Buscar

A Presença de Hera nas canções de Chico Buarque

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes
Você viu 3, do total de 13 páginas

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes
Você viu 6, do total de 13 páginas

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes
Você viu 9, do total de 13 páginas

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Prévia do material em texto

A PRESENÇA DE HERA NAS CANÇÕES DE CHICO BUARQUE
Élin Cunha Luiz Cardoso*
Na música de Chico Buarque a mulher é a eterna musa. Cantar com magia a sedução pelo feminino é a sua grande arte. Ele abarca desde a mulher dionísiaca, aquela que se oferece à felicidade plena, quase ingênua, à mulher da raça de Prometeu, racional e trágica como o próprio deus da civilização, do trabalho, da cultura e, também, da repressão. Ou a mulher de Atenas, prisioneira do inescapável papel social de “serva da espécie”. É uma galeria interminável, modelada às vezes com suave lirismo, às vezes com dramas de separações dilacerantes, sempre com jogos de entregas, perdas, ambivalências e a infinitude da busca de felicidade, de amor. Apesar de haver tantas relações com a mitologia, sua obra não foi, necessariamente, construída sobre este prisma.
As representações do feminino na obra de Chico Buarque destacam a intensa valorização dada à mulher em sua obra, mas sem perder de vista que tais representações se inserem numa cultura patriarcal, da qual o próprio autor é produto e, até certo ponto, também representante. Fontes, por exemplo, assinala que: 
Como poeta de seu tempo, [Chico] é consciente da condição da mulher na sociedade, da opressão oriunda de situações econômicas e culturais (…). Entretanto, sobrevivem no poeta os arquétipos inconscientes e primordiais relativos ao Grande Feminino que impulsionam seu gesto criador e fazem com que se revelem em sua obra tanto a necessidade de valorização da mulher como deusa e fêmea, como a angústia de sua contraparte, a mulher castradora, face terrível da Grande Mãe (FONTES, 1999. p.10). 
Portanto, esses aspectos transparecem nas canções: a mulher é representada como deusa ou amante, protetora ou devoradora, diabólica ou submissa, sem que um deles exclua seu contrário. Seja ela emissora, referente ou destinatária do texto poético, ela é o feminino múltiplo: da submissão à transgressão. Às vezes, o poeta reveste o feminino com imagens de alta sensibilidade sensorial, convocando os sentidos do tato, do olfato e da visão. Outras vezes, tratar-se-ia do eu lírico feminino – a anima do autor, em termos jungianos. Chico
___________________
Universidade Federal de Goiás. Goiânia. Especialista em Língua Portuguesa e Literatura Brasileira. 
elin_cardoso@yahoo.com.br
consegue não só ser o outro, mas a outra. “Nas canções de Chico Buarque emerge a fala da 
mulher, de uma perspectiva, por vezes, espantosamente feminina”. (MENEZES, 2000. p.20) 
Chico abre o espaço íntimo da mulher, revelando-o não só para o amante e para ela mesma, mas para a sociedade que permanece estranha ao drama. Ao cantar, a dor da perda alcança o feminino coletivo e o sofrimento é exposto. Há comunhão entre o poeta e os sentimentos da mulher como ser socialmente marginalizado. 
Considera-se a mulher como ser marginalizado, pois era vista desde Hesíodo até o século V a.C. como um grande mal, um castigo infringido aos homens por Zeus no mito de Prometeu e de Pandora2.
Pode-se encontrar nas canções do Chico as personagens femininas que compõem variadas concepções sobre a mulher presentes na nossa cultura, da santa à prostituta, de um feminino submisso e passivo a um feminino masculino e ativo. A importância da obra do Chico, para além da sua beleza plástica e sonora, está nas tonalidades interpretativas que ele compõe para se relacionar com as variações do feminino, sugerindo sempre a autoridade de uma identidade para cada mulher. 
A partir de Freud ganha-se a possibilidade e o estatuto de serem também histéricas. E para muitos, até hoje, além da maternidade, a histeria é tida como a única manifestação do feminino. "Ser mulher" então, também com Freud, é pertencer à categoria do patológico e do inferior a ser submetido pela cultura. 
Então "ser uma mulher", implica em localizar, dentro de um discurso masculino que constrói a feminilidade, alternativas para "que mulher se pode ser". Numa posição passiva do feminino, as opções oferecidas em geral situam-se entre "mãe" (ou "santa") e 
_______________________
2. Pandora aparece como um "presente" dado aos homens. Hesíodo conta que Hefesto moldou-a semelhante às deusas nas feições e que os demais deuses e deusas concederam-lhe ainda muitos dons. Hermes, especificamente, lhe pôs no coração a perfídia e os discursos enganosos, além da curiosidade... 
Pandora abriu a caixa, curiosa... e espalhou todos os males, até então presos na caixa, pelo mundo. Desde então, a mulher é considerada a origem de todos os tormentos do homem e deve ser vigiada. 
"histérica" (ou leviana). Em geral caminha-se entre personagens da adolescente ingênua e romântica (Perséfone), da esposa virtuosa (Hera) ou da amante apaixonada (Afrodite). Neste artigo, entretanto, só serão tratadas as canções cujo arquétipo predominante é a deusa Hera.
Chico sabe "o que quer a mulher" porque reconhece seus desejos e isto porque é capaz da experiência do encontro da sua própria contraparte feminina, como se soubesse que ser homem e ser mulher são possibilidades imanentes de um todo ao mesmo tempo masculino e feminino. Busca novos nexos, fluxos, figuras melódicas presentes na fluidez de uma outra ordem, na lógica dos sentimentos. Vai atrás de possibilidades ainda não exploradas, com a virilidade ativa de um homem, mas com a doçura sentimental e receptiva da mulher.
Em suas músicas, as mulheres são sempre musas, deusas, a consorte escolhida. Levando em conta ser o autor contemporâneo, os arquétipos também são vistos de acordo com os conceitos atuais (e não como seres idealizados); são parte de uma história de caso real, mas essa história de amor não é profana, é sempre sagrada, são projeções femininas da sua alma.
Hera sempre presente
Hera (Juno para os romanos) é a esposa e irmã de Zeus, o senhor do Olimpo, deus dos deuses, conhecido também como Júpiter, na mitologia romana. Essa deusa é o arquétipo da esposa devotada, fiel, mas com um marido nem tão virtuoso. Zeus é famoso por suas escapadas e Hera, por sua ira ciumenta, como quando lançou uma maldição sobre um dos mais famosos filhos fora do casamento de Zeus, Hércules. Hera determinou que Hércules enlouqueceria e mataria sua esposa e filhos. Dito e feito. Foi por isso que surgiu a famosa história dos "doze trabalhos de Hércules": ele precisou passar por essas provas para se purificar do seu crime.
Como deusa do casamento, Hera foi reverenciada e injuriada, honrada e humilhada. Ela, mais que qualquer outra deusa, tem atributos marcadamente positivos e negativos.
O termo “síndrome de Medeia” descreve apropriadamente a vingativa mulher tipo Hera que se sente traída e descartada e que vai ao extremo para se vingar. O mito de Medéia3 é uma metáfora que descreve a capacidade de a mulher tipo Hera pôr seu relacionamento antes de qualquer outra coisa, e sua capacidade de se vingar quando descobre que seu compromisso não vale nada aos olhos dele. 
Em “PRIVATE
Uma canção desnaturada” (1979), fica clara a presença de Hera, com traços de Medeia, pela incapacidade de se ser mãe, chegando a ponto de rejeitar sua própria filha. 
Por que cresceste, curuminha
Assim depressa, e estabanada
Saíste maquilada
Dentro do meu vestido
Se fosse permitido
Eu revertia o tempo
Pra reviver a tempo
De poder
Te ver, as pernas bambas, curuminha
Batendo com a moleira
Te emporcalhando inteira
E eu te negar meu colo
Recuperar as noites, curuminha
Que atravessei em claro
Ignorar teu choro
E só cuidar de mim
Deixar-te arder em febre, curuminha
Cinquenta graus, tossir, bater o queixo
Vestir-te com desleixo
Tratar uma ama-seca
Quebrar tua boneca, curuminha
Raspar os teus cabelos
E ir te exibindo pelos
Botequins
Tornar azeite o leite
Do peito que mirraste
No chão que engatinhaste, salpicar
Mil cacos de vidro
Pelo cordão perdido
___________________
3. Na mitologia grega, Medeia era a mulher mortal que assassinou seus próprios filhos para vingar-se de seu marido por abandoná-la. Seu comportamento foi monstruoso, mas foi claramente a vítima de seu amor por Jasão. Enquantoalgumas mulheres poderiam tornar-se deprimidas e até mesmo suicidas após serem rejeitadas e tratadas com desprezo, Medeia ativamente tramou e pôs em prática a vingança. Seu relacionamento com Jasão era o centro de sua vida. Tudo o que fez foi conseqüência de amá-lo ou perdê-lo. Medeia foi atormentada, possuída e impelida à loucura por sua necessidade de ser companheira de Jasão. Sua patologia originou-se da intensidade do instinto de Hera de ser contrariada.
Te recolher pra sempre
À escuridão do ventre, curuminha
De onde não deverias
Nunca ter saído
A mulher tipo Hera usualmente tem filhos porque esta função é parte de seu papel como esposa (na canção não faz referência a um marido ou companheiro), essa é uma característica de quem tem influência principal o arquétipo de Hera. Ela não terá muito instinto materno e nem apreciará fazer programas com as crianças, pois não consegue formar um elo de mãe-filho.
A mãe presente nesta canção remete-nos à Hera quando decidiu ser mãe sozinha de um filho, e concebeu Hefesto que, ao nascer com um pé torto – uma criança defeituosa – Hera o rejeitou e o jogou fora do monte Olimpo. 
Em “Cotidiano” (1971), Chico apresenta uma mulher essencialmente influenciada por Hera, mas tem outras deusas como arquétipo.
Todo dia ela faz tudo sempre igual
Me sacode às seis horas da manhã
Me sorri um sorriso pontual
E me beija com a boca de hortelã
Todo dia ela diz que é pra eu me cuidar
E essas coisas que diz toda mulher
Diz que está me esperando pro jantar
E me beija com a boca de café
Todo dia eu só penso em poder parar
Meio dia eu só penso em dizer não
Depois penso na vida pra levar
E me calo com a boca de feijão
Seis da tarde como era de se esperar
Ela pega e me espera no portão
Diz que está muito louca pra beijar
E me beija com a boca de paixão
Toda noite ela diz pra eu não me afastar
Meia-noite ela jura eterno amor
E me aperta pra eu quase sufocar
E me morde com a boca de pavor
Todo dia ela faz tudo sempre igual
Me sacode às seis horas da manhã
Me sorri um sorriso pontual
E me beija com a boca de hortelã
Chico representa na canção o cenário no qual as mulheres tipo Hera prosperam. O marido sai do trabalho e vai para casa fazer as refeições em horário regular. Ele respeita sua mulher e supõe que ficará casado por toda a vida. Porém, a rotina, o estarem juntos na vida social e os papéis que cada um mantém contribuem para a estabilidade do casamento e para a satisfação que ele proporciona à sua mulher tipo Hera, estabilidade e satisfação que, para ele não é a mesma, pois esses eventos repetitivos acabam por sufocar o homem que é casado com essa mulher, principalmente, porque a esposa da canção também recebe influências de Héstia (que poderá ser tratada em outro artigo, assim como outras deusas que estão citadas aqui) que adapta-se à idéia fora de moda de “boa esposa”. Ela toma conta da casa muito bem. Não é ambiciosa e não compete com seu marido nem o censura. Ela não é namoradeira nem promíscua, ela é fiel e não tem tentação em ser desleal.
Quando anoitece, Afrodite se manifesta, ela fica ávida por carinhos, carícias e beijos apaixonados, revelando seu lado sensual, sexual e instintivo.
Seguindo o mesmo arquétipo, em “PRIVATE
Logo eu?” (1967), Chico apresenta uma, entre tantas mulheres tipo Hera que projetam uma imagem de marido idealizado num homem e depois se tornam críticas e zangadas quando este não vive de acordo com suas expectativas. Tal mulher torna-se “geniosa”, impelindo-o a mudar.
Essa morena quer me transtornar
Chego em casa me condena
Me faz fita, me faz cena
Até cansar
Logo eu, bom indivíduo
Cumpridor fiel e assíduo
Dos deveres do meu lar
Essa morena de mansinho me conquista
Vai roubando gota a gota
Esse meu sangue de sambista
Essa menina quer me transformar
Chego em casa, olha de quina
Diz que já me viu na esquina
A namorar
Logo eu, bom funcionário
Cumpridor dos meus horários
Um amor quase exemplar
A minha amada
Diz que é pra eu deixar de férias
Pra largar a batucada
E pra pensar em coisas sérias
E qualquer dia
Ela ainda vem pedir, aposto
Pra eu deixar a companhia
Dos amigos que mais gosto
E tem mais isso:
Estou cansado quando chego
Pego extra no serviço
Quero um pouco de sossego
Mas não contente
Ela me acorda reclamando
Me despacha pro batente
E fica em casa descansando
Porém, fica claro, no último verso da canção, que o trabalho que a mulher desempenha em casa não é reconhecido nem valorizado pelo marido.
Em “PRIVATE
Com açúcar, com afeto” (1966), a mulher apresentada na canção é do tipo Hera insegura, altamente suscetível ao ciúme. Com muito pouca provocação ela suspeita de infidelidade e sente-se desconsiderada e humilhada em público pela falta de atenção do marido. Se suas reações não são justificadas, ela o afasta com suas acusações e, como conseqüência, o casamento deteriora.
Com açúcar, com afeto
Fiz seu doce predileto
Pra você parar em casa
Qual o quê
Com seu terno mais bonito
Você sai, não acredito
Quando diz que não se atrasa
Você diz que é operário
Vai em busca do salário
Pra poder me sustentar
Qual o quê
No caminho da oficina
Há um bar em cada esquina
Pra você comemorar
Sei lá o quê
Sei que alguém vai sentar junto
Você vai puxar assunto
Discutindo futebol
E ficar olhando as saias
De quem vive pelas praias
Coloridas pelo sol
Vem a noite e mais um copo
Sei que alegre ma non troppo
Você vai querer cantar
Na caixinha um novo amigo
Vai bater um samba antigo
Pra você rememorar
Quando a noite enfim lhe cansa
Você vem feito criança
Pra chorar o meu perdão
Qual o quê
Diz pra eu não ficar sentida
Diz que vai mudar de vida
Pra agradar meu coração
E ao lhe ver assim cansado
Maltrapilho e maltratado
Ainda quis me aborrecer
Qual o quê
Logo vou esquentar seu prato
Dou um beijo em seu retrato
E abro os meus braços pra você
A canção tem como voz a mulher que, por ser incapaz de deixar um casamento (que ela julga como ruim), torna-se negativamente afetada. Transforma-se numa mulher insatisfeita, rancorosa, amargurada, ferida e ciumenta quando seu marido é infiel ou se ela imagina que ele o seja. E, por influência de Afrodite, apesar de todos os defeitos do marido, ela o ama está sempre disposta a “abrir seus braços para ele” e perdoá-lo.
Um outro aspecto da mulher Hera está presente em “O casamento dos pequenos burgueses” (1977-1978). A canção apresenta um marido contemporâneo tipo Zeus que, muitas vezes, usa o casamento como um aspecto de sua fachada social. Ele se casou com uma mulher de sua própria classe social e aparece ao lado dela sempre que isso for necessário. Esse arranjo é um casamento utilitário para ambos, talvez por conveniência dos pais. Eles não compartilham seus interesses, não há um envolvimento emocional, mas como o padrão de mulher Hera é de tornar-se esposa, esta situação lhe é conveniente, passando a toda sociedade a imagem de casal perfeito.
Ele faz o noivo correto
Ela faz que quase desmaia
Vão viver sob o mesmo teto
Até que a casa caia
Até que a casa caia
Ele é o empregado discreto
Ela engoma o seu colarinho
Vão viver sob o mesmo teto
Até explodir o ninho
Até explodir o ninho
Ele faz o macho irrequieto
Ela faz crianças de monte
Vão viver sob o mesmo teto
Até secar a fonte
Até secar a fonte
Ele é o funcionário completo
Ela aprende a fazer suspiros
Vão viver sob o mesmo teto
Até trocarem tiros
Até trocarem tiros
Ele tem um caso secreto
Ela diz que não sai dos trilhos
Vão viver sob o mesmo teto
Até casarem os filhos
Até casarem os filhos
Ele fala de cianureto
Ela sonha com formicida
Vão viver sob o mesmo teto
Até que alguém decida
Até que alguém decida
Ele tem um velho projeto
Ela tem um monte de estrias
Vão viver sob o mesmo teto
Até o fim dos dias
Até o fim dos dias
Ele às vezes cede um afeto
Ela só se despe no escuro
Vão viver sob o mesmo teto
Até um breve futuro
Até um breve futuro
Ela esquenta a papa do neto
Ele quase que fez fortuna
Vão viver sob o mesmo teto
Até que a morte os una
Até que a morte os una
Esta canção pode provar que lírica e sociedade podem e devem estar intrinsecamente relacionados, conformenos esclarece Adorno:
“ (...) o conteúdo de um poema não é mera expressão de emoções e experiências individuais. Pelo contrário, essas só se tornam artísticas quando, exatamente em virtude da especificação do seu tornar-forma estético, adquirem participação no universal.” (p. 193)
E, sobre a linguagem, ele completa:
“(...) a linguagem estabelece a mediação entre lírica e sociedade no que há de mais intrínseco. Por isso a lírica se mostra mais profundamente garantida socialmente ali onde não fala segundo o paladar da sociedade, onde nada comunica, onde, ao contrário, o sujeito, que acerta com a expressão feliz, chega ao pé de igualdade com a própria linguagem, ao ponto onde esta, por si mesma, gostaria de ir.” (p. 198)
Em “Atrás da porta” (1972), em parceria com Francis Hime, mostra o momento da separação em que o arquétipo de Hera fica bem reforçado.
Se o homem quer deixar a mulher tipo Hera, ela resiste profundamente ao ouvir o que ele está dizendo. O relacionamento é o mais importante para ela – em sua mente, eles ficarão juntos para sempre. Até mesmo após a separação, a mulher pode ainda pensar em si como se ainda estivesse com ele e sofrer novamente cada vez que se lembrar que não é mais.
Quando olhaste bem nos olhos meus
E o teu olhar era de adeus
Juro que não acreditei
Eu te estranhei
Me debrucei
Sobre teu corpo e duvidei
E me arrastei e te arranhei
E me agarrei nos teus cabelos
No teu peito (Nos teus pelos)
Teu pijama
Nos teus pés
Ao pé da cama
Sem carinho, sem coberta
No tapete atrás da porta
Reclamei baixinho
Dei pra maldizer o nosso lar
Pra sujar teu nome, te humilhar
E me vingar a qualquer preço
Te adorando pelo avesso
Pra mostrar que inda sou tua
Só pra provar que inda sou tua...
Hera é uma força obsessiva, e a mulher que apresenta essa característica precisa saber que, uma vez que o homem a abandonou, ela terá dificuldade em acreditar na perda. Ela tem problemas em aceitar a realidade e é mais provável acreditar num final mítico em que ele sentirá saudades dela e voltará.
Na canção “PRIVATE
Olhos nos olhos” (1976), Chico mostra a evolução da mulher tipo Hera que consegue desligar-se do outro, passando por um momento de equilíbrio (sob influência de Héstia), relacionando-se com outras pessoas (sob influência de Afrodite), até chegar à figura materna que oferece seu “colo”, pois sabe que já conseguiu superar a dor do rompimento.
Quando você me deixou, meu bem
Me disse pra ser feliz e passar bem
Quis morrer de ciúme, quase enlouqueci
Mas depois, como era de costume, obedeci
Quando você me quiser rever
Já vai me encontrar refeita, pode crer
Olhos nos olhos, quero ver o que você faz
Ao sentir que sem você eu passo bem demais
E que venho até remoçando
Me pego cantando
Sem mas nem porque
E tantas águas rolaram
Quantos homens me amaram
Bem mais e melhor que você
Quando talvez precisar de mim
'Cê sabe que a casa é sempre sua, venha sim
Olhos nos olhos, quero ver o que você diz
Quero ver como suporta me ver tão feliz
Quando ocorre a perda do amado, a mulher tipo Hera que não desenvolveu outros aspectos de si mesma pode ir de uma depressão de luto a uma depressão crônica, sem rumo e desolada. Essa reação é a conseqüência de sua atitude e ação anteriores limitadas (como ocorreu com a figura de “Atrás da porta”).
Essa mulher que reage com sofrimento à separação de seu companheiro, não é tão vulnerável se ela também tiver Héstia como um arquétipo, que inclusive, faz com que ela se sinta mais jovem e completa no princípio de uma nova vida.
 Somente quando ela pára de esperar pela eventual reconciliação é que pode recobrar o equilíbrio e prosseguir em sua vida, recomeçando sua vida e, dessa vez, podendo escolher sabiamente. 
Em seus novos relacionamentos (com a influência marcante de Afrodite), o ímpeto de ter um relacionamento estável novamente pode ser realizado de modo positivo.
No final, surge nela o arquétipo de Deméter, que a motiva (como uma mãe) a nutrir os outros, a ser generosa no dar, e encontrar satisfação como alguém que zela, oferecendo, inclusive sua casa ao antigo amor.
O momento da despedida é tema de “PRIVATE
Pedaço de mim” (1977-1978) em que ambas as partes estão sofrendo com a partida. Mas apenas a voz feminina será analisada, presente na segunda metade da canção. 
Oh, pedaço de mim
Oh, metade afastada de mim
Leva o teu olhar
Que a saudade é o pior tormento
É pior do que o esquecimento
É pior do que se entrevar
Oh, pedaço de mim
Oh, metade exilada de mim
Leva os teus sinais
Que a saudade dói como um barco
Que aos poucos descreve um arco
E evita atracar no cais
Oh, pedaço de mim
Oh, metade arrancada de mim
Leva o vulto teu
Que a saudade é o revés de um parto
A saudade é arrumar o quarto
Do filho que já morreu
Oh, pedaço de mim
Oh, metade amputada de mim
Leva o que há de ti
Que a saudade dói latejada
É assim como uma fisgada
No membro que já perdi
Oh, pedaço de mim
Oh, metade adorada de mim
Lava os olhos meus
Que a saudade é o pior castigo
E eu não quero levar comigo
A mortalha do amor
Adeus 
A mulher Hera sente-se parte do outro, portanto, quando sozinha, sente-se incompleta, pois sua vida só tem sentido na condição de casal.
 Quando é influenciada por Deméter, a mulher que perde um relacionamento (ou se distancia dele) não apenas sente a falta da pessoa, mas perde seu papel associado à maternidade que lhe deu sentido de importância e significado. Sente-se como se fosse deixada com um ninho vazio e um sentimento de solidão.
Isso tudo que está dito aqui pode ser apenas mais uma leitura, dentre as muitas encontráveis fartamente na literatura, já que Umberto Eco (1995) nos revela: 
“A iniciativa do leitor consiste em fazer uma conjectura sobre a intentio operis, conjectura essa que deve ser aprovada pelo complexo do texto como um todo orgânico. Isso não significa que só se possa fazer sobre um texto uma e apenas uma conjectura.” (p. 15)
REFERÊNCIAS
MITOLOGIA, PSICOLOGIA E ARQUÉTIPOS
BOLEN, Jean Shinoda. As deusas e a mulher: nova psicologia das mulheres (tradução de Maria Lydia Remédio). São Paulo: Paulus, 1990.
BRANDÃO, J. S. Mitologia Grega (Vol. I), Petrópolis: Vozes, 1989, 5ª ed., p. 238. 
FREUD, S. “A Cabeça da Medusa” (1922) in Obras Completas de Sigmund Freud. Vol. XVIII, Rio de Janeiro: Imago, 1976, p. 329-330. 
HILLMAN, James, Mito da Análise (O) Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1984 - 275 p.
JUNG, Carl Gustav. Tipos psicológicos. Petrópolis: Vozes, 1991.
KEHL, Maria Rita. A mínima diferença: masculino e feminino na cultura. ed. - Rio de Janeiro: Imago Editora - 1996 - 269 p.
PUGLIESI, Márcio. Mitologia Greco-Romana: arquétipos dos deuses e heróis. São Paulo: Madras, 2003.
CHICO BUARQUE
FONTES, Maria Helena Sansão. Sem fantasia: masculino-feminino em Chico Buarque. Rio de Janeiro: Graphia Editorial, 1999. 
HOLLANDA, Chico Buarque de. Chico Buarque, letra e música. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.
MENEZES, Adélia Bezerra de. Figuras do feminino na canção de Chico Buarque. São Paulo: Atelié Editorial, 2000. 
___. Desenho mágico: poesia e política em Chico Buarque. São Paulo: Atelié Editorial, 2000. 
SOUZA, Tárik de. 50 Anos Chico Buarque. São Paulo: s/e, 1997.
TEÓRICOS
BENJAMIM et al. Os pensadores. Trad. José Lino Güinnewald et al. São Paulo: Abril
Cultural, 1983.
ECO, Umberto. Os limites da interpretação. Trad. Pérola de Carvalho. São Paulo: Perspectiva, 1995.

Continue navegando