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A PRESENÇA DE HERA NAS CANÇÕES DE CHICO BUARQUE Élin Cunha Luiz Cardoso* Na música de Chico Buarque a mulher é a eterna musa. Cantar com magia a sedução pelo feminino é a sua grande arte. Ele abarca desde a mulher dionísiaca, aquela que se oferece à felicidade plena, quase ingênua, à mulher da raça de Prometeu, racional e trágica como o próprio deus da civilização, do trabalho, da cultura e, também, da repressão. Ou a mulher de Atenas, prisioneira do inescapável papel social de “serva da espécie”. É uma galeria interminável, modelada às vezes com suave lirismo, às vezes com dramas de separações dilacerantes, sempre com jogos de entregas, perdas, ambivalências e a infinitude da busca de felicidade, de amor. Apesar de haver tantas relações com a mitologia, sua obra não foi, necessariamente, construída sobre este prisma. As representações do feminino na obra de Chico Buarque destacam a intensa valorização dada à mulher em sua obra, mas sem perder de vista que tais representações se inserem numa cultura patriarcal, da qual o próprio autor é produto e, até certo ponto, também representante. Fontes, por exemplo, assinala que: Como poeta de seu tempo, [Chico] é consciente da condição da mulher na sociedade, da opressão oriunda de situações econômicas e culturais (…). Entretanto, sobrevivem no poeta os arquétipos inconscientes e primordiais relativos ao Grande Feminino que impulsionam seu gesto criador e fazem com que se revelem em sua obra tanto a necessidade de valorização da mulher como deusa e fêmea, como a angústia de sua contraparte, a mulher castradora, face terrível da Grande Mãe (FONTES, 1999. p.10). Portanto, esses aspectos transparecem nas canções: a mulher é representada como deusa ou amante, protetora ou devoradora, diabólica ou submissa, sem que um deles exclua seu contrário. Seja ela emissora, referente ou destinatária do texto poético, ela é o feminino múltiplo: da submissão à transgressão. Às vezes, o poeta reveste o feminino com imagens de alta sensibilidade sensorial, convocando os sentidos do tato, do olfato e da visão. Outras vezes, tratar-se-ia do eu lírico feminino – a anima do autor, em termos jungianos. Chico ___________________ Universidade Federal de Goiás. Goiânia. Especialista em Língua Portuguesa e Literatura Brasileira. elin_cardoso@yahoo.com.br consegue não só ser o outro, mas a outra. “Nas canções de Chico Buarque emerge a fala da mulher, de uma perspectiva, por vezes, espantosamente feminina”. (MENEZES, 2000. p.20) Chico abre o espaço íntimo da mulher, revelando-o não só para o amante e para ela mesma, mas para a sociedade que permanece estranha ao drama. Ao cantar, a dor da perda alcança o feminino coletivo e o sofrimento é exposto. Há comunhão entre o poeta e os sentimentos da mulher como ser socialmente marginalizado. Considera-se a mulher como ser marginalizado, pois era vista desde Hesíodo até o século V a.C. como um grande mal, um castigo infringido aos homens por Zeus no mito de Prometeu e de Pandora2. Pode-se encontrar nas canções do Chico as personagens femininas que compõem variadas concepções sobre a mulher presentes na nossa cultura, da santa à prostituta, de um feminino submisso e passivo a um feminino masculino e ativo. A importância da obra do Chico, para além da sua beleza plástica e sonora, está nas tonalidades interpretativas que ele compõe para se relacionar com as variações do feminino, sugerindo sempre a autoridade de uma identidade para cada mulher. A partir de Freud ganha-se a possibilidade e o estatuto de serem também histéricas. E para muitos, até hoje, além da maternidade, a histeria é tida como a única manifestação do feminino. "Ser mulher" então, também com Freud, é pertencer à categoria do patológico e do inferior a ser submetido pela cultura. Então "ser uma mulher", implica em localizar, dentro de um discurso masculino que constrói a feminilidade, alternativas para "que mulher se pode ser". Numa posição passiva do feminino, as opções oferecidas em geral situam-se entre "mãe" (ou "santa") e _______________________ 2. Pandora aparece como um "presente" dado aos homens. Hesíodo conta que Hefesto moldou-a semelhante às deusas nas feições e que os demais deuses e deusas concederam-lhe ainda muitos dons. Hermes, especificamente, lhe pôs no coração a perfídia e os discursos enganosos, além da curiosidade... Pandora abriu a caixa, curiosa... e espalhou todos os males, até então presos na caixa, pelo mundo. Desde então, a mulher é considerada a origem de todos os tormentos do homem e deve ser vigiada. "histérica" (ou leviana). Em geral caminha-se entre personagens da adolescente ingênua e romântica (Perséfone), da esposa virtuosa (Hera) ou da amante apaixonada (Afrodite). Neste artigo, entretanto, só serão tratadas as canções cujo arquétipo predominante é a deusa Hera. Chico sabe "o que quer a mulher" porque reconhece seus desejos e isto porque é capaz da experiência do encontro da sua própria contraparte feminina, como se soubesse que ser homem e ser mulher são possibilidades imanentes de um todo ao mesmo tempo masculino e feminino. Busca novos nexos, fluxos, figuras melódicas presentes na fluidez de uma outra ordem, na lógica dos sentimentos. Vai atrás de possibilidades ainda não exploradas, com a virilidade ativa de um homem, mas com a doçura sentimental e receptiva da mulher. Em suas músicas, as mulheres são sempre musas, deusas, a consorte escolhida. Levando em conta ser o autor contemporâneo, os arquétipos também são vistos de acordo com os conceitos atuais (e não como seres idealizados); são parte de uma história de caso real, mas essa história de amor não é profana, é sempre sagrada, são projeções femininas da sua alma. Hera sempre presente Hera (Juno para os romanos) é a esposa e irmã de Zeus, o senhor do Olimpo, deus dos deuses, conhecido também como Júpiter, na mitologia romana. Essa deusa é o arquétipo da esposa devotada, fiel, mas com um marido nem tão virtuoso. Zeus é famoso por suas escapadas e Hera, por sua ira ciumenta, como quando lançou uma maldição sobre um dos mais famosos filhos fora do casamento de Zeus, Hércules. Hera determinou que Hércules enlouqueceria e mataria sua esposa e filhos. Dito e feito. Foi por isso que surgiu a famosa história dos "doze trabalhos de Hércules": ele precisou passar por essas provas para se purificar do seu crime. Como deusa do casamento, Hera foi reverenciada e injuriada, honrada e humilhada. Ela, mais que qualquer outra deusa, tem atributos marcadamente positivos e negativos. O termo “síndrome de Medeia” descreve apropriadamente a vingativa mulher tipo Hera que se sente traída e descartada e que vai ao extremo para se vingar. O mito de Medéia3 é uma metáfora que descreve a capacidade de a mulher tipo Hera pôr seu relacionamento antes de qualquer outra coisa, e sua capacidade de se vingar quando descobre que seu compromisso não vale nada aos olhos dele. Em “PRIVATE Uma canção desnaturada” (1979), fica clara a presença de Hera, com traços de Medeia, pela incapacidade de se ser mãe, chegando a ponto de rejeitar sua própria filha. Por que cresceste, curuminha Assim depressa, e estabanada Saíste maquilada Dentro do meu vestido Se fosse permitido Eu revertia o tempo Pra reviver a tempo De poder Te ver, as pernas bambas, curuminha Batendo com a moleira Te emporcalhando inteira E eu te negar meu colo Recuperar as noites, curuminha Que atravessei em claro Ignorar teu choro E só cuidar de mim Deixar-te arder em febre, curuminha Cinquenta graus, tossir, bater o queixo Vestir-te com desleixo Tratar uma ama-seca Quebrar tua boneca, curuminha Raspar os teus cabelos E ir te exibindo pelos Botequins Tornar azeite o leite Do peito que mirraste No chão que engatinhaste, salpicar Mil cacos de vidro Pelo cordão perdido ___________________ 3. Na mitologia grega, Medeia era a mulher mortal que assassinou seus próprios filhos para vingar-se de seu marido por abandoná-la. Seu comportamento foi monstruoso, mas foi claramente a vítima de seu amor por Jasão. Enquantoalgumas mulheres poderiam tornar-se deprimidas e até mesmo suicidas após serem rejeitadas e tratadas com desprezo, Medeia ativamente tramou e pôs em prática a vingança. Seu relacionamento com Jasão era o centro de sua vida. Tudo o que fez foi conseqüência de amá-lo ou perdê-lo. Medeia foi atormentada, possuída e impelida à loucura por sua necessidade de ser companheira de Jasão. Sua patologia originou-se da intensidade do instinto de Hera de ser contrariada. Te recolher pra sempre À escuridão do ventre, curuminha De onde não deverias Nunca ter saído A mulher tipo Hera usualmente tem filhos porque esta função é parte de seu papel como esposa (na canção não faz referência a um marido ou companheiro), essa é uma característica de quem tem influência principal o arquétipo de Hera. Ela não terá muito instinto materno e nem apreciará fazer programas com as crianças, pois não consegue formar um elo de mãe-filho. A mãe presente nesta canção remete-nos à Hera quando decidiu ser mãe sozinha de um filho, e concebeu Hefesto que, ao nascer com um pé torto – uma criança defeituosa – Hera o rejeitou e o jogou fora do monte Olimpo. Em “Cotidiano” (1971), Chico apresenta uma mulher essencialmente influenciada por Hera, mas tem outras deusas como arquétipo. Todo dia ela faz tudo sempre igual Me sacode às seis horas da manhã Me sorri um sorriso pontual E me beija com a boca de hortelã Todo dia ela diz que é pra eu me cuidar E essas coisas que diz toda mulher Diz que está me esperando pro jantar E me beija com a boca de café Todo dia eu só penso em poder parar Meio dia eu só penso em dizer não Depois penso na vida pra levar E me calo com a boca de feijão Seis da tarde como era de se esperar Ela pega e me espera no portão Diz que está muito louca pra beijar E me beija com a boca de paixão Toda noite ela diz pra eu não me afastar Meia-noite ela jura eterno amor E me aperta pra eu quase sufocar E me morde com a boca de pavor Todo dia ela faz tudo sempre igual Me sacode às seis horas da manhã Me sorri um sorriso pontual E me beija com a boca de hortelã Chico representa na canção o cenário no qual as mulheres tipo Hera prosperam. O marido sai do trabalho e vai para casa fazer as refeições em horário regular. Ele respeita sua mulher e supõe que ficará casado por toda a vida. Porém, a rotina, o estarem juntos na vida social e os papéis que cada um mantém contribuem para a estabilidade do casamento e para a satisfação que ele proporciona à sua mulher tipo Hera, estabilidade e satisfação que, para ele não é a mesma, pois esses eventos repetitivos acabam por sufocar o homem que é casado com essa mulher, principalmente, porque a esposa da canção também recebe influências de Héstia (que poderá ser tratada em outro artigo, assim como outras deusas que estão citadas aqui) que adapta-se à idéia fora de moda de “boa esposa”. Ela toma conta da casa muito bem. Não é ambiciosa e não compete com seu marido nem o censura. Ela não é namoradeira nem promíscua, ela é fiel e não tem tentação em ser desleal. Quando anoitece, Afrodite se manifesta, ela fica ávida por carinhos, carícias e beijos apaixonados, revelando seu lado sensual, sexual e instintivo. Seguindo o mesmo arquétipo, em “PRIVATE Logo eu?” (1967), Chico apresenta uma, entre tantas mulheres tipo Hera que projetam uma imagem de marido idealizado num homem e depois se tornam críticas e zangadas quando este não vive de acordo com suas expectativas. Tal mulher torna-se “geniosa”, impelindo-o a mudar. Essa morena quer me transtornar Chego em casa me condena Me faz fita, me faz cena Até cansar Logo eu, bom indivíduo Cumpridor fiel e assíduo Dos deveres do meu lar Essa morena de mansinho me conquista Vai roubando gota a gota Esse meu sangue de sambista Essa menina quer me transformar Chego em casa, olha de quina Diz que já me viu na esquina A namorar Logo eu, bom funcionário Cumpridor dos meus horários Um amor quase exemplar A minha amada Diz que é pra eu deixar de férias Pra largar a batucada E pra pensar em coisas sérias E qualquer dia Ela ainda vem pedir, aposto Pra eu deixar a companhia Dos amigos que mais gosto E tem mais isso: Estou cansado quando chego Pego extra no serviço Quero um pouco de sossego Mas não contente Ela me acorda reclamando Me despacha pro batente E fica em casa descansando Porém, fica claro, no último verso da canção, que o trabalho que a mulher desempenha em casa não é reconhecido nem valorizado pelo marido. Em “PRIVATE Com açúcar, com afeto” (1966), a mulher apresentada na canção é do tipo Hera insegura, altamente suscetível ao ciúme. Com muito pouca provocação ela suspeita de infidelidade e sente-se desconsiderada e humilhada em público pela falta de atenção do marido. Se suas reações não são justificadas, ela o afasta com suas acusações e, como conseqüência, o casamento deteriora. Com açúcar, com afeto Fiz seu doce predileto Pra você parar em casa Qual o quê Com seu terno mais bonito Você sai, não acredito Quando diz que não se atrasa Você diz que é operário Vai em busca do salário Pra poder me sustentar Qual o quê No caminho da oficina Há um bar em cada esquina Pra você comemorar Sei lá o quê Sei que alguém vai sentar junto Você vai puxar assunto Discutindo futebol E ficar olhando as saias De quem vive pelas praias Coloridas pelo sol Vem a noite e mais um copo Sei que alegre ma non troppo Você vai querer cantar Na caixinha um novo amigo Vai bater um samba antigo Pra você rememorar Quando a noite enfim lhe cansa Você vem feito criança Pra chorar o meu perdão Qual o quê Diz pra eu não ficar sentida Diz que vai mudar de vida Pra agradar meu coração E ao lhe ver assim cansado Maltrapilho e maltratado Ainda quis me aborrecer Qual o quê Logo vou esquentar seu prato Dou um beijo em seu retrato E abro os meus braços pra você A canção tem como voz a mulher que, por ser incapaz de deixar um casamento (que ela julga como ruim), torna-se negativamente afetada. Transforma-se numa mulher insatisfeita, rancorosa, amargurada, ferida e ciumenta quando seu marido é infiel ou se ela imagina que ele o seja. E, por influência de Afrodite, apesar de todos os defeitos do marido, ela o ama está sempre disposta a “abrir seus braços para ele” e perdoá-lo. Um outro aspecto da mulher Hera está presente em “O casamento dos pequenos burgueses” (1977-1978). A canção apresenta um marido contemporâneo tipo Zeus que, muitas vezes, usa o casamento como um aspecto de sua fachada social. Ele se casou com uma mulher de sua própria classe social e aparece ao lado dela sempre que isso for necessário. Esse arranjo é um casamento utilitário para ambos, talvez por conveniência dos pais. Eles não compartilham seus interesses, não há um envolvimento emocional, mas como o padrão de mulher Hera é de tornar-se esposa, esta situação lhe é conveniente, passando a toda sociedade a imagem de casal perfeito. Ele faz o noivo correto Ela faz que quase desmaia Vão viver sob o mesmo teto Até que a casa caia Até que a casa caia Ele é o empregado discreto Ela engoma o seu colarinho Vão viver sob o mesmo teto Até explodir o ninho Até explodir o ninho Ele faz o macho irrequieto Ela faz crianças de monte Vão viver sob o mesmo teto Até secar a fonte Até secar a fonte Ele é o funcionário completo Ela aprende a fazer suspiros Vão viver sob o mesmo teto Até trocarem tiros Até trocarem tiros Ele tem um caso secreto Ela diz que não sai dos trilhos Vão viver sob o mesmo teto Até casarem os filhos Até casarem os filhos Ele fala de cianureto Ela sonha com formicida Vão viver sob o mesmo teto Até que alguém decida Até que alguém decida Ele tem um velho projeto Ela tem um monte de estrias Vão viver sob o mesmo teto Até o fim dos dias Até o fim dos dias Ele às vezes cede um afeto Ela só se despe no escuro Vão viver sob o mesmo teto Até um breve futuro Até um breve futuro Ela esquenta a papa do neto Ele quase que fez fortuna Vão viver sob o mesmo teto Até que a morte os una Até que a morte os una Esta canção pode provar que lírica e sociedade podem e devem estar intrinsecamente relacionados, conformenos esclarece Adorno: “ (...) o conteúdo de um poema não é mera expressão de emoções e experiências individuais. Pelo contrário, essas só se tornam artísticas quando, exatamente em virtude da especificação do seu tornar-forma estético, adquirem participação no universal.” (p. 193) E, sobre a linguagem, ele completa: “(...) a linguagem estabelece a mediação entre lírica e sociedade no que há de mais intrínseco. Por isso a lírica se mostra mais profundamente garantida socialmente ali onde não fala segundo o paladar da sociedade, onde nada comunica, onde, ao contrário, o sujeito, que acerta com a expressão feliz, chega ao pé de igualdade com a própria linguagem, ao ponto onde esta, por si mesma, gostaria de ir.” (p. 198) Em “Atrás da porta” (1972), em parceria com Francis Hime, mostra o momento da separação em que o arquétipo de Hera fica bem reforçado. Se o homem quer deixar a mulher tipo Hera, ela resiste profundamente ao ouvir o que ele está dizendo. O relacionamento é o mais importante para ela – em sua mente, eles ficarão juntos para sempre. Até mesmo após a separação, a mulher pode ainda pensar em si como se ainda estivesse com ele e sofrer novamente cada vez que se lembrar que não é mais. Quando olhaste bem nos olhos meus E o teu olhar era de adeus Juro que não acreditei Eu te estranhei Me debrucei Sobre teu corpo e duvidei E me arrastei e te arranhei E me agarrei nos teus cabelos No teu peito (Nos teus pelos) Teu pijama Nos teus pés Ao pé da cama Sem carinho, sem coberta No tapete atrás da porta Reclamei baixinho Dei pra maldizer o nosso lar Pra sujar teu nome, te humilhar E me vingar a qualquer preço Te adorando pelo avesso Pra mostrar que inda sou tua Só pra provar que inda sou tua... Hera é uma força obsessiva, e a mulher que apresenta essa característica precisa saber que, uma vez que o homem a abandonou, ela terá dificuldade em acreditar na perda. Ela tem problemas em aceitar a realidade e é mais provável acreditar num final mítico em que ele sentirá saudades dela e voltará. Na canção “PRIVATE Olhos nos olhos” (1976), Chico mostra a evolução da mulher tipo Hera que consegue desligar-se do outro, passando por um momento de equilíbrio (sob influência de Héstia), relacionando-se com outras pessoas (sob influência de Afrodite), até chegar à figura materna que oferece seu “colo”, pois sabe que já conseguiu superar a dor do rompimento. Quando você me deixou, meu bem Me disse pra ser feliz e passar bem Quis morrer de ciúme, quase enlouqueci Mas depois, como era de costume, obedeci Quando você me quiser rever Já vai me encontrar refeita, pode crer Olhos nos olhos, quero ver o que você faz Ao sentir que sem você eu passo bem demais E que venho até remoçando Me pego cantando Sem mas nem porque E tantas águas rolaram Quantos homens me amaram Bem mais e melhor que você Quando talvez precisar de mim 'Cê sabe que a casa é sempre sua, venha sim Olhos nos olhos, quero ver o que você diz Quero ver como suporta me ver tão feliz Quando ocorre a perda do amado, a mulher tipo Hera que não desenvolveu outros aspectos de si mesma pode ir de uma depressão de luto a uma depressão crônica, sem rumo e desolada. Essa reação é a conseqüência de sua atitude e ação anteriores limitadas (como ocorreu com a figura de “Atrás da porta”). Essa mulher que reage com sofrimento à separação de seu companheiro, não é tão vulnerável se ela também tiver Héstia como um arquétipo, que inclusive, faz com que ela se sinta mais jovem e completa no princípio de uma nova vida. Somente quando ela pára de esperar pela eventual reconciliação é que pode recobrar o equilíbrio e prosseguir em sua vida, recomeçando sua vida e, dessa vez, podendo escolher sabiamente. Em seus novos relacionamentos (com a influência marcante de Afrodite), o ímpeto de ter um relacionamento estável novamente pode ser realizado de modo positivo. No final, surge nela o arquétipo de Deméter, que a motiva (como uma mãe) a nutrir os outros, a ser generosa no dar, e encontrar satisfação como alguém que zela, oferecendo, inclusive sua casa ao antigo amor. O momento da despedida é tema de “PRIVATE Pedaço de mim” (1977-1978) em que ambas as partes estão sofrendo com a partida. Mas apenas a voz feminina será analisada, presente na segunda metade da canção. Oh, pedaço de mim Oh, metade afastada de mim Leva o teu olhar Que a saudade é o pior tormento É pior do que o esquecimento É pior do que se entrevar Oh, pedaço de mim Oh, metade exilada de mim Leva os teus sinais Que a saudade dói como um barco Que aos poucos descreve um arco E evita atracar no cais Oh, pedaço de mim Oh, metade arrancada de mim Leva o vulto teu Que a saudade é o revés de um parto A saudade é arrumar o quarto Do filho que já morreu Oh, pedaço de mim Oh, metade amputada de mim Leva o que há de ti Que a saudade dói latejada É assim como uma fisgada No membro que já perdi Oh, pedaço de mim Oh, metade adorada de mim Lava os olhos meus Que a saudade é o pior castigo E eu não quero levar comigo A mortalha do amor Adeus A mulher Hera sente-se parte do outro, portanto, quando sozinha, sente-se incompleta, pois sua vida só tem sentido na condição de casal. Quando é influenciada por Deméter, a mulher que perde um relacionamento (ou se distancia dele) não apenas sente a falta da pessoa, mas perde seu papel associado à maternidade que lhe deu sentido de importância e significado. Sente-se como se fosse deixada com um ninho vazio e um sentimento de solidão. Isso tudo que está dito aqui pode ser apenas mais uma leitura, dentre as muitas encontráveis fartamente na literatura, já que Umberto Eco (1995) nos revela: “A iniciativa do leitor consiste em fazer uma conjectura sobre a intentio operis, conjectura essa que deve ser aprovada pelo complexo do texto como um todo orgânico. Isso não significa que só se possa fazer sobre um texto uma e apenas uma conjectura.” (p. 15) REFERÊNCIAS MITOLOGIA, PSICOLOGIA E ARQUÉTIPOS BOLEN, Jean Shinoda. As deusas e a mulher: nova psicologia das mulheres (tradução de Maria Lydia Remédio). São Paulo: Paulus, 1990. BRANDÃO, J. S. Mitologia Grega (Vol. I), Petrópolis: Vozes, 1989, 5ª ed., p. 238. FREUD, S. “A Cabeça da Medusa” (1922) in Obras Completas de Sigmund Freud. Vol. XVIII, Rio de Janeiro: Imago, 1976, p. 329-330. HILLMAN, James, Mito da Análise (O) Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1984 - 275 p. JUNG, Carl Gustav. Tipos psicológicos. Petrópolis: Vozes, 1991. KEHL, Maria Rita. A mínima diferença: masculino e feminino na cultura. ed. - Rio de Janeiro: Imago Editora - 1996 - 269 p. PUGLIESI, Márcio. Mitologia Greco-Romana: arquétipos dos deuses e heróis. São Paulo: Madras, 2003. CHICO BUARQUE FONTES, Maria Helena Sansão. Sem fantasia: masculino-feminino em Chico Buarque. Rio de Janeiro: Graphia Editorial, 1999. HOLLANDA, Chico Buarque de. Chico Buarque, letra e música. São Paulo: Companhia das Letras, 1989. MENEZES, Adélia Bezerra de. Figuras do feminino na canção de Chico Buarque. São Paulo: Atelié Editorial, 2000. ___. Desenho mágico: poesia e política em Chico Buarque. São Paulo: Atelié Editorial, 2000. SOUZA, Tárik de. 50 Anos Chico Buarque. São Paulo: s/e, 1997. TEÓRICOS BENJAMIM et al. Os pensadores. Trad. José Lino Güinnewald et al. São Paulo: Abril Cultural, 1983. ECO, Umberto. Os limites da interpretação. Trad. Pérola de Carvalho. São Paulo: Perspectiva, 1995.
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