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Universidade Federal Fluminense Instituto de Ciências Humanas e Filosofia Departamento de História Monografia A LITERATURA NEGRA DE CONCEIÇÃO EVARISTO: CONSTRUINDO A IDENTIDADE DIASPÓRICA A PARTIR DOS VESTÍGIOS DA MEMÓRIA Bárbara Araújo Machado Orientador: Marcos Alvito Pereira de Souza Niterói 2010 2 Agradecimentos A Carolina Vianna Dantas, pela atenção, carinho e interesse genuíno que demonstrou neste trabalho, além das indicações bibliográficas fundamentais. A Aline Arruda, pelas dicas essenciais e pela atenção e simpatia virtuais, mas muito reais. A Iolanda de Oliveira, pelas orientações preciosas e pela disposição com que me atendeu. A Adriana Facina pelas indicações bibliográficas, pelo carinho e, principalmente, pela inspiração que seu trabalho e militância me trazem. A Raquel Portilho, pelo ótimo curso sobre Mídia e Gênero que me revelou autores e reflexões fundamentais, e por ter me apresentado ao maravilhoso mundo do feminismo na internet. A Joana Maria Pedro, Amílcar Araújo Pereira e Natalia de Santanna, por terem contribuído para a vivência de um Encontro Nacional de História Oral inspirador. A Deley de Acari, pela inspiração que sua vida e obra provocam em todos e por ter me colocado em contato, direta e indiretamente, com Conceição Evaristo. A Conceição Evaristo, primeiro por ter se colocado em meu caminho sob a forma de palavras lindas e fortes, políticas e poéticas, que transbordam a potencialidade criativa da militância. Pelo carinho com que me recebeu, pela disponibilidade em me ajudar e pelo interesse em meu trabalho. A Marcos Alvito, que tomei como orientador muito antes da monografia, pela amizade, sinceridade, respeito e confiança em meu trabalho. Aos amigos da gestão Ocupação do Centro Acadêmico de História, que me ensinaram numa prática inesquecível o que é política de verdade. 3 Aos amigos mais chegados, principalmente os do Pedro II, que me dão força e alegria para seguir em frente. Á Larissa, em especial, que mais do que aturar minhas questões existenciais e crises neuróticas, demonstrou sempre ânimo e interesse em ouvir as novidades sobre a monografia e a vida. À minha família, que supera os trancos e barrancos para me apoiar incondicionalmente desde as menores coisas até os maiores desafios. À minha mãe, a verdadeira fêmea- fênix, por tudo, por estar comigo sempre. 4 Emancipate yourselves from mental slavery None but ourselves can free our minds (Redemption Song – Bob Marley) 5 Índice Introdução.................................................................................................................... 6 I - A identidade negra em movimento.......................................................................... 8 Primeiras fases do movimento negro............................................................... 9 A década de 70 e o movimento negro contemporâneo................................... 11 Raça, racismo, sexismo e identidade.............................................................. 16 II - Literatura negra brasileira..................................................................................... 20 Um conceito em construção............................................................................ 21 A escrita das mulheres negras......................................................................... 28 III - Ponciá Vicêncio: o papel da memória da construção identitária ....................... 32 A memória da dor........................................................................................... 34 Raízes e rotas: construindo a identidade diaspórica....................................... 40 Conclusão................................................................................................................... 43 Bibliografia................................................................................................................. 45 6 Introdução O presente trabalho tem como tema a literatura negra desenvolvida pela escritora mineira Conceição Evaristo, especificamente o romance Ponciá Vicêncio, publicado em 2003 pela editora Mazza. Procuramos compreender como se dá a relação entre memória e identidade no romance, tendo em vista a centralidade das questões racial e de gênero na obra da autora, caracterizada por ela própria como “uma escre(vivência) de dupla- face” (EVARISTO, 2005). Conceição Evaristo nasceu em 1946, em uma favela na cidade de Belo Horizonte. Filha de uma lavadeira que, assim como Carolina Maria de Jesus, matinha um diário onde anotava as dificuldades de um cotidiano sofrido, Conceição cresceu rodeada por palavras. Como gosta de enfatizar em suas entrevistas, isso não significa dizer que vivesse cercada de livros, mas que bebia na fonte da memória familiar através das histórias que os mais velhos lhe contavam. Tendo sido exposta desde pequena às crueldades do racismo, Conceição Evaristo tornou-se uma escritora negra de projeção internacional, além de uma militante que atua dentro e fora dos marcos da academia: é mestre em Literatura Brasileira pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro e conclui atualmente seu doutorado em Literatura Comparada na Universidade Federal Fluminense. Publicou seu primeiro poema em 1990, no décimo terceiro volume dos Cadernos Negros, editado pelo grupo Quilombhoje, de São Paulo. Desde então, publicou diversos poemas e contos nos Cadernos, além de uma coletânea de poemas e dois romances.1 No entanto, o nome de Conceição Evaristo, assim como o de outras grandes figuras da literatura negra brasileira, não aparece nos manuais consagrados da literatura nacional e soa estranho aos ouvidos da maioria das pessoas. Esse desconhecimento, relacionado a um contexto social e editorial marcado por preconceitos velados (ARAÚJO, 2007: 77) deve ser combatido com crescente força, pois a literatura negra, considerada uma contra-narrativa de um segmento extremamente oprimido da população, guarda em si uma potencialidade de transformação social através da arte. Nesse sentido, pretendemos colaborar para o reconhecimento dessa expressão artística tão rica, como veremos adiante. 1 EVARISTO, Conceição. (2008) Poemas de recordação e outros movimentos. Belo Horizonte: Nandyala; _________. (2003) Ponciá Vicêncio. Belo Horizonte: Mazza.; ________. (2006) Becos da Memória. Belo Horizonte: Mazza. 7 No primeiro capítulo, traçamos um breve histórico do movimento negro organizado a partir da proclamação da República até os dias atuais. Nosso intuito, com isto, é observar o desenvolvimento das idéias, objetivos e debates presentes no movimento, no sentido de compreender a historicidade da obra de Conceição Evaristo, contextualizando-a. Em seguida, elaboramos uma discussão conceitual em torno das noções de raça, racismo, sexismo e identidade, que, sendo fundamentais para este trabalho, mereceram um tópico próprio para a explicitação dos seus sentidos. No segundo capítulo, tratamos da literatura negra brasileira, que, em consonância com movimento negro do país, abala a literatura canônica que reivindica uma identidade nacional una e coesa, negando a existência da questão racial em nossa sociedade. Neste capítulo, apresentamos em linhas gerais o intenso debate em torno do conceito de literatura negra brasileira, apontando suas principais características e evidenciando sua diversidade. Por fim, tratamos especificamente da escrita das mulheres negras, que apresenta algumas características que a distinguem dentro da literatura negra em geral. Aproveitamos para tratar mais profundamente da associaçãoentre racismo e sexismo, seus desdobramentos e a luta das mulheres negras pela consolidação de suas vozes dentro do campo literário e da história. Tendo em vista essas questões, esboçamos uma análise do romance Ponciá Vicêncio no terceiro capítulo, na qual procuramos compreender o papel da memória na construção de uma identidade negra diaspórica. Longe de ter os méritos de um trabalho de especialista, nossa análise consiste apenas em uma tentativa de compreensão da obra, na espera de que possamos contribuir de alguma forma para a difusão do pensamento crítico em relação as questões aqui trabalhadas. 8 I – A identidade negra em movimento Não me deu banco pra mim sentar Dona rainha me deu uma cama, não me deu banco pra me sentar 2 Este jongo foi gravado em 1948 pelo historiador norte-americano Stanley Stein, quando percorreu o Vale do Paraíba, no Rio de Janeiro, entrevistando habitantes da região, muitos dos quais eram ex-escravos ou descendentes de escravos. Seus versos falam da amargura dos negros libertos 60 anos antes por “Dona rainha”, a Princesa Isabel, que lhes deu cama – a abolição formal –, mas não lhes deu banco para sentar – a liberdade de fato, ou seja, inserção social e condições dignas de vida. Com a proclamação da República, a situação da população negra no Brasil não mudou; pelo contrário, ela foi sistematicamente marginalizada da nova cidadania republicana. Podemos dizer que “a trajetória da mobilização racial [no Brasil] é sem dúvida uma história de busca da cidadania” (BARCELOS, 1996: 192). Traçaremos aqui um histórico do movimento negro organizado a partir da proclamação da República até a atualidade, procurando perceber como ele se desenvolve, os debates que percorrem sua história e sua multiplicidade.3 As organizações do movimento negro tiveram, ao longo do tempo, “visões diferenciadas sobre o que deve ser e fazer ‘um’ movimento negro: sobre quais deve ser seus objetivos e suas formas de atuação” (GOMES, 2007: 10). Utilizaremos como referencial a periodização proposta por Petrônio Domingues (2007), que divide o movimento negro organizado em quatro fases: a primeira, da Primeira República ao Estado Novo (1889- 1937); a segunda, do fim do Estado Novo à ditadura militar (1945-1964); a terceira, do 2 LARA, Silvia Hunold; PACHECO, Gustavo. (org.) Memória do Jongo: as gravações históricas de Stanley J. Stein. Rio de Janeiro: Folha Seca; Campinas: CECULT, 2007, p. 178. 3 Para alguns autores, o movimento negro abrange “todas as entidades de qualquer natureza, e todas as ações de qualquer tempo, fundadas e promovidas por pretos e negros” (SANTOS apud DOMINGUES, 2007:102). Utilizaremos aqui a definição mais restritiva de Domingues: “movimento negro é a luta dos negros na perspectiva de resolver seus problemas na sociedade abrangente, em particular os provenientes dos preconceitos e das discriminações raciais, que os marginalizam no mercado de trabalho, no sistema educacional, político, social e cultural” (DOMINGUES, 2007:101). 9 início do processo de redemocratização ao ano 2000 (1978-2000); e a quarta, de 2000 aos dias atuais.4 Primeiras fases do movimento negro Como já dissemos, ao longo da Primeira República a população negra foi marginalizada nas diversas esferas da sociedade brasileira. Com a participação política limitada, as teorias do racismo científico e do branqueamento em pleno vigor e a escassez de trabalho devido ao favorecimento dos imigrantes europeus, a população negra encontrou no “espírito associativo” a possibilidade de resistir.5 Nesta etapa, entretanto, “o movimento negro organizado era desprovido de caráter explicitamente político, com um programa definido e projeto ideológico mais amplo” (DOMINGUES, 2007: 105). As associações negras do período tinham caráter eminentemente assistencialista, recreativo e/ou cultural e tiveram um poder de adesão significativo. Para se ter ideia, há registro de 123 associações em São Paulo entre 1907 e 1937, 72 em Porto Alegre entre 1889 e 1920 e 53 em Porto Alegre entre 1888 e 1929 (DOMINGUES, 2007:104). É também nesse período que surge a chamada imprensa negra, que tratava especificamente de questões concernentes à comunidade negra. José Correia Leite, importante militante negro e fundador d’O Clarim da Alvorada (1924), explica a importância da criação dessa imprensa: “Como é natural, a imprensa branca não ia cuidar de dar informações sobre as atividades que essa comunidade tinha. Daí surgiu a imprensa negra” (LEITE, José Correia apud MOURA, 1983:149). Criados para veicular basicamente informações sobre literatura e acontecimentos sociais na comunidade negra, os jornais negros foram tomando conotações de reivindicações raciais (MOURA: 1983:153). Domingues afirma que “a imprensa negra conseguia reunir um grupo representativo de pessoas para empreender a batalha contra o preconceito de cor” 4 Domingues entende que “o golpe militar de 1964 representou uma derrota, ainda que temporária, para a luta política dos negros”, retirando o período entre 1964 e 1978 de sua periodização (DOMINGUES, 2007:112). Embora concordemos com uma situação de refluxo vivida pelo movimento negro nesse momento, entendemos que não se deve desconsiderar a mobilização negra de então. 5 “Espírito associativo”, expressão cunhada por Artur Ramos, é definida por Domingues como “uma estratégia alternativa, tanto do ponto de vista racial quanto social, político, cultural, religioso e psicossocial, empregada pelo grupo negro para compensar: em um primeiro momento, as atrocidades do cativeiro; e em um segundo momento, o seu processo de marginalização no pós-abolição” (DOMINGUES, 2005:314). 10 (DOMINGUES, 2007: 104-105). Entretanto, por mais que nessa batalha se problematizassem as condições de vida da população negra, não era feita uma crítica mais ampla das relações raciais no Brasil (BARCELOS, 1996: 195). Diferentemente do que ocorrerá mais tarde, a imprensa negra dessa época ansiava por mobilidade e integração social, o que implicava uma linha editorial conciliatória. Para Domingues, isto é “reflexo do pensamento do setor letrado da população negra, que incorporava e reelaborava, total ou parcialmente, os modelos de educação, etiqueta, cultura e moral da classe dominante branca” (DOMINGUES, 2005: 346). Em 1931 foi fundada a Frente Negra Brasileira (FNB), considerada a entidade negra mais importante do país na primeira metade do século XX. A FNB arregimentou mais de 20 mil associados em diversos estados, convertendo o movimento negro brasileiro em um movimento de massa (DOMINGUES, 2007:106). A FNB tinha reivindicações políticas mais deliberadas do que as organizações negras anteriores, tendo se transformado em partido político em 1936. Tendo sido “influenciada pela conjuntura internacional de ascensão do nazifacismo, notabilizou-se por defender um programa político e ideológico autoritário e ultranacionalista” (DOMINGUES, 2007:107). O movimento negro deste período adquiriu feições de conservadorismo, o que não deteve sua notabilidade política; pelo contrário, o poder de barganha da FNB no cenário político institucional do país se evidencia, por exemplo, no fato de que a entidade chegou a ser recebida pelo presidente Getúlio Vargas, tendo algumas de suas reivindicações atendidas (DOMINGUES, 2007:107). Contudo, durante o período do Estado Novo (1937-1945), a forte repressão política aos movimentos contestatórios extinguiu a FNB e fez com que as organizações negras se retraíssem. Com o fim do Estado Novo, o movimento negro volta a florescer no Brasil e a dar frutos, dentre os quais adquiriram maior visibilidade a União dos Homens de Cor (UHC), fundada em 1943, e o Teatro Experimental do Negro (TEN), de Abdias do Nascimento, fundado em 1944. A UHC, cujaspreocupações giravam em torno da elevação do nível econômico e intelectual do negro na sociedade brasileira (uma perspectiva integracionista, portanto), expandiu-se por todo o país, tendo representantes em pelo menos 10 estados (DOMINGUES, 2007:108). Já o TEN, que tinha como proposta original fundar um grupo de atores negros, ampliou progressivamente seu raio de ação e promoveu atividades diversas, como a publicação do jornal Quilombo, cursos de alfabetização, corte e costura, concursos de artes plásticas e de beleza negra, a criação do Instituto Nacional do Negro e do Museu do Negro, etc. O TEN foi também 11 um dos grupos pioneiros a trazer para o movimento negro do Brasil as propostas e discussões da negritude francesa.6 Barcelos afirma que a literatura sobre movimento negro tem seguido a visão crítica de Clóvis Moura em relação ao TEN, segundo a qual essa organização teria sido marcada pelo elitismo, não apresentando nenhum tipo de melhoria direcionada à comunidade negra pobre (BARCELOS, 1996: 197). De qualquer modo, o TEN aprofundou a crítica às relações raciais no Brasil, colocando em pauta a questão dos direitos humanos dos negros e de uma legislação antidiscriminatória. Nesta fase, afirma Domingues, “apesar do crescente acúmulo de experiência, o movimento negro ficou isolado politicamente (...), não podendo contar efetivamente com o apoio das forças políticas, seja de direita, seja da esquerda marxista” (DOMINGUES, 2007: 110). A avaliação do PCB, por exemplo, era de que reivindicações específicas como as do movimento negro dividiam a luta da classe trabalhadora e atravancavam a revolução social mais ampla. Assim, ainda que tenha ampliado seu raio de ação, o movimento negro perdeu muito do seu poder de aglutinação. A década de 70 e o movimento negro contemporâneo Com o golpe militar em 1964, o movimento negro organizado desarticula-se, entrando temporariamente em refluxo. O regime militar, com seu nacionalismo elitista, defendia tenazmente a existência de uma democracia racial no país e acusava os militantes negros “de criar um problema que supostamente não existia: o racismo no Brasil” (DOMINGUES, 2007: 111). Mas no final da década de 70, com a abertura política no regime e o ascenso dos movimentos populares, o movimento negro entra em nova fase, modificando suas feições em relação aos períodos anteriores. Agora, “as organizações do movimento negro não se voltam apenas para o interior da comunidade negra, mas se mobilizam para questionar os mecanismos de discriminação que levam à reprodução das desigualdades na sociedade brasileira” (BARCELOS, 1996: 197-198). É importante lembrar que, mesmo durante o recrudescimento do regime, no início da 6 A négritude, termo cunhado pelo poeta antilhano Aimé Césaire, foi definida por ele próprio como “uma revolução na linguagem e na literatura que permitiria reverter o sentido pejorativo da palavra negro para dele extrair um sentido positivo” (CÉSAIRE apud BERND, 1988b: 17). O TEN pode ser considerado “uma manifestação da negritude na medida em que procurou resgatar os complexos de inferioridade do negro criados por toda uma literatura onde ele jamais ocupou o papel de herói, mas o de vilão, ou de subordinado” (BERND, 1988b: 47). 12 década, os negros movimentavam-se: a imprensa negra voltou a produzir jornais; foram criados em Porto Alegre o Grupo Palmares (1971) e em São Paulo o Centro de Cultura e Arte Negra (CECAN, 1972); o movimento Soul tomou conta da juventude negra carioca, em um movimento que ficou conhecido como Black Rio, e o Ilê Ayê abriu alas para os blocos afros no carnaval de Salvador.7 Domingues sinaliza, entretanto, que “tais iniciativas, além de fragmentadas, não tinham um sentido político de enfrentamento com o regime” (DOMINGUES, 2007: 112). Para o autor, é em 1978, com a fundação do Movimento Negro Unificado (MNU), que o movimento negro organizado volta de fato à cena política brasileira. Nesse momento histórico, assistia-se à luta dos negros norte-americanos por direitos civis, bem como aos movimentos de descolonização dos países africanos. Ambos tiveram grande influência no MNU, que radicalizou o discurso contra a discriminação racial no Brasil. Depoimentos de lideranças do movimento negro da década de 1970 revelam sua avidez em conhecer tudo que se produzia sobre as lutas dos negros pelo mundo, de Frantz Fanon ao poeta angolano Agostinho Neto, passando por Martin Luther King e Malcolm X, entre outros (ALBERTI; PEREIRA, 2005: 5). Internamente, formava-se a Convergência Socialista, organização marxista considerada por Domingues como o embrião do MNU. Os militantes negros desta organização entendiam que “a luta anti-racista tinha que ser combinada com a luta revolucionária anti-capitalista” (DOMINGUES, 2007: 112). Essa posição em relação a raça e classe foi fundamental no MNU, que tinha como estratégia “combinar a luta do negro com a de todos os oprimidos da sociedade” (DOMINGUES, 2007:115). Em junho de 1978, uma articulação de diversas entidades negras em São Paulo fundou o Movimento Unificado Contra a Discriminação Racial (MUCDR), cuja primeira atividade foi um ato público de repúdio à discriminação racial sofrida por quatro jovens negros no Clube de Regatas Tietê e à morte de um jovem trabalhador negro torturado e assassinado em uma delegacia paulista. No processo de estruturação da entidade, a palavra “negro” foi incorporada ao seu nome (Movimento Negro Unificado Contra a Discriminação Racial - MNUCDR) e finalmente simplificado para 7 A música do primeiro carnaval do Ilê Ayê (iorubá para “a terra é nossa casa”), em 1974, assim versava: “Branco, se você soubesse/ O valor que o preto tem/ Tu tomava banho de piche/ Ficava preto também” (ALBUQUERQUE; FRAGA FILHO, 2006). 13 Movimento Negro Unificado.8 O nascimento do MNU é considerado um marco na história do protesto negro no Brasil, principalmente por sua proposta de unificar a luta anti-racista em escala nacional (DOMINGUES, 2007: 114). A partir de sua fundação, o MNU empreendeu lutas nos campos material e simbólico da sociedade brasileira. O dia 13 de maio, celebração da abolição da escravatura no Brasil, transformou-se em Dia Nacional da Denúncia Contra o Racismo, e o dia 20 de novembro, tido por alguns como o dia da morte de Zumbi dos Palmares, tornou-se o Dia Nacional da Consciência Negra.9 Além disso, o termo “negro”, anteriormente considerado pejorativo, foi adotado oficialmente pelo movimento para designar os descendentes de africanos no país. No campo da educação, o MNU reivindicou a revisão dos conteúdos preconceituosos dos livros didáticos, a capacitação de professores para desenvolver uma pedagogia interétnica e a reavaliação do papel do negro na história do Brasil, assim como a inclusão de História da África no currículo escolar – conquista essa materializada na lei 10.639/03.10 Um aspecto importante dessa fase do movimento negro organizado foi a “adesão a uma estética da negritude” (MAUÉS apud DOMINGUES, 2007:116), na qual o discurso da negritude e do resgate das raízes ancestrais africanas norteou o comportamento da militância. Domingues menciona que “muitas crianças negras, recém-nascidas, passaram a ser registradas com nomes africanos, sobretudo de origem iorubá” (DOMINGUES, 2007:116). Esse processo também ocorreu no terreno religioso, com grande adesão dos militantes negros a religiões de matriz africana, notadamente o candomblé, considerado por muitos como o principal guardião da fé ancestral. Paralelamente a esse processo, o MNU desenvolveu uma campanha política contra a mestiçagem, rompendo definitivamente com as fases anteriores do movimento negro 8 “Evidentemente essas alterações têm importante conteúdosimbólico e político. A adoção de um referencial racial inviabilizou uma aglutinação ampla de diversos segmentos discriminados, como certamente era o projeto de alguns dos militantes” (BARCELOS, 1996:199). 9 Em 1985, com a proximidade do centenário da abolição, o governo federal anunciou que organizaria uma série de eventos para celebrar a data. O movimento negro, após intenso debate, deliberou o posicionamento contrário a qualquer comemoração, em face da persistente marginalização do negro na sociedade. “As entidades negras organizaram em Salvador, no dia 12 de maio, uma passeata chamada de “Cem Anos Sem Abolição”, e nessa ocasião um retrato da princesa Isabel foi queimado. Um evento do mesmo tipo foi organizado no Rio de Janeiro. Aqui as autoridades puseram 750 policiais nas ruas para evitar que a passeata passasse em frente a um monumento em homenagem a Duque de Caxias. No confronto com a polícia dois líderes sindicais foram presos e representantes de entidades negras foram impedidos de se pronunciar durante a manifestação” (ALBUQUERQUE; FRAGA FILHO, 2006: 296). 10 A lei 10.639/03 altera a lei 9.394/96, que estabelece as Diretrizes e Bases da Educação Nacional, e determina a obrigatoriedade do ensino de história e cultura afro-brasileira e africana nas escolas do Brasil. 14 organizado, que tinham sentido integracionista. A mestiçagem seria um entrave para a mobilização política da população negra no país, pois diluía a identidade do negro no Brasil, estando “historicamente (...) a serviço do branqueamento” (DOMINGUES, 2007: 117). Assim, o movimento defendia o casamento endogâmico e, consequentemente, condenava o casamento interracial. Abdias do Nascimento chegou a afirmar que essa prática era responsável por um genocídio da população negra brasileira.11 É fundamental destacar também a luta das mulheres negras, que já no início do século XX tinham organizações próprias, destacando-se em entidades posteriores como a Frente Negra Brasileira.12 A partir da década de 1970, com a influência do movimento feminista, o movimento de mulheres negras procura explicitar a diferença entre as formas de mulheres e homens negros sentirem a discriminação racial, acrescentando à questão do racismo a problemática do gênero. Lélia González, importante ativista negra, foi uma das pioneiras a chamar atenção para esse acúmulo de preconceitos, que faz com que a mulher negra ocupe o lugar mais baixo da hierarquia social (RIBEIRO, 2008: 989). Em 1988 foi criado o GELEDÉS, organização que visa à valorização das mulheres negras e ao combate ao racismo. Mais recentemente, em 2000, mais de 20 entidades de mulheres negras pelo Brasil, inclusive o GELEDÉS, compuseram a Articulação de Organizações de Mulheres Negras Brasileiras (AMNB). O objetivo inicial da AMNB era organizar as reivindicações das mulheres negras brasileiras durante a realização da III Conferência Mundial contra o Racismo, Xenofobia e Intolerâncias Correlatas, ocorrida em Durban, na África do Sul, em 2002. Posteriormente, a entidade ampliou seus objetivos, dedicando-se a reivindicação de políticas públicas de proteção e promoção dos direitos das mulheres negras no país, bem como a luta contra o racismo, o machismo e a homofobia.13 A Conferência de Durban marcou também outro ponto fundamental na luta do movimento negro contemporâneo: a questão das cotas raciais para o ingresso em 11 Ver NASCIMENTO, Abdias. O genocídio do negro brasileiro. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978. 12 A Sociedade Brinco das Princesas (1925) e a Sociedade de Socorros Mútuos Princesa do Sul (1908), respectivamente de São Paulo e Pelotas, eram associações formadas estritamente por mulheres negras. (DOMINGUES, 2007:104). Em relação à FNB, o ativista Francisco Lucrécio afirmou sobre as mulheres negras que “era um contingente muito grande, eram elas que faziam todo o movimento” (LUCRÉCIO apud DOMINGUES, 2007: 106). 13 Articulação de Organizações de Mulheres Negras Brasileiras. Disponível em http://www.amnb.org.br/. Acesso em 15 set. 2010. 15 universidades públicas. Alberti e Pereira afirmam que essa questão “se transformou, nos últimos quatro anos, em uma bandeira do movimento negro, capaz de aglutinar as demais reivindicações e mobilizar diferentes ações do Estado e da sociedade civil” (ALBERTI; PEREIRA, 2006: 143). Depoimentos de militantes envolvidos na preparação do relatório brasileiro para a Conferência revelam que essa proposta foi inserida no documento na última hora de forma bastante resumida, tendo sido justamente o item mais destacado pela imprensa naquele momento. Assim, iniciaram-se intensos debates na sociedade abrangente que persistem até os dias atuais. Apesar de considerarem que as cotas raciais não são a solução para o problema da marginalização do negro na sociedade brasileira, sendo apenas medida emergencial, muitos dos militantes entrevistados por Alberti e Pereira entendem que “sua maior riqueza provavelmente está no debate e nas mudanças de atitude que é capaz de provocar” (ALBERTI; PEREIRA, 2006: 159). Considerando que o principal desafio do movimento negro brasileiro seja desmitificar a idéia democracia racial, que atravanca a luta das “minorias” étnicas no país (ALBERTI; PEREIRA, 2005: 1), o debate em relação às cotas raciais teria provocado “aquilo que as lideranças do movimento procuravam suscitar há décadas: uma discussão ampla sobre a questão racial no Brasil, envolvendo diferentes setores da sociedade” (ALBERTI; PEREIRA, 2006: 145). Outra importante luta do movimento negro contemporâneo é a mobilização das comunidades remanescentes de quilombos, que vêm reivindicando a titulação das terras em que vivem através do artigo 68 do Ato das Disposições Transitórias da Constituição Federal de 1988.14 Como a expressão “remanescentes dos quilombos”, tomada em sentido estrito, seria aplicável a poucos grupos no país, o termo passou a designar “as comunidades negras rurais estabelecidas em determinados territórios, sem título de propriedade, que legitimavam seus direitos coletivos às terras ocupadas, na memória de uma origem comum ligada à experiência da escravidão” (CASTRO, 2006: 419). Desde a aprovação da lei, muitas comunidades, apoiando-se na revalorização de práticas culturais de origem africana (como o jongo e o caxambu, no Rio de Janeiro), têm requerido e conquistado a titulação de suas terras. Domingues propõe a hipótese interpretativa de que o movimento hip hop pode estar inaugurando uma nova fase no movimento negro brasileiro. O autor argumenta 14 Hebe Mattos de Castro considera este artigo como sendo a maior vitória do movimento negro na constituinte de 1988 (CASTRO, 2006: 416). O texto do artigo estabelece que “aos remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas terras é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os títulos respectivos”. 16 que, por ter origem popular e falar a linguagem da periferia, o hip hop rompe com o discurso vanguardista das entidades negras tradicionais (DOMINGUES, 2007:119). Ele mesmo assinala, entretanto, que é precoce decretá-lo como ruptura no movimento negro, “primeiro porque ele ainda é um movimento desprovido de um programa político e ideológico mais geral de combate ao racismo. Segundo, porque o hip hop no Brasil não tem um recorte estritamente racial” (DOMINGUES, 2007: 120). De qualquer forma, acreditamos que tanto o movimento hip hop como o movimento funk tem tido papel significativo na denúncia do racismo e da desigualdade social no Brasil.15 Podemos afirmar, portanto, que “apesar das dificuldades, o movimento negro tem se consolidado como ator político”. Para o autor, “não se trata de romantizar a experiência desse movimento social, mas de contextualizá-la” (BARCELOS, 2007:209). Foi nesse sentidoque montamos este panorama histórico do movimento, a partir do qual podemos aprofundar algumas discussões conceituais. Raça, racismo, sexismo e identidade Caracterizando-se pelo dinamismo e pela constante reelaboração das estratégias de luta em cada conjuntura histórica, o movimento negro aglutinou-se fundamentalmente em torno da noção de raça, utilizada “não só como elemento de mobilização racial, mas também de mediação das reivindicações políticas” (DOMINGUES, 2007: 102). Faz-se necessário, portanto, analisar com cuidado os significados deste conceito, seus usos e relações com outros conceitos importantes. Um bom ponto de partida são as discussões feitas por Kabengele Munanga em relação às noções de raça, racismo, identidade e etnia (MUNANGA, 2000). Munanga apresenta a trajetória histórica da noção de raça, desde seu sentido medieval, que se referia à linhagem a que pertencia determinado grupo familiar, até seus sentidos atuais. O autor chama atenção para o século XVIII, quando a raça passou a ser considerada critério de classificação humana pelas ciências naturais. Admitindo que a variabilidade do patrimônio genético humano é um fato empírico, e que por isso mereceu atenção científica, Munanga lembra que essas diferenças não são suficientes para classificar a humanidade em raças. Segundo ele, o problema nem está na classificação em si, mas na hierarquização entre as raças. Os naturalistas dos séculos XVIII e XIX erigiram uma 15 Para mais informações sobre o movimento funk, ver: Associação dos Profissionais e Amigos do Funk, disponível em http://apafunk.blogspot.com/. 17 relação intrínseca entre o biológico e as qualidades psicológicas, morais, intelectuais e culturais de cada grupo humano. “Assim, os indivíduos da raça ‘branca’ foram decretados coletivamente superiores aos da raça ‘negra’ e ‘amarela’, em função de suas características físicas hereditárias (...) que, segundo pensavam, os tornavam mais bonitos, mas inteligentes, mais honestos, mais inventivos etc.” (MUNANGA, 2000:21). O progresso da genética humana ao longo do século XX resultou na conclusão pelos cientistas que a raça não é uma realidade biológica, mas um conceito cientificamente inoperante. Apesar da invalidação científica da noção de raça, “no imaginário e na representação coletivos de diversas populações contemporâneas existem ainda raças fictícias e outras construídas a partir de diferenças fenotípicas como a cor da pele e outros critérios morfológicos” (MUNANGA, 2000: 22). Munanga esclarece que “o racista cria a raça no sentido sociológico”, considerando as características culturais e morais de determinado grupo como conseqüência de suas características biológicas (MUNANGA, 2000: 24). Essa realidade social e política justifica o uso do conceito pelos cientistas sociais, que o entendem como “uma construção sociológica e uma categoria social de dominação e de exclusão” (MUNANGA, 2000: 23). Kabengele Munanga e Stuart Hall chamam atenção para o discurso da “etnia” e “etnicidade”, comum na sociedade globalizada, que se funda nas diferenças culturais e religiosas. Os autores revelam que esses conceitos, tidos como “um léxico mais cômodo que o de raça, em termos de ‘fala politicamente correta’” (MUNANGA, 2000: 29), não mudam a realidade do racismo, pois perpetuam a relação hierárquica entre culturas diferentes. Se as minorias étnicas européias reivindicam políticas de identidade, “os partidos e movimentos de extrema direita na Europa reivindicam o mesmo respeito da cultura ‘ocidental’ local como pretexto para viverem separados dos imigrantes árabes, africanos e outros dos países não ocidentais” (MUNANGA, 2000: 28). Assim, Hall conclui que “o racismo biológico e a discriminação cultural não constituem dois sistemas distintos, mas dois registros de racismo” (HALL, 2003a: 68). Para Hall, a raça é uma “categoria discursiva em torno da qual se organiza um sistema de poder sócio-econômico, de exploração e de exclusão – ou seja, o racismo” (HALL, 2003a: 66). Assim como Munanga, Hall enfatiza a operação efetuada pelo racismo, que “tenta justificar as diferenças sociais e culturais que legitimam a exclusão racial em termos de distinções genéticas e biológicas, isto é, na natureza” (HALL, 2003a: 66). Explicitar essa referência discursiva à natureza é fundamental para entendermos as relações entre o racismo e outras formas de preconceito, como o anti- 18 semitismo e o sexismo. “Nesse tipo de discurso, as diferenças genéticas (supostamente escondidas na estrutura dos genes) são ‘materializadas’ e podem ser ‘lidas’ nos significantes corporais visíveis” (HALL, 2003a: 66-67). Se tanto o discurso racista quanto o sexista se utilizam de referências biológicas para inferiorizar respectivamente negros e mulheres, a combinação destes merece olhar mais atento. Podemos pensá-la através da abordagem interseccional, que “se refere às articulações entre a discriminação de gênero, a homofobia, o racismo e a exploração de classe” (BLACKWELL; NABER, 2002: 189). Essa abordagem teve origem nas reivindicações de feministas negras, judias, lésbicas, operárias etc., que demandaram atenção para a multiplicidade do feminino, “argumentando que a opressão das mulheres não poderia ser entendida unicamente pelo viés da diferença de gênero” (ÁVILA; COSTA, 2005: 693). A partir da década de 1980, o chamado “feminismo da diferença” procurou entender “como as diversidades culturais, raciais, de classe etc. contribuíram para as distintas experiências das mulheres, entre as mulheres e entre as mulheres e os homens” (ÁVILA; COSTA, 2005: 692). Essa perspectiva complexificou-se a partir do surgimento da teoria do ponto de vista feminista (feminist standpoint), segundo a qual a experiência da opressão é dada pela posição que ocupamos numa matriz de dominação onde raça, gênero e classe social interceptam-se em diferentes pontos. Assim, uma mulher negra trabalhadora não é triplamente oprimida ou mais oprimida do que uma mulher branca na mesma classe social, mas experimenta a opressão a partir de um lugar, que proporciona um ponto de vista diferente sobre o que é ser mulher numa sociedade desigual, racista e sexista (BAIRROS, 1995: 461) De acordo com essa corrente de pensamento, não existe uma identidade feminina única, “pois a experiência de ser mulher se dá de forma social e historicamente determinada” (BAIRROS, 1995:461). Aprofundaremos a questão relativa à interseção entre racismo e sexismo no próximo capítulo. Pudemos observar que tanto o movimento negro quanto o movimento feminista têm negado visões essencialistas relativas à identidade, rejeitando justificativas biologizantes e ressaltando o caráter histórico e cultural da raça e do gênero. Stuart Hall (2009) afirma que, nos últimos anos, vem ocorrendo uma verdadeira explosão discursiva em torno do conceito de identidade, no qual diversas correntes de pensamento o tem submetido a severas críticas. O autor considera, entretanto, que a identidade é um desses conceitos que operam “sob rasura”, isto é, uma vez que “não foram dialeticamente superados e que não existem outros conceitos, inteiramente diferentes, que possam substituí-los, não existe nada a fazer senão continuar a pensar 19 com eles – embora agora em suas formas destotalizadas e desconstruídas” (HALL, 2009:104). É nesse sentido que Hall propõe o conceito de identificação. No senso comum, a identificação ocorre “a partir do reconhecimento de alguma origem comum, ou de características que são partilhadas com outros grupos ou pessoas, ou ainda a partir de um mesmo ideal” (HALL, 2009:106). O conceito de Hall opõe-se ao “naturalismo” dessa definição, considerando que, na modernidade tardia, as identidades são “cada vez mais fragmentadas e fraturadas, que elas não são, nunca, singulares, mas multiplamente construídasao longo de discursos, práticas e posições” (HALL, 2009: 108). Nesse sentido, Hall propõe que a identificação é uma construção, um processo nunca completado, podendo-se sempre ganhá-la ou perdê-la. Assim, “embora tenha suas condições determinadas de existência, o que inclui os recursos materiais e simbólicos para sustentá-la, a identificação é, ao fim e ao cabo, condicional” (HALL, 2009: 106). A partir dessa perspectiva, a questão da identidade afasta-se de um viés essencialista e torna-se um conceito estratégico e posicional. Assim, as identidades têm a ver com a questão da utilização dos recursos da história, da linguagem e da cultura para a produção não daquilo que nós somos, mas daquilo no qual nos tornamos. Têm a ver não tanto com as questões ‘quem nós somos’ ou ‘de onde nós viemos’, mas muito mais com as questões ‘quem nós podemos nos tornar’, ‘como nós temos sido representados’ e ‘como essa representação afeta a forma como nós podemos representar a nós próprios’. (...) Elas surgem da narrativização do eu, mas a natureza necessariamente ficcional desse processo não diminui, de forma alguma, sua eficácia discursiva, material ou política (HALL, 2009: 109). Kabengele Munanga, também crítico das abordagens essencialistas sobre identidade, ressalta essa eficácia política a qual se refere Hall. Para ele, a possibilidade de se construir no plano político uma identidade negra única e mobilizadora existe na medida em que a população negra é coletivamente submetida à dominação branca e constitui o segmento social mais subalternizado da sociedade (MUNANGA, 2000: 32- 33). Levar isso em consideração não significa negar a diversidade da população negra, mas sim unir-se na “busca de propostas transformadoras da realidade do negro no Brasil” (MUNANGA, 2000: 32-33). Munanga acrescenta ainda que a unificação da identidade política no movimento negro “se opõe a uma outra identidade unificadora proposta pela ideologia dominante, ou seja, a identidade mestiça, que, além de buscar a unidade nacional, visa também à legitimação da chamada democracia racial brasileira e à conservação do status quo” (MUNANGA, 2000: 33). Para o movimento negro, é fundamental combater essa ideologia política e culturalmente, como veremos a seguir. 20 II – Literatura negra brasileira O discurso da democracia racial brasileira também está presente no campo literário. Segundo ele, critérios étnicos ou identitários não devem se sobrepor ao critério da nacionalidade. Se somos todos brasileiros e, consequentemente, “um pouco afro- descendentes”, não há “sentido em demarcar especificidades de raça, etnia ou mesmo gênero, seguindo quase sempre ‘modismos importados’ com o objetivo de fraturar o corpo de nossa tradição literária e da herança outorgada pelos mestres do passado e do presente.” (DUARTE, 2005:1). A literatura “negra”, “afro-brasileira” ou “afrodescendente” procura desconstruir esse discurso. Em 1988, ano do centenário da abolição, Zilá Bernd alertava para a necessidade de se “questionar a forma como foi escrita a história do negro no Brasil, assim como sua contribuição nos domínios literários, e esperar que o surgimento de uma anti-história e de formas de contraliteratura possam tirar da clandestinidade muitos fatos que, por ora, a cultura triunfante mascara" (BERND, 1988a:18). Nas últimas décadas, a historiografia literária, assim como a historiografia brasileira em geral, vem passando por um processo de revisão crítica que visa explicitar os negros enquanto sujeitos históricos e literários, conforme as reivindicações do movimento negro. No entanto, o volume de estudos e pesquisas a esse respeito ainda é insuficiente (DUARTE, 2005:1). Considerar a literatura negra como uma contraliteratura, por se inserir criticamente no campo literário brasileiro e contestar os valores da cultura dominante (BERND, 1988a:43), ajuda a entender a dificuldade de seu reconhecimento acadêmico. Bernd explica que os textos que navegam na contracorrente literária vão se manter, ao menos por algum tempo, à margem do cânone, “por violarem as regras do contrato de escritura em vigor e por permitirem que venha à tona o homem concreto e sua denúncia” (BERND, 1988a:44-45). Essa relação é explicitada na fala de Conceição Evaristo: “a academia ela não lida bem com a voz do subalterno, com a voz daqueles que escolhem falar a partir do lugar de subalternidade” (EVARISTO, 2010: 7). Segundo Cuti, “a literatura é poder, poder de convencimento, de alimentar o imaginário, fonte inspiradora do pensamento e da ação” (CUTI, 2010: 12). Esse poder tem sido historicamente instrumentalizado pelos negros para subverter o lugar de subalternidade que o racismo lhes reserva em nossa sociedade.16 Assim, entendemos a 16 Autores como Zilá Bernd e Domício Proença Filho consideram Luís Gama (1830-1882) como o “discurso fundador” e o “pioneiro da atitude compromissada” com os valores da negritude. Eduardo de 21 literatura negra brasileira como uma literatura fortemente política e militante, pois “abala a ideologia do nacionalismo e tem um olhar crítico sobre o Estado e a identidade nacional; e, ainda, por reescrever a seu modo a História.” (ARRUDA, 2007:13). Um conceito em construção Conceição Evaristo chama atenção para a dificuldade de se conceituar “um objeto que ainda está em processo de desenvolvimento, de formação e de revelação, como é o caso da literatura negra” (EVARISTO, 1996:49). De fato, o debate teórico envolvendo a literatura negra no Brasil é bastante complexo. Segundo Duarte, “a ‘literatura negra’ são muitas, o que, no mínimo, enfraquece e limita sua eficácia enquanto operador teórico, a par do inegável simbolismo político” (DUARTE, 2009:18). Não faremos aqui uma apresentação desse debate em suas minúcias, deixando as postulações teóricas para os especialistas. É indispensável, contudo, abordar algumas questões importantes para nossos objetivos. Um dos principais debates envolvendo essa literatura se dá em relação à sua denominação. “Literatura negra”, “afro-descendente”, “afro-brasileira”, “negro- brasileira”, cada qual com suas justificativas teóricas e políticas, confundem-se nos trabalhos acadêmicos e nas próprias publicações literárias. 17 Entretanto, se, nas palavras de Cuti, “negro ou afro não tanto faz” (CUTI, 2010), faz-se necessário olharmos atentamente o que está em jogo nesse debate. Eduardo de Assis Duarte defende a utilização do termo literatura afro-brasileira, por configurar-se como “perturbador suplemento de sentido ao conceito de literatura brasileira”, além de “abarcar melhor, por sua amplitude necessariamente compósita, as várias tendências existentes na demarcação discursiva desse campo identitário em sua expressão literária” (DUARTE, 2009:19). Com isso, Duarte quer explicitar a importância estratégica que há na vinculação desta literatura à literatura brasileira em geral, tanto para abalar sua suposta homogeneidade quanto para evitar uma “guetização” da literatura negra no Brasil. Nesse sentido, Luiza Lobo afirma que “para arrancar a literatura negra do reduto reducionista da literatura em geral que a trata como tema Assis Duarte propõe que, além de um “pai” da literatura afro-brasileira, se considere Maria Firmina dos Reis (1825-1917), autora de Úrsula, como sua “mãe” (DUARTE, 2005). Embora não queiramos entrar no debate relativo a origens, é interessante perceber a dimensão histórica dessa literatura, que remonta ao século XIX. 17 A dissertação de mestrado de Conceição Evaristo, por exemplo, traz o título “Literatura Negra: Uma poética de nossa afro-brasilidade” (EVARISTO, 1996, grifo nosso). 22 folclórico, exótico, ou como estereótipo, é preciso que elaseja, necessariamente, uma literatura afro-brasileira.” (LOBO apud DUARTE, 2007:9). A literatura afro-brasileira, na visão de Duarte, está “dentro da literatura brasileira, porque se utiliza da mesma língua e, praticamente, das mesmas formas, gêneros, processos e procedimentos de expressão” e, simultaneamente, “está fora porque, entre outros fatores não se enquadra na ‘missão’ romântica, tão bem detectada por Antonio Candido, de instituir o advento do espírito nacional” (DUARTE, 2007:9). Cuti, por sua vez, critica veementemente o termo “afro-brasileiro”, propondo o conceito de literatura negro-brasileira. O escritor e militante do movimento negro concorda com Duarte em relação à importância de vincular essa literatura ao conjunto da literatura nacional. Mas, para ele, o prefixo afro- projeta à literatura negro-brasileira a uma origem continental, deixando-a à margem da literatura brasileira: “‘afro- brasileiro’ e ‘afro-descendente’ são expressões que induzem a discreto retorno à África, afastamento silencioso do âmbito da literatura brasileira para se fazer de sua vertente negra um mero apêndice da literatura africana” (CUTI, 2010:35-36). Essa operação teria os efeitos de negar o questionamento da realidade social brasileira, bem como de reforçar a continentalização homogeneizante da África. Cuti lembra que “os africanos de hoje, em particular os literatos, ciosos da busca de reconhecimento cultural de suas nacionalidades, incluindo aí os africanos brancos, tendem a rejeitar uma identidade continental para suas obras” (CUTI, 2010:36-37). Assim, o autor argumenta que, se o referido prefixo abriga não negros, “um afro-brasileiro pode ser um não negro, ou seja, não ser vítima de discriminação ou, até, ser um discriminador” (CUTI, 2010:35). Dá a entender, dessa forma, que a experiência do racismo pelo negro brasileiro é fundamental para a definição de literatura negro-brasileira. Conceição Evaristo faz referência a essa experiência quando questionada em relação ao conceito de literatura afro-brasileira: Para mim a literatura afro-brasileira é uma produção literária nascida da experiência de vida do sujeito negro na sociedade brasileira. Refiro-me agora às palavras de Eduardo de Assis Duarte e de Cuti quando dizem que essa experiência negra se apresenta no texto de maneira consciente ou inconsciente. Ou seja, se o sujeito se resguarda no tempo com essa experiência negra, o ato de ele se resguardar é um indicativo. Eu não abro mão de pensar que essa literatura afro-brasileira tem a ver com a experiência do negro brasileiro. (EVARISTO apud ARRUDA, 2007: 101) Conceição afirma ainda que esta experiência pode ser lida “em cada negro, querendo ele ou não, tendo consciência disto ou não”, já que “sua origem é guardada e memorizada em seu rosto, em seu corpo, em sua cor, que, mesmo miscigenada, com 23 uma pigmentação de mais ou menos melanina, é denunciada ao sol” (EVARISTO, 1996:23). É necessário tratar com cuidado a afirmação de que existe uma experiência comum aos negros na sociedade brasileira, pois ela se fundamenta em um discurso essencialista. Stuart Hall admite que houve um momento histórico em que foi indispensável “um toque de essencialismo” na luta do movimento negro por espaço frente à cultura dominante. O autor adverte, contudo, que esse momento, por naturalizar o que é cultural e des-historicizar o que é histórico, é “incapaz de compreender as estratégias dialógicas e as formas híbridas essenciais à estética diaspórica" e, portanto, já não serve à luta política dos negros (HALL, 2003b: 326). Assim, Hall critica a invocação de uma “experiência negra garantida”, postulando que "é para a diversidade e não para a homogeneidade da experiência negra que devemos dirigir inteiramente nossa atenção criativa agora" (HALL, 2003b: 327-8). Eduardo de Assis Duarte dialoga com os críticos da terminologia por ele defendida, admitindo que “termos como afro-brasileiro ou afro-descendente trazem em si o risco de assumirem sentido análogo ao do signo ‘pardo’, tão presente nas estatísticas do IBGE, quanto execrado pelos fundamentalistas do orgulho racial traduzido no slogan ‘100% negro’” (DUARTE, 2009:19). Referindo-se a “fundamentalistas do orgulho racial”, o autor critica o essencialismo que muitas vezes acompanha a palavra “negro”, afirmando que “num universo cultural como o nosso, onde verdadeiras constelações discursivas (...) se dispõem ao constante reprocessamento, insistir num viés essencialista pode gerar mais polêmicas do que gerar ferramentas teóricas e críticas eficientes” (DUARTE, 2009:19). Assim, Duarte reivindica o conceito de literatura afro-brasileira como uma formulação mais produtiva justamente por ser mais abrangente, abarcando “tanto a assunção explícita de um sujeito étnico – que se faz presente numa série que vai de Luís Gama a Cuti, passando pelo ‘negro ou mulato, como queiram’ de Lima Barreto – quanto abarca o dissimulado lugar de enunciação que abriga Machado, Firmina, Cruz e Souza” etc (DUARTE, 2009:20). De fato, o termo “literatura afro-brasileira” é bastante difundido entre que lidam com a questão atualmente (DUARTE, 2009:20). Duarte e Cuti apontam para o fato de que os próprios autores do grupo Quilombhoje passaram a caracterizar os poemas e contos publicados nos Cadernos Negros como “afro-brasileiros”. Cuti justifica essa atitude como uma “pretensão explícita de não perder nada nesse processo semântico ainda em curso”, lembrando que o título das publicações da Quilombhoje não foram 24 alterados para “Cadernos Afro-brasileiros”, porque “essa expressão não é aglutinadora” (CUTI, 2010: 38). O trecho a seguir explicita a visão de Cuti, dialogando diretamente com a crítica de Duarte em relação aos “fundamentalistas do orgulho racial” que reivindicavam o slogan “100% negro”: “Ninguém escreveu em nenhuma camiseta 100% afro-brasileiro. Essa expressão não provocaria qualquer entusiasmo. É uma palavra artificial (...). “100% negro” é a manifestação das ruas, da ida que pulsa fora da universidade, fora de seu controle; é energia que vem da necessidade interior e coletiva de tantos quantos resolveram dizer não ao complexo de inferioridade, (...) de todos que resolveram dizer sim à vida, à alteridade da beleza” (CUTI, 2010:43) A palavra “negro” teria então a função fundamental de aglutinar a população negra em torno de uma identidade política que se coloca na luta contra ao racismo. Para Cuti, a expressão “afro-brasileiro” afasta a população negra do enfrentamento da questão racial no Brasil, lançando-a em direção a uma África plural, multiétnica e muitas vezes dissociada da descendência negro-brasileira. A palavra “negro”, por sua vez, se remeteria à construção de uma nova identidade pela população negra através de suas lutas políticas na sociedade brasileira. É nesse sentido que Zilá Bernd afirma que “a literatura negra surge como uma tentativa de preencher vazios criados pela perda gradativa de identidade determinada pelo longo período em que a cultura negra foi considerada fora-da-lei” (BERND, 1988a: 22-23). Assim, para Cuti, identificar-se com a palavra “negro” significa “dar mais ênfase à criação diaspórica do que à origem de seus produtores ou o teor de melanina de suas peles”. (CUTI, 2010:44). Embora a argumentação de Eduardo Duarte seja muito coerente em termos acadêmicos, as colocações fundamentais de Cuti em relação a importância do termo “negro fazem com que seja impossível para mim utilizar qualquer expressão que a substitua ou relegue a segundo plano. Assim, adotei a expressão “literatura negra” sucedida pelo “brasileira” por questões de delimitação temática. Não procuro, com isto, contestar a validade das expressões dos especialistas supracitados, que são guias fundamentais para este trabalho. Desejo apenas demarcar a importância política da palavra “negro”, que foi ressignificadapelo movimento negro brasileiro como um termo de referência, aglutinador da população negra oprimida neste país. Essa vitória política e cultural há que ser explicitada e reivindicada também nos trabalhos acadêmicos. Apesar do intenso debate que a envolve, inclusive em relação à sua consolidação enquanto campo específico da produção literária brasileira, é possível identificar alguns 25 elementos que particularizam essa literatura. Eduardo de Assis Duarte aponta cinco fatores que “atuam como pressupostos teóricos e críticos a operacionalizar” essa particularização: autoria, ponto de vista, temática, linguagem e público (DUARTE, 2007). Duarte afirma que o tópico da autoria é bastante controverso, pois envolve a consideração de fatores fenotípicos, imbricada à dificuldade de definir o que é ser negro no Brasil. Além disso, há quem defenda a existência de uma literatura negra de autoria branca, assim como há escritores negros que não reivindicam para si essa condição e não a incluem em seu ponto de vista literário. Diante desses impasses, Duarte sustenta que, na literatura afro-brasileira, autoria e ponto de vista devem estar intimamente conjugados. Essa visão baseia-se em um pressuposto teórico fundamental ao qual muitos autores fazem referência: o sujeito enunciador negro de Zilá Bernd. A autora postula que "o conceito de literatura negra não se atrela nem à cor da pele do autor nem apenas à temática por ele utilizada”, mas ao “surgimento de um eu enunciador que se quer negro", isto é, que assume a condição de negro ao enunciar o discurso em primeira pessoa (BERND, 1988a:22). Conceição Evaristo esclarece que o sujeito enunciador na literatura negra não se trata “de um sujeito particular, de um sujeito construído segundo a visão romântico-burguesa, mas de um sujeito que está abraçado ao coletivo. (...) Temos um sujeito que, ao falar de si, fala dos outros e, ao falar dos outros, fala de si” (EVARISTO, 1996:43). Esse elemento pode ser considerado a característica fundamental da literatura negra na medida em que realiza uma inversão da perspectiva do sujeito literário, produzindo “um discurso do negro em contraposição de um discurso sobre o negro produzido pela literatura branca” (EVARISTO, 1996:41). A temática presente na literatura negra brasileira está profundamente relacionada com o lugar de fala pelo qual opta o sujeito enunciador negro. Duarte sinaliza, entretanto, que assim como “o tema negro não é único ou obrigatório, nem se transforma numa camisa de força para o autor afro-descendente (...), nada obrigada que a matéria ou o assunto negro estejam ausentes da escrita dos brancos” (DUARTE, 2007:3). Assim, a conjugação desse elemento com os demais é fundamental para caracterizar a literatura negra conforme o fazem os autores nos quais nos baseamos. O que Duarte chama de “tema negro” pode contemplar “o resgate da história do povo negro na diáspora brasileira, passando pela denúncia da escravidão e de suas conseqüências ou ir até à glorificação de heróis como Zumbi e Ganga Zumba”, abarcando ainda “tradições culturais ou religiosas transplantadas para o Brasil” e os 26 “dramas vividos [pelos negros] na modernidade brasileira, com suas ilhas de prosperidade cercadas de miséria” (DUARTE, 2007:2-3). O papel da linguagem é fundamental no projeto literário afro-brasileiro, que visa subverter a ordem hegemônica em que o negro é objeto, e não sujeito literário. O peculiar em relação a esse elemento é que o escritor negro brasileiro enfrenta o desafio de se comunicar “através do sistema lingüístico do dominador”, que abriga “um discurso já institucionalizado sobre o negro, construído secularmente por uma semântica alimentada em simbologia eurocêntrica” (EVARISTO, 1996: 54; 83). Nesse sentido, Cuti adverte aos escritores negros que não se pode ser ingênuo em relação às “armadilhas” da língua, pois ela “não foi estruturada de modo a facilitar o trânsito de nossos sentimentos e idéias com facilidade” (CUTI aput EVARISTO, 1996: 56). Duarte afirma que a solução encontrada por esses escritores foi a utilização “de uma discursividade que ressalta ritmos, entonações, opções vocabulares e, mesmo, toda uma semântica própria, empenhada muitas vezes num trabalho de ressignificação que contraria sentidos hegemônicos da língua” (DUARTE, 2007:6). Para Conceição Evaristo, duas operações são fundamentais para os escritores negros em termos de linguagem: a retomada da oralidade e a ressignificação simbólica. A autora afirma que “pela oralidade o poeta encontra o poder mágico da palavra, o encantamento da fala, capaz de costurar no tempo e no espaço de agora um mundo de ontem, calcado e recalcado na memória” (EVARISTO, 1996: 63). Luiza Lobo afirma que a diferença radical entre a palavra escrita e a palavra falada, que marca a cultura ocidental, tem sido abandonada pela literatura negra, “até mesmo na tentativa de encontrar um universo simbólico discursivo próprio” (LOBO apud EVARISTO, 1996: 63). Na busca por esse discurso, a ressignificação ou a reversão de signos associados ao racismo e ao eurocentrismo é fundamental. Para Conceição, isso é feito através de “um consciente exercício que procura esvaziar o sentido de uma língua pátria imposta, mas que pode ser violada, modificada, re-significada desde o plano simbólico, passando pelo léxico e grafia” (EVARISTO, 1996: 83). A questão do público, por sua vez, é fundamental para entendermos os objetivos da literatura negra e a articulação dos elementos supracitados. Roger Chartier, ao estudar as práticas de escrita e leitura a partir de uma perspectiva histórica, aponta para a existência de um “leitor implícito” projetado pela imaginação dos escritores ao redigirem seus textos (CHARTIER, 2001). Referindo-se a práticas que se distanciam das atuais, Chartier afirma que “todo autor, todo escrito impõe uma ordem, uma postura, 27 uma atitude de leitura”, isto é, “um protocolo de leitura [que] define quais devem ser a interpretação correta e o uso adequado do texto”. Ainda que essa dinâmica tenha se alterado bastante na contemporaneidade e considerando que “cada leitor, a partir de suas próprias referências individuais ou sociais, histórias ou existenciais, dá um sentido mais ou menos singular, mais ou menos compartilhado aos textos de que se apropria” (CHARTIER, 2001: 20), é possível afirmar que a literatura negra trabalha com a imagem de um público implícito, extremamente importante para sua proposta política. A literatura negra tem como objetivo a “formação de um público específico, marcado pela diferença cultural e pelo anseio de afirmação identitária”, impingindo a si mesma “um papel social na construção da auto-estima dos afro-descendentes” (DUARTE, 2007: 8; 9). Se a literatura é poder de convencimento e inspira pensamento e ação, conforme afirmou Cuti, a literatura negra visa à conscientização da população negra através da arte. Nesse sentido, o sujeito enunciador negro escreve “não apenas com vistas a atingir um determinado segmento da população, mas o faz também a partir de uma compreensão do papel do escritor como porta-voz de uma determinada coletividade” (DUARTE, 2007:8). Duarte considera esse aspecto como sendo “a faceta algo utópica do projeto literário afro-brasileiro”, tendo em vista a dificuldade de difundir a literatura, “sobretudo entre crianças e jovens, em sua maioria pobres, num cenário marcado pela hegemonia dos meios eletrônicos de comunicação” (DUARTE, 2007: 7; 8). O autor lembra que as restrições à difusão do hábito da leitura entre o povo relacionam-se com o fato de que um povo instruído é um povo “perigoso”, pois coloca em risco a estrutura social vigente através do estímulo à crítica, à contestação e à transformação (DUARTE, 2007:8). Nesse cenário, o papel que jovens artistas das periferias das grandes cidades brasileiras vêm desempenhando torna-sefundamental. Através de novas linguagens artísticas como o hip hop, o rap e o funk, esses grupos “vêm desenvolvendo intenso trabalho de literatura, com declamações públicas, no qual a vertente negro-brasileira se faz presente” (CUTI, 2010:131). A divulgação da literatura negra pelos meios eletrônicos, bem como a criação de espaços mediadores entre o texto e o público, como saraus literários, performances teatral, rodas de poesia e de rap, manifestações políticas etc. são também apontadas por Duarte como estratégias essenciais. 28 A escrita das mulheres negras Como dissemos, a literatura negra tem como operação fundamental a inversão do papel do negro, de objeto a sujeito histórico e literário. No caso da mulher negra, essa operação enfrenta não apenas a questão do racismo, mas o forte sexismo presente em nossa sociedade e suas interseções com outras formas de discriminação (cf. capítulo 1). Em seu artigo sobre intelectuais negras, bell hooks afirma que “o sexismo e o racismo, atuando juntos, perpetuam uma iconografia de representação da negra que imprime na consciência cultural coletiva a idéia de que ela está neste planeta principalmente para servir aos outros” (HOOKS, 1995: 468). Para hooks, o corpo da mulher negra, desde a escravidão até hoje, “tem sido visto pelos ocidentais como o símbolo quintessencial de uma presença feminina ‘natural’, orgânica, mais próxima da natureza, animalística e primitiva” (HOOKS, 1995: 468). Essa representação se evidencia nas obras literárias brasileiras que, preocupadas em instituir uma diferença negativa para a mulher negra, fazem com que ela nunca apareça “como musa ou heroína romântica, aliás, representação nem sempre relevante para as mulheres em geral” (EVARISTO, 2005: 2). Conceição Evaristo observa que essas mulheres, representadas como “corpo-procriação e/ou corpo-objeto de prazer do macho senhor”, jamais são mostradas como figuras maternas, perfil este reservado para as mulheres brancas. Segundo a autora, considerando “que o imaginário sobre a mulher na cultura ocidental constrói-se na dialética do bem e do mal, do anjo e do demônio, cujas figuras símbolos são Eva e Maria e que o corpo da mulher se salva pela maternidade, a ausência de tal representação para a mulher negra acaba por fixar a mulher negra no lugar de um mal não redimido. Quanto à mãe-preta, (...) cuida dos filhos dos brancos em detrimento dos seus. Mata-se no discurso literário sua prole, ou melhor, na ficção elas surgem como mulheres infecundas e portanto perigosas.” (EVARISTO, 2005: 2) Essa formulação discursiva que encerra a mulher negra em seu aspecto biológico – seja como extremamente sexual ou como a figura da “mãe preta” – atua para tornar o domínio intelectual um lugar interdito, já que “mais do que qualquer grupo de mulheres nesta sociedade, as negras têm sido consideradas ‘só corpo, sem mente’” (HOOKS, 1995: 469). É importante ter em vista o conceito de intelectual para bell hooks, que o considera mais do que apenas uma pessoa que lida com idéias (o “acadêmico”), mas como “alguém que lida com idéias transgredindo fronteiras discursivas, porque ele ou ela vê a necessidade de fazê-lo” (HOOKS, 1995: 468). É nesse sentido que a autora 29 afirma que “o trabalho intelectual é uma parte necessária da luta pela libertação, fundamental para os esforços de todas as pessoas oprimidas e/ou exploradas, que passariam de objeto a sujeito, que descolonizariam e libertariam suas mentes” (HOOKS, 1995: 466). Assim, hooks entende que é essencial para a luta de libertação das mulheres negras frente ao sexismo e ao racismo que elas ocupem este espaço interdito do trabalho intelectual, subvertendo e ressignificando elementos da ideologia hegemônica – operação que, como já vimos, é de importância capital para a literatura negra. O papel das escritoras negras, portanto, é primordial, pois “ao recusar ser (apenas) falada pelo outro (...), a mulher negra dona de uma voz, autora de uma escrita, desmentirá a impostura da afasia a ela atribuída por toda uma tradição de base escravista” (GOMES, 2004: 3-4). Através desse “assenhoramento da pena”, para usar a expressão de Conceição Evaristo, as escritoras negras buscam inscrever no corpus literário imagens de uma auto-representação que vai além do sentido estético. Nesse processo, “toma-se o lugar da escrita como direito, assim como se toma o lugar da vida” e da história (EVARISTO, 2005: 7). Podemos perceber, assim, que a negativização da imagem da mulher negra visa ao seu silenciamento tanto na literatura quanto na história oficial. Michelle Perrot explica o processo de silenciamento das mulheres em geral na história, observando que os procedimentos de registro, dos quais a história é tributária, são fruto de uma seleção que privilegia a esfera pública, em detrimento da privada. Sendo historicamente o mundo público, sobretudo em seus aspectos econômico e político, um espaço masculino, “os arquivos públicos, olhar de homens sobre homens, calavam as mulheres” (PERROT, 1989: 11). Assim, Perrot indica que é nos arquivos privados, como diários íntimos e correspondências familiares, que se pode encontrar com maior facilidade a expressão das mulheres, sendo elas muitas vezes as próprias produtoras desses arquivos. Entretanto, a escrita foi frequentemente proibida para as mulheres, por ser um “instrumento de perigosa independência”, como assinala Chartier (CHARTIER, 2001: 81). Diante disso, importantes arquivos privados foram destruídos por suas próprias produtoras, que se culpavam por tal transgressão. Para Perrot, “esse ato de autodestruição é também uma forma de adesão ao silêncio que a sociedade impõe às mulheres” (PERROT, 1989: 12). Podemos considerar, portanto, que escrever, para uma mulher – no caso, para uma mulher negra –, significa romper com palavras um silêncio opressor. Isso fica claro quando Conceição Evaristo afirma que “escrever pode ser uma espécie de vingança (...). Não sei se vingança, talvez desafio, um modo de ferir o 30 silêncio imposto, ou ainda, executar um gesto de teimosa esperança” (EVARISTO, 2005: 2). Como forma literária contra-hegemônica, a escrita de mulheres negras “tem sido sujeita à marginalização, ao desconhecimento e à desvalorização intelectual, por vezes dentro da própria comunidade negra” (GOMES, 2004: 9). É o que Maria Consuelo Campos denomina de “fabricação do olvido”, que incidiu e incide sobre as escritoras negras brasileiras, apesar de sua incontestável presença ao longo da história, como a ficcionista Maria Firmina dos Reis (1825-1917) e a poeta Auta de Souza (1876-1901) (CAMPOS, s.d.: 1). Daí a necessidade de maior atenção acadêmica e social para esse importante corpus literário, que revela o protagonismo histórico de personagens marginalizadas pela sociedade brasileira, que insiste em negar a existência do racismo e do sexismo em seu seio. Heloísa Gomes identifica algumas particularidades na escrita de mulheres negras que a diferenciam e identificam dentro da literatura negra. Dentre elas, estão a oralidade, “a enlaçar gerações de mulheres e a narrar toda uma história onde o individual espraia-se no comunal”; a preocupação sócio-histórica, que faz com que narrem “suas versões da história, denunciando os mecanismos de exclusão”; a desmistificação das visões hegemônicas da vida e da história e a rejeição de purismos estéticos de quaisquer tipo (GOMES, 2004: 5; 8). Essas características estão associadas à necessidade de busca de elementos que estejam fora dos marcos do discurso hegemônico para compor as narrativas dessas escritoras. Nessa busca, elas “debruçam- se sobre as tradições afro-brasileiras, lembram e bem relembram as histórias de dispersão que os mares contam, se postam atentas diante da miséria e da riqueza que o cotidiano oferece, assim como escrevem as suas dores e alegrias íntimas” (EVARISTO,2005: 7). Vemos, portanto, que é no que Michelle Perrot chamou de “arquivos privados” que as escritoras negras parecem buscar preferencialmente suas fontes. Joana Pedro, baseando-se no texto de Perrot, afirmou que a memória é profundamente gendrada, na medida em que as práticas sócio-culturais presentes na constituição da memória são atravessadas por relações de gênero (PEDRO, 2010). Assim, pode-se considerar que a memória das mulheres, pelas circunstâncias históricas a que já nos referimos, é frequentemente “uma memória do privado”, profundamente ligada à oralidade (PERROT, 1989: 15). Isso se intensifica no caso das escritoras negras, que incorporam em sua prática a importância que a oralidade tem nas tradições africanas, evidenciada 31 pela figura dos griots, “guardiões da memória, que de aldeia em aldeia cantavam e contavam a história, a luta, os heróis, a resistência negra contra o colonizador” (EVARISTO, 1996: 52). O depoimento de Conceição Evaristo esclarece esse entrelaçamento entre memória, cotidiano e oralidade: “Aprendi desde criança a colher palavras. (...) Mamãe contava, minha tia contava, meu tio velhinho contava, os vizinhos amigos contavam. Eu, menina, repetia, contava. Cresci possuída pela oralidade, pela palavra.” (EVARISTO, 2005: 1). Da mesma forma, Coser afirma em seu trabalho sobre escritoras negras norte-americanas que elas “tecem os fatos a partir da memória das pessoas, através das histórias contadas e recontadas em seus lares, dos ritos de canção e de dança, dos sonhos e sortilégios” (COSER apud GOMES, 2004: 8). Percebemos, portanto, que essas escritoras têm achado sua matéria prima na riqueza do cotidiano e da memória oral. Nesse sentido, a escrita de mulheres negras pode ser considerada construtora de pontes “entre o passado e o presente, pois tem traduzido, atualizado e transmutado em produção cultural o saber e a experiência das mulheres através das gerações” (GOMES, 2004: 1). 32 III – Ponciá Vicêncio: O papel da memória na construção de uma identidade diaspórica A partir das questões trabalhadas nos capítulos anteriores, faremos uma análise do livro Ponciá Vicêncio, de Conceição Evaristo. Como vimos, a autora ressalta em sua obra a importância da oralidade, do cotidiano e, centralmente, da memória. Ela chega a afirmar que todo seu trabalho de escritora consiste em perseguir vestígios de memória para recompor uma história perdida: “O que a minha memória escreveu em mim e sobre mim, mesmo que toda a paisagem externa tenha sofrido uma profunda transformação, as lembranças, mesmo que esfiapadas, sobrevivem. E na tentativa de recompor esse tecido esgarçado ao longo do tempo, escrevo. Escrevo sabendo que estou perseguindo uma sombra, um vestígio talvez. E como a memória é também vítima do esquecimento, invento, invento. Inventei, confundi Ponciá Vicêncio nos becos de minha memória. E dos becos de minha memória imaginei, criei.” (EVARISTO, 2009:5, grifo nosso) Os “becos de minha memória” aos quais Conceição faz referência tratam-se de seu último livro publicado, Becos da Memória (Mazza, 2006). O livro conta a história dos moradores de uma favela em processo de remoção. A narração é feita a partir da perspectiva da menina Maria-Nova, que ouvia atentamente as histórias dos mais velhos pensando que “quem sabe escreveria esta história um dia? Quem sabe passaria para o papel o que estava escrito, cravado e gravado no seu corpo, na sua alma, na sua mente” (BM, 138). A semelhança do desejo de Maria-Nova de escrever uma nova história dos negros, que ela ouvia e via em casa e nas ruas, mas que diferia da história contada na escola, com o trabalho de Conceição Evaristo como escritora explica-se por esse confundir-se da autora com seus personagens. O colhimento da memória ancestral, tão essencial para Conceição e para Maria-Nova, também aparece em Ponciá Vicêncio, que mesmo escutando diversas vezes as mesmas histórias, “ouvia tudo como se fosse pela primeira vez. Bebia os detalhes remendando cuidadosamente o tecido roto de um passado, como alguém que precisasse recuperar a primeira veste para nunca mais se sentir desamparadamente nua” (PV, 63, grifo nosso). Conceição parece muitas vezes falar através de suas protagonistas, utilizando inclusive a mesma metáfora dos vestígios de memória como um tecido puído a ser recuperado, tanto no texto de Ponciá como em seu depoimento pessoal. É interessante notar que tanto Maria-Nova, através da escrita, quanto Ponciá Vicêncio, através do trabalho com o barro, expressam a memória ancestral através da 33 arte. Conceição Evaristo metaforiza assim seu fazer literário, revelando a importância que atribui à criatividade e à expressão artística na luta dos negros por seu lugar na sociedade e na história. Em Ponciá Vicêncio, o irmão de Ponciá, Luandi Vicêncio, acredita que os trabalhos de barro feitos por Ponciá e sua mãe “contavam parte de uma história. A história dos negros talvez” (PV, 126). No caso de Ponciá, a memória tem lugar central não apenas na construção de uma história perdida, mas na construção de uma identidade fragmentada, como veremos adiante. Talvez por isso sua expressão criativa seja tão urgente: Quando Ponciá Vicêncio deixa de trabalhar o barro, seus dedos coçam até sangrar, tornando física – e lacerante – sua necessidade de expressão. Conceição Evaristo desenvolve a narrativa de Ponciá Vicêncio de forma não linear, entrelaçando o passado e o presente através das memórias e devaneios da protagonista, embora os outros personagens também tenham lugar de fala. Tomada por momentos de “ausência de si mesma”, Ponciá Vicêncio vai mergulhando cada vez mais profundamente em sua memória ao passar das páginas: “Nas primeiras vezes que Ponciá Vicêncio sentiu o vazio na cabeça, quando voltou a si, ficou atordoada. O que havia acontecido? Quanto tempo tinha ficado naquele estado? Tentou relembrar os fatos e não sabia como tudo se dera. Sabia apenas que, de uma hora para outra, era como se um buraco abrisse em si própria, formando uma grande fenda, dentro e fora dela, um vácuo com o qual ela se confundia.” (PV, 45) Nesses momentos de vazio, de “profundo apartar-se de si”, Ponciá Vicêncio se perdia nos domínios da memória: “Às vezes, era um recordar feito de tão dolorosas, de tão amargas lembranças, que lágrimas corriam sobre o seu rosto; outras vezes, eram tão doces, tão amenas as recordações que de seus lábios surgiam sorrisos e risos” (PV, 92). Através desses momentos, o leitor se vê envolvido em um processo de construção da história através da busca por vestígios similar àquele descrito por Conceição ao falar de sua escrita. Flávia Araújo considera que essa escolha estilística resulta “em um novo olhar sobre a história, que é ao mesmo tempo vivida e rememorada: um olhar que desconstrói a linearidade e a fixidez dos processos de formação identitária vivenciados pela protagonista” (ARAÚJO, 2007:78). Podemos relacionar a questão da identidade em Ponciá Vicêncio com as discussões elaboradas no capítulo 1, principalmente em torno do conceito de identificação de Stuart Hall. No romance, verifica-se o aspecto fragmentado, condicional da identidade, que é trabalhada enquanto processo e não como dado estanque, essencial. Esse caráter de fragmentação torna-se ainda mais evidente ao considerarmos a questão da diáspora africana, presente em Ponciá. Nesse sentido, nossa 34 análise do romance se fundamenta na noção de identidade diaspórica, associando as idéias de Stuart Hall ao conceito de diáspora desenvolvido por Paul Gilroy. Segundo Gilroy, o novo conceito de diáspora abandona a idéia antiga de uma “dispersão catastrófica mas simples, que possui um momento original identificável e reversível”, ao considerar que “a alienação e o estranhamento cultural são capazes de conferir criatividade e de gerar prazer, assim como de acabar com a
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