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UNIVERSIDADE FEDERAL DO MARANHÃO - UFMA CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS - CCH DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA – DEHIS FÁBIO DE MELO DA SILVA O ESTADO ABSOLUTISTA E LUÍS XIV NOS LIVROS DIDÁTICOS DE HISTÓRIA: Uma análise dos livros didáticos utilizados entre 2012 e 2018 nas turmas do 1º ano do Ensino Médio do COLUN, em São Luís (MA) SÃO LUÍS 2018 FÁBIO DE MELO DA SILVA O ESTADO ABSOLUTISTA E LUÍS XIV NOS LIVROS DIDÁTICOS DE HISTÓRIA: Uma análise dos livros didáticos utilizados entre 2012 e 2018 nas turmas do 1º ano do Ensino Médio do COLUN, em São Luís (MA) Monografia apresentada ao Curso de História da Universidade Federal do Maranhão como pré- requisito para obtenção do grau de Licenciatura em História. Orientadora: Profa. Dra. Maria Izabel Barboza de Morais Oliveira. SÃO LUÍS 2018 FÁBIO DE MELO DA SILVA O ESTADO ABSOLUTISTA E LUÍS XIV NOS LIVROS DIDÁTICOS DE HISTÓRIA: Uma análise dos livros didáticos utilizados entre 2012 e 2018 nas turmas do 1º ano do Ensino Médio do COLUN, em São Luís (MA) Monografia apresentada ao Curso de História da Universidade Federal do Maranhão como pré- requisito para obtenção do grau de Licenciatura em História. Orientadora: Profa. Dra. Maria Izabel Barboza de Morais Oliveira. Aprovada em _____/_____/2018 BANCA EXAMINADORA _________________________________________________________ Profa. Dra. Maria Izabel Barboza de Morais Oliveira – DEHIS/UFMA (Orientadora) ___________________________________________ Prof. Dr. Alírio Cardoso – DEHIS/UFMA _____________________________________________ Prof. Ms. Nivaldo Germano dos Santos – DEHIS/UFMA AGRADECIMENTOS Há tantas pessoas e instituições a agradecer que espero não cometer nenhuma injustiça. Em primeiro lugar, agradeço a Deus Pai, Filho e Espírito Santo por me guiar até aqui de forma poderosa, livrando-me de situações que poderiam ter interrompido minha vida. Agradeço a minha família pelo cuidado, amor e confiança que investiram em mim; em especial, meu pai, Pedro Francisco da Silva, por me colocar no mundo e ter sido meu herói na tenra idade; aos meus irmãos, Fernando, Fernanda, Franklin, Pâmela, Luana, Laina e Edvys pelo amor, amizade, companheirismo e respeito que, na maioria das vezes, sintetizou nossa convivência; a meu tio Alex, já falecido, que foi um segundo pai para mim, pois nos momentos de enfermidade e necessidades esteve sempre ao nosso lado. Sua ausência é motivo de lágrimas. Agradeço ao meu avô materno, Joarês Enedino de Melo, pelo incentivo e valor que sempre me deu e à Sr.ª Ivanilde, por abrigar a mim e ao meu irmão no momento mais crítico de nossas vidas. Agradeço muito mais a minha mãe, Eunice Oliveira de Melo, por ser meu alicerce de vida; sem ela e Deus, nada do que sou existiria. Mesmo com todas as dificuldades que passamos, ela sempre nos ensinou a ver na educação a oportunidade de crescimento e a chave para superação da pobreza material e intelectual. É preciso também deixar o meu muito obrigado aos meus professores e colegas de classe do Ensino Básico, bem como as instituições de ensino que cuidaram da minha formação. Agradeço a escola José Burnet, escola onde iniciei e concluí o Ensino Fundamental menor. À Lídia Pereira Alves (tia Lídia), minha professora do primário, pelo carinho, cuidado e confiança que sempre colocou em mim e por me acudir em tantas necessidades; à professora Hosana, pelo conhecimento que me proporcionou e pelo amor, carinho e rigor com que me tratou. Agradeço aos meus amigos, Cleiton Costa e Claudjany Costa pelos momentos agradáveis que vivemos no José Burnet. Agradeço também à escola Germano Batista, na qual tive uma breve passagem, cursando a 5ª série do Ensino Fundamental. Agradeço à escola Tarquínio Lopes Filho, onde pude concluir o Ensino Fundamental e Médio. Nesta Instituição preciso agradecer aos meus amigos Deyvisson Felipe, Eliel Botão, Joina Cintia, e Rayssa Costa, pela parceria, amizade e respeito. A Jefferson Botão, meu amigo, irmão e professor, pela amizade sólida que temos há anos. Agradeço também à professora Iran, Célia, Edileusa, Concita, Jorge e, em especial, a professora Maria José, minha professora de História da 5ª série do Ensino Fundamental. Certa vez, quando apresentava um trabalho de História em sua aula, ela disse que eu seria professor de História. Considero estas palavras como profecia. Quero agradecer também ao Instituto Federal do Maranhão – IFMA- Campus Monte Castelo, onde pude cursar o técnico em Metalurgia e Materiais, curso que não concluí por entender que não era o caminho profissional que desejava para a vida. Todavia, foi lá que pude conhecer amigos maravilhosos que faziam valer à pena, acordar às quatro da manhã para enfrentar aquelas salas congelantes e aquelas aulas nada empolgantes - para quem não tinha vocação para aulas de Química, Física e Matemática. Entre eles, Lisiane Fernanda, pela amizade e confiança. Agradeço também à Universidade Federal do Maranhão, por me capacitar e me dar a oportunidade de graduar em Licenciatura em História. À CAPES e ao Programa de Bolsas Institucional de Iniciação à Docência (PIBID), por ter “financiado” meus livros, xérox e a passagem paga nos coletivos. Embora a UFMA seja pública, os cursos de graduação geram gastos que, para alguém sem lastro financeiro como eu, atrapalham a continuidade no curso. Agradeço também aos professores da graduação, em especial, a Maria Izabel, que acompanhou praticamente todo meu percurso no curso de História, pois foi professora da disciplina de Moderna II, coordenadora do PIBID, Coordenadora de curso e, por último, se tornou minha orientadora. A Raimundo Inácio, professor de História do COLUN, importantíssimo na hora de escolher os livros didáticos para esta pesquisa. À professora Regina Helena pelo rigor e simpatia com que sempre me tratou. A ela também agradeço pelas aulas sempre frutíferas, indicações de leituras e pelo incentivo durante a produção do Projeto de Pesquisa, atividade avaliativa e determinante para obter a aprovação na disciplina de Métodos I, e no qual tive muita dificuldade em realizar. Agraço aos professores Marcelo Araújo, Glória e Lindalva M. Maciel, Josenildo, Marcos Baccega, Alírio Cardoso e João Batista Bittencourt, pelas excelentes aulas. Não poderia deixar de agradecer, também, ao professor Flávio Soares, pelas melhores aulas que já tive na vida. Ele foi determinante para que eu tivesse a certeza de que era essa minha vocação. Por fim, e não menos importante, quero deixar meu obrigado à Turma de História 2012.1, em especial a Paula Raposo, Priscila Aguiar, Edson Luciano, Carlos Magno, Marcelo Ribeiro, Evandro Jr., Rodrigo Cutrim pela amizade, parceria e pelos momentos maravilhosos que vivemos na graduação. À Hemelita, Harrisson Douglas, Luís Lima, Antoniano, Ruanita e Everaldo pela bela amizade que construímos e, finalmente, a minha amiga, namorada e companheira de estudos, Sâmia Cristina, que nos últimos anos foi meu aconchego e porto seguro. A ela todo meu amor. RESUMO A presente pesquisa visa analisar de forma comparativa os livros didáticos utilizados entre 2012 e 2018 nas turmas do 1º ano do Ensino Médio do Colégio Universitário – COLUN – localizado na Universidade Federal do Maranhão – Campus Bacanga, São Luís – MA. Objetivamos por meio da análise compreender de que forma estes manuais escolares abordam o conteúdo referende ao Estado Absolutista e Luís XIV, rei francês que governou a França a partir da metade do século XVII até o início do século XVIII. A partir de conceitos teóricos utilizados por Mikhail Bakhtin para analisar o processo de interação verbal, bem como a natureza social dos discursos,mostraremos de que forma o livro didático enquanto instrumento de interação verbal se transforma em produto ideológico, uma vez que, por meio de seu conteúdo propaga discursos, valores, concepções e olhares, sobretudo, buscando tornar hegemônicas certas leituras do passado. Palavras-chave: Livros didáticos de História; Monarquias Absolutistas; Luís XIV; COLUN; São Luís (MA) RÉSUMÉ La présente étude vise à analyser de manière comparative les manuels utilisés entre 2012 et 2018 dans les classes de la première année du lycée de COLUN - situé à l'Université Fédérale de Maranhão - Campus Bacanga, São Luís - MA. Nous visons, au moyen de l'analyse, à comprendre comment ces manuels abordent les contenus se référant à l'État absolutiste et à Louis XIV, roi français qui a dirigé la France du milieu du XVIIe siècle jusqu'au début du XVIIIe siècle. À partir de concepts théoriques utilisés par Mikhail Bakhtin pour analyser le processus d'interaction verbale, ainsi que la nature sociale des discours, nous montrerons comment le livre didactique comme instrument d'interaction verbale devient un produit idéologique, puisque, à travers son contenu propage des discours, des valeurs, des conceptions et des regards, cherchant surtout à rendre hégémoniques certaines lectures du passé. Mots-clés: Manuels d'Histoire; Monarchies absolues; Louis XIV; COLUN; São Luís (MA) SUMÁRIO Introdução................................................................................................................................09 Capítulo 1: O livro didático em debate: as trajetórias de pesquisas acerca do papel do livro didático em sala de aula..................................................................................................14 1.1 Variedade de temas e abordagens: a necessidade de novos olhares....................................16 1.2 Entre vilão e mocinho: as faces ideológicas dos livros didáticos........................................22 1.3 O livro didático convertido em signo ideológico: sua capacidade de distorção da realidade..............................................................................................................................28 Capítulo 2: Formação e dinâmica dos Estados Monárquicos: reproduções e distorções nos manuais didáticos de História.................................................................................................34 2.1 Aparatos simbólicos e negociação entre centro e localidades: novos olhares acerca do Estado monárquico...................................................................................................................40 2.2 O Absolutismo monárquico nos livros didáticos: a construção de imagens distorcidas sobre o tema.......................................................................................................................................49 2.3 “O Estado Sou Eu”: Luís XIV, a máxima expressão do absolutismo.................................63 2.4 Os Estados Monárquicos modernos nos manuais didáticos: hegemonia de abordagem que legitima o Estado Liberal contemporâneo.................................................................................68 Considerações finais................................................................................................................77 Referências...............................................................................................................................79 Anexos......................................................................................................................................82 9 Introdução A elaboração dessa pesquisa se deve a problemáticas que há muito tempo envolvem os manuais didáticos enquanto instrumento pedagógico de transposição didática dos conteúdos de certas disciplinas escolares. Pesquisadores de várias áreas, inclusive do campo historiográfico, vêm discutindo o papel desse objeto na escola, suas funcionalidades em sala de aula e, no caso da História, a sua relação com o ensino de História; ou seja, analisam o livro didático enquanto instrumento de propagação de narrativas históricas construídas em ambientes acadêmicos, fruto de teorias e metodologias específicas do lugar de produção, bem como o resultado interativo entre esses saberes acadêmicos e os leitores que entram em contato com esse conhecimento por meio do livro didático. Vários caminhos analíticos podem ser trilhados por aqueles que têm o livro didático como objeto de pesquisa, como, por exemplo, as funções que o livro tem em sala de aula. Análises sobre a produção, circulação e consumo desse objeto também podem ser caminhos trilhados, principalmente por aqueles que desejam compreender a materialidade das relações sociais em que o livro está inserido, como Kazumi Munakata fez e sugeriu em seu artigo O livro didático: alguns temas de pesquisa (2013). Nossa pesquisa caminhará por um viés que há algum tempo já vem sendo trabalhado por pesquisadores da área: as abordagens que os livros didáticos fazem de certos conteúdos historiográficos. Nosso intuito é percebê-los enquanto produtos ideológicos capazes de tornar hegemônicas certas leituras históricas, fruto de olhares específicos de um evento histórico, por exemplo. Esses conteúdos, inclusive, podem conter distorções da realidade, produzir concepções estereotipadas, olhares positivos ou negativos sobre personagens, eventos e períodos históricos como já mostraram Renata Figueiredo Moraes (2007), Michele Borges Martins e Julia Silveira Matos (2013), entre outros. Nosso olhar se volta para a compreensão das abordagens realizadas pelos manuais didáticos sobre os Estados Monárquicos europeus entre os séculos XVI e XVII, vistos como absolutistas e Luís XIV, rei francês que governou a França entre a metade do século XVII e início do século XVIII. Este é considerado pela tradição historiográfica como o principal representante dessa estrutura política, o que nos levou a escolhê-lo para análise. Esta pesquisa justifica-se por contribuir no aumento de pesquisas que analisem tal temática específica, uma vez que apenas dois trabalhos que abordavam o Estado Absolutista 10 foram encontrados. O primeiro de autoria de Marcello José Gomes Loureiro sob o título Garantindo o bom governo do rei: a construção de bases teóricas e simbó1icas para uma governabilidade eficaz no Estado Moderno - uma proposta de oficina em sala de aula (2007), por meio do qual o referido autor buscou se distanciar das abordagens já bastante comuns em manuais didáticos que consistem em explorar o absolutismo monárquico como um mero instrumento de poder de certos grupos, para discutir o que justificava teoricamente o poder do monarca, bem como de que forma as representações em torno da figura do monarca influenciavam na manutenção dessa estrutura política. O outro trabalho encontrado, de autoria de Débora Fernandes sob o título Literacia histórica nos livros didáticos: culturas históricas do absolutismo (2014), buscou analisar o manual didático como um potencial transmissor e legitimador de certas concepções históricas, chamadas por ela de “Cultura histórica”, termo cunhado por John Rüsen para mostrar que “[...] o modo como a história inscrita nas consciências e nas vidas dos indivíduos, é inscrita segundo procedimentos de controle crítico1. A partir disso, Fernandes buscou perceber como o absolutismo monárquico, “[...] dirigido por diferentes culturas históricas, pode ser narrado de diferentes formas, ao mesmo tempo em que revela a literacia histórica de seus autores e contextos produtivos2. Levando em conta que o manual didático além de instrumento didático pedagógico é também um instrumento ideológico, umavez que transmite valores, posicionamentos políticos, olhares de determinados grupos, iremos analisá-lo sob a ótica bakhtiniana, pensando-o como um produto de consumo que toma a forma de um signo ideológico, uma vez que em sala de aula ele mascara sua função: de instrumento auxiliar na transposição didática de conteúdos historiográficos produzidos por correntes historiográficas, passa a se configurar como discurso oficializado da História. Nesse sentido, o livro enquanto produto ideológico é instrumento de interação verbal, capaz de transmitir enunciados que fazem parte de uma corrente discursiva maior a qual responde. Como mostra Mikhail Bakhtin: Toda inscrição prolonga aquelas que a precederam, trava uma polêmica com elas, conta com as suas reações ativas da compreensão, antecipa-as. Cada inscrição constitui uma parte inalienável da ciência ou da literatura ou da vida política. Uma inscrição como toda enunciação monológica, é produzida para ser compreendida, é orientada para uma leitura no contexto da vida científica 1 MARTINS e MATOS, Ensino de história Moderna no livro didático: representações de gênero. ANPUH. XXVII Simpósio Nacional de História: Conhecimento histórico e diálogo social. Natal- RN, 22 a 26 de julho de 2013, p.04. 2 Ibidem, p. 124-5. 11 ou da realidade literária do momento, isto é, no contexto do processo ideológico do qual ela é parte integrante3. Esta pesquisa não seria possível se não fosse o Programa Institucional de Iniciação à Docência (PIBID), do qual fui bolsista entre os anos de 2013 e 2017. Este programa me possibilitou, antes mesmo do estágio obrigatório, adquirir experiência em sala de aula, em turmas do Ensino Fundamental e Médio de escolas públicas da Grande São Luís. Por meio do subprojeto As novas linguagens, fontes e tecnologias para o ensino de História – projeto do curso de História, coordenado pela Profa. Maria Izabel Barboza de Morais Oliveira - tivemos a oportunidade de inserir novas ferramentas para o aprendizado e construção do conhecimento histórico, como, por exemplo, o uso de imagens, músicas, vídeos, poesias, textos jornalísticos, peças teatrais etc., na tentativa de dinamizar mais as aulas e torná-las mais prazerosas. Ao mesmo tempo, foi possível perceber a realidade escolar e suas problemáticas, como, por exemplo, o uso do livro didático como único material de apoio pedagógico durante a aula, situação que víamos se repetir cotidianamente nas escolas participantes do projeto, com exceção do COLUN. Nesta instituição, pelo menos nas aulas do professor de História, Raimundo Inácio – que nos supervisionava e nos inseria em sala – havia espaço para outros recursos didáticos. O próprio professor promovia isto, buscando levar os alunos para além do que estava nos manuais didáticos. Mesmo assim, era perceptível que os alunos tinham no livro didático o referencial de conhecimento e por onde baseavam seus discursos e suas atividades. Com exceção do COLUN, em todas as outras escolas onde estivemos era visível o extremo protagonismo do livro didático nas aulas. Mesmo no mundo bombardeado de informações que chegam pela TV e pela internet e, mesmo existindo uma série de materiais que podem ser utilizados na sala de aula como instrumento de auxílio pedagógico, constatamos o protagonismo do manual didático de História nas salas de aula. Ele era a base do planejamento, das aulas e de todo conhecimento produzido em sala, sendo seu discurso praticamente uma verdade inquestionável. Percebendo isso, veio a inquietação de nossa parte em analisar os conteúdos desses manuais escolares; ver até que ponto seu uso era salutar, como também, analisar de que forma ele tornava hegemônica certas leituras do passado, que muitas vezes estavam estruturadas em estereótipos e equívocos. Assim, a partir da seleção de quatro obras didáticas utilizadas entre 2012 e 2018 nas turmas do 1º ano do Ensino Médio do Colégio Universitário, no Campus-Bacanga, na cidade 3 BAKHTIN, Mikhail. Marxismo e Filosofia da Linguagem. – 12ª edição – HUCITEC, 2006, p. 99. 12 de São Luís (MA), analisaremos de forma comparativa as abordagens que tais obras fazem do Absolutismo Monárquico e Luís XIV, buscando perceber que imagens estes livros têm pintado acerca da temática, à que correntes discursivas os livros didáticos têm respondido, se essas correntes são hegemônicas dentro desses manuais didáticos, como essas narrativas são construídas e de que forma essas correntes discursivas têm forjado o tema, a partir do intermédio dos manuais escolares. No primeiro capítulo, procuramos apresentar a historicidade e trajetória de pesquisas que tinham o livro didático enquanto objeto de análise, bem como o contexto e as problemáticas dessas pesquisas, apontando para o aumento significativo delas entre as décadas de 1980, 1990 e 2000. Buscamos no primeiro tópico desse capítulo mostrar que embora o número de pesquisas sobre o livro didático estivesse aumentado, ainda era pequena a variação temática, resumida à denúncia do caráter ideológico dos manuais escolares. Apresentamos, todavia, o surgimento de novos trabalhos, embasados em novos teóricos que foram responsáveis pela diversificação de novas pesquisas e novos olhares sobre o livro didático Neste tópico, apresentamos nossa temática, bem como outros trabalhos que caminharam pelo mesmo viés e no qual faríamos um diálogo. No segundo tópico, chamamos a atenção para as discussões a respeito da face ideológica dos livros didáticos, argumentando em prol da legitimidade das pesquisas que ainda denunciam o caráter ideológico dos manuais didáticos, defendendo nossa posição em se manter por este viés. No terceiro tópico, passamos a analisar a natureza do manual didático. A partir dos conceitos teóricos de Bakhtin sobre a natureza social do discurso e do processo de interação verbal, passamos a analisar o livro didático enquanto instrumento de interação discursiva, sendo portanto produto ideológico, já que por meio de seus enunciados propaga valores, concepções, visões de mundo e leituras do passado. No segundo capítulo, procuramos apresentar os resultados de nossa análise sobre as abordagens que os manuais didáticos selecionados fazem sobre o Estado Absolutista e Luís XIV. Introduzimos o assunto apresentando, de maneira geral, como a historiografia tradicional construiu seus enunciados acerca da formação e consolidação dos Estados modernos e do papel dos monarcas nesse sistema político. Em contramão ao que é defendido pela historiografia tradicional, no primeiro tópico apresentamos novas pesquisas sobre o assunto, mostrando as revisões que as novas correntes de análises fizeram sobre o tema, bem como as críticas e refutações das teses tradicionais que se cristalizaram dentro da historiografia. No segundo e terceiro tópicos fizemos uma descrição 13 do conteúdo dos manuais didáticos acerca dos Estados Monárquicos modernos e de Luís XIV, mostrando como os livros didáticos têm se posicionado em meio a estas correntes discursivas e constatando a influência hegemônica da historiografia tradicional nos enunciados dos manuais didáticos. O último tópico visa mostrar como a reprodução hegemônica das teses tradicionais sobre o Estado Moderno tem um papel ideológico claro, denunciando o caráter nada inocente desses manuais escolares e de seus enunciados. 14 CAPÍTULO 1: O livro didático em debate: as trajetórias de pesquisas acerca do papel do livro didático em sala de aula Esta pesquisa é fruto de curiosidades que há tempo vêm incomodando pesquisadores que estudam os manuais didáticos: o papel do livro didático na escola, sua importância na sala de aula e sua relação com o ensinode História. A “natureza”, os conteúdos, as abordagens, usos e funções dos manuais didáticos, sua relação com políticas educacionais e com o mercado de produção e consumo vêm sendo analisados com afinco por vários estudiosos de vários campos educacionais, incluindo a historiografia. O objetivo dessas análises é, entre outras coisas, entender qual a importância desse objeto para a educação escolar, quais fenômenos ele tem desencadeado e quais os resultados disso para a formação dos estudantes e professores que entram em contato com este material. Essas preocupações com o livro didático foram evidenciadas por autores como Kazumi Munakata, Júlia Silveira Matos, Circe Maria Fernandes Bittencourt, entre outros. Bittencourt, por exemplo, em seu artigo Produção didática de história: trajetórias de pesquisas (2011), mostra as pesquisas acerca do conteúdo do livro didático de História, tanto no âmbito internacional quanto no âmbito nacional, por instituições e por pesquisadores. Neste artigo, a autora relata que instituições internacionais passaram a se preocupar com os conteúdos dos manuais de História a partir do término da Segunda Guerra Mundial. Instituições internacionais, como a UNESCO, empenhavam-se com o objetivo de “[...] favorecer mudanças nas produções escolares de diferentes países, sobretudo daqueles que haviam participado do conflito internacional”4. A pretensão dessas instituições, segundo a autora, era [...] auxiliar nas transformações das relações internacionais fundamentadas, até então, na concepção da guerra como motor da história, para uma tendência de promoção de paz, incentivando, nesta perspectiva, a divulgação de exemplos históricos de soluções dos conflitos por meio de acordos e negociações5. Para alcançar esses objetivos, essas instituições passaram a divulgar estudos críticos acerca dos conteúdos escolares nos quais, segundo a autora, “[...] eram visíveis preconceitos, 4 BITTENCOURT, Maria Circe. Produção didática de história: trajetórias de pesquisas. Revista de História, São Paulo, n.164, jan/jun. 2011, p. 489. 5 Ibidem, p. 489. 15 visões estereotipadas de grupos e populações”6. Os estudos, segundo ela, procuravam evitar que os manuais didáticos e seus conteúdos despertassem a hostilidade entre os povos7. O interesse pelo livro didático como objeto de pesquisa por parte de universidades e especialistas se darão por volta das décadas de 1970 e 1980. A partir das décadas seguintes, as análises sofrerão com mudanças de enfoque, o que possibilitará “[...] perceber divergências entre os pesquisadores quanto a responsabilidade em relação ao sucesso ou fracasso escolar”8, como mostrou Bittencourt. No Brasil houve um crescimento nas pesquisas acadêmicas sobre o livro didático em programas de pós-graduação na década de 1980. Esses programas produziam diversas análises desse material em diversas áreas e disciplinas. A autora supracitada destaca um catálogo analítico publicado pela Unicamp, intitulado O que sabemos sobre o livro didático, que trouxe referências acerca de teses e dissertações que abordavam o assunto, além de indicações sobre trabalhos publicados à época. Bittencourt afirmou que nesse catálogo estavam “[...] as primeiras referências de um conjunto de pesquisas sobre os livros didáticos de história (LDH), assim como as publicações e indicações das participações em eventos”9. Munakata também mostrou esse crescimento nas pesquisas relacionadas ao livro didático na década de 1990. De acordo com ele, após a defesa da tese de Bittencourt, em 1993, houve um aumento expressivo dos trabalhos sobre o tema, como mostra os dados levantados pelo autor: Daquela época em diante, porém, o número das pesquisas sobre essa modalidade de material escolar não tem parado de crescer: 22 títulos em 1993 e 1995; 29 em 1996; 26 em 1997; 63 em 1998; 79 em 1999; e 46 em 2000. O expressivo número referente a 1999 pode ser atribuído à realização, naquele ano, na Universidade do Minho (Portugal), do I Encontro Internacional sobre Manuais Escolares [...]10. Munakata atribui esse aumento à organização de eventos específicos sobre o tema, às sessões sobre o tema em grandes eventos de outras áreas e, também, a “Centros, núcleos e projetos de pesquisa sobre o tema [que] também foram se constituindo nos programas de pós- graduação das diferentes áreas (educação, letras, história, matemática, etc.)”11. Para o autor, 6 BITTENCOURT, 2011, op. Cit., p.489. 7 Ibidem, p. 489. 8 Ibidem, p. 489-490. 9 Ibidem, p. 490. 10 MUNAKATA, Kazumi. O livro didático: alguns temas de pesquisas. Rev. bras. hist. educ., Campinas-SP, v. 12, n. 3 (30), p. 179-197, set./dez. 2012, p. 181. 11 Ibidem, p. 181. 16 isso resultou em um aumento significativo no número de trabalhos produzidos nos anos seguintes, principalmente no início do terceiro milênio: “o resultado disso é a surpreendente cifra de cerca de 800 trabalhos sobre o livro didático produzidos de 2001 a 2011”12. O aumento na produção de trabalhos sobre o livro didático entre a última década do século XX e início do século XXI também é evidenciado por Bittencourt, que também expõem motivos semelhantes aos que Munakata enumerou: O crescimento de pesquisas sobre o livro didático de História acentuou-se na última década, considerando-se dois aspectos. Um deles está associado à atuação de grupos organizados em projetos financiados, como o caso do Projeto Livres com participantes de várias instituições (USP, PUCSP, UFMG/Ceale, PUCMG, UFF, UFPB, Nudom do Colégio Pedro II) cabendo destacar, neste caso, que as pesquisas incluem a produção didática de outras disciplinas e o Projeto Culturas políticas e usos do passado - Memória, historiografia e ensino de História, do qual fazem parte grupos de diversas universidades do Rio de Janeiro que, dentre outros objetivos, têm promovido encontros e seminários com importantes contribuições sobre o atual estágio das investigações sobre o LDH. O levantamento das publicações mostra que parte significativa delas resulta de projetos, como o livro A escrita da história escolar - memória e historiografia cujos artigos são provenientes de seminários organizados no âmbito do referido Projeto Culturas políticas e usos do passado - Memória, historiografia e ensino de História, sediado no Rio de Janeiro. Um outro aspecto a ser considerado quanto ao crescimento das pesquisas pode ser explicado pela disseminação de cursos de pós-graduação em várias instituições do país, incluindo as particulares; percebe-se que, em tais instituições, o LDH torna-se objeto de estudos sob diversas perspectivas e abordagens13. Assim, notamos que da década de 1980 em diante as produções que tinham o livro didático de História como objeto de pesquisa passaram por um aumento expressivo, o que não significava, todavia, que houvesse uma variedade significativa de temas e abordagens. Essa variedade, como veremos, se dará apenas na passagem do século XX para o XXI. 1.1 Variedade de temas e abordagens: a necessidade de novos olhares Mesmo com o crescimento de trabalhos que se voltavam para analisar os manuais didáticos ainda eram poucas as publicações e a variação temática desses trabalhos entre as décadas de 1970, 1980 e 1990. De acordo com Kazumi Munakata, até 1993, período em que Circe Bittencourt defendeu sua tese sobre o livro didático, Livro didático e conhecimento 12 MUNAKATA, 2012, op. cit., p. 181. 13 BITTENCOURT, 2011, op. cit., p. 494. 17 histórico: uma história do saber escolar, as publicações que analisavam esse material não ultrapassavam cinco dezenas e pequena também era a variedade de abordagens: “[...] os trabalhos acadêmicos brasileiros sobre o tema, publicados nos anos 1970e 1980, não passavam de quase 50 títulos. Destes, uma parcela significativa destinava-se a condenar a ideologia (burguesa) subjacente aos livros utilizados na escola [...]”14. Essa pouca variedade nas abordagens é percebida também por Bittencourt. A autora afirma que, entre as décadas de 1980 e 1990, as pesquisas objetivam denunciar o caráter ideológico dos manuais didáticos: Em uma primeira fase das análise, a tendência dos estudos pautava-se na concepção de ideologia em uma vertente que possibilitava a identificação de uma falsa ideologia – a burguesa – que se impunha nos meios de comunicação, das formas mais variadas, dentre eles a produção didática15. A pesquisadora também chama atenção a estudos em outras áreas da educação com tendências semelhantes e inspiradas em Althusser e Establet, que dissertavam sobre o papel da escola no mundo capitalista. A esse respeito, Bittencourt mostra o contexto e as discussões que estavam em voga e que influenciaram essas tendências: Muitos dos que se dedicavam análises sobre materiais didáticos estavam preocupados com as reformas curriculares que se iniciavam junto às lutas no processo de democratização do país. [...] foram promovidos debates na academia e em associações docentes sobre as disciplinas escolares criadas a partir da Lei nº 5.692/1971 exigindo-se a exclusão delas na renovação das propostas curriculares iniciadas em meados dos anos de 198016. Bittencourt diz que muitas das pesquisas desse contexto colocavam no centro as denúncias do perfil ideológico dos conteúdos das disciplinas escolares, apontando nos livros didáticos: [...] uma conformação de valores desejáveis por setores do poder instalados nos aparelhos de Estado, como o caso das disciplinas Estudos Sociais, Educação Moral e Cívica e Organização Social e Política do Brasil (OSPB) que concorriam e, por vezes, substituíam o ensino de História17. 14 MUNAKATA, 2012, op. cit., p. 181. 15 BITTENCOURT, 2011, op. cit., p. 495. 16 Ibidem, p. 495-6. 17 Ibidem, p. 496. 18 A autora apontou que as preocupações e indagações que giravam em torno do livro didático também se baseavam nas concepções formuladas pelo historiador francês Marc Ferro, que, a partir de sua obra Commenton reconte L’histoireaux enfants à traversle monde entier (1981), traduzida para o português em 1983 com o título Manipulação da história no ensino e nos meios de comunicação, “[...] apresenta um panorama amplo da difusão de uma memória histórica manipulada por setores do poder estatal por intermédio, sobretudo, dos livros escolares”18. Em relação à questão da variedade de temas e abordagens sobre o livro didático, Munakata lembra que o trabalho de Bittencourt, publicado em 1993, representou não só o primeiro impulso da grande produção que se seguiria, como também apresentou uma variedade de temas e abordagens que estavam além das denúncias ideológicas; ou seja, tal trabalho representou uma renovação temática sobre o objeto de análise supracitado19. O autor, inclusive, indica em que referenciais se baseou essa renovação: [...] essa renovação temática tinha como referência autores como Chervel, Goodson (1995), Choppin e Chartier, que efetivaram, desde os anos 1970, discussões sobre o currículo, as disciplinas escolares, a cultura escolar, a história cultural e a história do livro e da leitura20. Munakata apontou que, a partir das concepções de Roger Chartier passou-se a recusar “um certo idealismo ingênuo que abordava o livro (didático) como um simples conjunto de ideias e valores que deveriam ser condenados (ou aprovados) segundo uma certa ortodoxia”21. Os temas ligados à análise do livro didático podem gerar vários objetos de pesquisa. Desde as funções que o livro exerce na escola até aquelas ligadas “a cada momento do ciclo da produção, circulação, distribuição e consumo do livro didático, sempre levando em conta as especificidades que marcam essa mercadoria”22, como apontou Munakata, pode ser utilizado como objeto analítico. Em seu artigo, O livro didático: alguns temas de pesquisas (2012), Munakata apontou vários trabalhos que tinham como objeto de pesquisa as etapas do ciclo citado acima e ainda trabalhos que que analisaram um determinado conteúdo como, por exemplo, o trabalho de 18 BITTENCOURT, 2011, op. cit., p. 497. 19 MUNAKATA, 2012, op. cit., p. 183. 20 Ibidem, p. 183. 21 Ibidem, p. 183. 22 Ibidem, p. 186. 19 Natalia Moura Leonardo (2010), que mostrou que não eram homogêneas “[...] as abordagens que os livros didáticos de história faziam sobre o regime militar, durante a sua vigência”23. Atualmente se tem produzido muitos trabalhos que têm por intenção analisar um determinado conteúdo que é abordado pelos manuais didáticos. Uma parcela desses trabalhos procurou analisar os manuais didáticos como responsáveis pela construção das imagens que construímos sobre o passado e o presente, sobre nossa história e as de outros povos. É o que vem se chamando de “Cultura histórica”, conceito utilizado pelo historiador alemão John Rüsen, que objetivou compreender “[...] o modo como a história inscrita nas consciências e nas vidas dos indivíduos, é inscrita segundo procedimentos de controle crítico24. Nestes trabalhos, seus autores tentaram compreender como o conhecimento produzido pela historiografia acadêmica, fruto de práticas sistêmicas, como mostram Matos e Martins, geram imagens do passado em formas de culturas históricas, nada mais sendo que construções de sensu comum sobre a história aprendida nos bancos escolares25. Essas imagens, inclusive, poderiam criar significado carregado de juízos de valores, por serem capazes de construir concepções positivas ou negativas sobre épocas, acontecimentos ou pessoas. Exemplos de trabalhos que caminham por esse viés podem ser alguns artigos produzidos por Matos e Martins (2013), Matos e Karolina Pereira Dias da Costa (2013) e Matos e Débora Fernandes (2014). Em Culturas históricas nos livros didáticos: as diferentes abordagens historiográficas do renascimento nos anos de 1970-80, Costa e Matos propuseram- se a olhar como o Renascimento foi representado por livros didáticos de matrizes teóricas diferentes com o objetivo de “[...] perceber como suas narrativas se inscrevem em uma cultura histórica presente nos dias atuais”26. As autoras mostram que “[...] na produção de livros didáticos, diferentes culturas históricas conduzem abordagens diversas sobre o mesmo conteúdo histórico”27 e que, portanto, “[...] as diferentes formas de apresentação dos conteúdos históricos influem diretamente no processo de ensino-aprendizagem e na constituição da aprendizagem histórica28. Isto se deve, segundo as autoras, ao fato de que as diferentes vertentes 23 MUNAKATA, 2012, op. cit., p.191. 24 MARTINS e MATOS, Ensino de história Moderna no livro didático: representações de gênero. ANPUH. XXVII Simpósio Nacional de História: Conhecimento histórico e diálogo social. Natal- RN, 22 a 26 de julho de 2013, p.04. 25 Ibidem, p.04. 26 MATOS, Júlia Silveira e COSTA, Karolina Pereira Dias da. Culturas históricas nos livros didáticos: as diferentes abordagens historiográficas do renascimento nos anos 1970-80. Revista 7 mares, nº 3, out. 2013, p. 167. 27 Ibidem, p. 169. 28 Ibidem, p. 169. 20 historiográficas – estas também inseridas dentro de uma cultura histórica determinada – trazem explicações diferentes para um mesmo fato histórico29. Pelo mesmo viés caminha o artigo Ensino de História Moderna no livro didático: representações dos gêneros de autoria de Michele Borges Martins e Julia S. Matos, no qual as autoras buscam “[...] refletir sobre as formas de representação dos gêneros e estereótipos presentes no conteúdo referentesao período que denominamos de história moderna”30, presentes no livro didático do 7º ano do Projeto Araribá, coleção de 2012 organizada pela editora Moderna. As autoras buscam perceber como o fenômeno da cultura histórica tem construído narrativas que contribuem para criar imagens negativas e estereotipadas sobre o papel da mulher na sociedade da época trabalhada e também do presente, uma vez que, [...] o livro didático é um importante veículo portador de um sistema de valores, de uma ideologia, de uma cultura. Várias pesquisas demonstram como textos e ilustrações de obras didáticas transmitem estereótipos e valores dos grupos dominantes, generalizando temas, como família, criança, etnia, de acordo com os preconceitos da sociedade burguesa31. Citando Moraes, a preocupação das autoras com o fenômeno da cultura história é que este, por meios de narrativas do passado, constrói significados positivos ou negativos de períodos, personagens, eventos, que ao dialogar com aquilo que no imaginário social é considerado verossimilhante é recebido como um passado justificador do presente32. É, portanto, fundamental para qualquer estudo que caminhe pelo viés do fenômeno da cultura histórica, perceber as diferentes interpretações sobre os tempos; e, quem por quais meios, torna sólido determinados olhares históricos, como afirma Moraes: [...] um estudo sobre a cultura histórica deve estar atento a diferentes interpretações sobre o passado, o presente e o futuro, de modo a compreender quando, onde, quem, e através de quais instrumentos contribuiu para a consolidação de determinadas leituras da História33. Nosso trabalho, especificamente, busca a análise de um determinado conteúdo, preocupado com o fenômeno da cultura histórica. As indagações que dão sentido a este trabalho centram-se na forma como os livros didáticos de História dos últimos anos têm abordado o 29 MATOS e COSTA, 2013, op. cit., p. 169. 30 MARTINS e MATOS, 2013, op. cit., p. 01. 31 BITTENCOUR, 2012, apud MARTINS e MATOS, 2013 op. cit., p. 09. 32 MARTINS e MATOS, 2013, op. cit., p. 04. 33 MORAES, 2007, apud MARTINS e MATOS, 2013, op. cit., p. 04. 21 absolutismo monárquico, sistema de governo que se formou a partir da consolidação dos Estados Modernos, e Luís XIV (1638-1715), rei francês do século XVII, considerado um dos reis que melhor sintetizam esse tipo de governo. Trabalhar com esta temática se justifica devido aos poucos trabalhos encontrados que abordem o tema. Nas pesquisas realizadas foi possível encontrar apenas dois artigos que falavam sobre o assunto. O primeiro é o artigo Garantindo o bom governo do rei: a construção de bases teóricas e simbó1icas para uma governabilidade eficaz no Estado Moderno - uma proposta de oficina em sala de aula, de Marcello José Gomes Loureiro. Neste artigo, o autor propõe um roteiro de aula sobre o Estado absolutista pelo viés das “[...] negociações do poder central com os locais”34. Pretende, por meio da leitura de fragmentos das obras de Bossuet e Hobbes, principalmente, a parte iconográfica, evidenciar “[...] as dinâmicas e tentativas de legitimação do poder régio”35. Ele procura se afastar das já tradicionais abordagens dos livros didáticos sobre o Absolutismo, que veem o Estado Absoluto apenas como instrumento de poder de grupos sociais: Afastando-se da abordagem normalmente empregada pelos livros didáticos, em que o Estado Absoluto é um mero instrumento de poder de determinados grupos sociais, pretende-se discutir não somente a construção das alianças, tramas e negociações que o Estado Moderno precisou articular para construir suas bases de governabilidade, mas sobretudo enfatizar as justificativas teóricas e as formas de representação do poder real que influenciaram aqueles arranjos políticos36. Nessa proposta de trabalho é interessante notar a contextualização histórica feita por Loureiro sobre a formação e dinâmica dos Estados absolutistas sob a ótica de duas correntes historiográficas. De acordo com o autor, a partir da década de 1990, entrou em curso na historiografia mundial uma revisão das teses já tradicionais que defendiam uma forte centralização de poder nas mãos dos reis. O autor resume que tais revisões passaram “[...] por uma redução da ideia de centralização do poder absoluto nas mãos dos monarcas europeus, suplantada por uma constante negociação entre o centro e as localidades37. Nesse sentido, podemos dizer que começou a emergir uma nova concepção histórica a respeito dos Estados Absolutistas, capaz de gerar uma nova cultura histórica. 34 LOUREIRO, Marcello Gomes. Garantindo o bom governo do rei: a construção de bases teóricas e simbó1icas para uma governabilidade eficaz no Estado Moderno - uma proposta de oficina em sala de aula. História & Ensino, Londrina, v. 13, p. 157-176, set. 2007, p. 157. 35 Ibidem, p. 157. 36 Ibidem, p. 157. 37 Ibidem, p. 158. 22 Para nós, essa questão apontada por Loureiro é importante porque nos leva a tentar perceber se tal revisão historiográfica chegou até os atuais manuais didáticos, e se modificou a cultura histórica tradicional que vê os monarcas dos estados absolutistas como pessoas que detinham todo poder nas mãos; criaturas tão poderosas que tinham poderes ilimitados. Um outro trabalho que traz o Absolutismo monárquico como tema é o artigo de Débora Fernandes e Júlia Silveira Matos, intitulado Literacia histórica nos livros didáticos: culturas históricas do absolutismo. Neste artigo, Fernandes e Matos buscam pensar o papel dos manuais didáticos nas relações de ensino e aprendizagem estabelecidos entre docentes e discentes em sala de aula. As autoras objetivaram analisar o livro didático “[...] em sua potencialidade como transmissor e legitimador de certas culturas históricas em sala de aula”38. Resumindo, a partir das palavras delas, a proposta de análise consistia em: [...] analisar como os autores Alfredo Boulos Junior no livro didático História: sociedade e cidadania, 7º ano e Joelza Ester Domingues Rodrigues no livro História em documento: imagem e textos, 7º ano narraram o absolutismo, enquanto fenômeno político da Idade Moderna e como esse fato histórico, dirigido por diferentes culturas históricas, pode ser narrado de diferentes formas, ao mesmo tempo em que revela a literacia histórica de seus autores e contextos produtivos39. Fica evidente que, por meio do conceito de “cultura histórica”, as autoras citadas acima buscavam compreender como, através do livro didático, leituras, posicionamentos, olhares, ou seja, estruturas ideológicas são propagadas, uma vez que este objeto é “[...] um meio de veiculação ideológica, seja oficial ou ideológica”40. 1.2 Entre vilão e mocinho: as faces ideológicas dos livros didáticos Como adiantamos acima, as discussões que giram em torno do livro didático têm construído imagens deste objeto que giram em torno desse binômio “vilão-mocinho”, em relação ao seu papel em sala de aula. Há quem veja no livro didático uma ferramenta pedagógica inocente que auxilia o professor e o aluno no processo de ensino e aprendizagem por trazer conteúdos complexos de forma didática, lúdica e mais acessível ao estudante. 38 FERNANDES, Débora e MATOS, Júlia Silveira. Literacia histórica nos livros didáticos: culturas históricas do absolutismo. REVISTA de Educação Histórica - REDUH / Laboratório de Pesquisa de Educação Histórica da UFPR; nº.5(Jan./Abril. - 2014) . Curitiba: LAPEDUH, 2014. Disponível em: http://www.lapeduh.ufpr.br/revista Quadrimestral, p. 124. 39 Ibidem, p. 124-5. 40 MATOS, Julia Silveira. Os livros didáticos como produtos para o ensino de História: uma análise do plano nacional do livro didático. Historiæ, Rio Grande, 3(3), 2012, p. 168. 23 Mas há também quem critique sua utilização por uma série de razões. Umas delas é o problema dele se tornar, em muitas ocasiões, o único recurso didático durante as aulas, fazendo de sua estrutura discursiva e imagética hegemônica em sala de aula, como apontou Matos: “[...] quando o livro didático se torna o único ou o principal recurso, seja didático, ou de apoio pedagógico do professor, sua estrutura ideológica se torna hegemônica dentro de sala de aula na qual é utilizado”41. O perigo estaria em fazer com que posicionamentos de certos autores se tornem verdades indiscutíveis, mascarando o fato de o livro didático ser um produto cultural que transmite posicionamentos nada inocentes, já que “[...] os autores de livros ao produzirem suas obras expressam leituras, posicionamentos políticos, ideológicos pedagógicos [...]42”, como afirma Julia Silveira Matos em concordância com Ana Maria Monteiro (2009). Citando Monteiro, Matos concorda que no momento de produção dos manuais didáticos os autores “[...] selecionam e produzem saberes, habilidades, valores, visões de mundo, símbolos, significados, portanto culturas, de forma a organizá-los e torná-los possíveis de serem utilizados”43. Outro problema que se coloca contra os manuais didáticos é o fato de eles fazerem parte de políticas educacionais que estariam a serviço de um projeto de controle cultural feito pelo Estado: O desenvolvimento da trajetória dos manuais didáticos caminha por estradas diferentes dos livros em geral, [...] devido ao seu papel central enquanto produto e veículo de saber dentro das políticas educacionais, pois ao mesmo tempo em que é recurso didático, também é instrumento de normatização e controle44. Tal aspecto é evidenciado por Justino Magalhães, como citou Matos: “o manual escolar, mais que um meio de aculturação e de alteridade cultural, é fator de afirmação e de dominação cultural”45. Matos mostra também que “[...] é preciso analisarmos os livros didáticos enquanto documentos históricos marcados por ideologias próprias de cada tempo e tendências de governo [...]”46. 41 MATOS, 2012, op. cit., p. 167. 42 MONTEIRO, 2009, apud MATOS, 2012, op. cit., p. 167-168. 43 Ibidem, p. 167-168. 44 MATOS, 2012, op. cit., p. 170. 45 MAGALHÃES 2011, apud MATOS, 2012, op. cit., p. 170. 46 Ibidem, p. 170. 24 Essas políticas educacionais se manifestam por meio do programas curriculares que controlam o conteúdo que os manuais escolares transmitem. Por isso é imprescindível atentar- se para o caráter ideológico dos currículos: [...] Os currículos e programas das escolas públicas, sob qualquer forma que se apresentem (guias, propostas, parâmetros), são produzidos por órgãos oficias, que os deixam marcados com suas tintas, por mais que os documentos pretendam representar o conjunto dos professores e os “interesses dos alunos”. [...] Os currículos são responsáveis, em grande parte, pela formação e pelo conceito de História de todos os cidadãos alfabetizados, estabelecendo, em cooperação com a mídia, a existência e a memória coletiva da sociedade47. Nesse sentido, os currículos são instrumentos poderosos de intervenção estatal na educação escolar, pois, como mostra Kátia Abud, os currículos formam uma clientela escolar treinada para o exercício da cidadania nos moldes que interessa os grupos dominantes48. É por meio dos programas e currículos escolares que o Estado divulga as concepções científicas das disciplinas escolares, o desenvolvimento das ciências que as referenciam e por quais vias elas se transformarão em conhecimento escolar. Portanto, controla toda a informação que cada disciplina transmite, regulando assim o trabalho pedagógico: [...] Através dos programas divulgam-se as concepções científicas de cada disciplina, o estado de desenvolvimento em que as ciências de referência se encontram e, ainda, que direção devem tomar ao se transformar em saber escolar. Nesse processo, o discurso do poder se pronuncia sobre a educação e define seu sentido, forma, finalidade, conteúdo e estabelece, sobre cada disciplina, o controle da informação a ser transmitida e da formação pretendida. Assim, a burocracia estatal legisla, regulamenta e controla o trabalho pedagógico [...].49 Quando analisa a face ideológica dos manuais didáticos, Bittencourt mostra como é difícil tentar definir esse objeto “[...] por ser obra bastante complexa, que se caracteriza pela interferência de vários sujeitos em sua produção, circulação e consumo”50. O mesmo posicionamento assume Munakata, quando afirma que antes de se olhar para as ideias e valores transmitidos por esse objeto pedagógico é preciso analisar a materialidade das relações sociais em que os livros didáticos estão implicados, ou seja, a participação de uma diversidade de 47 ABUD, Kátia. Currículos de História e Políticas Públicas: os Programas de História do Brasil na Escola Secundaria. In: BITTENCOURT, Circe (Org.). O saber histórico na sala de aula. 9ª ed. – São Paulo: Contexto, 2004, p. 29. 48 Ibidem, p. 28. 49 Ibidem, p. 28. 50 BITTENCOURT, 2011, apud, MATOS, 2012, op. cit., p. 167. 25 especialistas de diversas modalidades de trabalhos (editores, gráficos, etc.), na produção do livro didático51. Munakata faz críticas as abordagens que denunciam o caráter ideológico dos manuais didáticos. Ele as considera reducionistas, por, supostamente, ignorar a mediação da materialidade do livro que está entre a enunciação das ideologias e sua recepção: “entre a enunciação das ideias e dos valores e a sua recepção, há sempre, a mediação da materialidade do objeto-livro, que deve ser levado em conta52, ou seja, é preciso perceber que por trás da tinta sobre o papel, das páginas encadernadas, os manuais didáticos passam por revisões que muitas vezes modificam o texto original; que tais objetos recebem acabamento editorial e gráfico para que possam ser distribuídos e lidos 53. Assim, fica explícito na argumentação de Munakata que, antes de qualquer condenação a ideias e valores propagados pelos manuais didáticos, é preciso antes apreender a materialidade deste objeto, que, segundo o autor, “[...] é, antes, conhecer o processo de produção, circulação e consumo de livros, no interior do qual seus elementos, por exemplo, o tamanho da página, adquire inteligibilidade”54. Dessa forma, o autor critica o olhar acusatório sobre o manual didático, que denuncia a face ideológica desse objeto, mostrando que o livro didático durante o caminho que leva ao mercado de consumo passa pelas mãos de vários sujeitos. Estes, coautores desse objeto, impossibilitariam uma tentativa de mostrar o livro como um produto ideológico produzido por um autor individual que queira, por meio do livro didático, propagar uma ideologia qualquer. Outro argumento de Munakata que queremos explicitar aqui é que, para ele, o livro é antes de tudo uma mercadoria feita para um mercado específico, no caso, as escolas onde serão utilizados. Seria, portanto, a escola e não a sociedade exterior à escola, que determinaria o uso desse material em sala de aula: “o livro didático, portanto, deve se adequar a esse mercado específico. Isso significa que a escola, tomada como mercado, determina usos específicos do livro (didático), também mediados pela sua materialidade”55. Munakata defende em seus argumentos duas questões controvérsias. Primeiro que é a escola e não a sociedade que cria um espaço e uma temporalidade para os usos dos manuais didáticos, e que a escola não se reduz em reflexo da sociedade que está inserida; que ela inaugura práticas culturais que nascem dentro dela e lhe são específicas: “a escola institui um espaço e uma temporalidade que não se reduz, como espelho ou reflexo, à sociedade que a51 MUNAKATA, 2012, op. cit., p. 184. 52 Ibidem, p. 183-184. 53 Ibidem, p.184. 54 Ibidem, p. 184. 55 Ibidem, p. 185. 26 contém, mas inaugura práticas e cultura que lhe são específicas. O livro didático, portanto, deve se adequar a esse mercado específico”56. Ou seja, é a escola que determina os usos e funções que o livro didático adquirirá. As ideias lançadas pelo autor supracitado tendem a redimir os livros didáticos de uma culpa que vem recaindo sobre eles há algum tempo: a responsabilidade pelo fracasso escolar dos alunos. Todavia, cabe aqui alguns parênteses sobre as ideias levantadas pelo autor. Mesmo a escola produzindo usos e funções para o livro didático em sala, esse objeto não deixa de ter uma determinação anterior de um mercado de produção específico que molda seu produto de acordo com estudos prévios de suas possibilidades de forma de uso. O livro didático não deixa de ser um produto da sociedade de consumo; ele não é um recurso pedagógico inocente no qual a escola lhe dá função, como argumenta Matos57. A escola e a prática escolar também não deixam de refletir aspectos macros da realidade social na qual está inserida. Isso pode ser evidenciado, por exemplo, no próprio uso que se faz do livro didático em sala de aula; ele é muitas vezes o único recurso pedagógico da aula, seja pela falta de outros recursos pedagógicos, seja pela má formação dos professores que se apoiam nos manuais didáticos para planejar suas aulas. Isto tudo contribuindo para que o conteúdo do livro didático se torne a verdade dos fatos em sala de aula. A escola sendo um espaço de construção crítica do conhecimento pode ser responsabilizada sozinha por essa forma de utilização do manual didático? Tal aspecto não mostra uma falha do Estado, por exemplo, na formação de professores? A própria existência de um livro didático em sala de aula também é uma forma de selecionar o que pode ser ensinado ou não, o que é verdadeiro e o que é falso. O livro funciona como um instrumento de controle estatal, que tenta levar um certo tipo de conhecimento imposto como verdadeiro e oficial. O próprio Munakata admite que há interferências do Estado no processo de distribuição dos manuais didáticos, os quais são impedidos de chegarem ao consumidor final sem antes passarem por um crivo oficial do Estado: No Brasil, o Programa Nacional do Livro didático, instituído em 1985, faz a mediação entre as editoras e o público-alvo (docentes e discentes das escolas públicas) e, a partir de 1996, quando se instituiu o sistema de avaliação prévia dos livros, intervém diretamente na oferta de livros, estabelecendo-lhes critérios pelos quais possam ser apresentados à escolhas dos professores58. 56 MUNAKATA, 2012, op. cit., p. 185 57 MATOS, 2012, op. cit., p. 168. 58 MUNAKATA, 1997, apud, MUNAKATA, 2012, op. cit., p. 188. 27 O contexto escolar pode mesmo dar diversos usos ao livro didático: ele pode ser lido em alta voz ou de forma silenciosa, pode ser rabiscado, copiado, ser transportado pelo aluno para sua residência em mochilas pesadas sobre as costas. Mas o que permanece em todos os contextos escolares nacionais, como várias pesquisas demonstram, é o protagonismo dos manuais didáticos em sala de aula e a interferência do Estado na seleção destes, determinando “[...] quais manuais escolares poderão ser distribuídos e, assim, utilizados pelas instituições de ensino públicas”59. Como mostram Matos e Adriana Kivanski Senna, o crivo do Estado interfere “[...] nas formas como os conhecimentos das disciplinas escolares são apresentados”60. Portanto, quando se analisa a face ideológica dos manuais didáticos, não se está ignorando a materialidade das relações sociais implicadas nos livros, nem mesmo os diversos usos que estes podem ter em sala de aula, mas alertando para a possibilidade dos manuais didáticos se passarem por ferramentas pedagógicas ingênuas, que auxiliariam de forma maravilhosa a construção de conhecimentos “puros” e ‘verdadeiros” sobre a História, por exemplo; ou mesmo que de forma ingênua se leve a pensar que tal ferramenta pedagógica é utilizada pelo Estado para a melhoria da educação, no intuito de levar os estudantes à tomada de consciência da realidade em que vivem, valorizando a cidadania, a igualdade, a tolerância e o convívio pacífico entre os povos. Se assim fosse, não existiriam tantos trabalhos denunciando o caráter nada inocente desse objeto pedagógico. Logicamente, os manuais escolares não são os únicos responsáveis pelo fracasso escolar; mas, eles como instrumentos ideológicos, protagonistas em sala de aula, contribuem para a limitação do conhecimento, pois o saber transmitido se limita em suas páginas. O que se propõe nesse trabalho é perceber como através das páginas dos manuais didáticos é possível perceber correntes discursivas que se tornam hegemônicas; como tais discursos podem mascarar, distorcer a realidade, uma vez que não há discurso inocente: todos são ideológicos, todos propagam valores, ideias visões de mundo. Mesmo com todas as controvérsias que se impõem sobre o uso do livro didático, não podemos deixar de compreender sua importância para a educação escolar, uma vez que muitas vezes ele é o único recurso de professores e alunos desprovidos de outros meios como bibliotecas ou internet61. Além disso, como afirma Bittencourt, os manuais didáticos fazem parte de uma tradição escolar que os colocam como os mais usados instrumentos de trabalho a 59 MATOS, Júlia Silveira e SENNA, Adriana Kivanski. Estado, editoras e ensino: o papel da política na produção, avaliação e distribuição dos livros didáticos de história no brasil (1938-2012), 2012, p. 2. 60 Ibidem, p. 2. 61 Ibidem, p. 167. 28 pelo menos 200 anos62 e que “[...] continua sendo o material didático referencial de professores, pais e alunos que, [...], consideram-no referencial básico para o estudo [...]”63. Tal compreensão leva-nos a entendermos o porquê deste papel de destaque que o livro didático tem no ambiente escolar, ao mesmo tempo nos serve de alerta para percebermos que por trás desse papel de “bom moço” o livro didático pode esconder facetas nada inocentes. 1.3 O livro didático convertido em signo ideológico: sua capacidade de distorção da realidade Este trabalho, justificado também pela preocupação com o papel ideológico do livro didático enquanto propagador de certas leituras e olhares sobre o passado, formadores de culturas históricas sobre o absolutismo monárquico – culturas estas que podem estar pintando de forma estereotipada ou mesmo distorcida, tal fenômeno político e seus personagens – , busca entender como os manuais didáticos têm abordado o processo de formação e consolidação das monarquias absolutistas, bem como do papel de Luís XIV, considerado o principal representante do absolutismo monárquico europeu do século XVII. Buscamos analisar que fatores são destacados pelas obras selecionadas para a consolidação dos Estados Absolutistas. Procuramos entender, também, de que forma os manuais didáticos mostram a pessoa e o reinado de Luís XIV enquanto representante do absolutismo monárquico, tentando compreender como as ações e discursos de Luís XIV, enquanto rei, têm sido utilizados pelos livros didáticos para representá-lo e, por fim, tentaremos compreender como os manuais didáticos apresentam ideias, teorias e estratégias que legitimavam o poder de Luís XIV e contribuíam para sua imagem de rei absoluto. Em nossa pesquisa, utilizaremos como referencial teórico alguns conceitos de Bakhtin, como “signo ideológico”, “enunciação” e “auditório social do discurso”, bem como suas teorias sobre a linguagem, principalmente sua defesa da natureza social da linguagem, sendo a fala, ou seja, a enunciação, um produto social.Para Bakhtin, a fala ou mesmo o resultado enunciativo dela, não pode ser considerado apenas como um produto individual, explicado sob uma ótica interna do sujeito, ao contrário: Na realidade, o ato da fala, ou mais exatamente, seu produto, a enunciação, não pode de forma alguma ser considerado como individual no sentido estrito 62 BITTENCOURT, 2011, apud MATOS, 2012, op. cit., p. 166. 63 Ibidem, p. 167. 29 do termo; não pode ser explicado a partir das condições psicofisiológias do sujeito falante. A enunciação é de natureza social64. Bakhtin defende, portanto, que a natureza social da enunciação se dá pelo fato dela ser um produto de interação de dois indivíduos: o locutor e o interlocutor, ou seja, todo enunciado tem um destinatário, um interlocutor potencial: “[...] a enunciação é o produto da interação de dois indivíduos socialmente organizados e, mesmo que não haja um interlocutor real, este pode ser substituído pelo representante médio do grupo social ao qual pertence o locutor65. Nesse sentido, toda a atividade mental de um indivíduo, realizada em forma de enunciação, é endereçada a um auditório social definido, como mostra o autor: “o mundo interior e a reflexão de cada indivíduo tem um auditório social próprio bem estabelecido, em cuja atmosfera se constroem suas deduções interiores, suas motivações, apreciações, etc.”66. De acordo com Marina Yaguello, Bakhtin defende que “a comunicação verbal, inseparável das outras formas de comunicação, implica conflitos, relações de dominação e de resistência à hierarquia, utilização da língua pela classe dominante para reforçar seu poder etc.”67. Para Bakhtin, a enunciação é uma estrutura sócio-ideológica, onde [...] cada palavra se apresenta como uma arena em miniatura onde se entrecruzam e lutam os valores sociais de orientação contraditória. A palavra revela-se, no momento de sua expressão, como o produto da interação viva das forças sociais68. A análise da comunicação verbal realizada por Bakhtin nos serve na medida em que concordamos com ele sobre o papel do livro, ou seja, a fala de forma impressa - no nosso caso, o livro didático - como sendo um instrumento de comunicação verbal, de discussões ativas em forma de diálogo, capaz de gerar querelas e outros textos a seu respeito, como mostra o autor: O livro, isto é, o ato da fala impresso, constitui igualmente um elemento da comunicação verbal. Ele é objeto de discussões ativas sob forma de diálogos e, além disso, é feito para ser apreendido de maneira ativa, para ser estudado a fundo, comentado e criticado no quadro do discurso interior, sem contar as reações impressas, institucionalizadas, que se encontram nas diferentes esferas da comunicação verbal (críticas, resenhas, que exercem influência sobre os trabalhos posteriores, etc.)69. 64 BAKHTIN, 2006, op. cit., p. 111. 65 Ibidem, p. 114. 66 Ibidem, p. 115. 67 YAGUELLO, Marina. Introdução. In: BAKHTIN, 2006, op. cit., p. 7. 68 BAKHTIN, 2006, op. cit., p. 58. 69 Ibidem, p. 118. 30 Como temos mostrado durante esse trabalho, o livro didático vem sendo motivo de discussões há bastante tempo, o que gerou diversos trabalhos sobre o tema, comprovando a citação de Bakhtin acima. Outra característica levantada pelo autor que complementa a já anterior mencionada, e que também nos serve como embasamento teórico, é o fato de o livro sempre responder a alguma coisa, seja concordando, seja refutando ou mesmo reproduzindo discussões ideológicas maiores, como define Bakhtin: [...] o ato da fala sob a forma de livro é sempre orientado em função das intervenções anteriores na mesma esfera de atividade, tanto as do próprio autor com as de outros autores: ele decorre portanto da situação particular de um problema científico ou de um estilo de produção literária. Assim, o discurso escrito é de certa maneira parte integrante de uma discussão ideológica em grande escala: ele responde a alguma coisa, refuta, confirma, antecipa as respostas e objeções potenciais, procura apoio, etc.70 Ou seja, o livro didático, e seu locutor, sempre está dialogado com correntes de pensamentos, se embasando sobre elas na tentativa de convencer seu “auditório social”, que no caso são os docentes e discentes que entram em contato com o livro didático. Em outra passagem, Bakhtin mostra que toda enunciação, seja ela oral ou inscrita, é um elo de uma cadeia comunicativa, feita com o objetivo de ser compreendida e orientada para uma leitura do contexto do qual ela faz parte: Toda inscrição prolonga aquelas que a precederam, trava uma polêmica com elas, conta com as suas reações ativas da compreensão, antecipa-as. Cada inscrição constitui uma parte inalienável da ciência ou da literatura ou da vida política. Uma inscrição como toda enunciação monológica, é produzida para ser compreendida, é orientada para uma leitura no contexto da vida científica ou da realidade literária do momento, isto é, no contexto do processo ideológico do qual ela é parte integrante71. Assim, entendemos que dentro do processo de comunicação verbal realizado pela fala, pelos enunciados, o livro didático enquanto instrumento de interação verbal, assim como a palavra, se comporta como um signo ideológico. Bakhtin denomina de “signo ideológico” todo produto que é ideológico, ou seja, tudo aquilo que carrega um significado, remetendo-se a algo que lhe é exterior72. Dessa forma, assim como a palavra é um fenômeno ideológico, pois materializa por meio da comunicação o 70 BAKHTIN, 2006, op. cit., p. 118. 71 Ibidem, p. 91. 72 Ibidem, p. 29. 31 contexto ideológico do qual emerge, sensível às relações sociais de sua realidade de produção73, o livro didático enquanto instrumento de interação verbal inscrito também pode ser convertido em signo ideológico. Como produto ideológico ele veicula ideologias, reflete uma realidade social, a distorce, mascara, assim como os enunciados em geral. Poderão nos perguntar: o livro não é diferente das palavras por ter um corpo físico, por ser um produto de consumo? Todavia, como mostra Bakhtin, qualquer produto de consumo pode se transformar em signo ideológico através de sua função simbólica: “é o caso por exemplo, da foice e do martelo como emblemas da União Soviética. A foice e o martelo possuem, aqui, um sentido puramente ideológico”74. Assim como a foice e o martelo se remetem ao comunismo e a luta das classes trabalhadoras, exaltadas no emblema da URSS, da mesma forma o livro didático em sala de aula simboliza o discurso científico oficial, que depois do crivo do Estado chegou ao seu consumidor final com o objetivo de levar o conhecimento sobre, por exemplo, os eventos históricos, no caso de um livro didático de História. Bakhtin defende que todo objeto, seja ele natural, tecnológico ou de consumo torna-se signo quando adquire um sentido que ultrapassa suas funções particulares: “os signos também são objetos naturais, específicos, e, como vimos, todo produto natural, tecnológico ou de consumo pode tornar-se signo e adquirir, assim, um sentido que ultrapasse suas próprias particularidades”75. O livro didático torna-se signo ideológico por adquirir, assim, um sentido que ultrapassa a sua particularidade, enquanto produto de consumo, que é ser um manual didático com assuntos resumidos sobre alguns temas, com um recorte específico sobre um determinado assunto, forjado por teorias, métodos, olhares específicos do lugar de produção do qual ele veio. Enquanto signo ideológico “oficializado”, ele não existe apenas como parte de uma realidade: “ele pode distorcer essa realidade, ser-lhe fiel, ou apreendê-la de um ponto de vista específico, etc.”76. Nessa perspectiva iremos, a partir da análisedo conteúdo sobre o Absolutismo Monárquico, perceber como os manuais didáticos selecionados têm atuado como instrumento de comunicação verbal, buscando perceber quem são os locutores desses livros, em quais correntes discursivas eles se inserem, ou seja, a que tipo de fazer historiográfico apoiam seus 73 BAKHTIN, 2006, op. cit., p. 34. 74 Ibidem, p. 22. 75 Ibidem, p. 30. 76 Ibidem, p. 22. 32 discursos, constroem suas narrativas; analisar se os livros didáticos de História corroboram para a manutenção de discursos hegemônicos sobre o Estado Absolutista ou se há espaço para várias vertentes historiográficas, expor seu olhar sobre este fato, e também perceber se tais olhares vêm distorcendo, estereotipando esse conteúdo. As obras selecionadas fazem parte de coletâneas que foram utilizadas no Colégio Universitário (COLUN), situado dentro da Universidade Federal do Maranhão, Campus do Bacanga, São Luís -MA. A escolha dos livros contou com a ajuda do professor de História do 1º ano do Ensino Médio, Prof. Dr. Raimundo Inácio. Seguindo suas sugestões, resolvemos fazer um recorte temporal entre 2012 e 2018, buscando analisar todos os quatro livros usados durante esse período. A escolha por analisar os livros utilizados por esta instituição se deu primeiro pela facilidade de adquiri-los, uma vez que fazíamos parte do Programa Institucional de Bolsas de Iniciação à Docência (PIBID), implantado na escola. Segundo, por esta ser uma instituição de ensino renomada, no que se refere ao Ensino Básico, e que assiste a estudantes não só da capital, São Luís, mas de toda a região metropolitana. Terceiro, porque durante nossa estadia no PIBID foi possível perceber que nas diversas escolas em que o programa se instalara, os livros didáticos eram protagonistas nas aulas, usados pelos docentes como materiais de pesquisa e apoio pedagógico. Embora no COLUN – pelo menos nas aulas de História - houvesse espaço para outras ferramentas pedagógicas, era possível perceber certo destaque no uso dos livros didáticos pelos alunos, que os viam como detentor da verdade histórica. O primeiro livro que escolhemos para análise faz parte da coletânea Conexões com a História, volume 1: das origens do homem à conquista do Novo Mundo, lançado pela editora Moderna em 2010, e sob autoria de Alexandre Alves e Letícia Fagundes de Oliveira. Este livro fez parte do ciclo de 2012 a 2014, período que foi utilizado em sala de aula. No mesmo ciclo, por conta do número insuficiente do primeiro livro para contemplar a demanda da escola, foi utilizado também o volume 1 da coletânea História: das cavernas ao terceiro milênio: das origens da humanidade à Reforma Religiosa na Europa. Também da editora Moderna, este livro foi produzido em 2010, sendo esta a 2ª edição da coletânea. A obra está sob a autoria de Patrícia Ramos Braick e Myriam Becho Mota. A terceira coletânea que iremos analisar é História em Movimento: dos primeiros humanos ao Estado Moderno. Lançado pela editora Ática em 2015, a coletânea estava em sua 2ª edição. A autoria da obra ficou por conta de Gislane Azevedo e Reinaldo Seriacopi. Esta obra esteve no ciclo 2015 a 2017. Por último, a coleção que será utilizada esse ano que faz parte da coletânea Por dentro da História, volume 1, lançado pela editora Escala Educacional e produzido em 2016. Esta é a 4ª edição desta obra que vem 33 através da autoria de Pedro Santiago, Célia Cerqueira e Maria Aparecida Pontes. Todas as obras mencionadas são de editoras com sede em São Paulo. 34 CAPÍTULO 2 - Formação e dinâmica dos Estados Monárquicos: reproduções e distorções nos manuais didáticos de História De maneira geral, a historiografia tradicional descreve os Estados Monárquicos do período moderno como organismos político-administrativos centralizados e resultantes de disputas entre camadas sociais que buscavam se impor. Os monarcas aproveitando-se das disputas e utilizando-se de instrumentos jurídicos, burocráticos, técnicos, tributários, políticos, militares e econômicos centralizaram o poder em suas mãos. Esta historiografia situa a formação e consolidação das monarquias centralizadas da Europa Ocidental, entre os séculos XII e XV. Alguns autores recuam um século enquanto outros avançam em um. De qualquer forma, no século XVI, estas monarquias já estariam centralizadas e caminhando para sua forma mais evoluída: o Estado Absolutista: um tipo de organismo político-administrativo em que o monarca detinha grandes poderes. Essas monarquias, no caso Portugal, Espanha, Inglaterra e, principalmente, a França, teriam se formado em um período de turbulência na Europa, onde crises de toda natureza assolavam a região e onde conflitos entre grupos sociais levaram ao fortalecimento do poder do rei. Alguns autores veem o rei como árbitro desses conflitos, hora a favor de um grupo hora a favor de outro grupo, objetivando se manter firme no poder. Já outros autores defendem sua participação efetiva no conflito por meio de alianças com grupos específicos de forma contínua. Friedrich Engels, por exemplo, embora não fosse historiador de ofício, influenciou, juntamente com Karl Marx, na consolidação de uma visão histórica que defende o Estado Absolutista como fruto de disputas entre camadas sociais. Engels analisa o Estado Absolutista como resultante de equilíbrio de classe: Excepcionalmente, contudo, há períodos em que as classes em luta se equilibram (Gleichgewicht halten), de modo, que o poder do Estado, pretenso mediador, adquire momentaneamente um certo grau de autonomia em relação a elas. Assim aconteceu com a monarquia absoluta dos séculos XVII e XVIII, que manteve o equilíbrio (gegeneinander balanciert) entre a nobreza e a classe dos burgueses77. De acordo com P. Anderson, “a classificação do absolutismo como um mecanismo de equilíbrio político entre a nobreza e a burguesia desliza, com frequência, para a sua designação implícita ou explícita fundamentalmente como um tipo de Estado burguês enquanto tal”78. Ele 77 ENGELS, 1968, apud ANDERSON, 2004, op. cit., p. 15. 78 ANDERSON, Perry. Linhagens do Estado absolutista. Tradução: João Roberto Martins Filho. São Paulo: Brasiliense 2004, p. 16. 35 explica que, embora Engels afirme que o Estado monárquico absolutista fosse fruto de um equilíbrio de classe, também deixou implícito que o período em que fora estabelecido pode ser visto como o tempo em que “a nobreza feudal foi levada a compreender que o período da sua dominação política e social chegara ao fim”79. Marx, por sua vez, via as monarquias absolutas como burguesas por serem sustentadas por estruturas típicas dessa camada social: O poder do Estado centralizado, com os seus órgãos onipresentes: exército permanente, polícia, burocracia, clero e magistratura – órgãos forjados segundo o plano de uma divisão do trabalho sistemática e hierárquica – tem a sua origem nos tempos da monarquia absoluta, quando serviu à sociedade da classe média nascente, como arma poderosa nas suas lutas contra o feudalismo80. Perry Anderson, historiador marxista, segue seus mestres (Engels e Marx) no que tange analisar as monarquias europeias do período Moderno como sendo estruturas de governo centralizadas, fruto de disputas de camadas sociais, fincadas sob as mesmas estruturas citadas por Marx. Mas discorda tanto da ideia desse Estado ser de natureza equilibrista quanto de ser um tipo burguês. Em sua visão, o Estado Absolutista era feudal-aristocrático, ou seja, a nobreza continuava tendo o domínio político: As monarquias absolutas introduziram os exércitos regulares, uma burocracia permanente, o sistema tributário nacional, a codificação do direito e
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