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295A PESQUISA JURÍDICO-CRIMINAL NO ESTADO DE ALAGOAS | Volume I MEDIDAS DE SEGURANÇA APLICADAS EM MULHERES: análise dos fundamentos para as práticas de internamento feminino no manicômio judiciário de Alagoas (1979-1983) Laura Fernandes da Silva Graduanda do curso de Direito pela Universidade Federal de Alagoas (UFAL). Membro associada do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM). Estagiária na Defensoria Pública da União em Alagoas. Contato: laura.silva@fda.ufal.br Introdução O interesse em estudar a aplicação de medidas de segurança a partir de um recorte de gênero, neste caso, com enfoque nas mulheres submetidas à referida medida, nasceu em 2015, através do projeto de extensão Reconstruindo Elos, da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Alagoas. Nesse projeto, os estudantes desenvolviam atividades semanais no Centro Psiquiátrico Judiciário Pedro Marinho Suruagy, única instituição no estado de Alagoas responsável pela tutela de inimputáveis em cumprimento de medida de segurança, nos termos do art. 26, do Código Penal, e de pessoas sobre quem sobreveio algum tipo de doença mental durante o cumprimento da pena, conforme o art. 41, também do Código Penal. A partir das atividades do referido projeto foi possível observar que as práticas institucionais naquele hospital estavam muito atreladas a um discurso de padronização que acabava por ignorar, dentre outras coisas, as especificidades de gênero. Se é fato que a população privada de liberdade sofre com a precariedade do sistema prisional e com os rituais de mortificação comuns a instituições totais (GOFFMAN, 2015), as mulheres submetidas a medidas de segurança compõem um grupo ainda mais negligenciado. Sofrem por estarem em número bem inferior aos homens na mesma situação, o que diminui consideravelmente as chances de serem ouvidas; sofrem por, sendo mulheres, terem cometido injusto penal, já que tais atos quando cometidos por pessoa do sexo feminino tendem a ser 296 297A PESQUISA JURÍDICO-CRIMINAL NO ESTADO DE ALAGOAS | Volume I A PESQUISA JURÍDICO-CRIMINAL NO ESTADO DE ALAGOAS | Volume I mais reprováveis socialmente; e sofrem ainda por serem consideradas loucas, visto que as consequências deste diagnóstico vão além da medicalização. O peso desses estigmas repercute negativamente e em grande medida no tratamento e na vida das mulheres, especialmente quando se trata de casos de internação. Foi, então, através da observação do presente, que nasceu o interesse em analisar o passado. Com esse intuito, a partir do ingresso no Laboratório de Ciências Criminais - IBCCrim/CESMAC 2016, buscou-se compreender de que forma as práticas médico-jurídicas foram operacionalizadas para realizar o diagnóstico das mulheres que passaram pelo Centro Psiquiátrico Judiciário Pedro Marinho Suruagy, doravante chamado de Manicômio Judiciário de Alagoas, determinando que algumas delas fossem consideradas como pessoas em sofrimento mental. O período escolhido foi de 1979, ano seguinte à sua inauguração, a 1983. O ano em que foi inaugurado o Manicômio, 1978, não foi objeto de análise nesta pesquisa, pois não foram encontrados laudos de mulheres que passaram pelo hospital no referido ano, o que inviabilizou a coleta de dados. Este estudo foi realizado através de pesquisa empírica, especificamente de estudo de casos, tendo em vista que através deste método é possível acessar subjetividades. O método utilizado na análise documental foi o qualitativo, pois foram analisados discursos e práticas institucionais. A coleta de dados se deu no arquivo do próprio Manicômio Judiciário e o critério escolhido para a seleção documental foi, como já mencionado acima, o cronológico. Inicialmente, o objetivo era digitalizar e estudar tanto os laudos médicos e fichas de prescrição de tratamentos quanto os processos judiciais das pacientes. No entanto, estes últimos não foram localizados, apesar das buscas no arquivo da CEUP (Chefia Especial de Unidades Penitenciárias do Sistema Prisional de Alagoas), nos arquivos do Tribunal de Justiça de Alagoas e Arquivo Público de Alagoas. Sem êxito na procura pelos processos judiciais, o foco das análises passou a ser os laudos médicos e fichas de tratamento das pacientes. O interesse por estas últimas se justifica pela possibilidade de verificação dos tipos de tratamentos prescritos, a fim de perceber se eles eram condizentes com o movimento antimanicomial que, àquela época, já estava fomentando discussões acerca da eficiência do tratamento asilar da loucura. Este movimento, que será melhor explicado no primeiro capítulo deste trabalho, tinha como uma das principais reivindicações a humanização no tratamento das pessoas em sofrimento mental, realizando duras críticas, por exemplo, a tratamentos degradantes como o eletrochoque e ao processo de cronificação do quadro clínico de sofrimento mental - bastante comum a pacientes psiquiátricos - especialmente os que permaneciam internados por longos períodos (LÜCHMANN; RODRIGUES, 2006, p. 402). O presente texto está estruturado em três capítulos. No primeiro será realizada uma abordagem acerca do contexto de criação e dos primeiros anos de funcionamento do Manicômio. O objetivo inicial era localizar a lei que o instituiu para investigar quais as discussões foram travadas ao redor da sua criação e quais os possíveis motivos determinaram o funcionamento tão tardio de um estabelecimento com esses fins no estado de Alagoas, visto que o primeiro Manicômio Judiciário no Brasil foi inaugurado em 1921, no Rio de Janeiro. No entanto, mais uma vez a dificuldade de se fazer pesquisa histórica se mostrou latente, tendo em vista que a referida lei não foi localizada nem mesmo com a atual direção do Manicômio. No segundo capítulo serão expostas breves considerações sobre a história das mulheres, notadamente aquelas em sofrimento mental, e como os saberes médico-jurídicos serviram ao seu silenciamento com base, via de regra, em pressupostos morais. Desse modo, lições da criminologia feminista foram utilizadas como norteadoras. A opção por essa corrente do pensamento criminológico se deu pelo fato de que ela viabiliza uma análise profunda acerca da atuação dos mecanismos de controle social sobre as mulheres, já que a criminologia, na lição de Soraia da Rosa Mendes (2014, p. 157), nasceu como um discurso de homens, para homens, sobre as mulheres. E, ao longo dos tempos, se 298 299A PESQUISA JURÍDICO-CRIMINAL NO ESTADO DE ALAGOAS | Volume I A PESQUISA JURÍDICO-CRIMINAL NO ESTADO DE ALAGOAS | Volume I transformou em um discurso de homens, para homens e sobre homens. Pois já não era mais necessário, para alguns, “estudar” as mulheres; ou, politicamente relevante, para outros, considerar as experiências destas enquanto categoria sociológica e filosófica, como ensina Lourdes Bandeira. De maneira que, no discurso criminológico competente atual, a mulher surge somente em alguns momentos. Mas, no máximo, como uma variável, jamais como um sujeito. Até século XX, até mesmo no âmbito da história, as discussões sobre gênero, sendo este considerado como “elemento constitutivo de relações sociais baseadas nas diferenças percebidas entre os sexos” e como “uma forma primária de dar significado às relações de poder” (SOCTT, 1995, p. 86), não eram consideradas relevantes analiticamente, o que manteve em um campo obscuro, inacessível, as submissões e opressões sobre o gênero feminino. Assim, não obstante tenha havido o reconhecimento da existência da história das mulheres pelos historiadores, esta permanecia em segundo plano (SCOTT, 1995, p. 85). Nesse cenário, a criminologia feminista, enseja uma mudança de paradigmas que permite partir da realidade vivida pelas mulheres, de modo que: A assunção do paradigma feminista significa uma subversão da forma de produzir conhecimento, até então, dado sob parâmetros epistemológicos distanciados das experiências das mulheres, e dacompreensão do sistema sexo-gênero. Através desse novo paradigma, as experiências das mulheres deixam, então, de ser meros acessórios para um discurso criminológico que reforça os privilégios masculinos, fazendo com que as mulheres permaneçam na posição de sexo frágil, embora, muitas vezes disfarçado sob um verniz de equidade. Pelo contrário, o discurso da criminologia feminista possibilita um verdadeiro protagonismo das mulheres. No terceiro capítulo, serão apresentados os dados colhidos durante a pesquisa de campo, a partir da digitalização e análise dos laudos das pacientes que passaram pelo Manicômio Judiciário de Alagoas nos cinco anos seguintes ao de sua inauguração. Importa ressaltar que as críticas e considerações feitas a partir das informações coletadas nos documentos não têm o condão de desqualificar os diagnósticos médicos, nem tampouco de afirmar que tais ou quais pacientes não possuíam, à época da produção dos laudos, enfermidades mentais. O que se quer, na verdade, é entender se preceitos não médicos, preceitos morais vigentes à época, por exemplo, contribuíram para o diagnóstico, tendo o saber médico ou jurídico funcionado para legitimar exclusões e práticas misóginas. Os estudos de Foucault (2006; 2008) acerca das estruturas de poder que sustentam as instituições de saúde mental serão basilares para esta análise. Os tratamentos prescritos para as pacientes que, após examinadas, foram consideradas doentes mentais também foram objeto de minuciosa análise, cujos resultados serão demonstrados no último capítulo. Mais uma vez, não é o foco desta pesquisa adentrar à seara médica, mas, neste caso, verificar a compatibilidade dos tratamentos prescritos com as pautas do movimento antimanicomial em torno da humanização do tratamento psíquico. Ao todo, entre laudos médicos e fichas de prescrição de tratamento, foram analisados documentos de 84 mulheres, sendo 4 do ano de 1979, 21 de 1980, 27 referentes ao ano de 1981, 13 do ano de 1982 e 19 que passaram pelo hospital em 1983. Por questões éticas, as identidades das mesmas foram preservadas, de modo que seus nomes foram substituídos por números, em razão da grande quantidade de documentos. Com base nessa estrutura, este trabalho pretende fornecer mais elementos para os debates sobre como as técnicas de poder são aplicadas concretamente dentro de uma instituição total, como o hospital de custódia, e, mais especificamente, como essas técnicas foram, com base em postulados de cientificidade discutível, utilizadas como instrumentos de segregação social de um público que historicamente experimenta a exclusão e a submissão. Além disso, pretende-se resgatar um pouco da história das pacientes cujos 300 301A PESQUISA JURÍDICO-CRIMINAL NO ESTADO DE ALAGOAS | Volume I A PESQUISA JURÍDICO-CRIMINAL NO ESTADO DE ALAGOAS | Volume I documentos foram estudados, de modo que seja possível, por meio da análise de seu passado, pensar melhor o presente. 1. Aspectos da psiquiatrização da loucura 1.1. O Contexto Europeu A segregação das pessoas consideradas loucas através da internação foi um movimento iniciado no século XVII, quando o louco “atravessa por conta própria as fronteiras da ordem burguesa, alienando-se fora dos limites sacros de sua ética” (FOUCAULT, 2008, p. 78). Esta ética estava muito alicerçada no valor do trabalho, de modo que aqueles indivíduos que não servissem, por quaisquer motivos, às atividades laborais, deveriam ser afastados da sociedade. Nesse sentido, Foucault (2008, p. 73) mostra que a “a loucura é percebida através de uma condenação ética da ociosidade e numa imanência social garantida pela comunidade de trabalho”. É tanto que o internamento, naquele momento, além de ser realizado em diversas instituições, de casas de detenção a hospitais gerais, não atingia apenas os loucos, mas todos aqueles considerados inúteis, de acordo com a lógica burguesa de produção, os quais passaram a ocupar o lugar anteriormente reservado aos leprosos. Assim, para Foucault (2008, p. 63): Se o louco aparecia de modo familiar na paisagem humana da Idade Média, era como que vindo de um outro mundo. Agora, ele vai destaca-se sobre um fundo formado por um problema de “polícia”, referente à ordem dos indivíduos na cidade. Outrora ele era acolhido porque vinha de outro lugar, agora, será excluído porque vem daqui mesmo, e porque seu lugar é entre os pobres, os miseráveis, os vagabundos. A internação dos indivíduos indesejados, perturbadores da ordem social, justifica-se, portanto, por um ideal de higienização social. No final do século XVIII, no entanto, há uma mudança de paradigma: o cuidado com os doentes é delegado às famílias, que o realizará mediante auxílio de organizações filantrópicas, já a miséria passa a ser vista como um problema de ordem econômica a ser solucionado pela oferta de mão de obra (FOUCAULT, 2008, p. 413). Assim, apenas a loucura permanece como alvo do internamento. No início do século XIX, como mostra Foucault (2006, p. 10-11), outra mudança importante: uma ruptura no que concerne à ideia de loucura. Esta deixa de ser considerada no âmbito da vontade, e passa a ser entendida como força incontida, a qual se manifestava através da fúria, das paixões e da mania. Desse modo, a cura para tais manifestações da loucura passou a ter como foco a dominação dessa força. Nesse sentido, Foucault (2006, p. 12) mostra que houve, no século XIX, dois tipos de intervenção: Um, que é regular e continuamente desqualificado no primeiro terço do século XIX: a prática propriamente médica ou medicamentosa. Depois vocês vêem, ao contrário, desenvolver-se uma prática que se chama de “tratamento moral”, que foi inicialmente definida pelos ingleses, essencialmente por Haslam, e rapidamente adotada na França. Um dos principais, expoentes na adoção do referido “tratamento moral”, na França, foi Philippe Pinel, que mudou a lógica vigente do internamento a partir de algumas reformas que tiveram como uma das medidas mais significativas o desacorrentamento dos internados, permitindo que, ao menos nos limites dos muros do hospital, pudessem gozar certa liberdade. Sobre as reformas, Cristiana Facchinetti (2008, p. 503) expõe: As reformas pinelianas fundaram uma nova tradição para a investigação e prática psiquiátricas, marcada pela articulação entre o saber e a técnica. Em consonância com os tempos de utopia da virada do século, cujos ecos ressoavam nas Revoluções Francesa e Industrial, suas propostas aderiram ao ideário revolucionário, sendo representadas em termos de “liberdade” no hospício, “igualdade” entre sãos e doentes (já que a doença 302 303A PESQUISA JURÍDICO-CRIMINAL NO ESTADO DE ALAGOAS | Volume I A PESQUISA JURÍDICO-CRIMINAL NO ESTADO DE ALAGOAS | Volume I passa a uma questão quantitativa e não mais qualitativa em sua natureza) e fraternidade, como filantropia e esclarecimento. Inspirado pelos ideais revolucionários, Pinel passou a implementar as ideais de um ambiente de internação que não servisse apenas para a segregação do louco da esfera social, mas que possibilitasse práticas terapêuticas, as quais possuíam caráter eminentemente moral, uma vez que para eles, “a loucura concerne fundamentalmente ao comportamento, hábitos, afetos, paixões” e estas, em especial, “quando levadas ao excesso e incontroladas” são responsáveis por transformarem o homem são em um “doente mental” (MACHADO, 1978, p. 421- 422). Assim, como já dito, o tratamento da loucura, teria como grande segredo a contenção da força que emergia dos internos. O próprio Pinel (2004, p. 124) descreve a importância dos mecanismos que servissem a esse controle quando afirma que o insano é, então, dotado de uma audácia intrépida que o leva a dar livre vazão a seus caprichos extravagantes, e no caso de repressão, a desencadear um combate ao zelador e ao pessoal de serviço, a menos que se lhe oponha força e que se reúna em grande número,ou seja, para contê-lo é preciso um aparato imponente que possa agir fortemente em sua imaginação e convencê-lo de que toda resistência será em vão. Dessa forma, para Pinel, considerado pai da psiquiatria moderna, mas também para Esquirol, outro importante psiquiatra francês, a internação seria um meio eficaz e necessário para o tratamento e cura da loucura, visto que permite isolar o louco da família a fim de romper os hábitos ligados à sua loucura, e no tocante ao tratamento, por possibilitar a intervenção terapêutica, dadas a sua posição geográfica nos limites da cidade, suas condições de ar puro, silêncio, tranquilidade (PORTOCARRERO, 2002, p. 44) Mas não só! Como a psiquiatria, naquele momento, precisa- va se apresentar enquanto ciência, “o hospício procurava ser o es- paço onde a teoria seria aplicada; além disso, apresentava-se como um rico material para a elaboração científica, suscitando questões de cunho teórico, de ordem conceitual e de cunho prático” (POR- TOCARRERO, 2002, p. 45). Era, portanto, o ambiente oportuno para que o saber-poder psiquiátrico se consolidasse como área autônoma dentro das ciências médicas. Feitas essas breves considerações acerca de aspectos considerados importantes para a compreensão deste trabalho no que tange à apropriação da loucura pelo saber psiquiátrico no continente europeu, especialmente pelos seus reflexos na realidade brasileira, o próximo item será dedicado às reflexões sobre esta. 1.2. A consolidação da psiquiatria no Brasil A psiquiatria no Brasil do século XIX também encontrou no controle da loucura, ou melhor, dos ditos loucos, a oportunidade de se estabelecer enquanto saber científico e instrumento para o exercício do controle social (MACHADO, 1978, p. 155) com base nas ideias da medicina social, que, com “o objetivo de gerir a vida dos indivíduos, num projeto de normalização e controle do corpo social” (NUNES, 1991, p. 50), passou a interferir em tudo o que pudesse comprometer a saúde da população. E dentro desse universo, claro, estava a loucura. Nesse sentido, um ponto relevante para a compreensão da interferência dessa nova medicina consiste no fato de que a intervenção psiquiátrica exercida sobre a pessoa em sofrimento mental, no contexto do século XIX estava muito vinculado à sua condição social. Tal controle, realizado majoritariamente pela polícia médica, era direcionado aos loucos pobres e que vagavam pelos espaços públicos, já que no caso daqueles mais abastados, a própria família cuidava de isolar e tratar na esfera privada. Nas palavras de Roberto Machado (1978, p. 377): 304 305A PESQUISA JURÍDICO-CRIMINAL NO ESTADO DE ALAGOAS | Volume I A PESQUISA JURÍDICO-CRIMINAL NO ESTADO DE ALAGOAS | Volume I Durante toda essa época o hospício, principal instrumento terapêutico da psiquiatria, aparece como exigência de uma crítica higiênica e disciplinar às instituições de enclausuramento e ao perigo presente em uma população que se começa a perceber como desviante, a partir dos critérios que a própria medicina social institui. Este aspecto, como se verá adiante, também se mostrou presente, embora que em menor grau e de modo menos explícito, no século XX no âmbito do Manicômio Judiciário de Alagoas, objeto principal de análise neste trabalho. De acordo com Vera Portocarrero (2002, p. 42), os primeiros estudos acerca das alienações mentais que foram produzidos no país não passaram de uma cópia do que havia sido produzido por Esquirol e Pinel. Segundo a autora, as primeiras teses brasileiras na área, defendidas nas faculdades de medicina do Rio de Janeiro e na Bahia, classificaram os variados tipos de doença “segundo os mesmos princípios de classificação das ciências naturais”, enfatizando, no entanto, “o critério de caráter moral”, assim como faziam os referidos psiquiatras franceses. No que tange à concepção de loucura, assim como aconteceu na Europa, no Brasil do século XIX também houve importante mudança: o delírio deixa de ser considerado como principal sinal de distúrbio mental e cede lugar à perversão da vontade, conceito muito mais amplo e localizado no âmbito da moral e não no âmbito da inteligência, como o primeiro (MACHADO, 1978, p. 388), o que repercutirá sobre os tipos de tratamento mais adequados. Até o ano de 1841, indivíduos considerados como em situação de sofrimento mental eram tutelados, no Rio de Janeiro, no âmbito da Santa Casa de Misericórdia. No entanto, por volta de 1830, os médicos da instituição começaram a pressionar o Império para que os loucos fossem realocados em uma instituição específica, direcionada ao seu tratamento. Segundo Machado (1978, p. 377) eles não estavam satisfeitos com a “a situação do louco nas ruas e no Hospital da Santa Casa, considerando-os tanto como perigosos quanto injustiçados, como criminosas em potencial e como vítimas indefesas” e não podiam receber tratamento adequado estando no mesmo ambiente com outros doentes, além de representarem risco à paz e segurança hospitalar. Cedendo às pressões, em 18 de julho de 1841, por meio do Decreto nº 82 de 18 de julho de 1841, foi criado o Hospício de Pedro II, que, para Roberto Machado (1978, p. 375), foi o marco institucional da psiquiatria em terras brasileiras. Para o autor, o referido fato “confere à psiquiatria um lugar entre os instrumentos utilizados pela medicina”. O hospital recém-criado, de acordo com Machado (1978, p. 429), foi não apenas “orgulho do Imperador, símbolo da civilização que se instala na capital, mas parte integrante do projeto normalizador da medicina”, que encontrara o ambiente propício para materializar as estratégias de aniquilamento da loucura. Até 1889, o Hospício Pedro II era administrado pela Santa Casa de Misericórdia e por freiras católicas. No entanto, com a Proclamação da República, passou a haver reivindicações da classe médica para laicizar o internamento dos alienados. Um dos motivos para esta reivindicação era a busca, por parte dos psiquiatras, da exclusividade no controle do hospital psiquiátrico, “tanto sobre os internos quanto sobre o pessoal administrativo”, como mostra Machado (1978, p. 458), já que detinham o saber científico. Em 1890, através do Decreto nº 142-A, de 11 de janeiro, o Hospital de Pedro II foi desanexado da Santa Casa e passou a ser chamado Hospital Nacional dos Alienados. No século XX, ao invés de ter havido um caminhar para a maior humanização no tratamento das pessoas em sofrimento mental, o que houve, na verdade, foi uma amplificação das internações como evidente estratégia de segregação e disciplinamento. Este fato se confirma por um evento marcante que ocorreu em 1903: a inauguração do Hospital Colônia de Barbacena, em Minas Gerais. Daniela Arbex (2013) conta a história desse que foi o maior hospital psiquiátrico do Brasil, ao qual Franco Basaglia, quando visitou a instituição no ano de 1979, chamou de “campo de concentração nazista”, tendo em vista as gritantes violações de direitos humanos que presenciou naquele ambiente. 306 307A PESQUISA JURÍDICO-CRIMINAL NO ESTADO DE ALAGOAS | Volume I A PESQUISA JURÍDICO-CRIMINAL NO ESTADO DE ALAGOAS | Volume I Além da precariedade, que, diga-se de passagem, era lucrativa, visto que, conforme registra Daniela Arbex (2013, p. 76), milhares de corpos de pacientes foram vendidos para faculdades de medicina, a autora denuncia que o ingresso da maioria das pessoas internadas teria sido equivocado, uma vez que eram indivíduos que não estavam em sofrimento mental, como se pode ver na passagem a seguir: Desde o início do século XX, a falta de critério médico para as internações era rotina no lugar onde se padronizava tudo, inclusive os diagnósticos. Maria de Jesus, brasileira de apenas 23 anos, teve o Colônia como destino, em 1911, porque apresentava tristeza como sintoma. Assim como ela, a estimativa é de que70% dos atendidos não sofressem de doença mental. Apenas eram diferentes ou ameaçavam aordem pública. Por isso, o Colônia tornou- se destino de desafetos, homossexuais, militantes políticos, mães solteiras, mendigos, negros, pobres, pessoas sem documentos e todos os tipos de indesejados, inclusive os chamados insanos (ARBEX, 2013, p. 26). O trecho acima não deixa dúvidas quanto aos fins higienistas que eram perseguidos na instituição que chegou a abrigar, em 1960, 5 mil pessoas, entre homens, mulheres e crianças, em um espaço projetado para 200 (ARBEX, 2013, p. 26). Outro dado relevante e que muito interessa a este trabalho foi exposição, pela autora, de algumas das causas que motivaram internamentos femininos no Colônia. Segundo Daniela Arbex (2013, p. 30), muitas ignoradas eram filhas de fazendeiros as quais ha- viam perdido a virgindade ou adotavam comportamento considerado inadequado para um Brasil, à época, domi- nado por coronéis e latifundiários. Esposas trocadas por amantes acabavam silenciadas pela internação no Colônia. Havia também prostitutas, a maioria vinda de são João del- -Rei, enviadas para o pavilhão feminino Arthur Bernardes após cortarem com gilete os homens com quem haviam se deitado, mas que se recusavam a pagar pelo programa No terceiro capítulo deste texto serão apresentadas informações que mostram que a condenação de mulheres ao diagnóstico de loucura sem possuírem enfermidade mental, a exemplo dos casos mostrados na passagem acima, não foi um caso isolado do hospital de Barbacena, repetiu-se, também, no Manicômio Judiciário de Alagoas durante o período estudado, qual seja, o final da década de 70 e início da década de 80. A propósito, no estado de Alagoas a primeira instituição destinada a internação de pessoas em sofrimento mental foi o Asilo Santa Leopoldina, localizado em Maceió e inaugurado em 1891. Antes dele, havia o Asilo de Alienados, inaugurado em 1887, neste, no entanto, “não se tem registros de intervenção médica psiquiátrica, parecendo apenas ser um local em que os doentes eram cuidados de forma diferenciada, separados dos criminosos” (RIBEIRO, 2012, p. 61). O Asilo Santa Leopoldina, portanto, inaugurou, segundo a assistência psiquiátrica em Alagoas. No entanto, a primeira instituição hospitalar pública destinada ao tratamento de pacientes psiquiátricos do estado foi inaugurada apenas em 1956: o Hospital Colônia Portugal Ramalho, que, desde a abertura, já estava superlotado, abrigando 140 pacientes em um espaço projetado para 40 leitos (RIBEIRO, 2012, p. 62), visto que abrigou a população asilada no Santa Leopoldina. Além disso, até a inauguração do Manicômio Judiciário de Alagoas, que ocorreu em 1978 e será tratada mais adiante, os pacientes internados por força de medida de segurança também ficavam internados no Portugal Ramalho. Apresentados esses pontos acerca do tratamento das pessoas em sofrimento mental, pergunta-se: qual o lugar ocupado pelo louco criminoso? A seguir, serão apresentadas algumas considerações sobre o assunto. 1.3. Considerações acerca da intervenção psiquiátrica na esfera criminal Foucault (2006) mostra que a intervenção psiquiátrica na seara penal ocorrera inicialmente no início do século XIX, dada a necessidade de solucionar aqueles casos de infração à norma penal de maneira 308 309A PESQUISA JURÍDICO-CRIMINAL NO ESTADO DE ALAGOAS | Volume I A PESQUISA JURÍDICO-CRIMINAL NO ESTADO DE ALAGOAS | Volume I imotivada, para os quais não se encontrava explicação. O autor cita exemplos de casos ocorridos em países da Europa, como o homicídio praticado na Inglaterra por um filho adotivo contra a sua mãe sem motivo aparente tendo este demonstrado arrependimento e desespero imediatamente após o delito. No caso do Brasil, desde o Código Penal de 1830, os juízes estavam obrigados a produzirem suas sentenças tendo consultado previamente médico perito em processos criminais onde figurasse como réu pessoa com possível quadro de sofrimento mental. No entanto, os pareceres médicos só começaram a ser utilizados pelos juízes para auxiliar no processo decisório no final do século XIX, uma vez que a medicina legal era uma área desprestigiada, principalmente pela impossibilidade de realização de exames ante a insuficiência de aparato técnico. Além disso, outro fator que obstou a prática foi a tardia instituição da disciplina de Clínica Psiquiátrica e Moléstias Mentais, que só foi criada em 1881 (GONÇALVES, 2012, p. 577). A partir de então, as decisões dos juízes passaram a levar em consideração os pareceres dos psiquiatras, os quais vinham, desde meados do referido século, comungando fortemente das ideais positivistas de degenerescência e questionando o monopólio da monomania (CARRARA, 1998, p. 81). Com base nisso, as pessoas processadas criminalmente que fossem consideradas loucas, eram encaminhadas para hospitais psiquiátricos e normalmente ocupavam espaços separados dos outros doentes. No Hospital Nacional dos Alienados, no Rio de Janeiro, por exemplo, eles ocupavam as chamadas casas fortes, que eram espécies de celas dentro do hospício. A presença dos degenerados no mesmo ambiente dos doentes não criminosos foi motivo de críticas contundentes por parte de alguns psiquiatras, dentre eles, Teixeira Brandão, então administrados do Hospital Nacional, uma vez que comprometia a concretização dos ideais de humanização herdados, sobretudo, de Pinel, além de gerar a insatisfação das famílias dos doentes não criminosos, especialmente a dos pagantes, em verem seus parentes dividindo espaço com criminosos. Nesse contexto, urgente era, portanto, a abertura de espaços próprios para os degenerados: os manicômios judiciários, que abrigaria não só os loucos violentos e perigosos, mas também dos degenerados e criminosos natos (CARRARA, 1998, p. 153). Um personagem marcante cuja história intensificou os questio- namentos acerca da manutenção dos “loucos perigosos” nas mesmas instituições dos demais insanos é Custódio Serrão. De maneira muitís- simo breve, a síntese da sua trajetória é a seguinte: foi enviado ao Hos- pital Nacional por ter cometido um homicídio sem motivo aparente, e, posteriormente, diagnosticado como sendo “um louco hereditário, sofrendo da mania dos perseguidos-perseguidores”, conforme mostra Carrara (1998, p. 140). Incomodado com a falta de perspectiva de saída daquele ambiente, pois, segundo Carrara (1998, p. 143), ele “era manti- do no Hospício sob promessa de que ainda o iriam examinar para que pudesse voltar definitivamente para a detenção”, em 26 de maio de 1896, Custódio foge do Hospital. Após a fuga de custódio, os críticos da atual administração do Hospício Nacional, inconformados com a laicização da instituição, já citada anteriormente, iniciaram uma série de ataques veiculados na imprensa ao então diretor, o médico Teixeira Brandão, e à sua administração. Como forma de reposta, o psiquiatra enviou um ofício Ministro da Justiça, no qual, dentre outras coisas, reivindica uma instituição exclusiva para os loucos-criminoso. Carrara (1998, p. 154) afirma que, para Brandão, degenerados delinqüentes, criminosos natos e loucos-criminosos encontrariam em um manicômio judiciário a morada ideal. Além disso, é impossível não perceber por detrás de suas palavras a preocupação em delimitar fronteiras frente à tendência à “naturalização” do crime que caracterizava o pensamento dos antropólogos criminais e de certos médicos que comungavam com as idéias da Escola Positiva de Direito Penal. A partir dessas ideias defendidas com veemência pelo referido psiquiatra, em 1903 houve a primeira mudança efetiva no modelo 310 311A PESQUISA JURÍDICO-CRIMINAL NO ESTADO DE ALAGOAS | Volume I A PESQUISA JURÍDICO-CRIMINAL NO ESTADO DE ALAGOAS | Volume I de tratamento e custódia dos ditos loucos criminosos, o Decreto nº 1132, que no seu artigo 11, informava que enquanto os estados não possuíssem manicômios judiciários, os alienados condenados deveriam ser mantidos em asilos públicos, em alas separadasdos demais doentes. A partir disso é que foi criada a Seção Lombroso no Hospital Nacional dos Alienados. Em 1921, cujas principais motivações foram a morte de Clarice Índio Brasil, esposa de um senador brasileiro, por um taquígrafo do Senado tido como degenerado e uma rebelião na Seção Lombroso do Hospital Nacional, é inaugurado o Manicômio Judiciário do Rio de Janeiro, o primeiro do Brasil. Carrara (1998, p. 194), ao falar sobre este fato, afirmou: Coroava-se então um processo muito mais amplo que, atingindo as práticas jurídico-penais como um todo, fez com que nossos tribunais, como bem apontou Foucault, passassem, a partir de finais do século XIX, a não julgar mais atos criminosos, mas a própria alma do criminoso Em Alagoas, essa coroação se deu tardiamente em relação à inauguração Manicômio Judiciário do Rio de Janeiro. O Centro Psiquiátrico Judiciário Pedro Marinho Suruagy, aqui chamado Manicômio Judiciário de Alagoas, foi inaugurado apenas em 1978. Antes desse marco inicial, os pacientes submetidos à internação por força de decisão em processo criminal eram internados no Hospital Colônia Portugal Ramalho. Um dos objetivos iniciais da presente pesquisa era a localização da lei que instituiu o manicômio alagoano para que fosse possível compreender com profundidade os motivos que influenciaram na sua criação. Contudo, apesar de exaustivas tentativas em diversos órgãos públicos, inclusive junto à direção atual do hospital e também na internet, o texto da referida lei não foi encontrado. Além disso, não foram encontrados nos documentos analisados informações que demonstrassem qual era o contexto local e quais as discussões foram travadas no âmbito legislativo acerca do nascimento da instituição. No entanto, pelo cenário de superlotação do então Hospital Colônia Portugal Ramalho, acredita-se que, a exemplo do que ocorreu no Rio de Janeiro do século XIX antes da criação do Hospício de Pedro II, houve pressão política, especialmente por parte da classe médica, para a criação do Manicômio Judiciário, que foi construído e ainda se mantém dentro do sistema penitenciário alagoano. Há relatos de que o referido hospital foi considerado como um modelo que estava à frente do seu tempo, tendo seu projeto arquitetônico recebido, inclusive, sugestões de Nise da Silveira, psiquiatra alagoana que revolucionou o tratamento das pessoas em sofrimento mental, sendo a percussora da Terapia Ocupacional. Como reforço à ideia de que o Manicômio Judiciário de Alagoas possuía uma estrutura melhor do que o Portugal Ramalho foi o fato de terem sido encontrados laudos de muitas pacientes que não respondiam processos criminais, mas, não obstante, comparecem à instituição para a realização de exames e consultas. Inclusive, em um dos laudos, consta que uma das pacientes foi encaminhada para o Manicômio Judiciário por meio de um pedido que sua mãe fez ao juiz, visto que lá o tratamento era melhor do que no “H.P.R”, onde se encontrava. Pelo contexto, acredita- se que a sigla H.P.R significa Hospital Portugal Ramalho. Sem desconsiderar o fato de que o referido manicômio muito provavelmente ter sido visto como uma instituição exemplar nos primeiros anos de funcionamento, mais à frente, será possível verificar muitas práticas que vão de encontro aos avanços na humanização do tratamento psiquiátrico propostos principalmente pelos movimentos de reforma psiquiátrica, o que leva a questionamentos sobre o que significava, à época, ser uma boa instituição de custódia e tratamento psiquiátrico. 1.4. A Reforma Psiquiátrica e a sua repercussão no tratamento da loucura no Brasil As internações em instituições totais, incluindo-se nesse rol os hospitais psiquiátricos, são espaços em que o sujeito, ao ingressar, 312 313A PESQUISA JURÍDICO-CRIMINAL NO ESTADO DE ALAGOAS | Volume I A PESQUISA JURÍDICO-CRIMINAL NO ESTADO DE ALAGOAS | Volume I é obrigado a despir-se da sua autonomia, liberdade e, muitas vezes, a romper os vínculos sociais, especialmente os familiares. Como Goffman (2015, p. 31) afirma, ocorre um processo de “exposição contaminadora” desde a admissão, já que, completa o autor, antes do ingresso, o indivíduo pode manter objetos que se ligam aos seus sentimentos do eu - por exemplo, seu corpo, suas ações imediatas, seus pensamentos e alguns de seus bens - fora de contato com coisas estranhas e contaminadoras. No entanto, nas instituições totais esses territórios do eu são violados; a fronteira que o indivíduo estabelece entre seu eu e o ambiente é invadida e as encarnações do eu são profanadas” (GOFFMAN, 2015, p. 31) De modo que o paciente passe a ser considerado, apenas como o conjunto de sintomas da doença. No entanto, ainda com base no que Goffman (2015, p. 113) ensina, o estudo das práticas de mortificação realizada nos ambientes direcionados ao tratamento psiquiátrico pode mostrar, como vem mostrando, “que a loucura ou o “comportamento doentio” atribuídos ao doente mental são, em grande parte, resultantes da distância social entre quem lhes atribui isso e a situação em que o paciente está colocado, e não são, fundamentalmente, um produto de doença mental”. Nesse sentido, o ambiente dos hospitais psiquiátricos tem se mostrado frustrado nos seus supostos objetivos terapêuticos que deveriam desembocar na “cura” do paciente, visto que a existência desse tipo de instituição, por si só, já é um óbice à reinserção sem traumas da pessoa em sofrimento mental no contexto em que vivia, uma vez que há grotescas rupturas que impedem tal processo. Nesse direção, Franco Basaglia (2001, p. 120) diz que “o doente mental é um excluído que, nos termos da sociedade atual, jamais poderá opor-se àqueles que o excluem, pois cada um de seus atos passa a ser limitado e definido pela doença”. Isso, ressalte-se, quando, de fato, há transtorno psíquico, haja vista, conforme demonstrado anteriormente e como ainda se verá ao longo deste trabalho, não foram raras as internações que ocorreram por motivos que nada tinham a ver com existência de doença. Nestes casos, a repercussão da internação e dos rituais de mortificação decorrentes dela passa a ser muito mais danosa para a vida do paciente e costumam fomentar atos de revolta que normalmente são veementemente reprimidos e, mais uma vez, considerados como sendo mais uma manifestação de agravamento da suposta doença (GOFFMAN, 2015, p. 248) Com uma forma de rebeldia ao cenário de falência da psiquiatria clínica (BASAGLIA, 2001, p. 120) de flagrantes violações de direitos humanos dos quais ainda hoje as pessoas internadas em hospitais psiquiátricos são vítimas foi que nasceu o movimento de Reforma Psiquiátrica. Este movimento foi iniciado na Itália, a partir do ingresso do psiquiatra Franco Basaglia como diretor do Hospital de Gorizia, em 1961, onde, inconformado com a forma que psiquiatria vinha tratando os internos, passou a implementar mudanças no tratamento com vistas a resgatar a humanidade dos pacientes. Em 1973, a partir da influência de Basaglia, foi criada, na Itália, a Lei 180, ainda vigente, que determinou que fossem abolidos todos os hospitais psiquiátricos no país (ARBEX, 2013, p. 206). Basaglia, militava pelo que chamou de despsiquiatrização da sua profissão. De acordo com ele, tal expressão diz respeito à Tentativa de colocar entre parênteses todos os esque- mas, para ter a possibilidade de agir em um território ainda não codificado ou definido. Para começar, tor- na-se necessário negar tudo o que está a nossa volta: a doença, o nosso mandato social, a nossa função. Negamos, assim, tudo que possa dar um sentido pre- definido à nossa conduta. Ao mesmo tempo em que negamos o nosso mandato social, negamos a rotulação do doente como “irrecuperável” e, ao mesmo tempo, nossa função de simples carcereiros, tutores da tranqui- lidade da sociedade; negando a irrecuperabilidade do doente negamos sua conotação psiquiátrica; negando sua conotação psiquiátricanegamos sua doença como 314 315A PESQUISA JURÍDICO-CRIMINAL NO ESTADO DE ALAGOAS | Volume I A PESQUISA JURÍDICO-CRIMINAL NO ESTADO DE ALAGOAS | Volume I definição científica, despiquiatrizamos nosso trabalho, recomeçando-o em um território ainda virgem, por cul- tivar (BASAGLIA, 2001, p. 29) De início, as palavras do autor, podem soar contraditórias, e ensejar no equívoco de se considerar que ele negou a possibilidade de haver pessoas com transtornos mentais, colocando tais incidentes como uma mera criação da psiquiatria. Mas, na verdade, a despsiquiatrização não é a negação completa da doença, mas é que, segundo o Basaglia (2001, p. 28), faz-se necessário considerar o indivíduo independe dos rótulos que o definam, é por isso “que se torna necessário enfocar esse doente de um modo que coloque entre parênteses a sua doença” e completa afirmando que “o importante é tomar consciência daquilo que tal indivíduo representa para mim, de qual é a realidade social em que vive, qual o seu relacionamento com essa realidade”. Ou seja, o psiquiatra deve olhar para o indivíduo em sofrimento mental de maneira contextualizada e prescindindo não da possibilidade de haver doença, mas dos estigmas que acompanham tal possibilidade. De acordo com Amarante (2009, p. 6), com a despsiquiatrização, “o sujeito da experiência da loucura, antes excluído do mundo da cidadania, antes incapaz de obra ou de voz, torna-se sujeito, e não objeto de saber”, tornado-se, então protagonista da própria história e não mero receptor de experiências psiquiátricas invasivas, que o silencia. No Brasil, através da atmosfera de mudança inspirada pela Reforma Psiquiátrica iniciada na Europa, nasceu o chamado Movimento Antimanicomial. Este movimento social teve como precursor o Movimento dos Trabalhadores em Saúde Mental - MTSM, que, no contexto da Ditadura Militar, em meados da década de 70, iniciou suas reivindicações em busca de aumento salarial, redução de número excessivo de consultas por turno de trabalho, críticas à cronificação do manicômio e ao uso do eletrochoque, melhores condições de assistência à população e pela humanização dos serviços. Este movimento dá início a uma greve (durante oito meses no ano de 1978) que alcança importante repercussão na imprensa. (LÜCHMANN; RODRIGUES, 2007, p. 402) Diversos eventos importantes foram realizados e ajudaram a robustecer as discussões acerca da necessidade de mudança no tratamento da loucura no país. Dentre eles, merece destaque o I Congresso Brasileiro de Psicanálise de Grupos e Instituições no Rio de Janeiro, em 1979, do qual participaram Erving Goffman e Franco Basaglia. Na oportunidade, Basaglia visitou o Hospital Colônia de Barbacena. Segundo Daniela Arbex (2013, p. 210), o psiquiatra foi determinante para que fosse implantado o movimento antimanicomial mineiro. Depois disso, muitos outros eventos foram realizados e o movimento antimanicomial brasileiro ganhava cada vez mais apoio (LÜCHMANN; RODRIGUES, 2007). Mas em 1989, um outro marco nos avanços pela humanização da pessoa em sofrimento mental aconteceu: foi apresentado ao Congresso Nacional o Pojeto de Lei 3.657 pelo então Deputado Federal Paulo Delgado que buscava, além da regulamentação dos direitos das pessoas em sofrimento mental, a extinção progressiva dos hospitais psiquiátricos do país (ARBEX, 2013, p. 224). O projeto tramitou por 12 anos no Congresso Nacional e em 2001 foi transformado na Lei 10.216 que dispõe sobre os direitos das pessoas com transtornos mentais e redireciona a assistência em saúde mental. Um dos principais avanços da referida lei, apesar de tardio, é a proibição da internação em instituições com características asilares e a preferência por tratamentos comunitários. 2. Mulheres submetidas a medida de segurança no Brasil: considerações históricas baseadas na criminologia feminista Para entender a situação das mulheres que cumpriam medida de segurança no final da década de 70 e nos primeiros anos da década de 80, período no qual se concentra este trabalho, é interessante que 316 317A PESQUISA JURÍDICO-CRIMINAL NO ESTADO DE ALAGOAS | Volume I A PESQUISA JURÍDICO-CRIMINAL NO ESTADO DE ALAGOAS | Volume I se tenha em mente algumas premissas, mesmo que breves, acerca da trajetória da mulher na história, pois muitas foram as estratégias e práticas que contribuíram para o silenciamento feminino, cujos reflexos são potencializados no interior das instituições totais. Alguns autores divergem quanto à existência de um período em que a mulher teria ocupado os espaços de poder em sociedades primitivas. A divergência consiste no fato de que uma parte desses autores, a exemplo de John Zerzan (2010, p. 2), entende que o que existiu foi “um longo período de tempo no qual a mulher não era, de modo geral, tão subordinada ao homem, antes que a cultura masculinamente definida se fixasse, ou se tornasse universal”. O autor nega, portanto, que as primeiras sociedades teriam sido lideradas por mulheres. De outro lado, outros estudiosos, como Gisele Fontenelle de Oliveira Castro (2012), no entanto, entendem que realmente houve, nas sociedades primitivas, a prevalência de culturas matriarcais. Sem desconsiderar a importância dessa divergência acerca da existência ou não de sociedades plenamente matrilineares, o fato é que, a partir do momento em que o ser humano passou a ter estabilidade territorial, deixando de ser nômade - já que não precisava mais de recorrer apenas à caça e coleta de alimentos para sobreviver, pois aprendeu a cultivá-los - foi exercido, além do domínio sobre a natureza, o domínio sobre a mulher, que passou a se ocupar majoritariamente dos cuidados com os filhos e com o lar, enquanto que o homem passou a exercer, predominantemente, atividades externas, ocupando a posição de provedor. Para Zerzan (2010, p. 8): A agricultura é uma vitória que conclui aquilo que começou com a formação e desenvolvimento do sistema de gênero. Apesar da presença de figuras de deusas, devotadas à fertilidade, normalmente, a cultura neolítica estava muito mais preocupada com a virilidade. Da dimensão emocional desta masculinidade, como Cauvin percebeu, a domesticação animal deve ter sido, principalmente, uma iniciativa masculina. O distanciamento e ênfase no poder têm estado conosco desde então: expansão de fronteiras, por exemplo, a energia masculina subjugando a natureza feminina, vencendo uma fronteira após outra. O autor, na passagem acima, traz o que foi, senão o nascedouro, mas pelo menos o robustecimento de uma cultura predominantemente masculina, na qual a vida da mulher passa a ser limitada ao ambiente doméstico. O controle social informal sobre a figura feminina começa, então, a ser exercido por homens do próprio meio familiar, geralmente os pais ou maridos. O domínio iniciado nas primeiras sociedades não enfraqueceu, mas, ao contrário, só se solidificou e tem ultrapassado as barreiras do tempo. Ao tempo de Jesus, na Palestina, as meninas ainda crianças já eram transferidas do poder paterno para o poder marital. O controle domínio do homem pela mulher, portanto, é bem anterior à Idade Média (MENDES 2014, p. 27). Só que este período, especificamente a baixa Idade Média, é importante para a história das mulheres, uma vez que nele ocorreu não só a mera intensificação da sua reclusão ao espaço privado do lar, mas também foi um tempo de forte perseguição à figura feminina que se desviasse do perfil de uma mulher dedicada ao lar e à vida religiosa. Antes desse período, havia muitas mulheres que era estudiosas e conhecedoras das ciências, das artes e da religião (MENDES, 2014, p. 119), no entanto, o acesso a conhecimentos nessas diversas áreas, dados, na maioria das vezes pela própria Igreja Católica, passou a ser ameaçador. Na lição de Soraia da Rosa Mendes (2014,119): Considerando esse contexto, toda a escalada de perseguição e repressão às mulheres, que se desenvolveráespecialmente do século XIII em diante, explica-se pelo saber que detinham as mulheres do povo (consideradas bruxas) e por este ser ameaçador ao discurso médico que buscava se afirmar. Ou mesmo para o controle da fé que a Igreja almejava Nesta atmosfera, algumas mulheres que não se adequavam à vida doméstica e iam de encontro a ensinamentos da moral cristã passaram 318 319A PESQUISA JURÍDICO-CRIMINAL NO ESTADO DE ALAGOAS | Volume I A PESQUISA JURÍDICO-CRIMINAL NO ESTADO DE ALAGOAS | Volume I a compor um imaginário de terror, tendo sido, por esse motivo, veementemente castigadas, torturadas e, em muitos casos, mortas. Trechos retirados da obra O Martelo das Feiticeiras – que serviu como um manual de procedimentos para os inquisidores do Tribunal do Santo Ofício - escrito no ano de 1484, são bastante elucidativos sobre o perigo que as “mulheres perversas” representavam: Existem três coisas na natureza - as Línguas, os Eclesiásticos e as Mulheres - que, seja na bondade, seja no vício, não conhecem moderação; e quando ultrapassam os limites de sua condição atingem as maiores alturas na bondade e as mais fundas profundezas no vício. (2010, p. 113) (...)as mulheres são, por natureza, mais impressionáveis e mais propensas a receberem influência do espírito descorporificado; e quando se utilizam com correçãotornam-se virtuosíssimas, mas quando a utilizam para o mal tornam-se absolutamente malignas (2010, p. 115) (...) Pois que, verdadeiramente, sem a perversidade das mulheres, para não falar da bruxaria, o mundo permaneceria à prova de inumeráveis perigos (2010, p. 119). A figura feminina é colocada, então, como um mal necessário, um elemento de ameaça à paz. A mulher, se não fosse vigiada, poderia arruinar não só os lares, mas o mundo inteiro, como mostram os autores ao falarem de reinos que foram levados à ruína por condutas femininas (KRAMER e SPRENGER, 2010, p. 119). Durante a caça às bruxas, período que marcou pelas práticas misóginas e de perseguição feminina (MENDES, 2014, p. 28), muitas mulheres que apresentavam determinados tipos de perturbações mentais foram associadas a rituais de feitiçaria e pactos demoníacos. Helena Riter (2012), comentando o referido momento, escreve: Na Idade Média, o papel da mulher não havia sofrido grandes alterações em sua essência e o caráter extremamente religioso da época contribuiu para que mulheres histéricas fossem consideradas bruxas, devido a manifestação de seus sintomas (...) Nesse momento da história da histeria é possível mais uma vez pensar sobre a mulher na sociedade. Pode- se manter o mesmo raciocínio anterior em relação à supressão das emoções próprias em favor de deveres morais, visto que a figura feminina segue tendo as mesmas funções na sociedade, porém, a concepção que a Idade Média dá a histeria permite pensar na dificuldade que a própria sociedade tem para absorver o discurso histérico. Mas não só a histeria foi taxada como sinal de feitiçaria. Mulheres que sofriam com crises epilépticas também foram colocadas sob o estigma de bruxas. De acordo com Marleide da Mota Gomes (2006, p.162), no Martelo das Feiticeiras, “a presença de crises epilépticas (CE) era uma característica de feitiçaria. A orientação do mencionado tratado levou à perseguição, tortura e morte a mais de 100.000 mulheres”. Toda a conjuntura de terror sobre a figura da mulher na Idade Média, além de culminar na perseguição de muitas, também reforçou em grande medida o silenciamento. Tanto é assim que do final da Idade Média até o século XIX a criminologia negligenciou as discussões acerca das perseguições e repressões vivenciadas pelas mulheres (MENDES, 2014, p.31. Seguindo adiante, também pode-se comentar sobre a continuida- de histórica da submissão feminina. Nesse sentido, Foucault (2013, p. 44) mostra que no século XVIII havia grande vigilância acerca das re- lações matrimoniais, da forma como eram mantidas, sendo censuradas quaisquer manifestações que fossem de encontro às relações legítimas, sob o ponto de vista religioso, entre homem e mulher. Nessa perspecti- va, o que se buscava da mulher era a adequação plena ao papel de espo- sa disciplinada e solícita, resignada à atividades domésticas e cuidadosa com os filhos e esposo. Nem o iluminismo penal - cujo principal expoente é Beccaria, com sua obra Dos delitos e das Penas - que é vista como um avanço no que tange às garantias dos direitos individuais, trouxe visibilidade para as mulheres. Indica, também, que mesmo com a Revolução Francesa, a igualdade entre homens e mulheres não passou de mera 320 321A PESQUISA JURÍDICO-CRIMINAL NO ESTADO DE ALAGOAS | Volume I A PESQUISA JURÍDICO-CRIMINAL NO ESTADO DE ALAGOAS | Volume I formalidade. Segundo a autora, “a adesão das mulheres ao estatuto igualitário se dá como um ser relativo, existindo apenas como filha, esposa e mãe”. E completa dizendo que elas “continuaram dependentes dos homens e a ser consideradas inadequadas para a vida pública em razão de um déficit de racionalidade” (MENDES, 2014, 32), seguindo uma lógica cartesiana com o objetivo de minar a participação da mulher na vida pública. Em A Sujeição das Mulheres, publicada em 1869, Stuart Mill (2006, p. 75), falando sobre a desigualdade entre homens e mulheres, declara: Não há nenhuma dificuldade em convencer qualquer pessoa que tenha acompanhado o assunto de igualdade das mulheres na família. Acredito que a limitação delas em outras áreas é mantida a fim de preservar sua subordinação à vida doméstica porque a maioria dos homens ainda não consegue tolerar a ideia de viver em igualdade Como mostra o autor, o silenciamento feminino é uma estratégia para a manutenção de relações de poder em que a mulher permanece na condição de parte subjugada. Nesse contexto, Foucault (2012, p. 226) entende que as micro relações de poder é que dão sustentação para macro poderes. Para ele, “uma dominação de classe ou uma estrutura de Estado só podem bem funcionar se há, na base, essas pequenas relações de poder”, como a existente entre homem e mulher nos termos acima colocados, já que o poder deve ser “entendido como constelações dispersas de relações desiguais” (SCOTT, 1995, p. 86) que é exercido de maneira descentralizada e capilar, e não como um todo unitário e centralizado, exercido apenas pelo Estado. Na conjuntura do século XIX, Michele Perrot (2005, p. 11) demonstra que esse silenciamento se refletia, inclusive, nas estatísticas. Segundo esta autora, “mulheres de agricultores ou de artesãos, cujo papel econômico era considerável, não são recenseadas, e seu trabalho, confundido com as tarefas domésticas e auxiliares, torna-se assim invisível. Em suma, as mulheres não contam”. E se não contam, não existem (DINIZ, 2013, 13). Com o positivismo criminológico, as mulheres cujas práticas não se adequavam ao paradigma moral de mulher de família foram classificadas como delinquentes. Lombroso, principal expoente dessa corrente de pensamento criminológico que buscava no indivíduo, com base no determismo darwiniano, as causas para as práticas dos delitos, escreveu La Donna Delinquente, e resgatou muitas das ideias semeadas durante a Idade Média acerca da mulher, classificando-as como criminosas por serem moralmente inferiores aos homens e, portanto, mais suscetíveis à prostituição e ao crime (LOMBROSO; FERRERO, 2009, p. 582). Assim como fez com os homens, Lombroso (2009) dividiu as mulheres delinquentes em categorias, classificando-as em criminosas natas, criminosas ocasionais, ofensoras histéricas, criminosas de paixão, suicidas, mulheres lunáticas, epiléticas e moralmente insanas. Interessante notar como essa classificação está muito relacionada com práticas sexuais que não são aquelas tidas como saudáveis aos padrões morais da época. A partir daí, as mulheres com quadros de sofrimento psíquico passaram de bruxas a criminosas. A epilepsia, por exemplo, volta a ser citada, agora não maiscomo sinal de feitiçaria, mas de ligação com crimes, alimentando a estigmatização e, consequentemente, a segregação desse público com vistas à suposta segurança social. Mas a referida segregação não ocorre assumidamente, ela é exercida de maneira disfarçada sob o argumento de proteção, que está baseada justamente nas ideias positivistas sobre a mulher e seus papeis sociais. Michele Perrot, no entanto, desmistifica a suposta proteção quando afirma que a escassez de registros criminais sobre as mulheres se dá “não em virtude de sua natureza doce, pacífica e maternal, como pretende Lombroso, mas devido a uma série de práticas que as excluem do campo da vingança ou do afrontamento” (2005, p. 35), demonstrando, assim, o quão eficiente é o controle social exercido sobre a figura feminina. De acordo com Elena Larrauri (1994, p. 1), o controle exercido sobre as mulheres de maneira mais intensa é o controle social informal. Este 322 323A PESQUISA JURÍDICO-CRIMINAL NO ESTADO DE ALAGOAS | Volume I A PESQUISA JURÍDICO-CRIMINAL NO ESTADO DE ALAGOAS | Volume I conceito é aqui utilizado segundo a mesma autora (1994, p.1) e diz respeito a “todas aquellas respuestas negativas que sucitan determinados comportamientos que vulneran normas sociales”. Em vista disso, a disciplinarização das mulheres é feita com maior ênfase de maneira informal, sendo a família a primeira instituição responsável por moldar as suas ações e vontades. Instituições educacionais e religiosas também se ocupam dessa função, de modo que o controle sobre os corpos femininos só passa a ser feito através de mecanismos formais de controle, como instituições psiquiátricas e do sistema penal, em último caso. Nessa engrenagem, um fato bastante interessante sobre o qual pouco se menciona é que as mulheres, além de destinatárias do controle social, também são agentes do mesmo, e ajudam, muitas vezes a reforçar as desigualdades de gênero das quais são vítimas, dado que normalmente são responsáveis pela educação doméstica. Sendo assim, por normalmente se dedicarem às tarefas domésticas, pouco se expondo na cena urbana, há redução considerável nas possibilidades de praticarem delitos (LARRAURI, 1994, p. 2). Decorrência desse sistema de controle é a disparidade histórica entre o número de mulheres e homens tutelados pelo sistema de justiça criminal. Há um abismo entre a quantidade de homens e a quantidade de mulheres cumprindo algum tipo de medida decorrente de injusto penal, especialmente a pena privativa de liberdade para os imputáveis e a internação, no caso de imposição de medida de segurança. A discrepância entre o número de homens e mulheres que passaram pelo Manicômio Judiciário de Alagoas no ano de 1979 ilustra bem este fato: foram encontrados, nos documentos do ano em questão, trinta e sete laudos médicos de pacientes do sexo masculino e apenas quatro do feminino. Por ser a figura feminina alvo do controle social com muito maior ênfase do que os homens, mulheres que têm comportamentos que fogem dos padrões morais estabelecidos sobre como deve ser o comportamento feminino, especialmente na seara da sexualidade, causam maior perplexidade do que os comportamentos desviantes masculinos. Isso ocorre tanto nas esferas em que é exercido o controle social informal, quanto nas instituições que exercem o controle formal. Até mesmo nas ciências, a mulher é vista predominantemente como um acessório, como já foi mostrado anteriormente quando se falou da forma como a criminologia tratou a mulher ao longo do tempo. Nanette Davis e Karlene Faith (1994, p. 111) lançam luz sobre essa realidade ao mostrarem que inclusive sociólogos, quando falam sobre os desvios femininos, referem-se às mulheres a partir de estereótipos e aspectos biológicos e psicológicos associados à feminilidade, além de lhes colocarem como seres conduzidos pela sexualidade e meros acessórios nas relações sociais em que homens também participam. Assim, uma mulher que se manifesta fora dessa moldura de discrição sexual e restrição à vida doméstica tende a causar perplexidade e a ser estigmatizada e excluída. Nessa seara, a psiquiatria exerceu uma importante função como instrumento de controle. Sobre essa relação entre mulher e a referida área da medicina, no cenário do século XIX. Magali Engel explica qual a base da diferença entre os diagnósticos de homens e mulheres: Vista como uma soma desarrazoada de atributos positivos e negativos, cujo resultado nem mesmo os recursos científicos cada vez mais sofisticados poderiam prever, a mulher transformava-se num ser moral e socialmente perigoso, devendo ser submetida a um conjunto de medidas normatizadoras extremamente rígidas que assegurassem o cumprimento do seu papel social de esposa e mãe; (...) Para muitos estudiosos o cerne dessa especificidade situa-se justamente no fato de que enquanto as situações que conduzem a mulher a ser diagnosticada como doente mental concentram- se na esfera da sua natureza e, sobretudo, da sua sexualidade, o doente mental do sexo masculino é visto, essencialmente, como portador de desvios relativos aos papéis sociais atribuídos ao homem – tais como o de trabalhador, o de provedor etc. Assim, a predisposição masculina aos distúrbios mentais seria relacionada, sobretudo, às implicações decorrentes do desempenho 324 325A PESQUISA JURÍDICO-CRIMINAL NO ESTADO DE ALAGOAS | Volume I A PESQUISA JURÍDICO-CRIMINAL NO ESTADO DE ALAGOAS | Volume I desses papéis ou à recusa de incorporá-los. (...) Lugar de ambiguidades e espaço por excelência da loucura, o corpo e a sexualidade femininos inspirariam grande temor aos médicos e aos alienistas, constituindo-se em alvo prioritário das intervenções normalizadoras da medicina e da psiquiatria. Muitas crenças pertencentes a antigas tradições e no âmbito dos mais variados saberes – muitas das quais remontam à antiguidade clássica – seriam retomadas e redefinidas pelo alienismo do século XIX. (2012, p. 333) No século XX, a história de exclusão com base num aparato moral em torno da sexualidade feminina continua. Magali Engel (2012, 324) expõe a história de Maria Tourinho, que, em julho de 1911, no Rio de Janeiro, matou o seu marido dentro de casa. O interessante neste caso é que o foco das investigações acerca do acontecido não foi o homicídio, em si, mas comportamentos não condizentes com a boa mãe e esposa que a paciente aparentava ser antes do acontecido. As visitas de Maria a um centro espírita que antecederam o acontecido e a devassidão que apresentava foram a base para o diagnóstico de histérica que lhe foi dado. Assim, diz Magali Engel (2012, 328) ao falar sobre a avaliação psiquiátrica de Maria: A perda do senso moral não colocaria em primeiro plano a questão ética de que nenhum ser humano tem o direito de tirar a vida de outro, mas sim de que uma mulher cujo comportamento revelasse uma sexualidade anormal e uma ausência ou insuficiência do amor materno seria histérica e, portanto, potencialmente criminosa. O caso brevemente relatado nas linhas acima é uma amostra de como os paradigmas morais continuaram servindo a estratégias de apartação social feminina, que só começou a ser questionado com maior força a partir da década de 1980, por meio da criminologia crítica feminista. Consoante Ludmila Correia, Ana Valeska Malheiro e Olívia Almeida (2016, p. 306), esta corrente criminológica “passa a denunciar a violação dos direitos de mulheres encarceradas e a seletividade do sistema penal, que as esteriotipa e estigmatiza, numa relação que corresponde a um misto de severidade e benevolência protetora e paternalista”. Mais uma vez, vê-se a presença do argumento de proteção, sendo questionado, por, na verdade, servir para justificar violações a direitos das mulheres. Elza Ibrahim, em sua vasta experiência como psicóloga no Manicômio Judiciário do Rio de Janeiro, indica que não é apenas no momento da construção do diagnóstico que o gêneroé um elemento que conta em desfavor das mulheres. Ela mostra, através do que visualizou em tantos anos de exercício da profissão como os direitos das mulheres são, ainda no nosso século, infringidos. Segundo a autora (2014, p. 27): O tratamento dispensado às pacientes femininas do Manicômio Judiciário é claramente diferenciado daquele oferecido aos pacientes masculinos. É possível constatar esta afirmação quando se caminha pela parte externa do hospital: os pacientes masculinos circulam à vontade pelo pátio e têm livre acesso aos setores técnicos, sendo-lhes possível manter contato direto com os profissionais. Já as mulheres passam o tempo todo em suas celas individuais ou apenas caminhando, de um lado para o outro, ao longo das galerias” Como se vê, a realidade de sufocamento das vozes femininas fora dos muros dos Hospitais de Custódia e Tratamento Psiquiátrico, reflexo de um processo histórico de rejeição à participação social feminina e submissão das mulheres, são potencializados dentro dessas instituições. E esse fenômeno, no caso específico do Brasil, não aconteceu de maneira isolada no Rio de Janeiro. Através das análises que serão apresentadas no próximo capítulo, ver-se-á que, no estado de Alagoas, entre os anos de 1979 e 1983 a realidade de silenciamento e de disciplinamento feminino através do saber psiquiátrico e jurídico se revelou muito semelhante. 326 327A PESQUISA JURÍDICO-CRIMINAL NO ESTADO DE ALAGOAS | Volume I A PESQUISA JURÍDICO-CRIMINAL NO ESTADO DE ALAGOAS | Volume I 3. Estudos de casos Neste capítulo, como já sinalizado na introdução, serão expostas as análises feitas a partir dos dados colhidos nos laudos médicos das pacientes examinadas no Manicômio Judiciários de Alagoas (1979- 1983), exceto aqueles referentes a tratamentos considerados, na esteira do movimento antimanicomial, degradantes, que já foram objeto de observação anteriormente. Antes de iniciar os comentários, contudo, cumpre demonstrar como é, no geral, o formato desses laudos. Via de regra, nos exames mais completos, foi possível identificar os seguintes campos: a) identificação: onde são apresentados os dados pessoais das pacientes, como nome, filiação, data de nascimento, profissão, grau de instrução, estado civil e endereço; b) antecedentes criminais: onde são descritos os injustos cometidos, quando era o caso; c) queixas ou história da doença: campo em que são apresentados episódios que podem ser associados a manifestações patológicas, além do histórico de internações; d) entrevista com paciente ou relato pessoal: onde se buscam os antecedentes pessoais; e) antecedentes familiares: os quais, segundo Foucault (2006, p. 352), constituem “o primeiro aspecto do interrogatório médico”; d) testes psicológicos; e, por fim, f) síntese diagnóstica, também encontrada sob a nomenclatura de diagnóstico ou conclusão. Em alguns casos, além dos campos mostrados acima, há outros como os de “resposta aos quesitos formulados” e “informações complementares”. Em relação ao primeiro, tais quesitos eram normalmente formulados por representantes do Ministério Público para servir de substrato ao processo judicial, tanto na esfera cível - como nos casos de possibilidade de interdição – quanto na criminal - de modo a verificar a hipótese aplicação de medida de segurança. Já no segundo campo, foram acrescidas informações relacionadas diretamente ao paciente ou a trâmites administrativos, como respostas a ofícios. É importante ressaltar que não foram todas as 84 pacientes que realizaram o exame psiquiátrico por terem cometido injusto penal. No entanto, todas elas foram levadas ao Manicômio Judiciário por apresentarem comportamentos que foram interpretados como indicativos de doença mental. Eis o motivo pelo qual, nesta parte do trabalho, não serão importantes as distinções entre as pacientes que cometeram ou não injustos penais. O foco será na repercussão que teve o grau de educação formal das pacientes nos diagnósticos realizados, visto que através desses, verificou-se a necessidade de internação no hospital psiquiátrico, gerando, desse modo, a segregação da pessoa internada. Além disso, cumpre expor que era comum a realização de exames em menores de idade no Manicômio Judiciário de Alagoas, apesar de esta ser destinada a pessoas adultas. Dentre os laudos analisados, havia 12 menores com idades entre 7 e 17 anos. Demonstrados esses aspectos, que são importantes para a melhor compreensão do capítulo, passa-se às análises do conteúdo dos laudos médicos. Para facilitar o acompanhamento das informações, optou-se por classificá-las por similaridade de temas, de modo a agrupar em cada tópico os dados mais relevantes para os objetivos desta pesquisa 3.1. Seletividade na aplicação das medidas de segurança A partir da análise cuidadosa dos laudos psiquiátricos, uma informação merece destaque: o grau de instrução das pacientes examinadas. Do universo de 84 laudos, 44 mulheres eram analfabetas, em 6 laudos consta que as pacientes eram “alfabetizadas”, em 1 consta que a paciente era “semialfabetizada”, 7 possuíam o primeiro grau incompleto, 9 possuíam o primeiro grau, em 16 laudos não constava nível de escolaridade e apenas 1 paciente possuía o ensino superior incompleto. Com base nisso, pergunta-se: o que explica o fato de, em cinco anos, apenas uma mulher com ensino superior incompleto ter passado por exame psiquiátrico em um Manicômio Judiciário, ao passo que 44 mulheres analfabetas formaram mais da metade da população avaliada no mesmo período? Qual a relação entre o grau de instrução das pacientes e a existência de doença mental? 328 329A PESQUISA JURÍDICO-CRIMINAL NO ESTADO DE ALAGOAS | Volume I A PESQUISA JURÍDICO-CRIMINAL NO ESTADO DE ALAGOAS | Volume I A resposta para esta pergunta não deveria ser buscada nas explicações médicas, mas sim através de um olhar criminológico, sem perder de vista as funções não declaradas (ANDRADE, 2003, p. 91) de uma instituição total conectada ao sistema penal. A partir disso, o que explica o fato de o público estudado ser majoritariamente composto por pessoas com baixo nível de educação formal e pertencente a classes sociais menos favorecidas é um aspecto que constitui marca incontestável do sistema de justiça criminal: a seletividade que, segundo Zaffaroni (2001, p. 27), “é a mais elementar demonstração da falsidade da legalidade processual proclamada pelo discurso jurídico penal”, já que os órgãos do sistema penal “operam quando e contra quem decidem”. A seletividade está na base das operações realizadas no âmbito do sistema penal, indo de encontro, além da legalidade, ao que prega o princípio da igualdade jurídica (ANDRADE, 2003, p. 90). Além do baixo nível educacional das mulheres, um outro fato interessante identificado durante o estudo dos documentos foi que a maioria das examinadas era composta por “trabalhadoras rurais” e “domésticas”, conforme campo do laudo destinado à anotação da profissão. Em alguns casos, não restou claro se a palavra doméstica estava ligada ao exercício de atividades do lar de modo remunerado ou se era no sentido de as pacientes se ocuparem antes do exame ou da internação apenas das atividades do próprio lar, não exercendo atividade laboral externa. Mas, de todo modo, ao menos nos casos em que foi colocada como sinônimo de atividade remunerada, a informação de “doméstica” indica que as mulheres examinadas não eram oriundas de estratos sociais elevados, no que diz respeito a recursos, privilégios e oportunidades. Assim, esses dados sobre escolaridade e profissão não significam que mulheres que integravam grupos mais abastados financeiramente não possuíam transtornos mentais e não cometeram injustos penais motivadas por eles. Se o raciocínio fosse esse, seria possível chegar à lógica falaciosa que afirma que pobreza gera criminalidade (SANTOS, 2015, p. 63). Então, o que essa discrepância mostra é que o alcance do poder disciplinarexercido pelo Estado, por meio de instituições totais, está muito mais direcionado às camadas menos favorecidas da sociedade. Nesse sentido, Alessandro Baratta (2002, p. 175) lembra que o sistema penal, no qual também estão incluídos os manicômios judiciários, e o sistema escolar são homogêneos, uma vez que realizam, essencialmente, a mesma função de reprodução das relações sociais e de manutenção da estrutura vertical da sociedade, criando, em particular, eficazes contra-estímulos à integração dos setores mais baixos e marginalizados do proletariado, ou colocando diretamente em ação processos marginalizadores. E a leitura das informações constantes nos laudos no que tange à escolaridade e profissão das pacientes só materializa o que o autor expôs na passagem, já que, em muitos exames, o nível intelectual das pacientes foi utilizado como reforço para um diagnóstico de doença mental. Abaixo serão expostos alguns dos exemplos que ilustram essa realidade. O primeiro é o exame da paciente 1, no qual se considerou que a examinada demonstrava “pobreza na expressão de sentimentos”. Neste caso, merece destaque o fato de a paciente, à época, ser analfabeta e estar sendo examinada para verificar sua aptidão apta para receber o livramento condicional, situação que pode ter influenciado na sua postura perante o profissional que a avaliou. Neste mesmo laudo, em um dos testes ao qual a examinada foi submetida, uma das conclusões foi a sua “má organização intelectual e moral”, o que demonstra que a preocupação não ficou restrita à análise da patologia em si, mas abarcou também julgamentos alheios à esfera de competência dos profissionais da saúde mental e das ciências jurídicas. Já no caso da paciente 2, que possuía apenas o primeiro grau incompleto, o seu “baixo nível intelectual”, foi considerado como um dos aspectos que fizeram “supor a prevalência de sinais esquizofrênicos”, conforme declarado no laudo. No laudo 23, foi identificada “uma linguagem muito pobre com falta de coordenação das ideias”, ressalte-se que a paciente possuía 330 331A PESQUISA JURÍDICO-CRIMINAL NO ESTADO DE ALAGOAS | Volume I A PESQUISA JURÍDICO-CRIMINAL NO ESTADO DE ALAGOAS | Volume I apenas o 1º grau e que ela estava internada há seis anos no manicômio. Em outro caso, a paciente 52 possuía 16 anos à época do exame, era trabalhadora rural, analfabeta e chegou ao manicômio acusada de ter cometido infanticídio, o profissional que a examinou entendeu que ela possuía “inteligência rudimentar”. Continuando, no caso da paciente 76, afirmou-se que ela “revela pobreza acentuada na elaboração de conceitos” e que possui “nível intelectual acentuadamente pobre”. Vale considerar que a paciente era analfabeta e trabalhadora rural. Por fim, e não menos importante, o laudo referente à paciente 82, também analfabeta, indicou que ela possuía nível “intelectual paupérrimo”. A partir dos exemplos expostos acima, fica evidente a utilização de filtros seletivos quando da realização dos exames, uma vez que não se deveria exigir, por exemplo, que alguém que não teve acesso sequer a educação formal apresente riqueza vocabular. Os aspectos dos diagnósticos apresentados neste tópico demonstram como são fluidos os conceitos de normalidade e anormalidade (THOMPSON, 2007, p. 107) utilizados pela psiquiatria para determinar o destino daqueles que, por tantos motivos, não se adequam à ordem social vigente. 3.2. Ambiente familiar e hereditariedade como argumentos para o reforço do diagnóstico de enfermidade mental Através da pesquisa, verificou-se que informações sobre o ambiente familiar em que as pacientes viviam, quando estes não foram considerados pelo psiquiatra como saudável e adequado, poderiam ser determinantes para seu diagnóstico como pessoa em sofrimento mental. Em um dos casos, a leitura feita do ambiente doméstico e da infância de uma das periciadas foi a de que “trata-se de pessoa com fortes sinais de retraimento e autismo e deformação na estrutura da sua personalidade devido a sua infância sofrida em ambiente familiar péssimo”. Obviamente que não seria coerente afirmar que o meio em que se vive não deve ser considerado para fins de diagnóstico, uma vez que as relações sociais e eventos vividos podem, eventualmente, desencadear quadros de sofrimento mental. No entanto, não é razoável que essa influência ceda espaço a determinismos ou suposições como se, conforme o caso em tela, adversidades familiares culminem, necessariamente, em distúrbios ou disfunções de ordem psíquica, de modo a justificar a intervenção psiquiátrica (DAVIS; FAITH, 1994, p. 114). Ainda no que tange à influência de aspectos familiares nos exames psiquiátricos, outra nuance foi identificada: o histórico de doentes na família, de ordem psiquiátrica ou não, influenciaram na análise médica. Dados nesse sentido foram, via de regra, incluídos no campo “antecedentes familiares”. No laudo 1, o psiquiatra destacou a fala da paciente quando esta disse que o seu pai era “nervoso e azuado”, ou seja, provavelmente possuía algum problema psíquico. O laudo 13 também segue a mesma linha, já que consta que o “pai faleceu com perda de memória interno em hospital psiquiátrico” e que a mãe era diabética. No exame da paciente 21 consta que o genitor da examinada “é tabagista e afirma sofrer dos rins” e que possui duas irmãs com deficiência auditiva. Já no caso da paciente 23, consta que “teve um irmão alcoólatra que quebrava tudo em casa”. Nesse contexto, invocar a hereditariedade, para Foucault (2006, p. 352), é certa maneira de dar corpo à doença no momento mesmo em que não se pode situar essa doença no nível do corpo individual; então inventa-se, demarca-se uma espécie de grande corpo fantasmagórico que é o de uma família afetada por um grande número de doenças Ou seja, a doença é individual porque também é coletiva, o fato de haver casos de doenças na família constitui forte indicativo de que a paciente está inclinada à doença. Desse modo, Elza Ibrahim (2014, p. 108) mostra que Em pleno século XX a psiquiatria continuava a responder ao aparelho judiciário dentro das mesmas descrições ubuescas, onde se buscavam os aspectos da 332 333A PESQUISA JURÍDICO-CRIMINAL NO ESTADO DE ALAGOAS | Volume I A PESQUISA JURÍDICO-CRIMINAL NO ESTADO DE ALAGOAS | Volume I hereditariedade e da ascendência, tentando chegar à essência do indivíduo comprovando, assim, o seu caráter perigoso. O diagnóstico da paciente 57 também merece atenção. Trata- se de paciente que foi internada no Manicômio Judiciário por ter assassinado o marido que, segundo consta no laudo, a “surrava com frequência, utilizando chibata de açoitar cavalo” e por ter presenciado o mesmo foi “ter observado por diversas vezes seu marido tentando manter relações sexuais com seu filho mais novo, que na época tinha 05 anos de idade”. No exame mental, consta que ela não apresenta distúrbios da senso-percepção, nega alucinações, não tem ideias delirantes, curso e conteúdo do pensamento, memória antero-retrógrada sem comprometimento, atenção conservada, orientada auto, alo e cronopsiquicamente, lúcida, sem alterações da afetividade, atividade voluntária e linguagem, estabelece bom rapport. Nada obstante o exame não ter detectado quaisquer elementos que sinalizem a existência de perturbação psíquica, a paciente foi diagnosticada como sendo esquizofrênica em grau simples e oligofrênica leve, mas que no momento encontrava-se assintomática e poderia voltar ao convívio social. Neste caso, o crime em si, reforçado pelo impacto de ter sido cometido contra o marido da autora, mas sem levar em conta as circunstâncias da relação marital, constituiu causa suficiente para que a mulher fosse considerada como uma pessoa em sofrimento mental, que teve como consequência a segregação da paciente através da internação, o que demonstra clara intervenção de cunho disciplinar da psiquiatria. As informações coletadas
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