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Fichas de trabalho F ich as d e trab alh o • Educação Literária • Leitura e Gramática • Gramática • Escrita • Cenários de resposta e soluções F Educação Literária Editável e fotocopiável © Texto | Mensagens 12.o ano 161 Lê o poema seguinte e responde às questões. 5 10 15 Cansa sentir quando se pensa Cansa sentir quando se pensa No ar da noite a madrugar Há uma solidão imensa Que tem por corpo o frio do ar. Neste momento insone e triste Em que nem sei quem hei de ser, Pesa-me o informe real que existe Na noite antes de amanhecer. Tudo isto me parece tudo. E é uma noite a ter um fim Um negro astral silêncio e surdo E não poder viver assim. (Tudo isto me parece tudo. Mas noite, frio, negror sem fim, Mundo mudo, silêncio mudo – Ah, nada é isto, nada é assim!) Fernando Pessoa, Poesias, 15.ª ed., Lisboa, Ática, 1995, p. 148. 1. O sujeito poético revela um estado de espírito triste e desalentado. 1.1 Caracteriza o estado emocional do sujeito lírco, tendo em conta as seguintes expressões: «nem sei quem hei de ser» (v. 6) ; «Pesa-me o informe real» (v. 7); «E não poder viver assim» (v. 12). 1.2 Ao longo do poema, o estado de espírito do sujeito poético enquadra-se no real circundante. Explicita esta afirmação, referindo o valor expressivo da enumeração e da adjetivação no texto. 2. Explica o sentido do verso «E é uma noite a ter um fim» (v. 10), no contexto do poema. 3. Esclarece o possível significado da contradição entre «Tudo isto me parece tudo» (v. 13) e «Ah, nada é isto, nada é assim!» (v. 16). Nome ____________________________________________ Ano ___________ Turma __________ N.o _________ Unidade 1 – Fernando Pessoa – Poesia do ortónimo Ficha de trabalho 1 Educação Literária James Abbott McNeill Whistler, Noturno Azul e Prata, 1872. 162 Editável e fotocopiável © Texto | Mensagens 12.o ano 4. Justifica o discurso parentético presente no final da composição poética. 5. Tendo por base o poema e a análise que acabaste de fazer, indica, justificando, o tema pessoano central aqui tratado. Editável e fotocopiável © Texto | Mensagens 12.o ano 163 Lê o poema seguinte e responde às questões 5 10 15 20 25 30 O Menino da sua Mãe No plaino abandonado Que a morna brisa aquece, De balas traspassado — Duas, de lado a lado —, Jaz morto, e arrefece. Raia-lhe a farda o sangue. De braços estendidos, Alvo, louro, exangue, Fita com olhar langue E cego os céus perdidos. Tão jovem! que jovem era! (Agora que idade tem?) Filho único, a mãe lhe dera Um nome e o mantivera: «O menino da sua mãe». Caiu-lhe da algibeira A cigarreira breve. Dera-lha a mãe. Está inteira E boa a cigarreira. Ele é que já não serve. De outra algibeira, alada Ponta a roçar o solo, A brancura embainhada De um lenço... Deu-lho a criada Velha que o trouxe ao colo. Lá longe, em casa, há a prece: «Que volte cedo, e bem!» (Malhas que o Império tece!) Jaz morto, e apodrece, O menino da sua mãe. Fernando Pessoa, Poesia do Eu (ed. Richard Zenith) 3.ª ed., Lisboa, Assírio & Alvim, 2014, pp. 180-181. Nome ____________________________________________ Ano ___________ Turma __________ N.o _________ Unidade 1 – Fernando Pessoa – Poesia do ortónimo Ficha de trabalho 2 Educação Literária Paul Cézanne, O Rapaz de Colete Vermelho, 1880-1890. 164 Editável e fotocopiável © Texto | Mensagens 12.o ano 1. Apresenta uma divisão lógica para o poema e resume cada uma das partes. 2. Como um hábil realizador de cinema, o sujeito lírico compõe o seu poema, através de uma sucessão de planos, personagens e espaços. Comprova esta afirmação com elementos textuais. 3. Atenta na pontuação da última estrofe. Justifica a sua utilização. 4. Identifica o recurso expressivo em «Jaz morto, e arrefece.» (v. 5) e «Jaz morto, e apodrece» (v. 29), explicitando o seu valor. 5. Caracteriza objetiva e simbolicamente a personagem central do poema. Editável e fotocopiável © Texto | Mensagens 12.o ano 165 Lê o seguinte excerto do Livro do Desassossego e responde às questões. 5 10 15 20 Releio passivamente, recebendo o que sinto como uma inspiração e um livramento, aquelas frases simples de Caeiro, na referência natural do que resulta do pequeno tamanho da sua aldeia. Dali, diz ele, porque é pequena, pode ver-se mais do mundo do que da cidade; e por isso a aldeia é maior que a cidade... «Porque eu sou do tamanho do que vejo E não do tamanho da minha altura.» Frases como estas, que parecem crescer sem vontade que as houvesse dito, limpam-me de toda a metafísica que espontaneamente acrescento à vida. Depois de as ler, chego à minha janela sobre a rua estreita, olho o grande céu e os muitos astros, e sou livre com um esplendor alado cuja vibração me estremece no corpo todo. «Sou do tamanho do que vejo!» Cada vez que penso esta frase com toda a atenção dos meus nervos, ela me parece mais destinada a reconstruir consteladamente o universo. «Sou do tamanho do que vejo!» Que grande posse mental vai desde o poço das emoções profundas até às altas estrelas que se refletem nele, e, assim, em certo modo, ali estão. E já agora, consciente de saber ver, olho a vasta metafísica objetiva dos céus todos com uma segurança que me dá vontade de morrer cantando. «Sou do tamanho do que vejo!» E o vago luar, inteiramente meu, começa a estragar de vago o azul meio-negro do horizonte. Tenho vontade de erguer os braços e gritar coisas de uma selvajaria ignorada, de dizer palavras aos mistérios altos, de afirmar uma nova personalidade larga aos grandes espaços da matéria vazia. Mas recolho-me e abrando. «Sou do tamanho do que vejo!» E a frase fica-me sendo a alma inteira, encosto a ela todas as emoções que sinto, e sobre mim, por dentro, como sobre a cidade por fora, cai a paz indecifrável do luar duro que começa largo com o anoitecer. Bernardo Soares, Livro do Desassossego: composto por Bernardo Soares, ajudante de guarda-livros na cidade de Lisboa (ed. Richard Zenith), 7.ª ed., Lisboa, Assírio & Alvim 2014, p. 71. 1. Caracteriza os vários estados de espírito manifestados por Bernardo Soares ao longo do fragmento, relacionando-os com a repetição da expressão «Sou do tamanho do que vejo!». 2. Esclarece de que forma a expressão «metafísica objetiva» se apresenta, simultaneamente, contraditória e real. 3. Clarifica o sentido das seguintes expressões: a) «consciente de saber ver» (l. 15); b) «E a frase fica-me sendo a alma inteira» (l. 20). 4. Compara, nas suas semelhanças e nas suas diferenças, as posições de Alberto Caeiro e de Bernardo Soares perante a frase «Sou do tamanho do que vejo!», l. 11. Nome ____________________________________________ Ano ___________ Turma __________ N.o _________ Unidade 1 – Fernando Pessoa – Bernardo Soares, Livro do Desassossego Ficha de trabalho 3 Educação Literária 166 Editável e fotocopiável © Texto | Mensagens 12.o ano Lê o seguinte excerto do Livro do Desassossego e responde às questões. 5 10 15 20 O único viajante com verdadeira alma que conheci era um garoto de escritório que havia numa outra casa, onde em tempos fui empregado. Este rapazito colecionava folhetos de propaganda de cidades, países e companhias de transportes; tinha mapas – uns arrancados de periódicos, outros que pedia aqui e ali –; tinha, recortadas de jornais e revistas, ilustrações de paisagens, gravuras de costumes exóticos, retratos de barcos e navios. Ia às agências de turismo, em nome de um escritório hipotético, ou talvez em nome de qualquer escritório existente, possivelmente opróprio onde estava, e pedia folhetos sobre viagens para a Itália, folhetos de viagens para a Índia, folhetos dando as ligações entre Portugal e a Austrália. Não só era o maior viajante, porque o mais verdadeiro, que tenho conhecido: era também umas das pessoas mais felizes que me tem sido dado encontrar. Tenho pena de não saber o que é feito dele, ou, na verdade, suponha somente que deveria ter pena: na realidade não a tenho, pois hoje, que passaram dez anos, ou mais, sobre o breve tempo em que o conheci, deve ser homem, estúpido, cumpridor dos seus deveres, casado talvez, sustentáculo social de qualquer – morto, enfim, em sua mesma vida. É até capaz de ter viajado com o corpo, ele que tão bem viajava com a alma. Recordo-me de repente: ele sabia exatamente por que vias-férreas se ia de Paris a Bucareste, por que vias-férreas se percorria a Inglaterra, e, através das pronúncias erradas dos nomes estranhos, havia a certeza aureolada da sua grandeza de alma. Hoje, sim, deve ter existido para morto, mas talvez um dia, em velho, se lembre como é não só melhor, senão mais verdadeiro, o sonhar com Bordéus do que desembarcar em Bordéus. E, daí, talvez isto tudo tivesse outra explicação qualquer, e ele estivesse somente imitando alguém. Ou... Sim, julgo às vezes, considerando a diferença hedionda entre a inteligência das crianças e a estupidez dos adultos, que somos acompanhados na infância por um espírito da guarda, que nos empresta a própria inteligência astral, e que depois, talvez com pena, mas por uma lei alta, nos abandona, como as mães animais às crias crescidas, ao cevado que é o nosso destino. Bernardo Soares, Livro do Desassossego: composto por Bernardo Soares, ajudante de guarda-livros na cidade de Lisboa (ed. Richard Zenith), 7.ª ed., Lisboa, Assírio & Alvim, 2014, pp. 357-358. 1. Explica o duplo sentido de viagem expresso neste excerto. 2. Explicita o sentido dos seguintes excertos: a) «morto, enfim, em sua mesma vida» (l. 13); b) «como é não só melhor, senão mais verdadeiro, o sonhar com Bordéus do que desembarcar em Bordéus» (ll. 18-19). 3. Identifica o papel deste rapaz na introspeção de Bernardo Soares. 4. Relaciona a visão do sujeito da enunciação do «garoto de escritório» e a conclusão expressa no final do fragmento. Nome ____________________________________________ Ano ___________ Turma __________ N.o _________ Unidade 1 – Fernando Pessoa – Bernardo Soares, Livro do Desassossego Ficha de trabalho 4 Educação Literária Editável e fotocopiável © Texto | Mensagens 12.o ano 167 Lê o seguinte poema de Alberto Caeiro e responde às questões. 5 10 15 O guardador de rebanhos XXXIX O mistério das cousas, onde está ele? Onde está ele que não aparece Pelo menos a mostrar-nos que é mistério? Que sabe o rio disso e que sabe a árvore? E eu, que não sou mais do que eles, que sei disso? Sempre que olho para as cousas e penso no que os homens pensam delas, Rio como um regato que soa fresco numa pedra. Porque o único sentido oculto das cousas É elas não terem sentido oculto nenhum. É mais estranho do que todas as estranhezas E do que os sonhos de todos os poetas E os pensamentos de todos os filósofos, Que as cousas sejam realmente o que parecem ser E não haja nada que compreender. Sim, eis o que os meus sentidos aprenderam sozinhos: As cousas não têm significação, têm existência. As cousas são o único sentido oculto das cousas. Alberto Caeiro, Poesia de Alberto Caeiro (ed. Fernando Cabral Martins e Richard Zenith), 3.ª ed., Lisboa, Assírio & Alvim, 2014, p. 75. 1. Identifica a temática do poema, justificando com elementos textuais. 2. Na primeira estrofe, Caeiro interroga-se sobre «o mistério das coisas». 2.1. Esclarece o que o leva a essa interrogação. 2.2. Explica de que forma a identificação com a Natureza funciona como argumento nessa interrogação. 2.3. Explicita como se vê o sujeito poético em relação ao «outro». 3. Na segunda estrofe, o sujeito poético apresenta a sua argumentação. 3.1. Justifica o uso do articulador causal a iniciar a estrofe. 3.2. Explica o paradoxo presente nos dois primeiros versos. 4. Refere marcas características da poesia de Caeiro, presentes nesta composição poética. Nome ____________________________________________ Ano ___________ Turma __________ N.o _________ Unidade 1 – Fernando Pessoa – Alberto Caeiro Ficha de trabalho 5 Educação Literária 168 Editável e fotocopiável © Texto | Mensagens 12.o ano Lê o seguinte poema de Alberto Caeiro e responde às questões. 5 10 15 20 O guardador de rebanhos XXXIV Acho tão natural que não se pense Que me ponho a rir às vezes, sozinho, Não sei bem de quê, mas é de qualquer cousa Que tem que ver com haver gente que pensa… Que pensará o meu muro da minha sombra? Pergunto-me às vezes isto até dar por mim A perguntar-me cousas… E então desagrado-me, e incomodo-me Como se desse por mim com um pé dormente… Que pensará isto de aquilo? Nada pensa nada. Terá a terra consciência das pedras e plantas que tem? Se ela a tiver, que tenha… Que me importa isso a mim? Se eu pensasse nestas cousas, Deixava de ver as árvores e as plantas E deixava de ver a Terra, Para ver só os meus pensamentos… Entristecia e ficava às escuras. E assim, sem pensar, tenho a Terra e o Céu. Alberto Caeiro, Poesia de Alberto Caeiro (ed. Fernando Cabral Martins e Richard Zenith), 3.ª ed., Lisboa, Assírio & Alvim, 2014, p. 70. . 1. Caracteriza o sujeito poético, com base na primeira estrofe do poema. 2. Identifica os sentimentos expressos nos versos «E então desagrado-me, e incomodo-me» (v. 8). 3. Explica o significado do verso «Que me importa isso a mim?» (v. 14), tendo em conta o contexto em que surge. 4. Refere as marcas de coloquialidade presentes no poema, salientando os efeitos que produzem. 5. Comenta o sentido do verso «E assim, sem pensar, tenho a Terra e o Céu» (v. 20) enquanto conclusão do poema e de acordo com a temática tratada. Nome ____________________________________________ Ano ___________ Turma __________ N.o _________ Unidade 1 – Fernando Pessoa – Alberto Caeiro Ficha de trabalho 6 Educação Literária Paul Sérusier, Anoitecer, c. 1884. Editável e fotocopiável © Texto | Mensagens 12.o ano 169 Lê o seguinte poema de Ricardo Reis e responde às questões. 5 10 Cada um cumpre o destino que lhe cumpre, E deseja o destino que deseja; Nem cumpre o que deseja, Nem deseja o que cumpre. Como as pedras na orla dos canteiros O Fado nos dispõe, e ali ficamos; Que a Sorte nos fez postos Onde houvemos de sê-lo. Não tenhamos melhor conhecimento Do que nos coube que de que nos coube. Cumpramos o que somos. Nada mais nos é dado. Ricardo Reis, Poesia (ed. Manuela Parreira da Silva), 2.ª ed., Lisboa, Assírio & Alvim, 2007, p. 123. . 1. Divide o texto em partes, justificando a tua opção. 2. Relaciona a estrutura ideológica do poema com as temáticas características de Ricardo Reis. 3. Explica o sentido dos versos, de acordo com a poética de Ricardo Reis. 3.1 «Cada um cumpre o destino que lhe cumpre» (v. 1). 3.2 «Como as pedras na orla dos canteiros / O Fado nos dispõe, e ali ficamos» (vv. 5-6). 3.3 «Que a Sorte nos fez postos / Onde houvemos de sê-lo» (vv. 7-8). 4. Comenta a estrutura e o conteúdo dos seguintes versos «Nem cumpre o que deseja, / Nem deseja o que cumpre.» (vv. 3-4). 5. Caracteriza o poema tendo em conta a sua forma estrófica, métrica e rimática. Nome ____________________________________________ Ano ___________ Turma __________ N.o _________ Unidade 1 – Fernando Pessoa – Ricardo Reis Ficha de trabalho 7 Educação Literária José Júlio de Sousa Pinto, Paisagem com Lago e Casas, s.d. 170Editável e fotocopiável © Texto | Mensagens 12.o ano Lê o seguinte poema de Ricardo Reis e responde às questões. 5 10 15 Prefiro rosas, meu amor, à pátria, E antes magnólias amo Que a glória e a virtude. Logo que a vida não me canse, deixo Que a vida por mim passe Logo que eu fique o mesmo. Que importa àquele a quem já nada importa Que um perca e outro vença, Se a aurora raia sempre, Se cada ano com a Primavera As folhas aparecem E com o Outono cessam? E o resto, as outras coisas que os humanos Acrescentam à vida, Que me aumentam na alma? Nada, salvo o desejo de indif’rença E a confiança mole Na hora fugitiva. Ricardo Reis, Poesia (ed. Manuela Parreira da Silva), 2.ª ed., Lisboa, Assírio & Alvim, 2007, p. 123. . 1. Identifica a temática presente no poema de Ricardo Reis, justificando a tua resposta. 2. Divide o poema em partes lógicas, justificando a tua resposta. 3. Explica o sentido dos seguintes versos: 3.1 «Prefiro rosas, meu amor, à pátria» (v. 1). 3.2 «Logo que eu fique o mesmo.» (v. 6). 3.3 «E o resto, as outras coisas que os humanos / Acrescentam à vida» (vv. 13-14). 4. Comenta a ressalva que o sujeito poético evidencia na estrofe final. 5. Refere-te, especificamente, às expressões «confiança mole» (v. 17) e «hora fugitiva» (v. 18). Nome ____________________________________________ Ano ___________ Turma __________ N.o _________ Unidade 1 – Fernando Pessoa – Ricardo Reis Ficha de trabalho 8 Educação Literária Edvard Munch, Noite de Verão – Inger na Praia, 1884. Editável e fotocopiável © Texto | Mensagens 12.o ano 171 Lê o seguinte poema de Álvaro de Campos e responde às questões. 5 10 15 20 25 30 Tabacaria Não sou nada. Nunca serei nada. Não posso querer ser nada. À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo. Janelas do meu quarto, Do meu quarto de um dos milhões do mundo que ninguém sabe quem é (E se soubessem quem é, o que saberiam?), Dais para o mistério de uma rua cruzada constantemente por gente, Para uma rua inacessível a todos os pensamentos, Real, impossivelmente real, certa, desconhecidamente certa, Com o mistério das coisas por baixo das pedras e dos seres, Com a morte a pôr humidade nas paredes e cabelos brancos nos homens, Com o Destino a conduzir a carroça de tudo pela estrada de nada. Estou hoje vencido, como se soubesse a verdade. Estou hoje lúcido, como se estivesse para morrer, […] Estou hoje dividido entre a lealdade que devo À Tabacaria do outro lado da rua, como coisa real por fora, E à sensação de que tudo é sonho, como coisa real por dentro. Que sei eu do que serei, eu que não sei o que sou? Ser o que penso? Mas penso ser tanta coisa! E há tantos que pensam ser a mesma coisa que não pode haver tantos! Génio? Neste momento Cem mil cérebros se concebem em sonho génios como eu, E a história não marcará, quem sabe?, nem um, Nem haverá senão estrume de tantas conquistas futuras. […] O mundo é para quem nasce para o conquistar E não para quem sonha que pode conquistá-lo, ainda que tenha razão. Tenho sonhado mais que o que Napoleão fez. Tenho apertado ao peito hipotético mais humanidades do que Cristo, Tenho feito filosofias em segredo que nenhum Kant escreveu. Mas sou, e talvez serei sempre, o da mansarda, Ainda que não more nela; Serei sempre o que não nasceu para isso; Serei sempre só o que tinha qualidades; Nome ____________________________________________ Ano ___________ Turma __________ N.o _________ Unidade 1 – Fernando Pessoa – Álvaro de Campos Ficha de trabalho 9 Educação Literária 172 Editável e fotocopiável © Texto | Mensagens 12.o ano 35 40 45 50 55 60 65 70 Serei sempre o que esperou que lhe abrissem a porta ao pé de uma parede sem porta […] Chego à janela e vejo a rua com uma nitidez absoluta. Vejo as lojas, vejo os passeios, vejo os carros que passam, Vejo os entes vivos vestidos que se cruzam, Vejo os cães que também existem, E tudo isto me pesa como uma condenação ao degredo, E tudo isto é estrangeiro, como tudo. […] Essência musical dos meus versos inúteis, Quem me dera encontrar-te como coisa que eu fizesse, E não ficasse sempre defronte da Tabacaria de defronte, Calcando aos pés a consciência de estar existindo, Como um tapete em que um bêbado tropeça Ou um capacho que os ciganos roubaram e não valia nada. Mas o dono da Tabacaria chegou à porta e ficou à porta. Olhou-o com o desconforto da cabeça mal voltada E com o desconforto da alma mal-entendendo. Ele morrerá e eu morrerei. Ele deixará a tabuleta, e eu deixarei versos. A certa altura morrerá a tabuleta também, e os versos também. Depois de certa altura morrerá a rua onde esteve a tabuleta, E a língua em que foram escritos os versos. Morrerá depois o planeta girante em que tudo isto se deu. Em outros satélites de outros sistemas qualquer coisa como gente Continuará fazendo coisas como versos e vivendo por baixo de coisas como tabuletas, Sempre uma coisa defronte da outra, Sempre uma coisa tão inútil como a outra, Sempre o impossível tão estúpido como o real, Sempre o mistério do fundo tão certo como o sono de mistério da superfície, Sempre isto ou sempre outra coisa ou nem uma coisa nem outra. Mas um homem entrou na Tabacaria (para comprar tabaco?), E a realidade plausível cai de repente em cima de mim. Semiergo-me enérgico, convencido, humano, E vou tencionar escrever estes versos em que digo o contrário. O homem saiu da Tabacaria (metendo troco na algibeira das calças?). Ah, conheço-o: é o Esteves sem metafísica. (O dono da Tabacaria chegou à porta.) Como por um instinto divino o Esteves voltou-se e viu-me. Acenou-me adeus gritei-lhe Adeus ó Esteves!, e o universo Reconstruiu-se-me sem ideal nem esperança, e o dono da Tabacaria sorriu. Álvaro de Campos, Poesia de Álvaro de Campos (ed. Teresa Rita Lopes), 2.a ed., Lisboa, Assírio & Alvim, 2013, pp. 320-326. . Editável e fotocopiável © Texto | Mensagens 12.o ano 173 1. O poema pode dividir-se em quatro partes. 1.1 A primeira parte corresponde à primeira estrofe. Explica-a. 1.2 Esclarece a possível delimitação de uma segunda parte lógica da segunda estrofe ao verso «Serei sempre o que esperou que lhe abrissem a porta ao pé de uma parede sem porta» (v. 35). 1.3 Explicita a delimitação de uma terceira parte lógica de «Chego à janela e vejo a rua com uma nitidez absoluta.» (v. 36) até à entrada do homem na Tabacaria. 1.4 Clarifica de que forma a quarta e última parte marca o regresso à realidade com a entrada do homem na Tabacaria. 2. Explica o sentido das seguintes expressões: 2.1. «Mas sou, e talvez serei sempre, o da mansarda» (v. 31). 2.2. «E tudo isto me pesa como uma condenação ao degredo, /E tudo isto é estrangeiro, como tudo.» (vv. 40-41). 2.3. «Ah, conheço-o: é o Esteves sem metafísica.» (v. 69). 3. Identifica no poema as características formais de Campos. 4. Explica a relação do sujeito poético com a Tabacaria e o possível valor simbólico do estabelecimento, justificando a tua resposta com elementos do texto. 174 Editável e fotocopiável © Texto | Mensagens 12.o ano Lê o seguinte poema de Álvaro de Campos e responde às questões. 5 10 15 20 25 30 Datilografia Traço sozinho, no meu cubículo de engenheiro, o plano, Firmo o projeto, aqui isolado, Remoto até de quem eu sou. Ao lado, acompanhamento banalmente sinistro, O tic-tac estalado das máquinas de escrever. Que náusea da vida! Que abjeçãoesta regularidade! Que sono este ser assim! Outrora, quando fui outro, eram castelos e cavalarias (Ilustrações, talvez, de qualquer livro de infância), Outrora, quando fui verdadeiro ao meu sonho, Eram grandes paisagens do Norte, explícitas de neve, Eram grandes palmares do Sul, opulentos de verdes. Outrora. Ao lado, acompanhamento banalmente sinistro. O tic-tac estalado das máquinas de escrever. Temos todos duas vidas: A verdadeira, que é a que sonhamos na infância, E que continuamos sonhando, adultos num substrato de névoa; A falsa, que é a que vivemos em convivência com outros, Que é a prática, a útil, Aquela em que acabam por nos meter num caixão. Na outra não há caixões, nem mortes. Há só ilustrações de infância: Grandes livros coloridos, para ver mas não ler; Grandes páginas de cores para recordar mais tarde. Na outra somos nós, Na outra vivemos; Nesta morremos, que é o que viver quer dizer. Neste momento, pela náusea, vivo na outra... Nome ____________________________________________ Ano ___________ Turma __________ N.o _________ Unidade 1 – Fernando Pessoa – Álvaro de Campos Ficha de trabalho 10 Educação Literária André Mare, A Datilógrafa, 1922. Editável e fotocopiável © Texto | Mensagens 12.o ano 175 Mas ao lado, acompanhamento banalmente sinistro. Se, desmeditando, escuto, Ergue a voz o tic-tac estalado das máquinas de escrever. Álvaro de Campos, Poesia de Álvaro de Campos (ed. Teresa Rita Lopes), 2.ª ed., Lisboa, Assírio & Alvim, 2013, pp. 485-486. . 1. Explicita a relação existente entre o espaço em que o sujeito poético se encontra e o seu estado de espírito. 2. Apresenta uma interpretação devidamente fundamentada para o verso «Temos todos duas vidas» (v. 17), tendo em conta a globalidade do poema. 3. Explica a temática do poema, associando-a à dicotomia passado/presente. 4. Indica duas características da linguagem e estilo da poesia de Álvaro de Campos presentes na composição poética. 5. Infere o valor expressivo da onomatopeia «tic-tac». 176 Editável e fotocopiável © Texto | Mensagens 12.o ano Lê o seguinte poema, da Mensagem, e responde às questões. 5 10 15 20 25 O mostrengo O mostrengo que está no fim do mar Na noite de breu ergueu-se a voar; À roda da nau voou três vezes, Voou três vezes a chiar, E disse, «Quem é que ousou entrar Nas minhas cavernas que não desvendo, Meus tetos negros do fim do mundo?» E o homem do leme disse, tremendo, «El-Rei D. João Segundo!» «De quem são as velas onde me roço? De quem as quilhas que vejo e ouço?» Disse o mostrengo, e rodou três vezes, Três vezes rodou imundo e grosso, «Quem vem poder o que só eu posso, Que moro onde nunca ninguém me visse E escorro os medos do mar sem fundo?» E o homem do leme tremeu, e disse, «El-Rei D. João Segundo!» Três vezes do leme as mãos ergueu, Três vezes ao leme as reprendeu, E disse no fim de temer três vezes, «Aqui ao leme sou mais do que eu: Sou um Povo que quer o mar que é teu; E mais que o mostrengo, que me a alma teme E roda nas trevas do fim do mundo, Manda a vontade, que me ata ao leme, De El-Rei D. João Segundo!» Fernando Pessoa, Mensagem (ed. Fernando Cabral Martins), Lisboa, Assírio & Alvim, 2014, pp. 52-53. . Nome ____________________________________________ Ano ___________ Turma __________ N.o _________ Unidade 1 – Fernando Pessoa – Mensagem Ficha de trabalho 11 Educação Literária Editável e fotocopiável © Texto | Mensagens 12.o ano 177 1. Caracteriza a figura do «mostrengo», justificando com elementos do texto. 2. Atenta, agora, na figura do «homem do leme». 2.1. Demonstra que as suas reações ao discurso do «mostrengo» evoluem em sentido crescente. 3. Explica a simbologia de ambas as figuras: o «mostrengo» e o «homem do leme». 4. Esclarece o valor simbólico do número três ao longo de todo o poema. 5. Indica dois recursos presentes no poema, explicitando o respetivo valor expressivo. 178 Editável e fotocopiável © Texto | Mensagens 12.o ano Lê o seguinte poema da Mensagem, de Fernando Pessoa: 5 10 O desejado Onde quer que, entre sombras e dizeres, Jazas1, remoto2, sente-te sonhado, E ergue-te do fundo de não-seres Para teu novo fado! Vem, Galaaz com pátria, erguer de novo, Mas já no auge da suprema prova, A alma penitente do teu povo À Eucaristia Nova. Mestre da Paz, ergue teu gládio3 ungido4, Excalibur5 do Fim, em jeito tal Que sua Luz ao mundo dividido Revele o Santo Gral6! Fernando Pessoa, Mensagem (ed. Fernando Cabral Martins), Lisboa, Assírio & Alvim, 2014, p. 74. . 1 Jazas: estejas morto, estejas sepultado. 2 Remoto: que sucedeu há muito tempo; que está muito distanciado, afastado, longínquo. 3 Gládio: antiga espada curta, robusta. 4 Ungido: que recebeu unção (aplicação dos óleos santos) para sagrar ou conferir uma graça. 5 Excalibur: espada lendária do rei Artur, com propriedades extraordinárias, que simboliza a legítima soberania da Grã-Bretanha. 6 Santo Gral: representa, ao mesmo tempo, Cristo morto pelos homens, o cálice da Última Ceia (a graça divina concedida por Cristo aos seus discípulos) e o cálice da missa que contém o sangue real do Salvador. A demanda do Gral simboliza a aventura espiritual e a plenitude interior, a única que pode abrir a porta de Jerusalém celestial onde resplandece o cálice divino. Nota: a palavra é Graal, mas por questões de métrica poética o autor escreve Gral no poema. 1. O sujeito poético dirige-se, logo na primeira estrofe, a um interlocutor que não surge identificado, mas que é possível reconhecê-lo a partir de algumas referências textuais. 1.1 Comprova a veracidade da afirmação, justificando o pedido feito pelo sujeito poético, na primeira estrofe. 2. Indica a situação do povo português que legitima o desejo de mudança manifestado pelo eu. 3. Estabelece uma relação entre as apóstrofes presentes no poema e a metáfora final, considerando os apelos do sujeito poético ao seu interlocutor. 4. Identifica no poema três aspetos da linguagem da Mensagem, documentando-os com um exemplo significativo. 5. Procede à análise da composição poética quanto à estrutura estrófica, métrica e rimática. Nome ____________________________________________ Ano ___________ Turma __________ N.o _________ Unidade 1 – Fernando Pessoa – Mensagem Ficha de trabalho 12 Educação Literária Editável e fotocopiável © Texto | Mensagens 12.o ano 179 Lê o seguinte excerto do conto e responde às questões. 5 10 15 20 25 30 35 Sempre é uma companhia António Barrasquinho, o Batola, é um tipo bem achado. Não faz nada, levanta-se quando calha, e ainda vem dormindo lá dos fundos da casa. É a mulher quem abre a venda e avia aquela meia dúzia de fregueses de todas as manhãzinhas. Feito isto, volta à lida da casa. Muito alta, grave, um rosto ossudo e um sossego de maneiras que se vê logo que é ela quem ali põe e dispõe. Que pessoas tão diferentes! Ele quase lhe não chega ao ombro, atarracado, as pernas arqueadas. De chapeirão caído para a nuca, lenço vermelho amarrado ao pescoço, vem tropeçando nos caixotes até que lá consegue encostar-se ao umbral da porta. Os olhos, semicerrados, abrem-se-lhe um pouco mais para os campos. Mas fecha-os logo, diante daquela monotonia desolada. Tais momentos de ira são pedaços de revolta passiva contra a mulher. É uma longa luta, esta. A raiva do Batola demora muito, cresce com o tempo, dura anos. Ela, silenciosa e distante, como se em nada reparasse, vai-lhe trocando as voltas. Desfaz compras, encomendas, negócios. Tudo vem a fazer- -se como ela entende que deve ser feito. E assim tem governado a casa. Batola vai ruminandoa revolta sentado pelos caixotes. Chegam ocasiões em que nem pode encará- -la. De olhos baixos, põe-se a beber de manhã à noite, solitário como um desgraçado. O fim daquelas crises tem dado que falar: já muitas vezes, de há trinta anos para cá, aconteceu a gente da aldeia ouvir gritos aflitivos para os lados da venda. Era o Batola, bêbado, a espancar a mulher. Tirando isto, a vida do Batola é uma sonolência pegada. […] E o Batola por mais que não queira, tem de olhar todos os dias a mesmo: aí umas quinze casinhas desgarradas e nuas; algumas só mostram o telhado escuro, de sumidas que estão no fundo dos córregos. Depois disso, para qualquer parte que volte os olhos, estende-se a solidão dos campos. E o silêncio. Um silêncio que caiu, estiraçado por vales e cabeços, e que dorme profundamente. Oh, que despropósito de plainos sem fim, todos de roda da aldeia e desertos! Carregado de tristeza, o entardecer demora anos. […] É sempre o mesmo. Os homens chegam com a noitinha, cansados da faina. Vão direito a casa e daí a pouco toda a aldeia dorme. E António Barrasquinho, o Batola, não tem ninguém para conversar, não tem nada que fazer. Está preso e apagado no silêncio que o cerca. […] Os olhos da mulher trespassam-no. Volta o rosto pálido para o vendedor de telefonias, torna a voltar-se para o marido. Por momentos, parece alheada de tudo quanto a cerca. Vagarosa, no tom de quem acaba de tomar uma resolução inabalável, apruma-se, muito alta, dominadora, e diz: – António, se isso aqui ficar eu saio hoje mesmo de casa. Escolhe. Toda a gente da aldeia que enche a venda sabe que ela fará o que acaba de dizer. Até o vendedor pressente que assim será. Mas, nessa tarde, vieram todos à venda, onde entraram com um olhar admirado. Uma voz forte, rápida, dava notícias da guerra. Só de lá saíram depois de a voz se calar. Cearam à pressa, e voltaram. Era já alta noite quando recolheram a casa, discutindo ainda, pelas portas, numa grande animação. Nome ____________________________________________ Ano ___________ Turma __________ N.o _________ Unidade 2 – Contos – «Sempre é uma Companhia», de Manuel da Fonseca Ficha de trabalho 13 Educação Literária 180 Editável e fotocopiável © Texto | Mensagens 12.o ano 40 45 Um sopro de vida paira agora sobre a aldeia. Todos sabem o que acontece fora dali. E sentem que não estão já tão distantes as suas pobres casas. Até as mulheres vêm para a venda depois da ceia. Há assuntos de sobra para conversar. E grandes silêncios quando aquela voz poderosa fala de cidades conquistadas, divisões vencidas, bombardeamentos, ofensivas. Também silêncio para ouvir as melodias que vêm de longe até à aldeia, e que são tão bonitas!... Acontece até que, certa noite, se arma uma festa na venda do Batola. Até as velhas dançaram ao som da telefonia. Nos intervalos, os homens bebiam um copo, junto ao balcão, os pares namoravam- -se, pelos cantos. Por fim, mudou-se de posto para ouvir as notícias do mundo. Todos se quedaram, atentos. E os dias passam agora rápidos para António Barrasquinho, o Batola. – António – murmura ela, adiantando-se até ao meio da venda. – Eu queria pedir-te uma coisa... Suspenso, o homem aguarda. Então, ela desabafa, inclinando o rosto ossudo, onde os olhos negros brilham com uma quase expressão de ternura: – Olha... Se tu quisesses, a gente ficava com o aparelho. Sempre é uma companhia neste deserto. Manuel da Fonseca, «Sempre é uma companhia», in O fogo e as cinzas, 23.ª ed., Alfragide, Editorial Caminho, 2011, pp. 149-160. 1. António Barrasquinho e a mulher são duas personagens centrais neste conto. 1.1 Caracteriza-as, sustentando a tua resposta com elementos do texto. 2. Descreve a relação existente entre estas duas personagens, tendo em conta a globalidade do excerto. 3. Localiza a ação no espaço, sustentando a tua resposta com elementos do texto. 4. Explicita a importância que o rádio adquire para aquela comunidade, tendo em conta a frase final do conto. 5. Refere-te à importância do aparelho para a relação entre as personagens principais. Editável e fotocopiável © Texto | Mensagens 12.o ano 181 Lê o seguinte excerto do conto «George», de Maria Judite de Carvalho, e responde às questões. 5 10 15 20 25 30 35 George O rosto da jovem que se aproxima é vago e sem contornos, uma pincelada clara, e quando os tiver, a esses contornos, ele será o rosto de uma fotografia que tem corrido mundo numa mala qualquer, que tem morado no fundo de muitas gavetas, o único fetiche de George. As suas feições ainda são incertas, salpicando a mancha pálida, como acontece com o rosto das pessoas mortas. Mas, tal como essas pessoas, tem, vai ter, uma voz muito real e viva, uma voz que a cal e as pás de terra, e a pedra e o tempo, e ainda a distância e a confusão da vida de George, não prejudicaram. Quando falar não criará espanto, um simples mal-estar. Agora estão mais perto e ela encontra, ainda sem os ver, dois olhos largos, semicerrados, uma boca fina, cabelos escuros, lisos, sobre um pescoço alto de Modigliani. […] Já não sabe, não quer saber, quando saiu da vila e partiu à descoberta da cidade grande, onde, dizia- -se lá em casa, as mulheres se perdem. Mais tarde partiu por além terra, por além mar. […] […] Agora está – estava −, até quando? em Amesterdão. Depois de ter deixado a vila, viveu sempre em quartos alugados mais ou menos modestos, depois em casas mobiladas mais ou menos agradáveis. […] Uma casa mobilada, sempre pensou, é a certeza de uma porta aberta de par em par, de mãos livres, de rua nova à espera dos seus pés. […] Queria estar sempre pronta para partir sem que os objetos a envolvessem, a segurassem, a obrigassem a demorar-se mais um dia que fosse. Disponível, pensava. Senhora de si. Para partir, para chegar. […] Tão jovem, Gi. A rapariguinha frágil, um vime, que ela tem levado a vida inteira a pintar, primeiro à maneira de Modigliani, depois à sua própria maneira, à de George, pintora já com nome nos marchands das grandes cidades da Europa. Gi com um pregador de oiro que um dia ficou, por tuta e meia, num penhorista qualquer de Lisboa. Em tempos tão difíceis. […] […] Gi fá-la por fazer e sorri o seu lindo sorriso branco de 18 anos. Depois ambas dão um beijo rápido, breve, no ar, não se tocam, […] começam a mover-se ao mesmo tempo, devagar, como quem anda na água ou contra o vento. Vão ficando longe, mais longe. E nenhuma delas olha para trás. O esquecimento desceu sobre ambas. Agora está à janela a ver o comboio fugir de dantes, perder para todo o sempre árvores e casas da sua juventude, perder mesmo a mulher gorda, da passagem de nível, será a mesma ou uma filha ou uma neta igual a ela? Árvores, casas e mulher acabam agora mesmo de morrer, deram o último suspiro, adeus. […] A figura vai-se formando aos poucos como um puzzle gasoso, inquieto, informe. Vê-se um pedacinho bem nítido e colorido mas que logo se esvai para aparecer daí a pouco, mais nítido ainda, mais esfumado. George fecha os olhos com a força possível, tem sono, volta a abri-los com dificuldade, olhos de pupilas escuras, semicirculares, boiando nu material qualquer, esbranquiçado e oleoso. À sua frente uma senhora de idade, primeiro esboçada, finalmente completa, olha-a atentamente. De idade não, George detesta eufemismos, mesmo só pensados, a mulher velha. Tem as mãos Nome ____________________________________________ Ano ___________ Turma __________ N.o _________ Unidade 2 – Contos: «George», de Maria Judite de Carvalho Ficha de trabalho 14 Educação Literária 182 Editável e fotocopiável © Texto | Mensagens 12.o ano 40 45 50 55 enrugadas sobre uma carteira preta, cara, talvez italiana, italiana, sim, tema certeza. A velha sorri de si para consigo, ou então partiu para qualquer lugar e deixou o sorriso como quem deixa um guarda- -chuva esquecido numa sala de espera. O seu sorriso não tem nada a ver com o de Gi – porque havia de ter? –, são como o dia e a noite. Uma velha de cabelos pintados de acaju, de rosto pintado de vários tons de rosa, é certo que discretamente mas sem grande perfeição. A boca, por exemplo, está um bocado esborratada. Sem voz e sem perder o sorriso diz: − Verá que há de passar, tudo passa. Amanhã é sempre outro dia. Só há uma coisa, um crime, que ninguém nos perdoa, nada a fazer. Mas isso ainda está longe, muito longe, para quê pensar nisso? Ainda ninguém a acusa, ainda ninguém a condena. […] − Também tenho muitos encontros, eu. Não quero tê-los mas sou obrigada a isso, vivo tão só. Cheguei à ignomínia de pedir a pessoas conhecidas retratos da minha família. […] . Porque... o tal crime de que lhe falei, o único sem perdão, a velhice... Um dia vai acordar na sua casa mobilada... […] George fecha os olhos com força e deixa-se embalar por pensamentos mais agradáveis, bem- -vindos: a exposição que vai fazer, aquele quadro que vendeu muito bem o mês passado, a próxima viagem aos Estados Unidos, o dinheiro que pôs no banco. O dinheiro no banco, nos bancos, é uma das suas últimas paixões. Ela pensa – sabe? – que com dinheiro ninguém está totalmente só, ninguém é totalmente abandonado. A velha Georgina já o deve ter esquecido. A velhice também traz consigo, deve trazer, um certo esquecimento das coisas essenciais, pensa. […] O calor de há pouco foi desaparecendo e agora já não há vestígios daquela aragem de forno aberto. O ar está muito levemente morno e quase agradável. George suspira, tranquilizada. Amanhã estará em Amesterdão na bela casa mobilada onde, durante quanto tempo?, vai morar com o último dos seus amores. Maria Judite de Carvalho, «George», in Maria Isabel Rocheta & Serafina Martins (coord.), Conto Português (Séculos XIX-XXI) 3. Antologia Crítica, Porto, Caixotim, 2011, pp. 115-120. 1. Apoiando-te em elementos textuais, caracteriza a personagem George. 2. Explica o seu distanciamento físico e emocional da terra que deixou há mais de vinte anos. 3. Atenta agora nas outras duas «personagens» femininas: 3.1 Refere-te ao simbolismo dos seus nomes e à sua relação com George. 3.2 Refere-te ao visualismo das suas descrições. 4. Explica o sentido das palavras finais, considerando a globalidade do conto: «Amanhã estará em Amesterdão na bela casa mobilada onde, durante quanto tempo?, vai morar com o último dos seus amores» (ll. 57-59). Editável e fotocopiável © Texto | Mensagens 12.o ano 183 Lê o seguinte excerto do conto «Famílias desavindas» e responde às questões. 5 10 15 20 25 30 Famílias desavindas Por uma dessas alongadas ruas do Porto, que sobe que sobe e não se acaba, há de encontrar-se um cruzamento alto, de esquinas de azulejo, janelas de guilhotina telhados de ardósia em escama. Faltam razões para flanar por esta rua, banal e comprida, a não ser a curiosidade por um insólito dispositivo conhecido de poucos: os únicos semáforos do mundo movidos a pedal, sobreviventes a outros que ainda funcionavam na Guatemala, no início dos anos setenta. […] Durante anos e anos o bom do Ramon pedalou e comutou. Por alturas da segunda Grande Guerra foi substituído pelo seu filho Ximenez, pouco depois da revolução de Abril pelo neto Asdrúbal, e, um dia destes, pelo bisneto Paco. A administração continua a pagar um vencimento modesto, equivalente ao de jardineiro. Mas não é pelo ordenado que aquela família dá ao pedal. É pelo amor à profissão. Altas horas da madrugada, avô, neto e bisneto foram vistos de ferramenta em riste a afeiçoar pormenores. Fizeram questão de preservar a roda de trás e opuseram-se quase com selvajaria a um jovem engenheiro que considerou a roda dispensável, sugerindo que o carreto bastasse. […] Acontece que, mesmo à esquina, um primeiro andar vem sendo habitado por uma família de médicos que dali faz consultório. Pouco antes da instalação dos semáforos a pedal, veio morar o Doutor João Pedro Bekett, pai de filhos e médico singular. Chegou de Coimbra com boa fama mas transbordava de espírito de missão. […] E nesta ânsia de convencer atravessava muitas vezes a rua. O semáforo complicava. Aproximou-se do Ramon e bradou, severo: «A mim, ninguém me diz quando devo atravessar uma rua. Sou um cidadão livre e desimpedido.» Ramon entristeceu. Não gostava que interferissem com o seu trabalho e, daí por diante, passou a dificultar a passagem ao doutor. Era caso para inimizade. E eis duas famílias desavindas. Felizmente, nunca coincidiram descendentes casadoiros. Piora sempre os resultados. Ao Dr. Pedro sucedeu o filho João, médico muito modesto. Informava sempre que o seu diagnóstico era provavelmente errado. […] Herdou o ódio ao semáforo e passava grande parte do tempo à janela, a encandear Ximenez com um espelho colorido. Já entre o jovem médico Paulo e Asdrúbal quase se chegou a vias de facto. […] Uma tarde, Asdrúbal levantou mesmo a mão e o doutor encurvou-se e enrijou o passo. […] Há dias, vinha do almoço o Dr. Paulo com uma trouxa de ovos na mão, e já trazia entredentes o «arrenego!» com que insultaria o semaforeiro, quando aconteceu o acidente. Ao proceder a um roubo por esticão, um jovem que vinha de mota teve uns instantes de desequilíbrio, raspou por Paco e deixou-o estendido no asfalto. Era grave. O Dr. Paulo largou ódios velhos, não quis saber de mais nada e dobrou-se para o sinistrado. […] Enganar-se-ia quem dissesse que o semáforo ficou abandonado. Uma figura de bata branca está todos os dias naquela rua, do nascer ao pôr do sol, a acionar o dispositivo, pedalando, pedalando, até à exaustão. É o Dr. Paulo cheio de remorsos, que quer penitenciar-se, ser útil, enquanto o Paco não regressa. Mário de Carvalho, in Contos Vagabundos, Lisboa, Editorial Caminho, 2000. Nome ____________________________________________ Ano ___________ Turma __________ N.o _________ Unidade 2 – Contos: «Famílias desavindas», de Mário de Carvalho Ficha de trabalho 15 Educação Literária 184 Editável e fotocopiável © Texto | Mensagens 12.o ano 1. Relaciona a descrição inicial da rua com a do dispositivo colocado no cruzamento. 2. Atenta nas duas famílias. 2.1 Caracteriza a família dos semaforeiros e a família dos médicos. 2.2 Põe em evidência o que une estas duas famílias e o que as separa, explicando o que as torna «desavindas». 3. Identifica no texto marcas de temporalidade que nos indicam a passagem do tempo, relacionando-as com as sucessivas gerações em conflito. 4. Explica o emprego das formas verbais «Enganar-se-ia» (l. 32) e em «pedalando» (l. 33). Editável e fotocopiável © Texto | Mensagens 12.o ano 185 Lê o seguinte poema e responde às questões. 5 10 Bucólica A vida é feita de nadas: De grandes serras paradas À espera de movimento; De searas onduladas Pelo vento; De casas de moradia Caídas e com sinais De ninhos que outrora havia Nos beirais De poeira; De sombra duma figueira; De ver esta maravilha: Meu pai a erguer uma videira Como uma mãe que faz a trança à filha. Miguel Torga, Diário I, in Poesia Completa, Vol. I, Lisboa, Dom Quixote, 2007, pp. 96-97. . 1. «A vida é feita de nadas» 1.1 Procede a um levantamento dos «nadas» a que se refere o sujeito poético. 1.2 Esclarece o sentido do verso acima transcrito. 2. Explica a importância que os «sinais / De ninhos que outrora havia / Nos beirais» (vv. 7-9) assumem no poema. 3. Explicita o sentimento expresso pelo «eu» poético ao ver o pai «a erguer uma videira» (v. 13). 4. Refere o valor expressivo da comparação «Como uma mãe quefaz a trança à filha» (v. 14), considerando o contexto em que se integra. 5. Justifica o título do poema, tendo em atenção o respetivo conteúdo. Nome ____________________________________________ Ano ___________ Turma __________ N.o _________ Unidade 3 – Poetas contemporâneos: Miguel Torga Ficha de trabalho 16 Educação Literária Camille Pissarro, Estrada de Saint-Germain, 1871. 186 Editável e fotocopiável © Texto | Mensagens 12.o ano Lê o seguinte poema de Miguel Torga e responde às questões. 5 10 15 Viagem Aparelhei o barco da ilusão E reforcei a fé de marinheiro. Era longe o meu sonho, e traiçoeiro O mar… (Só nos é concedida Esta vida Que temos; E é nela que é preciso procurar O velho paraíso Que perdemos.) Prestes, larguei a vela E disse adeus ao cais, à paz tolhida. Desmedida, A revolta imensidão Transforma dia a dia a embarcação Numa errante e alada sepultura… Mas corto as ondas sem desanimar. Em qualquer aventura, O que importa é partir, não é chegar. Miguel Torga, Antologia Poética, 5.ª ed., Lisboa, D. Quixote, 1999. . 1. Explicita a adequação do título ao poema. 2. Identifica os diferentes momentos da «Viagem» a que o título se reporta. 3. Relê a primeira estrofe. 3.1 Explica o valor simbólico que os elementos «barco» e «marinheiro» adquirem no contexto deste poema. 3.2 Esclarece a possível intenção da utilização das reticências e dos parênteses nesta estrofe. 4. Relê a segunda estrofe. 4.1 Aponta os traços caracterizadores do sujeito poético. 4.2 Indica um recurso expressivo presente nesta estrofe, explicitando o respetivo valor contextual. Nome ____________________________________________ Ano ___________ Turma __________ N.o _________ Unidade 3 – Poetas contemporâneos: Miguel Torga Ficha de trabalho 17 Educação Literária Henri Le Sidaner, Casas do Porto sob o Luar, 1923. Editável e fotocopiável © Texto | Mensagens 12.o ano 187 Lê o seguinte poema de Eugénio de Andrade e responde às questões. 5 10 15 Os amantes sem dinheiro Tinham o rosto aberto a quem passava. Tinham lendas e mitos e frio no coração. Tinham jardins onde a lua passeava de mãos dadas com a água e um anjo de pedra por irmão. Tinham como toda a gente o milagre de cada dia escorrendo pelos telhados, e olhos de oiro onde ardiam os sonhos mais tresmalhados. Tinham fome e sede como os bichos, e silêncio à roda dos seus passos. Mas a cada gesto que faziam um pássaro nascia dos seus dedos e deslumbrado penetrava nos espaços. Eugénio de Andrade, Antologia Breve, Lisboa, Editorial Inova Limitada, 1980. . 1. Explica de que forma se estabelece um contraste aparente entre a repetição anafórica presente no poema e o título. 2. Indica a função sintática que o título desempenha em relação a todas as frases que se iniciam pela referida referida repetição. 3. Comenta o valor do tempo verbal reiterado ao longo do poema. 4. Identifica, no poema, uma personificação e uma metáfora, esclarecendo os respetivos valores expressivos. 5. Explicita o sentido dos três últimos versos e o valor do conector que os introduz. Nome ____________________________________________ Ano ___________ Turma __________ N.o _________ Unidade 3 – Poetas contemporâneos: Eugénio de Andrade Ficha de trabalho 18 Educação Literária Edvard Munch, O Beijo, 1892. 188 Editável e fotocopiável © Texto | Mensagens 12.o ano 5 10 15 20 25 30 Poema à Mãe No mais fundo de ti, eu sei que traí, mãe Tudo porque já não sou o retrato adormecido no fundo dos teus olhos. Tudo porque perdi as rosas brancas que apertava junto ao coração no retrato da moldura. Se soubesses como ainda amo as rosas, talvez não enchesses as horas de pesadelos. Mas tu esqueceste muita coisa; esqueceste que as minhas pernas cresceram, que todo o meu corpo cresceu, e até o meu coração ficou enorme, mãe! Olha – queres ouvir-me? – às vezes ainda sou o menino que adormeceu nos teus olhos; ainda aperto contra o coração rosas tão brancas como as que tens na moldura; ainda oiço a tua voz: Era uma vez uma princesa no meio de um laranjal... Mas – tu sabes – a noite é enorme, e todo o meu corpo cresceu. Eu saí da moldura, dei às aves os meus olhos a beber, Não me esqueci de nada, mãe. Guardo a tua voz dentro de mim. E deixo-te as rosas. Boa noite. Eu vou com as aves. Eugénio de Andrade, in Primeiros Poemas / As Mãos e os Frutos / Os Amantes sem Dinheiro, Quasi Edições, 2006. . Nome ____________________________________________ Ano ___________ Turma __________ N.o _________ Unidade 3 – Poetas contemporâneos: Eugénio de Andrade Ficha de trabalho 19 Educação Literária Editável e fotocopiável © Texto | Mensagens 12.o ano 189 1. Indica o tema do poema e explicita a forma como ele é desenvolvido. 2. Explicita as causas do atual desencontro afetivo do sujeito poético e da sua mãe. 3. Interpreta as metáforas que expressam essas causas, centrando a tua atenção nas palavras «retrato»/«moldura», «rosas brancas» e «aves». 4. O último verso parece anunciar uma escolha definitiva. Comenta-a. 5. Faz a análise da estrutura externa do poema. 190 Editável e fotocopiável © Texto | Mensagens 12.o ano Lê o seguinte poema de Ana Luísa Amaral e responde às questões. 5 10 15 20 25 Aniversário Sentei-me com um copo em restos de champanhe a olhar o nada. Entre crianças e adultos sérios Tive trinta em casa. Será comovedor os quatro anos e a festa colorida as velas mal sopradas entre um rissol no chão e os parabéns: quatro anos de vida. Serão comovedores os sumos de laranja concentrados (proporções por defeito) e os gostos tão diversos, o bolo de ananás, os pés inchados. Será soberbamente comovente toda a gente cantando, o mau comportamento dos adultos conversas-gelatinas e os anos só pretexto. Mas eu gostei. E contra mim gostei mesmo no resto: este prazer pequeno do silêncio um sapato apertando descalçado guardanapo e rissol por arrumar no chão e um copo olhando o nada em restos de champanhe. Ana Luísa Amaral, Poesia Reunida: 1990-2005, Vila Nova de Famalicão, Quasi Edições, 2005. . Nome ____________________________________________ Ano ___________ Turma __________ N.o _________ Unidade 3 – Poetas contemporâneos: Ana Luísa Amaral Ficha de trabalho 20 Educação Literária Paul Sérusier, Natureza Morta com Garrafa e Fruta, 1909. Editável e fotocopiável © Texto | Mensagens 12.o ano 191 1. Explicita o tema do poema e a forma como o conteúdo é desenvolvido. 2. Divide o poema em partes lógicas, explicitando o sentido de cada uma. 3. Evidencia e comenta a expressividade da dupla referência ao rissol dentro do que conheces das temáticas de Ana Luísa Amaral. 4. Identifica os recursos expressivos evidentes nos três últimos versos e explicita o seu valor e sentido. 5. Comenta a estrutura formal da composição poética. 192 Editável e fotocopiável © Texto | Mensagens 12.o ano Lê o seguinte poema de Ana Luísa Amaral e responde às questões. 5 10 15 20 25 30 35 Mais fácil é «a poet – it is that –», que a gramática nossa o não permite e precisa dois gumes do estilete – o que implicará sempre mais limite. Mas, caso a regra for bem aplicada (invertendo-se os termos da exceção), porque não ler «poeta», feminino, e masculino: ... vide conclusão? Mas se poeta for quem mais repete as quadras já ouvidas,recusando- -as depois e repetidas, lembrando utilidade imensa do estilete: ou seja, a de espetar tais mil palavras em cima de mil sílabas de mais, sabendo que depois, uma palavra é o que sobrará; e que das tais mil e catorze sílabas só uma lá caberá (no verso, quero dizer), que de tanto esforçar e se perder, acaba por às vezes ser nenhuma. E se poeta for nem paciente nem ausente de tal, que a paciência em demasia: coisa de serpente, como é do seu contrário a sua ausência. E se poeta for... inútil mais, que de ridículo este definir se perderá por versos mais e tais que o verso às tantas poderá partir. Mas quando se partir, aí o verso. E quando se partir, aí o lume: avançar muito além do definir, não distinguir essência de perfume. E na ausência de final dourado, tal como na ausência de terceto, a conclusão: nem homem, nem mulher, ou então: a «poeta» e o «poeto» Ana Luísa Amaral, Poesia Reunida: 1990-2005, Vila Nova de Famalicão, Quasi Edições, 2005. . Nome ____________________________________________ Ano ___________ Turma __________ N.o _________ Unidade 3 – Poetas contemporâneos: Ana Luísa Amaral Ficha de trabalho 21 Educação Literária António Carneiro, Sinfonia Azul, 1920. Editável e fotocopiável © Texto | Mensagens 12.o ano 193 1. Indica o tema do poema e explicita a forma como ele é desenvolvido. 2. Explicita a expressividade dos sinais gráficos utilizados no texto. 3. Esclarece de que modo o sujeito poético usa de uma certa ironia para desenvolver o tema do formalismo literário associado ao significado da palavra «poeta». 4. Explica a importância da última quadra para a conclusão da temática desenvolvida ao longo do poema, tendo em atenção as subtilezas do humor e da ironia. 5. Comenta a estrutura formal do poema. 194 Editável e fotocopiável © Texto | Mensagens 12.o ano Lê o seguinte excerto de O Ano da Morte de Ricardo Reis e responde às questões. 5 10 15 20 […] Estás tu aí a chorar por Badajoz1, e não sabes que os comunistas cortaram uma orelha a cento e dez proprietários, e depois sujeitaram a violências as mulheres deles, quer dizer, abusaram das pobres senhoras, Como é que soube, Li no jornal, e também li, escrito por um senhor jornalista chamado Tomé Vieira, autor de livros, que os bolchevistas2 arrancaram os olhos a um padre já velho e depois regaram-no com gasolina e deitaram-lhe o fogo, Não acredito, Está no jornal, eu li, Não é do senhor doutor que eu duvido, o que o meu irmão diz é que não se deve fazer sempre fé no que os jornais escrevem, Eu não posso ir a Espanha ver o que se passa, tenho de acreditar que é verdade o que eles me dizem, um jornal não pode mentir, seria o maior pecado do mundo, O senhor doutor é uma pessoa instruída, eu sou quase uma analfabeta, mas uma coisa eu aprendi, é que as verdades são muitas e estão umas contra as outras, enquanto não lutarem não se saberá onde está a mentira, E se é verdade terem arrancado os olhos ao padre, se o regaram com gasolina e queimaram, Será uma verdade horrível, mas o meu irmão diz que se a igreja estivesse do lado dos pobres, para os ajudar na terra, os mesmos pobres seriam capazes de dar a vida por ela, para que ela não caísse no inferno, onde está, E se cortaram as orelhas aos proprietários, se violaram as mulheres deles, Será outra horrível verdade, mas o meu irmão diz que enquanto os pobres estão na terra e padecem nela, os ricos já vivem no céu vivendo na terra, Sempre me respondes com as palavras do teu irmão, E o senhor doutor fala-me sempre com as palavras dos jornais. Assim é. Agora houve no Funchal e em alguns outros lugares da ilha motins populares, com assaltos às repartições públicas e a fábricas de manteiga, caso que deu mortos e feridos, e sério deve ter sido, pois foram para lá dois barcos de guerra, com aviação, companhias de caçadores com metralhadoras, um aparato guerreiro que daria para uma guerra civil à portuguesa. Ricardo Reis não chegou a compreender as verdadeiras razões do alvoroço popular, nem isto deverá espantar-nos, a nós e a ele, que só tinha os jornais para sua informação. José Saramago, O Ano da Morte de Ricardo Reis, 21.ª ed., Alfragide, Editorial Caminho, 2013, pp. 545-546. . 1 Badajoz: a batalha de Badajoz (14 de agosto de 1936) foi considerada uma das mais violentas batalhas da Guerra Civil Espanhola. 2 Bolchevistas: comunistas; o bolchevismo foi sistema político-social estabelecido na Rússia, após a Revolução de outubro de 1917, chefiada por Lenine, e que em 1918 passou a chamar-se comunismo. 1. Relaciona o ponto de vista de Ricardo Reis e o de Lídia perante a forma como as notícias são difundidas pelos jornais. 2. Procede à transcrição da expressão que comprova a concordância do narrador relativamente à acusação feita por Lídia a Ricardo Reis. 3. Explica o sentido da expressão «as verdades são muitas e estão umas contra as outras, enquanto não lutarem não se saberá onde está a mentira» (ll. 9-10). 4. Esclarece as críticas veiculadas nas respostas de Lídia às perguntas de Ricardo Reis. 5. Explicita a postura de Ricardo Reis perante o «espetáculo do mundo» veiculado pelos jornais, relacionando-a com a de Lídia. Nome ____________________________________________ Ano ___________ Turma __________ N.o _________ Unidade 4 – José Saramago – O Ano da Morte de Ricardo Reis Ficha de trabalho 22 Educação literária Editável e fotocopiável © Texto | Mensagens 12.o ano 195 Lê o seguinte excerto de O Ano da Morte de Ricardo Reis e responde às questões. 5 10 15 20 25 30 Ainda não são dez horas quando Ricardo Reis se vai deitar. A chuva continua a cair. […] Em noites assim frias costumava Lídia pôr-lhe uma botija de água quente entre os lençóis, a quem o estará ela fazendo agora, ao duque de Medinaceli, sossega coração cioso, o duque trouxe a duquesa, quem à passagem beliscou o braço de Lídia foi o outro duque, o de Alba, mas esse é velho, doente e impotente […]. Sem o perceber, Ricardo Reis já dormia, soube-o quando acordou, sobressaltado, alguém lhe tinha batido à porta, Será Lídia, que teve artes de sair do hotel e vir, por esta chuva, passar comigo a noite, imprudente mulher, depois pensou, Estava a sonhar, e assim parecia, que outro rumor não se ouviu durante um minuto, Talvez haja fantasmas na casa, por isso a não tinham conseguido alugar, tão central, tão ampla, outra vez bateram, truz, truz, truz, segredadamente, para não assustar. Levantou‑se Ricardo Reis, enfiou os pés nos chinelos, envolveu-se no roupão, atravessou pé ante pé o quarto, saiu ao corredor a tiritar, e perguntou olhando a porta como se ela o ameaçasse, Quem é, […] Sou eu, não era nenhum fantasma, era Fernando Pessoa, logo hoje se havia de ter lembrado. […] Posso entrar, perguntou, Até agora nunca me pediu licença, não sei que escrúpulo lhe deu de repente, A situação é nova, você já está na sua casa, e, como dizem os ingleses que me educaram, a casa de um homem é o seu castelo, Entre, mas olhe que eu estava deitado, Dormia, Julgo que tinha adormecido, Comigo não tem de fazer cerimónia, na cama estava, para a cama volta, eu fico só uns minutos. […] [A]inda acabo por ter de lhe dar uma chave, Não saberia servir-me dela, se eu pudesse atravessar as paredes evitava- -se este incómodo, Deixe lá, não tome as minhas palavras como uma censura, deu-me até muito gosto que tivesse aparecido, esta primeira noite, provavelmente, não ia ser fácil, Medo, Assustei-me um pouco quando ouvi bater, não me lembrei que pudesse ser você, mas não estava com medo, era apenas a solidão, Ora, a solidão, ainda vai ter de aprender muito para saber o que isso é, Sempre vivi só, Também eu, mas a solidão não é viver só, a solidão é não sermos capazes de fazer companhia a alguémou a alguma coisa que está dentro de nós, a solidão não é uma árvore no meio duma planície onde só ela esteja, é a distância entre a seiva profunda e a casca, entre a folha e a raiz, Você está a tresvariar, tudo quanto menciona está ligado entre si, aí não há nenhuma solidão, Deixemos a árvore, olhe para dentro de si e veja a solidão, Como disse o outro, solitário andar por entre a gente, Pior do que isso, solitário estar onde nem nós próprios estamos, Está hoje de péssimo humor, Tenho os meus dias […]. Fernando Pessoa levantou-se, entreabriu as portadas da janela, olhou para fora, Imperdoável esquecimento, disse, não ter posto o Adamastor na Mensagem, um gigante tão fácil, de tão clara lição simbólica, Vê-o daí, Vejo, pobre criatura, serviu-se o Camões dele para queixumes de amor que provavelmente lhe estavam na alma, e para profecias menos do que óbvias, anunciar naufrágios a quem anda no mar, para isso não são precisos dons divinatórios particulares, Profetizar desgraças sempre foi sinal de solidão, tivesse correspondido Tétis ao amor do gigante e outro teria sido o discurso dele. José Saramago, O Ano da Morte de Ricardo Reis, Alfragide, Editorial Caminho, 1984, pp. 310-314. Nome ____________________________________________ Ano ___________ Turma __________ N.o _________ Unidade 4 – José Saramago – O Ano da Morte de Ricardo Reis Ficha de trabalho 23 Educação literária 196 Editável e fotocopiável © Texto | Mensagens 12.o ano 1. Explicita os sentimentos de Ricardo Reis relativamente a Lídia, justificando a tua resposta com elementos textuais. 2. Comprova que os encontros entre Pessoa e Reis proporcionam viagens literárias e filosóficas. 3. Identifica o recurso expressivo em «a solidão não é uma árvore no meio duma planície onde só ela esteja» (ll. 23-24), explicitando o seu valor. 4. Interpreta as manifestações de intertextualidade presentes no texto, a partir da linha 28. 5. Seleciona um excerto do texto em que o tom oralizante seja evidenciado pela pontuação, justificando a tua escolha. Editável e fotocopiável © Texto | Mensagens 12.o ano 197 Lê os seguintes excertos de Memorial do Convento e responde às questões. 5 10 15 5 Texto A Três, se não quatro, vidas diferentes tem o padre Bartolomeu Lourenço, e uma só apenas quando dorme, que mesmo sonhando diversamente não sabe destrinçar, acordado, se no sonho foi o padre que sobe ao altar e diz canonicamente1 a missa, se o académico tão estimado que vai incógnito el-rei ouvir- lhe a oração por trás do reposteiro, no vão da porta, se o inventor da máquina de voar ou dos vários modos de esgotar sem gente as naus que fazem água, se esse outro homem conjunto, mordido de sustos e dúvidas, que é pregador na igreja, erudito na academia, cortesão no paço, visionário e irmão de gente mecânica e plebeia em S. Sebastião da Pedreira, e que torna ansiosamente ao sonho para reconstruir uma frágil, precária unidade, estilhaçada mal os olhos se lhe abrem, nem precisa estar em jejum como Blimunda. Abandonara a leitura consabida dos doutores da Igreja, dos canonistas, das formas variantes escolásticas2 sobre essência e pessoa, como se a alma já tivesse extenuada de palavras, mas porque o homem é o único animal que fala e lê, quando o ensinam, embora então lhe faltem ainda muitos anos para a homem ascender, examina miudamente e estuda o padre Bartolomeu Lourenço o Testamento velho, sobretudo os cinco primeiros livros, o Pentateuco3, pelos judeus chamado Tora, e o Alcorão4. Dentro do corpo de qualquer de nós poderia Blimunda ver os órgãos, e também as vontades, mas não pode ler os pensamentos, nem ela a estes entenderia, ver um homem pensando, como em um pensamento só, tão opostas e inimigas verdades, e com isso não perder o juízo, ela se o visse, ele porque tal pensa. José Saramago, Memorial do Convento, 53.ª ed., Alfragide, Editorial Caminho, 2013, Cap. XV, pp. 238-239. Texto B O que meu for é de nós três, sem os teus olhos, Blimunda, não haveria passarola, nem sem a tua mão direita e a tua paciência, Baltasar. Mas o padre anda inquieto, dir-se-ia que não crê no que diz, ou tem o que diz tão pouco valor que não lhe alivia outras inquietações, por isso Blimunda pergunta, em voz muito baixa, é noite, a forja está apagada, a máquina ainda ali continua, mas parece ausente, Padre Bartolomeu Lourenço, de que é que tem medo, e o padre, assim interpelado diretamente, estremece, levanta-se agitado, vai até à porta, olha para fora, e, tendo voltado, responde em voz baixa, Do Santo Ofício. José Saramago, op. cit., cap. XVI, p. 258. . 1 Canonicamente: segundo os cânones ou preceitos da Igreja. 2 Escolásticas: que se prende a fórmulas; que não vai para além dos enquadramentos tradicionais. 3 Pentateuco: conjunto dos cinco primeiros livros do Antigo Testamento (Génesis, Êxodo, Levítico, Números e Deuteronómio). 4 Alcorão: livro sagrado dos maometanos, que contém as revelações feitas por Alá ao profeta Maomé. 1. Comprova que o padre Bartolomeu Lourenço é uma personagem multifacetada. 2. Explicita a relação que se estabelece entre a forma como o padre é apresentado no final do Texto A e o comportamento conducente à interpelação de Blimunda no Texto B. 3. Interpreta o comportamento do padre no momento em que é interpelado por Blimunda. 4. Transcreve, do Texto A, expressões que fundamentem o receio da personagem. 5. Demonstra, a partir da leitura dos dois excertos, a importância da conjugação dos saberes na construção da passarola. Nome ____________________________________________ Ano ___________ Turma __________ N.o _________ Unidade 4 – José Saramago – Memorial do Convento Ficha de trabalho 24 Educação literária 198 Editável e fotocopiável © Texto | Mensagens 12.o ano Lê os seguintes excertos de Memorial do Convento e responde às questões. 5 10 15 20 25 30 [E]ntão Baltasar perguntou, Queres ir ver as estátuas, Blimunda, o céu deve estar limpo e a lua não tarda aí, Vamos, respondeu ela. A noite estava clara e fria. Enquanto subiam a ladeira para o alto da Vela, a lua nasceu, enorme, vermelha, recortando primeiro as torres sineiras, os alçados irregulares das paredes mais altas […]. E Baltasar disse, Amanhã vou ao Monte Junto ver como está a máquina, passaram seis meses desde a última vez, como estará aquilo, Vou contigo, Não vale a pena, saio cedo, se não tiver muito que remendar estarei cá antes da noite, melhor é ir agora, depois são as festas da sagração, se adrega de chover ficam os caminhos piores, Tem cuidado, Descansa, a mim não me assaltam ladrões nem mordem lobos, Não é de lobos ou ladrões que falo, Então, Falo da máquina, Dizes-me sempre que me acautele, eu vou e venho, mais cuidados não posso ter, Tem-nos todos, não te esqueças, Sossega, mulher, que o meu dia ainda não chegou, Não sossego, homem, os dias chegam sempre. […] Parecia impossível que tantos anos de trabalho, treze, fizessem tão pouco vulto […]. Parece pouco e é muito, se não demasiado. Uma formiga vai à eira e agarra numa pragana1. Dali ao formigueiro são dez metros, menos que vinte passos de homem. Mas quem vai levar essa pragana e andar esse caminho, é a formiga, não é o homem. Ora, o mal desta obra de Mafra é terem posto homens a trabalhar nela em vez de gigantes, e, se com estas e outras obras passadas e futuras se quer provar que também o homem é capaz de fazer o trabalho que gigantes fariam, então aceite-se que leve o tempo que levam as formigas, todas as coisas têm de ser entendidas na sua justa proporção, os formigueiros e os conventos, a laje e a pragana. Blimunda e Baltasar entram no círculo das estátuas. […] Blimunda vai olhando, tenta adivinhar as representações, umas sabe-as só de olhar uma vez, as outras acerta após muito teimar, outras nãochega a ter a certeza, outras são como arcas fechadas. […] Blimunda não pode perguntar à estátua, Quem és, o cego não pode perguntar ao papel, Que dizes, só Baltasar, em seu tempo, pôde responder, Baltasar Mateus, o Sete-Sóis, quando Blimunda quis saber, Que nome é o seu. Tudo no mundo está dando respostas, o que demora é o tempo das perguntas. Uma nuvem solitária veio do mar, sozinha em todo o claro céu, e por um longo minuto cobriu a lua. As estátuas tornaram-se vultos brancos, informes, perderam o contorno e as feições, estão como blocos de mármore antes de as ir procurar e achar o cinzel do escultor. Deixaram de ser santo e santa, são apenas primitivas presenças, sem voz, nem sequer aquela que o desenho dá, tão primitivas, tão difusas na sua massa, como parecem as do homem e da mulher que, no meio delas, se diluíram na escuridão, pois estes não são de mármore, simples matéria viva, e, como sabemos, nada se confunde mais com a sombra do chão do que a carne dos homens. José Saramago, Memorial do Convento, Alfragide, Editorial Caminho, 2013, pp. 453-456. . 1 Pragana: prolongamento rígido, filiforme, existente em alguns órgãos vegetais, também denominado aresta, arista e saruga. Nome ____________________________________________ Ano ___________ Turma __________ N.o _________ Unidade 4 – José Saramago – Memorial do Convento Ficha de trabalho 25 Educação literária Editável e fotocopiável © Texto | Mensagens 12.o ano 199 1. Identifica as linhas de ação que se cruzam no excerto, justificando a tua resposta com elementos textuais. 2. Explica como a frase «Não sossego, homem, os dias chegam sempre» (l. 11) pode ser um presságio, considerando o desfecho da narrativa. 3. Esclarece a funcionalidade da história da «formiga e da pragana» e a crítica implícita. 4. Apresenta uma interpretação plausível para a afirmação «Tudo no mundo está dando respostas, o que demora é o tempo das perguntas», ll. 24-25. 5. Comenta a comparação entre estátuas e homens, tendo em conta o final do excerto. 200 Editável e fotocopiável © Texto | Mensagens 12.o ano Educação Literária Ficha de trabalho 1 (p. 161) 1.1 O sujeito poético revela, nestes versos, e ao longo de todo o poema, um estranhamento de si mesmo e do real que se lhe apresenta, e que lhe é dado a entender. Ao mesmo tempo, há um sentimento de inadequação do eu a esse real. Os versos revelam, em particular, uma falta de noção de como agir e, simultaneamente, uma pressão exercida pelo real, o campo de ação do sujeito poético. A dificuldade de compreensão de si mesmo e do real causa este sentimento de impossibilidade de viver nestas condições. 1.2 Os sentimentos de cansaço, solidão e tristeza são acicatados por uma noite de vigília, de insónia, uma noite fria, escura e silenciosa que se encontra em plena consonância com o interior do sujeito poético. A estética da corporização da solidão no «momento insone» é a localização dos sentimentos no tempo e espaço desta noite fria. À escuridão desta noite e dos próprios pensamentos do eu poético serve a adjetivação «negro astral silêncio e surdo» para dar uma maior sensação de profundidade. A enumeração «Mas noite, frio, negror sem fim, / Mundo mudo, silêncio mudo» contribui para o estreitamento de laços entre situação espáciotemporal e situação emocional do sujeito poético. Esta enumeração afunila o raciocínio na direção do paradoxo final, generalizante do sentimento de despersonalização e inadequação da personalidade ao real em que existe. 2. Tendo em conta que o sujeito poético, mais do que triste, está frustrado e cansado de viver numa realidade à qual não consegue adequar-se, sente que não pode «viver assim», dar continuidade ao que lhe parece absurdo. Portanto, na lógica de que a noite termina com a madrugada, como esta noite que madrugará, também os pensamentos negros e frios do sujeito poético terminarão, um dia, quanto mais não seja através da inevitabilidade da morte. 3. Este paradoxo final que encerra o poema é revelador, uma vez mais, da despersonalização do sujeito poético e da sua dificuldade de adequação ao real que habita. Num raciocínio pessimista ao longo de todo o poema, o sujeito poético parece tender para uma opinião geral da vida em concomitância com esse pessimismo. Contudo, depois de uma eumeração negativa, recua no argumento, como recua nas suas ações, questiona o seu próprio raciocínio, da mesma forma que questiona o real que se lhe apresenta, constante e dolorosamente. 4. O discurso parentético constitui uma reflexão final, na qual o sujeito poético evidencia a perturbação vivida durante a noite de silêncio e escuridão («Mas noite, frio, negror sem fim, / Mundo mudo») e acalenta a esperança de mudança através da frase exclamativa final:«Ah, nada é isto, nada é assim!» 5. Trata-se, aqui, do tema da dor de pensar, explícito no primeiro verso do poema, através do cansaço que o sujeito poético expressa em relação a esse doloroso processo, que é o pensamento. Ficha de trabalho 2 (p. 163) 1. O poema pode ser dividido em três partes: a primeira corresponde às duas primeiras estrofes – num meio de um plaino abandonado, um soldado jaz morto, tres- passado de balas. A segunda parte é constituída pelas três estrofes seguintes – apresenta-se «o menino de sua mãe», estabelecendo-se o contraste entre o bom estado dos seus objetos pessoais (dados por entes queridos) com a sua própria morte. Terceira parte, última estrofe – em casa, reza-se pelo soldado, que já não irá voltar. 2. Em grande plano, o sujeito lírico começa por descrever o espaço – uma planície longínqua e desterrada, «No plaino abandonado» (v. 1); seguidamente, em grande plano, surge a descrição da personagem principal do poema, um soldado morto. A «câmara» focaliza os pormenores chocantes que confirmam a violência da sua morte e o seu estado, «De balas traspassado» (v. 3); «Fita com olhar langue / E cego» (vv. 9-10). Também os seus objetos pessoais são alvo de interesse «cinematográfico». Introduzem- -se duas novas personagens – «a mãe» e «a criada velha», conferindo ainda maior dramatismo à construção deste quadro. Na última estrofe, muda-se de plano e de espaço «Lá longe, em casa» (v. 26), onde as duas personagens referidas estariam a rezar pelo regresso (que sabemos impossível) do «menino de sua mãe». 3. A última estrofe é rica em pontuação, ao serviço de vários propósitos. Destacam-se os seguintes: os dois pontos e as aspas que introduzem o discurso direto no texto poético; as exclamações revelam emotividade, tanto na prece como no aparte (apresentado entre parênteses). O ponto final no termo do poema traduz assertividade e o caráter irreversível da morte do soldado. 4. Gradação – reflete a passagem do tempo e consequente deterioração do corpo do soldado. 5. «O menino da sua mãe» é, objetivamente, um jovem soldado morto em combate, na defesa do Império, longe da sua família. No entanto, no plano simbólico, remete-se para a própria infância do sujeito poético, irremediavelmente perdida e da qual apenas resta a nostalgia, a saudade. Ficha de trabalho 3 (p. 165) 1. Bernardo Soares, relê, de forma passiva, os versos de Caeiro que lhe surgem como uma inspiração, uma libertação. A sua repetição, como se de uma revelação se tratasse, suscita-lhe a vontade de exteriorizar o que sente, de se entregar aos impulsos, gesticular, gritar Soluções Editável e fotocopiável © Texto | Mensagens 12.o ano 201 frases sem sentido, enfim, de abandonar, num estremecimento incontrolável, o seu próprio ser, vago e reflexivo, e ser outro. Após esta vontade de extravasão, retrai-se, refreando os seus impulsos, deixa-se invadir pelo sentido daquele verso e integra- -se naquela cidade que vê da sua janela, sentindo a «paz indecifrável» do luar ao anoitecer. 2. A metafísica aponta para um processo de pensamento abstrato que não se coaduna, à partida, com a adjetivação «objetiva». Contudo,
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