing of Hell – algo como “a vitória sobre o inferno”, que teria
acontecido no Sábado de Aleluia. A expressão se refere à tese de
que, antes de ressuscitar, Jesus teria experimentado a totalidade do
sofrimento humano na hora da morte, descendo ao próprio inferno.
E mais: feito um general vitorioso, ele teria arrancado da prisão
infernal as almas dos justos, que só podiam chegar ao paraíso com
a ajuda de Cristo. Se você é católico, já ouviu essa história, ainda
que com outro nome: quando se diz que Jesus “desceu à mansão
dos mortos”, trata-se de uma adaptação da expressão original,
“desceu aos infernos”.
A história e os elementos que a circundam são exemplos claros
do mistério que circunda a experiência religiosa. Quando se observa
a fé – qualquer fé – com os óculos frios e racionais do dia-a-dia, é
impressionante a quantidade de paradoxos nos quais ela nos pede
para acreditar. Imaginar um homem que também é Deus, mas que
de alguma maneira se despiu dessa divindade para experimentar a
morte e o próprio inferno, é um feito cognitivo que sobrecarrega o
nosso cérebro normalmente tão poderoso.
Ao mesmo tempo, a religião pode sofrer o impacto de decisões
inteiramente racionais, discutidas em debates e ratificadas em
documentos, como a própria mudança de “infernos” para “mansão
dos mortos” – feita, é claro, para evitar interpretações indesejadas.
O que, no fundo, essa contradição quer dizer, e por que parecemos
tão dispostos a conviver com ela? Existe algum jeito de examinar a
religião como fazemos com qualquer outro fenômeno humano –
como algo derivado, em última instância, da química dos nossos
cérebros e de bilhões de anos de evolução?
A resposta, por enquanto, é que os pesquisadores estão
começando a avançar nesse tipo de análise. Usando as ferramentas
da biologia evolutiva e da neurociência, alguns deles avaliam que a
fé pode ser uma consequência inevitável de como as nossas
mentes funcionam, ainda que ela pareça ter pouco a ver com os
eventos do cotidiano.
Uma das ideias mais interessantes a emergir nessa nova área de
estudo atende pelo nome de HADD (sigla inglesa de “aparelho
hiperativo de detecção de agente). Complicado, eu sei, mas menos
do que parece. Qualquer criatura que (como nós ou a imensa
maioria dos outros animais) precisa se mexer para lá e para cá no
mundo, em busca de comida e parceiros ou fugindo de predadores,
precisa de um tipo especial de detector, capaz de flagrar outros
agentes, ou seja, seres que, como nós, também agem no mundo.
Grosso modo, esse detector é essencial porque, sem ele, um animal
corre o risco de surtar desnecessariamente toda vez que sente um
vento mais forte ou escuta uma jaca cair da jaqueira, achando que
se trata de um predador, por exemplo. E sair correndo à toa por
causa dessas coisas bobas é um gasto de energia que poderia ser
prejudicial, ou até fatal, quando o lobo de verdade der as caras.
Ainda não se sabe com certeza se o aparelho de detecção de
agente e uma outra propriedade dos nossos cérebros, a chamada
teoria da mente, tão prezadas pelos que estudam a inteligência
animal, são a mesma coisa. Minha impressão é que a segunda é um
desdobramento do primeiro. Você deve estar lembrado das diversas
aparições do conceito de teoria da mente nestas páginas: ela se
refere não só à capacidade de atribuir “agência”, ou seja, a
habilidade de ser uma criatura agente, mas também à de atribuir
uma mente como a nossa a outros seres mundo afora.
De novo, trata-se de algo extremamente útil. É a teoria da mente
que nos permite traçar raciocínios como a daquela canção da
Marisa Monte: eu sei que você sabe que eu sei que você sabe que
eu sei. Ao atribuir intenções, desejos e planos a outras pessoas, nós
automaticamente ganhamos uma chance de imaginar o que elas
estão pensando (ou o que elas estão pensando sobre o que elas
acham que nós estamos pensando...) – e, assim, responder à altura.
Nossa vida social e intelectual jamais seria tão complicada e
construtiva sem isso.
No entanto, como diz o ditado, seguro morreu de velho. Num mundo
que não compreendemos totalmente (aliás, no passado remoto,
compreendíamos muito menos do que hoje), muitas vezes nos
parece seguro e até útil julgar coisas que não são agentes nem
possuem mentes com as ferramentas da detecção de agência e da
teoria da mente – daí o “hiperativo” da sigla HADD. Não é de
admirar, portanto, a tendência humana para ver personalidade
(“pessoalidade” seria uma palavra melhor e, acredite, também
existe) em seres inanimados ou em fenômenos da natureza. E não
é preciso muito para sofisticar um pouco mais esse raciocínio e
passar a acreditar que uma tempestade e um terremoto não são
agentes em si, mas sim os deuses da tempestade e do terremoto
que estão por trás dos fenômenos.
Dessa forma, a religião seria “uma família de fenômenos cognitivos
que envolvem o uso extraordinário de processos cognitivos
comuns”, como escreve o antropólogo americano Scott Atran. Um
experimento com crianças parece sugerir que isso é mesmo
verdade, além de tocar num dos pontos mais importantes da religião
– a crença em alguma forma de vida após a morte.
Os psicólogos americanos Jesse Bering e David Bjorklund usaram
um teatrinho de fantoches, no qual um camundongo se perde e é
comido por um jacaré. Depois, perguntaram a crianças com idades
entre quatro e 12 anos como era para o roedor estar morto. Ele
ainda tinha fome? Sentia sono? Queria ir para casa? A maioria
delas respondeu que o bichinho não precisava mais comer, mas
também que ele ainda pensava, amava sua mãe e gostava de
queijo. Para Bering, a interpretação mais provável para os dados é
que, aplicando a boa e velha teoria da mente para entender a
situação do camundongo, as crianças simplesmente não
conseguiam conceber a própria não-existência – e, portanto,
também não conseguiam fazer o mesmo com o roedor.
É claro que ainda existem muitas peças do quebra-cabeça da fé que
precisam entrar no lugar certo, se a ciência quiser entender de fato
os fenômenos religiosos. A ideia de que a crença é apenas um
subproduto da estrutura das nossas mentes, mera consequência de
outros fatores que foram importantes para a nossa sobrevivência
como espécie, pode ser só parte da história.
A fé poderia ter nascido como um subproduto e depois ter sido
reforçada – abraçando conceitos éticos e de solidariedade entre
fiéis, por exemplo, que dariam uma força impressionante aos mais
religiosos durante a luta pela sobrevivência. Alguns estudos
sociológicos revelam que a religião de fato funciona como um
cimento poderoso para os grupos humanos, sendo voltada, pelo
menos na maioria dos casos, ao chamado in-group, ou seja, à
comunidade de fiéis em oposição ao resto do mundo. Do ponto de
vista funcional, portanto, haveria pouca diferença entre fazer parte
de uma religião e ser membro de uma sociedade secreta cujos
membros se reconhecem e praticam a ajuda mútua sempre que
possível. Também há indícios de que os praticantes de uma religião
teriam um incentivo extra para agir de forma ética e socialmente
aceitável se a divindade que adoram também for dotada, de acordo
com a teologia daquela fé, dessas mesmas preocupações morais.
Ao aderir de forma inflexível a tais preceitos, os religiosos estariam
passando a seus companheiros de crença sinais claros de
confiabilidade, o que favoreceria a reputação dos fiéisem sua
comunidade e, de quebra, promoveria ainda mais a coesão social,
com todos os benefícios que ela pode trazer, tais como segurança e
estabilidade política e econômica. 
Se esses dados são confiáveis, e se puderem ser aplicados às
origens do comportamento religioso, seu significado seria mais ou
menos o seguinte: a evolução cultural teria se misturado à evolução
biológica num coquetel poderoso, fazendo com que pessoas e
sociedades dotadas de fé superassem as que não usavam essa
arma e deixassem mais descendentes – até gerar um mundo em
que a religião é um elemento quase onipresente, como o nosso.
As pessoas de fé podem temer que esse tipo de investigação seja
um empreendimento de ateus empedernidos, loucos para esmagar
a religião com as forças da ciência. Será que revelar as bases
neurológicas e evolutivas da crença em Deus equivaleria a revelar
os truques de um mágico – de forma que seria impossível acreditar
nos poderes sobrenaturais depois de ver o fundo falso da cartola?
Creio, com toda a sinceridade, que esse não é o caso. A ciência
pode entender como a fé se desenvolve, mas a base e o sentido
que ela dá à existência humana estão fora do alcance dos
laboratórios. Se é possível acreditar que Deus guiou o processo
complicado e fascinante que nos tornou humanos, também é
legítimo imaginar que a arquitetura da nossa mente anseia pela fé
porque Deus quer ser conhecido. Não há nada de desrespeitoso em
tentar entender esse processo. Como o próprio Jesus disse,
“Conhecereis a verdade – e a verdade vos libertará”.
 
O semeador saiu a semear
Acaso e necessidade no “genoma” da Bíblia
 
Gostaria de deixar de lado, para começo de conversa neste
capítulo, qualquer reivindicação de originalidade. Não há nada de
novo em comparar o texto da Bíblia a uma coisa viva, como sugere
o “genoma” no subtítulo acima. Duas das parábolas mais famosas
de Jesus, a do semeador e a do joio e do trigo, já apresentavam
esse paralelo. (A do semeador, aliás, prefigura involuntariamente a
eterna dicotomia, ou interação, entre genes e ambiente que
caracteriza a biologia. Embora a semente – a palavra divina – seja
sempre a mesma, ela depende do tipo de solo em que cai –
espinhoso, pedregoso ou fértil – para produzir fruto.)
A comparação que estou tentando fazer, porém, é um pouco
menos convencional. Ela se inspira no campo emergente da
memética – uma visão relativamente recente sobre a história da
cultura humana, que tenta refletir sobre o desenvolvimento das
ideias levando em conta sua semelhança de mecanismo com a
evolução da vida. Se o paralelo valer, em vez de genes de DNA,
teríamos “memes” de cultura, que são modificados e transmitidos de
indivíduo para indivíduo e de geração para geração.
Sendo um pouco menos abstrato: o raciocínio dos defensores da
memética tem a ver com o fato de que não precisamos de seres
vivos “tradicionais”, feitos de carne, osso e aminoácidos, para que a
evolução à la Darwin – ou seja, principalmente a seleção natural,
numa forma ou outra – aconteça. Na verdade, segundo eles, só
precisamos de duas coisas: descendência com modificação (ou
seja, qualquer “coisa” que gere, ou induza a geração, de “coisas-
filhas” com alguma chance de serem ligeiramente diferentes da
“coisa-mãe”); e replicação, ou reprodução, diferencial (traduzindo:
algum mecanismo que favoreça um número maior de cópias de uma
das “coisas-filhas” e suas “descendentes”, em detrimento de todas
as outras).
Pois muito bem: qualquer análise desapaixonada mostra que o texto
da Bíblia é um campeão nesses quesitos, principalmente quando se
pensa em replicação diferencial – afinal, estamos falando do livro
mais copiado, impresso, lido e comentado da história da
humanidade. Nesse ponto, ele rivaliza com outro “texto” vitorioso no
campeonato da seleção natural, o genoma da nossa espécie
(atualmente chegando perto de 7 bilhões de cópias “impressas”,
sem contar, obviamente, os bilhões de seres humanos que já
viveram antes de nós). Ambos, se vistos com o devido cuidado,
revelam as marcas heterogêneas de sua história: cuidado extremo
na reprodução “letra por letra”, o qual convive, paradoxalmente, com
regiões estranhamente fossilizadas, não-funcionais, que ainda
podem, mesmo assim, ser “lidas.
Antes de ir adiante nessa comparação, um aviso aos navegantes.
Este autor não tem nenhuma agenda oculta de ateu destruidor da
fé. Pelo contrário: o presente escriba é um católico praticante que
não tem nenhum problema em aceitar as reivindicações de
inspiração divina que o texto bíblico fez ao longo dos séculos. Além
disso, embora minha inspiração aqui seja a memética, nem preciso
dizer – mas digo assim mesmo – que não concordo com o rótulo de
“vírus da mente” que muitos memeticistas tentam colar na religião.
No entanto, voltando à parábola do semeador, se a semente é a
palavra divina, o solo é a mente e a cultura humanas. Assim, no
exato momento em que interage com essas variáveis terrenas, o
Verbo (como diria o evangelista João) inevitavelmente é
transformado por elas, moldado por suas vicissitudes biológicas e
históricas. Se ele quer agir “no mundo”, esse é o preço que ele
paga. (Fim da digressão. Se ainda assim você ficar me chamando
de ateu e/ou apóstata, das duas uma: ou não se deu ao trabalho de
ir além do quinto parágrafo do texto, ou não sabe ler mesmo. Tudo
bem?)
Antes que alguém me corrija, é claro que a comparação entre a
Bíblia e um ser vivo ou espécie “selvagem” é imperfeita. Afinal, as
ideias da Sagrada Escritura foram cuidadosamente pensadas e
lapidadas ao longo dos séculos por gerações de antigos israelitas e,
no último século de sua composição, por cristãos também. Assim, o
paralelo mais exato englobaria o texto bíblico e as espécies
domésticas de animais e plantas, arduamente transformadas pela
seleção consciente humana durante milênios. No caso da Bíblia,
esse trabalho foi feito por autênticos “engenheiros meméticos” (e
não genéticos). Mas o DNA “selvagem” original ainda transparece,
tal como o lobo que ainda existe no fundo de todo cãozinho.
Quando uso essas metáforas, refiro-me especificamente aos
elementos pagãos que ainda estão presentes no texto monoteísta
da Bíblia. Os especialistas na evolução do texto bíblico concordam
que muitos dos elementos que são, para nós, característicos da
narrativa bíblica – como a história da criação do mundo e os eventos
do Dilúvio – surgem, de forma surpreendentemente parecida, em
textos bem mais antigos, em geral encontrados na Mesopotâmia
(grosso modo, o atual Iraque e regiões vizinhas) por volta do ano
2.000 a.C.
Exemplos clássicos: no épico babilônico de Gilgamesh, um mortal
também é instruído a construir uma arca e salvar-se da inundação
que vai afogar toda a humanidade; no Enuma Elish, outro texto
babilônico, vemos a criação da Terra em termos muito semelhantes
– a separação das águas, o estabelecimento do firmamento etc. –
aos descritos no Gênesis.
A grande “mutação” induzida pelos editores finais do texto bíblico é
a transformação desses elementos mitológicos (em que vários
deuses fazem sexo, dão à luz, lutam pela supremacia, triunfam e
são mortos) numa visão de mundo radicalmente diferente, em que
um único Deus – Yahweh, ou Javé, no nosso idioma – é, desde o
princípio, o senhor único do Cosmo. Mesmo assim, há vestígios de
mitologia salpicados pelo texto bíblico.
Se no Gênesis a criação da Terra acontece sem esforço algum, com
a mera palavra divina, em diversos salmos o autor bíblico descreve
o combate de Deus contra monstros primordiais do oceano – os
mesmos monstros que, nas mitologias pagãs do Oriente Próximo,
precisaram ser derrotados para que a criação começasse. Da
mesma forma, o “abismo” primordial do Gênesis, sobre o qual o
espírito de Deus paira antes da criação, parece ser um nome
próprio, em hebraico – Tehom.
Ora, etimologicamente trata-se da mesmíssima palavra que Tiamat,
uma “dragoa” da mitologia babilônica que representa o caos primevo
e é derrotada pelos deuses “bons” num feroz combate. No Gênesis
simplesmente não há batalha, mas “Tiamat”, feito um fóssil, continualá. É como se houvesse uma espécie de DNA-lixo – as regiões do
genoma que talvez tenham tido função no passado remoto, mas que
hoje apenas ocupam espaço – no interior do texto bíblico.
Da mesma maneira – talvez pelo pouco contato das pessoas com
as Escrituras originais –, pouca gente percebe que existem duas
narrativas da criação no Gênesis, assim como duas narrativas do
Dilúvio. Pode conferir: do começo do primeiro livro da Bíblia ao
quarto versículo do segundo capítulo, a história caminha de um jeito;
depois, muda radicalmente. Na primeira, Deus cria o homem e a
mulher apenas com sua palavra; na segunda, usa o barro da terra
para formar o homem. Não há como conciliar as duas: na primeira
narrativa, a criação do homem vem por último, no sexto dia,
enquanto na segunda narrativa o homem é criado antes das plantas
(feitas por Deus no terceiro dia, segundo o primeiro texto).
Além de derrubar por completo a ideia de que o texto bíblico pode
ser considerado verdadeiro ao pé da letra, esses dados revelam um
novo paralelo entre o Livro dos Livros e o Livro da Vida no nosso
genoma: genes duplicados. O fato é que, por razões históricas,
nosso DNA está repleto de trechos variados os quais, originalmente,
eram um só. Ao longo do tempo, erros na cópia do material genético
levaram à multiplicação de genes “descendentes” de uma cópia
original, os quais poderiam ficar inativos ou servir a funções
biológicas diferentes ou complementares. Mais ou menos o que
aconteceu, diga-se de passagem, com as “dobradinhas” narrativas
do Gênesis, conservadas pelo editor bíblico lado a lado por razões
teológicas ou rituais.
Essas idiossincrasias são indícios intrigantes de engenharia
memética, mas a grande questão a ser respondida tem a ver com
seleção natural – ou artificial, como queiram. A pergunta é: o texto
bíblico precisou mudar para sobreviver? Teria sofrido alterações
significativas, no todo ou em parte, para que seu potencial de
replicação nos rolos de papiro e códices de pergaminho
continuasse? As incongruências que discutimos acima indicam que
sim. Afinal, são exemplos de como os contextos pagãos foram
transformados pelos engenheiros meméticos monoteístas.
No entanto, mesmo dentro da grande tradição monoteísta de
adoração a Javé que perpassa a Bíblia hebraica (ou Antigo
Testamento, para os cristãos), vemos o texto bíblico sendo
reinterpretado e adaptado para novos “ambientes” históricos e
culturais. A maior de todas essas mutações tem a ver com a grande
tragédia da história israelita – a destruição do Templo de Jerusalém
pelos invasores babilônicos no século VI a.C. Em geral, no Oriente
Próximo daquela época, a população derrotada adotava o deus do
vencedor e abandonava o seu. Se fosse deportada para outra terra
– coisa que aconteceu com a elite dos dois reinos israelitas, o de
Israel no norte e o de Judá no sul –, as chances de adotar o deus da
nova terra eram ainda maiores. Esse tipo de tragédia nacional
normalmente era visto como a prova de que a população foi
derrotada porque sua divindade foi derrotada – por que, então,
continuar a adorá-la?
Mas não foi o que aconteceu. É claro que muitos dos exilados de
Israel e Judá foram assimilados pelos conquistadores, mas alguns
viraram a mesa declarando que a derrota não fora uma derrota de
Javé, mas uma punição pela falta de fidelidade de seu povo. E
outros desses visionários foram mais longe ainda, postulando uma
restauração futura e gloriosa dos israelitas em sua terra. É graças a
essa mutação memética poderosa que, enquanto nenhuma pessoa
viva hoje adora Baal ou Marduk (dois deuses muito populares do
antigo Oriente Próximo), 3 bilhões de seres humanos ainda
acreditam em alguma versão do Javé israelita. Contra toda
esperança, o desastre foi visto não como uma prova da debilidade
de Javé, mas como a demonstração definitiva de sua soberania
sobre o Cosmo inteiro e sobre a história humana.
A Bíblia que temos nas mãos hoje é fruto dessa reviravolta genial
produzida pelos israelitas exilados. No conjunto, o pacote se tornou
tão imbatível que assumiu sua feição “completa”, terminada, seja
para judeus, seja para cristãos. (Aliás, o último livro da Bíblia cristã,
o Apocalipse, exemplifica mais uma característica do DNA, a
proteção contra erros indesejados de cópia, ao avisar: “Se alguém
acrescentar algo, Deus acrescentará sobre ele as pragas escritas
neste livro. E se alguém tirar algo das palavras do livro desta
profecia, Deus lhe tirará a parte da árvore da vida”.)
Se conhecer essa história pode afetar a ilusão de que o texto bíblico
é e sempre foi imutável, o outro lado da moeda é perceber que, ao
brotar de traços que se assemelham à nossa própria biologia, ele
nunca deixou de ser relevante para a vida humana. Sua
preocupação nunca foi o passado remoto ou o futuro distante: pelo
contrário, ele sempre falou, e talvez continue a falar, do aqui e do
agora.
 
Desinteligências
Por que a hipótese do design inteligente é má ciência e péssima
teologia
 
O que tenho a dizer neste capítulo provavelmente não vai agradar a
ninguém. Não, não me entenda mal: minha vocação para
Cassandra é nula (aliás, minha tendência natural é me desdobrar
para satisfazer a gregos e baianos; pergunte a qualquer um). É só
terrivelmente desanimador presenciar um debate e ficar com aquela
sensação desgraçada de que as pessoas estão passando ao largo
do que realmente importa. Para ser menos hermético: falo do
chamado movimento do design inteligente, que se apresenta como
uma alternativa científica viável à moderna teoria da evolução. Meu
ponto de vista é que o design inteligente “não consegue nem ser
errado”, como dizia um certo cientista – mas não pelas razões que a
maioria das pessoas costuma elencar.
Mas, antes de dizer por que, vamos deixar algumas coisas
claras. Um ponto de vista muito comum entre os que defendem a
validade da biologia evolutiva – e é claro que este humilde escriba
cerra fileiras com eles, de modo geral – é uma variação do famoso
“não negociamos com terroristas”. Leia-se: não discutimos com
criacionistas. (E, retórica à parte, está claro que o design inteligente
é uma variante do criacionismo, a ideia de que os seres humanos e
toda a vida na Terra foram criados de forma quase instantânea, com
intervenção divina direta.) Pessoalmente, acho que está na hora de
tentar outra abordagem.
O saudoso paleontólogo Stephen Jay Gould e outros já advertiram
contra o perigo de dar credibilidade científica aos criacionistas se os
levarmos a sério, mas há aí um exagero. Debater ideias, ainda que
o debatedor as considere estapafúrdias, é um ato de respeito
humano dirigido à pessoa que as esposa; não equivale a uma
sanção intelectual daquelas ideias. Com frequência, creio ter
cometido o erro de soar irônico, desrespeitoso ou simplesmente
engraçadinho, assumindo de antemão que o outro lado é idiota,
fanático – ou, pior ainda, desonesto. Não dá para descartar
nenhuma dessas hipóteses, mas prefiro não mais bancá-las daqui
para a frente. A doçura desarma. Está na hora – e digo isso sem
nenhuma ironia – de oferecer a outra face. Pelos frutos os
conhecereis. Se o outro lado continuar com a mesma ladainha
persecutória, apenas provará a má-fé de que já suspeitávamos.
Para o benefício de quem nunca teve contato com o termo, cabe
aqui um rápido resumo do que dizem os proponentes do design
inteligente. Seu principal argumento, voltado principalmente contra a
teoria da seleção natural de Darwin, é a ideia de que é possível
detectar planejamento inteligente na natureza. (Embora o
movimento tenha apoio maciço de think-thanks cristãos
conservadores nos EUA, muitos proponentes do design inteligente
não entram em detalhes sobre a origem desse planejamento.)
E como detectá-lo? Encontrando estruturas de “complexidade
irredutível” - sistemas biológicos tão bem azeitados, no nível
molecular, celular ou macroscópico, que uma origem gradual, peça
por peça, guiada pela seleção natural a partir de estruturas
antecedentes com outras funções, seria matematicamente
impossível. O exemplo favorito é o flagelo das bactérias,uma
estrutura vagamente parecida com a hélice dos helicópteros na qual
grande número de proteínas se conjuga para levar os micróbios a
“nadar”.
Arranque uma peça e o flagelo é inutilizado, dizem os iDesigners (é,
estou cunhando o termo agora). Afirmações semelhantes são feitas
a respeito das células vivas como um todo, em relação ao
funcionamento da cadeia de DNA, e assim por diante. O problema,
para os iDesigners, é que a evolução por seleção natural exige que
características complexas sejam produzidas por meio de passos
lentos e graduais, com alterações pequenas que, a cada passo,
confiram uma vantagem reprodutiva (em linguagem de gente, gerem
mais filhos/descendentes) para o organismo envolvido.
Deixemos de lado o fato de que esses exemplos favoritos não são
dos melhores (há indícios claros de que pelo menos algumas
proteínas do flagelo bacteriano podem servir para coisas muito
diferentes de nadar). Vamos supor que os iDesigners estejam
corretos. Sim, há indícios claros de planejamento inteligente nos
seres vivos. Peço licença para perguntar: o que fazemos com isso?
Para onde vamos daqui para a frente? É possível expandir o
conhecimento sobre a biologia de alguma maneira com essa
premissa, além do meramente descritivo?
Sem meias-palavras, as opções são duas. Se os iDesigners
acreditam que os responsáveis pelo design biológico não são
divindades, mas criaturas alienígenas de extraordinário poder e
inteligência, isso só transfere o problema de lugar. Quem desenhou
a eles? Estamos falando de uma regressão infinita de desenhados e
designers? Como testar uma hipótese dessas?
E se o responsável é Deus, os argumentos de um não-partidarismo
religioso deles caem por terra. (Não que o argumento alguma vez
tivesse sido forte. Está claro que os defensores do design inteligente
são esmagadoramente pessoas com uma visão teológica muito
firme. Eles festejam com frequência a adesão de ateus e/ou
agnósticos ao movimento, mas nenhum dos casos apresentados até
hoje sugerem mais do que algum intelectual querendo agir como
advogado do diabo de uma hipótese controversa.) Mais importante
ainda: se o responsável é Deus, a explicação oferecida pelo design
inteligente para a complexidade da biologia é um mero dar de
ombros, acompanhado de um murmúrio dizendo “Deus quis assim”.
É difícil classificar isso de outra forma que não uma demonstração
de preguiça intelectual. De novo, que fique tudo às claras: como
cristão e católico (sim, é isso o que sou em primeiro lugar, e o
Sagrado Coração de Jesus e o Sagrado Coração de Maria
pendurados no meu peito o provam), não duvido que a vontade de
Deus permeie o Universo inteiro. “Até os cabelos de vossas cabeças
estão contados.” Mas a maneira como isso acontece independe, ao
menos na maior parte do tempo, de intervenções divinas grosseiras
no tecido das coisas, como alguém que resolve colocar o motor de
uma Ferrari num Fusca.
O Universo tem leis, que a inteligência humana consegue, no
mínimo, intuir com bom grau de precisão. É nesse nicho de
explicações do Cosmo que a ciência trabalha, e é nesse nicho que o
design inteligente falha miseravelmente. Os iDesigners gostam de
apontar as lacunas no que a biologia evolutiva foi capaz de
desencavar sobre o passado da vida na Terra. Apontam –
corretamente, aliás – que não temos um modelo decente para a
origem da vida a partir de moléculas orgânicas simples; e que
tampouco temos ideia sobre como todas as formas básicas de vida
animal surgiram num “piscar de olhos” geológico, há pouco menos
de 550 milhões de anos, na chamada Explosão Cambriana.
Senhores, vocês estão certos: a biologia evolutiva não resolveu
isso. O que vocês propõem? O que vamos colocar no lugar dos
modelos atuais? Como avaliar a identidade do Designer cósmico? O
silêncio é avassalador. Ou gostam de guardar segredo, ou não
sabem – e talvez não queiram saber. De novo, isso parece preguiça
intelectual. Pior: não reconhecem que outros problemas
aparentemente insuperáveis (e sim, a evolução humana é um deles)
foram basicamente equacionados pelas ferramentas da biologia
evolutiva. Os modelos atuais podem não ser perfeitos ou mesmo
bons, mas eles são certamente melhores que o modelo “o Designer
quis assim”.
Não sou o primeiro a apontar que, desse ponto de vista, o design
inteligente não é só má ciência: também é má teologia. O Deus em
quem tenho fé é o Senhor da vida e da História: fez o Universo, mas
é maior que ele, e está fora dele. Se dependemos do flagelo
bacteriano para acreditar que ele é capaz de intervir no mundo,
vamos jogar fora nossas convicções mais profundas por causa de
um amontoado de proteínas que, no fundo, é produto da seleção
natural? Isso não faria o menor sentido.
O desafio me parece claro: enquanto os defensores do design
inteligente não forem além de propostas vagas sobre como os fatos
da biologia vieram a ser o que são, será justo que continuem a não
ser considerados cientistas. Não adianta dizer que está tudo errado
sem um fiapo de ideia sobre como reconstruir o edifício caído. A
bola está no campo deles. Pelos frutos os conhecereis.
 
Parque dos mastodontes
O plano para trazer de volta a fauna da Era do Gelo
 
Faça um breve experimento mental: visualize um bando de leões
caçando na Praça dos Três Poderes, enquanto uma manada de
elefantes asiáticos calmamente pisoteia o gramado do Palácio do
Planalto. (Tente não pensar no tipo de caça que os leõezinhos
consumiriam naquele lugar tão aprazível, ou em quem os
paquidermes poderiam acidentalmente pisar em seu passeio. Eu sei
que chega a dar água na boca, mas segure o tchan.) Coisa de
doido, certo? Quer dizer, todo mundo sabe que Brasília é uma selva,
mas enfiar uma bicharada dessas por lá já é demais.
Só tem um porém: não precisaríamos mais do que rebobinar o
calendário uns 10 mil anos -- menos que um piscar de olhos na
história da Terra, ainda que pareça muito em termos humanos --
para perceber que a cena é bem menos absurda do que parece. Na
época em que a Era do Gelo estava acabando de dar lugar ao
nosso atual planeta tépido (o qual, em breve, deve acabar ficando
ainda mais quente, se o consenso científico atual estiver correto), o
Brasil Central era uma espécie de universo paralelo da savana
africana.
Os mastodontes, primos extintos dos elefantes, pastavam junto com
cavalos selvagens e lhamas e eram caçados por ursos e dentes-de-
sabre. Outros bichos gigantes e ainda mais inusitados, como
preguiças terrícolas de 6 m de comprimento e tatus do tamanho de
um Fusca, também eram frequentadores assíduos do Plano Piloto.
O nosso querido Planalto Central não era uma exceção. Porções
substanciais do continente americano, dos EUA à Terra do Fogo,
eram o lar desses e outros gigantes. E, se depender do polêmico
plano de um grupo de biólogos da conservação e paleontólogos,
pode voltar a sê-lo no futuro.
Acrescente a palavra ao seu vocabulário: rewilding. (Ainda não
atinei com um equivalente bom em português. “Reselvagenização”?
Feio pra burro.) Esse é o termo normalmente empregado para
designar a proposta de Paul Martin, da Universidade do Arizona, C.
Josh Donlan, da Universidade Cornell, e uma penca de outros
pesquisadores.
É preciso reconhecer que coragem é o que não falta a esses
sujeitos. Para sorte dos brasilienses, o plano do grupo por enquanto
mira apenas a América do Norte, mas a lógica por trás dele se
aplica com igual força ao cerrado brasileiro. Trata-se de trazer de
volta ao continente americano a megafauna de grandes herbívoros
e seus predadores igualmente avantajados.
A premissa inicial do plano é a culpa do homem pelas condições
não muito invejáveis da megafauna no mundo. Martin e Donlan são
partidários da hipótese do overkill (“matança generalizada”),
segundo a qual a chegada dos seres humanos modernos à América
teria sido a principal responsável pelo desaparecimento dos
gigantes do nosso continente. Esses bichos, que nunca tinham visto
um caçador na vida, teriam virado presa fácil das lanças humanas e
sido basicamente exterminados – de tal maneira que 75% dos
mamíferos com mais de 45 kgdas Américas teriam sumido em
poucos milhares de anos. E hoje, como todos sabemos, bichos do
mesmo tipo que sobraram em outros continentes estão à beira da
extinção, encurralados pela caça e pela destruição de seu habitat e
presas.
Por isso, os proponentes do rewilding querem usar terras hoje
desocupadas e de baixo valor econômico no interior norte-
americano como arca de Noé para a megafauna que sobrou. Com
isso, haveria uma espécie de backup desses bichos, caso sua
população natural na África e na Ásia se extinguisse. Mas, mais
importante ainda, a falta “antinatural” de mamíferos de grande porte
nos ecossistemas abertos da América seria finalmente sanada,
reconduzindo esses ecossistemas a uma condição mais próxima do
original.
Vamos tentar deixar esse segundo ponto um pouco mais claro. Não
dá para brigar com o lema “Extinção é para sempre”: algumas
espécies, como os dentes-de-sabre e as preguiças gigantes, não
têm mais exemplares vivos hoje nem equivalentes de nenhum tipo,
e não podem ser trazidas de volta. Outras, como as lhamas,
camelos, cavalos e mamutes, ainda contam com parentes próximos
no mundo moderno, embora elas próprias tenham sumido.
Finalmente, há espécies cuja população americana foi extinta, mas
que ainda sobrevivem em outros lugares do mundo: é o caso dos
leões (cuja distribuição chegava à Amazônia na Era do Gelo).
O critério de Martin e Donlan é trazer de volta espécies que sejam
equivalentes ecológicos, embora não genéticos, dos gigantes que
desapareceram. Ou seja, criaturas que tenham o mesmo papel que
seus primos exterminados ocupavam em seus ecossistemas
nativos. Os defensores do rewilding argumentam, com razão, que os
grandes herbívoros e carnívoros são engenheiros ambientais, cujas
ações estruturam de forma saudável as relações ecológicas entre si
mesmos e os outros seres vivos.
Os elefantes, por exemplo, abrem clareiras entre as árvores,
promovendo o florescimento de inúmeros tipos de plantas. Um
estudo feito com lobos, recentemente reintroduzidos no famoso
parque nacional de Yellowstone, nos EUA, revelou que eles
impedem que os veados comam árvores demais e acabam
produzindo comida para carnívoros menores ao abandonar parte
das carcaças dos bichos que capturam. Aqui mesmo no Brasil, uma
pesquisa envolvendo onças sugere que os felinos promovem mais
diversidade de espécies entre os pequenos predadores,
funcionando como “moderadores” da competição ecológica abaixo
deles.
Para os cientistas, em suma, é como se os ambientes americanos
“sentissem saudade” da megafauna. Trazê-la de volta ajudaria a
restaurar relações ecológicas bem estruturadas depois de milhares
de anos de ambientes “mancos”. Há, por exemplo, o caso das
antilocapras, herbívoros das pradarias da América do Norte que
estão entre os mamíferos mais rápidos do mundo, chegando a
alcançar 100 km/h na corrida. Nenhum predador moderno é tão
veloz; então, para que correr tanto? Acontece que as antilocapras
evoluíram sendo perseguidas pelo guepardo americano, um bicho
que provavelmente era tão rápido quanto os guepardos africanos e
asiáticos (hoje os animais terrestres mais rápidos do planeta) e seria
o único a conseguir competir com as antilocapras na carreira.
Os proponentes do rewilding pretendem começar o teste de suas
ideias em experimentos pequenos e controlados, nos quais
propriedades rurais modestas serão povoadas com a megafauna e
as respostas do ambiente americano aos recém-chegados serão
avaliadas. Os pesquisadores defendem que os benefícios
econômicos podem se tornar tão importantes quanto os ambientais
na empreitada, uma vez que o ecoturismo -- a oportunidade ver os
bichões livres em seu novo habitat – certamente atrairia muita
gente.
É simplesmente cedo demais para dizer se eles têm razão. O desejo
de tentar, pelo menos, parece genuinamente nobre. Mas não é
impossível que os pressupostos do projeto sejam, em si mesmos,
falhos. Para começar, pelo menos em alguns lugares do continente
há indicações de que os humanos recém-chegados tiveram pouco
ou nada a ver com o fim da megafauna.
No Brasil, por exemplo, os sítios arqueológicos deixados pela
ocupação inicial do Homo sapiens praticamente não contêm ossos
de grandes mamíferos caçados, e há quem questione seriamente a
extensão da caça praticada na própria América do Norte contra
mamutes, mastodontes, cavalos e companhia. Outros
pesquisadores apostam que a mudança climática que encerrou a
Era do Gelo é uma culpada mais provável pela extinção da
megafauna, ao alterar os ambientes que lhe davam sustento com a
chegada de mais calor e umidade.
É claro que o peso na consciência pela extinção dos gigantes
americanos não precisa ser a única razão para o rewilding; salvar as
espécies modernas pode muito bem ser suficiente. O problema
maior talvez seja que os ecossistemas americanos já passaram por
muita coisa nos últimos 10 mil anos. Bem ou mal, as relações
ecológicas se reconstruíram sem a presença dos grandalhões -- até
levarem outro tranco nada desprezível com a revolução da
tecnologia agrícola do século passado, que acabou transformando
as pradarias norte-americanas e o nosso cerrado em imensos
celeiros. (Um agrônomo brasileiro que, por misericórdia, prefiro
deixar anônimo certa vez definiu cerrado como “lugar bom para
plantar soja”, o que mostra bem a que ponto chegamos.)
Por isso mesmo, não há garantia nenhuma de que os grandalhões
de hoje, ao encarar um ambiente modificado e já muito combalido,
acabem tendo o impacto de simples espécies invasoras. E, nesse
caso, que chance teriam um veado-campeiro ou uma onça-pintada
diante de leões e elefantes? Com a melhor das intenções, os
biólogos da conservação poderiam estar violando o juramento
hipocrático que deveria nortear todos os seus esforços: se não pode
fazer o bem, pelo menos não cause o mal. Existe, finalmente, o
argumento humano: se estamos dispostos a investir tanto na
preservação da megafauna, não é melhor fazê-lo em suas regiões
de origem, onde as populações pobres, em parte por necessidade,
em parte por ignorância, são as que mais precisam de recursos para
acabar com a matança?
Algumas das questões acima talvez possam ser respondidas com
mais e melhor ciência. Até lá, cautela e canja de galinha não fazem
mal a ninguém – por mais que eu adore imaginar o estrago que um
elefante faria no plenário do Senado.
 
Acelerados
A evolução humana acabou ou está ficando mais rápida do que
nunca?
 
Os mais cínicos entre os antropólogos costumam dizer que
“mitologia” é só o nome que a gente gosta de dar para a religião dos
outros. De forma ironicamente parecida, nossa espécie às vezes
parece achar que evolução é um troço que acontece com as outras
espécies, não conosco. OK, podemos ter sido primatas peludos e
quadrúpedes antigamente, mas agora já somos Homo sapiens
crescidinhos, chegamos ao topo da Grande Cadeia do Ser e não
precisamos mais desse método tosco envolvendo mutações e
seleção natural. Já inventamos a cultura, que faz o mesmo serviço
de modo muito mais limpinho.
E se essa visão “estacionária” sobre a evolução humana
estivesse tão errada a ponto de ser quase ridícula? E se, na
verdade, estivéssemos passando por uma explosão evolutiva sem
precedentes, com transformações biológicas (e não apenas
culturais) que chegam a ser cem vezes mais rápidas nos últimos
milênios do que foram nos 6 milhões de anos anteriores de história
humana?
Mesmo entre os cientistas, a ideia acima não tem nada de ortodoxa.
O consenso (ou a coisa mais parecida com ele que consegue
subsistir numa área tão controversa quanto a evolução humana) é
que, há pelo menos uns 40 mil anos, nossos ancestrais adquiriram
essencialmente as mesmas características mentais e físicas que
nós. A data está ligada a uma série de “impressões digitais” do
comportamento humano moderno que só então aparecem com força
no registro arqueológico: arte (pintura e escultura) de altíssima
qualidade, o que implica uma mente capaz de lidar com símbolos;
roupas costuradas; ferramentas sofisticadas, montadas com muitas
peças feitas de materiais variados; caça sistemáticae planejada a
animais de grande porte. Todos esses fenômenos seriam resultado
do aparecimento da mente humana moderna, dotada de “fluidez
cognitiva”, como talvez você esteja lembrado – a capacidade de
misturar domínios mentais (como o raciocínio social e o tecnológico,
por exemplo) de forma inovadora e criativa, o que seria um pré-
requisito para a evolução cultural acelerada.
Juntando tudo isso com o que sugerem os fósseis, seria possível
afirmar que esses antigos Homo sapiens teriam poucas dificuldades
para viver na Grande São Paulo de hoje. No máximo, seriam mais
vulneráveis a gripes, resfriados e outras doenças que começaram a
atacar nossa espécie quando passamos a viver em grandes
aglomerações.
Algumas notas dissonantes nesse quadro simples já vinham sendo
emitidas aos pouquinhos pela genômica, o ramo da biologia que se
debruça sobre a sequência de “letras” químicas do DNA. Depois de
“soletrar” o genoma humano e o de nosso parente vivo mais
próximo, o chimpanzé, os especialistas detectaram, com a ajuda de
métodos estatísticos, “assinaturas” de seleção natural recente –
alterações exclusivas do DNA humano cuja frequência parece ter
aumentado muito há relativamente pouco tempo.
A coisa estava mais ou menos nesse patamar quando um quinteto
de pesquisadores americanos enfiou o pé na porta de vez. O
trabalho dos cinco foi publicado em dezembro de 2007 na revista
científica “PNAS” e ainda está causando controvérsia ao propor que,
nos últimos 10 mil anos, a evolução humana passou a acontecer
cerca de cem vezes mais rápido. A pesquisa é especialmente
suculenta porque eles partem de um pressuposto teórico quase
inatacável: nossa população cresceu tanto, com tanta rapidez e em
tantos ambientes diferentes, que a evolução acelerada seria
inevitável.
Considere comigo o raciocínio, nobre leitor. As mutações –
transformações aleatórias nas “letras” do DNA – são a matéria-
prima da evolução. A imensa maioria delas é prejudicial (causando
doenças de origem genética) ou neutra (não tendo efeito sobre as
proteínas cujo código está contido no DNA e que comandam o
organismo). Um número minúsculo de mutações, no entanto, pode
ser vantajoso, possibilitando que alguns indivíduos sobrevivam e se
reproduzam de forma mais eficiente que os demais.
Ora, quanto mais indivíduos existem, mais matéria-prima evolutiva
há, já que temos mais cópias de DNA de uma espécie prontas a
sofrerem mutações. Acontece que o Homo sapiens passou por um
aumento desproporcionalmente alto de matéria-prima: talvez
houvesse apenas uns 10 mil de nós algumas dezenas de milhares
de anos atrás, enquanto hoje somos mais de 6 bilhões – ou seja, um
crescimento populacional de 600 mil vezes. É de deixar qualquer um
zonzo.
A matéria-prima, por si só, não é tudo. As mutações “precisam”
(metaforicamente, claro) de ambientes onde atuar, e os últimos
milhares de anos foram pródigos em nos oferecer todo tipo de novo
desafio ambiental. Para começar, saímos da África – provável
origem da maior parte do material genético humano moderno – e
colonizamos literalmente todas as regiões da Terra, da floresta
equatorial amazônica à Groenlândia. Trocamos uma mistura
ultravariada de frutas, sementes, raízes, mel, um pouco de peixe e
carne de caça (cardápio que caracteriza os caçadores-coletores
tropicais) pelas dietas padronizadas de cereais e carnes dos povos
“civilizados”. E, talvez mais importante ainda, nossas sociedades
mudaram profundamente.
“Uma das maiores mudanças pelas quais a maioria dos humanos
passou foi a transformação de uma estrutura social de caçadores-
coletores numa sociedade agrícola há 10 mil anos”, explicou-me
Robert K. Moyzis, geneticista da Universidade da Califórnia em
Irvine e um dos autores do estudo na “PNAS”. “Muitas alterações
vieram daí, algumas das quais documentadas em esqueletos –
passamos a ser atacados por doenças modernas. Mas não é só
isso. A maioria das sociedades de caçadores-coletores exibe
interações sociais limitadas entre os diferentes grupos familiares,
nenhuma acumulação de riquezas e reações diferentes das nossas
ao estresse – normalmente eles simplesmente viram as costas e
vão embora, em vez de enfrentar situações estressantes”, diz
Moyzis.
“Quando surgiram comunidades grandes e estáveis, ou seja,
cidades, tudo isso mudou. As interações frequentes entre membros
de família diferentes aumentaram, o acúmulo de riquezas na mesma
geração e entre gerações diferentes se tornou possível e os altos
níveis de estresse não podiam mais ser resolvidos simplesmente
indo embora. Acho muito provável que o novo nicho ecológico
ocupado pelos seres humanos seja a nossa própria cultura”, afirma.
De fato, faz todo o sentido no papel. E nos genes? O que o genoma
humano diz sobre isso tudo? É aí que a coisa começa a ficar
interessante. Moyzis e companhia puderam analisar um dos mais
completos mapas da diversidade genética humana, o HapMap.
Todos os membros da nossa espécie são bastante parecidos
geneticamente, mas nosso DNA está salpicado de variações
minúsculas, correspondentes à troca de uma única “letra” de DNA.
(Caso você tenha tirado um cochilo nas aulas de biologia, essas
letras são conhecidas como C, T, G e A.) Tais variantes, ou SNPs
(pronuncia-se “snips”; ótimo nome pra cachorros), chegam a quase
4 milhões na contagem feita pelo pessoal do HapMap.
A troca de uma única letra, ou seja, um único SNP, é suficiente para
inutilizar um gene inteiro ou alterar a proteína codificada por ele
(ainda que nem sempre; certas substituições são “sinônimas”, ou
seja, não afetam o produto final codificado pelo gene alterado).
Conforme documentado pela equipe do HapMap, os SNPs variam
entre as populações humanas (no projeto foram estudados
europeus, africanos da etnia iorubá, chineses e japoneses), e essa
variação parece estar associada à adaptação de cada povo às
condições do local onde vive.
Mas como saber se essa variabilidade é recente, ou que ela
aumentou só de uns tempos para cá? O quinteto americano usou
um truque especial para tentar verificar isso. Para entendê-lo, é
importante lembrar que os seus genes nunca ficam “sentados” no
mesmo lugar durante muito tempo. De geração em geração, quando
produzimos espermatozoides ou óvulos, o DNA que recebemos do
nosso pai e da nossa mãe passa pela chamada recombinação,
sendo misturado e só então repassado aos nossos filhos – aliás,
essa mistura parece ser um dos papéis evolutivos mais importantes
do sexo, como já vimos.
Lembre-se de que todos temos duas cópias do nosso material
genético, distribuídas em pares de cromossomos. Só passamos
metade disso para os nossos filhos – do contrário, eles teriam o
dobro dos nossos genes. Ora, essa divisão nunca para de
acontecer: nossos netos têm um quarto do nosso DNA, nossos
bisnetos apenas um oitavo, e por aí vai. As sucessivas picotagens e
recombinações significam que dois genes (ou trechos menores de
DNA) que hoje aparecem num único bloco dos seus cromossomos
vão estar separados no futuro distante. Quanto mais próximos os
genes – ou os SNPs, que é o que nos interessa aqui – mais tempo
isso demora para acontecer.
E esse é o pulo do gato. Em cada população, os pesquisadores
foram em busca de blocos relativamente grandes de DNA, que
incluíam vários SNPs de uma vez só e tinham frequência alta –
acima de 20% num dado grupo. O fato de o bloco ser comum
indicaria, primeiro, que provavelmente ele está sendo favorecido
pela seleção natural (do contrário, deveria ser raro); e o fato de
aparecer inteiraço, sem ser “quebrado” pela recombinação, indica
que o grupo de SNPs se espalhou tão rápido pela população que
não deu tempo de a recombinação fatiá-lo em pedaços menores.
Aplicado esse critério, os números que brotaram são de deixar
qualquer um baqueado. Os pesquisadores dizem ter encontrado
uma “assinatura” de seleção natural em nada menos que 3.000
SNPs de cada uma das populações estudadas pelo HapMap. O
próximo passo foi usar um modelo matemático para estimar quando
as variantes que estão sendo favorecidas pela seleção natural
teriam tido um pico em seu surgimento.O veredicto: cerca de 8.000
anos atrás para as populações africanas e pouco mais de 5.000
anos atrás para as populações europeias. Para os pesquisadores,
os dados casam com o aumento da população africana no fim da
Era do Gelo (momento em que o continente ficou menos seco e
mais propício às sociedades humanas) e com a chegada da
agropecuária à Europa, que também deflagrou uma explosão
populacional das grandes. Nas palavras nem um pouco moderadas
de John Hawks, antropólogo da Universidade de Wisconsin e
coautor do estudo, “nós somos mais diferentes das pessoas que
viviam há 5.000 anos do que eles eram diferentes dos neandertais”.
Alguns dos genes de que estamos falando podem ser diretamente
flagrados no registro fóssil. A maioria das pessoas da Europa
Ocidental moderna, por exemplo, não tem problemas para digerir
leite mesmo durante a vida adulta. No entanto, a “condição
ancestral” humana (ou seja, o que parece ser a forma original do
nosso metabolismo nesse quesito) é só digerir leite durante os
primeiros anos da infância; afinal, caçadores-coletores não criam
vacas holandesas. Acontece que o DNA de europeus que tinham
“acabado de começar” a ter rebanhos leiteiros, há uns 5.000 anos,
não contém a nova versão do gene ligado à digestão do leite. Tudo
indica que foi o novo modo de vida o responsável por favorecer o
espalhamento do gene “bebezão” na Europa Ocidental durante os
últimos milhares de anos. Outros exemplos podem ser encontrados,
como a resistência à malária no Mediterrâneo e na África, a
facilidade de digerir grandes quantidades de amido (ideal para
dietas à base de trigo ou milho, como as nossas) e até os tipos
físicos de asiáticos e europeus, que parecem ser modificações do
padrão ancestral africano. (Sim, senhores racistas, seus ancestrais
quase certamente eram retintos.)
Dito desse jeito, os exemplos não parecem lá muito emocionantes.
Aparência, resistência a doenças e capacidade digestiva não casam
muito bem com a ideia que as pessoas fazem de uma explosão
evolutiva. Mas os pesquisadores apostam que as nossas
características comportamentais e mentais também podem ter
mudado um bocado.
“Sabemos que uma variante do gene do receptor D4 de dopamina
[um mensageiro químico do cérebro] está sob forte seleção positiva.
Ele está associado com hiperatividade infantil, desejo de correr
riscos entre adultos, uma tendência a ser um tanto egoísta e uma
vida sexual mais ativa. Meu palpite é que ele andou sendo
favorecido em sociedades onde há muita guerra e pouco
investimento dos homens na criação dos filhos”, contou-me Henry
Harpending, coautor do estudo, que trabalha na Universidade de
Utah.
Moyzis segue a mesma linha de raciocínio. “Dos cerca de cem
genes clássicos ligados aos neurotransmissores [nome dado aos
mensageiros químicos cerebrais], 40% exibem evidências de
seleção recente, muito mais do que esperaríamos ao acaso. Muitos
estão sabidamente relacionados a variações de humor,
excitabilidade geral etc. Será que não domesticamos a nós mesmos
para que conseguíssemos viver em comunidades altamente densas,
coisa que nunca tínhamos feito antes?”
Com uma população tão grande como a nossa, e com desafios tão
gigantescos como as mudanças culturais e sociais que vêm por aí
ou já estão ocorrendo, os pesquisadores dizem não acreditar que a
força dessa onda evolutiva vá arrefecer.
 
“A medicina certamente vai diminuir a ação da seleção natural
causada por doenças, mas um monte de outras coisas importantes
está acontecendo. Por exemplo, com a facilidade de acesso aos
anticoncepcionais, apenas as mulheres que realmente querem filhos
vão se reproduzir. Antigamente, as coisas aconteciam ao acaso. Em
muitas sociedades, não é mais necessário que uma mulher tenha
um parceiro confiável, que a ajude a criar os filhos, de forma que os
machos ‘aproveitadores’ [que não auxiliam a parceira no cuidado
com a prole] provavelmente estão sendo favorecidos pela seleção
natural”, diz Harpending. “Além disso, a minha impressão é que
estamos vendo muito mais problemas mentais, especialmente entre
os jovens. O suicídio de adolescentes não é uma causa trivial de
morte nos Estados Unidos. Também temos muito mais asma por aí
do que eu via quando criança. Não acho que tenhamos uma boa
ideia do efeito líquido de todas essas coisas na nossa evolução”,
disse-me ele.
É natural que sintamos um misto de perplexidade e arrepio na
espinha ao pensar em tudo isso. A única certeza é que não
podemos ter certeza de nada. É claro que mais testes e métodos
mais refinados são necessários para confirmar que a evolução
humana está em ritmo de trem-bala. Marcelo Nóbrega, pesquisador
da Universidade de Chicago e um dos principais geneticistas
brasileiros, alertou-me que outros trabalhos obtiveram estimativas
vastamente diferentes para a evolução recente de genes humanos.
De qualquer maneira, a ideia simplista e um tanto ridícula de que
nosso futuro evolutivo resumir-se-ia a um bando de baixinhos
cabeçudos com braços e pernas atrofiados não chega nem perto de
fazer jus à complexidade das forças que liberamos sobre nossos
corpos e mentes ao criar, inconscientemente, o que chamamos de
civilização. Podemos tentar à exaustão, mas o laço que nos prende
à maneira como funcionam todas as formas de vida na espiral do
tempo não vai se esgarçar tão fácil. Para o bem e para o mal,
vamos continuar evoluindo.
 
O gargalo
A extinção em massa que a humanidade está muito perto de causar
 
“Se você quer uma imagem do futuro”, escreveu o britânico George
Orwell no romance 1984, “imagine uma bota pisando num rosto
humano – para sempre”. Longe de mim querer diminuir a força do
pesadelo totalitário pintado por Orwell – a sombra dele nunca se
afastou completamente do mundo nas seis décadas desde que o
livro foi publicado – mas há outra imagem do futuro que deveríamos
levar em conta, mais horrenda porque envolve não só os seres
humanos, mas toda a vida na Terra. É a imagem de um gargalo – a
de uma garrafa que se estreita de repente, de tal maneira que só
parte do conteúdo dela é capaz de passar.
Caso a analogia tenha soado obscura, esclareço: “gargalo”
também é o termo usado pelos biólogos para designar a morte em
massa de uma população de seres vivos. Em um gargalo, a imensa
maioria dos indivíduos de uma espécie, ou de um conjunto de
espécies, é exterminada. Poucos são os que conseguem chegar do
outro lado, e o destino daquela população é alterado de forma
irreversível pelo processo. Não há outra maneira de interpretar os
dados que temos hoje: dentro de menos de cem anos, metade das
espécies de animais e plantas do planeta pode desaparecer, numa
extinção em massa tão violenta quanto a que eliminou os
dinossauros.
Entre os pesquisadores, ela já ganhou o apelido de Sexta Extinção,
em referência aos outros cinco grandes eventos de extermínio
maciço de espécies que marcam a história da Terra. O fato de que
hecatombes do gênero já tenham ocorrido antes pode soar, para
muita gente, como motivo para complacência. Afinal, a extinção é o
destino de toda espécie, certo? Não há motivo para querer adiar o
inevitável. Além do mais, as formas de vida mostraram uma
capacidade impressionante de recuperação das outras vezes,
repovoando o mundo com variedade renovada sempre que uma
fase de extermínio era encerrada.
Creio que nós temos motivos suficientes para acreditar que essa
conversa não passa de falácia. As regras do jogo mudaram – a
começar pelo fato de que nunca na história deste país, digo, deste
planeta, uma única espécie tinha sido a responsável pelo estado
periclitante de todas as outras. Mas talvez você esteja franzindo as
sobrancelhas, incrédulo. É justo: alguém já disse que afirmações
extraordinárias exigem provas extraordinárias. Afinal, como
sabemos que estamos bem no meio da Sexta Extinção?
O principal guia para a história da vida na Terra é o registro fóssil,
que engloba os restos mineralizados de animais, plantas e, às
vezes, microrganismos que se incorporaram às rochas desde que
os seres vivos surgiram, há mais de 3 bilhões de anos. O registro
fóssilé incompleto, sem dúvida (ter seus restos preservados para a
posteridade é para poucos sortudos), mas um trabalho árduo de
garimpagem e métodos estatísticos avançados ajudam a contornar
parte dessa limitação.
Com base no que vemos nesse livro da Terra, é possível estimar o
tempo de vida médio de uma espécie qualquer: mais que algumas
centenas de milhares de anos e menos que alguns milhões. Cerca
de 1 milhão de anos é uma boa média. O dado é corroborado por
estudos genéticos de espécies muito próximas (como ursos pardos
e ursos polares, por exemplo), que provavelmente são “irmãs”, ou
seja, descendentes diretas de um mesmo ancestral comum recente.
Em média, o tempo de divergência (ou separação) entre elas
concorda com o esperado segundo o registro fóssil.
Admito que a estimativa é grosseira, mas é o suficiente. Se cada
espécie dura, em média, 1 milhão de anos, e se sabemos que
extinções ocorrem naturalmente o tempo todo, seria de esperar que,
anualmente, uma espécie em 1 milhão sumisse. Examinemos o
caso das aves, talvez o grupo de animais mais bem conhecido pela
ciência. Existem cerca de 10 mil espécies de aves já catalogadas.
Isso significa que o limite do nível “normal” de extinções entre elas
seria a de uma só ave a cada 100 anos. Com muita sorte (se é que
dá para usar a palavra nesse contexto triste), cada um de nós
deveria presenciar no máximo uma, e somente uma, extinção de
ave durante nosso tempo de vida.
Acontece que o registro histórico recente mostra algo assustador.
Os sinais mais claros vêm das ilhas oceânicas, onde podemos datar
com precisão a chegada tardia de seres humanos a ambientes
antes intocados. É o caso das ilhas do Havaí, que receberam
navegadores polinésios pela primeira vez por volta do ano 1000 da
nossa era. Segundo a nossa conta, o esperado seria que dez
espécies de aves, no mundo todo, desaparecessem de lá para cá. O
registro fóssil, porém, mostra o sumiço, apenas no Havaí, de pelo
menos 43 espécies. (O número verdadeiro é, provavelmente, muito
maior: aves são bichos de esqueleto frágil, que em geral não se
preserva por longos períodos.) A conta para a Polinésia inteira é
ainda mais assustadora: sendo conservador, fica em torno de mil
espécies de aves numa escala de tempo de, no máximo, uns três
milênios (número esperado de extinções no mundo todo: só 30).
A situação parece se repetir, às vezes de forma pior, em ilhas e
continentes, entre outros grupos de animais e plantas. Se levarmos
em conta o encolhimento até dimensões ridículas de muitos dos
ecossistemas mais ricos do mundo (pense na mata atlântica do
Brasil, com menos de 7% de área remanescente), é de esperar que
muitas espécies tenham se extinguido ou chegado à beira da
extinção sem que nós nem tenhamos ouvido falar delas. A maioria
dos especialistas aposta que a taxa atual de extinções é entre cem
e mil vezes mais rápida que a apontada como “normal” pelo registro
fóssil – o suficiente para provocar o gargalo de 50% apontado no
início desta coluna.
Há poucas dúvidas de que nós somos os culpados pelo assassinato
planetário. A correlação entre o primeiro aparecimento de seres
humanos em qualquer lugar antes desabitado da Terra e o sumiço
de um caminhão de espécies – especialmente as grandes,
apetitosas ou de interesse econômico – é forte demais. Não é
preciso tecnologia ou capitalismo para virar exterminador: o primeiro
impacto de agricultores da Idade da Pedra (como os polinésios) fala
por si só.
Matamos com nossas mãos e armas, mas também com as lavouras
que destroem habitats e com as espécies domesticadas de animais,
plantas e microrganismos que carregamos conosco. Essas espécies
invasoras, transplantadas para ambientes isolados cuja evolução
não os preparou para enfrentá-las, mudam as regras do jogo da
sobrevivência. Sem inimigos naturais no novo ambiente, tornam-se
inimigas – vitoriosas – de todas as outras espécies.
As mudanças ambientais que o aquecimento global – causado pela
ação humana – pode trazer são ainda mais desastrosas. As
modificações correm o risco de ser tão severas que muitas espécies
simplesmente não terão para onde correr. Verão toda a área cujas
condições ambientais hoje permitem sua sobrevivência sumir do
mapa, sem que áreas próximas possam servir de refúgio por meio
da migração.
No que a extinção em massa causada pelo homem difere das outras
cinco? Para começar, na escala de tempo. Só temos sinais claros
de uma grande extinção cujos efeitos podem ter sido mais ou menos
“instantâneos”: a da era dos dinossauros, que ocorreu há 65 milhões
de anos e, ao que tudo indica, foi causada pela queda de um
meteorito no atual golfo do México. Nos outros casos, as formas de
vida parecem ter tido centenas de milhares de anos, ou talvez até
alguns milhões, para se adaptar a condições ambientais que se
deterioravam. Nossa ação sobre ecossistemas virgens só tem
poucos milhares de anos de duração. Nesse ponto, somos mais
parecidos com o meteorito fatídico.
Em princípio, porém, mesmo uma extinção abrupta abre espaço
para que, no devido tempo, outras espécies tomem o lugar das que
se foram. É nesse ponto que a ação humana parece particularmente
ameaçadora, porque temos não só o poder de causar uma extinção
em massa, mas também o de assegurar que a recuperação nunca
aconteça, se resolvermos cruzar os braços.
Difícil de acreditar? Não se considerarmos que quase metade da
matéria e energia produzida pela vida na Terra – mais precisamente
42%, um número que inevitavelmente me lembra “O Guia do
Mochileiro das Galáxias” e seu célebre “A resposta é 42” – já é
apropriada exclusivamente pela humanidade. Mantidas as
tendências atuais, os grandes ecossistemas virgens que ainda
restam vão virar apenas sombras de si mesmos dentro de poucas
décadas. A Terra agora é uma só: uma espécie invasora em
potencial cruza o globo em 12 horas, de avião, pronta para semear
destruição entre animais e plantas despreparados para enfrentá-la.
Tudo isso significa um mundo ecologicamente uniformizado, em que
os mesmos tipos de ambiente – zonas urbanas, grandes áreas de
agricultura intensiva – e os mesmos poucos tipos de espécies
animais e vegetais, quase sempre pragas invasoras, predominam.
Um mundo desses diminuiria radicalmente as oportunidades para
que a evolução fizesse seu trabalho e reconstruísse a diversidade
perdida. A uniformidade de ambientes impediria que o isolamento de
certos indivíduos – por razões geográficas ou ecológicas – pudesse,
ao longo do tempo, gerar novas espécies. Principalmente no caso
dos vertebrados ou plantas com flores – as formas de vida que mais
conhecemos e notamos –, a evolução poderia bater de cara contra
um muro.
Agora, esqueça os argumentos sobre como criar um mundo desses
seria um tiro no pé para a humanidade. Não que eu não os
considere válidos, mas a minha sensação é que eles não atingem a
raiz do problema. Alguém poderia muito bem argumentar que, se
não sucumbir num conflito nuclear de larga escala ou algo do
gênero, o Homo sapiens seria perfeitamente capaz de sobreviver
num mundo desses. A questão é: será que queremos mesmo legar
um mundo permanentemente empobrecido – junto com os pálidos
registros audiovisuais de quão glorioso ele foi – para os nossos
netos?
A nossa civilização passou as últimas décadas fugindo da ideia de
pecado como o diabo da cruz. Ninguém mais quer saber de sentir
culpa – por algumas razões boas, e outras tantas nem de longe tão
boas. Independente da conotação religiosa da palavra, no entanto,
acho difícil rebater o fato de que algumas coisas podem, sim, ser
classificadas como pecado. É o mal cometido com plena
consciência de suas consequências, mas que continua a ser
praticado por ganância, luxúria ou simples preguiça, que merece
esse nome. Sacrificar o futuro no altar do presente só porque, em
longo prazo, “todos vamos estar mortos” – isso é pecado.
Essa é a escolha que este século recém-começado nos oferece.
Não é tarde demais para agir. Nós sabemos o que fazer. A última
coisa que vamos querer é atravessar o gargalo apenas para
perceber que talvez não valesse a penater chegado do outro lado.
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
Daqui para a frente
O que entender a história da vida significa para o nosso futuro
 
Nunca vou esquecer as palavras pronunciadas pelo sacerdote
quando aceitei me unir pelo resto da vida à mulher que eu amo. ة
verdade que a minha memَria é refrescada a cada casamento catَlico
vel doلque presencio, os ouvidos tocados pela familiaridade agrad
ritual, pela cadência da poesia em prosa. Eu e minha mulher
 inclinamos a cabeça enquanto o celebrante pedia que“o Deus de
Abraão, o Deus de Isaac, o Deus de Jacó, o Deus que abençoou
nossos primeiros pais no Paraíso” também estivesse conosco.
Aposto que a frase é daquele tipo muito específico o qual, no mundo
das caricaturas e das simplificações, deveria deixar qualquer pessoa
cientificamente alfabetizada – e ainda mais alguém que compreenda
direito a teoria da evolução – espumando de raiva. Só para começo
de conversa, é bem provável que o trio de patriarcas mencionado
pelo nome não corresponda a nenhuma família histórica. E o
Paraíso terrestre, aliás, nunca existiu: não chegamos prontos ao
mundo, em contato direto com a benção de um Deus benevolente,
mas somos primatas – e, antes disso, mamíferos e vertebrados e
animais – que, no fim das contas, sempre morreram, como ainda
temos morrido.
E, no entanto, como o fato de eu recordar com carinho as
palavras do ritual e o que elas significam indica, sinto que é um
absurdo sem tamanho descartá-las apenas porque elas não se
encaixam num conjunto de fatos sobre o mundo. Não concordo com
o tom de escárnio e pena com que elas às vezes são mencionadas.
Entre os que querem usar a biologia evolutiva como a arma
definitiva contra a “superstição”, o “obscurantismo” e outros inimigos
só parcialmente reais, virou mania relegar à lata de lixo da história
as narrativas fundadoras do judaísmo e do cristianismo como meros
“mitos da Idade do Bronze”. O arqueólogo amador que existe
dentro de mim tem vontade de gritar “mitos da Idade do FERRO”
toda vez que escuta essa ladainha. A falta de atenção ao detalhe (o
monoteísmo, de fato, é posterior à Idade do Bronze) é típica de
quem deseja transformar o outro no espantalho dos seus próprios
medos. Mas o buraco é mais embaixo. O engraçado é que a
mentalidade literalista desse tipo de gente não é muito diversa da
cabeça literalista de quem acha que os dois primeiros capítulos do
Gênesis são um manual de cosmologia e ciência planetária. Se não
é verdade literal, não presta – é o que ambos os campos dizem.
Isso é passar ao largo – ou usando uma metáfora futebolística, jogar
a bola para fora do estádio – da verdadeira função dos mitos: tocar
o significado das coisas; apontar caminhos; esboçar o que
queremos da nossa própria humanidade.
Esse preâmbulo, talvez um tanto militante demais, dá a primeira
pista do que quero dizer ao encerrar nossa jornada por estas
páginas. Primeiro, a compreensão do processo biológico tortuoso (e
às vezes torturante) que nos trouxe até aqui não me parece um
substituto completo para outras formas de exprimir a verdade sobre
nós mesmos, ou sobre o Universo. “Formas irracionais de
expressão”, dirão alguns, balançando a cabeça. Que seja – mas não
se pode esquecer que a racionalidade e o método científico são
ferramentas, não oráculos. Podem ser imbatíveis para fatiar a
realidade em pedaços pequenos o suficiente para que nosso
cérebro consiga degluti-los, mas não vão nos dizer que gosto essas
fatias devem ter, se é nosso dever ou nosso direito temperá-las de
outra maneira. O belo e o horrendo, o certo e o errado – ainda cabe
a faculdades que não a razão julgar qual é qual, por mais que o
exame racional possa fornecer pistas e subsídios para o veredicto.
Não adianta muito dizer que também essas faculdades foram
moldadas pela seleção natural (o que, aliás, me parece muito
provável). Ao fim e ao cabo, a dúvida entre simplesmente seguir
nossos instintos mais tribais, favorecendo parentes e aliados e se
lixando para o resto, e tentar estender à toda a nossa espécie, e
quem sabe a uma parcela significativa do resto dos seres vivos,
uma só teia de compaixão, não tem uma resposta puramente
racional. Argumentos baseados na razão só vão até certo ponto.
Quando se trata de escolher esse tipo de coisa, a palavra
“propósito” não pode mais ser expulsa da conversa – ainda que o
propósito em questão não seja divino, mas se refira ao que
queremos para nós mesmos e para nosso futuro.
A biologia evolutiva não vai, sozinha, ensinar-nos o que fazer com a
Terra. Mas, nesse ponto, desconfio que os mitos da Idade do Ferro
– e os do Paleolítico, e os do Renascimento, e até os da Era
Espacial – podem ter uma coisa ou duas a nos ensinar. Se lidos
com reverência não-fanática, podem ao menos indicar que
precisamos de humildade para manter nossas opções abertas
diante de um Cosmo que ainda pode nos surpreender com todo tipo
de maravilha.
Talvez a sinergia de que eu esteja falando, entre sabedoria antiga e
fato científico, seja impossível de realizar com consistência lógica
plena. Falando apenas em meu nome, sinto um frêmito de
deslumbramento e alegria ao reler de outro jeito mais um pedacinho
do Gênesis. “Não é bom que o homem esteja só”, diz Deus. Na
narrativa original (na verdade, como talvez você se lembre, na
segunda narrativa da Criação), a frase é usada como prelúdio para
a criação da mulher, mas de fato nós não estamos sós, mesmo
enquanto 6 bilhões de homens e mulheres. A Árvore da Vida nos
une, via laços que são mais espessos que sangue, a amebas e
musgos e ipês-amarelos e baleias e gorilas. Pouco importa que a
consciência dessa irmandade não tenha chegado à maioria dos
outros galhos da árvore (quanto aos gorilas, tenho minhas dúvidas):
ela chegou até nós e, se assim ousarmos, podemos ser melhores
do que nós mesmos graças a isso. Concordo plenamente com os
que dizem que não há necessidade racional de inserir um Deus
como explicação de tudo isso, mas digo também: diante da Árvore
colossal, maior do que a soma das suas partes, a razão é o que
menos importa. Prefiro dobrar os joelhos.
E, ainda assim, seria escapismo do pior tipo negar que a sombra do
futuro é comprida e, bem, sombria. Nem é preciso olhar para o
destino do Universo, que parece se expandir em ritmo acelerado
rumo a uma condição em que o calor e a vida serão desfiados feito
um novelo de lã, até se tornarem inviáveis. Pensemos na Terra.
Dentro de 1 bilhão de anos, o Sol que nos nutre terá se tornado tão
quente que nenhuma água em estado líquido restará. Conforme a
estrela-mãe evolui, nossos descendentes remotos (é um otimismo
quase alucinado pensar que eles existirão) poderão fugir para Marte
nos extremos de calor ou se reaproximar do astro quando ele voltar
a encolher, mas as baixas nesse caminho serão incontáveis.
Desastre e destruição inimagináveis nos aguardam – a nós e a todo
o resto da vida.
Do ponto de vista da eternidade, toda vitória é anulada. Quer mais
um truísmo? Descartada a hipótese de suicídio, ninguém escolhe
como morrer, mas dá para escolher como viver. Enquanto este
planeta ainda for a nossa casa, o que aprendemos sobre a
complexidade e a fragilidade da vida deveria ser suficiente para
deixar de lado essa nossa adolescência mimada, de quem quer
sugar até a última gota da conta bancária materna. Que as nossas
mãos sejam instrumentos para um florescimento cada vez mais
formoso da Criação (sim, não tenho medo de usar a palavra),
enquanto ela durar. Que os que vierem depois de nós tenham solo
sadio para plantar – e espaços vastos onde não precisem plantar.
Mais do que isso não se pode pedir de ninguém.
 
 
Agradecimentos
 
 O clichê aqui não poderia ser mais verdadeiro: muitas
pessoas são responsáveis por ter tornado este livro possível graças
a seu carinho e apoio. Reconhecê-las brevemente neste espaço é
tanto um prazer quanto uma obrigação.
 A primeira da minha lista é, claro, Tania Mara Antonietti
Lopes, a mulher que eu amo, de quem roubei muitas noites, sem
falar nas manhãs de sábado e domingo, para conseguir preparareste volume. Minha educação, minha disciplina, meus genes e boa
parte da minha felicidade eu devo ao amor de meus pais, Reinaldo e
Nádia, a meus avôs (já falecidos) e avós, Walter, Wanda, Lázaro e
Olívia. Agradeço a esses progenitores maravilhosos, a meu irmão
querido, Renato, e a toda a minha família por nunca me deixarem na
mão.
 Alguns dos meus melhores amigos e mais afiados críticos
são meus colegas de trabalho e companheiros de armas no
jornalismo científico: Salvador Nogueira, príncipe entre os chefes
(taí um qualificativo que com certeza ele nunca recebeu), os antigos
e queridos mentores Marcelo Leite, Claudio Angelo e Laura Knapp,
os colegas repórteres Rafael Garcia, Juliana Carpanez e Marília
Juste.
 Fora da gaiola (não tão) dourada das redações, amigos de
longa data e outros feitos graças à magia do jornalismo em tempo
real acompanharam passo a passo as encarnações anteriores deste
livro e me concederam estímulo e puxões de orelha na medida
certa. A lista é encabeçada, claro, por quem me atura desde os
tempos da faculdade, ou antes até: Paula Rodrigues, Rafael
Bettega, Daniel e Maria Claudia Perassolli, Victor Romualdo
Francisco, Alexandre Cintas Urbano, Gilberto Labor, Frederico
Suficiel Marino, Fábio Bettega (ele e o Rafael juram que não são
parentes), Ana Paula Bittencourt, Vinícius Reis, Henrique Caldeira
Costa, Marcelo Nóbrega e Roberto Takata. Cada comentário dessas
pessoas queridas nas colunas que foram o embrião deste livro valeu
por centenas de impropérios dos trolls virtuais. Agradeço também,
do fundo do coração, aos cientistas que me emprestaram seu tempo
e sua paciência para que eu me instruísse no fascínio da biologia
evolutiva. São numerosos demais para que eu possa citá-los
brevemente, mas dois ocupam um espaço especial na minha vida
de repórter: Walter Neves e Luís Beethoven Piló. Obrigado por me
deixarem ajudar na “ressurreição” de uma preguiça gigante – nunca
vou esquecer.
Finalmente, acho que é meio típico da minha personalidade
expressar o agradecimento mais profundo numa língua inventada –
mas, se serve como desculpa, é uma das línguas mais bonitas do
mundo, de todo modo. Agora, ao terminar esta obra, é a Ele que
agradeço: i Eru i or ilyë mahalmar eä tennoio.
 
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