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REFLEXÕES SOBRE ÉTICA E SIGILO PROFISSIONAL RESUMO: O presente trabalho discute o significado do sigilo profissional, tal como ele aparece no Código de Ética Profissional dos Assistentes Sociais de 1993. A proposta é refletir sobre o tema a partir do debate sobre o significado social da profissão e da ética profissional, buscando estabelecer relações com as escolhas profissionais realizadas no cotidiano do exercício. ABSTRACT: The present work argues the meaning of the professional secrecy, as it appears in the Code of Professional Ethics of the Social Workers of 1993. The proposal is to reflect on the subject from the debate on the meaning social of the profession and the professional ethics, searching to establish relations with the carried through professional choices in the daily one of the exercise. PALAVRAS-CHAVE: Serviço Social – ética profissional – sigilo 1. Algumas dimensões que envolvem a questão do sigilo profissional Parece-nos ser ponto pacífico, no âmbito da categoria profissional, a importância de garantir à população atendida condições de atendimento que lhe garantam preservação de sua intimidade. Ao se falar em condições éticas e técnicas de trabalho, entendemos que se trata da defesa da qualidade dos serviços prestados à população usuária do Serviço Social. Nesse sentido, o Código de Ética Profissional é claro com relação a isso: além de ser direito do assistente social dispor de condições condignas de trabalho (Art. 7º, alínea a), o Código é bastante explícito no que diz respeito ao direito de assistentes sociais a “inviolabilidade do local de trabalho e respectivos arquivos e documentação, garantindo o sigilo profissional” (BONETTI et. al., 2007, p. 219). A Resolução CFESS 493/06 visa, justamente, regulamentar tais dispositivos do Código de Ética, vinculados ainda ao Art. 15, que dispõe especificamente sobre o sigilo profissional. No estado do Rio de Janeiro, esses direitos estão expressos, ainda, em uma lei estadual – Lei 1373/08, que após fazer a defesa da importância da dignidade e da privacidade do atendimento, afirma: Art. 2º - Além do disposto no artigo anterior, o ambiente físico do local de atendimento por profissional de serviço social deverá ser estruturado atendendo aos seguintes parâmetros: I. ser visual e acusticamente indevassável; II. evitar qualquer interferência ou interrupção no transcurso do atendimento; III. possuir adequadas condições de higienização, ventilação e iluminação; IV. ser dotado de mobiliário adequado e compatível com o atendimento; V. possuir arquivo passível de ser trancado à chave, que sirva para a guarda do material técnico e documentação sigilosa de exercício da profissão de assistente social. As prerrogativas apresentadas acima nos faz concordar com Terra (2012) quando esta afirma que, apesar do Art. 15 do Código de Ética Profissional definir o sigilo profissional como direito do assistente social, ele também pode ser entendido como “obrigação” profissional. Isso se dá em razão do Art. 16 versar sobre o papel que o sigilo possui de proteção do usuário. Sobre esse papel, a autora faz a seguinte afirmação: A proteção abrange “tudo aquilo” que o assistente social toma conhecimento na relação profissional. Inclui, consequentemente, qualquer informação oral, escrita, expressada por qualquer meio, mesmo aquilo que possa ser deduzido ou interpretado pelo profissional em relação ao usuário. Nada pode, portanto, ser revelado. A proteção abrange aquilo que se constitui e se caracteriza como “segredo” para o usuário, mas também todas as outras formas de expressão. A infração se expressa na vontade livre e consciente de o assistente social revelar segredo profissional. Consuma-se a infração ética com o ato de divulgar ou dar conhecimento, por qualquer meio, independentemente do prejuízo (p. 207) Observa-se, no entendimento da autora, que sigilo profissional equipara-se a ideia de “segredo”. Sobre isso, Oliveira (2011) revela que, na própria história da profissão, esses conceitos se confundem. Ao analisar os diferentes Códigos de Ética Profissional, em 3 deles o termo utilizado é “sigilo” (1947, 1986 e 1993) e, nos outros 2, “segredo” (1965 e 1975). Atribui essa diferença a uma conotação moralista que o termo “segredo” traz, e que isso coadunava com as práticas profissionais desenvolvidas nos períodos em que o termo apareceu nos Códigos de Ética. Não nos parece uma diferenciação meramente semântica. A diferença entre “sigilo” e “segredo” parece não ser muito clara, e, ao nosso ver, ainda produz muita confusão no seio da categoria e entre aqueles que tentam interpretar o sentido do termo no Código de Ética Profissional e sua relação com o exercício. Assim, o objetivo deste trabalho é realizar um reflexão que possa contribuir para apontar que existem diferenças significativas entre um termo e outro, uma vez que entendemos o significado sócio-histórico das práticas profissionais e, mais especificamente, do que estamos falando quando associamos sigilo ao debate sobre a ética profissional. 2. O significado sócio-histórico das profissões e as particularidades do Serviço Social Iamamoto e Carvalho (1982) inauguraram, no âmbito do Serviço Social, uma leitura com inspiração marxiana para explicar o significado sócio-histórico da profissão. Os autores, após analisarem as relações sociais capitalistas, discorrem sobre as formas históricas como essa sociedade constroem o trabalho coletivo e sua divisão social. Trata-se de entender a inserção do Serviço Social na divisão sociotécnica do trabalho. O pressuposto dessa leitura é o reconhecimento de que o trabalho, atividade fundante do ser social, do ser que vivem em sociedade, organiza-se de forma coletiva e social. Também a literatura profissional crítica reconhece o Serviço Social como profissão que se insere no mundo do trabalho através de relações de assalariamento (NETTO, 2005). Sem querer resgatar todos os fundamentos teóricos e filosóficos que sustentam essa visão, o importante a se destacar é que o Serviço Social, como profissão inserida no mundo do trabalho na sociedade capitalista, responde a necessidades históricas e objetivas postas por esta sociedade. As relações de assalariamento, próprias da ordem burguesa, impõem constrangimentos àqueles que vendem sua força de trabalho para um empregador. Ao deter os meios de produção de determinada atividade, os empregadores remuneram seus trabalhadores, requerendo deles respostas a diferentes demandas, a partir de conhecimentos e habilidades particulares que vão sendo constituídas por esses sujeitos profissionais. Assim, uma profissão, ao responder a necessidades históricas, demarca o seu significado social e o seu lugar na divisão sociotécnica do trabalho. Cumpre, portanto, um papel histórico: prestam serviços à sociedade – a partir dos conhecimentos e habilidades que possuem. Mas não a qualquer sociedade. E talvez esse seja o grande legado que a teoria social crítica deu ao Serviço Social brasileiro: trata-se de uma sociedade marcada pelos conflitos de classes, de interesses contraditórios, de relações de exploração e dominação de um lado, e de resistência e conquistas de direitos na busca da socialização da riqueza socialmente produzida, por outro lado. Foi com base nessa perspectiva de análise que foi possível pensar em um direcionamento ético-moral diferente das bases conservadoras que constituíram as propostas e os objetivos profissionais quando da sua origem. Uma profissão, para além das condições objetivas que a constituem, também é produto de como os sujeitos profissionais a compreendem, de quais são os objetivos que tais sujeitos lhe imprimem. Os princípios éticos afirmados no Código de Ética Profissional vigente, segundo Barroco (2007) são a expressão de uma opção política que o Serviço Social brasileiro realizou: o compromissocom as classes trabalhadoras e com os valores emancipatórios. A afirmação de uma posição diante dos conflitos fundantes da ordem social burguesa. É a partir dessa tensão – a necessidade de responder às demandas sociais postas ao Serviço Social como profissão inscrita na divisão social e técnica do trabalho na sociedade capitalista, e a opção ética e política de construir uma prática profissional que objetive a construção de uma nova ordem social, pautada na liberdade como valor ético central e na defesa intransigente dos direitos humanos – que é possível pensar, em nossa opinião, o significado do sigilo profissional. 3. O sigilo profissional como opção política dos profissionais A inserção profissional na divisão sociotécnica do trabalho na sociedade capitalista, em condições de assalariamento, determina as formas de sociabilidade dos profissionais em diversos espaços: no âmbito das organizações, com as instâncias de poder, com outros profissionais, com as hierarquias institucionais, com a população atendida. Um exercício profissional é impensável desvinculado desse conjunto de relações – que, em síntese, são mediações que expressam, a partir de diferentes particularidades, as próprias relações sociais. Por isso, a tomada de conhecimento sobre a realidade social da população usuária vivida pelos profissionais de Serviço Social, que atua em diferentes instituições em condições de assalariamento, não é e nunca poderá ser tratada como “segredo”. Se tudo aquilo que o assistente social tomar conhecimento em decorrência do exercício profissional for considerado “segredo”, tudo será segredo, porque qualquer exercício profissional requer conhecer determinada realidade. Nesse sentido, vale resgatar a citação que Terra (2012) faz do filósofo grego antigo Hipócrates, que, segundo sua visão, já “anunciava o paradigma do sigilo profissional”: “Aquilo que no exercício ou fora do exercício da profissão e no convívio da sociedade, eu tiver visto ou ouvido, que não seja preciso divulgar, eu conservarei inteiramente secreto” (HIPÓCRATES apud TERRA: 2012, p. 209. Grifos nossos). Assim, o termo grifado, “que não seja preciso divulgar”, já emite uma posição que não equipara “sigilo” a “segredo”. A questão que se coloca aos profissionais é: diante de uma sociedade marcada por conflitos sociais; diante de requisições conservadoras que são postas a assistentes sociais no cotidiano das instituições; e diante de um posicionamento ético-político que intenta romper com práticas e concepções conservadoras visando à emancipação social, qual(is) é(são) o(s) critério(s) de definição do que é ou não é preciso divulgar? Para nós, a resposta a essa questão está nos fundamentos éticos que informam os princípios afirmados no Código de Ética de 1993. O princípio da liberdade no nosso Código de Ética aparece vinculada, segundo Sales e Paiva (2007), àquilo que o texto qualifica de “demandas políticas a ela inerentes – autonomia, emancipação e plena expansão dos indivíduos sociais”. Segundo as autoras: Sabe-se, contudo, que esse projeto de realização da liberdade é colidente com a dinâmica social capitalista, que em si é limitadora da liberdade, quase sempre reduzida aos seus termos formas e jurídicos. Embasado nessa fecunda noção de libe3rdade, o Código de 1993 opera o resgate da dimensão do indivíduo como sujeito como direito à liberdade. Quando se opta pela caracterização dos indivíduos sociais, estamos expressando uma concepção mais ampla de indivíduo que se deseja construir, com a qual estamos comprometidos – “a cada um segundo as suas necessidades e de cada um segundo as suas possibilidades”, conforme diz Marx. Daí o claro posicionamento em favor da construção de uma nova sociedade (p. 182. Grifo das autoras). A concepção de indivíduos sociais, presente no texto do Código de Ética e na reflexão acima, é o que é fundamental para o objeto da nossa reflexão. Trata-se de uma compreensão de liberdade para além da liberdade individual, mas a concepção kantiana da liberdade como produto da sociabilidade humana pautada em uma racionalidade universal. A liberdade não é, aqui, uma conquista de cada indivíduo, pois não se fala de seres atomizados – fala-se em indivíduos sociais, em seres que constituem suas relações em sociedade. E se o “reino da liberdade” é a conquista máxima que os indivíduos sociais devem almejar, o que concluímos é que a liberdade de cada indivíduo só é possível se todos os indivíduos forem livres. Essa concepção de liberdade é impensável em uma sociabilidade como a capitalista, pautada em diversas formas exploração, dominação e opressão. Se é uma sociedade que não exista essas formas que o Código de Ética afirma que deve ser o horizonte do Serviço Social, “a defesa intransigente dos direitos humanos e a recusa do arbítrio e do autoritarismo” se torna uma das principais ferramentas para o cotidiano do exercício profissional. Aqui, partimos da concepção de direitos humanos defendida por Trindade (2002). Os direitos humanos são criados e conquistados a partir das necessidades socialmente construídas, e das estratégias empreendidas por classes e segmentos sociais para satisfazê-las no cotidiano da vida em sociedade. São, sobretudo, produto das disputas que ocorrem na vida social. A história moderna demonstra o quanto os direitos humanos estão tensionados pelos diferentes projetos societários em disputa. Apesar de terem sido amplamente utilizados para responder aos interesses da burguesia revolucionária e conservadora, Trindade (2002) nos mostra que o surgimento da classe trabalhadora no cenário político recolocou o debate sobre os direitos humanos para além do projeto de dominação e manutenção da ordem burguesa. A ampliação dos direitos humanos para além dos direitos civis e políticos, mas incorporando a eles direitos sociais, econômicos e culturais, deu aos mesmos aspectos absolutamente novos: a possibilidade de serem ferramentas importantes para pensar em práticas sociais emancipatórias, que superem o “reino da necessidade”, que possam realizar a justiça social através da distribuição da riqueza socialmente produzida. A bandeira dos direitos humanos, alavancada pelo projeto da Modernidade e em constante disputa pelos sujeitos políticos desta sociedade, sempre defendeu o princípio da universalidade. Daí ela se encontra com a defesa da liberdade como valor ético central: os direitos humanos, tais como as classes trabalhadoras e os diversos segmentos explorados, dominados e oprimidos nesta sociedade defendem, são irrealizáveis nesta sociedade. A defesa da universalidade da liberdade e dos direitos humanos é, assim, uma ferramenta política para aqueles que se posicionam, nesta sociedade, pela sua superação. Mais uma vez recorremos a Sales e Paiva para ilustrar o que queremos dizer aqui: É necessário insistir na questão da universalidade, porque os assistentes sociais precisam fortalecer cada vez mais, junto aos usuários, o entendimento de que eles têm direito ao franco trânsito e alcance em termos dos programas e das políticas, enquanto forma de viabilizar a distribuição de riquezas produzidas no seio da sociedade capitalista (2007, p. 191). Se são essas as opções políticas que o Serviço Social brasileiro faz do ponto de vista ético-político, são elas que devem nortear os critérios de definição sobre o que é sigiloso e o que é passível se ser revelado. Todas as informações prestadas por assistentes sociais que contribuam para que a população usuária, em sua universalidade, possa ampliar o seu acesso a direitos, e denunciar as formas de violação, não só não são sigilosas, como devem ser reveladas, de modo a ser utilizada para fortalecer as disputas sociais na defesa dos direitos humanos em sua concretude. Proteger o usuário, aqui, é mais amplo do que uma concepção marcada pelo atendimento individual, mas é protegê- lode tantas formas de violação de direitos que o cenário neoliberal impõe aos indivíduos, especialmente aos trabalhadores; Se os direitos humanos são entendidos como universais, e que se particularizam a partir de determinadas situações singulares que chegam ao conhecimento do assistente social (PONTES, 2002), o usuário do Serviço Social não é o indivíduo que ele atende. Ele é, na concepção ética apresentada, indivíduo social. Protegê-lo e garantir seus direitos não pode ser violar os direitos de outros – como, infelizmente, assistimos na atualidade com o recrudescimento de práticas punitivas e conservadoras. Trabalhar na perspectiva de garantir os direitos do usuário é de garantir os direitos de todos, cada vez mais violados no cenário da hegemonia neoliberal. Portanto, é informação sigilosa qualquer informação que possa, sem a menor necessidade, prejudicar o acesso de qualquer indivíduo a seus direitos – usuário direto ou não. O Código de Ética Profissional é igualmente claro em outras situações que requeiram a “quebra de sigilo”. Contudo, os princípios éticos afirmados no mesmo código devem ser o parâmetro para que os assistentes sociais possam, inclusive, “medir o tom” que darão ao prestar as informações a terceiros. Trazer prejuízos a qualquer usuário fere o princípio da universalidade dos direitos humanos, e então, sim, estaremos diante de uma infração da ética profissional. Portanto, o que concluímos é que o critério de escolha do profissional sobre o que é e o que não é sigiloso é essencialmente político. Portanto, coaduna com as opções coletivas que o Serviço Social brasileiro fez nas últimas décadas, e que desencadeou na aprovação do código normativo ético dessa profissão (BARROCO, 2007). Referências BARROCO, Maria Lúcia. Ética e Serviço Social: fundamentos ontológicos. 5. ed. São Paulo: Cortez, 2007. CFESS. Resolução 493/2006. Disponível em: <http://www.cfess.org.br/arquivos/Resolucao_493-06.pdf>. Acesso em: 29 de abril de 2013. IAMAMOTO, Marilda Vilela & CARVALHO, Raul. Relações Sociais e Serviço Social no Brasil: esboço de uma interpretação histórico-metodológica. São Paulo; Lima [Peru], Cortez; CELATS, 1982. http://www.cfess.org.br/arquivos/Resolucao_493-06.pdf NETTO, José Paulo. Capitalismo monopolista e Serviço Social. 4. ed. São Paulo: Cortez, 2005. OLIVEIRA, Rayanne Danielle Costa Cardoso de. O sigilo profissional dos assistentes sociais: um estudo dos Códigos de Ética e da concepção de profissionais. Rio das Ostras, RJ: Trabalho de Conclusão de Curso, 2011. (Graduação em Serviço Social). PAIVA, Beatriz Augusto de & SALES, Mione Apolinário. A nova ética profissional: práxis e princípios. In: BONETTI, Dilséa Adeodata et. al. (Orgs.) Serviço Social e ética: convite a uma nova práxis. 8. Ed. São Paulo: Cortez, 2007. PONTES, Reinaldo Nobre. Mediação e Serviço Social: um estudo preliminar sobre a categoria teórica e sua apropriação pelo serviço social/ Reinaldo Nobres Pontes. 3.ed. São Paulo: Cortez, 2002. TERRA, Sylvia Helena. Código de Ética do(a) Assistente Social: comentários a partir de uma perspectiva jurídico-normativa crítica. In: CFESS (Org.) Código de Ética do/a Assistente Social Comentado. São Paulo: Cortez, 2012. TRINDADE, José Damião de Lima. História Social dos Direitos Humanos. Petrópolis,RJ: Petrópolis, 2002.
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