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1 INTRODUÇÃO Carolina Maria de Jesus foi uma mulher negra, escritora, semianalfabeta e catadora de papel que residia em um barraco na antiga favela do Canindé, situada na cidade de São Paulo, às margens do Rio 1 Doutora em Direito pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Mestre em Direito pela UFPR. Professora dos Cursos de Graduação e dos Programas de Mestrado da Universidade Federal do Rio Grande (FURG) e da Fundação Escola Superior do Ministério Público (FMP-RS). Porto Alegre (RS), Brasil. ORCID: https://orcid.org/0000-0001-9366-9237. CV Lattes: http://lattes.cnpq.br/1275535624435246. E-mail: fabiana7778@hotmail.com 2 Graduanda em Direito na Fundação Escola Superior do Ministério Público (FMP-RS). Porto Alegre (RS), Brasil. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-0428-6339. CV Lattes: http://lattes.cnpq.br/9927270332100124. E-mail: flavia.dallagnol@hotmail.com. ANAMORPHOSIS – Revista Internacional de Direito e Literatura, v. 6, n. 2, p. 511-527 512 Tietê. Seu diário que posteriormente deu origem à obra literária Quarto de Despejo: diário de uma favelada refletia um cotidiano de fome, pobreza e racismo em pleno período de euforia industrial devido ao projeto nacional desenvolvimentista de Juscelino Kubitschek. Os relatos de Carolina receberam visibilidade em 1958 quando o jornalista Audálio Dantas publicou alguns fragmentos no jornal Folha da Manhã e na revista O Cruzeiro. Em 1960, o livro Quarto de despejo foi lançado pela Editora Francisco Alves, tornando-se uma obra internacionalmente reconhecida antes mesmo do início da globalização. Carolina Maria de Jesus frequentou a escola tão somente até o segundo ano do ensino fundamental, e, por isso, a obra apresenta uma linguagem, muitas vezes contrária à gramática, “mas que por isso mesmo traduz com realismo a forma de o povo enxergar e expressar seu mundo” (Jesus, 2014). Carolina representa, portanto, uma contra-voz que questiona, por meio de um discurso literário próprio, um contexto social de subalternização e vulnerabilidade. Por meio dessa análise, busca-se demonstrar como os impactos do colonialismo atuaram na vida e obra da escritora Carolina Maria de Jesus e de que forma as intersecções entre gênero, raça e classe social conduziram-na a uma vida de privações e segregação. O enfoque será dado em relação à relevância do papel assumido pela personagem ao denunciar a realidade social da mulher negra periférica na década de 1960, através da obra literária Quarto de Despejo. A partir disso, à luz da literatura feminista, pretende-se abordar a importância dos estudos subalternos para contemplar as pautas heterogêneas e específicas dos grupos de mulheres historicamente marginalizados. Para tanto, justifica-se esta investigação com base na tentativa de mostrar que o Direito pode ser pensado para além da normatização dogmática de cunho procedimental, e de certo modo alheia à realidade brasileira, para propor novos paradigmas ou relações, através, inclusive, da própria literatura. Nesse sentido, procura-se demonstrar a relevância dos estudos de direito e literatura para contemplar as múltiplas realidades sociais e suas singularidades, visto que lógica que permeia o Direito muitas vezes conduz a um cenário superinstitucionalizado e, SPAREMBERGER; OLIVEIRA | Colonialidade e feminismo subalterno... 513 consequentemente, alheio à justiça e às necessidades das pessoas reais (Suárez Llanos, 2017, p. 351). Essa lógica linear e ortodoxa da ciência jurídica, difundida essencialmente pelo paradigma positivista que influenciou fortemente o meio científico entre os séculos XVIII ao XX, resultou em um afastamento do que deveria caracterizar o objeto principal do Direito: as relações humanas intersubjetivas (Siqueira, 2011, p. 25). Com efeito, pode-se dizer que “o Direito forçou as histórias de pessoas reais e seus anseios pela justiça em conceitos imparciais, silenciando especialmente as das mais vulneráveis” (Suárez Llanos, 2017, p. 349). É justamente enquanto uma crítica ao formalismo jurídico que se estrutura o Law and Literature Movement no meio científico norte- americano dos anos 1970, sendo a publicação da obra The Legal Imagination de James Boyd White um divisor de águas nesse contexto (Trindade e Bernsts, 2017, p. 227). Nesse mesmo sentido, é o que dispõe Ada Bogliolo Piancastelli de Siqueira: A centralização do direito no positivismo kelseniano levou à redução gramatical de seus enunciados e à análise estritamente sintática e semântica de suas normas, tornando-o incapaz de atender às demandas sociais postas ao direito. Como resposta a essa insuficiência do reducionismo positivista, o movimento Law and Literature proporcionou uma miragem crítica e inovadora capaz de construir alternativas teóricas para o direito, acusando seus limites, incompletudes e contradições (Siqueira, 2011, p. 36). De fato, a literatura surge enquanto um instrumento oportuno para repensar a conjuntura dogmática e de neutralidade do Direito, uma vez que se constitui como o oposto disso: “aberta, dúctil, incerta, sonhadora e busca representações imaginárias que abrem um presente mais atraente, mais justo e melhor.” (Suárez Llanos, 2017, p. 351). Além disso, a criação artístico-literária “permite apreender as tensões que marcam a dinâmica social do Direito com mais força do que podem fazer as teorias jurídicas ou análises sociológicas”, uma vez que apresenta as condições de sentido para as ações e os juízos de valor como elementos essencialmente imbricados (Ghirardi, 2016, p. 56). Através de um exercício de alteridade, a literatura é capaz de pontuar questões específicas e subjetivas que outrora seriam inacessíveis ANAMORPHOSIS – Revista Internacional de Direito e Literatura, v. 6, n. 2, p. 511-527 514 ao agente do direito (Siqueira, 2011, p. 41), trazendo um viés mais sensibilizador e ao mesmo tempo mais crítico das relações humanas. Por esse ângulo, uma das principais contribuições do imaginário literário ao direito se firma a partir de uma ideia de “subversão crítica”, ou seja, a literatura, por muitas vezes, dá voz aos oprimidos, explorando o avesso e o não dito das construções jurídicas (Ost, 2004, p. 25-26). É o caso da obra em análise: classificada como testemunho ou como literatura-verdade, Quarto de despejo desempenha um papel essencial ao denunciar a realidade de populações deixadas à margem da estrutura social e que o Direito, por si só, não se mostrou capaz de protegê-las adequadamente. Nesse caso, a relação entre direito e literatura efetivamente propicia desvelamentos sobre a natureza humana e a vida social e “auxilia a compreender de linguagens assimétricas, ocultas e vozes silenciosas que a obra literária deixa transparecer” (Bentes, 2016, p. 152). Sendo assim, por meio do método analético de Dussel, optou-se por priorizar a construção dialógica da crítica a partir do reconhecimento da outridade, da prática da alteridade e da execução de uma teoria da libertação que possibilite, enfim, a superação da dicotomia “opressor vs. oprimido”. 2 CAROLINA MARIA DE JESUS: A REALIDADE A PARTIR DO SEU LUGAR Para Patricia Hill Collins (2019, p. 61), a ideia de que “lugar de fala” tem a ver com experiências ou posicionamentos individuais não é a melhor forma de definição de tal categoria. Segundo esta autora, quando se utiliza da expressão “lugar de fala”: não estamos falando necessariamente de experiências de indivíduos, mas das condições sociais que permitem ou não que esses grupos acessem lugares de cidadania. “Seria, principalmente, um debate estrutural. Não se trataria de afirmar as experiências individuais, mas de entender como o lugar social que certos grupos ocupam restringem oportunidades” (Collins, 2019, p. 61). Este também é o posicionamento de Djamila Ribeiro na sua obra O que é lugar de fala?, segundo ela, faz-se necessário entender que grupos sociais não como um amontoado de indivíduos, mas como individualidades em sua própria realidade, de modo que se alcance a reflexão de que indivíduos pertencentes a determinados grupos partilham SPAREMBERGER; OLIVEIRA| Colonialidade e feminismo subalterno... 515 experiências similares. Isto significa para a autora falar de direito à existência digna, à voz, à visibilidade, fala-se na verdade de lócus social, de como esse lugar marginal imposto a determinados grupos dificulta a possibilidade de transcendência. De acordo com ela, “absolutamente nada tem a ver com uma visão essencialista de que somente o negro pode falar sobre racismo, por exemplo.” (Ribeiro, 2019, p. 64). É nessa conjunção e a partir da subjetividade da sua própria experiência que, Carolina Maria de Jesus se impõe como “sujeito-mulher- negra” e se auto-representa em sua obra, tomando o lugar da escrita, em contraponto ao histórico de representação estereotipada da mulher negra na literatura brasileira (Evaristo, 2005, p. 54). De acordo com Raffaela Fernandez (2015), a autobiografia é basilar para as criações literárias de Carolina, visto que a escritora, ao se apoiar sobre si mesma, reconstitui sua memória e seu cotidiano, transmitindo a concretude de sua escrita. Nesse sentido: Carolina de Jesus, enquanto escritora constrói-se como uma personagem autodidata, isto é, suas narrativas mostram como ela adquiriu conhecimento sobre as coisas “do mundo da vida” conforme foi sendo absorvida pelas palavras, pela linguagem, pelas leituras, e como ela própria está inserida na linguagem, sentia-se presa à matriz do conhecimento que precisa ser colocado no papel para sanar as perturbadoras, mas esclarecedoras, ideias (Fernandez, 2015, p. 291). Com efeito, Quarto de despejo, enquanto instrumento proposital de denúncia, retrata um cotidiano de sofrimento que coexiste com o momento histórico de desenvolvimento nacional, durante o governo de Juscelino Kubitschek. O progresso econômico dos Anos Dourados e da construção de Brasília acabaram por ocultar a existência de uma desigualdade social cada vez mais crescente no país. Carolina Maria de Jesus se mostra consciente quanto às questões de injustiça social e ao oportunismo das figuras políticas em relação à vulnerabilidade do povo da favela: 15 de maio. [...] Os políticos só aparecem aqui nas épocas eleitoraes. O senhor Cantidio Sampaio quando era vereador em 1953 passava os domingos aqui na favela. Ele era tão agradável. Tomava nosso café, bebia nas nossas xícaras. Ele nos dirigia as suas frases de viludo. Brincava com nossas crianças. Deixou boas impressões por aqui e quando candidatou-se a deputado venceu. Mas na Camara dos Deputados não ANAMORPHOSIS – Revista Internacional de Direito e Literatura, v. 6, n. 2, p. 511-527 516 criou um progeto para beneficiar o favelado. Não nos visitou mais. ...Eu classifico São Paulo assim: O Palacio é a sala de visitas. A Prefeitura é a sala de jantar e a cidade é o jardim. E a favela é o quintal onde jogam os lixos (Jesus, 2014, p. 32). Observa-se que a obra de Carolina, portanto, não é restrita ao seu espaço. Ao contrário, relaciona a vida da favela com o macrossistema da cidade, ilustrando a lógica de exploração daqueles que detém o poder (Martins, 2018, p.158). Nesse mesmo sentido, a autora metaforicamente se refere à cidade como “sala de visitas”, onde a elite se beneficia de uma estrutura colonial firmada por um passado escravocrata, enquanto a favela configura o “quarto de despejo”, marcado pela fome e pela miséria (Jesus, 2014, p. 37). A fome, por sua vez, é uma temática tratada com exaustão pela autora, que, na condição de mãe solteira, se encontra inúmeras vezes sem os recursos necessários para custear a sua própria alimentação e de seus filhos. O cotidiano do diário é representado, majoritariamente, pela busca por comida nos lixos e a partir do pouco dinheiro que recebe catando papéis e metais. Para Carolina de Jesus, a fome representa a escravidão do seu tempo (Jesus, 2014, p. 32) e em diversas passagens do livro considera o suicídio como algo presente. Ademais, Carolina Maria de Jesus reconhece estar inserida em um contexto onde a superioridade do homem branco é constantemente afirmada. Ao mesmo tempo, a autora rejeita a justificação do racismo e expõe que sente orgulho de sua pele negra em um trecho da obra que, por si só, já é suficiente para representar a magnitude e a força de tais relatos: 16 de junho [...] Eu escrevia peças e apresentava aos diretores de circos. Eles respondia-me: - É pena você ser preta. Esquecendo eles que eu adoro a minha pele negra, e o meu cabelo rustico. Eu até acho o cabelo de negro mais iducado do que o cabelo de branco. Porque o cabelo de preto onde põe, fica. É obediente. E o cabelo de branco, é só dar um movimento na cabeça ele já sai do lugar. É indisciplinado. Se é que existe reincarnações, eu quero voltar sempre preta. [...] O branco diz que é superior. Mas que superioridade apresenta o branco? Se o negro bebe pinga, o branco bebe. A enfermidade que atinge o preto, atinge o branco. Se o branco sente fome, o negro também. A natureza não seleciona ninguém (Jesus, 2014, p. 64 e 65). SPAREMBERGER; OLIVEIRA | Colonialidade e feminismo subalterno... 517 Convém salientar, inclusive, que Carolina Maria de Jesus foi mãe solteira por escolha própria, referindo em seus relatos que preferia dedicar sua vida aos filhos em detrimento de qualquer companheiro. Em todos os casos, a autora representa um forte papel social, que, além de enfrentar o descaso governamental, a fome e o racismo, se depara claramente com uma situação de gênero, visto que se encontrava na condição de mãe solteira, vivendo abaixo da linha da pobreza em uma sociedade que, ao mesmo tempo em que alimenta a imagem do homem provedor, resiste à ideia de responsabilidade masculina na criação dos filhos. Com o sucesso de Quarto de despejo, Carolina Maria de Jesus conseguiu sair da miséria e da periferia. Apesar do sucesso e reconhecimento internacional, foi renegada por uma parcela significativa da elite literária, traduzindo a questão atual de não-pertencimento da mulher negra. Carolina Maria de Jesus morre em 1977, vítima de uma crise de insuficiência respiratória. O legado de Carolina Maria de Jesus enquanto uma das escritoras mais importantes no país se mostra relevante atualmente no contexto político e social, visto que, “Quarto de despejo não é um livro de ontem, é de hoje. Os quartos de despejo, multiplicados, estão transbordando” (Dantas, 2014). 3 O FEMINISMO SUBALTERNO Muitos pensadores provenientes de diversas áreas refletem sobre a colonização como um grande evento prolongado e de muitas rupturas e não como uma etapa histórica já superada. A colonização não diz respeito apenas à administração colonial direta sobre determinadas áreas do mundo, mas também a uma lógica de dominação, exploração e controle que inclui a dimensão do conhecimento. Nesse sentido, fala-se em colonialidade e não apenas em colonialismo (Sparemberger e Damazio, 2016, p. 3). A palavra colonialidade é empregada para chamar atenção sobre o lado obscuro da modernidade, e, por isso, fala-se em modernidade/colonialidade. A retórica da modernidade e suas ideias pretensamente universais, tais como cristianismo, Estado, democracia e mercado, permitiu a perpetuação da lógica da colonialidade, a partir das ideias de dominação, controle, exploração, dispensabilidade de vidas ANAMORPHOSIS – Revista Internacional de Direito e Literatura, v. 6, n. 2, p. 511-527 518 humanas, subalternização do saberes dos povos colonizados, entre outros (Mignolo, 2008, p. 293). A colonialidade se sustentou e continua a se sustentar, portanto, a partir da construção do imaginário epistêmico da universalidade. Em nome de uma pretensa racionalidade universal foi necessário o tráfico de escravos, a exploração dos indígenas e a expropriação de suas terras. Ou seja, a retórica positiva da modernidade justifica a lógica destrutiva da colonialidade (Sparemberger e Damazio, 2016, p. 4). Se por um lado a colonialidade é a face invisível da modernidade é também, por outro lado, a energia que gera a decolonialidade, cujo processo epistemológico consiste principalmente em expor a lógica da colonialidade que se estabelece apartir da universalidade epistêmica. Tal lógica colonial se transfere diretamente ao âmbito da economia, da política, do direito e das questões de gênero, raça e classe social. Assim, os estudos subalternos visam combater uma epistemologia colonialista que, por meio do discurso da universalidade, legitima o conhecimento eurocêntrico como único e dominante ao mesmo tempo em que estimula o silenciamento e invisibilidade de povos e grupos historicamente subalternizados. Nesse mesmo sentido, no início da década de 1980, o feminismo subalterno ou feminismo terceiro-mundista surgiu com o fim de ressignificar a lógica proposta pelo feminismo hegemônico/ocidental cujos objetivos não contemplavam a realidade das mulheres que não se encaixassem no padrão branco, heterossexual, ocidental e de classe média. Era comum que teóricas feministas ocidentais se debruçassem sobre a mulher subalterna tão somente enquanto objeto de estudo, por meio de um viés paternal e até imperialista (Mohanty, 2008, p. 18). Denomina-se tal fenômeno por colonização discursiva, onde a única epistemologia válida é aquela produzida pela academia dominante. Stuart Hall, em sua célebre obra A identidade cultural na pós- modernidade nos mostra que o movimento feminista emergiu sustentando o questionamento primordial da noção de “humanidade” universal e substituindo-a pela questão da diferença sexual, o que ajudou a desestabilizar o conceito de sujeito cartesiano (Hall, 1992, p. 46). Todavia, o próprio feminismo hegemônico buscou englobar todas as SPAREMBERGER; OLIVEIRA | Colonialidade e feminismo subalterno... 519 mulheres em um conceito universal, enquanto vítimas de um mesmo sistema, na tentativa de legitimar, de forma equivocada, a ideia de global sisterhood. A partir disso, Chandra Mohanty sustentou a necessidade de um feminismo de terceiro mundo que atentasse para a heterogeneidade e para as especificidades das mulheres subalternas, afirmando-as no seu contexto histórico e cultural ao invés de tão somente reduzi-las a um grupo unificado e destituído de poder: Cualquier discusión sobre la construcción intelectual y política de las “feminismos del tercer mundo” debe tratar dos proyectos simultáneos: la critica interna de los feminismos hegemónicos de “Occidente”, y la formulación de intereses y estrategias feministas basados em la autonomía, geografía, historia y cultura. [...] Aunque las suposiciones de los feminismos radical y liberal que constituyen a las mujeres como una clase sexual puedan dilucidar (aún inadecuadamente) la autonomia de luchas particulares de mujeres em Occidente, la aplicación de la noción de mujeres como categoría homogénea a las mujeres en el tercer mundo coloniza y apropia las pluralidades de la ubicación simultánea de diferentes grupos de mujeres em marcos de referencia de clase y étnicos, y al harcerlo finalmente les roba su agencia histórica y política (Mohanty, 2008, p. 1 e 18). É por isso que, ao tratar de feminismo subalterno, é indispensável frisar a existência de um amplo espectro de caracterizações que possui como ponto de partida determinadas marcações políticas, étnico-raciais e culturais, e que, portanto, irá englobar inúmeros movimentos, tais como o feminismo pós-colonial, feminismo terceiro-mundista, feminismo negro, feminismo latino-americano, feminismo indígena, feminismo africano, feminismo islâmico, entre outros (Ballestrin, 2017, p. 1040). Somente ao contextualizar os grupos subalternos de mulheres a partir de uma perspectiva socio-histórica, analisando as contradições de cada situação em específico, pode-se propor estratégias efetivas de enfrentamento e resistência, visto que a categoria mulher se constrói em uma variedade de contextos políticos que costumam existir de forma simultânea (Mohanty, 2008, p. 12). Tendo em vista que o discurso da universalidade das pautas proposto pelas feministas ocidentais é insuficiente para compreender a realidade das mulheres subalternas, desponta juntamente com o ANAMORPHOSIS – Revista Internacional de Direito e Literatura, v. 6, n. 2, p. 511-527 520 feminismo terceiro-mundista a relevância de se tratar da questão da interseccionalidade, isto é, pensar gênero juntamente com as questões de raça, classe, sexualidade e nacionalidade. Isso porque as formas de opressão não operam em sua singularidade, mas se entrecruzam umas com as outras (Kilomba, 2019, p. 99). 4 O FEMINISMO NEGRO E A REALIDADE DA MULHER NEGRA NO BRASIL Segundo Marques (2016, p. 53), “a lógica da colonialidade ao realizar o apagamento dos modos de vida dos/as colonizados/as e a transformação destes/as a partir da colonialidade do gênero, são obtidos efeitos que se prolongam no tempo”. Para Maria Lugones (2008) citada por Marques (2016) problematizar, qual seja, a indiferença dos homens frente à violência sistemática operada pelo Estado, elo patriarcado e perpetuada por eles mesmos, e que é imposta sobre as mulheres de cor, ou seja, sobre as mulheres não-brancas, vítimas da colonialidade do poder e do gênero, mulheres estas que têm criticado o feminismo hegemônico devido a este buscar uma “mulher universal” Na obra Quem tem medo do feminismo negro?, Djamila Ribeiro (2018, p. 82) reafirma a questão da interseccionalidade a partir do conceito primordial cunhado em 1989 por Kimberlé Crenshaw3 e nos mostra que “raça, classe e gênero não podem ser categorias pensadas de forma isolada, porque são indissociáveis”. Como anteriormente visto, o próprio movimento feminista se mostrou resistente à inclusão de uma agenda que tratasse da questão racial, em nome de um discurso de universalidade da opressão patriarcal e na tentativa de manter uma suposta unidade entre as pautas feministas. Todavia, ao falar de feminismo e luta das mulheres é mais do que necessário incluir a raça como questão central na hierarquia de gênero, já que, na intersecção entre “mulher” e “negro” existe uma ausência onde deveria estar a “mulher negra”, que não está contemplada em nenhuma dessas categorias 3 A interseccionalidade é uma conceituação do problema que busca capturar as consequências estruturais e dinâmicas da interação entre dois ou mais eixos da subordinação. Ela trata especificamente da forma pela qual o racismo, o patriarcalismo, a opressão de classe e outros sistemas discriminatórios criam desigualdades básicas que estruturam as posições relativas de mulheres, raças, etnias, classes e outras (Crenshaw, p. 177, 2002). SPAREMBERGER; OLIVEIRA | Colonialidade e feminismo subalterno... 521 construídas pela lógica da modernidade, a partir de termos “homogêneos, atomizados, separáveis e constituídos dicotomicamente” (Lugones, 2014, p. 942). É em razão dessa imprescindibilidade de pensar o feminismo de maneira interseccional, que Sueli Carneiro (2003) fala sobre a necessidade de questionar: “De que mulheres estamos falando?”, ao tratarmos de determinadas pautas feministas, já que a realidade vivenciada por mulheres brancas não corresponde necessariamente à realidade enfrentada por mulheres negras. Quando as feministas hegemônicas lutaram pelo direito das mulheres casadas trabalharem fora de casa, por exemplo, apenas os direitos das mulheres brancas estavam em foco, tendo em vista que as mulheres negras já se encontravam inseridas no mercado de trabalho, buscando a sua sobrevivência e a de sua família e reivindicando melhores condições de labor tanto no cenário rural quanto no cenário urbano. Isso corresponde a um recorte decorrente único e exclusivamente da questão racial e, inclusive, das reminiscências da escravidão legitimadas pelas políticas ocidentais durante séculos. Ao adentrar no âmbito nacional, portanto, cumpre destacar que o desenvolvimento econômico brasileiro foi historicamente calcado na exploração de negros e indígenas, obedecendo a uma lógica de dominação colonialista, cujas consequências contribuíram para o desenvolvimento de um racismo estrutural e estruturante que, por seu turno, representa um peso significativo nas relações sociais e institucionais até hoje. A análise de Sandra Maria MarinhoSiqueira reflete esse entendimento: O escravo negro era denominado de peça, seu valor era determinado pela idade, sexo e robustez e os poucos que chegavam à velhice ou aqueles que se tornavam inválidos, quando eram alforriados pelos latifundiários, ampliavam as fileiras dos famintos e miseráveis. Isso nos leva à certeza de que o racismo foi socialmente produzido, criando formas de hierarquias na organização social (Siqueira, 2018, p. 62). A abolição da escravatura pela Lei 3.353 de 1988 não foi sinônimo de liberdade aos escravos, visto que a lei não previa quaisquer direitos protetivos, deixando-os completamente vulneráveis e marginalizados na sociedade. São comuns os relatos de que, mesmo após a abolição, alguns libertos permaneciam prestando serviços e mão-de-obra aos seus senhores, visto que as oportunidades e possibilidades de iniciar uma vida ANAMORPHOSIS – Revista Internacional de Direito e Literatura, v. 6, n. 2, p. 511-527 522 nova e digna eram praticamente nulas. É com base nisso que Florestan Fernandes entende a abolição da escravidão enquanto uma “farsa histórica”, diante do fato de que, após a Lei Áurea, o racismo passou a ser institucionalizado no país (Fernandes, 2017, p. 77). Para ilustrar isso, é mister tratarmos dos efeitos do chamado “mito da democracia racial”, cujo discurso produziu uma identidade nacional baseada na ideia da miscigenação enquanto um acontecimento benéfico e reflexo da ampla diversidade cultural brasileira. Todavia, esse mesmo discurso, de acordo com Sandra Maria Marinho Siqueira, “ocultou as práticas violentas e abusivas de estupros contra as mulheres indígenas e negras durante todo o período colonial”, e, “produziu no imaginário das mulheres negras que elas eram parte das famílias para as quais trabalhavam” gerando “uma amnésia ideológica, uma brutal política de desenraizamento e dessocialização para despersonalizar e descaracterizar as negras e negros” (Siqueira, 2018, p. 66). A realidade da mulher negra, portanto, deve ser analisada sob outro foco, em face da existência de um abismo racial ainda não superado no Brasil. Nesse sentido, importa ressaltar que a população feminina negra, mesmo exercendo a função idêntica que mulheres brancas, recebe remuneração inferior, ocupando posições mais precárias e trabalhos domésticos, terceirizados ou informais sem a devida proteção legal (Siqueira, 2018, p. 68). Esse viés racial implícito também corrobora com a questão da desigualdade de acesso e de tratamento perante os serviços institucionais. No que diz respeito à saúde, por exemplo, os índices de mortalidade materna de mulheres negras em estado puerperal são diretamente relacionados à dificuldade de acesso aos serviços de saúde, à baixa qualidade do atendimento e à falta de ações e capacitação de profissionais de saúde voltadas para os riscos aos quais as mulheres negras estão expostas (Geledés, 2015). Ainda, de acordo com estudo realizado pelo Ipea - Instituto de Pesquisa Econômica e Aplicada, a taxa de homicídios de mulheres negras aumentou 29,9% entre 2007 e 2017, enquanto a taxa das mulheres não negras cresceu 1,6%. O instituto de pesquisa mostra que 28,5% dos homicídios de mulheres ocorreram dentro de casa, o que se SPAREMBERGER; OLIVEIRA | Colonialidade e feminismo subalterno... 523 relaciona com possíveis casos de feminicídio e violência doméstica (Lisboa, 2019). Ademais, a subalternização da mulher negra também deve ser examinada sob a ótica do silenciamento, visto que, “mesmo que na condição de sujeitos, as mulheres negras não estão presentes nos anais da ‘história oficial’, sendo que suas múltiplas e vastas contribuições permanecem fora dos livros didáticos e do imaginário da população” (Schumaher e Vital Brazil, 2006, p. 271). É o caso, por exemplo, de Tereza de Benguela, chefe do Quilombo de Quaritetê, onde, por meio de uma organização rígida e disciplinar fundada no parlamentarismo, resistiu durante duas décadas às investidas das tropas do governo. Percebe-se, portanto, a existência de um desconhecimento geral em relação às histórias das mulheres negras já que a participação ativa destas nos episódios históricos brasileiros foi, desde sempre, vista como imprópria, e, consequentemente, silenciada. O longo repertório de resistência da mulher negra também é significativamente ignorado, mesmo que tais articulações tenham se feito presente desde as primeiras organizações quilombolas até o desenvolvimento de um pensamento feminista negro, em meados da década de 1980. Logo, é evidente que o rastro da estrutura colonial calcada e desenvolvida por uma economia escravocrata e patriarcal se perpetua no imaginário social, adquirindo novos contornos em uma ordem que se denomina como democrática e igualitária, mas, que, todavia, permanece mantendo incólumes as relações gênero segundo a cor ou raça (Carneiro, 2003). É por isso que insistir em discutir sobre a atuação, presença e representatividade da mulher negra nos mais diversos espaços é uma tarefa provocadora, e, ao mesmo tempo, necessária para o desenvolvimento de uma consciência crítica que permita questionar os moldes em que a atual ordem social se fortaleceu ao longo dos séculos. 5 CONCLUSÃO Em que pese Carolina Maria de Jesus tenha sido uma mulher que resistiu à imposição colonial, analisando de maneira crítica seu lugar no mundo, ainda assim, teve a vida determinada pelas consequências de uma estrutura decorrente do colonialismo. As condições de vida da autora ANAMORPHOSIS – Revista Internacional de Direito e Literatura, v. 6, n. 2, p. 511-527 524 foram fortemente marcadas por diversas opressões relativas à raça, gênero e classe social, que, por seu turno, em nenhum momento se apresentaram de forma dissociada. A vida e obra de Carolina Maria de Jesus coadunam, portanto, com a necessidade de pensar a categoria “mulher” a partir de um viés interseccional, dada a variedade de opressões e especificidades que existem e se relacionam de forma simultânea. É por isso que o feminismo terceiro mundista buscou tratar da importância de analisar a realidade das mulheres não brancas e vítimas da colonialidade de gênero a partir de uma perspectiva que contemple suas questões históricas, sociais e culturais, dissociando-as da ideia de mulher hegemônica sustentada pela primeira onda feminista. O feminismo negro, nessa mesma lógica, traz a ideia de que tanto o impacto da opressão racial quanto da opressão de gênero, que operam simultaneamente, constitui uma forma de racismo única vivenciada pelas mulheres negras e racializadas (Kilomba, 2019, p. 99). Tais abordagens são possíveis e visíveis a partir da constatação de que as mulheres negras e pobres continuam na base da pirâmide social e as políticas públicas de reparação não têm sido suficientes para reverter esse quadro. É por isso que o racismo deve ser analisado enquanto uma dimensão central e crucial da experiência das mulheres (Kilomba, 2019, p. 103). Ademais, convém destacar que a utilização da literatura para embasar um fator social que se interliga ao contexto dos direitos sociais e humanos não foi uma escolha arbitrária. Isso porque, a literatura possibilita, a partir do viés decolonial, a desconstrução do status quo problemático, visando desmascarar e desatar as amarras jurídicas e políticas que se mostram supostamente neutras e não valorativas. Com efeito, a relação entre direito e literatura na perspectiva de Quarto de despejo se mostra relevante na medida em que a obra revela uma realidade esquecida e silenciada pela ordem totalizante e hegemônica. Nesse caso, portanto, pode-se dizer que a literatura adquire um viés de crítica e denúncia das crassas desigualdades estruturadas a partir do colonialismo e que permeiam o Brasil até os dias de hoje. Sendo assim, a obra de Carolina Maria de Jesus opera, ao romper com os estigmas dominantes e universais construído pelas instâncias culturais do poder, ao encontro das premissas decoloniais de consideração SPAREMBERGER; OLIVEIRA | Colonialidade e feminismo subalterno... 525 de saberes subalternizados, alémde utilizar sua escrita como instrumento de denúncia de uma realidade vulnerabilizada em decorrência de uma multiplicidade de opressões, o que coincide com as principais premissas do feminismo subalterno. REFERÊNCIAS BALLESTRIN, Luciana Maria de Aragão. Feminismos subalternos. Revista Estudos Feministas, v. 25, n.3, p. 1035-1054, set./dez. 2017. BENTES, Hilda Helena Soares. A “via crucis do corpo” da mulher: trajetos de violência na literatura brasileira sob a ótica dos direitos humanos das mulheres. Anamorphosis – Revista Internacional de Direito e Literatura, Porto Alegre, RDL, v. 2, n. 1, p. 147-167, A obra Quarto de despejo: diário de uma favelada foi escrito por Carolina Maria de Jesus, neta de escravos, que nasceu em 14 de março de 1914, em Sacramento, estado de Minas Gerais, cidade onde viveu sua infância e adolescência. Toda educação escolar de Carolina resume-se há apenas dois anos em que freqüentou o Colégio Allan Kardec, de Sacramento, instituição financiada por Maria Leite Monteiro de Barros, para quem a mãe de Carolina lavava roupas e que se dispôs a contribuir para a educação da menina. Foi o jovem jornalista Audálio Dantas, que na época da publicação do livro de Carolina destacou-se pela prática do jornalismo-denúncia, quem “descobriu” os escritos da autora, em 1958, o que contribuiu para a notabilidade da carreia do próprio Dantas. Há que se dizer que as aparições da escritora em jornais remontam a 1941, na Folha da Manhã. No entanto, o reconhecimento nacional e internacional ocorreu depois do contato com o 1 Mestre pela PUC-SP Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, em abril de 2008. Este texto é um resumo de parte de um dos capítulos da minha dissertação de mestrado (COSTA, 2008). 1 ANPUH – XXV SIMPÓSIO NACIONAL DE HISTÓRIA – Fortaleza, 2009. jornalista, que inicialmente fez publicações dos textos de Maria Carolina também em jornais onde ele trabalhava, mas o sucesso da escritora aconteceu realmente com Quarto de despejo. O encontro dos dois ocorreu quando Dantas visitou a favela, onde Carolina morava, com o objetivo de fazer uma reportagem sobre os favelados. Ele achou curioso ver Carolina gritando com alguns homens, que brincavam em um parquinho recém-inaugurado, dizendo que iria colocar os nomes deles em seu diário (LEVINE e MEIHY, 1994). Nas últimas décadas, os trabalhos de Carolina, assim como a vida da autora como um todo, têm alcançado visibilidade acadêmica, nos mais variados campos de pesquisa, após um período notável de esquecimento. É sobre esse silêncio em relação às obras de Carolina, em especial sobre Quarto de despejo..., que José Carlos Sebe Bom Meihy tem desenvolvido seus estudos desde a publicação de Cinderela negra: a saga de Carolina Maria de Jesus, em 1994, em parceria com o norte-americano Robert M. Levine. Segundo Meihy (1998), a entrada de Carolina no cenário nacional ocorreu em um momento estratégico, no qual a condição de vida da autora, narrada de forma tão intensa em seu diário, representava uma enorme discrepância em relação aos ideais de modernização e democratização vigentes no país naquele momento. Nesse sentido, trazer à tona modos de vida como os descritos em seu diário era confirmar a inviabilidade dos projetos de desenvolvimento do país. O presente texto procura dar ênfase à experiência de vida de Carolina, como mulher negra, chefe de família, mãe solteira de três filhos, catadora de lixo, semi-analfabeta e moradora da favela Canindé, uma das primeiras grandes favelas de São Paulo, onde hoje fica o campo da Portuguesa de Desportos. Carolina Maria de Jesus não foi uma feminista militante, embora em sua obra haja algo nas entrelinhas. De manhã eu estou sempre nervosa. Com medo de não arranjar dinheiro para comprar o que comer. Mas hoje é segunda-feira e tem muito papel na rua. (...) O senhor Manuel apareceu dizendo que quer casar-se comigo. Mas eu não quero porque já estou na maturidade. E depois, um homem não há de gostar de uma mulher que não pode passar sem ler. E que levanta para escrever. E que deita com lápis e papel debaixo do travesseiro. Por isso é que eu prefiro viver só para o meu ideal (JESUS, 2006:44). Fica claro pela primeira parte da citação que a principal preocupação de Carolina era a alimentação. Ela era só, sem emprego fixo e com três filhos, um de cada pai, para criar. Comer, para ela e sua família, dependia de encontrar papéis na rua, ou qualquer outra coisa 2 ANPUH – XXV SIMPÓSIO NACIONAL DE HISTÓRIA – Fortaleza, 2009. que pudesse ser trocada por dinheiro. Na falta do que vender, o jeito era apelar para os restos de comidas encontrados no lixo. Assim, o que era entulho e resto para muitos, era também a garantia de sobrevivência para outros. Carolina era conhecedora de que eram poucos aqueles que, no início da segunda metade do século XX, compreendiam os seus desejos de ler e escrever, uma vez que a sociedade de sua época reprovava tal comportamento. Os homens ainda reivindicavam para si, e somente para si, o direito de produzir o que “eles realmente” classificavam como literatura, na qual as mulheres apareciam apenas como objeto. Nessas narrativas eles atribuíam a elas personalidades e comportamentos que fantasiavam a seu bel prazer. Mesmo tendo consciência de que muitas mulheres já haviam adentrado no universo da escrita desde séculos passados, muitos de seus escritos ainda eram considerados como obras “menores”. Segundo críticos homens, esses escritos eram carregados de expressões íntimas que refletiam os “sentimentos e imagens femininas do mundo” diferente das produzidas por eles que visavam “objetivar e universalizar a visão de mundo” (PIZA, 1998:142). No entanto, a riqueza da composição feminina está justamente em sua pretensão de singularidade. Na verdade, a narrativa feminista inova no sentido de permitir ao sujeito feminino escrever sobre si mesmo. A citação seguinte revela a consciência de Carolina em relação à invisibilidade feminina: “Quando eu era menina o meu sonho era ser homem para defender o Brasil porque eu lia a História do Brasil e ficava sabendo que existia guerra. Só lia os nomes masculinos como defensor da pátria” (JESUS, 2006:48). Ela sabia que o caminho que escolhera era árduo, pois não conhecia registros de mulheres travando lutas e, conseqüentemente, escrevendo seus nomes na História. Aparentemente, todos os fatos estavam relacionados ao universo masculino. Nesse sentido, suas reflexões e percepções em relação à ausência feminina da História, infelizmente, apesar de todas as conquistas, são atuais. A luta pela inserção da mulher na História ainda é uma questão em debate. Quanto ao fato de ser sozinha, Carolina não se queixava e não via problema nisso. É possível encontrar em várias passagens de seu diário, a afirmação de sua preferência por viver só a se prestar ao mesmo papel das outras mulheres, que residiam na favela, que saíam para trabalhar, enquanto seus maridos permaneciam em casa, alguns ainda se achando no direito de espancá-las. Mesmo sendo casadas, suas vizinhas da favela eram as responsáveis pelo sustento do lar. É significativo considerar que, enquanto muitas mulheres a recriminavam por ela não ter marido, ela também possuía uma opinião formada a respeito daquelas que eram casadas e, de acordo com sua opinião, encontravam-se em uma situação tão ou mais precária 3 ANPUH – XXV SIMPÓSIO NACIONAL DE HISTÓRIA – Fortaleza, 2009. do que a sua: “As mulheres que eu vejo passar vão nas igrejas buscar pães para os filhos. Que o Frei Luiz lhes dá, enquanto os esposos permanecem debaixo das cobertas. Uns porque não encontraram emprego. Outros porque estão doentes. Outros porque embriagam-se” (JESUS, 2006: 34). Carolina questiona se há realmente uma vantagem em ter um homem dentro de casa que não colabora com nada, ao contrário, é uma boca a mais para ser alimentada por caridade da Igreja. Carolina alega que mesmo sem pai, conseguiu sustentar os filhos (...) meus filhos não são sustentados com pão de igreja. Enfrento qualquer espécie de trabalho para mantê-los. E elas, tem que mendigar eainda apanhar. Parece tambor. A noite enquanto elas pede socorro eu tranquilamente no meu barracão ouço valsa vienenses. Enquanto os esposos quebra as tabuas do barracão eu e meus filhos dormimos socegados. Não invejo as mulheres casadas da favela que levam vida de escravas indianas. Não casei e não estou descontente. Os que preferiu me eram soezes e as condições que eles me impunham eram horriveis (JESUS, 2006:14). A fala de Carolina, na citação acima, sugere uma grande proximidade com as conclusões de Bernardo (2003) que apontam para o fato de que para a mulher negra a matrifocalidade é vista a partir de uma perspectiva diferente da mulher branca. De modo que, para as primeiras, não é um sacrifício garantir a sobrevivência dos filhos como é para as últimas (BERNARDO, 2003:44). Entretanto é preciso considerar também que nem todas as mulheres negras que regem lares matrifocais vivem essa situação por escolha própria. Muitas são na verdade obrigadas a optar por este tipo de organização familiar, por diversas razões que vão desde o abandono do lar pelos companheiros até o fato de eles, muitas vezes, nem mesmo as terem assumido como esposas. Esse tipo de arranjo familiar para a mulher negra é muitas vezes visto como uma forma de preservar sua autonomia, como pôde ser percebido na fala de Carolina. A opção dela de não casar aliava-se ao desejo de manter o controle sobre a própria vida e de não precisar se subjugar aos homens como fazem as outras mulheres que moram na favela. Estou residindo na favela. Mas se Deus me ajudar hei de mudar daqui. Espero que os políticos estingue as favelas. Há os que prevalecem do meio em que vive, demonstram valentia para intimidar os fracos. Há casa que tem cinco filhos e velha é quem anda o dia inteiro pedindo esmola. Há as mulheres que os esposos adoece e elas no penado da enfermidade mantem o lar. Os esposos quando vê as esposas manter o lar, não saram nunca mais, (JESUS, 2006:18). Aqui é importante ressaltar que, de modo geral, o modelo de família predominante no Brasil e no ocidente como um todo designa ao marido, pai, a função de chefe e, 4 ANPUH – XXV SIMPÓSIO NACIONAL DE HISTÓRIA – Fortaleza, 2009. consequentemente, a responsabilidade pela manutenção da sobrevivência da mulher e dos filhos. No entanto, é preciso ressaltar que entre as famílias pobres esse modelo que elege o homem como principal responsável pelo sustento familiar não se enquadra. Segundo Woortmann (1987), entre as famílias pobres, o chefe é aquele que sustenta os membros do grupo ou possui a propriedade da casa. E, mesmo que os menos favorecidos reconheçam a existência do padrão dominante, eles, a seu modo, criam seus próprios arranjos familiares com base na estrutura de vida de cada família (WOORTMANN, 1987: 65), de modo que Carolina, mesmo sendo só, conhecia o modelo predominante, por isso censurava o fato dos homens permanecerem em casa enquanto as mulheres, mães de filhos adultos trabalham duro para sustentá-los. No caso dos filhos é preciso considerar que, de acordo com Woortmann (1987), quando ainda são crianças o tipo de relação que estabelecem com as mães dá-se no sentido vertical, de modo que elas não esperam que eles contribuam com a renda durante a infância, mas que em um tempo futuro quando chegarem à maturidade, possam ajudá-las. Quanto aos homens, a relação pode constituir-se no sentido horizontal, quando elas se encontram em uma situação de dependência em relação a eles ou na forma “toma lá dá cá”, com base no princípio de que poderão exercer certo poder sobre suas vidas ou do grupo familiar desde que também contribuam de algum modo com o subsídio doméstico (WOORTMANN, 1987:87-89). De tal modo, a fala da escritora, ao criticar a postura dos maridos que ficam em casa enquanto suas mulheres trabalham ou mendigam por comida e mesmo assim ainda possuem autoridade sobre elas, vai ao encontro da idéia elaborada por Woortmann (1987), no segundo capítulo do livro A família das mulheres (1987) intitulado O domínio doméstico: um terreiro onde o galo não canta. Nesse texto, o autor apresenta os resultados de uma pesquisa realizada por ele em uma invasão na cidade de Salvador – Bahia, na qual ele constatou que nas famílias pobres os homens só possuem poder de chefia se são responsáveis ou contribuem com a renda familiar. As mulheres reelaboraram o significado do modelo de família dominante, no qual a figura do homem está relacionada à chefia e, portanto, ele é responsável pelo sustento da mulher e filhos; logo, se eles não podem cuidar da sobrevivência do grupo, não podem “cantar de galo”, ou seja, não possuem voz ativa. Carolina, por ter esse mesmo pensamento em relação aos homens, quando algum aparecia oferecendo coisas em troca de sua companhia, ela sempre se esquivava, (...) O senhor Manoel chegou. Deu-me 80 cruzeiros, eu não quis pegar. Procurei as crianças para tomar banho. Ficaram alegres quando viu o senhor Manuel. Eu disse para o Senhor Manoel que ia passar a noite escrevendo. Ele despediu-se e disse: - 5 ANPUH – XXV SIMPÓSIO NACIONAL DE HISTÓRIA – Fortaleza, 2009. Até outro dia! Nossos olhares se encontraram e eu disse: - Vê se não volta mais aqui. Eu já estou velha. Não quero homens. Quero só os meus filhos (JESUS, 2006:91). Em outro momento, é seu vizinho quem lhe faz uma proposta, (...) fiquei pensando num preto que é meu vizinho. O senhor Euclides. Ele disse:- Dona Carolina, eu gosto muito da senhora. A senhora quer escrever muitos livros? – Oh, se quero! – Mas a senhora não tem quem te dê nada. Precisa trabalhar. – Eu preciso trabalhar e escrevo nas horas vagas. – Eu vejo que a sua vida é muito sacrificada. – Eu já estou habituada. – Se a senhora quiser ficar comigo, eu peço esmolas e te sustento. É de dinheiro que as mulheres gostam. E dinheiro eu arranjo para você. Eu não tenho ninguém que gosta de mim... (JESUS, 2006: 152). Ela não aceitou nenhuma das duas propostas. No primeiro caso, mesmo tendo o consentimento dos filhos, que se alegravam com a presença do senhor Manuel, ela não aceitou seu dinheiro e nem quis estar com ele. Na segunda proposta, o candidato a esposo de Carolina oferece a ela vida boa e a possibilidade de poder se dedicar à escrita de seus livros em troca de sua presença. No entanto, ela também não aceitou. Preferiu continuar como estava, apenas ela e seus filhos. Na verdade, o arranjo familiar vivenciado por Carolina, pensado a partir da perspectiva de Teresinha Bernardo (1998), remonta à definição de família negra que surgiu com o Projeto de Lei do Ventre Livre que resumia os membros desta organização a mãe e filhos. 7º... Providências para manter a integridade da família, estabelecendo que, no caso de libertação das escravas, os filhos menores de oito anos acompanharão suas mães (art. 6§ 6º) e ampliando-se a disposição do art. 2º da Lei nº 1695 de 15 de setembro de 1869 a qualquer caso de alienação ou transmissão (art. 6º § 11). ( GIACOMINI, 1983, p.15)2 Como os homens eram vistos pelo processo escravagista como principal força de trabalho, a possibilidade de conquistarem sua liberdade era menor do que a das mulheres. Da mesma forma, que elas tinham mais facilidade em conseguir emprego antes e depois do fim da abolição. De modo que, mesmo no período da industrialização, elas continuavam apresentando vantagens sobre eles. Além disso, elas contaram com oportunidades diversas de ingresso no mercado de trabalho informal como amas-de-leite, vendedoras, empregadas domésticas e outros (BERNARDO, 1998:. 61-63). Estes fatores ampliavam a possibilidade de exercerem a função de chefe famíliar, uma vez que tinham acesso mais fácil ao mercado de trabalho do que os homens. 2 Apud BERNARDO, 1998: 61. 6 ANPUH – XXV SIMPÓSIO NACIONAL DE HISTÓRIA – Fortaleza, 2009. A liberdade que as mulheres negras já possuíam na África, em razão de serem, em muitas regiões, responsáveis pela venda de produtos em feiras e por colaboração na subsistência do lar, ganhou maior relevância com o modelo de organização familiar estabelecido por lei no Brasil durante a escravidão. Esse arranjo,por sua vez, firmou-se nas primeiras décadas do século XX, como afirma Bernardo (1998), e ainda perdura nos dias de hoje (BERNARDO, 1998:61). Por meio do testemunho dado por dona Maria Puerta3 , contemporânea e amiga de Carolina, é possível perceber que os moradores da favela estranhavam o fato de ela “apesar de decente, viver sozinha, pois, no Canindé, as famílias tinham pai e mãe”. Carolina não se importava com o que os outros pensavam sobre ela. Vivia de acordo com sua vontade. Nem por isso aqueles que viviam a sua volta deixavam de cobrar dela uma postura diferente em relação ao matrimônio. Em uma conversa com um senhor que a observava escrever cercada de crianças pode-se perceber isto: “- seu marido onde trabalha? – não tenho marido, e nem quero! Uma senhora que estava me olhando escrever despediu-se. Pensei: Talvez ela não tenha apreciado a minha resposta” (JESUS, 2006:20). Às vezes as represálias vêm dos próprios filhos. Como no dia em que ela foi buscar umas tábuas que havia ganhado e pretendia fazer um quartinho para escrever e guardar seus livros, como ela tinha muita dificuldade para ajeitar a madeira na carrocinha, que tinha tomado emprestada, seu filho José Carlos, o qual, vendo o sofrimento da mãe, diz: “porque é que a senhora não casou? Agora a senhora tinha um homem para ajudar” (JESUS, 2006:78). Seus amores não foram poucos, tanto que cada filho é de um pai diferente, mas não se prendeu a nenhum dos amantes durante muito tempo. A idéia de casamento e família formada por pai e mãe presente no pensamento da sociedade não fazia parte do universo de Carolina. Ela e seus filhos eram uma família. É oportuno registrar que os lares matrifocais não são exclusivos das mulheres negras, como bem afirma Maria Odila Dias (1995), uma vez que mulheres brancas, negras e índias sozinhas já eram uma constante na cidade de São Paulo no século XIX. A autora acrescenta ainda cidades como Rio de Janeiro, Salvador e o arraial de Vila Rica É preciso considerar que, apesar de seu pouco tempo de estudo, Carolina conseguiu romper de maneira tímida as barreiras do analfabetismo por meio de leituras diárias. Era uma das poucas mulheres que sabiam ler e escrever na favela, por isso muitas vezes era 3 Testemunho pode ser encontrado em: LEVINE, R. e MEIRY, J. C.S. Cinderela negra: a saga de Carolina Maria de Jesus. Rio de Janeiro: UFRJ, 1994. 7 ANPUH – XXV SIMPÓSIO NACIONAL DE HISTÓRIA – Fortaleza, 2009. responsável pela discussão com outros moradores a respeito de notícias de jornal lidas por ela, em especial sobre política. Assim, pode-se constatar que o universo feminino de Carolina foi muito diferente do das outras escritoras contemporâneas a ela como Clarice Lispector, Cecília Meirelles e Raquel de Queiroz, para citar apenas alguns nomes. Apresentou disparidade até mesmo em relação às mulheres que como ela residiam na favela; não apenas pelo fato de ela ter escolhido viver só com os filhos e, aparentemente, ter conseguido proporcionar a eles uma vida melhor em comparação a das outras crianças que ali viviam. Acima de tudo por nunca ter se conformado, como ela mesma diz em várias passagens de seu diário, com o fato de ter que morar na favela. Foi por isso que ela nunca deixou de acreditar que escrever um livro a ajudaria a tirar os filhos daquele lugar. Carolina não desistiu, mesmo depois de ter tentado inúmeras vezes publicar seus escritos no Brasil, sem sucesso. Ela tentou também fazê-lo nos Estados Unidos, acreditando que lá seu trabalho seria reconhecido. Mas, como já foi dito anteriormente, o sonho só deixou de ser sonho quando ela conheceu Audálio Dantas. No entanto, é preciso relembrar que ela não abriu mão totalmente de sua autonomia, mesmo depois de tê-lo conhecido e de ter sido auxiliada por ele na publicação de algumas de suas obras. Foi tentando preservar sua liberdade que ela abriu mão da parceria com o jornalista, e tendo ou não tido sucesso, depois do arranjo desfeito, ela continuou dona de si.
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