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Além de Darwin

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Evolução: Além de Darwin
O que sabemos sobre a história e o destino da vida
 
Reinaldo José Lopes
 
Como ler este livro
 
Nenhum aspecto da vida na Terra, das hélices moleculares das
bactérias às emoções humanas, tem sentido sem a força
iluminadora da teoria da evolução. Faz um século e meio que a
biologia evolutiva foi fundada por Charles Robert Darwin (1809-
1882) com a publicação do livro Sobre a Origem das Espécies por
Meio da Seleção Natural (normalmente encurtado para A Origem
das Espécies em português). Desde então, o alicerce lançado por
Darwin deu lugar a um edifício imponente, que confirmou a essência
do que o naturalista britânico propunha e, ao mesmo tempo, ampliou
de forma vertiginosa o conhecimento que temos sobre a origem e a
natureza dos seres vivos. O livro que você tem em mãos é um
passeio pela versão mais atualizada e empolgante desse legado.
 Na introdução, ou Você está aqui, como decidi batizar
essa seção, meu objetivo é proporcionar uma visão telescópica, de
longo alcance, da história da vida no nosso planeta, do começo
obscuro nas fornalhas da atmosfera primitiva da Terra ao surgimento
dos ancestrais da nossa própria espécie. Veremos que não havia
nada de inevitável nesse caminho, que repetidas vezes o que
chamamos de vida complexa chegou muito perto de ser aniquilada,
apenas para voltar a florescer teimosamente neste cantinho do
Universo. Por último, e não menos importante, lembraremos que,
apesar da profusão de animais e plantas que parecem governar o
mundo hoje, seria mais justo dizer que os donos da biosfera são os
mesmos de 3,5 bilhões de anos atrás: as bactérias.
 Após esse panorama, começamos a examinar o papel
fundamental do sexo para inúmeras formas de vida na seção
Parceiros. Além de abordar a questão de 1 milhão de dólares
(afinal, por que os seres vivos se dão ao trabalho de fazer sexo se
dá para se reproduzir sem ele?), a ideia é mostrar como essa
necessidade molda o comportamento humano e animal e as
diferenças essenciais entre machos e fêmeas.
 A seção Mentes busca desmontar de vez o mito da
inteligência como atributo exclusivo da nossa própria espécie (não
que nove entre dez donos de cachorros alguma vez tenham aderido
a essa doutrina estapafúrdia). A diferença entre nós e o resto das
formas de vida nesse quesito é menor do que gostaríamos, e o
estudo de seres como golfinhos, corvos e até polvos pode se tornar
uma ferramenta valiosa para compreender a “receita” evolutiva
responsável por inteligências avançadas. De quebra, espero lançar
alguma luz sobre as raízes de algumas características básicas da
mente humana.
 É bem possível que Darwin ficasse surpreso e encantado
com as descobertas relatadas na seção Peças, porque elas
envolvem descobertas relativamente recentes da biologia molecular.
As “peças” em questão são os mecanismos biomoleculares básicos
que ajudam a construir os corpos dos seres vivos e, assim,
funcionam como matéria-prima para as novidades evolutivas de
grande escala – coisas como a transformação de lagartos em
cobras ou de células simples, bacterianas, nas células complexas e
simbióticas que carregamos. Em seguida, a seção Elos mostra que
tais transições têm muito pouco de especulação: os paleobiólogos
de hoje contam com um conjunto impressionante de fósseis,
documentando, muitas vezes passo a passo, a origem de criaturas
tão complexas e adaptadas a seu ambiente quanto aves (“filhas”
dos dinossauros) ou baleias (descendentes diretas de mamíferos
terrestres de casco, como os porcos e hipopótamos). Dizer que não
existe o “elo perdido” é ignorar que multidões de “elos perdidos”
adornam as prateleiras dos museus do mundo.
 A seguir, voltando para o presente, Formas revela como as
variantes mais bizarras e idiossincráticas da anatomia e da
bioquímica dos seres vivos ganham sentido diante dos desafios
evolutivos que tais criaturas, como ornitorrincos ou ratos-toupeiras-
pelados, tiveram de enfrentar. A seção Esperanças mostra que uma
teoria de poder explicativo tão grande inevitavelmente nos leva a
repensar o nosso relacionamento com outras formas de vida, e o
papel da espécie humana no planeta. O que deve mudar nas
nossas tradições espirituais? É lícito tratar outros animais como
totalmente separados e distintos de nós? Finalmente, a conclusão,
que apelidei de Daqui para a frente, tenta condensar essas
preocupações numa visão inevitavelmente pessoal do significado da
compreensão da evolução para o nosso futuro na Terra. Boa leitura!
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
Você está aqui
Quase 4 bilhões de anos de história da vida na Terra por apenas
alguns milhares de caracteres
 
Nosso planeta já nasceu grávido de vida. A expressão, eu sei, é
estranhíssima, e tem um quê de personificação exagerada, mas
reflete o fato indiscutível de que vemos as pegadas dos seres vivos
por aqui assim que a Terra se tornou minimamente hospitaleira. Os
primeiros 600 milhões de anos do nosso lar planetário são
justamente conhecidos como o Éon Hadeano, por analogia com o
Hades, o submundo dos mortos na mitologia grega. Num Sistema
Solar que ainda estava se estabilizando a duras penas,
bombardeios implacáveis de asteroides e cometas, bem como pelo
menos um choque com outro planeta de tamanho comparável a
Marte, esmigalhavam repetidamente as rochas incandescentes que
formavam a Terra-bebê. Então, há pouco menos de 4 bilhões de
anos, as coisas finalmente se acalmaram, e o antigo Hades virou
Éden, na mesma rapidez com que, nesta frase, saltamos da
mitologia grega para a judaico-cristã. Rochas da atual Groenlândia,
que estão entre as mais antigas do mundo, carregam carbonatos,
minerais que em geral precisam da atividade de micróbios como as
atuais bactérias para se formar. Mais algumas centenas de milhões
de anos e dá para ver fósseis inequívocos das ditas cujas na
Austrália. A vida, pelo visto, estava só esperando a primeira
calmaria séria para desabrochar.
 Era o destino? É claro que respostas científicas a esse tipo
de pergunta não existem e, além do mais, fica difícil afirmar
qualquer coisa com alto grau de probabilidade quando só
conhecemos um único exemplo de origem da vida no Universo
inteiro (o nosso, no caso). De qualquer maneira, a rapidez com que
os seres vivos se estabeleceram por aqui pode indicar que, longe de
ser um evento vastamente improvável, a vida é um jeito tão natural
de organizar matéria e energia que ela se estabelece a qualquer
descuido do Cosmo. Matéria-prima, de fato, não falta. (Vamos deixar
de lado a hipótese da panspermia, segundo a qual os seres vivos já
chegaram “prontos” ao nosso planeta, vindos do espaço por
acidente ou como “semeadura cósmica” de uma civilização de ETs.
A ideia não serve para muita coisa porque só consegue criar uma
regressão infinita: em algum lugar a vida precisa ter começado
sozinha, certo?)
Panspermia à parte, as chamadas moléculas orgânicas, cuja
espinha dorsal é o elemento químico carbono e que marcam as
reações características dos seres vivos, não precisam de
microrganismos, animais ou plantas para existir. Nuvens cósmicas
de gás possuem quantidades tão vastas de etanol (pois é, álcool
etílico mesmo) que eu consigo imaginar os ricaços do futuro
distante, caso nossa civilização realmente conquiste outros sistemas
solares, encomendando garrafas e mais garrafas de Caipirinha
Galáctica ou Uísque das EstrelasTM. O mesmo vale para os
aminoácidos que compõem as proteínas e outros compostos
orgânicos básicos: o Universo está cheio deles, assim como a Terra
primitiva provavelmente estava.
 No entanto, como todos sabemos, empilhar tijolos não
equivale a construir uma casa. O segredo da vida está na maneira
inusitada como as moléculas orgânicas se organizam e se
relacionam com o meio externo. Apesar das muitas histórias de
sucesso da biologia evolutiva e de sua capacidade quase imbatível
de explicar a saga da vida, a origem dos primeiros organismos de
uma só célula continua sendo, para todos os efeitos, um mistério
impenetrável.Há muitos modelos plausíveis para explicar esse Big
Bang biológico, mas nenhum completo ou isento de dificuldades
sérias. Ainda assim, o conhecimento aprofundado dos mecanismos
básicos da vida no nível da célula permite aos cientistas esboçar
alguns pré-requisitos.
Correndo o risco de simplificar em excesso um debate
complicadíssimo, pode-se dizer que os modelos sobre a origem dos
seres vivos na Terra se concentram em dois polos opostos:
“replicadores primeiro” ou “metabolismo primeiro”. O melhor
exemplo de replicadores que temos hoje é o DNA, embora essa
molécula seja demasiado complexa e frágil para ter emergido logo
de cara, de acordo com os especialistas. A essência dos
replicadores é a capacidade de se multiplicar e transmitir adiante
informação genética com pelo menos algum grau de fidelidade. Uma
comparação muito usada para esclarecer a natureza dos
replicadores biológicos envolve o fogo. Um “incêndio-pai” é
perfeitamente capaz de produzir dois “incêndios-filhos”, mas a
semelhança entre eles é puramente acidental: não existe nenhuma
essência da “fogueira paterna” que a “fogueira-filha” herda, além da
capacidade de criar um estrago dos infernos. Um replicador
biológico é diferente porque implica descendência com modificação:
“filhos” herdam a maior parte das características dos “pais”, as
quais, por sua vez, são passadas aos “netos”, mas com o porém
importante de que sempre há uma variação casual nessa passagem
do bastão de uma geração para outra. Com isso, alguns
descendentes podem ter mais facilidade para produzir cópias de si
mesmos do que outros, de maneira que um “jeito” de se replicar
pode sobrepujar os demais e até exterminá-los, direta ou
indiretamente. Esse é o mecanismo básico segundo o qual a
seleção natural, e provavelmente o grosso da evolução, acontece.
Por outro lado, o modelo que coloca o metabolismo em primeiro
lugar argumenta, com alguma razão, que uma molécula replicadora,
por si só, poderia ser facilmente engolfada no turbilhão de reações
químicas da Terra primitiva. O passo essencial para o início da vida
seria, portanto, a formação de uma membrana ou vesícula
vagamente semelhante à das células atuais, controlando a
passagem de substâncias de dentro para fora e de fora para dentro
da membrana. No interior dela, um conjunto de moléculas orgânicas
teria descoberto o segredo da autopoiese, do “fazer-se a si mesmo”,
como indica essa palavra de origem grega. Por meio de um conjunto
especial de reações químicas sustentáveis, a célula primeva era
capaz de se manter organizada por muito tempo enquanto
exportava os restos desordenados de seu metabolismo para o meio
circundante. A capacidade autopoietica, de se autorrenovar, mais do
que a capacidade de reprodução/replicação, seria definidora da
vida, segundo esse ponto de vista.
O elo entre os dois tipos de hipótese talvez seja o chamado “mundo
de RNA”, no qual essa molécula-irmã do DNA teria sido capaz tanto
de funcionar como replicador quanto de iniciar o metabolismo
(embora não de delimitar, sozinha, a primeira célula). Por enquanto,
a resposta mais honesta é um sonoro “não sabemos”. O que
sabemos, sem sombra de dúvida, é que há uns 3,5 bilhões de anos
atrás o domínio das bactérias já estava solidamente estabelecido.
Tão solidamente, aliás, que o mais correto seria dizer que se trata
de um reino que não terá fim enquanto a Terra for habitável. Perto
das bactérias, todas as formas de vida, inclusive nós, não passamos
de epílogo ou posfácio. (Razão pela qual você não encontrará um
neste livro: ninguém lê posfácios. Um ou outro maluco ainda se
arrisca a ler prefácios, mas posfácios? Nem sonhando.) Descontada
a absurda vantagem numérica – há mais células de bactérias em
você do que células de você em você, se é que me entende –,
esses microrganismos de material genético “desorganizado”, sem
um núcleo que o abrigue, são os verdadeiros carregadores de piano
da biosfera, envolvidos em todos os fluxos de matéria e energia
essenciais para que a vida continue vivendo, da fotossíntese que
produz biomassa à decomposição que a quebra em seus pedaços
constituintes de novo.
Bactérias são duronas, e bem mais complicadas do que nossa
mania de caricaturá-las sugere. Elas podem se organizar em
comunidades e colônias de indivíduos que, à primeira vista,
lembram seres de muitas células como nós. Podem trocar genes de
maneira informal, um tipo de “sexo” que já foi comparado a alguém
de olhos castanhos esbarrando num escandinavo e ganhando de
repente cabelos louros e olhos azuis. Tal promiscuidade, aliás, é um
dos principais obstáculos a construir a chamada Árvore da Vida, o
esquema de descendência que liga todos os seres vivos a um
longínquo, e talvez único, ancestral comum. As bactérias trocam
material genético com tamanha facilidade que se pode conceber
uma origem múltipla da vida, encimada por uma posterior
uniformização de seus processos graças ao troca-troca de genes.
De qualquer maneira, o metabolismo básico compartilhado entre as
bactérias e todo o resto da vida indica que, se houve uma origem
múltipla, seus traços acabaram sendo apagados. É impressionante
como a essência molecular da célula é semelhante em todos os
seres vivos da Terra.
Semelhante, sim, mas não idêntica. Como você verá em um dos
capítulos a seguir, o monopólio bacteriano foi interrompido há cerca
de 1,5 bilhão de anos pela inaudita fusão permanente entre duas
bactérias. Foi um daqueles casos em que o todo se tornou maior
que a soma das partes. Surgiam os eucariontes, organismos cujo
material genético está organizado num núcleo separado, como
ocorre com o nosso. Antigas bactérias fundidas aos eucariontes
ainda exercem funções como respirar oxigênio ou fazer
fotossíntese.
Enquanto as principais integrantes da biosfera continuavam,
imperturbáveis, a tocar a vida, os eucariontes embarcaram de vez
na estrada da complexidade – mas não imediatamente, nem
inevitavelmente. O divisor de águas parece ter sido um conjunto de
eras glaciais que afligiu o planeta entre 750 milhões e 600 milhões
de anos atrás. Uma hipótese muito discutida, a chamada “Snowball
Earth” ou “Terra Bola de Gelo”, propõe que a fase glacial foi tão
severa que o gelo marinho teria chegado ao Equador. Nem todos
concordam a esse respeito, mas a ideia é que a pressão ambiental
severa teria conduzido ao menos alguns organismos eucariontes a
se transformar no que hoje conhecemos como animais e plantas –
criaturas multicelulares altamente organizadas e especializadas, que
se reproduzem por meio do sexo de forma rotineira e geram
“bebês”. A explicação – mais complexidade como mecanismo de
sobrevivência – faz sentido enquanto você não se dá conta de que
provavelmente seria muito mais fácil aguentar o aperto do frio na
forma unicelular. Temos aí, portanto, mais um mistério.
No caso dos animais, ele é seguido por outro, a Explosão
Cambriana, registrada em fósseis com idade a partir de 540 milhões
de anos. Animais primitivos tinham sido registrados antes disso,
mas a Explosão Cambriana equivale ao aparecimento “repentino”
(do ponto de vista geológico, claro, o que envolve alguns milhões de
anos) de ancestrais de todos os grandes grupos modernos de
bichos, incluindo artrópodes (insetos, crustáceos e companhia),
moluscos (caramujos, polvos, ostras etc.) e vertebrados como nós.
É de se imaginar que a evolução dos animais começou muito antes,
sendo apenas difícil de detectar por causa da falta de corpos mais
duros e “fossilizáveis”; de fato, já temos algumas indicações
indiretas de que ela começou antes de 650 milhões de anos atrás.
Mesmo assim, ainda falta uma explicação mais detalhada da
natureza da Explosão Cambriana.
Seja como for, esse início espetacular da vida de grande porte,
restrita aos mares, representou apenas as primícias do que estava
por vir. O registro fóssil, nas centenas de milhões de anos seguintes,
revela saltos após saltos de diversidade, em geral associados à
colonização de grandes ambientes virgens, como a chegada das
plantas e dos vertebrados à terra firme, a invenção dos ovos de
casca duraou do voo por insetos, répteis (pterossauros) e aves.
Esses períodos de expansão, é bom que se diga, são pontuados por
curtos episódios de horror absoluto, as chamadas extinções em
massa, entre as quais os paleontólogos reconhecem as chamadas
Big Five. Nessas cinco grandes catástrofes, pelo menos metade das
espécies do planeta, e em alguns casos muitas mais, foram varridas
do mapa num piscar de olhos geológico. A pior delas é a do Período
Permiano, há 251 milhões de anos, quando a contagem de corpos
chega a 90% ou mais; a mais conhecida é a do fim do Cretáceo, há
65 milhões de anos, quando os dinossauros sumiram do mapa,
aparentemente exterminados pela queda de um asteroide com pelo
menos 10 km de diâmetro.
A força imaginativa da “cratera do Juízo Final” deixada por esse
corpo celeste obscurece o fato de que a maioria desses desastres
parece ter brotado de causas puramente terrenas, como vulcanismo
acelerado, mudanças climáticas extremas ou variações bruscas no
nível dos oceanos. Estudar com cuidado as extinções em massa
também desmonta visões preconceituosas sobre os dinos ou
qualquer outro animal engolido por elas: embora espécies sumam o
tempo todo no mundo, as Big Five são viradas de mesa completas
nas regras da vida. A matança é aparentemente aleatória, sem
respeitar tamanho, tipo de metabolismo ou nicho ecológico: por mais
bem adaptado que um animal esteja a seu ambiente, isso lhe dá
zero garantia de sobrevivência. Pouca gente se lembra, por
exemplo, de que vários grupos de mamíferos e aves primitivas
também naufragaram no barco furado que carregava os
dinossauros. Aparentemente, o único “seguro de vida” razoável
diante de uma extinção em massa é uma distribuição geográfica
ampla, o que significa simplesmente que a catástrofe não vai ser
capaz de matar todos os membros da espécie em todos os lugares
do mundo. Safety in numbers, ou “segurança graças à superioridade
numérica”, portanto – não que isso sirva de consolo para os
inúmeros indivíduos que morrem mesmo quando a espécie como
um todo escapa.
O que não se discute é que as Big Five realmente “reiniciaram” o
programa da vida na Terra de maneira radical, como quem liga e
desliga um computador recalcitrante. A mudança é de tal ordem que
as relações ecológicas e a composição de espécies do globo
sempre foram alteradas profundamente depois desse tipo de
evento. Pode-se argumentar que, sem a hecatombe do Cretáceo, os
mamíferos teriam pouca chance de virar os vertebrados terrestres
dominantes do globo, e seria praticamente impossível que um certo
grande macaco, há uns 6 milhões de anos, começasse a
experimentar o andar ereto nas florestas da África. Alguns
mamíferos até passaram por fases interessantes de aumento de
tamanho e de diversificação antes do sumiço dos dinossauros, mas
curiosamente essas linhagens mais saidinhas, por assim dizer,
foram limadas junto com os antigos donos do globo. Dá para discutir
se animais como nós são uma ocorrência provável Universo afora;
mas, ao menos em parte, nossa existência não tinha nada de
inevitável. O mero fato de estarmos aqui e sermos capazes de
compreender boa parte dessa história complicada é motivo de
assombro. E, agora, acho que você já sabe o bastante para
continuar. Vamos ao que interessa: sexo.
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
Parceiros
Dos deleites e das agruras de se reproduzir fazendo sexo
 
Meu coração é do papai
Por que nossos genitores são o modelo do que achamos atraente.
 
Não sei se alguém já enunciou formalmente a hipótese a seguir,
mas eu seria capaz de apostar que 90% das verdades imutáveis
sobre a natureza humana já foram enunciadas pela música popular.
Repare. Quando a mesma ideia fica aparecendo espontaneamente
nas letras de compositores diferentes, e até em países diferentes, é
bom desconfiar. Para ser mais específico, estou pensando em
coisas como a célebre performance de Marilyn Monroe cantando My
heart belongs to Daddy (“meu coração pertence ao papai”); no
clássico samba que diz “Ô coisinha tão bonitinha do pai”; e nas
incontáveis canções em espanhol nas quais a intérprete se dirige a
seu amado como papi, papito. Como é que se explica uma coisa
dessas? Desejos latentes de incesto? Pedofilia? Nada disso.
 Uma das pesquisas responsáveis por deixar o mistério um
pouco menos obscuro foi feita por cientistas da Universidade de
Durham, no Reino Unido, junto com colegas da Academia Polonesa
de Ciências e da Universidade de Wroclaw (também na Polônia).
Resumindo: se você, mulher, teve uma boa relação com o papai na
infância, tenderá a achar mais atraentes os rapazes que se parecem
com ele.
 O estudo foi realizado com um bom grau de controle, para
evitar vieses. Foram recrutadas 49 moças polonesas, todas filhas
mais velhas. Os pesquisadores usaram um questionário
padronizado para avaliar coisas como quanto tempo livre elas
costumavam passar com seus pais e que contribuição eles deram
para educar as próprias filhas. Depois, as polonesas viram uma
galeria de 15 rostos masculinos diferentes. A equipe de cientistas
teve o cuidado de obscurecer detalhes como orelhas, cabelo,
pescoço, ombros e roupas, para evitar que esses elementos não-
essenciais, sem relação direta com a aparência básica da face,
influenciassem o resultado. Os pesquisadores também mediram as
estruturas faciais desses rostos, bem como a dos pais das garotas,
de maneira que já sabiam de antemão qual cara masculina era
matematicamente mais parecida com a dos genitores delas. O
resultado: as moças que se davam bem com seus pais normalmente
consideravam mais atraentes os rostos mais parecidos com os
deles. A associação sumia no caso das jovens que tiveram
problemas com seus pais na infância.
 Apresso-me em lembrar que o fenômeno não é
exclusivamente feminino. No caso de homens e suas mães, a
recíproca também parece ser verdadeira. Existe uma literatura
científica robusta mostrando que, em média (vejam bem, em média;
essa é a expressão crucial aqui), as pessoas tendem a escolher
como parceiros fixos homens ou mulheres parecidas com elas
mesmas. E quais as pessoas que mais se parecem conosco? A não
ser que você seja gêmeo idêntico, a resposta é óbvia: alguém que
tenha 50% dos seus genes. Em língua de gente: seu pai ou sua
mãe, seu irmão ou sua irmã.
 Não corte os pulsos ainda. Você está perfeitamente correto
se reagiu com indignação; afinal poucas pessoas no mundo são
menos atraentes do que os nossos pais ou irmãos. Ao contrário do
que dizia Freud, é muito raro que, em qualquer fase da vida,
pessoas normais se sintam sexualmente atraídas por esses
parentes próximos. Mas o paradoxo interessante é que, pelo visto,
as pessoas mais próximas de nós desempenham um papel crucial
na formação da imagem de um parceiro desejável, e as provas a
esse respeito têm se acumulado em humanos e animais. Não se
trata, portanto, de atração verdadeira, mas da criação de modelos
do que mais tarde vamos considerar como sexy.
 Para entender isso, é preciso lembrar o óbvio: ninguém
nasce sabendo – pelo menos, não tudo. Nós e a maioria dos outros
mamíferos somos bichos com sistema nervoso complicado,
crescimento relativamente lento e vida social cheia de frescuras. É
preciso aprender milhares de coisas antes de chegar à maturidade,
e a relação dos filhotes com seus pais ou irmãos os ajuda a saber,
por exemplo, qual tipo de criatura é almoço e qual é um parceiro em
potencial.
 Pais ou parentes próximos viram, portanto, “padrões-ouro”
do que é um possível companheiro – uma das funções do sistema
conhecido pelos biólogos como imprinting (nesse caso, trata-se do
imprinting sexual). Qualquer um que já tenha assistido a um
desenho animado tem ao menos uma ideia grosseira de como o
imprinting funciona: toda vez que um personagem dá o azar de
segurar um ovo prestes a chocar, e o bebê que sai de dentro dele
(pode ser um dragão, ou coisa pior) olha para o personagem e grita
“mamãe!”, estamos presenciando uma das funções (um tantinho
simplificada,digamos) desse sistema. O imprinting também “ensina”
os filhotes a não ficarem atraídos diretamente pelos pais ou irmãos,
e sim por indivíduos apenas parecidos com eles. As histórias
tragicômicas de bichos criados por humanos mostram o que
acontece quando o imprinting dá errado, em versões da vida real
das confusões interespécies nos desenhos animados. (Imagine
gansinhos achando que um par de botas é a mamãe, ou corujas
tentando desesperadamente transar com um chapéu. Não é lá muito
engraçado.)
 Por sorte, a imensa maioria dos imprintings sexuais
humanos e animais funciona à perfeição. A coisa foi comprovada
com rigor em laboratório: alguns ratinhos foram criados por mães
cujas mamas e vaginas foram borrifadas com odor de limão. Depois
de adultos, os roedores foram colocados em jaulas onde havia tanto
fêmeas com cheiro de limonada quanto ratas sem cheiro nenhum. E
eles caíram matando em cima das fêmeas com odor cítrico. 
 Em humanos, ambos os lados do imprinting sexual já foram
demonstrados. Estudos transculturais – do Chade, na África, à
Europa e aos Estados Unidos – revelam que as pessoas tendem a
escolher parceiros ligeiramente parecidos com eles. E não se trata
só de cor dos olhos ou dos cabelos: entram na equação traços tão
mínimos quanto a distância entre os olhos, circunferência do pulso
ou tamanho do dedo médio! A correlação é pequena, mas
estatisticamente significativa – provavelmente porque as pessoas
estão usando um “padrão-ouro” composto por uma enormidade de
traços diferentes, os quais, em média, acabam chegando a uma
pessoa um pouquinho mais parecida com elas do que o normal da
população.
 Ao mesmo tempo, e aí é que a coisa fica engraçada,
mesmo “parentes” adotivos raramente se sentem atraídos uns pelos
outros. Isso vale até para as crianças israelenses criadas em
kibbutzim (singular: kibbutz), as fazendas coletivas que já foram
muito comuns no país. As crianças dos kibbutzim eram criadas
todas juntas, num regime quase comunitário, como se fossem todas
irmãs. Resultado: de 2.769 casamentos estudados nas fazendas, só
13 – ou 0,47% do total – aconteceram entre pessoas nascidas no
mesmo kibbutz. Isso sugere que nossa aversão natural a ir para a
cama com irmãos e irmãs não deriva de algum sexto sentido capaz
de farejar DNA parecido com o nosso, mas simples do estímulo
inconsciente (ou contraestímulo, na verdade) surgido de anos de
convivência na mesma casa, com os mesmos pais, desde a mais
tenra infância.
 As razões por trás dessa sintonia fina ainda são nebulosas.
Mas ela parece fazer algum sentido do ponto de vista da seleção
natural, que tem impacto sobre todos os seres vivos e tende a
favorecer sempre a produção de bebês saudáveis: por definição,
apenas os mais hábeis na produção de crias viáveis conseguem
legar seu material genético para as gerações futuras. Faz sentido
não escolher como parceiro alguém completamente diferente: na
natureza, “coisas completamente diferentes” costumam ser
membros de outra espécie, com os quais normalmente não dá para
produzir descendentes férteis, nem com muito amor e carinho, ainda
que haja exceções a essa regra.
 Ao mesmo tempo, casar-se com um quase-clone de si
mesmo do sexo oposto não é esperto: o excesso de semelhança
genética entre pai e mãe acaba concentrando características
potencialmente negativas nos filhos, tornando-os suscetíveis a
doenças ou até portadores de sérios problemas congênitos. Isso
acontece porque é muito mais provável a presença da mesma
variante indesejável de um gene em você e sua irmã do que o azar
de o mesmo acontecer com você e uma completa desconhecida.
Como quase todo gene é herdado em duas cópias (uma paterna e
outra materna), o risco de que um rebento gerado em incesto
carregue ambas as versões “ruins” é implacavelmente maior. Isso
faz uma diferença tremenda em doenças genéticas graves, como a
anemia falciforme: enquanto apenas uma cópia do gene mal
acarreta sintomas, portar duas cópias equivale a uma vida de
sofrimento.
 Deixemos a genética de lado por um instante, no entanto.
Acontece que existem fatores que ajudam a prever a escolha de
parceiros de maneira muito mais clara e menos ambígua do que a
semelhança física, geral ou em detalhes, de homens e mulheres. E
adivinhe só: são fatores culturais. Embora a semelhança física tenha
um impacto, a correlação entre coisas como religião, posição
política, nível educacional e renda é muito mais forte entre parceiros
fixos.
 Isso deveria ser o suficiente para afastar os temores de que
entender as bases biológicas do comportamento humano nos
transforma em autômatos genéticos, robozinhos que só pensam
“naquilo” (ter o máximo possível de filhos e espalhar nosso DNA) e
outras simplificações grosseiras do gênero. Como todas as coisas
vivas, somos a somatória de tantos eventos improváveis e
complicados que poucos fatores podem se arrogar o direito de
explicação única – ainda que, como dizia Marilyn, no fundo o nosso
coração pertença ao papai ou à mamãe.
 
Helena de Darwin
As mulheres foram mesmo a causa da guerra de Tróia?
 
Historiadores e críticos literários normalmente dão uma risadinha de
desprezo quando alguém diz que a guerra de Tróia aconteceu por
causa da bela Helena. Quem estuda o conflito, que virou a mais
famosa saga da literatura ocidental ao ser cantado pelo poeta
Homero, costuma partir do princípio de que o rapto de Helena não
passa de desculpa esfarrapada. No máximo, um pretexto para jogos
bem mais sérios de poder e riqueza.
 Recapitulemos muito rapidamente a origem do conflito,
segundo a mitologia grega e os textos homéricos. A briga toda teria
começado quando a grega Helena, esposa de Menelau, rei da
cidade grega de Esparta, é seduzida – ou carregada à força,
dependendo da versão do relato – pelo príncipe troiano Páris. O
casal foge para Tróia e, quando o marido corneado não recebe de
volta a esposa depois de negociações diplomáticas, o tempo fecha.
Menelau convoca seu irmão Agamêmnon, o rei mais poderoso da
Grécia, bem como todos os antigos pretendentes de Helena (unidos
por um juramento de defender o marido que ela escolhesse), para
atacar Tróia. Depois de dez anos, a cidade é tomada, saqueada e
destruída, os homens troianos são massacrados e as mulheres e
meninas viram escravas e concubinas dos vencedores.
 As análises modernas afirmam que tudo isso é balela.
Descontemos quem considera o episódio totalmente lendário – o
consenso entre arqueólogos e historiadores é que a cidadela troiana
realmente existiu na costa da atual Turquia e foi mesmo destruída
por invasores por volta do ano 1200 a.C., época que bate com as
histórias da tradição helênica sobre a guerra. Assumindo, portanto,
que o conflito ocorreu, há quem diga que os gregos queriam mesmo
era controlar as rotas de comércio da região de Tróia (versão dos
historiadores) ou aproveitar o pretexto para ganhar glória imortal nos
combates (versão mais romântica, defendida pelos críticos literários
que estudam os poemas homéricos). No entanto, um pesquisador
que busca unir no mesmo caldeirão biologia evolutiva humana e
crítica literária, diz que as duas explicações não chegam nem perto
da raiz da questão. E afirma que o estopim da pancadaria em Tróia
foi mesmo Helena – sem falar, é claro, nas inúmeras outras
mulheres jovens e atraentes, com ou sem marido, que viviam na
cidade. Segundo essa perspectiva, a motivação dos gregos era
igualzinha à de uma coalizão de chimpanzés machos: obter novas
fêmeas a todo custo.
 A tese, que casa a poesia de Homero com algumas das
ideias mais recentes sobre a origem evolutiva da guerra e do
comportamento violento, é de Jonathan Gottschall, professor de
literatura do Washington & Jefferson College, nos Estados Unidos.
Ele é o autor de The Rape of Troy: Evolution, Violence and the
World of Homer (O Estupro de Tróia: Evolução, Violência e o Mundo
de Homero). Gottschall diz que sua intenção não é simplesmente
jogar no lixo os milêniosde estudos sobre as obras-primas gregas,
nem desdizer as outras explicações sobre o comportamento dos
heróis de Homero, como a ideia de que eles lutam para eternizar
sua fama.
 “As pessoas acham que Aquiles [o principal herói grego da
guerra] tem como objetivo a glória eterna simplesmente porque ele
diz isso”, explicou-me Gottschall. “Todos nós queremos esse tipo de
glória – quem não gostaria de ganhar um Nobel e ser lembrado
daqui a cem anos? A questão é que nós buscamos ter fama, ou ter
um status profissional elevado, porque isso nos garante o acesso a
uma série de recursos. E esses recursos, em última instância,
servem para turbinar as chances de sobrevivência e reprodução dos
que os adquirem, como em qualquer outra espécie.”
 Se esse papo todo está soando meio primitivo demais, é
porque talvez o mundo de Homero fosse bastante tosco mesmo. A
maioria dos especialistas atuais concorda que os dois poemas do
grego – a Ilíada, que conta a fase crucial da guerra, e a Odisseia,
sobre a volta para casa do herói helênico Ulisses – foram
compostos por volta do ano 800 a.C. Já os dados arqueológicos
indicam que a antiga Tróia, localizada no noroeste turco, teria sido
arrasada cerca de quatro séculos antes, como já vimos. A diferença
é importante porque, quando Tróia ainda estava de pé, a Grécia era
dominada por uma série de palácios luxuosos, com governo
burocrático, centralizado e “globalizado”, comerciando com o Egito e
a Palestina. Esses reinos palacianos foram arrasados por invasores
pouco depois da queda de Tróia, de forma que, quatrocentos anos
depois da catástrofe, os gregos ainda viviam em vilarejos rurais,
empobrecidos e nem um pouco refinados.
 Gottschall e outros especialistas propõem que a sociedade
da Ilíada e da Odisseia reflete justamente esse período pobretão da
história grega, próximo da época em que os poemas ganharam sua
forma final. “É claro que há elementos de épocas mais antigas na
trama, como o uso de armas de bronze, enquanto na época de
Homero todo mundo já tinha armas de ferro. Mas esses elementos
provavelmente foram preservados porque faziam parte das fórmulas
da tradição oral herdada pelo poeta”, argumenta ele. O importante é,
que no geral, a vida dos heróis homéricos é um perrengue de dar
pena. Para se ter uma ideia, Homero diz, como quem não quer
nada, que porcos e ovelhas ficam passeando nos palácios, que as
rainhas vão pessoalmente buscar água nas fontes e que fiam
pessoalmente a roupa de seus maridos. De quebra, os reis são
relativamente pouco poderosos e raramente conseguem deixar o
poder para seus filhos sem algum grau de luta. Nada disso parece
ter acontecido nos reinos altamente centralizados da Grécia em
1200 a.C. O poeta, portanto, embora se referisse ao passado
lendário, usava como modelo das relações sociais o que ele via
entre seus próprios contemporâneos do ano 800 a.C.
 Resumindo, tal quadro significa que a sociedade homérica
era uma cultura agrícola tribal, muito pouco diferente da dos índios
ianomâmis ou dos nativos de Papua-Nova Guiné se deixarmos de
lado o uso de armas e utensílios de metal. Estamos falando de
pequenos grupos, liderados por chefes guerreiros e em conflito
constante com os vizinhos. E qual a causa mais comum de briga
interna e externa nesse tipo de sociedade? Acertou quem disse
“mulheres”. Os dados recolhidos por antropólogos em grande parte
dos povos tradicionais ao redor do mundo, seja na África, na
Oceania ou entre os indígenas da América do Sul, mostram a
prevalência endêmica dos conflitos envolvendo o rapto de moças.
 É simples assim: os chefes mais poderosos, com maior
habilidade militar e maior número de guerreiros à sua disposição,
são quase sempre os que possuem o maior número de esposas e
concubinas. Aqui entra com força o pedaço darwinista da
argumentação de Gottschall: com mais mulheres na mão do chefão,
maior a chance de ele deixar uma família numerosa e poderosa -
exatamente o maior prêmio que a evolução pode conceder a um ser
vivo. A injustiça inerente à maneira como os mamíferos se
reproduzem permite que apenas um homem gere dezenas ou até
centenas de filhos ao longo da vida, desde que tenha mulheres
suficientes à sua disposição, enquanto suas parceiras enfrentam as
limitações impostas pelos longos tempos de gravidez e pela
menopausa.
 Mas não pense que, na sociedade homérica e em outros
bandos guerreiros tradicionais, qualquer tipo de bebê serve. Para
ganhar a disputa com grupos rivais, cada grupo precisa da máxima
quantidade possível de guerreiros – do sexo masculino, claro. O
problema é que nasce sempre mais ou menos o mesmo número de
meninos e meninas. A solução? Infanticídio. Gottschall lembra que a
morte seletiva de menininhas parece ter sido comum durante toda a
história grega (e em uma série de outras sociedades tradicionais
guerreiras). O resultado de tudo isso só pode ser classificado como
explosivo: uma falta endêmica de mulheres (por causa do
infanticídio feminino e do monopólio das esposas na mão dos
chefes) e um excesso de guerreiros jovens, loucos para “capturar”
suas próprias esposas e concubinas. A única “solução” é mais
guerra com os grupos vizinhos, o que vai tornando o ciclo de
violência cada vez pior. De novo, os paralelos antropológicos são
iluminadores: sabemos que as sociedades mais violentas, seja no
Terceiro Mundo urbano de hoje, seja no passado remoto, são
aquelas em que há um excedente de homens jovens tentando
provar seu valor e competindo por status. Assim seria o mundo
homérico, de acordo com o pesquisador.
 Todo esse quadro casa um bocado bem com a história de
vida de inúmeras mulheres – e homens – envolvidos na guerra de
Tróia, de acordo com a narrativa tradicional de Homero. Boa parte
dos chefes gregos e troianos tem como esposa ou concubina uma
ex-cativa capturada de alguma cidade inimiga. E, quando
Agamêmnon, o líder do exército grego, resolve tomar para si a
escrava preferida de Aquiles, o conflito entre os dois é tão sério que
o maior herói grego quase faz as malas e vai para casa. Na
verdade, o tema central da Ilíada é a chamada cólera de Aquiles,
causada justamente por essa desfeita imperdoável.
 É importante lembrar que fenômenos assim estão bem
documentados entre espécies de mamíferos cujos machos, por seu
tamanho e ferocidade (os equivalentes do poderio militar homérico),
conseguem controlar um grande número de fêmeas, formando
haréns. É o caso de elefantes-marinhos ou gorilas, por exemplo. O
grande diferencial homérico – e humano, se pensarmos em termos
mais gerais – é a capacidade de formar coalizões entre grandes
grupos de machos aparentados e até não-aparentados, o que pode
levar ao surgimento da guerra em larga escala.
 Nada disso significa, porém, que as mulheres gregas e
troianas se deixassem levar como meros joguetes do destino. O
exemplo mais gritante do contra-ataque feminino envolve
Clitemnestra, irmã de Helena e esposa do rei Agamêmnon.
Enquanto o monarca grego está longe de casa, ela toma como
amante outro homem e arquiteta o assassinato do marido – e da
jovem e bela princesa troiana Cassandra, que Agamêmnon tinha
transformado em sua concubina e já tinha até dado à luz um filho
dele. Helena, por sua vez, usa seus encantos de tal forma que não
apenas é poupada por Menelau, mas volta ao trono como rainha,
vivendo ao lado dele pelo resto de seus dias.
 Você deve estar lembrado, no entanto, de que a guerra de
Tróia comprovada pela arqueologia aconteceu muito antes da época
em que os gregos estavam organizados socialmente como os
ianomâmis. Será que isso quer dizer que o lado mais brutalmente
darwinista dos poemas retrata apenas a sociedade de Homero, mas
não o que aconteceu na Turquia em 1200 a.C.? Talvez não. Uma
das ideias mais debatidas pelos arqueólogos envolve a ideia de que
Tróia (bem como outros palácios brutalmente destruídos ao redor do
Mediterrâneo na mesma época) teria sido arrasada por tribos de
bárbaros, oriundas das beiradasdo mundo civilizado de então.
Nesse caso, o ataque teria sido realizado não pelos gregos dos
palácios, mas sim por tribos do norte da Grécia – o que indicaria
uma civilização mais primitiva, e mais inclinada a simplesmente
saquear e destruir a cidade asiática, levando as mulheres como
parte do butim.
 A tese de Gottschall ainda deve gerar um grau considerável
de polêmica, mas talvez seja bom prestar atenção em outra das
falas de Aquiles na Ilíada: “Passei muitas noites insones e dias
sangrentos na batalha, lutando com outros homens por suas
mulheres”.
 
Quem precisa disso?
Os animais que não vão para a cama há 100 milhões de anos
 
Confessemos o inconfessável: sexo é bom e todo mundo gosta,
mas dá um trabalho dos infernos. Considere quanto sangue e suor,
quantas lágrimas, notas de cem e faturas de cartão de crédito já
foram empregados na história do cosmos para esse fim; quantas
caudas de pavão e Ferraris, quantos vestidos decotados, sem falar
no gasto de energia intelectual, como a invenção do soneto, os
romances medievais sobre o amor cortês, o Cântico dos Cânticos. É
muita dor de cabeça. Pela lógica, apenas as coisas indispensáveis
são objeto de tamanha obsessão. Nós (e a grande maioria dos
outros animais e plantas) só seríamos tão doidos por sexo porque
não dá para sobreviver sem ele. O raciocínio é impecável. Mas no
meio do caminho tinha um bdeloide. Aliás, umas 400 espécies de
bdeloides, para ser mais exato.
Os bdeloides a que me refiro estão entre os invertebrados mais
estranhos do planeta – animais microscópicos de cabeça retrátil,
muitas vezes rastejantes, como as minhocas. Formados por um
número fixo de células, eles habitam a água doce e substratos
úmidos de todos os tipos, sendo exímios comedores de qualquer
coisa devorável e compatível com seu tamanhinho. Não existem
machos bdeloides: todos são fêmeas e produzem descendentes por
partenogênese, ou “geração virgem” (processo no qual os óvulos
iniciam o desenvolvimento embrionário sem fecundação por
espermatozoides).
Temos boas razões para acreditar que esses bichos minúsculos
abdicaram da vida sexual há cerca de 100 milhões de anos e,
mesmo assim, conseguiram colonizar uma grande variedade de
ambientes e se diversificaram, como qualquer outro grupo de
animais – coisa que, em tese, não deveria ser possível. A trajetória
evolutiva dos bdeloides indica que o sexo talvez seja menos
indispensável do que se costuma imaginar.
Entretanto, antes de entender que mágica essas criaturas estranhas
estão fazendo para se livrar da alcova, é bom colocar algumas
coisas em pratos limpos. Como dizíamos no começo deste capítulo,
os seres vivos tendem a ficar fissurados apenas e tão somente por
coisas que têm um impacto sobre sua sobrevivência e reprodução.
Dizer que adoramos doces (ou sexo!) porque “é gostoso” não
explica nada: não passa de uma tautologia, como dizer que “faz
bem porque é bom”. Nosso sistema nervoso está programado para
“traduzir” comida açucarada e/ou uma noite de amor na sensação
subjetiva de “prazer” porque os doces são fontes concentradas de
energia para o organismo e porque o sexo é o procedimento-padrão
da nossa espécie para passar genes de geração em geração. O
prazer é um incentivo – ou um suborno, se você quiser. É claro que,
em criaturas de sistema nervoso suficientemente complexo (nós
somos o exemplo extremo), pode acontecer de o suborno ficar
desacoplado de seu objetivo inicial. Somos capazes, por exemplo,
de fazer sexo insanamente – mas tomar pílula e/ou usar camisinha
em todas as ocasiões. A força primordial do impulso, no entanto, só
é tão avassaladora porque inicialmente ele era servo de uma função
biológica de primeira grandeza: no caso, a reprodução.
Mas a verdadeira questão é por que escolher o sexo como
mecanismo reprodutivo. Do ponto de vista exclusivamente
matemático, a opção preferencial pela vida romântica não faz
sentido. O sexo, considerado unicamente como meio para passar
adiante o DNA de um organismo, é decepcionante porque envolve
obrigatoriamente uma divisão desse DNA (pela metade) e a mistura
dele com o de outro organismo. Lembre-se de que 50% dos seus
genes vieram do seu pai e a outra metade, da sua mãe. Em tese,
seria muito mais negócio para cada indivíduo isolado transmitir a
carga total de seu material genético para a geração seguinte, pelo
simples mecanismo de produzir uma cópia de si mesmo. Além
disso, sempre pode acontecer de você não achar a tampa da sua
panela, por assim dizer – e, sem parceiros para ajudar, não dá para
ter reprodução sexuada.
E, no entanto, a imensa maioria dos animais, plantas e fungos, além
de um bom número de microrganismos, contraria essa lógica
aparentemente inescapável. Até as bactérias, famosas por sua
capacidade estonteante de dividirem suas células únicas em novas
“células-filhas”, aderem ocasionalmente a sessões de “sexo” não-
formalizado, trocando genes com outras bactérias, às vezes até de
outras “espécies” bacterianas. Se a comparação dessa atividade
com o que chamamos de sexo sem aspas está correta, o impulso de
trocar e misturar material genético existe até em organismos que se
multiplicam via clonagem. 
Duas ideias mais ou menos parecidas e complementares estão
entre as que buscam explicar esse paradoxo. A primeira vê a
sexualidade como uma espécie de seguro de vida contra parasitas e
ambientes em transformação. A reprodução sexual, ao misturar e
embaralhar os genes de dois indivíduos diferentes,
automaticamente cria combinações de DNA novas que podem
derrotar parasitas (que não “conhecem” a nova mistura e, portanto,
não estão equipados para vencê-la) e representar um “estoque”
importante de novas soluções para alterações ambientais. Isso é
muito importante até no seio de uma única família. O corpo de uma
mãe não tem nada de imaculado: ele abriga invariavelmente uma
multidão de espécies de microrganismos, alguns benignos, como a
nossa flora intestinal, outros potencial ou completamente malignos.
Durante a gestação e o parto, tudo o que esses bárbaros
microscópicos querem é a oportunidade de saltar para o bebê, cujo
sistema de defesa biológico ainda não está totalmente formado. O
fato de o filhote carregar traços genéticos que, ao menos
parcialmente, soam pouco familiares ao parasita é uma proteção
considerável contra uma morte prematura por infecção.
A segunda ideia propõe que o sexo ajuda no “controle de qualidade”
genético de uma população. Em criaturas assexuadas, mudanças
no conjunto do DNA só ocorrem por mutações – alterações
químicas aleatórias nas “letras” químicas A, T, C e G que compõem
a molécula da hereditariedade. Ora, a imensa maioria das mutações
tende a ser nociva. De geração a geração, o acúmulo de alterações
“do mal” poderia colocar os organismos celibatários em perigo. Mas,
para produzir as células sexuais, as partes equivalentes do DNA
que você recebeu do seu pai e da sua mãe são colocadas lado a
lado e se recombinam, trocando pedaços de cromossomos (as
estruturas enoveladas que abrigam o material genético). Com isso,
mutações “ruins” num genitor podem ser “consertadas” pelo material
genético do outro genitor. Mal comparando, é como pegar dois
álbuns de figurinhas completos e idênticos, um dos quais possui
uma figurinha rasgada: retira-se a figurinha intacta de um e ela é
colocada no lugar da que estava adulterada.
Depois de todo esse background, já podemos voltar aos nossos
bdeloides, os mestres da castidade evolutiva. Se tudo o que foi dito
nos parágrafos acima estiver correto, os bichos seriam um prato
cheio para parasitas famintos e mudanças ambientais; de quebra,
seu genoma (o conjunto de seu DNA) deveria estar caindo aos
pedaços de tanta mutação deletéria. No entanto, lá estão eles,
vivos, bem e bastante diversificados, rastejando sobre musgos e
liquens e nadando em poças d’água e córregos. Quando falta água,
eles entram numa espécie de animação suspensa conhecida como
anidrobiose, até as condições melhorarem.
O segredo dos bdeloides celibatários parece estar em
características específicas do genoma das criaturas.O pesquisador
americano David Mark Welch, do Laboratório de Biologia Marinha
do Instituto Oceanográfico Woods Hole, mostrou que o DNA dos
bichos é tetraploide – diferentemente de nós, que temos duas
cópias de cada cromossomo, eles têm quatro. Tudo indica que, no
passado remoto, o conjunto duplo normal de cromossomos sofreu
uma reduplicação, transformando os bdeloides em tetraploides.
Ora, situações de extrema secura, como a anidrobiose, deveriam
causar grandes quantidades de dano ao DNA desses animais, mas
não é o que acontece. Experimentos em que esses bichos foram
bombardeados com radiação – outra fonte comum de erros no
material genético – revelaram que eles aguentam mais
radioatividade do que qualquer outro animal conhecido. O único jeito
de explicar esse conjunto bizarro de características é imaginar que
os cromossomos quadruplicados estão servindo como base para
reconstruir o genoma bdeloide. Com várias cópias de cada gene à
disposição, os animais conseguem corrigir rapidamente os erros que
aparecem em uma, duas ou até três versões de um gene.
Ou seja, em certo sentido, pode-se dizer que os bdeloides puderam
abdicar da sexualidade porque internalizaram os benefícios
evolutivos do sexo. Em vez de buscar genes bons em outro corpo,
eles corrigem os problemas nos seus genes internamente. Funciona
um bocado bem para eles, ao que tudo indica. Eu sei o que você
deve estar pensando: eles não sabem o que estão perdendo.
 
Pais de multidões
Quer ter muitos descendentes? Seja um ditador sanguinário
 
Um amigo meu, cansado de suas oportunidades sexuais limitadas,
costumava brincar que todas as mulheres do mundo deviam estar
na mão de algum macho alfa, esse ser mítico (bem, não tão mítico;
ele existe, mas só em algumas espécies animais) que monopoliza
as fêmeas. “Cadê esse macho alfa? Acha esse desgraçado que eu
vou encher ele de porrada”, dizia. Mais fácil falar do que fazer,
lógico. A julgar pelo que a genética anda descobrindo, o macho alfa
clássico não é exatamente um sujeito bonzinho, que levaria umas
bolachas sem reclamar. Na verdade, está mais para um Gêngis
Khan – literalmente, aliás.
A conclusão deriva das pistas deixadas pelos homens que, ao
longo da história, foram os mais bem-sucedidos sexualmente,
intrépido leitor. Usando uma mistura fascinante de dados genéticos
e históricos, os cientistas estão começando a encontrar sinais de
que uns poucos machos alfa da nossa espécie conseguiram deixar
muito mais descendentes do que o mortal comum poderia sonhar.
Gêngis Khan é um desses pais de multidões – e, a exemplo dele, as
demais figuras da lista não são lá muito agradáveis. Ao que parece,
o poderio militar e econômico foi a principal ferramenta para
monopolizar mulheres – e, portanto, deixar muitos descendentes –
ao longo da história.
A característica genética mais marcante dos seres humanos do
sexo masculino ajuda muito os cientistas na hora de fazer essas
estimativas. (Grosso modo, o que vou dizer também se aplica a
todos os mamíferos.) Trata-se do cromossomo Y, um dos dois
cromossomos ligados à definição do sexo na nossa espécie. Todos
temos 23 pares de cromossomos; como já vimos, um membro do
par é legado pelo pai e o outro, pela mãe. Mulheres normais têm
dois cromossomos X; homens normais, por sua vez, têm um X e um
Y. A vantagem desse fato para a genética histórica é que o Y só é
transmitido de pai para filho, numa sucessão ininterrupta ao longo
de milhões de anos. E o Y não mistura (ou “recombina”, para usar o
termo técnico) seu DNA com seu parceiro, o X. Ou seja, trata-se de
um registro praticamente puro da linhagem paterna de um homem.
Apenas as mutações ao acaso no material genético fazem com que
um Y seja diferente do outro. Tais mutações são passadas para os
descendentes masculinos de qualquer macho, o que ajuda a
rastreá-los com precisão nas gerações seguintes.
Em tese, esses poucos fatos simples nos permitem reconstruir a
linhagem do Y de todos os homens vivos hoje a um único “Adão”
primitivo – um macho humano do passado distante cujo
cromossomo deu origem a todos os existentes na população de
hoje. As estimativas para a idade desse Adão variam – uma das
mais recentes fala em apenas 60 mil anos –, mas isso não significa
que o “primeiro homem” viveu nessa época, ou que só ele existia
então. É preciso entender que as linhagens do Y se perdem
naturalmente ao longo do tempo. Basta pensar num sujeito que
tenha dez filhas mulheres – e nenhum menino. A imensa maioria de
seus genes estará preservada para a posteridade, mas seu Y terá
desaparecido. Hoje, quando os pesquisadores comparam o DNA de
todos os homens para remontar ao Y ancestral, seria como se o pai
das dez garotas nunca tivesse existido – e isso influencia na
estimativa de quando viveu o nosso “Adão do Y”. De qualquer
maneira, o mesmo método também serve para estimar a origem de
versões mais recentes do Y. Leva-se em conta a taxa mais provável
de mutações ao longo do tempo, as diferenças e semelhanças entre
o DNA dos cromossomos, o momento em que teria ocorrido a
separação entre a linhagem humana e a dos nossos primos mais
próximos, os chimpanzés, e voilà – é possível estimar uma data de
origem comum, obviamente com uma margem de erro considerável.
Mais do que o Adão ancestral, no entanto, está ficando claro que
alguns homens tiveram sucesso em multiplicar exponencialmente a
sua própria versão do cromossomo Y no mundo. Você
provavelmente nunca ouviu falar de Niall dos Nove Reféns, a não
ser que tenha nascido na Irlanda. Mas saiba que todo santo
irlandês, britânico ou descendente de ambos com sobrenomes
como O’Neill, O’Donnell e O'Reilly, entre outros, é tradicionalmente
considerado um rebento da linhagem do velho Niall, que viveu no
século V da Era Cristã. (O sobrenome O’Neill é simplesmente a
forma modernizada de Uí Niall, ou “descendente de Niall”, em
gaélico.) Niall era um típico chefe guerreiro celta, passando suas
horas de lazer em expedições para capturar escravos ou extorquir
chefes rivais (daí o apelido; os “reféns” eram usados para
chantagear os inimigos). Pesquisadores do Trinity College, de
Dublin, tiveram a ideia de verificar se essa montanha de
sobrenomes realmente tem relação com a descendência deixada
pelo senhor da guerra.
Não deu outra. No noroeste da Irlanda, a base tradicional dos Uí
Niall, nada menos que um quinto dos homens carrega uma
assinatura genética em seu Y que pode ser remontada com
razoável grau de precisão até a época de Niall. No oeste e no centro
da Escócia, a proporção ultrapassa os 15%. E 2% dos homens
nova-iorquinos – muitos dos quais descendentes de escoceses e
irlandeses – têm o Y que parece ter pertencido a Niall. Os
pesquisadores estimam que até 3 milhões de homens carreguem
essa marca genética.
Um caso parecido foi identificado pela equipe de Chris Tyler-Smith,
do Instituto Sanger (Reino Unido), entre homens do nordeste da
China e da Mongólia. O normal na maioria das populações
humanas, como Tyler-Smith me explicou certa vez, é que todo
homem tenha uma “assinatura” quase única em seu cromossomo Y
– o que mostra que ele descende de ancestrais masculinos que
continuaram deixando descendentes devagar e sempre. Mas, nas
amostras da região, ele e seus colegas acharam uma forma do Y
com frequência bem maior que a normal, chegando a 5% da
população em algumas regiões.
Ao estimar a origem desse Y – há cerca de 500 anos, no nordeste
da China –, Tyler-Smith e companhia acreditam ter achado uma
correlação com Giocangga, o fundador da dinastia Qing, a dos
últimos imperadores da China. Tanto no caso de Niall quanto no de
Giocangga, a tradição de coabitar com inúmeras concubinas e os
fartos recursos destinados aos filhos (bastardos ou não) dos
governantes e seus familiares parecem ser suficientes para explicar
esse sucesso reprodutivo desproporcional. No caso de Giocangga,
enquanto a média dos homens de seu tempo teria 20 descendentes
masculinos vivos hoje, os orientais que carregam seu Y são cerca
de 1,5 milhão.
Ao que tudo indica, porém, ninguém ganha de Gêngis Khan.
Usando os mesmos métodos,e com uma grande amostragem de
homens (mais de 2.000 indivíduos de toda a Ásia, desde o Cáucaso
até o Japão), Chris Tyler-Smith identificou o que chama de
“aglomerado-estrela” – um grupo de variantes do Y muito próximas
entre si, correspondente a cerca de 8% da amostragem. Origem
estimada: cerca de 1.000 anos atrás, na Mongólia. E o único grupo
do Paquistão no qual o aglomerado-estrela aparece é o dos hazaras
– que se consideram descendentes do imperador bárbaro da Idade
Média. Ao todo, Tyler-Smith calcula que 12 milhões de homens
vivos hoje possam remontar seu Y a Gêngis Khan, ou Temujin
(nome de “batismo” do líder guerreiro). Para o pesquisador britânico,
a época e o local de origem, bem como as práticas do império
mongol, apontam fortemente para Gêngis e sua família. O
cromossomo nem precisa ter se originado precisamente com ele:
pode ter surgido com seu avô ou outro ancestral próximo, sendo
passado adiante sem muitas modificações desde então, que é o que
normalmente acontece – se usássemos unicamente o Y como forma
de identificação genética, o mais provável é que um homem
qualquer pareceria indistinguível de seus irmãos ou de seu tio
paterno. 
Gêngis e seus descendentes eram adeptos da poligamia e
obviamente não gostavam de usar camisinha, mas também
estupravam sistematicamente as mulheres das populações
conquistadas. Como os parentes do guerreiro pelo lado masculino
(primos, tios etc.) também foram beneficiados e carregavam um Y
provavelmente idêntico ao dele, o efeito foi multiplicado, e o mesmo
vale para os descendentes do Khan, muitos dos quais também
foram imperadores. “Eu diria que Gêngis Khan é o exemplo mais
extremo de algo que aconteceu outras vezes. Os homens têm uma
tendência através da história a agir dessa forma quando as
circunstâncias o permitem”, disse-me Tyler-Smith.
O curioso é que alguns dos grandes conquistadores da Antiguidade
tirariam notas pífias no “teste Gêngis Khan”. Dois exemplos que
viriam à cabeça de qualquer historiador são Alexandre, o Grande e
Júlio César – nenhum dos dois deixou descendentes masculinos.
(Na verdade, o filho de Alexandre até sobreviveu ao pai, mas
acabou sendo assassinado por um dos generais do rei macedônio.)
Cá entre nós, eu adoraria ver a técnica aplicada aos primeiros
colonizadores do Brasil. Afinal, sujeitos como João Ramalho, o
português que se aliou aos tupiniquins e ajudou a fundar São Paulo,
viraram polígamos assim que puseram os pés aqui e tiveram uma
multidão de filhos com suas esposas indígenas. Também
praticavam, em miniatura, o que Gêngis Khan fazia com suas
populações conquistadas: a transformação de cativas de guerra em
concubinas.
O que nenhum desses superpais sabia, no entanto, é que ter tantos
rebentos não era nenhuma garantia de imortalidade, como alguns
deles acreditavam. Fora o cromossomo Y, um pedacinho minúsculo
do material genético humano, temos a certeza matemática de que
pouquíssimos genes desses sujeitos tão prolíficos continuam
caminhando juntos. Isso porque, com a divisão do DNA pela metade
antes da formação dos espermatozoides e dos óvulos, de modo que
só 50% dos genes de qualquer pessoa derivam de seu pai, a
herança genética vai sendo cada vez mais fracionada de filho para
neto e de neto para bisneto. Tanto que, na quinta geração, os
descendentes dos supermachos da história tinham só pouco mais
de 3% de seu DNA. Portanto, se um dia você descobrir que seu Y
cai no aglomerado-estrela, não se preocupe: há pouco perigo de
você sair por aí queimando vilarejos e agarrando donzelas.
 
Feto malvado, mamãe mão-de-vaca
Embriões e seus truques sujos para extorquir as grávidas
 
Engravidar causa enjoo, desejos gastronômicos bizarros e (para as
mamães mais vaidosas) um certo desalinho na silhueta. Nenhuma
controvérsia aí. Desconfio, no entanto, que quase nenhuma
gestante pense nos seus meses de gravidez como uma queda-de-
braço ou uma batalha: um cabo-de-guerra no qual ela ocupa uma
das pontas e o feto crescendo em seu ventre, a outra. Ao contrário
do que milênios de prosa e verso sobre as belezas da maternidade
dizem, os interesses da mamãe e do bebê estariam longe de ser
idênticos, segundo essa linha de pensamento.
 A ideia pode parecer mera intriga de quem ficou para titia,
mas os fatos mais básicos da biologia dos mamíferos, se
investigados com o devido cuidado, sugerem que essa é a mais
pura verdade. Casando uma série de dados moleculares,
fisiológicos e comportamentais, os cientistas estão usando o duelo
entre fetos e grávidas para explicar estranhas doenças e até para
entender por que os animais clonados raramente são saudáveis. O
conceito-chave para entender essa bagunça toda tem um nome um
tanto desajeitado: estampagem genômica (do inglês genomic
imprinting).
 O que é “estampado”, ou seja, leva uma espécie de
“carimbo” molecular, são os pedaços de DNA que todos carregamos
no núcleo de nossas células. Dá para pensar nesses carimbos como
uma espécie de certificado de procedência – materna ou paterna, já
que, como vimos, nosso material genético tem sua origem dividida
em meio a meio para cada genitor.
 Existem razões muito boas para acreditar que tal origem
mista é uma receita para o conflito. Afinal, tanto machos quanto
fêmeas “querem” (de forma quase sempre inconsciente, mesmo
entre seres humanos) aumentar ao máximo as chances de transmitir
seus genes para as futuras gerações. Só que cada lado da equação
está usando, para isso, uma estratégia fundamentalmente diferente
da do outro. Qualquer fêmea de mamíferos só consegue ter poucos
filhotes por gestação, e por isso investe seu tempo e energia em
cuidar bem deles dentro e fora do útero, para que todos tenham
boas chances de sobreviver. Já o macho é capaz de engravidar um
enorme número de fêmeas diferentes, se tiver sorte, mas não entra
com as energias de seu próprio organismo para garantir que a
filharada chegue à vida adulta. Aliás, é comum que não ajude nem
na criação dos bebês: nesse ponto, como em outros, a nossa
espécie é a exceção à regra.
 Ora, conforme as análises do funcionamento dos genes
começaram a se sofisticar, os biólogos moleculares começaram a
perceber um fenômeno esquisito. Uma proporção pequena (menos
de 1%), mas significativa dos genes de mamíferos parecia sofrer um
estranho “desligamento” seletivo: em alguns casos, era a versão
paterna de um trecho de DNA que era desativada; em outra, a
versão materna. Esse é o processo que ficou conhecido como
estampagem genômica. Os “carimbos” no DNA (na verdade
pequenas moléculas orgânicas, como o chamado grupo metil,
formado por um átomo de carbono acompanhado de alguns de
hidrogênio) ligam-se a determinado trecho de material genético num
dos cromossomos e impedem que a célula use aquela informação
como manual de instruções para fabricar proteínas. É como se o
carimbo levasse os seguintes dizeres: “Função materna do gene.
Não usar. Favor utilizar a versão paterna”.
 À primeira vista, o fato parecia simples burrice biológica.
Como vimos ao estudar o estranho caso dos bdeloides e a função
evolutiva do sexo, acredita-se que uma das vantagens de
possuirmos duas cópias de cada gene é parecida com a precaução
de guardar cópias extras de um arquivo ou documento importante.
Se o arquivo original for destruído (ou seja, se uma das cópias do
gene sofrer uma alteração que o impeça de funcionar direito), a
cópia que sobrou ainda pode dar conta do recado. Por que, afinal,
jogar fora logo de cara esse seguro de vida molecular?
 A coisa começa a soar menos maluca se imaginarmos,
mais uma vez, que os genes paternos e os genes maternos podem
ter “planos” muito diferentes para o pequeno ser que virá, seguindo
o exemplo dos interesses diferenciados dos indivíduos de cada
sexo. (Falamos de “planos” apenas no sentido de influências
biomoleculares inconscientes que, no futuro, aumentarão as
chances de que aquele tipo de gene se multiplique. É lógico que
pedaços de DNA não fazem nada de caso pensado – são meros
amontoados de carbono, hidrogênioe nitrogênio.) É bastante lógico
supor, por exemplo, que uma mãe grávida tem a necessidade de
contrabalançar a nutrição que dará a seus fetos com a própria
saúde e com suas chances futuras de ter mais filhos. Afinal,
engravidar de novo mais tarde é seu único caminho para espalhar
ainda mais seus genes. Papai, por outro lado, pode muito bem dizer
“eu não tenho nada com isso”. Seus interesses, nesse caso,
coincidem em grande parte com os do feto. Enquanto está tentando
inseminar outras fêmeas, ou mesmo que esteja só esperando a
próxima chance de gerar filhotes com sua parceira fixa, é importante
que seu filhão seja capaz de sugar o máximo possível de recursos
da mãe, de forma a ter boas chances de virar um adulto saudável e
fértil. Ou seja: nos casos de estampagem genômica, o esperado é
que os genes paternos “desligados” sejam os que induzem maior
retirada de nutrientes do organismo da grávida, enquanto os genes
maternos “desativados” correspondam a uma diminuição do envio
de recursos para os bebês. Isso, repito, é o esperado. Em tal
cenário, o zero a zero acaba deixando tudo mais ou menos em
equilíbrio. Será que ele se confirma na vida real?
 Por enquanto, tudo indica que sim. Um exemplo importante
tem a ver com a formação da placenta. Acontece que, ao longo da
gravidez, o transporte de nutrientes para o embrião não acontece só
graças à bondade e ao carinho da mamãe: a placenta do feto lança
projeções que invadem os tecidos da genitora e arrancam de lá os
recursos necessários. Acontece que uma das doenças mais comuns
ligadas a uma gestação, a pré-eclâmpsia (uma forma perigosa de
pressão alta), parece estar ligada a uma substância que os fetos
jogam na corrente sanguínea materna. Essa proteína impede que a
mãe conserte pequenos danos nos seus vasos sanguíneos. Com
isso, sua pressão arterial tende a aumentar, o que leva a aumentar a
quantidade de sangue que chega até o feto via placenta. Quem
cunhou o ditado caipira “bater na mãe por causa de mistura”
(“mistura” em caipirês quer dizer o prato principal da refeição)
parece ter profetizado essa estratégia chantagista dos bebês.
 Nesse caso em particular, a relação exata com a
estampagem genômica ainda precisa ser elucidada, mas ela já ficou
clara no caso de dois genes, o Igf2 e o Igf2r. Os nomes parecidos
não foram dados por acaso: na verdade, um pode ser visto como o
ataque e o outro, como o contra-ataque. Basta dizer que o Igf2
estimula o crescimento rápido dos fetos. Em geral, é a cópia do pai
que está “ligada” nos embriões. Se ela for desativada, filhotes de
camundongo nascem com 40% menos peso. Já o Igf2r funciona
como inibidor do Igf2. Nesse caso, ocorre o contrário: a cópia
paterna fica sempre desligada, para evitar filhotes muito pequenos.
Se a cópia materna for desativada, parece que os limites ao
crescimento fetal vão para o espaço, e os bebês-camundongos
nascem com 125% mais peso.
 Outros estudos confirmaram um duelo parecido entre dois
genes ligados ao desejo de amamentação dos filhotes muito
pequenos. E mais alguns trabalhos sugerem que também há uma
variação na severidade da estampagem genômica dependendo do
grau de monogamia da espécie: se o casal for fiel, terá seus filhos
sempre como uma unidade e, portanto, terá interesses genéticos
parecidos na gestação e na criação deles, o que levaria a menos
conflito ocasionado pela estampagem. Existem mesmo indícios de
que os problemas de saúde dos animais clonados – muitos nascem
com tamanho acima do normal ou matam a mãe de aluguel durante
a gravidez – decorreriam de erros de estampagem genômica. Não é
difícil entender o porquê. Em vez da junção entre óvulo e
espermatozoide que caracteriza a formação de qualquer embrião,
na clonagem o DNA de uma célula qualquer, já contendo todo o
material genético do futuro organismo, é enfiado à força (com
incentivos químicos e, às vezes, choques elétricos) num óvulo cujo
núcleo foi removido previamente. Sem a fecundação normal, o
padrão típico de ativação e desligamento dos genes maternos e
paternos não seria capaz de se instalar, e teríamos então fetos tão
"gulosos" que acabariam morrendo engasgados, por assim dizer,
sugando mais recursos maternos do que deveriam consumir para o
seu próprio bem.
 Em conjunto, essas descobertas traçam um retrato épico
de golpes e contragolpes, num combate sem fim pelo sucesso
reprodutivo e, em última instância, evolutivo. Definitivamente,
“guerra dos sexos” e “conflito de gerações” não foram inventados
pelo bicho homem.
 
Arco-íris
Como a homossexualidade pode ser consequência do sucesso
reprodutivo
 
A ideia pode ser deprimente ou estimulante, dependendo de como
você a encara. Mas nenhuma disposição de espírito, negativa ou
positiva, muda o fato inescapável de que, do ponto de vista
biológico, nossa individualidade é um estado temporário, para não
dizer ilusório. As pessoas gostam de imaginar que seus
descendentes, daqui a 200 anos ou 500 anos, vão carregar uma
fração significativa e reconhecível do que elas são hoje, mas nosso
método de reprodução – aquela coisa chata envolvendo sexo, sabe
– pressupõe uma divisão de DNA pela metade a cada geração. De
metade em metade, após seis gerações, a proporção de genes
legados por uma pessoa a qualquer de seus descendentes fica na
casa de 1%. É muito pouco. Os conquistadores da cepa de Gêngis
Khan, tão bem-sucedidos, como vimos, em legar seu cromossomo Y
a gerações e gerações de homens, talvez ficassem desanimados
com a futilidade do esforço: ao contrário do que dizia a sabedoria
popular de sua época, a prole numerosa confere uma forma
limitadíssima de imortalidade. (Não que os machos alfa fossem
parar de agir como garanhões por causa de tal fato; é o tipo da
coisa que tem benefícios mais, digamos, imediatos.) Pois bem: e o
que a nossa impermanência biológica tem a ver com o arco-íris do
título deste capítulo? Talvez muita coisa.
 O leitor mais perceptivo provavelmente já intuiu que estou
me referindo à homossexualidade, uma característica um bocado
comum dos vertebrados terrestres que, à primeira vista, parece ser
uma violação flagrante da seleção natural, a regra número um da
vida segundo a biologia evolutiva. Ninguém conseguiu refutar até
hoje a ideia básica de que os seres vivos sempre tendem a
maximizar suas oportunidades reprodutivas – ou, para ser menos
pedante, tendem a produzir o maior número possível de
descendentes viáveis, se todos os outros fatores forem iguais. Com
exceção de um ou outro celibatário por vocação, a lógica aqui é
implacável: os recursos do mundo não são infinitos, ninguém é
imortal, e os que não se dedicam com afinco a gerar prole viável
são, lenta e seguramente, eliminados da árvore da vida.
 Lógica implacável à parte, alguém pode me explicar porque
porções pequenas, mas significativas das populações de aves,
mamíferos e, claro, seres humanos preferem dedicar suas energias
sexuais, no todo ou em parte, a uma prática, digamos, “infrutífera”?
De um lado, é verdade que a presença da homossexualidade é
minoritária, ainda que persistente (em torno de 10% ou pouco
menos, de acordo com os dados mais confiáveis que temos sobre
populações humanas modernas). De outro, a proporção é grande o
suficiente para que ela tenha peso sobre a seleção natural. Imagine
um subgrupo da população de qualquer espécie que seja
exclusivamente heterossexual. Em tese, assumindo que a atração
pelo mesmo sexo tem um componente biológico, esse subgrupo
exclusivamente “espada” (uso a palavra por analogia com o inglês
straight, que é normalmente o antônimo de gay; nenhum juízo de
valor aí) deveria ter mais sucesso reprodutivo e, mais cedo ou mais
tarde, fazer com que a proporção dos homossexuais da população
como um todo decrescesse até sumir. Se existe uma coisa que
deveria ser altamente “herdável”, ou seja, sujeita a influências
genéticas e transmissível de geração em geração, deveria ser a
atração pelo sexo oposto; afinal, eis aí a característica por
excelência a ser favorecida pela seleção natural.Já sabemos, porém, que a eliminação progressiva do
componente homossexual da população não é o que acontece. Os
gays, ou ao menos o que classificaríamos como comportamento gay
pelos padrões humanos, simplesmente não desaparecem. É claro
que podemos propor explicações “culturais”, ou meramente
comportamentais, sem uma faceta genética, para elucidar isso. A
prática homossexual pode ser apenas “recreativa” entre animais
e/ou humanos, ou funcionar de tal forma que ela afeta a reprodução
de forma apenas marginal. Suponha, por exemplo, que todas as
sociedades do mundo teriam preconceito zero em relação a seus
homossexuais, desde que todos cumprissem a obrigação cívica de
ter ao menos um filho antes de se casar com um companheiro do
mesmo sexo. Fim do problema. (Meu exemplo favorito da vida real é
mais ou menos desse tipo: se o fato de homens fazerem sexo com
homens rotineiramente impedisse a produção de posteridade, as
duas linhagens reais de Esparta, mais famoso viveiro de pederastas
da Grécia Antiga, teriam durado 50 anos, e não 800 anos...)
 Não estou negando que esses fatores culturais e sociais
sejam importantes, ou até cruciais, em alguns casos. A seleção
natural, por poderosa que seja, não é a monarca absoluta que
algumas visões mais redutoras da evolução nos querem fazer crer.
Mas sempre estamos em solo mais seguro quando conseguimos
incorporá-la à compreensão de qualquer fenômeno do mundo vivo.
Um dado importante é que provavelmente há tanto um componente
genético quanto outro ambiental por trás do comportamento
homossexual. Se você tem um irmão gêmeo idêntico (para todos os
efeitos, seu clone, com DNA 100% igual ao seu), suas chances de
também ser homossexual são de 50% - bem mais do que o
esperado pelo acaso, mas metade do que “deveria” ser caso a
atração pelo mesmo sexo fosse uma característica determinada
exclusivamente pelos genes. Indícios neurológicos e
comportamentais também apontam um componente forte da
biologia na definição da homossexualidade. Imagens funcionais do
cérebro de homens e mulheres homossexuais sugerem que ele
“imita” a anatomia e a fisiologia do cérebro do sexo oposto,
ativando-se da mesma maneira que os tecidos neuronais de uma
mulher ou homem heterossexual (respectivamente) diante de
estímulos que despertam a libido.
 Mesmo assim, essas conclusões um tanto genéricas são
insatisfatórias por não irem à raiz da questão. Outros modelos,
como o do chamado ambiente uterino – de forma muito resumida,
os homossexuais sofreriam uma ação diferenciada de hormônios
sexuais ainda no útero da mãe, desencadeando mudanças que
conduzem à sua orientação singular – continuam a não explicar
muito bem a estranha estabilidade do comportamento sexual em
termos populacionais. Quebrar esse impasse é o objetivo do
trabalho intrigante, embora ainda preliminar, do italiano Andrea
Camperio Ciani, da Universidade de Pádua. A hipótese de trabalho
de Ciani é simples: se a seleção natural não podou a
homossexualidade, pode ser que os componentes genéticos por
trás dela tragam algum tipo de vantagem reprodutiva, por mais
paradoxal que isso soe.
 E é aqui que voltamos à ideia apresentada no começo: a
vantagem não precisa ser um favorecimento da reprodução do
próprio homossexual (aliás, por definição, se ele for exclusivamente
homossexual, não vai se reproduzir). Ela pode representar apenas
um favorecimento dos genes ligados à atração gay, cujas cópias
estariam presentes não apenas no DNA dos homossexuais, mas
também no de seus parentes próximos que são héteros. Como, em
última instância, são os genes que acabam funcionando como
unidade de “longo prazo” da seleção natural e da evolução, eles é
que ganham ou perdem. A existência temporária de homossexuais
que não conseguem se reproduzir seria, desse ponto de vista,
apenas um efeito colateral de uma possível estratégia reprodutiva
bem-sucedida de longo prazo.
 OK, talvez pareça uma maluquice. Mas há maneiras de
testar isso, e foi o que Ciani e seus colegas fizeram. Quer um
exemplo? As mães de homossexuais masculinos, e as tias
maternas (mas não as tias paternas) são mais férteis que a média
das mulheres. Um estudo recente, sob a batuta de Ciani e
companhia, mostrou que essencialmente a mesma afirmação vale
para homens bissexuais. Os pesquisadores chegaram a criar uma
simulação de computador, usando genes teóricos espalhados pelo
DNA humano, para tentar estimar que fórmula genética poderia dar
origem a essa situação paradoxal. Por enquanto, o mais provável
parece ser a influência de dois ou mais genes para a manifestação
da homossexualidade – e um deles estaria localizado no
cromossomo X, precisamente a fatia de nosso DNA que todos nós,
homens, herdamos de nossas mães. A contribuição materna é
líquida e certa no caso do X porque todos os humanos do sexo
masculino possuem um cromossomo X e Y, como talvez você se
lembre; um homem que herdasse outro X do pai seria... bem, uma
mulher, não um homem.
 É claro que o impacto preciso de genes teóricos é um
bocado difícil de avaliar. Dadas as evidências disponíveis, porém, os
cientistas italianos sugerem que o(s) gene(s) gay(s) não promovem
diretamente a fertilidade, mas o que chamam de
hiperheterossexualidade - ou seja, as mães (e tias) de homens
homossexuais sentir-se-iam mais atraídas pelo sexo oposto do que
a média das mulheres, e, portanto, tenderiam a ter mais filhos. A
contrapartida irônica dessa hiperheterossexualidade num corpo
feminino seria precisamente a homossexualidade, ou a
bissexualidade, num corpo masculino. De novo, o importante aqui é
considerar que genes são entidades evolutivas de longa duração,
que viajam por corpos, sexos e gerações de forma um bocado
fluida. Desde que o resultado líquido de sua ação seja multiplicador,
aumentando as chances de que mais cópias deles circulem pelo
material genético de uma espécie, os genes podem se dar ao luxo
de perder uma batalha (a não-reprodução de gays convictos) para
ganhar a guerra (os muitos filhos e filhas que as mães, tias, primas
e sobrinhas deles trarão ao mundo). É difícil achar uma fresta nessa
armadura lógica.
 Nem é preciso dizer (mas digo assim mesmo) que é muito,
muito cedo mesmo para declarar que se trata de um caso
encerrado, quanto mais para afirmar o que tudo isso significa. Mas o
fato de que a existência de homossexuais masculinos possa ter uma
relação estreita com o sucesso reprodutivo – que, para todos os
efeitos, eles não possam ser considerados “infrutíferos”, mas sejam,
ao contrário, o resultado do aumento líquido da fertilidade – deve
dar o que pensar a muita gente.
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
Mentes
Da inteligência humana e de outras inteligências
 
Mania de personificação
Como surgiu nossa tendência a tratar objetos como gente
 
A vida a dois, principalmente quando ela está começando, tem
umas coisas engraçadas. Numa noite gelada de agosto, por
exemplo, cheguei tarde do trabalho e me dirigi ao nosso quarto de
casal. Ainda no escuro, cocei a cabeça ao ver uma figura pequenina
embrulhada num cobertor idem, em cima da cama. Como a gente
(ainda) não tem filhos, aquilo era no mínimo esquisito. Apertei o
interruptor e desfiz o mistério: tratava-se de ninguém menos que o
famoso Garfield, em versão pelúcia. Para explicar o fato, minha
esposa saiu-se com esta: “É que se eu não cobri-lo ele vai sentir frio
a noite inteira”.
 Havia mais por trás desse enigma. Descobri que, noite
após noite, minha consorte repetia o ritual com todos os seus
bichinhos de pelúcia (que incluem também um golfinho e um
orangotango de Bornéu): embrulhava os ditos cujos em um cobertor
e lhes dava um beijo de boa-noite. Como é que se explica uma
coisa dessas? Uma mulher adulta, afinal de contas, deveria saber
que pedaços de pano e plástico não sentem frio nem dormem
melhor depois de ganhar um beijinho.
 Para ser justo, a minha surpresa só pode ter sido o
resultado de uma cegueira temporária. Poder-se-ia muito bem
argumentar que comportamentos

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