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REVISTA DA CAASP2PALAVRA DO PRESIDENTE Palavra do Presidente LUÍS RICARDO VASQUES DAVANZO PRESIDENTE DA CAASP ABORDAGENS SOBRE UM MAL A SER VENCIDO REVISTA DA CAASP 3 PALAVRA DO PRESIDENTE A terrível pandemia está nos dizendo a que veio, mas não encontra vida fácil junto à advocacia. Ordem dos Advogados do Brasil, suas Secionais e as Caixas de Assistência atuam diuturnamente para que a classe supere todos os tipos de contratempos causados pelo coronavírus. Algumas das ações levadas a cabo pela OAB SP e a CAASP são descritas logo nas primeiras páginas desta edição – e outras tantas estão sendo anunciadas a cada dia nos demais veículos de comunicação das entidades, instrumentos de uma força-tarefa que não descansa. A seção “Saúde” deste quadragésimo-quarto número da Revista da CAASP aborda a questão epidemiológica a partir de análises históricas, científicas e sociais. Nossa reportagem ouviu infectologistas brasileiros e estrangeiros para revelar aos leitores como e por quê um microorganismo transfere-se de animais para habitantes de uma determinada localidade e deles para o mundo inteiro, analisa as condutas consensuais – e as contraditórias – para combatê-lo e projeta seu futuro no seio da sociedade. A Covid-19 certamente transformará para sempre o modo de viver em comunidade, notadamente nos grandes centros urbanos. Isso já é perceptível, por exemplo, nos meios de transporte. A seção “Dia a Dia” mostra, a partir de experiências pessoais, como locomover-se de bicicleta é cada vez mais comum em São Paulo, quanto isso contribui para evitar aglomerações e quanto ajuda o corpo humano a aumentar sua capacidade imunológica. Em paralelo, vale lembrarmos que algumas transformações já vinham acontecendo antes do advento do coronavírus, e o uso da inteligência artificial na aplicação da justiça é uma delas. Outra reportagem desta edição tenta responder à pergunta: seremos julgados por robôs? A matéria em questão traz a resposta de especialistas e, fatalmente, depara-se com o inevitável vírus: algoritmos estão ajudando, e muito, a combater a Covid-19. Esta edição, lançada num momento absolutamente atípico da humanidade, traz ainda uma entrevista com o presidente do Tribunal de Justiça de São Paulo, desembargador Geraldo Pinheiro Franco, e um alentado artigo da advogada Gláucia Savin, presidente da Comissão de Direito Ambiental da OAB SP, que nos alerta: “Os aglomerados humanos que contam com habitações subnormais, desprovidas de saneamento básico, propiciam um ambiente favorável à propagação de doenças, como vemos agora, na pandemia do coronavírus”. Boa leitura! REVISTA DA CAASP4 JUSTIÇA FEITA POR ROBÔS EM VEZ DE HOMENS? ESPECIAL página 32 ÍNDICE GERALDO PINHEIRO FRANCO ENTREVISTA página 24 Pi xa ba y TJ -S P REVISTA DA CAASP 5 Presidente Luís Ricardo Vasques Davanzo Vice-presidente Aline Silva Fávero Secretário-geral Antônio Ricardo Miranda Júnior Secretário adjunto Paula Cristina Fernandes Diretor-tesoureiro Rodrigo de Moraes Canelas Diretores Andréa Regina Gomes, Leandro Caldeira Nava, Raquel Tamassia Marques, Roberto de Souza Araújo e Thaís Helena Cabral Kourrouski CAIXA DE ASSISTÊNCIA DOS ADVOGADOS DE SÃO PAULO GESTÃO 2019 - 2021 Editor e jornalista responsável Paulo Henrique Arantes (Mtb.22.615) Repórteres Joaquim de Carvalho e Karol Pinheiro Colaboradora Vivian Schlesinger (Literatura) Projeto gráfico e editoração eletrônica Brain Comunicação Digital Beatriz de Moura Barretto Consultor de TI Arildo Campos Publicidade Ana Cláudia Dias de Castro Fone: (11) 3292-4555 Ilustrações Paulo Caruso REVISTA DA CAASP Revista da CAASP é uma publicação bimestral da Caixa de Assitência dos Advogados de São Paulo Rua Benjamim Constant, 75 São Paulo - SP CEP 01005-000 Tel.: (11) 3292-4400. OS ARTIGOS ASSINADOS NÃO REFLETEM NECESSARIAMENTE A OPINIÃO DA REVISTA OU DA CAASP. ÍNDICE NOTÍCIAS página 6 SAÚDE CORONAVÍRUS: PASSADO, PRESENTE E FUTURO página 14 DIA A DIA PANDEMIA PODE DEFINIR FUTURO DOS TRANSPORTES EM SÃO PAULO página 42 CINEMA O VÍRUS MORTAL DE ELIA KAZAN página 50 LITERATURA OPULÊNCIA página 54 OPINIÃO GLÁUCIA SAVIN página 60 REVISTA DA CAASP6 A OAB SP e a CAASP instituíram um auxílio humanitário para a advocacia. Denomina-se Benefício Alimentar Temporário e destina-se a profissionais regularmente inscritos nos quadros da Secional que estejam em dificuldade econômica que lhes comprometa o sustento próprio e da família. A finalidade do benefício é a compra de alimentos (cesta básica). O Benefício Alimentar Temporário tem valor de R$ 100,00. Para requerê-lo, basta preencher o formulário disponível no site da Caixa (www.caasp.org.br) e enviá- lo para o email beneficiocovid@caasp.org. br. , acompanhado de cópia da Carteira da OAB. A medida é parte das ações que vêm sendo desenvolvidas pela Ordem e a Caixa para minimizar as dificuldades que a advocacia enfrenta face à pandemia de coronavírus. O número de possíveis beneficiários será limitado à disponibilidade de um fundo específico cujo montante inicial de recursos poderá atender até 36 mil inscritos, entre advogadas, advogados, estagiárias e estagiários de Direito. “O Benefício Alimentar Temporário não foi concebido para solucionar problemas econômicos da advocacia. Sua natureza é humanitária. Trata-se de um socorro emergencial àqueles colegas que se encontrem num grau de dificuldade até mesmo para alimentar a família”, explica o presidente da CAASP, Luís Ricardo Vasques Davanzo. “A criação do Benefício Alimentar cumpre o foco da Ordem e da Caixa no momento: priorizar quem tem menos”, afirma o presidente da OAB SP, Caio Augusto Silva dos Santos.| NOTÍCIAS NOTÍCIAS CAASP E OAB SP CRIAM BENEFÍCIO ALIMENTAR TEMPORÁRIO PARA A ADVOCACIA Pi xa ba y REVISTA DA CAASP 7 A Campanha CAASP de Vacinação contra Gripe, que imuniza contra os vírus Influenza e H1N1, começou na Capital no dia 6 de abril. De 13 de abril a 8 de maio, realizaram-se as visitas às Subseções da OAB SP. Neste ano, a ação preventiva esteve mais em conta para a advocacia do que na edição passada: R$ 57,00. Foi gratuita a participação daqueles com mais de 65 anos. As equipes de vacinação e o corpo técnico da CAASP orientaram os participantes nos locais para que sejam observados os procedimentos de segurança necessários para evitar a disseminação do coronavírus. “A Campanha de Vacinação contra Gripe foi organizada pela Caixa de modo a cobrir a demanda da advocacia de forma confortável e segura. Sabemos das implicações excepcionais que existem neste ano por conta da pandemia de coronavírus, que a todos aflige. Por isso, as tratativas com a empresa que praticará o ato vacinal foram extremamente detalhistas”, afirmou a vice-presidente da CAASP, Aline Fávero. Para evitar aglomerações, foram abertos lotes limitados de vacinas semanalmente. A advocacia recebeu a vacina quadrivalente, que imuniza contra gripes sazonais e H1N1. “É sabido que a vacina a ser aplicada ainda não imuniza contra o novo coronavírus. Mas garante a proteção das pessoas contra as demais gripes, evitando uma possível concorrência de sintomas com a Covid-19”, concita o presidente da Caixa de Assistência, Luís Ricardo Vasques Davanzo. Segundo o presidente da OAB SP, Caio Augusto Silva dos Santos, “a saúde preventiva, mais do que nunca, é pauta prioritária da Ordem e da Caixa. Neste momento, em que todos vivemos as agruras provocadas por uma pandemia sem precedente, barrar uma segunda fonte de infecção viral é fundamental”.| CAASP REALIZA CAMPANHA DE VACINAÇÃO CONTRA GRIPE EM TODO O ESTADO Ar qu iv o CA AS P NOTÍCIAS NOTÍCIAS REVISTA DA CAASP8 NOTÍCIAS NOTÍCIAS A Caixa de Assistência dos Advogados de São Paulo agregou à sua rede novos laboratórios para a realização do exame de detecção da Covid-19, localizados na Capital, na Grande São Paulo, no Interior e no Litoral. São 38 serviços ao todo (listados em www.caasp.org.br),cujo atendimento abrange 94 cidades. . A maioria das unidades procede à coleta em domicílio. Em hospitais, o exame é condicionado à internação do paciente. A realização do teste requer prescrição médica. “Os serviços credenciados para realização do teste de coronavírus têm a qualidade exigida pelo sistema de saúde da CAASP e estão prontos para atender os colegas. Não descansaremos um minuto sequer na luta para que a advocacia vença esse mal que se põe à nossa frente”, afirma a vice-presidente da Caixa, Aline Fávero. O credenciamento de laboratórios que realizam teste de coronavírus soma- se a uma série de iniciativas da CAASP em apoio à advocacia neste momento de crise de saúde pública. Já em março, a entidade passou a analisar e a deliberar de imediato as solicitações por auxílio extraordinário, feitas junto ao setor de Benefícios, de advogados e advogadas contaminados pela Covid 19.| LABORATÓRIOS REFERENCIADOS PELA CAASP FAZEM TESTE DE COVID-19 EM 94 CIDADES Pi xa ba y REVISTA DA CAASP 9 Desde o dia 30 de março as compras nas farmácias da Caixa de Assistência dos Advogados de São Paulo e também na loja virtual da entidade (www.caaspshop.com) podem ser parceladas em até 10 vezes no cartão de crédito. Antes, o parcelamento máximo dava-se em até cinco vezes. A medida, fruto de pedido formalizado à CAASP pelo conselheiro secional Luiz Eugênio Marques de Souza, soma-se a uma série de iniciativas que vêm sendo tomadas pela Caixa e pela OAB SP em apoio à advocacia contra as dificuldades decorrentes da pandemia de coronavírus. “Negociamos com as empresas administradoras de cartão de crédito com as quais trabalhamos nas nossas unidades e conseguimos essa diferenciação sem qualquer taxa adicional. Os sistemas internos da Caixa já estão prontos para operar com o novo parcelamento a partir desta segunda-feira”, explica o diretor- tesoureiro da CAASP, Rodrigo Canelas.| CORONAVÍRUS: COMPRAS NAS FARMÁCIAS DA CAASP PODEM SER PARCELADAS EM ATÉ 10 VEZES Ar qu iv o CA AS P NOTÍCIAS NOTÍCIAS REVISTA DA CAASP10 NOTÍCIAS NOTÍCIAS A concessão do Auxílio Extraordinário, um dos benefícios pecuniários que a CAASP disponibiliza a advogados e advogadas em comprovada situação de carência, está sendo analisada de modo imediato para aqueles solicitantes que estejam contaminados pelo Covid-19, assim decidiu a Diretoria da Caixa de Assistência dos Advogados de São Paulo, em iniciativa que se soma a uma série de medidas já tomadas para frear a disseminação e minimizar os efeitos da pandemia de coronavírus. Está mantido o sistema de recepção de pedidos pelo site da entidade (www.caasp.org.br). O deferimento dos pedidos é condicionado à comprovação da contaminação e ao preenchimento dos demais pré-requisitos necessários à concessão do benefício. O Auxílio Extraordinário visa a atender situações especiais ou emergenciais imprevisíveis, devidamente comprovadas, em valor não superior ao teto fixado pela Diretoria, em caráter reembolsável ou não, após regular processo, onde se apreciará a excepcionalidade do caso e o fato de ser o favorecido carente ou não. Trata-se de auxílio de natureza pecuniária, de prestação única, que visa atender ao advogado, à advogada ou dependentes devidamente cadastrados na entidade.| CAASP ANALISA DE IMEDIATO PEDIDOS POR AUXÍLIO EXTRAORDINÁRIO DE ADVOGADOS E ADVOGADAS CONTAMINADOS PELO CORONAVÍRUS Pi xa ba y REVISTA DA CAASP 11 A advocacia é uma das classes que mais sofrem com doenças decorrentes de estresse, como hipertensão, risco cardiovascular, obesidade e outras transtornos psicológicos, como depressão e ansiedade. Epidemias – ou pandemias – de doenças infecciosas como a da Covid-19 têm potencial de agravar esses casos e até provocá-los em quem nunca experimentou efeitos psicológicos dessa ordem. Preocupada com a saúde mental da classe, a CAASP coloca no ar uma plataforma de saúde mental exclusiva para a advocacia paulista. O site, indicado para quem deseja obter apoio psicológico ou mesmo aqueles interessados em informações científicas sobre saúde emocional, traz conteúdos que ajudam a lidar com questões emocionais e orientam sobre como amenizá-los. A advocacia também tem acesso a cartilhas e e-books sobre bem-estar e ao “estressômetro” – um teste on-line para aferir o nível de estresse. O acesso a tudo isso é gratuito. Quem necessitar de uma atenção individualizada, poderá recorrer a orientação psicológica on-line com profissionais de psicologia na plataforma, credenciados ao Conselho Federal de Psicologia (CFP). Os valores das consultas virtuais são subsidiados em mais de 50% pela Caixa de Assistência, tornando o preço do atendimento mais acessível. A primeira consulta com especialista custa R$ 39,90. É possível ainda fechar pacotes, duas ou mais sessões saem por apenas R$ 35,00 cada. A plataforma de saúde mental da advocacia paulista - CAASPsico, foi desenvolvida pela Bee Touch, startup especializada em criar soluções de saúde na área. Quem esteve à frente da formulação do portal foi a Dra. Ana Carolina Peuker, sócia-fundadora da Bee Touch, doutora em psicologia e membro do Grupo de Trabalho de Enfrentamento à Covid-19, da Sociedade Brasileira de Psicologia. Para acessar a plataforma de saúde mental, basta clicar no banner da plataforma no rotativo do site da CAASP (www.caasp.org.br).| CAASP LANÇA PLATAFORMA ON-LINE DE SAÚDE MENTAL EXCLUSIVA DA ADVOCACIA PAULISTA CA AS P NOTÍCIAS NOTÍCIAS REVISTA DA CAASP12 Ficar em casa é indispensável contra a disseminação do novo coronavírus. O isolamento social por período prolongado, contudo, é um desafio a mais. A falta de atividade física pode prejudicar a saúde, comprometer o bem-estar e a qualidade de vida. Por isso o Departamento de Esportes e Lazer da CAASP, sob responsabilidade do diretor Roberto de Souza Araújo, firmou parceria com a educadora física Andréa Gomes para que a advocacia e seus familiares exercitem-se em casa durante o confinamento de forma orientada. “Sempre estivemos comprometidos em promover e levar esporte e saúde à advocacia. Neste momento de crise pelo qual passa o mundo, não nos furtamos desse valor e contamos com a ajuda da tecnologia para seguir cuidando do bem-estar da classe”, declara Araújo. Desde 6 de abril, a advocacia pode se exercitar junto com a personal trainer por meio de vídeos que serão postados no canal do Youtube da entidade, e TV CAASP. A cada semana um novo vídeo é postado. Os treinos têm duração de 30 minutos. “Os treinos não exigem nenhum equipamento especial e podem ser realizados com o peso do próprio corpo e de acordo com nível de condicionamento físico de cada um”, afirma Andréa Gomes.| NOTÍCIAS NOTÍCIAS EM TEMPO DE QUARENTENA, CAASP ORIENTA EXERCÍCIOS FÍSICOS NAS REDES SOCIAIS Pi xa ba y REVISTA DA CAASP 13 A CAASP está oferecendo no seu canal TV CAASP do Youtube - aulas de pilates on-line com a fisioterapeuta Mônica Gândara. Originalmente, a aula fazia parte do cronograma de atividades presenciais de bem-estar, organizada pela diretora da CAASP Andréa Regina Gomes, para o mês de março. “Em virtude da pandemia de coronavírus e das medidas para frear a transmissão da doença, esse e outros eventos da entidade foram cancelados. Porém, cientes da importância de promover o bem-estar da advocacia, especialmente agora, recorremos à tecnologia”, observa Andréa Gomes. A cada semana um novo vídeo é postado. A aula, indicada para todos os públicos, tem duração de 45 minutos e pode ser feita de duas a três vezes na semana. Além da aula gravada, advogados, advogadas, estagiárias e estagiários de Direito, seus cônjuges e dependentes também poderão fazer aulas ao vivo, diretamente com a instrutora, às quartas - feiras, às 11h, no perfil do Instagram @mo_gandara.| CAIXA OFERECE AULAS DE PILATES NAS REDES SOCIAIS PARA A ADVOCACIAPi xa ba y NOTÍCIAS NOTÍCIAS REVISTA DA CAASP14SAÚDE SAÚDE Pi xa ba y REVISTA DA CAASP 15 SAÚDE CORONAVÍRUS: PASSADO, PRESENTE E FUTURO Em outubro de 2019, líderes governamentais, autoridades de saúde pública e empresas globais que pertencem ao rol de indústrias-chave na resposta à pandemias reuniram-se em um evento promovido pelo John Hopkins Center for Health Security, a Fundação Bill e Melinda Gates e o Fórum Econômico Mundial, para simular o que poderia acontecer se um novo vírus varresse o mundo. O que no encontro era uma hipótese tornou-se realidade no fim de dezembro, quando Organização Mundial da Saúde (OMS) foi informada que “uma pneumonia de causa desconhecida” havia sido detectada em Wuhan, a maior cidade da província chinesa de Hubei. A SARS-CoV-2, um novo tipo de coronavírus, espalhou-se por 180 países, infectando pessoas e matando pacientes. Ruas ficaram vazias, pessoas foram afastadas do trabalho, de familiares e amigos, hospitais lotaram e sistemas de saúde entraram em colapso. Depois de séculos de saber acumulado e amparados pelas mais modernas tecnologias já produzidas, não somos capazes de prever o surgimento de um novo inimigo acelular? reportagem | KAROL PINHEIRO REVISTA DA CAASP16 Sete dos vírus da família dos coronavírus já alcançaram humanos vindos de outros animais, sendo responsáveis por pandemias como a Síndrome Respiratória Aguda Grave (Sars), em 2003, e a Síndrome Respiratória do Oriente Médio (Mers), em 2012. Cansados de serem pegos de surpresa, cientistas se uniram num projeto para tentar encontrar e catalogar todas as ameaças virais presentes em animais e que têm potencial de chegar aos seres humanos. Liderado por Dennis Carroll, ex-diretor da unidade de pandemia de influenza e ameaças emergentes da Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional (USAID), o Global Virome Project (www. globalviromeproject.org) estima que existam cerca 1,6 milhão de espécies virais desconhecidas em mamíferos e aves, das quais aproximadamente 700 mil teriam potencial para infectar humanos, e sobre as quais será possível obter conhecimento nos próximos 10 anos. A tarefa de Caroll e sua equipe é ambiciosa, mas pode fazer diferença, como apontou o doutor em microbiologia pela Universidade de São Paulo Atila Iamarino, em um vídeo que viralizou na internet. Segundo ele, a rapidez com que a China detectou o novo coronavírus deve-se ao “monitoramento constante de vírus circulando [no país]”. Iamarino lembrou que desde a Sars (2003), o país asiático realiza estudos em morcegos, conhecidos por carregar uma grande variedade de vírus, na tentativa de antever o aparecimento de um novo microrganismo. Em “Severe Acute Respiratory Syndrome Coronavirus as an Agent of Emerging and Reemerging Infection”, estudo publicado no Clinical Microbiology Reviews Journal em 2007, pesquisadores da Universidade de Hong Kong apontam a espécie exata de morcegos com potencial para disseminar um surto de coronavírus. “A presença de um grande reservatório de vírus do tipo SARS-CoV em morcego-de-ferradura-grande, junto com a cultura de comer mamíferos exóticos no sul da China, é uma bomba- relógio. A possibilidade de reemergência da SARS e outros novos vírus e, portanto, a necessidade de preparação não deve ser ignorada”, escreveram os pesquisadores na época. Quando analisadas sob o olhar de hoje, as palavras do estudo chinês soam premonitórias. Mas a verdade é que tentar prever qual virus dará seu salto evolutivo para a humanidade e quando isso acontecerá é raro e quase improvável. “As chances de um determinado vírus emergir e causar um surto na população humana depende muito do processo SAÚDE Pi xa ba y Em morcegos e outros animais, a origem de vários vírus. REVISTA DA CAASP 17 evolutivo do próprio vírus, dos animais em que se hospedam, das pessoas que têm contato com esses animais - e das formas com que têm contato -, do ambiente em que todos vivem e de como todas essas situações corroboram para o salto evolutivo desses microorganismos”, diz Eliseu Alves Waldman, médico epidemiologista e professor do Departamento de Epidemiologia da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo. Além disso, como lembra Maria Rita Donalisio, médica epidemiologista e professora da Faculdade de Ciências Médicas da Unicamp, microrganismos (vírus, bactérias, parasitas, fungos) são bons em se adaptar, adquirem novas habilidades biológicas e ecológicas, respondendo às ações humanas sobre seus espaços. “As ações antrópicas como invasão e degradação de habitats naturais, aglomerações humanas, intenso intercâmbio e deslocamentos populacionais, contato ocupacional ou alimentar com animais geneticamente modificados, exposição a antibióticos, hormônios e outras substâncias, o convívio doméstico com animais silvestres, entre outras situações, pressionam para mudanças biológicas dessas espécies de agentes infectantes”, salienta a professora da Unicamp. É por isso que pandemias têm ocorrido com cada vez mais frequência e intensidade, não só em número de mortos e infectados, mas também em termos econômicos. Um levantamento global da consultoria de riscos Marsh revelou que esses eventos causaram perdas econômicas de US$ 197,7 bilhões no mundo, de 2001 a 2016. “É muito difícil erradicar microorganismos, particularmente se circula entre animais”, afirma Donalisio, que defende o conceito de One Health (Saúde Única, em português), no qual a saúde humana depende necessariamente da saúde animal e ambiental. Assim, mesmo que a humanidade produza ainda mais avanços tecnológicos, teremos novas espécies ou adaptações de germes, circulando no planeta. O que importa, segundo os cientistas consultados pela Revista da CAASP, é perceber o início das pandemias o mais cedo possível. A atuação dos serviços de vigilância epidemiológica são fundamentais para a detecção precoce de pandemias. Esses setores contam com vários instrumentos epidemiológicos e estatísticos que permitem acompanhar o comportamento de doenças conhecidas e desconhecidas, prevendo assim a sua disseminação e traçando estratégias de prevenção e controle da situação rapidamente. O epidemiologista Eliseu Alves Waldman SAÚDE OLHAI E VIGIAI Ar qu iv o Pe ss oa l M .R .D Donalísio: “É muito difícil erradicar microorganismos que circulam entre animais”. REVISTA DA CAASP18SAÚDE destaca a importância desses organismos ao lembrar da febre purpúrica brasileira, infecção infantil causada por bactéria. “Na década de 80, os serviços de vigilância do norte do Paraná identificaram um comportamento diferente dessa cepa de bactérias em humanos e soltaram um alerta. A doença chegou a outros estados, mas foi rapidamente controlada. Felizmente, pois sua letalidade que chegava a 70%”, recorda o professor da USP. Nesse sentido, o ambiente de vigilância massiva sob o qual vive o povo chinês - por conta de fatores sócio-político-culturais do país -, fez ainda mais diferença no impacto que a doença teve no país asiático, quando comparado ao dos países ocidentais, como observou em um artigo no jornal “El País” o filósofo sul-coreano Byung-Chul Hang, autor de “Sociedade do Cansaço” (2010). “Na China não há nenhum momento da vida cotidiana que não esteja submetido à observação. Cada clique, cada compra, cada contato, cada atividade nas redes sociais é controlada. Quem atravessa no sinal vermelho, quem tem contato com críticos do regime e quem coloca comentários críticos nas redes sociais perde pontos. Toda a infraestrutura para a vigilância digital se mostrou agora extremamente eficaz para conter a epidemia. Quando alguém sai da estação de Pequim é captado automaticamente por uma câmera que mede sua temperatura corporal. Se a temperatura é preocupante, todas as pessoas que estavam sentadas no mesmo vagão recebem uma notificação em seus celulares. Não é por acasoque o sistema sabe quem estava sentado em qual local no trem”, escreveu Byung-Chul Hang. Ao ser entrevistado no Roda Viva, o pesquisador científico Atila Iamarino também pontuou a presteza chinesa para detecção e resposta à Covid-19. “A China tem suas peculiaridades por ser um estado autoritário, mas em termos de responsabilidade, eu ainda acredito que eles agiram mais cedo do que qualquer outro país agiu”, disse Iamarino. Além da vigilância epidemiológica feita pela OMS, cada país, estado e município conta com seu próprio sistema e equipes de vigilância epidemiológica. Mas de nada adianta a detecção precoce de pandemias por parte desses organismos se as autoridades não agem prontamente quando alertadas. E essa foi a triste escolha dos países ocidentais. Quando a China alertou a Organização Mundial de Saúde sobre o surto do novo coronavírus, sua alta taxa de transmissibilidade, as complicações aos pulmões e o risco de morte que o vírus poderia causar, Ar qu iv o Pe ss oa l E .W Wadman: serviços de vigilância epidemiológica são fundamentais. REVISTA DA CAASP 19 SAÚDE em 31 de dezembro de 2019, e a entidade repassou as informações ao resto do mundo, o Ocidente tratou o vírus como se fosse uma “gripezinha”. O momento não podia ter sido pior. É exatamente no fim de dezembro que aeroportos de todo o mundo lotam de passageiros prontos para viajarem e comemorarem o réveillon em outros destinos. Pelo menos 175 mil pessoas deixaram a cidade de Wuhan em 1º de janeiro, como revelou o jornal “The New York Times”, após uma análise dos dados coletados das principais telecomunicações chinesas que rastreiam os movimentos de milhões de telefones celulares por lá. O estudo de modelagem “Substantial undocumented infection facilitates the rapid dissemination of novel coronavirus (SARS- CoV2)” da Universidade de Columbia, em Nova York, apontou ainda que nas duas semanas que se seguiram a notícia de que havia um surto de um novo coronavírus na China, ao menos 85% dos passageiros infectados, com sintomas leves ou assintomáticas, passaram despercebidos por aeroportos de todo o mundo. Os pesquisadores acreditam que foi assim que o vírus começou a se espalhar localmente em outros países, provocando o início da pandemia. Como a matemática ajuda a explicar, a transmissão da Covid-19 segue uma função exponencial, no qual o número se multiplica por ele mesmo. Dessa maneira, numa epidemia em que o número de novos casos dobra a cada três dias, no primeiro dia haverá um caso, no terceiro dois casos, no sexto dia serão quatro casos, no nono dia serão dezesseis e assim por diante. Foi por receio de desacelerar suas economias que alguns governantes escolheram não levar a sério os reiterdos avisos das autoridades sanitárias internacionais e locais, minimizando os riscos do Covid-19, recusando-se a agir com a urgência necessária e perseguindo iniciativas de respostas de líderes regionais compatíveis com a gravidade da ameaça em curso. Jo hn H op ki ns U ni ve rs ity Nos círculos vermelhos, a intensidade da pandemia pelo mundo até o fechamento desta edição. REVISTA DA CAASP20 Doenças infecciosas epidêmicas sempre acompanharam a humanidade. Algumas surgem e desaparecem, outras persistem no tempo ou adquirem novas características, como aconteceu agora com a SARS-CoV-2. Também esse vírus será vencido, ainda que o custo para chegarmos a esse ponto, com o menor número possível de infectados e mortos, provoque um choque inicial nas economias e a cura demore um pouco para chegar. Apesar de alguns percalços no início, quando o mundo percebeu a gravidade da pandemia de Covid-19 passou a responder com velocidade e mobilização de recursos sem precedentes. O vírus foi identificado rapidamente. Seu genoma foi sequenciado por cientistas chineses e compartilhado com todo o mundo. Conforme os casos foram surgindo em outros países, as comunidades científicas locais também correram para sequenciar o genoma do vírus. Era o que precisava para o desenvolvimento de vacinas e drogas para tratamento da doença. O mundo começou a redirecionar a produção industrial e de infraestrutura para saúde. Hospitais de campanha foram construídos em tempo recorde. Montadoras de veículos passaram a usar seu maquinário para produzir ventiladores e respiradores, que depois são montados por empresas especializadas nesse serviço. Cervejarias anunciaram a transformação de etanol em álcool em gel, entre muitas outras iniciativas globais e locais. Aliadas às medidas de isolamento - característica das mais importantes nessa cadeia de medidas -, as estimativas de impacto da pandemia foram revisadas e começaram a apontar projeções um pouco mais animadoras. Segundo o centro de análise do Imperial College Londres, no estudo “The global impact of Covid-19 and strategies for mitigation and Supression”, ainda que seja necessário manter o isolamento e até ampliá- lo em alguns países e que serviços de saúde sigam sendo muito requisitados, o mundo ganhou tempo. Na economia, estudos preliminares também mostram que estamos no caminho certo. “Pandemics depress the economy, public health interventions do not: evidence from the 1918 flu”, estudo do Federal Reserve VAMOS VENCER ESSA PANDEMIA? Pe xe ls Cientistas em trabalho diuturno. Chegaremos à cura, mas quando? SAÚDE REVISTA DA CAASP 21 (o Banco Central americano) e da escola de negócios Sloan School of Management, do MIT (Massachusetts Institute of Techonology), mostrou que as medidas de isolamento horizontal podem ser também responsáveis por uma recuperação econômica mais rápida e robusta após o seu fim. Eles avaliaram a experiência dos Estados Unidos durante e após a chamada gripe espanhola, que se estendeu entre janeiro de 1918 e dezembro de 1920, causando pelo menos 50 milhões de mortes e infectando cerca de um terço da população mundial. As localidades norte-americanas que reagiram mais prontamente à pandemia de 1918 registraram uma retomada econômica mais forte no ano seguinte. Contudo, prever quando a pandemia irá acabar é mais um exercício de futurologia. As características de uma epidemia - a contagiosidade do patógeno, a taxa de transmissão, a disponibilidade de equipamentos médicos e assim por diante - mudam rapidamente durante o curso da própria doença, por isso cientistas de várias partes do mundo correm contra o tempo para encontrarem um remédio contra o novo coronavírus e, principalmente, uma vacina. Os mais otimistas preveem uma vacina para Covid-19 dentro de um ano e meio. Porém, é possível ainda que o vírus sofra mutações e as vacinas talvez precisem estar em constante desenvolvimento, como ocorre com as vacinas da gripe. A Organização Al le gr a Pa ca em bu - FO TO S PÚ BL IC AS Estádio do Pacaembu transformado em hospital de campanha. SAÚDE REVISTA DA CAASP22 Mundial da Saúde anunciou uma pesquisa global chamada de Solidarity (solidariedade, em inglês) para testar, em milhares de pacientes, quatro terapias promissoras contra a Covid-19. Até que essas abordagens saiam, seguiremos eliminando surtos aqui e ali. “A epidemia de doença meningocócica (epidemia de meningite) da década de 70 teve impacto devastador, principalmente nas grandes cidades brasileiras e, pior, nas periferias urbanas. Doença bacteriana grave com alta mortalidade, a meningite abarrotou os poucos hospitais que tinham isolamento. Somente em 1974, após a campanha de vacinação em massa, a curva epidêmica caiu mais rapidamente”, lembra Maria Rita Donalisio. Enfrentar e sobreviver a pandemias não é fácil. Mas eventos extremos podem catalisar boas mudanças. A partir da SARS- CoV-2 podemos finalmente aprender que a preparação para pandemias não se restringe apenas a tentar descobrir qual será o próximo vírus a emergir, mas também a ter um sistema de saúde consolidado, estável e universal, um programade investimentos constante em ciência e tecnologia e confiança nos cientistas.| Rp be rt p Pa riz ot ti - F ot os P úb lic as Avenida Paulista deserta: sem distanciamento social, sistema de saúde entrará em colapso. SAÚDE REVISTA DA CAASP 23 SAÚDE REVISTA DA CAASP24GERALDO PINHEIRO FRANCO | ENTREVISTA GERALDO PINHEIRO FRANCO ENTREVISTA TJ -S P REVISTA DA CAASP 25 ENTREVISTA | GERALDO PINHEIRO FRANCO Geraldo Pinheiro Franco nasceu em São Paulo e se formou em Direito pela USP na turma de 1979. Ingressou na magistratura em 1981 e desde 2001 atua no TJ-SP. Foi presidente da Seção de Direito Criminal no biênio 2014-2015. Como corregedor da Corte que hoje preside, fez mais de 700 visitas às serventias judiciais e extrajudiciais ao longo de 2018. Em entrevista ao editor da Revista da CAASP, Paulo Henrique Arantes, informou que, graças à qualidade do sistema de informática do Tribunal, 40 mil servidores passaram a atuar remotamente durante a crise do coronavírus, sem comprometimento dos processos. Nas linhas a seguir, Pinheiro Franco fala sobre a situação financeira do Tribunal, do polêmico contrato com a Microsoft, de prerrogativas da advocacia, da criação do juiz de garantias e outros assuntos, entre os quais a politização da justiça. “A política e a ideologia não são bons parceiros do juiz. Se desejarem fazer política, deixem a magistratura. O juiz precisa de isenção absoluta, imparcialidade absoluta e independência absoluta”, diz o magistrado. [ Revista da CAASP ] – A informatização da Justiça é cada vez mais necessária, e se faz ainda mais importante face à pandemia de coronavírus. Como está o TJSP nesse campo? [Geraldo Pinheiro Franco] – A tecnologia da informação fez do Tribunal de Justiça uma Corte 100% digital. E os processos físicos antigos, segundo projeto de minha gestão, deverão ser digitalizados até o final de 2021. Estamos bem. Implementando novidades e melhorando nossa capacidade. O trabalho remoto que estamos realizando nesse momento bem diz sobre isso. Em 10 dias, mercê do trabalho de juízes e servidores técnicos, colocamos 40 mil servidores em casa, em sistema de trabalho remoto, que vem funcionando perfeitamente. Mas ainda vamos melhorar, em prol do cidadão e dos profissionais do Direito. A inteligência artificial é cada vez mais utilizada no Direito. Seremos julgados por máquinas? Não se trata de sermos julgados por máquinas. Nada disso. Bem diferente. As máquinas vão fazer trabalhos para que ganhemos tempo. Indicarão aos juízes, por exemplo, casos similares e decididos pacificamente na jurisprudência. A partir disso, o magistrado poderá examiná-los com muito mais agilidade, deixando mais tempo para o exame de outros mais complexos. Os robôs são de uma utilidade ímpar. Processam, por exemplo, as execuções fiscais, com “SE DESEJAREM FAZER POLÍTICA, DEIXEM A MAGISTRATURA” REVISTA DA CAASP26 absoluta agilidade, apresentando-as ao juiz para deliberação especial ou decisão. Ganhamos em tempo, qualidade e quantidade, com segurança. Comente a questão do contrato do TJSP com a Microsoft, a medida do CNJ e a posição do STF. O tema está superado, não fosse pela deliberação do Conselho Nacional de Justiça, mas pelo entendimento da Corte, hoje, no sentido de que vamos implementar e realinhar nossas relações comerciais com a Softplan, empresa parceira do Tribunal desde muito tempo e que tem plenas condições de continuar a prestar-nos excelentes trabalhos. Vamos implementar novas versões do SAJ, que tem sido aplaudido por todos, notadamente pelos advogados de São Paulo, permitindo mais ferramentas e mais agilidade e segurança. Aliás, nesses vários e vários anos, não tivemos caso algum envolvendo ato de insegurança no sistema. O TJSP tem um déficit orçamentário da ordem de 600 milhões de reais. Como isso será resolvido? Como o Governo do Estado tem se comportando quanto a essa questão? O déficit foi apontado no início de minha gestão. Refere-se a parcela de 2019 e à projeção de 2020, pelo valor a menos do orçamento deste exercício. Estabelecemos contatos mensais com o Executivo e o Tribunal de Contas para atacar esse problema, e não tenho dúvida que, a despeito do momento atual, haverá sensibilidade do Executivo no trato da questão, notadamente porque o Judiciário presta um relevante serviço à sociedade. Mas fazemos nossa parte. Reduzimos despesas de toda natureza, estamos revisando contratos, suspendendo nomeações (salvo de 86 novos juízes, indispensável frente a um quadro aberto de mil), dentre outras medidas. O professor José Eduardo Faria, da USP, fala com muita propriedade sobre um novo paradigma do Direito, que se dissemina mundo afora, menos garantista, mais punitivista. O senhor enxerga essa tendência? Não conheço a visão do professor. Mas não vejo dessa forma. Nem o garantismo, nem o punitismo, para usar suas expressões, representam o bom caminho. O juiz julga com a lei, o fato, as regras de experiência, a jurisprudência e sua consciência. É isso que precisamos entender. E é preciso afastar ideias preconcebidas de que se busca decidir nesse ou naquele sentido sem lastro naquelas condições acima referidas. Fugir dessa realidade representa “(CORONAVÍRUS) COLOCAMOS 40 MIL SERVIDORES EM CASA, EM SISTEMA DE TRABALHO REMOTO” GERALDO PINHEIRO FRANCO | ENTREVISTA REVISTA DA CAASP 27 permitir o julgamento ideológico e político, que refutamos claramente. Não se pode, ainda, erigir teses fundadas em casos isolados, como é muito utilizado entre nós. Isso não contribui para nada, tampouco para definir novos paradigmas. Há excesso de recursos na Justiça brasileira? Há pessoas que consideram o recurso, muitas vezes, como algo meramente protelatório por parte de advogados... O juiz é humano e erra. Quando pode, corrige o equívoco. Quando não pode, o Tribunal - que também pode errar - o faz. Essa é a lógica do sistema do direito. O exercício do direito ao recurso, quando fundado, é absolutamente legítimo e necessário. Essa é a regra respeitada pela imensa maioria dos profissionais. Os inconformismos protelatórios existem, é verdade, mas são utilizados por alguns poucos que esqueceram seus juramentos. Qual sua opinião sobre a criminalização da violação das prerrogativas profissionais dos advogados? Já me manifestei no sentido de que o erro não pode ser criminalizado, tampouco o entendimento, ainda que contrário. O que pode ser criminalizado, e para todos, juízes, promotores, advogados e defensores, é o exercício ilícito de suas funções, nos limites do tipo penal. É preciso bom senso nessa relação profissional, que, no âmbito do Estado de São Paulo, existe. Somos parceiros e as questões são conversadas e definidas naturalmente, como tem de ser. Nenhum de nós das carreiras jurídicas, públicas e privadas, quer um mal profissional entre nós. E lutaremos juntos para afastar a quem não merece continuar nessa família tão querida. Advogados são rotineiramente sujeitos a situações vexatórias, em revistas nos fóruns etc. Tal conduta é necessária? Promotores parecem não sofrer com tais procedimentos. A generalização é ruim. Os advogados são tratados com respeito. Nunca me foi apontada uma situação verdadeiramente vexatória. E se for, a providência será imediata. Procuramos adequar nossos meios para viabilizar o ingresso dos advogados nos fóruns com tranquilidade e, repito, respeito. A segurança é necessária para todos. Absolutamente todos. Mas, é evidente que, se um juiz e um promotor são conhecidos porque trabalham no prédio diariamente, a segurança sobre eles é menor. Parece claro isso. Quando eu entro sozinho nos fóruns da Capital, sem avisar, apresento minha identidade (RG). Quando vou ao Conselho Nacional de Justiça, ao Superior Tribunal de Justiça e ao Supremo Tribunal Federal e entro pelo átrio, “REDUZIMOS DESPESAS DE TODA NATUREZA, ESTAMOS REVISANDO CONTRATOS, SUSPENDENDO NOMEAÇÕES.” ENTREVISTA | GERALDO PINHEIRO FRANCO REVISTA DACAASP28 igualmente passo por revista. E acho natural. Qual sua avaliação do pacote anticrime recentemente aprovado? Particularmente, o que acha da figura do juiz de garantias? Tenho me manifestado contrário ao juiz das garantias, porque o sistema de hoje funciona bem e com segurança, notadamente ao réu. Não existe meia imparcialidade. Ou o juiz é imparcial ou parcial, e nesse último caso não pode ser juiz. Julguei milhares de ações penais em primeiro grau e milhares de recursos em segundo grau e, absolutamente, nunca tive qualquer entendimento preconcebido pelos destinos do processo. As provas e sua adequação à lei permitem a conclusão de um juiz. Nada além disso. Assim é em São Paulo. A lei está suspensa. Mas o E. Desembargador Corregedor Geral da Justiça já estuda meios possíveis para a implantação do sistema, se declarada a constitucionalidade. Há outro problema sério que todos precisam saber e vou levar ao Supremo Tribunal Federal. Não há orçamento viável para implantar a novidade legal. O legislador não se preocupou com essa circunstância, que é básica, ao meu parecer. É preciso entender que todos, absolutamente todos, os direitos dos réus são respeitados no sistema de hoje. “REFUTAMOS CLARAMENTE O JULGAMENTO POLÍTICO E IDEOLÓGICO.” GERALDO PINHEIRO FRANCO | ENTREVISTA REVISTA DA CAASP 29 Caiu de moda a máxima de que “juiz só fala nos autos”? Um magistrado pode - ou deve, em alguma hipótese - manifestar suas preferências políticas? Jamais. A política e a ideologia não são bons parceiros do juiz. Se desejarem fazer política, deixem a magistratura. O juiz precisa de isenção absoluta, imparcialidade absoluta e independência absoluta. Métodos alternativos de solução de conflitos. Qual sua opinião? Como e quando devem ser adotados? Após a Constituição de 1988, todos entendem que devem levar suas questões ao Judiciário. Ninguém procura resolver pendências por outras vias, como a simples conversa com o vizinho. E o Judiciário está assoberbado. E assim, precisa de sistemas alternativos de solução de conflitos, observada, evidentemente, a segurança jurídica para o cidadão. Está na moda culpar a Constituição brasileira pelos males do país, como entrave ao desenvolvimento econômico e como responsável por um suposto excesso de “PROCURAMOS VIABILIZAR O INGRESSO DOS ADVOGADOS NOS FÓRUNS COM TRANQUILIDADE E RESPEITO” ENTREVISTA | GERALDO PINHEIRO FRANCO REVISTA DA CAASP30 judicialização. A nossa Constituição atrapalha? Não sei se atrapalha. Mas a Constituição traz muitos direitos e poucos deveres. E precisamos de deveres para viver e ajudar nosso País. O excesso de judicialização vem da incompreensão de muitos acerca da utilização correta do direito de petição, do direito de discutir contra o particular e contra o Estado. O Poder Judiciário no País está bem estruturado e isso também traz segurança no âmbito econômico. Tem problemas? Evidente que sim. Mas vamos procurando saná-los e nos reinventar. Acreditem no Judiciário, como, já disse antes, porque acreditamos nos advogados. Por último, desejo afirmar que as instituições no âmbito do Estado de São Paulo, notadamente as do sistema de justiça - OAB, MP, Defensoria Pública - trabalham bem, estão irmanadas, resolvem seus problemas e dificuldades em conjunto e entendem as dificuldades próprias de cada qual. E assim é que contribuímos para a democracia. Tenho orgulho do sistema de justiça do Estado de São Paulo. GERALDO PINHEIRO FRANCO | ENTREVISTA REVISTA DA CAASP 31 ENTREVISTA | GERALDO PINHEIRO FRANCO REVISTA DA CAASP32ESPECIAL ESPECIAL [ reportagem ] PAULO HENRIQUE ARANTES Pi xa ba y JUSTIÇA FEITA POR ROBÔS EM VEZ DE HOMENS? REVISTA DA CAASP 33 ESPECIAL JUSTIÇA FEITA POR ROBÔS EM VEZ DE HOMENS? REVISTA DA CAASP34 A informática, chamada de Inteligência Artificial (I.A.) em sua face mais ousada, ganha terreno no universo jurídico. Capaz de pesquisar, organizar, separar, verificar, orientar e agilizar processos, ela será um dia capaz de julgar? Ou já é? O debate extrapola a seara tecnológica e adentra a ética. O Direito está se desumanizando? Seremos julgados por robôs? Alguns estudiosos chegam a prever o fim da advocacia como é hoje, com a habilidade estratégica baseada em algoritmos substituindo o conhecimento erudito e a capacidade de argumentação. Outros, não tão cruéis, enxergam a questão pelo ótica de um princípio de comando, ou seja, a I.A. participa até certo ponto, um ser humano tem a decisão final. “Em questões burocráticas, de sistematização de decisões, a Inteligência Artificial pode participar. Na validação, eu digo que não”, afirma o advogado Spencer Sydow, presidente da Comissão de Direito Digital da OAB SP e autor de livros sobre o tema. Advogados que sabem como votam determinados juízes largam na frente na defesa dos clientes. Quando não sabem, vale uma mãozinha. “No Brasil, empresas de T.I. oferecem os meios. Você paga uma mensalidade, diz em qual vara está o seu processo e um programa diz qual seu percentual de êxito se determinada linha for seguida”, explica Sydow. “O próprio Código de Processo Civil estabelece o seguinte: existem casos que são paradigmáticos, que podem ser usados em causas repetitivas pelos juízes. Se você tem situações muito semelhantes, você cria casos paradigmáticos e decisões paradigmáticas que podem ser repetidas”, explica Sydow, que professor da FGV Direito. Nas mãos da advocacia, a Inteligência Artificial ganha cada vez mais relevância nas chamadas causas de massa, que abrangem grande número de pessoas com pleitos praticamente idênticos – restituições de seguro obrigatório, por exemplo, entre tantas outras. Para Spencer Sydow, aquilo que ele chama de “advocacia de butique”, seletiva, para clientes e casos repletos de particularidades, está blindado contra a I.A. “Nós temos que diferenciar processos mecânicos de processos humanos. Toda vez que um processo exigir humanidade, e o processo crime é o melhor exemplo, ele nunca será da categoria de massa: cada caso é um caso, cada conduta é uma conduta, cada elemento subjetivo é especial, cada contexto social, ambiental e ecológico é diferente”, explica. Fato é que algoritmos podem indicar ao advogado quais elementos devem ser ESPECIAL W EB Sydow: diferenciar processos mecânicos de processos humanos. REVISTA DA CAASP 35 ESPECIAL incluídos em determinada petição. “Isso não quer dizer que a função criativa do advogado esteja eliminada. A oratória e a capacidade de decidir o quê e como expor em uma petição são inerentes ao bom advogado. Por que Cícero era Cícero? Por sua capacidade de expor os fatos e o Direito e de fazer as pessoas acreditarem. Isso, até o momento, nenhuma Inteligência Artificial consegue fazer”, argumenta Christian Perrone, mestre em Direito pela Universidade de Cambridge e membro do Instituto de Tecnologia e Sociedade do Rio de Janeiro. No Judiciário brasileiro, programas de computador têm agilizado processos - é inegável. O Tribunal de Justiça de Pernambuco utiliza o robô Elis para triagem de processos de execução fiscal, conferindo dados da Certidão de Dívida Ativa. Elis analisa mais de 80 mil processos em 15 dias, enquanto 70 mil processos levariam um ano, em média, para serem triados por mãos humanas. Em Minas Gerais, o Tribunal de Justiça conta com o programa Radar para que magistrados localizem casos repetitivos e os agrupem. Já o Tribunal de Justiça de Rondônia vale-se do robô Sinapses, que faz uso de redes neurais. Sinapses possui um banco de dados de 44 mil despachos, sentenças e julgamentos, e agrupa decisões sobre um mesmo tema. Já no Rio Grande do Norte, o robô Poti ajuda o Tribunal de Justiça em execuções fiscais e penhora de bens. Um servidor costuma executar 300 ordens de bloqueio em um mês. Poti leva 35 segundos para fazer o mesmo serviço. Quando se espalha para esferas mais delicadas, a I.A. mostra-se perigosa.Robôs não têm certas sensibilidades nem se comovem diante da realidade social. O que acontece nos Estados Unidos é emblemático. O sistema criminal americano utiliza um algoritmo denominado Compas, auxiliar de juízes para determinar se um réu deve permanecer preso ou aguardar o julgamento em liberdade. Em síntese, o programa avalia o histórico do acusado e compara-o com o de outros, conferindo-lhe uma “pontuação de risco”. ROBÔS, RÁPIDOS E INSENSÍVEIS W EB Perrone: oratória do advogado não pode ser substituída. REVISTA DA CAASP36 A avaliação leva em conta, entre outros fatores, o número de vezes que o réu foi abordado ou detido pela polícia. É necessário explicar por que réus negros são prejudicados pelo Compas? Segundo Perrone, “o que é essencialmente humano, como a empatia e as emoções relacionais, a I.A. não consegue emular. Compreender a culpa é essencial no Direito Penal, ter noção das dificuldades relacionais é fundamental no Direito de Família e assim por diante”. Perrone ressalta que os casos judiciais carregam elementos variáveis e pontuais que podem ser estáveis ou repetitivos. Para exemplificar, ele cita a quebra de sigilo de dados pessoais: “Muitos dos dados expostos terão natureza similar, assim como a definição do motivo ou culpa pela exposição dos dados. Nesse sentido, esses elementos poderiam ser ‘julgados’ de maneira conjunta, não haveria necessidade de centenas, milhares ou mesmo milhões de processos judiciais diferentes. No entanto, quanto ao dano causado pela exposição, aí podem existir diferenças e discrepâncias significativas”. O Conselho Nacional de Justiça tem atuado como orquestrador das experiências com I.A. no Judiciário brasileiro, distribuindo uma plataforma a ser reproduzida localmente. No âmbito do órgão foi criado um Laboratório da Inteligência Artificial, cujo coordenador, juiz Bráulio Gusmão, conversou com a Revista da CAASP. “A abordagem que o Judiciário tem feito com relação à I.A. é para atacar principalmente o grande volume de casos que temos e o fato de que esses casos têm uma repetição. Ou seja, eu consigo encontrar padrões e a I. A. ajuda a destravar muitos casos, tornando o processo mais célere, mais eficiente”, esclarece Gusmão. Segundo o magistrado, não existem sentenças totalmente baseadas em algoritmos, mas sim decisões de expediente. “Tais decisões sempre foram tomadas de forma semelhante, então você pode criar um algoritmo para que, preenchidas determinadas condições, o caminho seja definido. Mas isso sempre passa pela análise do juiz. É ele quem assina”, descreve. ESPECIAL LABORATÓRIO DA I.A. W EB Gusmão: I.A. serve para atacar o grande volume de processos. REVISTA DA CAASP 37 Indagado sobre particularidades encontradas em casos aparentemente semelhantes, e se isso não exigiria olhos humanos, Gusmão responde que sim, os casos têm peculiaridades, mas a Inteligência Artificial é usada muito mais no processamento das demandas, “no dia a dia daquela atividade cartorária, principalmente na área de defesa do consumidor, em questões previdenciárias e tributárias – você tem um algoritmo que identifica padrões e gera caminho naquele processo no sentido da automação”. “Não acho que seremos julgados por robôs”, finaliza. É a voz do jurista Lênio Streck, sempre mordaz e erudito em suas palavras: “O Direito brasileiro já vendeu e comprou facilidades, atalhos para resolver nossos problemas. Foi assim com as súmulas, com a ‘commonlização’, com o processo eletrônico etc. Tudo para não encarar as causas estruturais que levam a uma litigiosidade de massa e a uma prestação jurisdicional de baixa qualidade. Não tenho razões para acreditar que com a I.A. será diferente”. Para o professor e advogado, “existem inúmeros problemas ao se tratar o Direito como se ele fosse um fato bruto, como se pudesse ser identificado a partir de critérios empíricos e dispensasse em algum momento a interpretação”. Na mesma linha de Ronald Dworkin, grande teórico da interpretação jurídica contemporânea, Streck afirma que “nenhum algoritmo pode decidir se uma interpretação se ajusta e se justifica satisfatoriamente num caso”. Quando aos advogados, Lênio Streck diz compreender que alguns façam uso estratégico de I. A. na elaboração de suas peças. Mas ressalva: “Até onde isso pode dispensar a interpretação de um profissional humano? Ademais, para essa tecnologia ser eficiente para os advogados, ela não pressupõe em alguma medida ‘jurisprudência mecânica’?” O jurista finalizou sua missiva enviada à Revista da CAASP com as seguintes palavras: “Ainda que a Inteligência Artificial funcione, superando todos os problemas apontados, gostaríamos de viver num mundo no qual nossos direitos fossem defendidos e julgados com menor presença humana? No qual os advogados trabalhassem numa espécie de Uber, como definiu certa pesquisadora? E o que viria depois? Em breve, as provas de concurso substituiriam o conhecimento jurídico por habilidades em informática”. UMA VOZ CONTRÁRIA ESPECIAL Ar qu iv o CA AS P Streck: “Não se pode tratar o Direito como fato bruto”. REVISTA DA CAASP38ESPECIAL TECNOLOGIA CONTRA O CORONAVÍRUS O professor Spencer Sydow apontou para a Revista da CAASP algumas formas de a Inteligência Artificial contribuir na luta contra o coronavírus, pandemia que compromete todas as atividades da sociedade. “A inteligência artificial pode ser programada para auxiliar na retirada de fake news de sites e redes sociais. Ela pode ser programada para identificar se aquilo é uma notícia verdadeira ou falsa, e, se for uma notícia falsa, ela poderia denunciar ou mesmo retirar do ar”, diz o advogado. Em universidades, a Inteligência Artificial foi alimentada com informações sobre o sequenciamento genético do vírus, e a resposta foi que, em menos de 24 horas, a I.A. apresentou 77 elementos com potencial de contar a doença, lembra Sydow. “A Inteligência Artificil consegue trabalhar com uma grande quantidade de variáveis e fazer testes virtuais de viabilidade de fármacos para que eles proporcionem maximização da eficiência de tratamentos”, explica. Pi xa ba y REVISTA DA CAASP 39 ESPECIAL O jornal Valor Econômico publicou no fim de março uma reportagem que demonstra o poder da Inteligência Artificial na construção de uma sociedade menos suscetível ao coronavírus. Sistemas como os descritos abaixo ajudaram a China a desacelerar a escalada do Covid-19, contribuindo para que o número de novos casos diários caísse de 15 mil em 13 de fevereiro para 45 em 28 de março. Uma empresa de Recife, a In Loco, construiu um algoritmo que permite às autoridades avisarem os cidadãos quando estes estejam no mesmo local em que se encontra alguma pessoa infectada pelo coronavírus, orientando-os sobre como proceder em seguida. A empresa utiliza um sistema denominado geolocalização, parecido com o que adotam Uber e iFood. Após apresentar sintomas ou receber resultado positivo do teste de Covid-10, a pessoa pode emitir uma notificação a partir de um aplicativo que usa o algoritmo da In Loco. A tecnologia já é utilizada pela Prefeitura de Recife para medir o índice de isolamento social por bairro. Outra empresa, a CyberLabs, do Rio de Janeiro, fechou acordo sem custo com o município para uso de suas tecnologias no esforço por isolamento social. Câmeras públicas e particulares – em shoppings, restaurantes, academias – fotografam e contam as pessoas que transitam em determinado lugar e envia os dados à Prefeitura. O programa também projeta as informações sobre um mapa, mostrando os lugares de maior risco. REVISTA DA CAASP40 REVISTA DA CAASP 41 REVISTA DA CAASP42DIA A DIA D IA A D IA Ar qu iv o R. G . REVISTA DA CAASP 43 DIA A DIA reportagem | JOAQUIM DE CARVALHO PANDEMIA PODE DEFINIR FUTURO DOS TRANSPORTES EM SÃO PAULO A evolução do quadro das pessoas contaminadas pelo coronavírus prova que uma boa capacidade cardiorrespiratóriaé fundamental para aumento da resistência a infecções – e pedalar é uma atividade perfeita para tanto. Locomover-se de bicicleta é cada vez mais comum em São Paulo, e a tendência é que esse hábito cresça ainda mais nos próximos anos. Bom sinal para o trânsito e para a saúde.| REVISTA DA CAASP44 Roberta Godinho só se desloca em São Paulo de bicicleta. Por dia, percorre pelo menos 10 quilômetros. Formada em administração hospitalar, ela foi assistente de ninguém menos que Pelé, o Atleta do Século, durante 17 anos, em uma empresa de marketing esportivo. “Ia para eventos de salto alto e bicicleta”, conta, rindo. Há 25 anos, quando começou a fazer esses deslocamentos, pouquíssimos moradores de São Paulo usavam a bicicleta como meio de transporte regular. Hoje, em cruzamentos da avenida Faria Lima há concentrações de ciclistas que quase se poderiam chamar de congestionamentos. Como modal de mobilidade urbana, a bicicleta é o meio que mais cresce. Na época em que Roberta começou a cortar as avenidas paulistanas em sua bike, em 1995, não havia pesquisa sobre quantos moradores usavam o mesmo tipo de transporte para ir ao trabalho. Em 2007, com a pesquisa origem-destino do Metrô, soube-se que eram 304 mil pessoas. O último dado disponível, referente a 2017, deu conta de que já eram 377 mil. Em 13 anos, houve um crescimento de 24%. E deve crescer muito mais, segundo estudo da consultoria global Kantar. Em 10 anos, o número de pessoas que usarão a bicicleta como meio de transporte regular subirá para mais de meio milhão — precisamente 554,2 mil. Ao mesmo tempo, segundo o estudo da Kantar, o uso de carros deve cair 28%. Já o uso de transporte público subirá 10% e o deslocamento a pé subirá DIA A DIA Ar qu iv o R. G . Roberta Godinho: ex-assistente de Pelé pedala 10 quilômetros por dia. REVISTA DA CAASP 45 DIA A DIA 25%. São dados que indicam uma mudança radical no cenário da cidade, com trânsito muito menos caótico e pessoas muito mais saudáveis, já que a bicicleta é uma das melhores atividades físicas para fortalecimento cardiorrespiratório. Porém, segundo o levantamento da consultoria global, feito com base em pesquisa de campo, a população da capital paulista vê de forma crítica e pessimista o futuro da mobilidade. De acordo com Luciana Pepe, diretora de contas da Kantar no setor automotivo, essa projeção negativa decorre da atual situação dos transportes. Em razão da crise econômica que existe desde 2015, investimentos deixaram de ser feitos na infraestrutura do transporte, e a situação do trânsito piorou. A boa notícia é que a mesma pesquisa indica a disposição dos moradores de São Paulo de adotar soluções inovadoras para melhorar o transporte. Em razão disso, aumentou o número de viagens feitas a partir de aplicativos, como o Uber, 99 e Cabify, além do uso incipiente de carros compartilhados, obviamente não recomendado enquanto durar a pandemia da Covid-19. E essa disposição não é exclusividade do paulistano. A estudo envolveu as principais regiões metropolitanas do mundo. “A pesquisa da Kantar descobriu que 40% das pessoas em todo o mundo estão abertas a novas soluções, mas nem todas as cidades estão prontas para a transformação da mobilidade”, destaca Luciana. A estimativa é que, no mundo, as viagens de automóveis caiam de 51% para 46%. Ao mesmo tempo, o ciclismo deve crescer muito — no mundo, 18%, inferior à taxa estimada para São Paulo. Já a caminhada e o transporte público aumentarão 15 e 6%, em média, nas maiores regiões metropolitanas do planeta. O empresário Ronaldo Manso Viana tem uma trajetória que reflete essa espécie de evolução do indivíduo em sua relação com os modais de transportes. Ele saiu do carro e foi para o transporte público, depois para a caminhada e se encontrou sobre as duas rodas movimentadas pelo esforço humano. Ronaldo tem uma empresa de tecnologia de segurança e, depois do primeiro contato, só visita clientes de bicicleta. “No primeiro contato, eu vou de carro, porque o cliente pode ter uma imagem negativa. Mas depois, quando ele já conhece meu trabalho, pergunto se ele se importa que eu vá de bicicleta. Ninguém se importa. A bicicleta já é bem aceita na sociedade”, comenta. Ar qu iv o R. G . Ronaldo Viana: visita a clientes de bicicleta depois do primeiro encontro. REVISTA DA CAASP46DIA A DIA Ronaldo chegou a ir de bicicleta para visitar um cliente em Campinas. Saiu do bairro onde mora em São Paulo, Butantã, e foi para a cidade que fica a quase 100 quilômetros. Demorou 4 horas e meia. Voltou de ônibus, com a bicicleta no bagageiro. “Por lei, os ônibus têm que aceitar até duas bicicletas no bagageiro. Tem empresa que não respeita, mas é lei”, afirma. A obrigatoriedade de aceitar bicicleta como bagagem é um dos direitos que os ciclistas conquistaram nos últimos anos, mas ainda falta muito. “A cidade precisa ser adaptada para contar com a bicicleta como transporte regular”, reivindica Roberta. Ela lembra que, nos últimos dez anos, houve um crescimento de ciclofaixas, mas “sem planejamento correto”. Para ela, é um absurdo a cidade de São Paulo não implantar faixas exclusivas para ciclistas nas duas marginais. E, para isso, não precisaria nem usar faixa destinada hoje a carros, caminhões e motos. É só usar a margem do rio, como existe em alguns quilômetros da via que acompanha o rio Pinheiros. Os ciclistas teriam um anel viário para levá-los de um lado a outro da cidade. A opinião de Roberta deve ser levada em conta pela experiência que tem não só em deslocamentos na cidade. Ela é uma ciclista de ponta. Além de usar as duas rodas para seu transporte rotineiro, participa de provas de longa distância. “A cidade tem uma mina de ouro para o transporte, que é fazer a ciclofaixa nas marginais, daria para chegar até o aeroporto (Guarulhos) e também contornar a cidade”, projeta. Roberta conhece bem as marginais, e também o peso da burocracia contra projetos inovadores. Ela sempre usou a ciclofaixa inconclusa da Marginal Pinheiros e aprendeu a se relacionar até com as capivaras que habitam a mata ao lado do rio. Como há muito espaço disponível naquela área, decidiu fazer o QG das Capivaras, mas para atender a outro público, o dos ciclistas. Ali montou oficina e fez um centro de arrecadação para ações sociais relacionas ao veículo de duas rodas não motorizado. Ela estabeleceu relação com as bicicletarias da cidade e passou a coletar material descartado por essas oficinas. Com esse material, ela e os amigos passaram a vender como sucata e também a aproveitar peças para consertar bicicletas de pessoas pobres. Com o dinheiro arrecadado com a venda de sucata, organiza a cada três meses ações sociais em favelas, sempre relacionadas a ciclistas. Seu grupo vai até uma comunidade e oferece alimento e doces enquanto consertam bicicletas de moradores. Também doam as bicicletas que recebem de ciclistas de maior poder aquisitivo. Ao trocar a bike, esses ciclistas acabam doando a antiga para o QG das Capivaras. “E nós levamos para as Ar qu iv o R. G . Companhia de capivaras às margens do rio Pinheiros. REVISTA DA CAASP 47 DIA A DIA comunidades e doamos”, afirma Roberta. Por sinal, as pessoas com renda mais elevada formam o grupo que mais cresce no uso das bicicletas, segundo a pesquisa origem-destino do Metrô. Entre 2007 e 2017, o crescimento do uso da bicicleta foi maior entre os entrevistados de alta renda: o índice de utilização no grupo que tem renda familiar acima de R$ 11 mil aumentou quase 400%. O QG das Capivaras, apesar de realizar um trabalho relevante, enfrentou problemas com a burocracia do Estado de São Paulo. A estatal que detém a propriedade das margens do rio Pinheiros, a Emae, implicou com o trabalho que os ciclistas realizavam num pedaço insignificante, mas de relevância social. E mobilizou forças de segurança para desmontar a estrutura de lonaque Roberta e os amigos haviam levantado. Durante alguns meses, ficaram sem sede, mas, mesmo assim, continuaram fazendo o trabalho social até que a Secretaria de Esportes do município tomou conhecimento do que eles faziam nas favelas. Desde dezembro do ano passado, eles estão instalados no centro esportivo Pelezão, no Alto da Lapa. Casada com engenheiro, Roberta deixou o marketing esportivo para cuidar das filhos, Ar qu iv o R. G . Roberta e companheiros: oficina e centro de arrecadação para ações sociais. REVISTA DA CAASP48DIA A DIA mas não abandonou a bicicleta. Além de disputar provas de até 1.000 quilômetros, presta serviços como entregadora de refeições para um restaurante. Ganha 300 reais por semana, trabalhando apenas no horário do almoço, dinheiro que usa para suas ações sociais e de incentivo ao ciclismo. O marido é que arca com as despesas da casa, enquanto ela também não descuida dos afazeres domésticos. Só interrompe esses afazeres quando participa de provas, como uma de longuíssima distância disputada em Santa Catarina. Durante três dias, ela percorreu 1.000 quilômetros. Parava para se alimentar e cochilar, nada mais. Tanto Roberta quanto Ronaldo acreditam que o uso de bicicleta como veículo de transporte vai crescer mais do indicam estudos como a do Kantar. A razão é o coronavírus: há o risco de contágio em transporte coletivo e também em táxis ou carros de aplicativos. “A bicicleta é muito mais segura, um veículo individual que pode levar você longe”, diz Ronaldo. Além disso, eles acreditam que diminuirá a circulação de carros pela cidade, em razão da descoberta de que o trabalho remoto, em home office, pode ser bem mais produtivo do que em escritórios. Com mais espaço nas vias, mais ciclistas começarão a surgir, não apenas os de fim de semana, mas os do dia a dia. Ronaldo lembra que, em 2018, quando houve a greve dos caminhoneiros, algumas avenidas ficaram cheias de bicicletas, por conta da falta de combustíveis para automóveis. Os dois têm também esperança de que os administradores públicos acordem para a realidade do ciclismo. Se não fizerem isso, serão atropelados pelo trem da história. Para eles, o transporte automotor individual, definitivamente, entrou em baixa. No mínimo, haverá uso complementar: bicicleta, mais trem, metrô ou ônibus, ou bicicleta (também patinete) mais carros chamados por aplicativo ou táxis, além do veículo compartilhado. Um novo mundo está surgindo e essas mudanças, como muitas outras, poderão ser aceleradas assim que a pandemia for vencida. REVISTA DA CAASP 49 DIA A DIA REVISTA DA CAASP50CINEMA C IN EM A Re pr od uç ão REVISTA DA CAASP 51 CINEMA Elia Kazan foi um dos grandes nomes da Era de Ouro de Hollywood, e já o seria se tivesse filmado apenas “Sindicato de Ladrões” e “Vidas Amargas”, clássicos decisivos para a imortalidade artística de Marlon Brando e James Dean. Mas Kazan fez muito mais que essas duas obras-primas. Fez, entre outros, o ótimo “Pânico nas Ruas”, filme de 1950 que contém algumas situações redivivas 70 anos depois pela pandemia de coronavírus. O VÍRUS MORTAL DE ELIA KAZAN REVISTA DA CAASP52 No submundo de uma cidade portuária americana, um trapaceiro do baralho é assassinado com dois tiros. A autópsia do corpo mostra que ele carregava o letal vírus da peste pneumônica, o qual poderia vir a ser disseminado pelas pessoas de sua convivência e por seus próprios matadores. Começa a caçada policial e, em paralelo, a luta de um médico idealista para alertar as autoridades sobre o potencial devastador do microorganismo, cuja contaminação se dá pela aspersão de gotículas respiratórias. O doutor Reed (Richard Widmark) adverte para a possível necessidade de quarentena e até mesmo de vacinação em massa da população local – sim, havia um remédio contra a peste pneumônica, que, não contra- atacada, matava em 48 horas. O dilema enfrentado por ele, um oficial-médico da Marinha, membro do Departamento de Saúde Pública dos Estados Unidos, e compartilhado por gestores públicos é: vale a pena criar pânico na população? Não, entendem. A opção escolhida é correr para capturar os assassinos e isolá-los. Mas não só a eles: a vítima chegara à cidade como clandestina em um navio infestado de ratos, vetores do vírus causador da peste pneumônica. Há que ser feito um trabalho profilático junto à tripulação e aos trabalhadores portuários, e uma barreira cultural ergue-se diante do doutor Reed. As situações de “Pânico nas Ruas” parecem estar de volta em 2020, é claro que num grau muito mais elevado agora. Ao alertar para o CINEMA Re pr od uç ão Ciência e política em conflito diante do vírus mortal. Re pr od uç ão REVISTA DA CAASP 53 CINEMA perigo de disseminação continental do vírus, Reed brada: “Não estamos mais na Idade Média! Hoje podemos estar em qualquer lugar do país ou em outro continente em menos de 10 horas”. Era a “globalização” da época. A falta de compreensão do papel da imprensa, marca dos Estados Unidos e do Brasil atuais, também está na fita: o repórter que desvenda o que está sendo escondido pela polícia e pelo órgão de saúde pública é detido e posto incomunicável para o que nada vaze ao público. Em “Pânico nas Ruas”, Kazan realiza um legítimo noir americano, vencedor do Leão de Ouro no Festival de Cinema de Veneza: ambientes sombrios (ótima fotografia de Joseph MacDonald), perseguições pelas ruas da cidade (a sequência decisiva nos armazéns do porto é espetacular), diálogos espirituosos e desfechos rápidos (ótimo roteiro de Richard Murphy). O vilão principal é ninguém menos que Jack Palance, com seu rosto anguloso e assustador. Tudo é embalado pela música contundente de Alfred Newman. Kazan foi um diretor brilhante, que soube ao longo da carreira manejar o talento intempestivo de um Marlon Brando, por exemplo. Filmou o crime e o submundo com a mesma destreza com que retratou dramas familiares e sociais. Caiu do pedestal quando foi acusado de delatar artistas durante o macarthismo. Mas isso não diminui sua obra.| (PHA) W EB Elia Kazan: colaboração com o macarthismo não subtrai a genialidade da sua obra. REVISTA DA CAASP54LITERATURA OPULÊNCIA Por Vivian Schlesinger* LITERATURA REVISTA DA CAASP 55 Você conhece Campos do Jordão, a “Suíça Brasileira a poucas horas de São Paulo? Você pode viajar até lá, sem máscara e sem internet, sem sair da poltrona, com Opulência, o novo livro de Luis Krausz. É um romance sobre Campos do Jordão e não é um romance sobre Campos do Jordão. Para dizer a verdade sobre as coisas - frase ali repetida muitas vezes, chamando a atenção à inverdade das coisas - trata-se da busca do tempo perdido de qualquer cidade ou pessoa atravessada pelo rio obsessivo do progresso. Fundada no Século XVIII, até os anos 1980 essa estância manteve seu sotaque caipira, suas araucárias e seu comércio local. Mas isso iria mudar. É na época dessa mudança que começa a trama de Opulência, com a chegada da família Krausz mais uma vez à sua casa de férias na Vila Yara, em Capivari, um dos vilarejos que perfaziam a “grande” Campos do Jordão dos anos 1980. A despeito da resistência dos Krausz, as referências ao nome indígena do bairro, Vila Yara, são pouco a pouco substituídas por referências ao Sans Souci, um novo prédio de apartamentos que se interpõe precisamente entre a propriedade da família e a vista do bosque do Grande Hotel, de nobre passado. Há muito mais do que um nome, aqui. Este Sans Souci, de cimento e telhado de folhas de zinco, em nada lembra o verdadeiro, o palácio construído pelo Imperador Frederico, o Grande, perto de Berlim, de amplas varandas e jardins terraceados, um dos mais belos da Europa. O nome do edifício cinzento é uma tentativa rasa de trazer, por pretenso senso estético, um pouco do Velho Mundo para o Novo. A vista do bosque, agora bloqueada pelo prédio, é substituída poroutra, na memória, que não pode ser apagada. O capítulo de abertura descreve Schlaraffenland, ou Cocanha, país mitológico conhecido desde a Idade Média onde não há necessidade de trabalhar, o alimento está ao alcance das mãos e todos os desejos são instantaneamente gratificados. Ao final deste capítulo descobre-se onde fica essa terra: Quem gosta de trabalhar, de fazer o bem e de deixar de lado o mal, ali é considerado inimigo [...]. Mas quem for burro, incapaz de fazer qualquer coisa direito [...] será nomeado Rei sobre todo o país e receberá um grande salário. (p. 10) Nem o título escapa à lâmina afiada da ironia no livro. A busca pela imagem de opulência - o que é e não é - revela-se um dos temas prediletos de Luis Krausz. Em Opulência o leitor de Luis Krausz reencontra um narrador conhecido desde seus primeiros romances, um adolescente brasileiro de família judaica, os Krausz, imigrantes alemães que carregam - e transmitem - toda sua bagagem centrífuga de exílio, memórias, estrangeirismo e a vontade desesperada de integrar-se ao novo país. Assim como o autor, LITERATURA Re pr od uç ão REVISTA DA CAASP56 o narrador cresceu em uma casa onde a alta cultura é um grande valor, herança austro- alemã reverenciada pela família. Ele atravessa sem dificuldade, em ambas as direções, a fronteira entre presente e passado. Para ele, folhear antigas agendas, intactas, da escrivaninha da avó ...tinha o sabor de uma atividade proibida. Voltar às páginas de 1964 [observe a data] ou de 1966 significava opor-se às leis do progresso. (p. 75) Uma das técnicas mais originais de Luis Krausz aqui é o uso corriqueiro, pelos personagens, de expressões idiomáticas em alemão para sintetizar a ética do germanismo. Relata, por exemplo, o misterioso sumiço de dois cobertores de lã Merino, que cobriam de paz e de calor o sono das noites frias da montanha (p. 62). Quando interpelada a respeito, a caseira responde com uma carranca silenciosa. Pronto, decreta a avó, não se fala mais nisso, não convém aprofundar-se na investigação. “Não convém.” ... era a tradução da expressão alemã “lieber nicht”, literalmente, “é preferível não” [...] uma sentença para a qual não cabia recurso [...] Era o último carimbo da autoridade absoluta, a sentença final que chegava a nós depois de percorrer os labirintos da burocracia do Estado, e também os labirintos do tempo e da distância, provindo de antigos éditos imperiais. (p. 62) Por trás de duas palavrinhas, nada menos do que a essência do caráter alemão, a obediência à autoridade, que permitiu que os alemães dessem ao mundo os piores, mas também alguns dos melhores presentes. Mas há personagens no livro (e no Facebook) para quem Paris, e não a austeridade germânica, exerce um fascínio irredutível que nada tem a ver com a realidade de violência, xenofobia e antissemitismo que asfaltam as avenidas parisienses. Uma tia do narrador, paradigma da elegância na família, lembra uma celebridade qualquer da Revista Caras: ...com seu sotaque francês e com seus lenços de seda esvoaçantes e lindíssimos [...] Exalava os ares dos Grands Boulevards, onde pairava le vrai chic parisien. [...] Um livro menor da francofonia, uma obra secundária no grande mapa da imprensa escrita francesa, parecia guiá-la como uma bíblia apócrifaa. Eu suspeitava que o nome desse livro fosse Paris Match. O fio condutor do romance são os preparativos para uma visita incomum, um “....é um romance sobre Campos do Jordão e não é um romance sobre Campos do Jordão (...) Trata-se da busca do tempo perdido de qualquer cidade ou pessoa atravessada pelo rio obsessivo do progresso”. LITERATURA REVISTA DA CAASP 57 chá da tarde na recém-inaugurada mansão de veraneio de D. Marianne Némirowska. O convite é incomum porque em São Paulo ela circula em uma esfera exclusiva de colecionadores de arte, aqueles poucos que possuem, ou pensam possuir, Matisses, Manets, Van Goghs. Em seu gigantesco apartamento na Rua Haddock Lobo, cuja sala é revestida de seda vermelha, opulentos jantares são oferecidos a convidados da alta roda, gente que levanta-se ao meio- dia, almoça às três da tarde e janta às onze da noite - feine leute, gentes finas, na ácida opinião da avó. A família Krausz não faz parte desse círculo em São Paulo, mas em Campos do Jordão Mme. Némirowska não tem plateia, daí o inesperado convite. Os preparativos agitam os dias da família e aceleram a narrativa. O narrador conduz o leitor como se usasse duas câmeras. Uma para exteriores, às vezes ensolarados, outras vezes enevoados, onde as nativas araucárias são derrotadas pelas vistosas hortênsias, contrabandeadas desde a Europa e muito bem sucedidas nesse novo habitat. Outra câmera é para interiores de madeiras escuras, gavetas raramente abertas, povoadas por objetos herdados dos avós ou bisavós. Exatamente como a alma do exilado: por um lado, alguém que anseia por viver no presente, uma vida solar, ambientar- se e ser feliz no novo lar, ainda que precise às vezes aceitar a substituição de sua identidade pelo novo e superficial; por outro lado, alguém cuja essência é feita de memórias do mundo deixado para trás, que não têm fins utilitários mas nem por isso devem ser abandonadas. Mas no presente do narrador, nem tudo é solar: o romance se passa durante a ditadura militar, devidamente caracterizada: O ministro das Relações Exteriores do governo do General Ernesto Geisel, Antônio Francisco Azeredo da Silveira, era figura frequente nos noticiários. Ele causava revolta. Mas o apelido mais áspero cabia ao General Ernesto Geisel, que era conhecido como Der Scheissel. (algo próximo a “O Merdão”) O garoto lembra de Filinto Müller (ein Bluthund, um cão sanguinário) e sua indisfarçada simpatia pelo nazismo, e de sua morte no acidente de avião da Varig em 1973, junto com mais 115 passageiros, sufocados pela fumaça tóxica provocada por um incêndio em um dos banheiros. A ironia de tal destino, reservado a um verme nazista, não passa despercebida pela avó do narrador: “Der Teufel soll ihn holen.” “Que o diabo o carregue.” (p. 173) A origem judaica da família Krausz é parte da bagagem essencial que, por recusarem-se a abandonar, obriga-os, às vezes, a pagar uma alta taxa de excesso de peso. Já a ‘Tia Susanna Frank’ paga o preço por abandonar a bagagem. Judia de Danzig forçada a fugir para Paris com a ascensão daquilo que ascendeu na Alemanha em 1933 e em 1936 e depois de 1936...(p. 166), amiga da família Krausz, vencida pela vaidade, havia aceitado um cargo de confiança na Prefeitura de Paulo Maluf. E eis que é chegada a hora de Rumpelstiltskin exigir seu pagamento: Maluf pede que Tia Susanna Frank o represente na missa de sétimo dia em honra a ninguém outro que o finado cão sanguinário. Enquanto isto, as transformações impostas pelo progresso à antiga Campos do Jordão são igualmente cruéis. Ora é a horda de turistas nas ruas que tira a paz de espírito, o barulho das motos de múltiplas cilindradas que invade trilhas até então quase secretas, W EB LITERATURA REVISTA DA CAASP58LITERATURA ora são os xingamentos no trânsito de Capivari, onde antes só os passarinhos gritavam. A vida austera, a confiança nos estalos do pêndulo do relógio, a serenidade de um escritório onde tudo tem seu lugar e tudo está em seu lugar, talvez nunca existiram em Campos do Jordão exceto na memória da família Krausz, mas é devastadora a constatação de que agora definitivamente não existirão mais. Holocausto, sobrevivente, campo de concentração, nenhuma destas expressões é citada, mas o narrador revela muito naquilo que não conta, particularmente sobre o ‘Tio Jan’, judeu tcheco sobrevivente de campo de concentração. Como no caso em que, toda vez que a velha torradeira da casa em Campos do Jordão emperrava e acabava queimando as torradas, era o pai do garoto que se responsabilizava por tudo e comia os remanescentes
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