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f 6 Sânzio de Azevedo À Espera do Pão a Padaria Espiritual e o Simbolismo l i t e r a t u r a CURSO c e a r e n s e Realização 1. SEGUINDO AS MIGALHAS D’O PÃO Rua Formosa, moça bela a passear/ Palmeira verde e uma Lua a pratear/ Um olho vivo, vivo, vivo a procurar/ Mais uma ideia pro padeiro amassar/ Mais uma ideia pro padeiro amassar. Ednardo, em “Artigo 26”. o Ceará sempre houve grê- mios, literários ou não. Para não recuar até os Oiteiros do tempo do governador Sampaio (1813), basta lem- brar, nos anos 70 do século XIX, a Academia Francesa, mais voltada para a filoso- fia e a crítica e, nos anos 80, o Clube Literário, onde se iniciou Antônio Sales (1868-1940). 82 FUNDAÇÃO DEMÓCRITO ROCHA | UNIVERSIDADE ABERTA DO NORDESTE MALACA CHETAS “Artigo 26”, composição de Ednardo, traz várias referências à Padaria Espiritual. A “Rua Formosa”, endereço das sedes da Padaria, o “olho vivo”, representando o “Olho da Providência”, a função de um padeiro que seria a de “investigador das coisas e das gentes”. A “palmeira”, desde os tempos de Gonçalves Dias, exemplo da flora nativa brasileira. A “ideia para o padeiro amassar” e na fornada se transformar n’O Pão, veículo da agremiação. Daí também “O padeiro entregando o pão” e “O pão na boca é o que te cura” (nesse caso, da ignorância “que é indigesta para o freguês”). O “Sanhaçu”, considerada uma ave (também) brasileira, ao mesmo tempo, nome de guerra de Antônio de Castro (Aurélio Sanhaçu), entre outros. Ouça a música na voz de seu autor. Acesse: https://www.youtube.com/ watch?v=fyhbVzqaNQY Já em 1891, reuniam-se vários escritores no Café Java (um dos quatro quiosques da praça do Ferreira), no centro de Fortaleza. Desse grupo o citado Antônio Sales, o único que tinha um livro, Versos diversos, publica- do no ano anterior. Todos lamentavam o fato de a capital ce- arense ter pequenos grupos, mas nunca mais surgira grêmio de peso, como os citados. Os amigos queriam fundar um grêmio, mas Antô- nio Sales era contra: “Associações pequenas, cheias de retórica, havia muitas.” E concluía: “Só se fosse uma coisa nova, original, e mes- mo um tanto escandalosa, que sacudisse o nosso meio e tivesse repercussão lá fora!” Ele, então, que tivera a ideia, que lhe des- se o nome e as diretrizes, disseram os amigos. 2. O ORIGINAL PROGRAMA DE INSTALAÇÃO oi assim que, depois de pou- cos dias, Sales voltou com um nome: Padaria Espiritual! O título foi bem recebido, e An- tônio Sales encarregou-se de redigir não os estatutos, mas um Programa de Instalação que, depois de dizer que se tratava de uma “sociedade de rapazes de Letras e Artes”, acrescentava, no segundo item: “A Padaria Espiritual se comporá de um padeiro-mor (presiden- te), de dois forneiros (secretários), de um gaveta (tesoureiro), de um guarda-livros, na acepção intrínseca da palavra (biblio- tecário), de um Investigador das Cousas e das Gentes, que se chamará – Olho da Providência, e demais amassadores (só- cios). Todos os sócios terão a denomina- ção geral de padeiros.” Advirta-se que, na época, “guarda-livros” era o nome que se dava ao contador... E por que “rapazes de Letras e Artes”? Porque, além de escritores, como Sales, Álvaro Martins (1868-1906), Sabino Ba- tista (1868-1899) e muitos outros, havia um pintor, Luís Sá (1845-1898), e dois mú- sicos, os irmãos Henrique Jorge (1872- 1928) e Carlos Vítor. Adiante anuncia-se um livro especial com todos os dados so- bre os padeiros, o que infelizmente não passou de projeto... Todos os sócios teriam “um nome de guerra único”. Assim é que Antônio Sales era “Moacir Jurema”, nome bem cearense, já que Moacir era o filho de Iracema, a qual era guardiã do segredo da Jurema. CURSO literatura cearense 83 BOLACHINHAS Voltando ao Programa de Instalação, anuncia ele dissertações biográficas sobre “sábios, poetas, artistas e literatos”, sendo “designados com a precisa antecedência o dissertador e a vítima”... Outro artigo reza: “Haverá um livro em que se registrará o resultado das fornadas com o maior laconismo possível.” Esse re- ferido livro de atas, o autor deste módulo considerou desaparecido. Chegou a es- crever isso e a comentar em programa da TV. Um dia, porém, José Augusto Bezerra, então presidente do Instituto do Ceará, re- cebeu de uma funcionária um livro manus- crito que, com sua experiência, concluiu tratar-se de uma raridade: era o livro de atas da Padaria Espiritual, que terminou sendo publicado. Falemos sobre ele: A linguagem das atas é cheia de chistes. Na primeira fornada, por exemplo, depois de informar que “todos saíram então à rua acompanhados de violinos, flauta e violão”, diz Ulisses Bezerra: “Eu, Frivolino Catavento, 1º Forneiro interino, que o digo, é porque o vi.” Em outra ata, escrita por Antônio Sales, está dito: “A falar francamente, não me lem- bra do que se passou nesta fornada.” A ata em que se fala dos 24 anos de “Moacir Jurema” revela que “Lúcio Jaguar” (nome de guerra de Tibúrcio de Freitas) foi designado para falar sobre o aniversariante, mas “sentindo alguma dificuldade de arti- culação começou a molhar a palavra de vez em quando, do que resultou ficar dentro em pouco fradescamente adormecido à borda da mesa, deixando a biografia em meio”. Com base em Leonardo Mota, em sua A Padaria Espiritual (1938), o autor destas linhas afirmou várias vezes que Antônio Sales fora padeiro-mor interino apenas na inauguração do grêmio e na sua or- ganização, em 28 de setembro de 1894. A leitura das atas, porém, demonstra o que ninguém havia dito, que “Moacir Jurema” exerceu as funções de padeiro-mor interino em várias fornadas durante o Álvaro Martins era irmão de Antônio Martins, um dos poetas da abolição, como vimos no módulo 3. O paraibano Sabino Batista era marido de Ana Nogueira Batista, poetisa que conhecemos no módulo anterior. O desenhista e pintor Luís Sá, membro fundador da Padaria Espiritual, seria avô do famoso caricaturista, desenhista e quadrinista Luiz Sá (1907-1979), criador dos personagens “Reco-Reco, Bolão e Azeitona”, estrelas da Tico-Tico, primeira revista dedicada ao público infantil e de quadrinhos do país. O maestro Henrique Jorge, “embaixador da música” na Padaria, seria pai do cronista João Jacques e de Paulo Sarasate (1908-1968), advogado, redator do jornal O POVO e um dos fundadores da revista Maracajá, da qual falaremos no módulo 7. Só da primeira fase (o grêmio teve duas fa- ses), citam-se Ulisses Bezerra (Frivolino Ca- tavento), Álvaro Martins (Policarpo Estouro), Henrique Jorge (Sarasate Mirim), Carlos Ví- tor (Alcino Bandolim), Sabino Batista (Sáti- ro Alegrete), Luís Sá (Corrégio del Sarto), Lí- vio Barreto (Lucas Bizarro), entre outros. Estranho é que Raimundo Teófilo de Moura é “José Marbri”, quando José Maria Brígido, cujo nome se aproxima desse, é “Mogar Jandira”. Na segunda fase do grêmio, citem-se Antônio Bezerra (André Carnaúba), José Nava (Gil Navarra), Artur Teófilo (Lopo de Mendoza) e, entre alguns mais, Cabral de Alencar (Abdul Assur). Fundada em 30 de maio de 1892, a Pada- ria teve 3 sedes na rua Formosa (atual Barão do Rio Branco), nos números 105, 106 e 11. 84 FUNDAÇÃO DEMÓCRITO ROCHA | UNIVERSIDADE ABERTA DO NORDESTE BOLACHINHAS O artigo 7º do Programa de Instalação dizia que “O distintivo da ‘Padaria Espiritual’ será uma haste de trigo cruzada de uma pena, distintivo que será gravado na respectiva bandeira, que terá as cores nacionais.” Talvez agora o cursista entenda o porquê da inserção desse símbolo, não na bandeira da Padaria – que inclusive nem usou as cores nacionais, e sim o vermelho –, mas na bateria no centro da ilustração da nossa capa colecionadora, envolta pela divisa da agremiação: “Amor e Trabalho”. A inspiração é óbvia: a famosa capa dos Beatles. E o que os Beatles têm a ver com a Padaria? Absolutamente NADA! mandato de Jovino Guedes (Venceslau Tupiniquim) e até em algumas já do tem- po do segundopadeiro-mor, José Carlos Júnior (Bruno Jaci). Interessante é que em Leonardo Mota, no citado livro, é transcrito um trecho em que se diz: “A um gesto expressivo de Moacir Jurema, cada qual foi inchando nas apragatas e lendo as produções seguintes.” Ao ler a ata de 23 de novembro de 1894, porém, o que se vai encon- trar é isto: “A um gesto expressivo de Moacir cada qual foi inchando nas alpercatas e lendo sucessivamente as produções seguintes.” Considerando que Mota jamais iria alterar um texto de outrem, e sabendo-se que An- tônio Sales ainda era vivo quando o livro foi escrito, chega-se à conclusão de que o poeta dos Versos diversos fez as modificações... Voltando ao Programa de Instalação, há nele este item: “É proibido o uso de palavras estranhas à língua vernácula, sendo porém permitido o emprego dos neologismos do Dr. Castro Lopes.” É que Antônio de Castro Lopes (1827- 1901), médico no Rio de Janeiro, versado em grego e em latim, tinha horror a galicismos, anglicismos e barbarismos. Por isso, no seu livro Neologismos indispensáveis e barba- rismos dispensáveis (1889), propôs várias inovações, como nasóculos, em vez de pin- ce-nez; concião no lugar de meeting; con- vescote, no lugar de pic-nic etc. Parece que de suas propostas a mais feliz foi cardápio, para substituir menu. Outra passagem do Programa diz: “Os padeiros são obrigados a comparecer na fornada – de flor na lapela, qualquer que seja a flor, com exceção da de chichá.” Nem todos sabem o que vem a ser a flor de chichá. O autor deste comentário per- guntou a sua mãe o que seria isso, e ela, nas- cida em 1902, respondeu-lhe que se tratava de uma flor de odor insuportável. A informa- ção se completou com o nome científico da planta onde nasce a flor: Sterculia chicha St. Hil., o que lembra fatalmente esterco. CURSO literatura cearense 85 BOLACHINHAS Sânzio nos conta que Joaquim Vitoriano (Paulo Kandalaskaia) “não sendo escritor, nem músico, nem pintor, entrou para o grêmio, segundo Leonardo Mota, ‘não em virtude do cérebro e, sim, do braço e da coragem de que era dono’ Fazia, assim, o papel de guarda-costas dos ‘padeiros’. [...] Morreu assassinado em plena praça do Ferreira.” Há itens encarecendo o uso do humo- rismo e a pilhéria de espírito, bem como a condenação do plágio. Mas é interessante este: “É proibido fazer qualquer referência à rosa de Malherbe e escrever nas folhas mais ou menos perfumadas dos álbuns.” Fica claro que a Padaria Espiritual era contra os lugares-comuns, os clichês ou chapas, como se dizia. A alusão ao famoso poema de François Malherbe (1555-1628), já no tempo da fundação do grêmio cearense, era recurso bastante surrado para se falar de coisas efêmeras... Reforçando o aspecto bem-humorado e irreverente de seu Programa, encontramos “Aquele que durante uma semana não dis- ser uma pilhéria de espírito, pelo menos, fica obrigado a pagar no sábado café para todos os colegas. Quem disser uma pilhéria superiormente fina, pode ser dispensado da multa da semana seguinte.” Outro item permitia conservar o cha- péu na cabeça durante as fornadas, “ex- ceto quando se falar em Homero, Shakes- peare, Dante, Hugo, Goethe, Camões e José de Alencar”, pois neste caso, todos teriam que se descobrir. Vemos que, apesar de inovadores, os padeiros não faziam tábua rasa dos valores consagrados, o que mostra seriedade ao lado do espírito de pilhéria. Vem agora um dos itens mais importan- tes do Programa: “Será julgada indigna de publicidade qualquer peça literária em que se falar de animais ou plantas estranhas à Fauna e à Flora Brasileira, como – cotovia. olmeiro, rouxinol, carvalho etc.” Em 1970, no opúsculo A Padaria Espi- ritual, o autor deste módulo assinalou a importância desse artigo do Programa de Instalação do grêmio, lembrando que esse espírito nacionalista seria uma das preo- cupações de Monteiro Lobato e, trinta anos depois da fundação da Padaria Espiritual, uma das bandeiras da Semana de Arte Moderna de São Paulo. Tanto bastou para que mais de uma pessoa qualificasse de “modernistas” os componentes da Padaria Espiritual. Na verdade, eles, com sua irreve- rência e seu espírito crítico, prenunciaram os novos tempos, mas o que o grêmio trou- xe de realmente novo foi o Simbolismo, como oportunamente veremos. Continuando com o Programa, há um trecho que diz: “Será dada a alcunha – de medonho – a todo sujeito que atentar pu- blicamente contra o bom senso e o bom gosto artísticos.” Ao chamar de “medonhos” os que aten- tassem contra “o bom senso e o bom gos- to”, estavam os padeiros aludindo àqueles pseudoescritores (numerosos ontem como hoje), ou seja, aos não preparados ou não vocacionados para as letras, mas que assim mesmo se arvoravam em inte- lectuais. Os que eles chamavam de “ignaros”, pelo menos, não enten- diam de arte literária, mas não ti- nham a pretensão de ser escritores. 86 FUNDAÇÃO DEMÓCRITO ROCHA | UNIVERSIDADE ABERTA DO NORDESTE Curiosa a maneira como pensavam em fazer uma biblioteca: “Trabalhar-se-á por organizar uma biblioteca, empregando para isso todos os meios lícitos e ilícitos.” Um item que teve alguma repercussão foi este: “São considerados desde já inimi- gos naturais dos padeiros – os padres, os alfaiates e a polícia. Nenhum Padeiro deve perder ocasião de patentear o seu desagra- do a essa gente.” A inimizade aos padres certamente se originou no anticlericalismo que, com a onda cientificista da segunda metade do século XIX, se refletia nas letras. Quanto aos alfaiates, disse Pedro Nava, em Baú de ossos (1972): “É evidente que a palavra alfaiate aí está em sentido simbólico, como exemplo de extorsão, que é preciso combater.” A nota humorística reaparece no item que diz: “Encarregar-se-á um dos padeiros de es- crever uma monografia a respeito do incansá- vel educador professor Sobreira e suas obras.” É que João Gonçalves Dias Sobreira, nascido no Crato em 1847, publicou um Tra- tado de pronúncia francesa (1873), uma Geo- grafia especial do Ceará (1887), uma Sim- plificação da gramática portuguesa, com várias edições, e ainda cultivou a música, a literatura e outros ramos do conhecimento, sendo ainda autor, em 1892, de uns Apon- tamentos para a carta topográfica do Cea- rá. Claro que se trata de uma brincadeira, uma vez que os padeiros implicavam com o enciclopedismo do educador. Em 1894, no Retrospecto dos feitos do grêmio, “Moa- cir Jurema” irá revelar que esse artigo “não foi possível levar a cabo porque não houve meio de adquirir dados precisos sobre a ca- maleônica pessoa do professor Sobreira”. Há um artigo dizendo que a Padaria vai organizar brevemente “um Cancioneiro popular genuinamente cearense”. Não foi organizado o cancioneiro, mas o jornal dos padeiros (do qual tratamos a seguir) publi- cou trinta e cinco trovas nos números 33, 34 e 36, coletadas por um Padeiro da segunda fase, José Carvalho (Cariri Braúna), sendo “inédita a quase totalidade da contribuição da Padaria Espiritual aos estudos folclóricos do Brasil”, como afirmou Leonardo Mota, com a autoridade de estudioso de nossos versos populares, no seu citado livro. O certo é que os padeiros cultivavam a boêmia de espírito, mas se vestiam apura- damente, o que se comprova com os poucos retratos que ficaram do grupo. Sendo assim, conclui-se que eles gastavam muito com os alfaiates. Polícia é que, segundo ainda Pedro Nava, “é polícia mesmo, símbolo odio- so do poder”. Em Leonardo Mota – atenção, pesquisadores –, em vez de “os padres” está, estranha e incorretamente, “o Clero”. E, corroborando o cuidado com que os escritores do grêmio se vestiam, o artigo se- guinte diz: “Será registrado o fato de apare- cer algum padeiro com colarinho de nitidez e alvura contestáveis.” Depois de um item em que se pune “com expulsão imediata e sem apelo o pa- deiro que recitar ao piano”, costume que vinha do Romantismo, senão do Arcadis- mo, fala-se de “um calendário com os nomes de todos os grandeshomens mortos”, e alude-se ao “nome do santo do dia”. Isso acontecia somen- te nos primeiros tempos. Houve os dias de Camilo Castelo Branco, Émile Littré, Sócrates, Castro Alves, Joana d’Arc (ainda não canonizada pela Igreja), Canova, Weber, Fídias e Zêuxis. CURSO literatura cearense 87 3. À ESPERA D’O PÃO... QUE CHEGOU! Entre um vendedor d’O Pão e um cego: – Meu bem, me dê um pão, pelo amor de Deus. – Qual, você não enxerga, e este PÃO come-se é pelos olhos... Moacir Jurema, em O Pão nº 2 nunciado em um dos ar- tigos do Programa, O Pão surgiu em 10 de julho de 1892. Sobre o jornal, disse “Moacir Jurema” no men- cionado Retrospecto: “De- vemos confessar aqui: essa folha era menos o veículo literário da Padaria do que uma válvula para a pilhéria petulante que se fazia lá dentro.” Saíram seis números em 1892, mas, por engano, o nº 3 trazia a repetição do nº 2, o que acarretaria engano na numeração até o número 6, que foi numerado como 5, em 24 de dezembro. 88 FUNDAÇÃO DEMÓCRITO ROCHA | UNIVERSIDADE ABERTA DO NORDESTE MALACA CHETAS Adolfo Caminha (1867-1897), o “Félix Guanabarino”, autor de romances célebres, embora tenha sido membro da Padaria Espiritual, teve pouquíssima participação nela. Chegou a ser expulso em 1896 após críticas ao seu “oficialismo, sem os ideais de outros tempos”, entre outras, publicadas em suas Cartas literárias (1895). É, no entanto, considerado um dos principais autores naturalistas da Literatura Cearense e, portanto, da Brasileira. em 3 de janeiro de 1803, e falecido em For- taleza, no dia 17 de janeiro de 1872, Verdei- xa redigiu na capital da província os jornais Juiz do Povo, Sete de Setembro, O Coelho e A Liberdade, tendo sido deputado provincial, sempre metido em lutas políticas. Outro item que não foi cumprido dizia: “Publicar-se-á no começo de cada ano um almanaque ilustrado do Ceará, contendo indicações úteis e inúteis, primores literá- rios e anúncios de bacalhau.” O poeta Lívio Barreto chegou a falar, em carta a Antônio Sales, de um poema que desejava enviar para esse almanaque. Há o desejo de que o grêmio tenha “cor- respondentes em todas as capitais dos pa- íses civilizados”, mas pelo menos no Brasil teve a Padaria correspondentes ilustres, como Araripe Júnior, Olavo Bilac e Coelho Netto, no Rio de Janeiro; Garcia Redondo em São Paulo; Augusto de Lima e Raimun- do Correia em Minas Gerais, e ainda Clóvis Beviláqua em Pernambuco. Curioso é este item: “As mulheres, como entes frágeis que são, merecerão todo o nosso apoio, excetuadas: as fumistas, as freiras e as professoras ignorantes.” Se até os anos vinte do século passado as mulheres que fumavam eram as femmes fa- tales do cinema, imagine-se o que seria isso na Fortaleza do fim do século XIX. A alusão às freiras segue a antipatia que os padeiros tinham aos padres. Quanto às professoras ig- norantes, nem é preciso comentário algum... Suspensas as edições do seu jornal, passaram os padeiros a escrever n’A Repú- blica, periódico que nascera da fusão de dois outros (Libertador e Estado do Ceará). E O Pão reapareceria somente em 1º de ja- neiro de 1895, com o nº 7, já na segunda fase do grêmio, da qual ainda falaremos. Com a publicação do nº 30, em 15 de de- zembro desse ano de 1895, faz-se um hia- to de oito meses, e o nº 31 vai aparecer em 15 de agosto de 1896. Saem mais cinco números, e o periódico encerra suas ativi- dades com o nº 36, em 31 de outubro. Mas ainda não terminou nosso passeio pelo Programa de Instalação. Um item que não foi cumprido dizia: “A Padaria trata- rá de angariar documentos para um livro contendo as aventuras do célebre e extra- ordinário Padre Verdeixa.” O Padre Verdeixa, o qual dizia chamar- -se Alexandre Francisco Cerbelon Verdeixa, deu desde muito jovem “provas de completo desequilíbrio mental, que a idade não modi- ficou para melhor”, segundo observação do Barão de Studart, no seu Dicionário biobiblio- gráfico cearense (1910). Nascido no Crato, CURSO literatura cearense 89 4. OS NEFELIBATAS CABEÇAS-CHATAS primeira fase do grêmio, que data de 1892, deu ori- gem a apenas um livro, Phantos (1893), de Lopes Filho. Houve quem estra- nhasse esse título, mas tal- vez haja algum parentesco com “fantasia”... Os outros livros da entidade são da sua segunda fase. O certo é que, não havendo uma só ata relativa ao ano de 1893, o que não é referido por Leonardo Mota, encontra-se no livro de atas uma página assinada por “Moacir Jurema” e intitulada “À Posterida- de”. Nela, entre outras coisas, diz o escritor: “Ao cair-vos nas mãos o presente livro de atas da Padaria Espiritual, afirmaríeis sem pestanejar que esta benemérita e ori- ginal associação de rapazes de letras havia existido até o dia 5 de julho de 1892, data da última ata inserida neste livro. “Estais enganada, Posteridade amiga! A despeito da ausência de atas posteriores a essa, a Padaria continuou a trabalhar, mui- to embora não tivesse prédio próprio para as suas reuniões e estas não assumissem o caráter de fornadas propriamente ditas. Certo é, porém, que os padeiros conti- nuaram ligados pelos laços de camarada- gem espiritual e – cada qual na sua casa – amassando com o suor do rosto como do corpo inteiro o pão do espírito – comido pelos olhos e digerido pelo cérebro.” Esse texto, datado de 27 de setembro de 1894, fala dos Phantos e de livros que vieram depois. No dia seguinte, 28 de setembro de 1894, Antônio Sales reuniu os padeiros restantes e com mais treze membros fez a reorganiza- ção do grêmio. Entre outros, entraram José Carlos Júnior (Bruno Jaci), Rodolfo Teófi- lo (Marcos Serrano), Valdemiro Cavalcanti (Ivan d’Azof), José Carvalho (Cariri Braú- na), X. de Castro (Bento Pesqueiro), José Nava (Gil Navarra), Artur Teófilo (Lopo de Mendoza) e Eduardo Saboia (Brás Tubiba). 90 FUNDAÇÃO DEMÓCRITO ROCHA | UNIVERSIDADE ABERTA DO NORDESTE Houve quem achasse que o Centro Li- terário (fundado com a ajuda dos ex-pa- deiros Álvaro Martins e Temístocles Macha- do) era inimigo da Padaria, mas entre seus fundadores está Jovino Guedes, que fora padeiro-mor. Também foram do Centro Literário Rodolfo Teófilo, Almeida Braga, Antônio Bezerra e até padeiros da primeira fase, como Ulisses Bezerra e Lopes Filho. Pelas atas do final de 1894, do ano de 1895 e parte de 1896, sabe-se que as for- nadas passaram a ocorrer nas casas dos padeiros, sendo que a última, de 20 de de- zembro de 1898, ocorreu na casa de Ro- dolfo Teófilo, estando Antônio Sales, há muito, no Rio de Janeiro. Exceto os Phantos (1893), de Lopes Filho, da primeira fase, todas as demais obras da Biblioteca da Padaria Espiri- tual, selo da agremiação, são da segunda fase: Versos (1894), de Antônio de Castro; Flocos (1894), de Sabino Batista; Contos do Ceará (1894), de Eduardo Saboia; Cro- mos (1895), de X. de Castro; Trovas do Nor- te (1895), de Antônio Sales; Os Brilhantes (1895), de Rodolfo Teófilo; Vagas (1896), de Sabino Batista; Dolentes (1897), de Lí- vio Barreto; Marinhas (1897), de Antônio de Castro; Maria Rita (1897), de Rodolfo Teófi- lo; Perfis sertanejos (1897), de José Carva- lho; e Violação (1898), de Rodolfo Teófilo. CURSO literatura cearense 91 Acrescente-se que O Paroara, romance de Rodolfo Teófilo, editado em 1899, mes- mo quando já extinta a agremiação, traz a indicação “Biblioteca da Padaria Espiritual”. Quanto a estilos de época, ou escolas lite- rárias, ao tempo da fundação da Padaria Espi- ritual havia ainda no Ceará reminiscências do Romantismo, presença do Realismo, tanto na ficção quanto no verso, e anseios ainda vagos de um Parnasianismo que só viriam bem depois. Por fim, o Simbolismo, que é uma retomada do subjetivismo romântico, mas com características próprias, como a sin- gular musicalidade, além de notas de misticis- mo. É interessante assinalar no Simbolismo a quebra deliberada do ritmo habitual, principalmente no verso alexandrino (de 12 sílabas), assim como o uso das maiúsculasalegorizadoras e a repetição constante de alguns vocábulos ou grupos de palavras. Antônio Sales se dizia parnasiano, mas somente depois de sua longa estada no Rio de Janeiro, onde conviveu com poetas como Alberto de Oliveira (1857-1937), é que chegou a fazer versos dentro dos câno- nes da escola de Bilac. Lopes Filho publicou Phantos, um mês an- tes de Broquéis, de Cruz e Sousa (1861-1898), que juntamente com Missal é marco do Sim- bolismo no país. O que deve ser assinalado é o fato de o poeta cearense não se ter espe- lhado no livro do maior simbolista brasileiro. Quanto ao valor dos poetas, claro que não se deve comparar, do ponto de vista literário, os poemas de Lopes Filho aos de Cruz e Sousa, um dos maiores da literatura brasileira. Quanto à importância histórica, aí, sim, o Simbolismo do Ceará, cujos modelos não estão no Paraná nem no Rio de Janei- ro, foi influenciado pela escola de Por- tugal, não tendo nascido por geração es- pontânea, mas sem dúvida não deve nada à escola que pontificava no Rio de Janeiro, com origem no Paraná. Na “Carta-prefácio” dos Phantos, Antô- nio Sales afirma que os versos de Lopes Filho são oriundos de uma psicologia mórbida, e observa: “Bem se vê que leste Verlaine, Mallarmé, Moréas, Nobre e Eugê- nio de Castro, esses alucinados vates do fim do século, apóstolos da escola estra- nha do Decadismo...” Decadismo, explique-se, foi a primeira designação do Simbolismo, juntamente com Decadentismo e que, com o tempo, ficaria circunscrita aos aspectos mais profa- nos do Simbolismo. É sintomática, nessa “Carta-prefácio”, a ausência de qualquer alusão a um nome sequer de poeta brasileiro, o que demonstra que em 1893, no Ceará, não haviam reper- cutido ainda os ecos do movimento que havia eclodido na então capital federal. Os simbolistas, com seu tédio e sua apatia, sentiam-se deslocados no seu mundo, e mer- gulhavam dentro de si mesmos, numa atitu- de voluntária de insulamento. Em suma: habitavam o que se convencionou chamar de “torre de marfim”. No livro Decadentismo e Simbolismo na poesia portuguesa (1975), José Carlos Seabra Pereira estudou bem essas ca- racterísticas em poetas de sua terra. Insulamento Ato ou efeito de insular (-se), isolar-se; solidão. 92 FUNDAÇÃO DEMÓCRITO ROCHA | UNIVERSIDADE ABERTA DO NORDESTE BOLACHINHAS Antônio Nobre definia a sua obra Só como “o livro mais triste que há em Portugal”. Típico da corrente é, nos Phantos, o so- neto intitulado “A Álvaro Martins”, em ale- xandrinos (versos de doze sílabas): Ó Nirvana! Repouso absoluto e completo! Sonha, Espírito meu, eleva-te às alturas, Onde as águias do Céu, no seu mundo dileto, Olham, cheias de horror, as pobres criaturas! Ó Ideal do Amor imaterial e casto, Harmonias dos Sons, combinação da Cor: Encantado País, Mundo mais que este vasto, Ó região que eu sonho! Ó região do Amor! Poetas! Meus irmãos! Febris adoradores Do Luar e do Sol que morre quando desce A noite sob o pálio auricolor dos Astros! De joelhos, irmãos! Rezemos nossa prece! Amigos, a rezar! Nós que vamos de rastros Por este mundo vil de mágoas e negrores... Datado de 1892, esse soneto é um aca- bado exemplo de poesia decadentis- ta ou simbolista, com seu sonho de um Nirvana, que tanto influiu no Simbolismo através da filosofia de Schopenhauer: essa busca de um paraíso, que seria o Nada, opõe-se à vida em um mundo que, para o poeta, é cheio de mágoas e negrores. Notem-se as maiúsculas alegorizado- ras dos substantivos: Espírito, Águias do Céu, Ideal do Amor, Sons, Cor, País, Mun- do, Luar, Sol e Astros, bem como a nota de misticismo, na exortação às preces, não faltando a rima Astros/rastros, quase epi- dêmica na vigência do Simbolismo. Exemplo da influência do poeta portu- guês Antônio Nobre (1867-1900) em Lopes Filho: “Os Vencidos da vida”, de 1893, em versos de dez sílabas (decassílabos): De nosso lábio triste e descorado Murchou a flor vermelha da Alegria; E o nosso rir é um rir contrariado, Sempre amarelo e cheio de Ironia... Vinte anos! Já velhice! Quem diria Que chegasse (tão cedo) tal estado, Em que é o coração supliciado Um claustro cheio de Melancolia!... Schopenhauer! Lusbel, tu semeaste A dúvida cruel em nossos peitos, E a Fé e o Amor de nós arrebatastes! Vamos, pois, meus amigos, no abandono! Resta-nos hoje o derradeiro Sono!... - Coveiros! Onde estão os nossos Leitos? No soneto 13 do Só, única obra de Antô- nio Nobre, há estes versos: “Ó meus amigos! Todos nós falhamos... / Nada nos resta. So- mos uns perdidos.” Para adiante, acrescen- ta: “Jesus! Jesus! Resignação... Formamos / No Mundo, o claustro-pleno dos Vencidos!” O final do soneto de Lopes Filho lembra ainda outro soneto de Nobre, o de nº 18, que diz: “Ai quem me dera entrar nesse convento / Que há além da Morte e que se chama A Paz!” Ao que se saiba, os poemas de Lopes Fi- lho figuram apenas em Literatura Cearense (1976), do autor deste trabalho, além, natu- ralmente, no perfil biográfico do autor escrito por Túlio Monteiro para as Edições Demócri- to Rocha, em sua coleção Terra Bárbara. Menos desconhecido, Lívio Barreto (1870-1895) tem poemas em O Simbolismo (1959), de Fernando Góes, e até no Pano- rama do movimento simbolista brasileiro (1952), de Andrade Muricy, sendo sua po- esia superior à de Lopes Filho, cuja impor- tância é mais histórica. No poema de abertura do seu livro Dolentes (1897), de publicação póstuma, “Credencial” reflete o Simbolismo do po- eta, não somente pela sua concepção de arte, mas também por meio das maiúscu- las alegorizadoras, dos vocábulos litúrgi- cos (termos ligados à religião), e da repe- tição em cada estrofe do vocábulo “Arte”. Dirigindo-se à “Arte! suprema, incompará- vel Arte!”, que é “prenhe de luares”, diz o poeta na terceira estrofe: Arte do Verso, Arte das harmonias Vibrantes, doudas, cálidas, inquietas, Elétrica centelha dos Poetas, Que esfolhas rosas sobre as agonias. Essa Arte, que é “nevada de dolências meigas”, e a que o poeta chama de “Pulcra santa de beijos dolorosos”, atinge o máximo da sacralização nas estrofes finais: Arte, monja de idílica piedade, Que tens, eterna, angélica visão, No olhar o Angelus nobre do perdão E a paz augusta da maternidade; Arte! Ideal, ó sacrossanto viático! Ó Arte! Mater de consolações! Com os meus sonhos e amores e ilusões Fiz-te um missal de Dor! – sou teu fanático! CURSO literatura cearense 93 SABATINA Houve em nossos dias quem pensas- se que esse “missal de Dor” teria origem no título de um dos livros de Cruz e Sousa (Missal, de prosa poética). É bom lembrar, porém, que Lívio Barreto não precisaria ler o poeta brasileiro, já que o soneto 1 do Só, de Antônio Nobre, diz, em seu segundo quarteto: “E depois, com a mão firme e se- rena, / Compus este Missal dum torturado.” Um dos mais belos e originais poemas dos Dolentes intitula-se “Os Cravos bran- cos”, e figura no livro de Andrade Muricy. Sua musicalidade é estranha e o poema possui algumas irregularidades que não fo- ram entendidas na época. Datado de março de 1893, tem o poema sete estrofes, mas a leitura das duas primeiras, da quinta e da última dá uma ideia desses versos, um dos pontos altos do Simbolismo cearense: Cravos brancos, cravos brancos como o leite, Que as noivas levam para a Igreja ao ir casar, Cravos da cor das escumilhas do corpete, Brancos de espumas atiradas pelo mar. Cravos brancos invejados pelos goivos, Cravos brancos que de brancos dão vertigens; Cravos que são como hálitos de noivos, Beijos de noivos embaciando mãos de virgens! . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Flores dormentes de volúpia e de desejos, Sempre a sonhar presas aos seios das donzelas, Amarrotadas pelo fogo de seus beijos E sempre brancas, sempre puras, sempre belas! . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Cravos brancos como as mãos da minha amada, Quando eu descer à terra fria, n’um caixão, Desabrochai, brancos soluços d’alvorada,Ó cravos brancos que plantei no coração. As seções “Sabatina”, “Malacachetas”, “Confeitos” e “Bolachinhas” são homônimas daquelas que deliciavam os leitores d’O Pão. Nossa homenagem aos memoráveis padeiros e as suas fornadas: Amor e Trabalho! 94 FUNDAÇÃO DEMÓCRITO ROCHA | UNIVERSIDADE ABERTA DO NORDESTE REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS AZEVEDO, Sânzio de. A Padaria Espiritual (1892- 1898). Fortaleza; UFC, Casa de José de Alencar, 1970. ______ . Breve história da Padaria Espiritual. Fortaleza: Edições UFC, 2011. BARRETO, Lívio. Dolentes. 3.ed. Fortaleza: Secretaria de Cultura do Estado do Ceará, 2010. CAMINHA, Adolfo. Cartas literárias. 2. ed. Fortaleza: UFC Edições, 1999. JUREMA. Moacir. Retrospecto dos feitos da Padaria Espiritual. In: AZEVEDO, Sânzio de. Breve história da Padaria Espiritual. Fortaleza: Edições UFC, 2011. LOPES FILHO. Phantos. Fortaleza: Tip. Moderna, 1893. MOTA, Leonardo. A Padaria Espiritual. 2. ed. UFC, Casa de José de Alencar, 1994. MURICY, Andrade. Panorama do movimento simbolista brasileiro. 2. ed. Brasília: INL, 1973. NAVA, Pedro. Baú de ossos. 2. ed. Rio de Janeiro: J. Olympio, 1972. NOBRE, Antônio. Só. 12. ed. Porto: Tavares Martins, 1962. PEREIRA, José Carlos Seabra. Decadentismo e Simbolismo na poesia portuguesa. Coimbra: Coimbra Editora, 1975. PROGRAMA de instalação da Padaria Espiritual. Fortaleza: Tip. D’O Operário, 1892. SALES, Antônio. Versos diversos. Fortaleza: José Lino, 1890. ______ . Poesias. Rio de Janeiro: Garnier, 1902. STUDART, Guilherme. Dicionário biobibliográfico cearense. Fortaleza: Tipolitografia a Vapor, v. 1, 1910. Não é possível deixar de ressaltar uma afinidade entre Barreto e Nobre: “Ao Can- to do lume”, do Só, lembra, principalmen- te pelo ritmo, a estrofe final de “Os Cravos brancos”. Nos versos do poeta português, lê-se: “Faz tanto frio. (Só de a ver, me gela, a cama...) / Que frio! Olá, Joseph! Deita mais carvão! / E quando todo se extinguir na áurea chama, / Eu deitarei (para que serve! Já não ama) / Às cinzas frias o meu pobre coração!” O poeta chega a empregar mais irregu- laridades do que o próprio Antônio Nobre, havendo versos de 11 e até de 10 sílabas nesse poema, quando a maioria é compos- ta de alexandrinos (12). Alguns não obede- cem à cesura (ou corte) medial, como estes: “Cravos da cor das escumilhas do corpete / Brancos de espumas atiradas pelo mar.” Isso, sem falar nas rimas imperfeitas (leite/ corpete e vertigens/virgens), muito comuns nos poetas românticos brasileiros. O poeta Liberato Nogueira, apesar de elogiar o poeta, afirmou na revista A Janga- da, de novembro de 1909, que Lívio Barreto apresentava “alguns defeitos de metrifica- ção, irregularidade da cesura e deslocação do hemistíquio”. Hemistíquio, lembre-se, é o corte medial do verso alexandrino. Isso indica que o crítico, apegado aos tratados de versificação, não compreendeu as li- berdades do poeta. Prova de que Lívio Barreto dominava totalmente os segredos da metrificação é o belo soneto “Lágrimas”, talvez o mais conhecido de seus poemas. Note-se o re- quinte formal de o poeta fazer repetições de palavras no início de cada estrofe. Também está no livro de Andrade Muricy: Lágrimas tristes, lágrimas doridas, Podeis rolar desconsoladamente! Vindes da ruína dolorosa e ardente Das minhas torres de luar vestidas! Órfãs trementes, órfãs desvalidas, Não tenho um seio carinhoso e quente, Frouxel de ninho, cálix rescendente Onde abrigar-vos, pérolas sentidas. Vindes da noite, vindes da amargura, Desabrochastes sobre a dura frágoa Do coração ao sol da desventura! Vindes de um seio, vindes de uma mágoa E não achastes uma urna pura Para abrigar-vos, frias gotas d’água! Houve dois padeiros que praticaram Simbolismo em prosa: Tibúrcio de Freitas, quando se transferiu para o Rio de Janeiro, e Cabral de Alencar, na segunda fase do grêmio. Ambos, portanto, já depois da esco- la do Rio de Janeiro. Penso que essa amostra da poesia de Lopes Filho e de Lívio Barreto já deu para apresentar o que foi o Simbolismo na Pada- ria Espiritual. CONCLUSÃO A Padaria Espiritual foi a mais importante e original agremiação do Ceará no sécu- lo XIX, e foi nela que surgiu o Simbolismo no nosso estado, não oriundo do grupo do Rio de Janeiro, mas bebido diretamente de Portugal, principalmente por intermédio do livro Só, de Antônio Nobre. Esse Simbolismo cearense seria contem- porâneo, mas não seguidor da escola do Rio de Janeiro. Interessante é que chegou a ser, no Ceará, anterior ao Parnasianismo, ao contrário do que ocorreu em plano nacional. FAÇA ACONTECER O Programa de Instalação está disponível, na íntegra, entre outras surpresas, na Biblioteca Virtual do AVA. Não deixe de, após a leitura do módulo, pegar o seu escafandro e mergulhar em águas passadas, estas que movem moinhos... de pãos. CURSO literatura cearense 95 FUNDAÇÃO DEMÓCRITO ROCHA (FDR) João Dummar Neto Presidente André Avelino de Azevedo Diretor Administrativo-Financeiro Marcos Tardin Gerente Geral Raymundo Netto Gerente Editorial e de Projetos Aurelino Freitas, Emanuela Fernandes e Fabrícia Góis Analistas de Projetos UNIVERSIDADE ABERTA DO NORDESTE (UANE) Viviane Pereira Gerente Pedagógica Marisa Ferreira Coordenadora de Cursos Joel Bruno Designer Educacional CURSO LITERATURA CEARENSE Raymundo Netto Coordenador Geral, Editorial e Estabelecimento de Texto Lílian Martins Coordenadora de Conteúdo Emanuela Fernandes Assistente Editorial Amaurício Cortez Editor de Design e Projeto Gráfico Miqueias Mesquita Diagramador Carlus Campos Ilustrador Luísa Duavy Produtora ISBN: 978-65-86094-22-0 (Coleção) ISBN: 978-65-86094-17-6 (Fascículo 6) Este curso é parte integrante do programa Circuito de Artes e Juventudes 2019, Pronac nº 190198, processo nº 01400.000464/2019-94, em parceria com a Secretaria Especial da Cultura do Ministério da Cidadania. Todos os direitos desta edição reservados à: Fundação Demócrito Rocha Av. Aguanambi, 282/A - Joaquim Távora CEP: 60.055-402 - Fortaleza-Ceará Tel.: (85) 3255.6037 - 3255.6148 fdr.org.br fundacao@fdr.org.br Realização Apoio Patrocínio AUTOR Sânzio de Azevedo É licenciado em Letras pela Faculdade de Filosofia do Ceará e doutor em Letras pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), sob a orientação de Afrânio Coutinho. Atuou como revisor do jornal Estado de S. Paulo, professor da Faculdade de Filosofia e, por 30 anos, exerceu o magistério como professor do Departamento de Literatura da UFC, lecionando Literatura Cearense e Teoria do Verso. É colaborador especial da Enciclopédia de Literatura Brasileira (2001), dirigida por Afrânio Coutinho e J. Galante de Sousa. É autor de mais de vinte obras, sendo a maioria de ensaios, como o referencial Literatura Cearense, A Padaria Espiritual e o Simbolismo, Aspectos da Literatura Cearense, Dez Ensaios da Literatura Cearense, Novos Ensaios da Literatura Cearense e Breve História da Padaria Espiritual. É membro da Cadeira nº 1 da Academia Cearense de Letras, cujo patrono é Adolfo Caminha, do qual é biógrafo. ILUSTRADOR Carlus Campos Artista gráfico, pintor e gravador, começou a carreira em 1987 como ilustrador no jornal O POVO. Na construção do seu trabalho, aborda várias técnicas como: xilogravura, pintura, infogravura, aquarelas e desenho. Ilustrou revistas nacionais importantes como a Caros Amigos e a Bravo. Dentro da produção gráfica ganhou prêmios em salões de Recife, São Paulo, Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul.
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