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quarto de despejo 4 periodo

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1 INTRODUÇÃO
Carolina Maria de Jesus foi uma mulher negra, escritora,
semianalfabeta e catadora de papel que residia em um barraco na antiga
favela do Canindé, situada na cidade de São Paulo, às margens do Rio
1 Doutora em Direito pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Mestre em Direito
pela UFPR. Professora dos Cursos de Graduação e dos Programas de Mestrado da
Universidade Federal do Rio Grande (FURG) e da Fundação Escola Superior do
Ministério Público (FMP-RS). Porto Alegre (RS), Brasil. ORCID:
https://orcid.org/0000-0001-9366-9237. CV Lattes:
http://lattes.cnpq.br/1275535624435246. E-mail: fabiana7778@hotmail.com
2 Graduanda em Direito na Fundação Escola Superior do Ministério Público (FMP-RS).
Porto Alegre (RS), Brasil. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-0428-6339. CV Lattes:
http://lattes.cnpq.br/9927270332100124. E-mail: flavia.dallagnol@hotmail.com.
ANAMORPHOSIS – Revista Internacional de Direito e Literatura, v. 6, n. 2, p. 511-527
512
Tietê. Seu diário que posteriormente deu origem à obra literária Quarto
de Despejo: diário de uma favelada refletia um cotidiano de fome,
pobreza e racismo em pleno período de euforia industrial devido ao
projeto nacional desenvolvimentista de Juscelino Kubitschek. Os relatos
de Carolina receberam visibilidade em 1958 quando o jornalista Audálio
Dantas publicou alguns fragmentos no jornal Folha da Manhã e na revista
O Cruzeiro. Em 1960, o livro Quarto de despejo foi lançado pela Editora
Francisco Alves, tornando-se uma obra internacionalmente reconhecida
antes mesmo do início da globalização.
Carolina Maria de Jesus frequentou a escola tão somente até o
segundo ano do ensino fundamental, e, por isso, a obra apresenta uma
linguagem, muitas vezes contrária à gramática, “mas que por isso mesmo
traduz com realismo a forma de o povo enxergar e expressar seu mundo”
(Jesus, 2014). Carolina representa, portanto, uma contra-voz que
questiona, por meio de um discurso literário próprio, um contexto social
de subalternização e vulnerabilidade.
Por meio dessa análise, busca-se demonstrar como os impactos do
colonialismo atuaram na vida e obra da escritora Carolina Maria de Jesus
e de que forma as intersecções entre gênero, raça e classe social
conduziram-na a uma vida de privações e segregação. O enfoque será dado
em relação à relevância do papel assumido pela personagem ao denunciar
a realidade social da mulher negra periférica na década de 1960, através
da obra literária Quarto de Despejo. A partir disso, à luz da literatura
feminista, pretende-se abordar a importância dos estudos subalternos
para contemplar as pautas heterogêneas e específicas dos grupos de
mulheres historicamente marginalizados.
Para tanto, justifica-se esta investigação com base na tentativa de
mostrar que o Direito pode ser pensado para além da normatização
dogmática de cunho procedimental, e de certo modo alheia à realidade
brasileira, para propor novos paradigmas ou relações, através, inclusive,
da própria literatura. Nesse sentido, procura-se demonstrar a relevância
dos estudos de direito e literatura para contemplar as múltiplas realidades
sociais e suas singularidades, visto que lógica que permeia o Direito
muitas vezes conduz a um cenário superinstitucionalizado e,
SPAREMBERGER; OLIVEIRA | Colonialidade e feminismo subalterno...
513
consequentemente, alheio à justiça e às necessidades das pessoas reais
(Suárez Llanos, 2017, p. 351).
Essa lógica linear e ortodoxa da ciência jurídica, difundida
essencialmente pelo paradigma positivista que influenciou fortemente o
meio científico entre os séculos XVIII ao XX, resultou em um afastamento
do que deveria caracterizar o objeto principal do Direito: as relações
humanas intersubjetivas (Siqueira, 2011, p. 25). Com efeito, pode-se dizer
que “o Direito forçou as histórias de pessoas reais e seus anseios pela
justiça em conceitos imparciais, silenciando especialmente as das mais
vulneráveis” (Suárez Llanos, 2017, p. 349).
É justamente enquanto uma crítica ao formalismo jurídico que se
estrutura o Law and Literature Movement no meio científico norte-
americano dos anos 1970, sendo a publicação da obra The Legal
Imagination de James Boyd White um divisor de águas nesse contexto
(Trindade e Bernsts, 2017, p. 227). Nesse mesmo sentido, é o que dispõe
Ada Bogliolo Piancastelli de Siqueira:
A centralização do direito no positivismo kelseniano
levou à redução gramatical de seus enunciados e à
análise estritamente sintática e semântica de suas
normas, tornando-o incapaz de atender às demandas
sociais postas ao direito. Como resposta a essa
insuficiência do reducionismo positivista, o movimento
Law and Literature proporcionou uma miragem crítica
e inovadora capaz de construir alternativas teóricas
para o direito, acusando seus limites, incompletudes e
contradições (Siqueira, 2011, p. 36).
De fato, a literatura surge enquanto um instrumento oportuno para
repensar a conjuntura dogmática e de neutralidade do Direito, uma vez
que se constitui como o oposto disso: “aberta, dúctil, incerta, sonhadora e
busca representações imaginárias que abrem um presente mais atraente,
mais justo e melhor.” (Suárez Llanos, 2017, p. 351). Além disso, a criação
artístico-literária “permite apreender as tensões que marcam a dinâmica
social do Direito com mais força do que podem fazer as teorias jurídicas
ou análises sociológicas”, uma vez que apresenta as condições de sentido
para as ações e os juízos de valor como elementos essencialmente
imbricados (Ghirardi, 2016, p. 56).
Através de um exercício de alteridade, a literatura é capaz de
pontuar questões específicas e subjetivas que outrora seriam inacessíveis
ANAMORPHOSIS – Revista Internacional de Direito e Literatura, v. 6, n. 2, p. 511-527
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ao agente do direito (Siqueira, 2011, p. 41), trazendo um viés mais
sensibilizador e ao mesmo tempo mais crítico das relações humanas. Por
esse ângulo, uma das principais contribuições do imaginário literário ao
direito se firma a partir de uma ideia de “subversão crítica”, ou seja, a
literatura, por muitas vezes, dá voz aos oprimidos, explorando o avesso e o
não dito das construções jurídicas (Ost, 2004, p. 25-26).
É o caso da obra em análise: classificada como testemunho ou como
literatura-verdade, Quarto de despejo desempenha um papel essencial ao
denunciar a realidade de populações deixadas à margem da estrutura
social e que o Direito, por si só, não se mostrou capaz de protegê-las
adequadamente. Nesse caso, a relação entre direito e literatura
efetivamente propicia desvelamentos sobre a natureza humana e a vida
social e “auxilia a compreender de linguagens assimétricas, ocultas e vozes
silenciosas que a obra literária deixa transparecer” (Bentes, 2016, p. 152).
Sendo assim, por meio do método analético de Dussel, optou-se por
priorizar a construção dialógica da crítica a partir do reconhecimento da
outridade, da prática da alteridade e da execução de uma teoria da
libertação que possibilite, enfim, a superação da dicotomia “opressor vs.
oprimido”.
2 CAROLINA MARIA DE JESUS: A REALIDADE A
PARTIR DO SEU LUGAR
Para Patricia Hill Collins (2019, p. 61), a ideia de que “lugar de fala”
tem a ver com experiências ou posicionamentos individuais não é a
melhor forma de definição de tal categoria. Segundo esta autora, quando
se utiliza da expressão “lugar de fala”: não estamos falando
necessariamente de experiências de indivíduos, mas das condições sociais
que permitem ou não que esses grupos acessem lugares de cidadania.
“Seria, principalmente, um debate estrutural. Não se trataria de afirmar as
experiências individuais, mas de entender como o lugar social que certos
grupos ocupam restringem oportunidades” (Collins, 2019, p. 61).	
Este também é o posicionamento de Djamila Ribeiro na sua obra O
que é lugar de fala?, segundo ela, faz-se necessário entender que grupos
sociais não como um amontoado de indivíduos, mas como
individualidades em sua própria realidade, de modo que se alcance a
reflexão de que indivíduos pertencentes a determinados grupos partilham
SPAREMBERGER; OLIVEIRA| Colonialidade e feminismo subalterno...
515
experiências similares. Isto significa para a autora falar de direito à
existência digna, à voz, à visibilidade, fala-se na verdade de lócus social, de
como esse lugar marginal imposto a determinados grupos dificulta a
possibilidade de transcendência. De acordo com ela, “absolutamente nada
tem a ver com uma visão essencialista de que somente o negro pode falar
sobre racismo, por exemplo.” (Ribeiro, 2019, p. 64).
É nessa conjunção e a partir da subjetividade da sua própria
experiência que, Carolina Maria de Jesus se impõe como “sujeito-mulher-
negra” e se auto-representa em sua obra, tomando o lugar da escrita, em
contraponto ao histórico de representação estereotipada da mulher negra
na literatura brasileira (Evaristo, 2005, p. 54). De acordo com Raffaela
Fernandez (2015), a autobiografia é basilar para as criações literárias de
Carolina, visto que a escritora, ao se apoiar sobre si mesma, reconstitui
sua memória e seu cotidiano, transmitindo a concretude de sua escrita.
Nesse sentido:
Carolina de Jesus, enquanto escritora constrói-se como
uma personagem autodidata, isto é, suas narrativas
mostram como ela adquiriu conhecimento sobre as
coisas “do mundo da vida” conforme foi sendo
absorvida pelas palavras, pela linguagem, pelas leituras,
e como ela própria está inserida na linguagem, sentia-se
presa à matriz do conhecimento que precisa ser
colocado no papel para sanar as perturbadoras, mas
esclarecedoras, ideias (Fernandez, 2015, p. 291).
Com efeito, Quarto de despejo, enquanto instrumento proposital de
denúncia, retrata um cotidiano de sofrimento que coexiste com o
momento histórico de desenvolvimento nacional, durante o governo de
Juscelino Kubitschek. O progresso econômico dos Anos Dourados e da
construção de Brasília acabaram por ocultar a existência de uma
desigualdade social cada vez mais crescente no país. Carolina Maria de
Jesus se mostra consciente quanto às questões de injustiça social e ao
oportunismo das figuras políticas em relação à vulnerabilidade do povo da
favela:
15 de maio. [...] Os políticos só aparecem aqui nas
épocas eleitoraes. O senhor Cantidio Sampaio quando
era vereador em 1953 passava os domingos aqui na
favela. Ele era tão agradável. Tomava nosso café, bebia
nas nossas xícaras. Ele nos dirigia as suas frases de
viludo. Brincava com nossas crianças. Deixou boas
impressões por aqui e quando candidatou-se a
deputado venceu. Mas na Camara dos Deputados não
ANAMORPHOSIS – Revista Internacional de Direito e Literatura, v. 6, n. 2, p. 511-527
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criou um progeto para beneficiar o favelado. Não nos
visitou mais. ...Eu classifico São Paulo assim: O Palacio
é a sala de visitas. A Prefeitura é a sala de jantar e a
cidade é o jardim. E a favela é o quintal onde jogam os
lixos (Jesus, 2014, p. 32).
Observa-se que a obra de Carolina, portanto, não é restrita ao seu
espaço. Ao contrário, relaciona a vida da favela com o macrossistema da
cidade, ilustrando a lógica de exploração daqueles que detém o poder
(Martins, 2018, p.158). Nesse mesmo sentido, a autora metaforicamente
se refere à cidade como “sala de visitas”, onde a elite se beneficia de uma
estrutura colonial firmada por um passado escravocrata, enquanto a favela
configura o “quarto de despejo”, marcado pela fome e pela miséria (Jesus,
2014, p. 37).
A fome, por sua vez, é uma temática tratada com exaustão pela
autora, que, na condição de mãe solteira, se encontra inúmeras vezes sem
os recursos necessários para custear a sua própria alimentação e de seus
filhos. O cotidiano do diário é representado, majoritariamente, pela busca
por comida nos lixos e a partir do pouco dinheiro que recebe catando
papéis e metais. Para Carolina de Jesus, a fome representa a escravidão do
seu tempo (Jesus, 2014, p. 32) e em diversas passagens do livro considera
o suicídio como algo presente.
Ademais, Carolina Maria de Jesus reconhece estar inserida em um
contexto onde a superioridade do homem branco é constantemente
afirmada. Ao mesmo tempo, a autora rejeita a justificação do racismo e
expõe que sente orgulho de sua pele negra em um trecho da obra que, por
si só, já é suficiente para representar a magnitude e a força de tais relatos:
16 de junho [...] Eu escrevia peças e apresentava aos
diretores de circos. Eles respondia-me: - É pena você
ser preta. Esquecendo eles que eu adoro a minha pele
negra, e o meu cabelo rustico. Eu até acho o cabelo de
negro mais iducado do que o cabelo de branco. Porque o
cabelo de preto onde põe, fica. É obediente. E o cabelo
de branco, é só dar um movimento na cabeça ele já sai
do lugar. É indisciplinado. Se é que existe
reincarnações, eu quero voltar sempre preta. [...] O
branco diz que é superior. Mas que superioridade
apresenta o branco? Se o negro bebe pinga, o branco
bebe. A enfermidade que atinge o preto, atinge o
branco. Se o branco sente fome, o negro também. A
natureza não seleciona ninguém (Jesus, 2014, p. 64 e
65).
SPAREMBERGER; OLIVEIRA | Colonialidade e feminismo subalterno...
517
Convém salientar, inclusive, que Carolina Maria de Jesus foi mãe
solteira por escolha própria, referindo em seus relatos que preferia dedicar
sua vida aos filhos em detrimento de qualquer companheiro. Em todos os
casos, a autora representa um forte papel social, que, além de enfrentar o
descaso governamental, a fome e o racismo, se depara claramente com
uma situação de gênero, visto que se encontrava na condição de mãe
solteira, vivendo abaixo da linha da pobreza em uma sociedade que, ao
mesmo tempo em que alimenta a imagem do homem provedor, resiste à
ideia de responsabilidade masculina na criação dos filhos.
Com o sucesso de Quarto de despejo, Carolina Maria de Jesus
conseguiu sair da miséria e da periferia. Apesar do sucesso e
reconhecimento internacional, foi renegada por uma parcela significativa
da elite literária, traduzindo a questão atual de não-pertencimento da
mulher negra. Carolina Maria de Jesus morre em 1977, vítima de uma
crise de insuficiência respiratória. O legado de Carolina Maria de Jesus
enquanto uma das escritoras mais importantes no país se mostra
relevante atualmente no contexto político e social, visto que, “Quarto de
despejo não é um livro de ontem, é de hoje. Os quartos de despejo,
multiplicados, estão transbordando” (Dantas, 2014).
3 O FEMINISMO SUBALTERNO
Muitos pensadores provenientes de diversas áreas refletem sobre a
colonização como um grande evento prolongado e de muitas rupturas e
não como uma etapa histórica já superada. A colonização não diz respeito
apenas à administração colonial direta sobre determinadas áreas do
mundo, mas também a uma lógica de dominação, exploração e controle
que inclui a dimensão do conhecimento. Nesse sentido, fala-se em
colonialidade e não apenas em colonialismo (Sparemberger e Damazio,
2016, p. 3).
A palavra colonialidade é empregada para chamar atenção sobre o
lado obscuro da modernidade, e, por isso, fala-se em
modernidade/colonialidade. A retórica da modernidade e suas ideias
pretensamente universais, tais como cristianismo, Estado, democracia e
mercado, permitiu a perpetuação da lógica da colonialidade, a partir das
ideias de dominação, controle, exploração, dispensabilidade de vidas
ANAMORPHOSIS – Revista Internacional de Direito e Literatura, v. 6, n. 2, p. 511-527
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humanas, subalternização do saberes dos povos colonizados, entre outros
(Mignolo, 2008, p. 293). A colonialidade se sustentou e continua a se
sustentar, portanto, a partir da construção do imaginário epistêmico da
universalidade. Em nome de uma pretensa racionalidade universal foi
necessário o tráfico de escravos, a exploração dos indígenas e a
expropriação de suas terras. Ou seja, a retórica positiva da modernidade
justifica a lógica destrutiva da colonialidade (Sparemberger e Damazio,
2016, p. 4).
Se por um lado a colonialidade é a face invisível da modernidade é
também, por outro lado, a energia que gera a decolonialidade, cujo
processo epistemológico consiste principalmente em expor a lógica da
colonialidade que se estabelece apartir da universalidade epistêmica. Tal
lógica colonial se transfere diretamente ao âmbito da economia, da
política, do direito e das questões de gênero, raça e classe social. Assim, os
estudos subalternos visam combater uma epistemologia colonialista que,
por meio do discurso da universalidade, legitima o conhecimento
eurocêntrico como único e dominante ao mesmo tempo em que estimula o
silenciamento e invisibilidade de povos e grupos historicamente
subalternizados.
Nesse mesmo sentido, no início da década de 1980, o feminismo
subalterno ou feminismo terceiro-mundista surgiu com o fim de
ressignificar a lógica proposta pelo feminismo hegemônico/ocidental
cujos objetivos não contemplavam a realidade das mulheres que não se
encaixassem no padrão branco, heterossexual, ocidental e de classe média.
Era comum que teóricas feministas ocidentais se debruçassem sobre a
mulher subalterna tão somente enquanto objeto de estudo, por meio de
um viés paternal e até imperialista (Mohanty, 2008, p. 18). Denomina-se
tal fenômeno por colonização discursiva, onde a única epistemologia
válida é aquela produzida pela academia dominante.
Stuart Hall, em sua célebre obra A identidade cultural na pós-
modernidade nos mostra que o movimento feminista emergiu
sustentando o questionamento primordial da noção de “humanidade”
universal e substituindo-a pela questão da diferença sexual, o que ajudou
a desestabilizar o conceito de sujeito cartesiano (Hall, 1992, p. 46).
Todavia, o próprio feminismo hegemônico buscou englobar todas as
SPAREMBERGER; OLIVEIRA | Colonialidade e feminismo subalterno...
519
mulheres em um conceito universal, enquanto vítimas de um mesmo
sistema, na tentativa de legitimar, de forma equivocada, a ideia de global
sisterhood.
A partir disso, Chandra Mohanty sustentou a necessidade de um
feminismo de terceiro mundo que atentasse para a heterogeneidade e para
as especificidades das mulheres subalternas, afirmando-as no seu
contexto histórico e cultural ao invés de tão somente reduzi-las a um
grupo unificado e destituído de poder:
Cualquier discusión sobre la construcción intelectual y
política de las “feminismos del tercer mundo” debe
tratar dos proyectos simultáneos: la critica interna de
los feminismos hegemónicos de “Occidente”, y la
formulación de intereses y estrategias feministas
basados em la autonomía, geografía, historia y cultura.
[...] Aunque las suposiciones de los feminismos radical y
liberal que constituyen a las mujeres como una clase
sexual puedan dilucidar (aún inadecuadamente) la
autonomia de luchas particulares de mujeres em
Occidente, la aplicación de la noción de mujeres como
categoría homogénea a las mujeres en el tercer mundo
coloniza y apropia las pluralidades de la ubicación
simultánea de diferentes grupos de mujeres em marcos
de referencia de clase y étnicos, y al harcerlo finalmente
les roba su agencia histórica y política (Mohanty, 2008,
p. 1 e 18).
É por isso que, ao tratar de feminismo subalterno, é indispensável
frisar a existência de um amplo espectro de caracterizações que possui
como ponto de partida determinadas marcações políticas, étnico-raciais e
culturais, e que, portanto, irá englobar inúmeros movimentos, tais como o
feminismo pós-colonial, feminismo terceiro-mundista, feminismo negro,
feminismo latino-americano, feminismo indígena, feminismo africano,
feminismo islâmico, entre outros (Ballestrin, 2017, p. 1040). Somente ao
contextualizar os grupos subalternos de mulheres a partir de uma
perspectiva socio-histórica, analisando as contradições de cada situação
em específico, pode-se propor estratégias efetivas de enfrentamento e
resistência, visto que a categoria mulher se constrói em uma variedade de
contextos políticos que costumam existir de forma simultânea (Mohanty,
2008, p. 12).
Tendo em vista que o discurso da universalidade das pautas
proposto pelas feministas ocidentais é insuficiente para compreender a
realidade das mulheres subalternas, desponta juntamente com o
ANAMORPHOSIS – Revista Internacional de Direito e Literatura, v. 6, n. 2, p. 511-527
520
feminismo terceiro-mundista a relevância de se tratar da questão da
interseccionalidade, isto é, pensar gênero juntamente com as questões de
raça, classe, sexualidade e nacionalidade. Isso porque as formas de
opressão não operam em sua singularidade, mas se entrecruzam umas
com as outras (Kilomba, 2019, p. 99).
4 O FEMINISMO NEGRO E A REALIDADE DA MULHER
NEGRA NO BRASIL
Segundo Marques (2016, p. 53), “a lógica da colonialidade ao
realizar o apagamento dos modos de vida dos/as colonizados/as e a
transformação destes/as a partir da colonialidade do gênero, são obtidos
efeitos que se prolongam no tempo”. Para Maria Lugones (2008) citada
por Marques (2016) problematizar, qual seja, a indiferença dos homens
frente à violência sistemática operada pelo Estado, elo patriarcado e
perpetuada por eles mesmos, e que é imposta sobre as mulheres de cor, ou
seja, sobre as mulheres não-brancas, vítimas da colonialidade do poder e
do gênero, mulheres estas que têm criticado o feminismo hegemônico
devido a este buscar uma “mulher universal”
Na obra Quem tem medo do feminismo negro?, Djamila Ribeiro
(2018, p. 82) reafirma a questão da interseccionalidade a partir do
conceito primordial cunhado em 1989 por Kimberlé Crenshaw3 e nos
mostra que “raça, classe e gênero não podem ser categorias pensadas de
forma isolada, porque são indissociáveis”. Como anteriormente visto, o
próprio movimento feminista se mostrou resistente à inclusão de uma
agenda que tratasse da questão racial, em nome de um discurso de
universalidade da opressão patriarcal e na tentativa de manter uma
suposta unidade entre as pautas feministas. Todavia, ao falar de
feminismo e luta das mulheres é mais do que necessário incluir a raça
como questão central na hierarquia de gênero, já que, na intersecção entre
“mulher” e “negro” existe uma ausência onde deveria estar a “mulher
negra”, que não está contemplada em nenhuma dessas categorias
3 A interseccionalidade é uma conceituação do problema que busca capturar as
consequências estruturais e dinâmicas da interação entre dois ou mais eixos da
subordinação. Ela trata especificamente da forma pela qual o racismo, o patriarcalismo,
a opressão de classe e outros sistemas discriminatórios criam desigualdades básicas que
estruturam as posições relativas de mulheres, raças, etnias, classes e outras (Crenshaw,
p. 177, 2002).
SPAREMBERGER; OLIVEIRA | Colonialidade e feminismo subalterno...
521
construídas pela lógica da modernidade, a partir de termos “homogêneos,
atomizados, separáveis e constituídos dicotomicamente” (Lugones, 2014,
p. 942).
É em razão dessa imprescindibilidade de pensar o feminismo de
maneira interseccional, que Sueli Carneiro (2003) fala sobre a
necessidade de questionar: “De que mulheres estamos falando?”, ao
tratarmos de determinadas pautas feministas, já que a realidade
vivenciada por mulheres brancas não corresponde necessariamente à
realidade enfrentada por mulheres negras. Quando as feministas
hegemônicas lutaram pelo direito das mulheres casadas trabalharem fora
de casa, por exemplo, apenas os direitos das mulheres brancas estavam
em foco, tendo em vista que as mulheres negras já se encontravam
inseridas no mercado de trabalho, buscando a sua sobrevivência e a de sua
família e reivindicando melhores condições de labor tanto no cenário rural
quanto no cenário urbano. Isso corresponde a um recorte decorrente
único e exclusivamente da questão racial e, inclusive, das reminiscências
da escravidão legitimadas pelas políticas ocidentais durante séculos.
Ao adentrar no âmbito nacional, portanto, cumpre destacar que o
desenvolvimento econômico brasileiro foi historicamente calcado na
exploração de negros e indígenas, obedecendo a uma lógica de dominação
colonialista, cujas consequências contribuíram para o desenvolvimento de
um racismo estrutural e estruturante que, por seu turno, representa um
peso significativo nas relações sociais e institucionais até hoje. A análise
de Sandra Maria MarinhoSiqueira reflete esse entendimento:
O escravo negro era denominado de peça, seu valor era
determinado pela idade, sexo e robustez e os poucos que
chegavam à velhice ou aqueles que se tornavam
inválidos, quando eram alforriados pelos latifundiários,
ampliavam as fileiras dos famintos e miseráveis. Isso
nos leva à certeza de que o racismo foi socialmente
produzido, criando formas de hierarquias na
organização social (Siqueira, 2018, p. 62).
A abolição da escravatura pela Lei 3.353 de 1988 não foi sinônimo
de liberdade aos escravos, visto que a lei não previa quaisquer direitos
protetivos, deixando-os completamente vulneráveis e marginalizados na
sociedade. São comuns os relatos de que, mesmo após a abolição, alguns
libertos permaneciam prestando serviços e mão-de-obra aos seus
senhores, visto que as oportunidades e possibilidades de iniciar uma vida
ANAMORPHOSIS – Revista Internacional de Direito e Literatura, v. 6, n. 2, p. 511-527
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nova e digna eram praticamente nulas. É com base nisso que Florestan
Fernandes entende a abolição da escravidão enquanto uma “farsa
histórica”, diante do fato de que, após a Lei Áurea, o racismo passou a ser
institucionalizado no país (Fernandes, 2017, p. 77).
Para ilustrar isso, é mister tratarmos dos efeitos do chamado “mito
da democracia racial”, cujo discurso produziu uma identidade nacional
baseada na ideia da miscigenação enquanto um acontecimento benéfico e
reflexo da ampla diversidade cultural brasileira. Todavia, esse mesmo
discurso, de acordo com Sandra Maria Marinho Siqueira, “ocultou as
práticas violentas e abusivas de estupros contra as mulheres indígenas e
negras durante todo o período colonial”, e, “produziu no imaginário das
mulheres negras que elas eram parte das famílias para as quais
trabalhavam” gerando “uma amnésia ideológica, uma brutal política de
desenraizamento e dessocialização para despersonalizar e descaracterizar
as negras e negros” (Siqueira, 2018, p. 66).
A realidade da mulher negra, portanto, deve ser analisada sob outro
foco, em face da existência de um abismo racial ainda não superado no
Brasil. Nesse sentido, importa ressaltar que a população feminina negra,
mesmo exercendo a função idêntica que mulheres brancas, recebe
remuneração inferior, ocupando posições mais precárias e trabalhos
domésticos, terceirizados ou informais sem a devida proteção legal
(Siqueira, 2018, p. 68).
Esse viés racial implícito também corrobora com a questão da
desigualdade de acesso e de tratamento perante os serviços institucionais.
No que diz respeito à saúde, por exemplo, os índices de mortalidade
materna de mulheres negras em estado puerperal são diretamente
relacionados à dificuldade de acesso aos serviços de saúde, à baixa
qualidade do atendimento e à falta de ações e capacitação de profissionais
de saúde voltadas para os riscos aos quais as mulheres negras estão
expostas (Geledés, 2015). Ainda, de acordo com estudo realizado pelo Ipea
- Instituto de Pesquisa Econômica e Aplicada, a taxa de homicídios de
mulheres negras aumentou 29,9% entre 2007 e 2017, enquanto a taxa das
mulheres não negras cresceu 1,6%. O instituto de pesquisa mostra que
28,5% dos homicídios de mulheres ocorreram dentro de casa, o que se
SPAREMBERGER; OLIVEIRA | Colonialidade e feminismo subalterno...
523
relaciona com possíveis casos de feminicídio e violência doméstica
(Lisboa, 2019).
Ademais, a subalternização da mulher negra também deve ser
examinada sob a ótica do silenciamento, visto que, “mesmo que na
condição de sujeitos, as mulheres negras não estão presentes nos anais da
‘história oficial’, sendo que suas múltiplas e vastas contribuições
permanecem fora dos livros didáticos e do imaginário da população”
(Schumaher e Vital Brazil, 2006, p. 271). É o caso, por exemplo, de Tereza
de Benguela, chefe do Quilombo de Quaritetê, onde, por meio de uma
organização rígida e disciplinar fundada no parlamentarismo, resistiu
durante duas décadas às investidas das tropas do governo. Percebe-se,
portanto, a existência de um desconhecimento geral em relação às
histórias das mulheres negras já que a participação ativa destas nos
episódios históricos brasileiros foi, desde sempre, vista como imprópria, e,
consequentemente, silenciada. O longo repertório de resistência da
mulher negra também é significativamente ignorado, mesmo que tais
articulações tenham se feito presente desde as primeiras organizações
quilombolas até o desenvolvimento de um pensamento feminista negro,
em meados da década de 1980.
Logo, é evidente que o rastro da estrutura colonial calcada e
desenvolvida por uma economia escravocrata e patriarcal se perpetua no
imaginário social, adquirindo novos contornos em uma ordem que se
denomina como democrática e igualitária, mas, que, todavia, permanece
mantendo incólumes as relações gênero segundo a cor ou raça (Carneiro,
2003). É por isso que insistir em discutir sobre a atuação, presença e
representatividade da mulher negra nos mais diversos espaços é uma
tarefa provocadora, e, ao mesmo tempo, necessária para o
desenvolvimento de uma consciência crítica que permita questionar os
moldes em que a atual ordem social se fortaleceu ao longo dos séculos.
5 CONCLUSÃO
Em que pese Carolina Maria de Jesus tenha sido uma mulher que
resistiu à imposição colonial, analisando de maneira crítica seu lugar no
mundo, ainda assim, teve a vida determinada pelas consequências de uma
estrutura decorrente do colonialismo. As condições de vida da autora
ANAMORPHOSIS – Revista Internacional de Direito e Literatura, v. 6, n. 2, p. 511-527
524
foram fortemente marcadas por diversas opressões relativas à raça, gênero
e classe social, que, por seu turno, em nenhum momento se apresentaram
de forma dissociada. A vida e obra de Carolina Maria de Jesus coadunam,
portanto, com a necessidade de pensar a categoria “mulher” a partir de
um viés interseccional, dada a variedade de opressões e especificidades
que existem e se relacionam de forma simultânea.
É por isso que o feminismo terceiro mundista buscou tratar da
importância de analisar a realidade das mulheres não brancas e vítimas da
colonialidade de gênero a partir de uma perspectiva que contemple suas
questões históricas, sociais e culturais, dissociando-as da ideia de mulher
hegemônica sustentada pela primeira onda feminista.
O feminismo negro, nessa mesma lógica, traz a ideia de que tanto o
impacto da opressão racial quanto da opressão de gênero, que operam
simultaneamente, constitui uma forma de racismo única vivenciada pelas
mulheres negras e racializadas (Kilomba, 2019, p. 99). Tais abordagens
são possíveis e visíveis a partir da constatação de que as mulheres negras e
pobres continuam na base da pirâmide social e as políticas públicas de
reparação não têm sido suficientes para reverter esse quadro. É por isso
que o racismo deve ser analisado enquanto uma dimensão central e
crucial da experiência das mulheres (Kilomba, 2019, p. 103).
Ademais, convém destacar que a utilização da literatura para
embasar um fator social que se interliga ao contexto dos direitos sociais e
humanos não foi uma escolha arbitrária. Isso porque, a literatura
possibilita, a partir do viés decolonial, a desconstrução do status quo
problemático, visando desmascarar e desatar as amarras jurídicas e
políticas que se mostram supostamente neutras e não valorativas. Com
efeito, a relação entre direito e literatura na perspectiva de Quarto de
despejo se mostra relevante na medida em que a obra revela uma
realidade esquecida e silenciada pela ordem totalizante e hegemônica.
Nesse caso, portanto, pode-se dizer que a literatura adquire um viés de
crítica e denúncia das crassas desigualdades estruturadas a partir do
colonialismo e que permeiam o Brasil até os dias de hoje.
Sendo assim, a obra de Carolina Maria de Jesus opera, ao romper
com os estigmas dominantes e universais construído pelas instâncias
culturais do poder, ao encontro das premissas decoloniais de consideração
SPAREMBERGER; OLIVEIRA | Colonialidade e feminismo subalterno...
525
de saberes subalternizados, alémde utilizar sua escrita como instrumento
de denúncia de uma realidade vulnerabilizada em decorrência de uma
multiplicidade de opressões, o que coincide com as principais premissas
do feminismo subalterno.
REFERÊNCIAS
BALLESTRIN, Luciana Maria de Aragão. Feminismos subalternos.
Revista Estudos Feministas, v. 25, n.3, p. 1035-1054, set./dez. 2017.
BENTES, Hilda Helena Soares. A “via crucis do corpo” da mulher: trajetos
de violência na literatura brasileira sob a ótica dos direitos humanos das
mulheres. Anamorphosis – Revista Internacional de Direito e Literatura,
Porto Alegre, RDL, v. 2, n. 1, p. 147-167,
A obra Quarto de despejo: diário de uma favelada foi escrito por Carolina Maria de Jesus, neta de escravos, que nasceu em 14 de março de 1914, em Sacramento, estado de Minas Gerais, cidade onde viveu sua infância e adolescência. Toda educação escolar de Carolina resume-se há apenas dois anos em que freqüentou o Colégio Allan Kardec, de Sacramento, instituição financiada por Maria Leite Monteiro de Barros, para quem a mãe de Carolina lavava roupas e que se dispôs a contribuir para a educação da menina. Foi o jovem jornalista Audálio Dantas, que na época da publicação do livro de Carolina destacou-se pela prática do jornalismo-denúncia, quem “descobriu” os escritos da autora, em 1958, o que contribuiu para a notabilidade da carreia do próprio Dantas. Há que se dizer que as aparições da escritora em jornais remontam a 1941, na Folha da Manhã. No entanto, o reconhecimento nacional e internacional ocorreu depois do contato com o 1 Mestre pela PUC-SP Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, em abril de 2008. Este texto é um resumo de parte de um dos capítulos da minha dissertação de mestrado (COSTA, 2008). 1 ANPUH – XXV SIMPÓSIO NACIONAL DE HISTÓRIA – Fortaleza, 2009. jornalista, que inicialmente fez publicações dos textos de Maria Carolina também em jornais onde ele trabalhava, mas o sucesso da escritora aconteceu realmente com Quarto de despejo. O encontro dos dois ocorreu quando Dantas visitou a favela, onde Carolina morava, com o objetivo de fazer uma reportagem sobre os favelados. Ele achou curioso ver Carolina gritando com alguns homens, que brincavam em um parquinho recém-inaugurado, dizendo que iria colocar os nomes deles em seu diário (LEVINE e MEIHY, 1994). Nas últimas décadas, os trabalhos de Carolina, assim como a vida da autora como um todo, têm alcançado visibilidade acadêmica, nos mais variados campos de pesquisa, após um período notável de esquecimento. É sobre esse silêncio em relação às obras de Carolina, em especial sobre Quarto de despejo..., que José Carlos Sebe Bom Meihy tem desenvolvido seus estudos desde a publicação de Cinderela negra: a saga de Carolina Maria de Jesus, em 1994, em parceria com o norte-americano Robert M. Levine. Segundo Meihy (1998), a entrada de Carolina no cenário nacional ocorreu em um momento estratégico, no qual a condição de vida da autora, narrada de forma tão intensa em seu diário, representava uma enorme discrepância em relação aos ideais de modernização e democratização vigentes no país naquele momento. Nesse sentido, trazer à tona modos de vida como os descritos em seu diário era confirmar a inviabilidade dos projetos de desenvolvimento do país. O presente texto procura dar ênfase à experiência de vida de Carolina, como mulher negra, chefe de família, mãe solteira de três filhos, catadora de lixo, semi-analfabeta e moradora da favela Canindé, uma das primeiras grandes favelas de São Paulo, onde hoje fica o campo da Portuguesa de Desportos. Carolina Maria de Jesus não foi uma feminista militante, embora em sua obra haja algo nas entrelinhas. De manhã eu estou sempre nervosa. Com medo de não arranjar dinheiro para comprar o que comer. Mas hoje é segunda-feira e tem muito papel na rua. (...) O senhor Manuel apareceu dizendo que quer casar-se comigo. Mas eu não quero porque já estou na maturidade. E depois, um homem não há de gostar de uma mulher que não pode passar sem ler. E que levanta para escrever. E que deita com lápis e papel debaixo do travesseiro. Por isso é que eu prefiro viver só para o meu ideal (JESUS, 2006:44). Fica claro pela primeira parte da citação que a principal preocupação de Carolina era a alimentação. Ela era só, sem emprego fixo e com três filhos, um de cada pai, para criar. Comer, para ela e sua família, dependia de encontrar papéis na rua, ou qualquer outra coisa 2 ANPUH – XXV SIMPÓSIO NACIONAL DE HISTÓRIA – Fortaleza, 2009. que pudesse ser trocada por dinheiro. Na falta do que vender, o jeito era apelar para os restos de comidas encontrados no lixo. Assim, o que era entulho e resto para muitos, era também a garantia de sobrevivência para outros. Carolina era conhecedora de que eram poucos aqueles que, no início da segunda metade do século XX, compreendiam os seus desejos de ler e escrever, uma vez que a sociedade de sua época reprovava tal comportamento. Os homens ainda reivindicavam para si, e somente para si, o direito de produzir o que “eles realmente” classificavam como literatura, na qual as mulheres apareciam apenas como objeto. Nessas narrativas eles atribuíam a elas personalidades e comportamentos que fantasiavam a seu bel prazer. Mesmo tendo consciência de que muitas mulheres já haviam adentrado no universo da escrita desde séculos passados, muitos de seus escritos ainda eram considerados como obras “menores”. Segundo críticos homens, esses escritos eram carregados de expressões íntimas que refletiam os “sentimentos e imagens femininas do mundo” diferente das produzidas por eles que visavam “objetivar e universalizar a visão de mundo” (PIZA, 1998:142). No entanto, a riqueza da composição feminina está justamente em sua pretensão de singularidade. Na verdade, a narrativa feminista inova no sentido de permitir ao sujeito feminino escrever sobre si mesmo. A citação seguinte revela a consciência de Carolina em relação à invisibilidade feminina: “Quando eu era menina o meu sonho era ser homem para defender o Brasil porque eu lia a História do Brasil e ficava sabendo que existia guerra. Só lia os nomes masculinos como defensor da pátria” (JESUS, 2006:48). Ela sabia que o caminho que escolhera era árduo, pois não conhecia registros de mulheres travando lutas e, conseqüentemente, escrevendo seus nomes na História. Aparentemente, todos os fatos estavam relacionados ao universo masculino. Nesse sentido, suas reflexões e percepções em relação à ausência feminina da História, infelizmente, apesar de todas as conquistas, são atuais. A luta pela inserção da mulher na História ainda é uma questão em debate. Quanto ao fato de ser sozinha, Carolina não se queixava e não via problema nisso. É possível encontrar em várias passagens de seu diário, a afirmação de sua preferência por viver só a se prestar ao mesmo papel das outras mulheres, que residiam na favela, que saíam para trabalhar, enquanto seus maridos permaneciam em casa, alguns ainda se achando no direito de espancá-las. Mesmo sendo casadas, suas vizinhas da favela eram as responsáveis pelo sustento do lar. É significativo considerar que, enquanto muitas mulheres a recriminavam por ela não ter marido, ela também possuía uma opinião formada a respeito daquelas que eram casadas e, de acordo com sua opinião, encontravam-se em uma situação tão ou mais precária 3 ANPUH – XXV SIMPÓSIO NACIONAL DE HISTÓRIA – Fortaleza, 2009. do que a sua: “As mulheres que eu vejo passar vão nas igrejas buscar pães para os filhos. Que o Frei Luiz lhes dá, enquanto os esposos permanecem debaixo das cobertas. Uns porque não encontraram emprego. Outros porque estão doentes. Outros porque embriagam-se” (JESUS, 2006: 34). Carolina questiona se há realmente uma vantagem em ter um homem dentro de casa que não colabora com nada, ao contrário, é uma boca a mais para ser alimentada por caridade da Igreja. Carolina alega que mesmo sem pai, conseguiu sustentar os filhos (...) meus filhos não são sustentados com pão de igreja. Enfrento qualquer espécie de trabalho para mantê-los. E elas, tem que mendigar eainda apanhar. Parece tambor. A noite enquanto elas pede socorro eu tranquilamente no meu barracão ouço valsa vienenses. Enquanto os esposos quebra as tabuas do barracão eu e meus filhos dormimos socegados. Não invejo as mulheres casadas da favela que levam vida de escravas indianas. Não casei e não estou descontente. Os que preferiu me eram soezes e as condições que eles me impunham eram horriveis (JESUS, 2006:14). A fala de Carolina, na citação acima, sugere uma grande proximidade com as conclusões de Bernardo (2003) que apontam para o fato de que para a mulher negra a matrifocalidade é vista a partir de uma perspectiva diferente da mulher branca. De modo que, para as primeiras, não é um sacrifício garantir a sobrevivência dos filhos como é para as últimas (BERNARDO, 2003:44). Entretanto é preciso considerar também que nem todas as mulheres negras que regem lares matrifocais vivem essa situação por escolha própria. Muitas são na verdade obrigadas a optar por este tipo de organização familiar, por diversas razões que vão desde o abandono do lar pelos companheiros até o fato de eles, muitas vezes, nem mesmo as terem assumido como esposas. Esse tipo de arranjo familiar para a mulher negra é muitas vezes visto como uma forma de preservar sua autonomia, como pôde ser percebido na fala de Carolina. A opção dela de não casar aliava-se ao desejo de manter o controle sobre a própria vida e de não precisar se subjugar aos homens como fazem as outras mulheres que moram na favela. Estou residindo na favela. Mas se Deus me ajudar hei de mudar daqui. Espero que os políticos estingue as favelas. Há os que prevalecem do meio em que vive, demonstram valentia para intimidar os fracos. Há casa que tem cinco filhos e velha é quem anda o dia inteiro pedindo esmola. Há as mulheres que os esposos adoece e elas no penado da enfermidade mantem o lar. Os esposos quando vê as esposas manter o lar, não saram nunca mais, (JESUS, 2006:18). Aqui é importante ressaltar que, de modo geral, o modelo de família predominante no Brasil e no ocidente como um todo designa ao marido, pai, a função de chefe e, 4 ANPUH – XXV SIMPÓSIO NACIONAL DE HISTÓRIA – Fortaleza, 2009. consequentemente, a responsabilidade pela manutenção da sobrevivência da mulher e dos filhos. No entanto, é preciso ressaltar que entre as famílias pobres esse modelo que elege o homem como principal responsável pelo sustento familiar não se enquadra. Segundo Woortmann (1987), entre as famílias pobres, o chefe é aquele que sustenta os membros do grupo ou possui a propriedade da casa. E, mesmo que os menos favorecidos reconheçam a existência do padrão dominante, eles, a seu modo, criam seus próprios arranjos familiares com base na estrutura de vida de cada família (WOORTMANN, 1987: 65), de modo que Carolina, mesmo sendo só, conhecia o modelo predominante, por isso censurava o fato dos homens permanecerem em casa enquanto as mulheres, mães de filhos adultos trabalham duro para sustentá-los. No caso dos filhos é preciso considerar que, de acordo com Woortmann (1987), quando ainda são crianças o tipo de relação que estabelecem com as mães dá-se no sentido vertical, de modo que elas não esperam que eles contribuam com a renda durante a infância, mas que em um tempo futuro quando chegarem à maturidade, possam ajudá-las. Quanto aos homens, a relação pode constituir-se no sentido horizontal, quando elas se encontram em uma situação de dependência em relação a eles ou na forma “toma lá dá cá”, com base no princípio de que poderão exercer certo poder sobre suas vidas ou do grupo familiar desde que também contribuam de algum modo com o subsídio doméstico (WOORTMANN, 1987:87-89). De tal modo, a fala da escritora, ao criticar a postura dos maridos que ficam em casa enquanto suas mulheres trabalham ou mendigam por comida e mesmo assim ainda possuem autoridade sobre elas, vai ao encontro da idéia elaborada por Woortmann (1987), no segundo capítulo do livro A família das mulheres (1987) intitulado O domínio doméstico: um terreiro onde o galo não canta. Nesse texto, o autor apresenta os resultados de uma pesquisa realizada por ele em uma invasão na cidade de Salvador – Bahia, na qual ele constatou que nas famílias pobres os homens só possuem poder de chefia se são responsáveis ou contribuem com a renda familiar. As mulheres reelaboraram o significado do modelo de família dominante, no qual a figura do homem está relacionada à chefia e, portanto, ele é responsável pelo sustento da mulher e filhos; logo, se eles não podem cuidar da sobrevivência do grupo, não podem “cantar de galo”, ou seja, não possuem voz ativa. Carolina, por ter esse mesmo pensamento em relação aos homens, quando algum aparecia oferecendo coisas em troca de sua companhia, ela sempre se esquivava, (...) O senhor Manoel chegou. Deu-me 80 cruzeiros, eu não quis pegar. Procurei as crianças para tomar banho. Ficaram alegres quando viu o senhor Manuel. Eu disse para o Senhor Manoel que ia passar a noite escrevendo. Ele despediu-se e disse: - 5 ANPUH – XXV SIMPÓSIO NACIONAL DE HISTÓRIA – Fortaleza, 2009. Até outro dia! Nossos olhares se encontraram e eu disse: - Vê se não volta mais aqui. Eu já estou velha. Não quero homens. Quero só os meus filhos (JESUS, 2006:91). Em outro momento, é seu vizinho quem lhe faz uma proposta, (...) fiquei pensando num preto que é meu vizinho. O senhor Euclides. Ele disse:- Dona Carolina, eu gosto muito da senhora. A senhora quer escrever muitos livros? – Oh, se quero! – Mas a senhora não tem quem te dê nada. Precisa trabalhar. – Eu preciso trabalhar e escrevo nas horas vagas. – Eu vejo que a sua vida é muito sacrificada. – Eu já estou habituada. – Se a senhora quiser ficar comigo, eu peço esmolas e te sustento. É de dinheiro que as mulheres gostam. E dinheiro eu arranjo para você. Eu não tenho ninguém que gosta de mim... (JESUS, 2006: 152). Ela não aceitou nenhuma das duas propostas. No primeiro caso, mesmo tendo o consentimento dos filhos, que se alegravam com a presença do senhor Manuel, ela não aceitou seu dinheiro e nem quis estar com ele. Na segunda proposta, o candidato a esposo de Carolina oferece a ela vida boa e a possibilidade de poder se dedicar à escrita de seus livros em troca de sua presença. No entanto, ela também não aceitou. Preferiu continuar como estava, apenas ela e seus filhos. Na verdade, o arranjo familiar vivenciado por Carolina, pensado a partir da perspectiva de Teresinha Bernardo (1998), remonta à definição de família negra que surgiu com o Projeto de Lei do Ventre Livre que resumia os membros desta organização a mãe e filhos. 7º... Providências para manter a integridade da família, estabelecendo que, no caso de libertação das escravas, os filhos menores de oito anos acompanharão suas mães (art. 6§ 6º) e ampliando-se a disposição do art. 2º da Lei nº 1695 de 15 de setembro de 1869 a qualquer caso de alienação ou transmissão (art. 6º § 11). ( GIACOMINI, 1983, p.15)2 Como os homens eram vistos pelo processo escravagista como principal força de trabalho, a possibilidade de conquistarem sua liberdade era menor do que a das mulheres. Da mesma forma, que elas tinham mais facilidade em conseguir emprego antes e depois do fim da abolição. De modo que, mesmo no período da industrialização, elas continuavam apresentando vantagens sobre eles. Além disso, elas contaram com oportunidades diversas de ingresso no mercado de trabalho informal como amas-de-leite, vendedoras, empregadas domésticas e outros (BERNARDO, 1998:. 61-63). Estes fatores ampliavam a possibilidade de exercerem a função de chefe famíliar, uma vez que tinham acesso mais fácil ao mercado de trabalho do que os homens. 2 Apud BERNARDO, 1998: 61. 6 ANPUH – XXV SIMPÓSIO NACIONAL DE HISTÓRIA – Fortaleza, 2009. A liberdade que as mulheres negras já possuíam na África, em razão de serem, em muitas regiões, responsáveis pela venda de produtos em feiras e por colaboração na subsistência do lar, ganhou maior relevância com o modelo de organização familiar estabelecido por lei no Brasil durante a escravidão. Esse arranjo,por sua vez, firmou-se nas primeiras décadas do século XX, como afirma Bernardo (1998), e ainda perdura nos dias de hoje (BERNARDO, 1998:61). Por meio do testemunho dado por dona Maria Puerta3 , contemporânea e amiga de Carolina, é possível perceber que os moradores da favela estranhavam o fato de ela “apesar de decente, viver sozinha, pois, no Canindé, as famílias tinham pai e mãe”. Carolina não se importava com o que os outros pensavam sobre ela. Vivia de acordo com sua vontade. Nem por isso aqueles que viviam a sua volta deixavam de cobrar dela uma postura diferente em relação ao matrimônio. Em uma conversa com um senhor que a observava escrever cercada de crianças pode-se perceber isto: “- seu marido onde trabalha? – não tenho marido, e nem quero! Uma senhora que estava me olhando escrever despediu-se. Pensei: Talvez ela não tenha apreciado a minha resposta” (JESUS, 2006:20). Às vezes as represálias vêm dos próprios filhos. Como no dia em que ela foi buscar umas tábuas que havia ganhado e pretendia fazer um quartinho para escrever e guardar seus livros, como ela tinha muita dificuldade para ajeitar a madeira na carrocinha, que tinha tomado emprestada, seu filho José Carlos, o qual, vendo o sofrimento da mãe, diz: “porque é que a senhora não casou? Agora a senhora tinha um homem para ajudar” (JESUS, 2006:78). Seus amores não foram poucos, tanto que cada filho é de um pai diferente, mas não se prendeu a nenhum dos amantes durante muito tempo. A idéia de casamento e família formada por pai e mãe presente no pensamento da sociedade não fazia parte do universo de Carolina. Ela e seus filhos eram uma família. É oportuno registrar que os lares matrifocais não são exclusivos das mulheres negras, como bem afirma Maria Odila Dias (1995), uma vez que mulheres brancas, negras e índias sozinhas já eram uma constante na cidade de São Paulo no século XIX. A autora acrescenta ainda cidades como Rio de Janeiro, Salvador e o arraial de Vila Rica É preciso considerar que, apesar de seu pouco tempo de estudo, Carolina conseguiu romper de maneira tímida as barreiras do analfabetismo por meio de leituras diárias. Era uma das poucas mulheres que sabiam ler e escrever na favela, por isso muitas vezes era 3 Testemunho pode ser encontrado em: LEVINE, R. e MEIRY, J. C.S. Cinderela negra: a saga de Carolina Maria de Jesus. Rio de Janeiro: UFRJ, 1994. 7 ANPUH – XXV SIMPÓSIO NACIONAL DE HISTÓRIA – Fortaleza, 2009. responsável pela discussão com outros moradores a respeito de notícias de jornal lidas por ela, em especial sobre política. Assim, pode-se constatar que o universo feminino de Carolina foi muito diferente do das outras escritoras contemporâneas a ela como Clarice Lispector, Cecília Meirelles e Raquel de Queiroz, para citar apenas alguns nomes. Apresentou disparidade até mesmo em relação às mulheres que como ela residiam na favela; não apenas pelo fato de ela ter escolhido viver só com os filhos e, aparentemente, ter conseguido proporcionar a eles uma vida melhor em comparação a das outras crianças que ali viviam. Acima de tudo por nunca ter se conformado, como ela mesma diz em várias passagens de seu diário, com o fato de ter que morar na favela. Foi por isso que ela nunca deixou de acreditar que escrever um livro a ajudaria a tirar os filhos daquele lugar. Carolina não desistiu, mesmo depois de ter tentado inúmeras vezes publicar seus escritos no Brasil, sem sucesso. Ela tentou também fazê-lo nos Estados Unidos, acreditando que lá seu trabalho seria reconhecido. Mas, como já foi dito anteriormente, o sonho só deixou de ser sonho quando ela conheceu Audálio Dantas. No entanto, é preciso relembrar que ela não abriu mão totalmente de sua autonomia, mesmo depois de tê-lo conhecido e de ter sido auxiliada por ele na publicação de algumas de suas obras. Foi tentando preservar sua liberdade que ela abriu mão da parceria com o jornalista, e tendo ou não tido sucesso, depois do arranjo desfeito, ela continuou dona de si.

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