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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO CENTRO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS ESCOLA DE SERVIÇO SOCIAL PROGRAMA DE PÓS–GRADUAÇÃO EM SERVIÇO SOCIAL A integração da política de saúde mental com a atenção primária em saúde: uma avaliação Valéria Debórtoli de Carvalho Queiroz Rio de Janeiro 2016 ii Valéria Debórtoli de Carvalho Queiroz A integração da política de saúde mental com a atenção primária em saúde: uma avaliação Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Serviço Social da Escola de Serviço Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro como requisito parcial para a obtenção do título de Doutor em Serviço Social Orientador: Prof. Doutor Eduardo Mourão Vasconcelos Rio de Janeiro Abril de 2016 iii Valéria Debórtoli de Carvalho Queiroz A integração da política de saúde mental com a atenção primária em saúde: uma avaliação Banca Examinadora ______________________________________________ Prof. Doutor Eduardo Mourão Vasconcelos (orientador) _____________________________________________ Prof. Doutor Marcos José de Oliveira Duarte ______________________________________________ Profª. Doutora Maria Paula Cerqueira Gomes ______________________________________________ Profª. Doutora Rosana Teresa Onocko Campos ________________________________________________ Profª. Doutora Rita de Cássia Cavalcante Lima Rio de Janeiro, 20 de abril de 2016 iv RESUMO Esta tese buscou avaliar a integração da política de saúde com a atenção primária em saúde em Aracaju (SE), Sobral (CE) e Belo Horizonte (MG). O objetivo foi evidenciar quais elementos estariam implicados na construção do trabalho intersetorial capaz de fortalecer o processo de reforma psiquiátrica em curso no país e assegurar a assistência em saúde mental de base comunitária e territorial. A partir de uma criteriosa revisão histórica e teórica e com base na abordagem dialética, foi possível perceber que as variáveis históricas, sociais e políticas repercutem de forma direta no processo de implantação, organização e execução da política de saúde que, por conseguinte, influencia o formato da rede de atenção em saúde. A rede de atenção psicossocial necessita estar articulada com a Atenção Primária em Saúde (APS) e com as demais políticas sociais para ter impacto positivo no processo de reabilitação psicossocial. O universo pesquisado e a organização da rede assistencial disponível em cada município evidenciaram como diferencial o compromisso assumido pelos gestores municipais no sentido de buscar garantir o cuidado em saúde mental em todos os níveis de atenção em saúde, por meio do processo de articulação da rede de atenção psicossocial com a APS. Nesse sentido, destaca-se o matriciamento, que tem sido utilizado como uma ferramenta eficaz, capaz de fortalecer o processo de integração da rede de saúde e de corresponsabilização dos casos de saúde mental na APS. Palavras-chave: Saúde mental. Atenção Primária em Saúde. Matriciamento. v ABSTRACT This thesis aimed to evaluate the integration of health policy with primary health care in Aracaju (SE), Sobral (CE) and Belo Horizonte (MG), Brazil. The goal was to demonstrate which elements were involved in the development of intersectoral work used for strengthening the ongoing psychiatric reform process in Brazil and to ensure the community and territorial mental health care. From a careful historical and theoretical review and based on the dialectical approach, results showed that the historical, social and political variables reverberate directly in the implementation and organization of that health policy, which in turn influences the health care network format. The psychosocial care network has to be associated with the primary health care and other social policies so that it has a positive impact on the psychosocial rehabilitation process. The research universe and the organization of each city care network highlighted the municipal managers’ commitment in order to ensure mental health care in all health care levels through the combination of the psychosocial care network with the primary health care. Thus, special attention is given to the process of creating “a matrix support work dispositive” as an effective tool for strengthening the health system integration and the co-responsibility in cases of mental health during primary health issues within the primary health care network. Keywords: Mental health. Primary health care. Matrix creation process. vi SUMÁRIO INTRODUÇÃO 16 1 CONTEXTUALIZAÇÃO DA POLÍTICA DE SAÚDE NO BRASIL 22 1.1 UM PANORAMA DA POLÍTICA DE SAÚDE NO BRASIL 22 1.2 A POLÍTICA DE SAÚDE NOS ANOS DE 1930 A 1964 23 1.3 A POLÍTICA DE SAÚDE NO REGIME AUTOCRÁTICO 24 1.3.1 Os governos militares e a política de saúde: uma breve retrospectiva 24 1.3.2 O Governo Figueiredo e o Movimento de Reforma Sanitária 29 1.4 O SUS: UMA NOVA PERSPECTIVA PARA A SAÚDE PÚBLICA BRASILEIRA 33 1.5 A REFORMA PSIQUIÁTRICA BRASILEIRA 34 1.6 O NEOLIBERALISMO COMO ALTERNATIVA AO WELFARE STATE 37 1.7 REFLEXOS DO NEOLIBERALISMO NO SUS: A UNIVERSALIZAÇÃO VERSUS FOCALIZAÇÃO 43 1.8 O SUBFINANCIAMENTO DO SUS E SEUS REFLEXOS NA FORMA DOS SERVIÇOS PRESTADOS 47 2 VÍNCULOS ENTRE A ATENÇÃO PRIMÁRIA EM SAÚDE E A SAÚDE MENTAL 54 2.1 O CONCEITO DE APS NO CONTEXTO INTERNACIONAL 54 2.2 O CONCEITO DE APS NOS PAÍSES EM DESENVOLVIMENTO 57 2.3 A TENTATIVA DE FORTALECER A APS NO BRASIL 58 2.4 O PROGRAMA AGENTE COMUNITÁRIO DE SAÚDE (PACS) E O PROGRAMA SAÚDE DA FAMÍLIA (PSF) COMO ESTRATÉGIAS PARA O FORTALECIMENTO DA APS NO BRASIL 62 2.5 A INTEGRALIDADE COMO FERRAMENTA DA POLÍTICA DE SAÚDE 67 2.6 A INTERSETORIALIDADE: UMA QUESTÃO PRIMORDIAL PARA A POLITICA DE SAÚDE 70 2.6.1 A intersetorialidade: um desafio a ser superado 73 2.7 A IMPORTÂNCIA DO TERRITÓRIO PARA A POLÍTICA DE SAÚDE 82 vii 2.8 O LUGAR DA SAÚDE MENTAL NA APS 85 2.9 O APOIO MATRICIAL OU MATRICIAMENTO: UMA FERRAMENTA ESSENCIAL PARA A POLÍTICA DE SAÚDE 91 2.9.1 O apoio matricial ou matriciamento na saúde mental 94 2.9.2 A ferramenta apoio matricial ou matriciamento 97 2.10 O FINANCIAMENTO DA APS E DA SAÚDE MENTAL 105 3 OBJETIVO E METODOLOGIA 109 3.1 OBJETIVO GERAL 109 3.1.1 Objetivos específicos 109 3.2 A ESCOLHA DOS MUNICÍPIOS PESQUISADOS 109 3.3 ABORDAGEM TEÓRICO-METODOLÓGICA 110 3.4 PROCEDIMENTOS PARA A COLETA DE DADOS 113 3.5 DOS SUJEITOS DA PESQUISA 114 3.6 O PROCESSO DE ANÁLISE DA COLETA DE DADOS 115 4 NA ROTA DE UMA NOVA CONCEPÇÃO DE SERVIÇOS DE SAÚDE E DE SAÚDE MENTAL: A EXPERIÊNCIA DE ARACAJU (SE), SOBRAL (CE) E BELO HORIZONTE (MG) 117 4.1 BREVE CARACTERIZAÇÃO DO MUNICÍPIO DE ARACAJU 117 4.1.1 A política de saúde em Aracaju 118 4.1.2 A Atenção Primária em Aracaju 124 4.1.3 A Saúde Mental em Aracaju 127 4.2 UMA BREVE CARACTERIZAÇÃO DO MUNICÍPIO DE SOBRAL (CE) 134 4.2.1 A Política de Saúde em Sobral 135 4.2.2 A Atenção Primária em Sobral 139 4.2.3 A saúde mental em Sobral 144 4.3 UMA BREVE CARACTERIZAÇÃO DO MUNICÍPIO DE BELO HORIZONTE 149 4.3.1 A política de saúde de Belo Horizonte 150 viii 4.3.2 A Atenção Primária em Belo Horizonte 154 4.3.3 A Saúde Mental em Belo Horizonte 164 5 A ARTICULAÇÃO ENTRE APS E SAÚDE MENTAL EM ARACAJU (SE), SOBRAL (CE) E BELO HORIZONTE (MG): A ANÁLISE DAS ENTREVISTAS 172 5.1 DESAFIOS MAIS GLOBAIS DA POLÍTICA DE SAÚDE E SAÚDE MENTAL E SEUS REFLEXOS NA APS172 5.2 A REDE DE SAÚDE MENTAL, AS AÇÕES EM COMUM COM A APS E SEUS PRINCIPAIS DESAFIOS ASSISTENCIAIS 179 5.3 INTERSETORIALIDADE 202 5.4 MATRICIAMENTO OU APOIO MATRICIAL 213 CONSIDERAÇÕES FINAIS 223 REFERÊNCIAS 231 APÊNDICES 279 APÊNDICE A MARCOS NORMATIVOS 279 APÊNDICE B TERMO DE CONSENTIMENTO LIBRE E ESCLARECIDO 287 APÊNDICE C ROTEIRO DAS ENTREVISTAS COM OS GESTORES 288 APÊNDICE D ROTEIRO DAS ENTREVISTAS COM OS TRABALHADORES 289 APÊNDICE E COMPILAÇÃO DE DADOS 290 ix Agradecimentos A Deus a oportunidade da vida e de aprender cotidianamente. Aos meus pais pela oportunidade da existência, pelo amor, carinho e dedicação. Em especial, pelo apoio e motivação durante a elaboração de minha tese. As minhas irmãs que sempre estiveram apoiando-me durante esta longa jornada. Ao meu esposo, amigo e companheiro inseparável. Agradeço pelo estímulo, paciência, companheirismo e carinho. Amo você! Ao meu filho Rafael que coloriu a minha vida, trazendo alegrias e realizações. Amo você! Ao Eduardo por acreditar em meu sonho, por me acolher desde o nosso primeiro encontro. Como também por ter me acompanhado durante todo o percurso de minha pós-graduação, orientando os meus estudos dando-me asas. Ao Domingos Sávio pela sua generosidade por compartilhar comigo seus conhecimentos no processo inicial deste trabalho. A Sandra Fortes por dividir seus conhecimentos sobre saúde mental e APS, auxiliando-me em minha caminhada investigatória. Agradeço às indicações bibliográficas, às discussões/contribuições teóricas e também à disponibilidade dos professores que participam da banca de qualificação desta tese: Profª. Drª. Lígia Giovannela, Prof. Dr Pedro Gabriel, Profª. Drª Rita de Cássia Cavalcante Lima. Agradeço o diálogo franco e amistoso, às discussões/contribuições teóricas e também à disponibilidade dos professores que participam da banca de defesa desta tese: Profª. Drª. Rita de Cássia Cavalcante, Prof. Dr Marcos José de Oliveira Duarte, Profª. Drª Maria Paula Cerqueira Gomes e Profª. Drª Rosana Teresa Onocko Campos. A Profª. Drª Ludmila Cavalcante Fontenelle pelo seu carinho, por todo o processo de aprendizado, o carinho e paciência. Aos profissionais entrevistados que contribuíram de forma significativa para a realização desta tese e para o meu amadurecimento profissional e intelectual. As Secretarias de Saúde dos municípios pesquisados, que foram receptivos a minha temática de estudo, viabilizando a conclusão desta tese. Aos meus amigos que sempre estiveram por perto me apoiando. x LISTA DE ILUSTRAÇÃO Figura 2.1 – Pontos de Atenção da RAPS 95 Figura 2.2 – Apoio Matricial 99 Figura 2.3 – O papel dos matriciadores 101 Figura 4.1: Modelo Tecnoassistencial de saúde em Aracaju 120 Figura 4.2: Polos da Rede de Atenção Primária em Aracaju 125 Figura 4.3 Linha do Tempo da Saúde Mental de Aracaju 130 Figura 4.4: Rede Ampliada de Saúde Mental em Aracaju 131 Figura 4.5: Configuração da Rede de Atenção Psicossocial de Aracaju 134 Figura 4.6: Dilema das Equipes de Saúde da Família 140 Figura 4.7: Mapa de Sobral e suas sub-regiões de saúde 141 Figura 4.8: RAISM de Sobral 148 Figura 4.9: Os distritos sanitários de Belo Horizonte 152 Figura 4.10: Organização da política de saúde em Belo Horizonte 153 Figura 4.11: Territórios de saúde no SUS–BH 157 Figura 4.12: Atenção Primária e Vigilância em Saúde 158 Figura 4.13: Evolução da cobertura das EqSF em BH (2005-2013) 163 Figura 4.14: Evolução do número de Equipes de Saúde da Família (2008-2013) 163 Figura 4.15: Rede de Saúde Mental de Belo Horizonte 171 Figura 5.1: Rede de Atenção à Saúde 178 xi LISTA DE TABELAS Tabela 1.1: Distribuição de generalistas e especialistas, segundo Grandes Regiões – Brasil (2013) 51 Tabela 4.1: Evolução do número de Equipes de Saúde da Família e a cobertura realizada nos anos iniciais de implantação da ESF 123 Tabela 4.2: Estabelecimentos públicos de saúde de Aracaju 127 Tabela 4.3: Evolução do número de CAPS por tipo no Brasil 2002-2010 131 Tabela 4.4: Rede substitutiva de serviços de saúde mental em Aracaju 133 Tabela 4.5: Estabelecimentos públicos de saúde de Sobral (CE) 144 Tabela 4.6: Distribuição das unidades (próprias, conveniadas, contratadas) SUS/BH segundo tipologia 160 Tabela 4.7: Contingente dos Recursos Humanos por vínculo em Belo Horizonte 162 xii LISTA DE QUADROS Quadro 4.1: Objetivos da Secretaria de Saúde de Sobral (CE) 137 xiii LISTA DE SIGLAS AB ABRASCO ACE ACS ADS AIH AIS AM APS ASB ASPS BPC CAPS CAPSad CAPSi CDS CEBES CEM CEO CER CERSAM CERSAMi CERSAM-AD CEPS CESM CMS CNRS CONASP CPAs CR CRAS CREAS DAPES EqCR EqAM EqSF ESFVS FHEMIG FMI FMS FUNASA GF IAPs IDH IDHM INAMPS INPS INSS IVS LC Atenção Básica Associação Brasileira de Pós-Graduação em Saúde Coletiva Agente de Combate a Endemias Agente Comunitário de Saúde Áreas Descentralizadas de Saúde Autorização de Internação Hospitalar Ações Integradas de Saúde Apoio Matricial Atenção Primária em Saúde Auxiliar em Saúde Bucal Ações e Serviços Públicos de Saúde Benefício de Prestação Continuada Centro de Reabilitação Psicossocial Centro de Reabilitação Psicossocial álcool e drogas Centro de Reabilitação Psicossocial infanto-juvenil Conselho de Desenvolvimento Social Centro Brasileiro de Estudos de Saúde Centro de Especialidades Médicas Centro de Especialidade Oral Compensação das Especificidades Regionais Centro de Referência em Saúde Mental Centro de Referência em Saúde Mental Infância Centro de Referência em Saúde Mental Álcool e Drogas Centro de Educação Permanente em Saúde Coordenação Geral de Saúde Mental Conselho Municipal de Saúde Comissão Nacional de Reforma Sanitária Conselho Consultivo de Administração da Saúde Previdenciária Caixas de Aposentadoria e Pensões Consultório na Rua Centro de Referência em Assistência Social Centro de Referência Especializado em Assistência Social Departamento de Ações Programáticas Estratégias Equipes de Consultório de Rua Equipe de Apoio Matricial Equipe de Saúde da Família Escola de Formação em Saúde da Família Visconde Sabóia Fundação Hospitalar do Estado de Minas Gerais Fundo Monetário Internacional Fundo Municipal de Saúde Fundação Nacional de Saúde Governo Federal Institutos de Aposentaria e Pensões Índice de Desenvolvimento Humano Índice de Desenvolvimento Humano Municipal Instituto Nacional de Assistência Médica e Previdência Social Instituto Nacional de Previdência Social Instituto Nacional de Seguro Social Índice de Vulnerabilidade em Saúde Lei Complementar xiv LOAS MEC MINC MPAS MRS MRSB MS MT MTE NAPS NASF NEU NOAS NOB OMS ONG ONU OPAS PA PAB PACS PAD PAM PEC PIB PACS PMS PMAQ-AB PNAB PNACS PNAS PNH PNM PTS PPI PRH PROESF PS PSB PSE PSF PVC RAPS RAS RAISM RCB RD REAE REAP REMANE Lei Orgânica da Assistência Social Ministério da Educação e Cultura Ministério da Cultura Ministério da Previdência e Assistência Social Movimento de Reforma Sanitária Movimento de Reforma Sanitária Brasileira Ministério da Saúde Ministério do Trabalho Ministério do Trabalho e do Emprego Núcleos de Atenção Psicossocial Núcleo de Apoio à Saúde da Família Núcleos de Educação em Urgência Norma Operacional Básica da Assistência Social Norma Operacional Básica Organização Mundial de Saúde Organização não GovernamentalOrganização das Nações Unidas Organização Pan-Americana da Saúde Pronto Atendimento Piso de Atenção Básica Programa Agente Comunitário de Saúde Programa de Assistência Domiciliar Postos de Assistência Médica Projeto de Emenda Constitucional Produto Interno Bruto Programa de Agentes Comunitários de Saúde Plano Municipal de Saúde Programa Nacional de Melhoria do Acesso e da Qualidade da Atenção Básica Política Nacional de Atenção Básica Programa Nacional de Agentes Comunitários de Saúde Política Nacional de Assistência Social Política Nacional de Humanização Política Nacional de Medicamentos Projeto Terapêutico Singular Programação Pactuada e Integrada Programa Anual de Reestruturação da Assistência Psiquiátrica Programa de Consolidação e Expansão da Saúde da Família Posto de Saúde Programa de Saúde Bucal Programa Saúde nas Escolas Programa Saúde da Família Programa de Volta para Casa Rede de Atenção Psicossocial Rede de Atenção à Saúde Rede de Atenção Integral em Saúde Mental Receita Corrente Bruta Redução de Danos Rede de Atenção Especializada Rede de Atenção Psicossocial Relação Nacional de Medicamentos Essenciais xv RMBH RMSF RS SAS SENAE SES SIAB SID SILOS SINPAS SISREDE SMSA SMS SRT SSASS SUDS SUS TC TCM TMSP TSB UA UBS UIPHG UNIFEC UPA US WONCA Região Metropolitana de Belo Horizonte Residência Médica em Saúde da Família Regiões de Saúde Secretaria de Atenção à Saúde Secretaria Nacional de Economia Solidária Secretaria Estadual de Saúde Sistema de Informações da Atenção Básica Secretaria da Identidade e da Diversidade Sistemas Locais de Saúde Sistema Nacional de Previdência e Assistência Social Sistema de Gestão de Saúde em Rede Secretaria Municipal de Saúde Secretaria Municipal de Saúde Serviço de Residência Terapêutica Secretaria de Saúde e Ação Social de Sobral Sistema Unificado e Descentralizado de Saúde Sistema Único de Saúde Terapia Comunitária Transtorno Mental Leve ou Comum Transtorno Mental Severo e Persistente Técnico em Saúde Bucal Unidade de Acolhimento Unidade Básica de Saúde Unidade de Internação em Hospital Geral Fundo das Nações Unidas para a Infância Unidade de Pronto Atendimento Unidade de Serviço World Organization of Family Doctor 16 Introdução A saúde mental é um tema muito caro à minha pessoa. O meu primeiro contato profissional com a temática ocorreu na Casa de Saúde de Volta Redonda (RJ). Naquela época, o município estava estruturando a rede de atenção psicossocial (RAPS) e o hospital psiquiátrico deveria ser fechado, o que impulsionou o poder público a criar os serviços substitutivos de base territorial e comunitária. No processo de expansão e diversificação dos dispositivos assistenciais em saúde mental de base territorial e comunitária, eu tive a oportunidade de atuar, também, em um Centro de Atenção Psicossocial (CAPS). As experiências profissionais acumuladas nesses dois trabalhos suscitaram em mim muitas reflexões, impulsionando-me a pesquisar sobre saúde mental. No campo familiar, o tema saúde mental esteve presente na minha vida desde a infância, com o diagnóstico de um ente querido muito próximo. O convívio diário com alguma pessoa com transtorno mental faz parte da vida de muitas pessoas, pois, em termos estatísticos, de acordo com a Política Nacional de Saúde Mental (PNSM) (BRASIL, 2009), 3% da população geral sofrem com transtornos mentais severos e persistentes, 6% apresentam transtornos psiquiátricos graves, decorrentes do uso de álcool e outras drogas, e 12% da população necessitam de algum atendimento em saúde mental contínuo ou eventual. As vivências experimentadas em meu mestrado em Serviço Social, junto ao Programa de Pós-Graduação da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RJ), evidenciaram o esgotamento da RAPS de Juiz de Fora (MG), que ficou restrita aos parcos dispositivos desinstitucionalizantes. A pesquisa constatou que um grande número de usuários permanecia nos CAPS mesmo já em condição de alta e os usuários apresentavam uma grande dependência em relação ao CAPS. A dinâmica de trabalho e de atendimento desenvolvida no CAPS era muito próxima da rotina hospitalocêntrica. A ausência da estruturação de uma porta de saída para o serviço impedia o acompanhamento sistemático dos casos graves devido à sobrecarga de atividades. Ao mesmo tempo, a assistência prestada era restrita aos parcos dispositivos assistenciais, pois não foi estabelecido um trabalho intersetorial com a saúde e muito menos com as demais políticas públicas. Sabe-se que os CAPS são serviços especializados da rede de saúde mental que devem prestar atenção integral aos usuários com sofrimento severo e persistentes. São funções dos CAPS: articular e organizar a demanda da rede de cuidados em saúde mental; desempenhar o papel de regulador da porta de entrada da rede assistencial; coordenar as atividades de supervisão de unidades hospitalares psiquiátricas; supervisionar e capacitar as equipes de 17 atenção básica, serviços e programas de saúde mental. Dessa forma, esse dispositivo desempenha um papel de suma importância na RAPS, embora perca sua finalidade à medida que não se articula com a Atenção Primária em Saúde (APS). A proposta da reforma psiquiátrica em curso no país ultrapassa a saída dos indivíduos com transtorno mental dos hospitais psiquiátricos. Seu objetivo maior, sob meu ponto de vista, é libertar esses sujeitos da lógica manicomial que cerceia as subjetividades. Para isso, propõe que sejam desenvolvidas ações em conjunto com as demais políticas sociais. À medida que os CAPS não conseguem prestar uma assistência de qualidade, o serviço passa a atuar de forma bastante semelhante aos hospitais psiquiátricos, criando uma CAPS- dependência. Foi justamente por constatar essa realidade em Juiz de Fora que surgiu o meu interesse em investigar e aprofundar os meus estudos sobre essa questão no doutorado. Na atual conjuntura de amadurecimento do processo de reforma psiquiátrica em curso no país, é fundamental que a política de saúde mental estabeleça uma relação de corresponsabilização dos casos de saúde mental com a APS. As ações entre a saúde mental e a APS devem ser capazes de promover o cuidado e promover a inclusão social tal como preconizado na Lei 10.216/2001. A política de saúde mental deve ser planejada de forma contínua a fim de assegurar o direito de alta nos CAPS, sem gerar desassistência, desamparo e sofrimento. Dessa forma, os municípios precisam que os serviços de saúde estejam organizados dentro de uma rede articulada de serviços. Nessa perspectiva, Severo (2009) faz uma crítica à precariedade da RAPS em alguns municípios e afirma que a RAPS é o único espaço que promove a sociabilidade dos usuários, ocasionando uma dependência destes em relação ao serviço, gerando a cronificação do usuário e da própria rede. O usuário fica dependente do CAPS e o CAPS perde a sua capacidade de atender adequadamente aos usuários, em virtude da demanda excessiva. A RAPS foi pensada com o intuito de libertar os sujeitos da lógica manicomial que molda as escolhas e os projetos de vida, dando chances reais de reinserção social e de construção de projetos pessoais. Não deixar a RAPS cronificar tem sido um grande desafio para os trabalhadores do campo da saúde mental. Para explicar a escolha desta temática, recorro ao que Arbex (2013) denominou de holocausto brasileiro. Para a autora, por muitos anos as pessoas em sofrimento psíquico foram enclausuradas, excluídas e sofreram várias formas de maus tratos. Acredito na capacidade da atual política de saúde mental em assegurar o cuidado no território por meio dos dispositivos 18 substitutivos. Entretanto, é preciso estabelecer o trabalho intersetorialcom todas as políticas sociais governamentais e não governamentais a fim de dar sustentação à reforma psiquiátrica. O passado recente da assistência psiquiátrica no Brasil reiterou que o tratamento asilar foi inócuo e desumano. Para Rotelli (2001), os hospitais psiquiátricos são espaços de troca zero, devido aos mecanismos de atenção destinados aos usuários uma vez que sequestram toda e qualquer possibilidade de trocas afetivas e/ou materiais. Na busca de superar o passado e de resgatar a cidadania desses sujeitos, a atual política de saúde mental elegeu o território como o seu ponto de partida e propõe uma ação ousada de compartilhar o cuidado e a atenção do usuário da saúde mental com a APS. A atenção psicossocial está pautada em práticas territoriais, pois objetiva fomentar a cidadania e a capacidade de autonomia dos sujeitos em sofrimento psíquico. Por isso, prevê a ampliação da rede de cuidado em saúde mental, por meio do estabelecimento de outras parcerias no âmbito da própria rede de saúde, como é o caso do compartilhamento do cuidado com a APS. O processo de territorialização das ações em saúde tem estimulado que a APS e a saúde mental estabeleçam uma relação muito próxima, pois, no dia a dia, os profissionais das EqSF têm recebido uma demanda crescente de cuidado em saúde mental. Conforme demonstra o estudo de Andreoli (2007), 56% das equipes de saúde da família referiram realizar “alguma ação de saúde mental”. As equipes de PSF apresentam-se como um recurso estratégico para o enfrentamento de agravos vinculados ao uso abusivo de álcool, drogas e diversas formas de sofrimento psíquico, por sua proximidade com famílias e com a comunidade. Desde 2001, o Ministério da Saúde tem buscado promover a articulação entre a atenção psicossocial e a APS, quando foi firmada uma parceria entre a Coordenação Geral de Saúde Mental e o Departamento de Atenção Básica para discutir um Plano Nacional de Inclusão das Ações de Saúde Mental na Atenção Básica, que foi pautado basicamente em dois aspectos: o apoio matricial e a formação em serviços de saúde na área de saúde mental (BRASIL, 2001). Para a política de saúde mental, é fundamental que os serviços estejam articulados no território, sendo capazes de ajudar na construção de novas subjetividades que possibilitem reinventar a vida em todos os aspectos do seu cotidiano, isto é, um cotidiano no qual a loucura foi privada de conviver. É o que Lobosque (2007, p. 37) salienta “[...] de buscar para a loucura algum cabimento na cidade – o que exige uma reinvenção da cidade mesma, assim como outro pensamento da loucura”. Construir o espaço para a loucura/diversidade no 19 território é o desafio que foi colocado pela reforma psiquiátrica. Por isto, é fundamental que o serviço esteja articulado em rede, sendo capaz de ofertar um leque diversificado de assistência para cada sujeito. O resultado de minha pesquisa no mestrado evidenciou uma ausência de diálogo entre a saúde mental e os demais níveis de atenção em saúde. Esse fato contribuiu para que a RAPS de Juiz de Fora atuasse de forma isolada, impondo aos usuários da saúde mental uma rotina de atendimento ambulatorial. Além disso, a falta de portas de saída para o usuário estabilizado compromete a qualidade da prestação da assistência em saúde mental de forma geral. Diante desse cenário, interessei-me em investigar a integração entre a política de saúde mental e a APS em outras cidades brasileiras, ou seja, como tem sido o compartilhamento do cuidado entre a saúde mental e a APS. Sendo assim, o desenvolvimento desta tese buscou responder a dois questionamentos básicos que direcionaram o estudo realizado: a) avaliar a ação intersetorial entre a política de saúde mental e a APS nos municípios; e b) analisar os fatores limitadores e facilitadores para a integração entre a política de saúde mental e a APS. Logo, esta investigação refere-se à avaliação em um estudo comparativo de casos da implementação da integração entre a política de saúde mental e a APS quanto à criação da rede de cuidados integral e intersetorial nos municípios de Aracaju (SE), Sobral (CE) e Belo Horizonte (MG). A pesquisa foi de natureza intencional, descritiva e qualitativa tendo sido realizada com 22 profissionais que atuavam na saúde mental e na APS dos municípios de Aracaju (SE), Sobral (CE) e Belo Horizonte (MG). Como técnica de coleta de dados, foi utilizado o diário de campo para realizar os registros das observações consideradas relevantes. Também recorri à técnica da entrevista semi-estruturada com os profissionais que atuavam nos CAPS em suas diversas modalidades, nos hospitais psiquiátricos, nas urgências psiquiátricas, nas residências terapêuticas, na coordenação dos serviços de saúde mental, nos postos de saúde e na coordenação da APS. Para fazer o perfil de cada município, recorri a fontes bibliográficas primárias e secundárias, a fim de evidenciar o processo de consolidação da reforma psiquiátrica nos municípios e como foi elaborada/estruturada a RAPS. O custeio para a realização desta tese foi misto. Uma pequena parte foi financiado pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), durante 18 meses. O restante foi custeado com recursos próprios, implicando num esforço enorme para a sua realização e ao mesmo tempo limitando minha permanência em cada município por no 20 máximo uma semana, fato este que pode ter gerado alguma limitação no processo de aproximação com a realidade. No Capítulo 1, apresento a contextualização da política de saúde, fazendo um panorama desde os anos de 1930 até a atualidade, buscando evidenciar a influência que o movimento de reforma sanitária exerceu/exerce no processo de criação do Sistema Único de Saúde (SUS). Saliento a importância do movimento de reforma psiquiátrica que questionou severamente o tratamento asilar e defendeu a assistência à pessoa com transtorno mental no território. Foi realizada uma reflexão a respeito da adoção do ideário neoliberal no Brasil, justamente no período de avanço das políticas sociais, evidenciando que tal opção foi nefasta para o processo de consolidação dos direitos sociais. No Capítulo 2, exponho os principais conceitos em nível internacional e nacional sobre a APS. Apresento as tentativas governamentais brasileiras de fortalecimento da APS, por meio do programa Agente Comunitário de Saúde e do Programa de Saúde da Família. Destaco, ainda, que a integralidade foi resgatada como o princípio norteador do SUS, a fim de aproximar as práticas preventivas das práticas assistenciais em saúde. Nesse sentido, discuto a necessidade de fortalecer a intersetorialidade na política de saúde para dar sustentação ao projeto de reforma psiquiátrica em curso no Brasil. Saliento que a APS e a política de saúde mental devem apropriar-se do território, estabelecendo vínculos com os usuários e reconhecendo os problemas cotidianos presentes na comunidade e como eles repercutem no processo de saúde/doença dos usuários. Exponho que o apoio matricial torna-se fundamental para que sejam estabelecidas técnicas de cuidado em comum a partir do compartilhamento dos casos e do processo de corresponsabilização entre as equipes da saúde mental e a APS, assegurando, de fato, o tratamento territorial. Além disso, abordo quais são as fontes de financiamento para a saúde mental e para a APS, evidenciando que os cortes orçamentários comprometem a qualidade da assistência prestada. No Capítulo 3, descrevo o percurso teórico-metodológico escolhido para a realização desta tese com a finalidade de atingir os objetivos propostos. No Capítulo 4, apresento os municípios pesquisados: Sobral (CE), Aracaju (SE) e Belo Horizonte (MG), descrevendo os antecedentes do processo de reforma psiquiátrica em cada município. Em seguida, apresento os fatores que motivaram os governantes a implantara RAPS em cada cidade, destacando a opção municipal em estabelecer o vínculo entre a política de saúde mental e a APS. Finalmente, apresento como a RAPS foi delineada em cada cidade. 21 No capítulo 5, exponho os resultados da pesquisa, os quais foram agrupados em quatro categorias de análise: a) a rede de saúde mental e as ações em comum com a APS: nesse eixo, analisei a maneira como foi estruturada a rede de saúde mental em parceria com a APS, a fim de detectar os seus pontos de interseção e se eles refletem na qualidade dos serviços prestados aos usuários, promovendo a melhoria do acesso às políticas sociais; b) intersetorialidade: o objetivo foi avaliar se o município conseguiu estruturar uma rede de atenção em saúde capaz de atender às demandas dos usuários. c) matriciamento: o meu intuito foi identificar o matriciamento como um instrumento de articulação entre a Saúde Mental e a Atenção Primária, identificando os avanços e analisando os entraves existentes; d) desafios atuais: minha intenção foi averiguar quais são os principais entraves que dificultam o fortalecimento da saúde mental e sua correlação com a APS no município. Finalmente, as considerações finais desta tese trazem reflexões e apontamentos para o fortalecimento da política de saúde mental, por meio do fortalecimento do vínculo com a APS. 22 1 CONTEXTUALIZAÇÃO DA POLÍTICA DE SAÚDE NO BRASIL As políticas sociais brasileiras foram constituídas, principalmente, a partir da pressão das classes sociais sob o estado capitalista que ao reconhecê-las, implantava os dispositivos legais, a fim de minimizar a tensão capital versus trabalho. Queiroz (2009) ressalta a necessidade de se reconhecer historicamente o conteúdo das políticas sociais, considerando as condições objetivas do mundo do capital e as lutas sociais das classes trabalhadoras, pois as implantações das políticas sociais tiveram (e ainda têm) como pano de fundo as crises do sistema capitalista. Dessa forma, as políticas sociais, além de responder às demandas e às lutas das classes trabalhadoras, também visam minimizar os efeitos de outras políticas governamentais, indispensáveis ao processo de acumulação capitalista. 1.1 UM PANORAMA DA POLÍTICA DE SAÚDE NO BRASIL Até o século XVIII, a assistência médica prestada à população brasileira caracterizava- se pela prática liberal, caritativa e filantrópica (BRAVO, 2007). A população recorria às Santas Casas de Misericórdia e a outras instituições de caridade. No século subsequente, algumas mudanças foram introduzidas à medida que o Estado assumia algumas iniciativas relativas à saúde pública foram criados e implementados os serviços e programas de saúde pública em nível nacional (central).À frente da Diretoria Geral de Saúde Pública, Oswaldo Cruz, ex- aluno e pesquisador do Instituto Pasteur, organizou e implementou, progressivamente, instituições públicas de higiene e saúde no Brasil. Em paralelo, adotou o modelo das “campanhas sanitárias”, destinado a combater as epidemias urbanas e, mais tarde, as endemias rurais. (LUZ, 1991, p. 78) As ações do Estado no âmbito da política de saúde foram modificando-se de forma acentuada, conforme as relações capitalistas aprofundavam-se na sociedade brasileira. O movimento operário foi o grande articulador dessas modificações, pois passou a cobrar uma postura mais efetiva do estado no que diz respeito à saúde da população. Em 1923, foram criadas as Caixas de Aposentadoria e Pensões (CPAs), que podem ser consideradas o embrião da previdência social brasileira. Com financiamento tripartite (União, empresas e empregados), as CPAs tinham como objetivo fundamental oferecer assistência médica-curativa, medicamentos, aposentadorias por tempo de serviço, velhice ou invalidez e pensão aos trabalhadores e seus dependentes. 23 1.2 A POLÍTICA DE SAÚDE NOS ANOS DE 1930 A 1964 O primeiro governo de Getúlio Vargas promoveu o início da industrialização brasileira, incentivando o crescimento do trabalho formal. Assim, para garantir a manutenção e a reprodução da força de trabalho urbana e fabril e, a fim de assegurar a acumulação capitalista, o Estado criou um sistema previdenciário nacional: os Institutos de Aposentaria e Pensões (IAPs). Desse período em diante, o Estado passou a ser o principal agente propulsor da política de saúde. Entretanto, seu compromisso restringia-se à prestação da assistência de saúde aos trabalhadores formais. A esse processo Santos (1978, p.75) denominou “cidadania regulada”. Segundo Bravo (2007), a política de saúde, nesse período, foi organizada em dois subsetores: o de saúde pública e o de medicina preventiva. A medicina preventiva expandiu- se com a criação dos IAPs, que possibilitaram a ampliação da cobertura de saúde a várias categorias profissionais e aos seus beneficiários. Cabe salientar que os beneficiários dos IAPs tinham acesso diferenciado à política de saúde (MONNERAT; SENNA, 2007; PESSINI; BARCHIFANTAINE, 2003). No entanto, os benefícios dos IAPs ofertados aos trabalhadores não eram uniformes, mas variavam de acordo com o regulamento de cada IAP. Marques (2010) salienta que os IAPs foram constituídos como entidades autárquicas, vinculadas ao Estado por meio do Ministério do Trabalho (MT), fato que contribuiu para que a previdência se tornasse um instrumento de incorporação controlada da classe trabalhadora. Duas eram as formas de organização da política de saúde, nesse período: a) a saúde pública, que estava sob a incumbência do governo federal, embora as ações preventivas fossem executadas pelos estados e municípios; estes centralizavam suas ações objetivando ofertar as condições sanitárias mínimas para a população urbana; b) a medicina previdenciária, realizada por médicos conveniados aos IAPs. É importante ressaltar que, somente a partir de 1966, o subsetor de medicina previdenciária superou o de saúde pública. Além disso, os trabalhadores informais, em caso de adoecimento, somente poderiam recorrer às instituições caritativas. A expansão dos IAPs não foi acompanhada pela ampliação da oferta de serviços próprios de saúde, embora a demanda por atendimento médico fosse crescente. Assim, a alternativa encontrada foi a contratação de serviços médicos privados, consequentemente, os serviços de saúde dos IAPS eram complementados ou totalmente constituídos, por prestadores privados de saúde. Tal fato potencializou a construção de reformas de ampliação de hospitais particulares. (MARQUES, 2010, p. 27-28) 24 Conforme salienta Bravo (2007), o atendimento hospitalar privado no país foi estruturado a partir de 1950. Nessa época, já havia uma forte sinalização de formação dos aglomerados médicos privados, pois o setor privado exercia forte pressão no Estado para a compra de serviços médicos privados. Entretanto, as formas de compra dos serviços médicos a terceiros aparecem como minoritárias e pouco expressivas no quadro geral da prestação da assistência médica pelos institutos. Esta situação vai ser completamente diferente no regime que se instalou no país após 1964. (BRAVO, 2007, p. 93) É importante destacar que a corporação médica ligada aos interesses capitalistas era bastante organizada e pressionava o Estado para promover a privatização da saúde. Entretanto, apesar das pressões, a assistência médica previdenciária, até 1964, era fornecida basicamente pelos serviços próprios dos IAPs. 1.3 A POLÍTICA DE SAÚDE NO REGIME AUTOCRÁTICO 1.3.1 Os governos militares e a política de saúde: uma breve retrospectiva Durante o governo militar, a perda de direitos políticos e sociais agravou a questão social e, para contê-la, o Estado utilizou o binômio repressão-assistência. Contraditoriamente, na vigência dos regimes autocráticos ocorreu um significativoincremento das políticas assistenciais no país. Tais políticas desenvolveram-se de forma burocratizada e moderna com o intuito de aumentar o poder de regulação do Estado sobre a sociedade civil. A ampliação da política assistencial foi implementada ao mesmo tempo em que o Estado ampliava o seu aparato repressivo aos setores oposicionistas ao regime ditatorial. A unificação dos IAPs ocorreu com a criação do Instituto Nacional de Previdência Social (INPS), em 1966, que passou a ser responsável pela prestação da assistência médica a todos os trabalhadores contribuintes. Coube ao INSS a concentração de todas as contribuições previdenciárias, a gestão das aposentadorias, das pensões e a assistência médica a todos os trabalhadores formais. A previdência social tornou-se o principal órgão de financiamento de serviços de saúde e, concomitantemente, houve a ampliação da cobertura assistencial para os trabalhadores formais. Em contrapartida, nesse período, a saúde pública sofreu um declínio, ficou relegada a segundo plano, tornou-se uma máquina ineficiente, cuja atuação restringia-se a campanhas de baixa eficácia. A carência de recursos - que não chegavam a 2%do PIB - colaborava com o quadro de penúria e decadência, com 25 graves consequências para a saúde da população. (ESCOREL; NASCIMENTO; EDLER 2005, p. 60) Para Fleury (2010, p. 65), o sistema de proteção social no período autocrático obedeceu a quatros linhas fundamentais: a) a centralização e a concentração do poder em mãos da tecnocracia, com a retirada dos trabalhadores do jogo político e da administração das políticas sociais; b) o aumento de cobertura, incorporando, precariamente, grupos antes excluídos, as empregadas domésticas, os trabalhadores rurais e os autônomos; c) a criação de fundos e contribuições sociais como mecanismo de autofinanciamento dos programas sociais (FGTS, PIS-Pasep, Funsocial, FAS, Salários-Educação); d) a privatização dos serviços sociais (em especial a educação universitária e secundária e a atenção hospitalar). A saúde pública direcionada aos cidadãos sem vínculo empregatício continuava ineficiente e residual. No entanto, uma parcela significativa da população dependia dela a fim de repor suas condições de trabalho. Como solução para essa questão, o governo ampliou a cobertura para os segmentos populacionais marginalizados mediante a compra de serviços privados. Com essa medida, o Estado optou pela ampliação da oferta de serviços médico- hospitalares mediante contrato com a iniciativa privada. Castro e Fausto (2012, p. 176) esclarecem que, na política de saúde, prevaleceu uma dualidade na organização das ações e dos serviços do sistema de saúde, com práticas realizadas de forma dicotomizadas: de um lado, as de caráter social, sanitarista ou de saúde pública; de outro, as ligadas à prestação de cuidados aos indivíduos. O governo do General Médici (1970-1974) caracterizou-se por ser o mais opressor dentre todos os governos militares. No entanto, mesmo sob forte repressão política e social, o governo contou com uma base de sustentação vigorosa devido ao alto crescimento econômico do país: cerca de 12% ao ano. Nesse período, várias obras de infraestrutura foram executadas por meio de empréstimos externos, possibilitando a abertura de milhões de empregos país afora. Contudo, a taxa de inflação permanecia alta e esse fato contribuiu para que os benefícios trazidos pelo desenvolvimento acelerado não diminuíssem a pobreza. Ao contrário, verificou-se uma concentração de renda ainda maior. A crescente desigualdade social e o aumento da pobreza colaboraram para que uma grande parcela da população permanecesse na informalidade e, por isso, não tivesse acesso à 26 política de saúde e previdenciária. Esses trabalhadores sobreviviam à margem das políticas sociais e, dessa forma, recorriam às Santas Casas de Misericórdia. Para Júnior e Júnior (2006, p. 14), a política de saúde, dos anos 70, foi polarizada entre as ações de caráter coletivo, como os programas contra determinados agravos, vacinação, vigilância epidemiológica e sanitária, a cargo do Ministério da Saúde e, a assistência médica individual centrada no INPS, [...]. A assistência médica individualizada passou a ser dominante e a política privilegiou a privatização dos serviços e estimulou o desenvolvimento das atividades hospitalares. A expansão do número de leitos e da cobertura da assistência médica previdenciária ocorreu por meio da compra de serviços médico-hospitalares da rede privada, pois a saúde pública estava voltada para as ações específicas e os recursos eram escassos. A remuneração dos serviços médicos prestados pela rede privada aos previdenciários era feita mediante Unidade de Serviço (US). Para Marques (2010, p. 30), essa forma de remuneração resultou em uma fonte incontrolável de corrupção. Além da remuneração por US, o INPS financiou a construção de hospitais privados sem previsão de recuperação dos investimentos. Para os autores Castro e Fausto (2012), a contratação de serviços privados de saúde pela previdência deu-se com o objetivo expandir a oferta dos serviços de saúde. Desse modo, foram assinados vários convênios e credenciados novos prestadores de serviços. Por conseguinte, o processo de capitalização da medicina privada no país deu-se com o incentivo do Estado, que foi o seu principal articulador. A partir desse período, predominou a assistência médica individualizada, especializada e curativa. Além disso, a articulação do setor privado com o Estado favoreceu a expansão do parque hospitalar e farmacêutico. Segundo Bravo (2007, p. 94 apud OLIVEIRA; TEIXEIRA, 1986), “houve a criação do complexo médico-industrial, responsável pelas elevadas taxas de acumulação de capital das grandes empresas monopolistas internacionais na área da produção de medicamentos e de equipamentos médicos”. À medida que se expandia o acesso à saúde, tornava-se mais nítida a clivagem entre os serviços ofertados pela iniciativa privada e os serviços públicos de saúde. Este fato ocasionou questionamentos no que tange a necessidade de melhorar a qualidade de saúde pública no país. Ao final do Governo Médici, o país vivenciava uma grave crise econômica decorrente da subordinação da política econômica ao mercado internacional. A desvalorização dos 27 principais produtos exportados pelo país, tais como o petróleo, o café, o açúcar e o algodão, contribuiu para um saldo negativo na balança comercial. Além disso, o salário mínimo perdeu seu poder de compra e a migração campo/cidade favoreceu o aumento da pobreza nas grandes cidades. Em 1974, foi criado o Ministério da Previdência e Assistência Social (MPAS), juntamente com o Conselho de Desenvolvimento Social (CDS), com o intuito de minimizar os efeitos negativos da crise econômica e da repressão e a fim de manter sua legitimação popular. A estratégia do governo era conter as insatisfações populares. Para tal, investiu em duas estratégias: a) a ampliação controlada dos espaços de reivindicações políticas; b) as políticas sociais de cunho paternalista e clientelista. A ausência de pessoas qualificadas para ocupar essas novas esferas institucionais contribuiu para que o Estado abrisse espaço para os segmentos organizados com ideários divergentes daqueles do regime autocrático. Esse fato permitiu que, aos poucos, os representantes do ideário da reforma sanitária penetrassem o corpo do Estado. Em 1976, foi fundado o Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (CEBES), cujos integrantes desempenharam um papel importante no processo de questionamento da política de saúde, apresentando sugestões para aperfeiçoá-la. Júnior e Júnior (2006, p. 15) salientam que a criação do CEBES significou o início da mobilização social que se convencionou chamar Movimento da Reforma Sanitária Brasileira– MRSB. O Movimento nasceu nos Departamentos de Medicina Preventiva e no Curso de Saúde Pública da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (USP) e rapidamente se expandiu entre os profissionais de saúde [...] que preconizava um novo modelo assistencial que destacava a importância da assistência primária de saúde. A Lei 6.439, de 1977, instituiu o Sistema Nacional de Previdência e Assistência Social (SINPAS) 1 . Essa lei englobou o Instituto Nacional de Previdência Social (INPS), passando a ser responsável pelos benefícios previdenciários. O SINPAS teve como objetivo reestruturar as formas de concessão dos benefícios e dos serviços bem como reorganizar a gestão administrativa, financeira e patrimonial da previdência social. 1 Segundo Leite (1978) o SINPAS abrangeu seis órgãos: a) o Instituto Nacional de Assistência Médica e Previdência Social (INAMPS), que prestava assistência médica aos beneficiários; b) o Instituto da Administração Financeira da Previdência Social (IAPAS), que se ocupava da arrecadação e da fiscalização das contribuições e da gestão dos recursos; c) Fundação Nacional do Bem-Estar do Menor (FUNABEM), d) Legião Brasileira de Assistência (LBA), e) Central de Medicamentos (CEME); f) DATAPREV Empresa de Processamento de Dados da Previdência Social. 28 Nesse contexto, coube ao INAMPS, autarquia federal vinculada ao MPAS e criada pelo desmembramento do INPS, a responsabilidade de prestar assistência à saúde a todos os brasileiros contribuintes em qualquer lugar no território nacional. Diante de tal incumbência, foram construídos grandes ambulatórios e alguns hospitais nos grandes centros urbanos. Entretanto, os altos investimentos demandados para a construção e ampliação da rede de atendimento fez com que o INAMPS passasse a contratar serviços de clínicas particulares e de entidades filantrópicas. É importante salientar que a ampliação da rede de assistência à saúde ocorreu, sobretudo, nos grandes centros urbanos onde residiam os trabalhadores contribuintes. Nas demais localidades permaneceram os vazios assistenciais, gerando muita desassistência em saúde. Mendes (2013, p. 28) retrata a dificuldade de acesso à saúde nessa época, pois antes do SUS vigia um Tratado de Tordesilhas da saúde que separava quem portava a carteirinha do Inamps e que tinha acesso a uma assistência curativa razoável das grandes maiorias que eram atendidas por uma medicina simplificada na atenção primária em saúde e com indigentes na atenção hospitalar. Outra atribuição do INAMPS foi a de realizar o financiamento e a gestão da assistência médica de todos os provedores de serviços médico-hospitalares conveniados. Para realizar a distribuição equitativa dos recursos, foram considerados dois fatores: o montante arrecadado pela contribuição e o número de beneficiários em cada estado. Assim, quanto mais próspera era a economia estadual, maior era a alocação de recursos a fim de suprir as necessidades assistenciais no campo da saúde. Souza (2002) ressalta que o INAMPS direcionava a maior parte dos recursos aos estados localizados nas regiões Sul e Sudeste, especialmente nas cidades de maior porte, por serem mais ricas. A centralização de poder no INAMPS contribuiu para que esse órgão se constituísse como a única esfera institucional capaz de traçar as diretrizes da política de saúde previdenciária. Gouveia e Palma (2003) criticaram a criação do INAMPS, uma vez que a saúde pública passou a ser uma atribuição do Ministério da Saúde (MS) e este não dispunha de recursos suficientes para realizar as ações de saúde coletiva essenciais para melhorar as condições de vida de toda a população. Os autores salientam que, na incumbência do MS, ficaram os programas de imunização e a vigilância sanitária e epidemiológica. Essa divisão de função provocou uma cisão na noção básica de integralidade entre as ações de promoção, prevenção, tratamento e reabilitação, que passaram a cindidas em diferentes ministérios. Com o rico INAMPS ficariam os hospitais, os ambulatórios e o cuidado médico curativo- 29 individual, alçados a centro do sistema e tratados como um fim em si mesmo. (GOUVEIA; PALMA, 2003, p. 16) No que tange à atenção básica, Júnior e Júnior (2006, p.16) destacam que, desde 1977, o MS já percebia a importância da municipalização da saúde para “estruturar uma rede de serviços básicos dentro dos princípios da atenção primária, mas à época, nenhum passo concreto foi dado nesta direção”. Para os autores, o descaso para com a atenção básica pode ser explicado pela falta de recursos do MS para executá-la e pelo processo de privatização da saúde por meio da assistência previdenciária. 1.3.2 O Governo Figueiredo e o Movimento de Reforma Sanitária O governo Figueiredo (1979-1985) marcou a transição do período ditatorial para a abertura democrática e deu continuidade à implantação do programa social iniciado no Governo Geisel (II Plano Nacional de Desenvolvimento). Em 1979, foi criada a Associação Brasileira de Pós-Graduação em Saúde Coletiva (ABRASCO). A ABRASCO desempenhou um papel ativo no Movimento de Reforma Sanitária Brasileira (MRSB) ao criar programas de pós-graduação em saúde coletiva e em saúde pública. Esses programas estenderam-se pelo país por meio de um convênio firmado entre o INAMPS e várias universidades. Consequentemente, o país passou a contar com gestores sanitários aptos para atuar no Sistema Nacional de Saúde (ESCOREL; NASCIMENTO; EDLER, 2005). Nesse mesmo ano, o CEBES tornou-se um órgão de consultoria técnica. Os técnicos trabalhavam em programas institucionais e nos ministérios, em Brasília. Uma grande conquista alcançada pela equipe foi a participação no 1º Simpósio de Política Nacional de Saúde da Comissão de Saúde da Câmara de Deputados, realizado em 1979. Nesse encontro, houve a aprovação do documento ‘A Questão Democrática na área da Saúde’, cujo relatório final foi elaborado por integrantes do CEBES em 1980. A aprovação desse documento foi um marco para os integrantes da RSB, pois ele continha: a formulação da proposta de criação do SUS e o reconhecimento do direito universal à saúde. Além disso, ele simbolizou a criação de um espaço estratégico capaz de alinhavar alianças políticas efetivas na defesa do ideário da Reforma Sanitária Brasileira (RSB). 30 Nos últimos anos da década de 1970 e no início dos anos 1980, os ideários do MRSB fortaleceram-se, pois seus atores conseguiram estabelecer articulações importantes com os movimentos sociais, com a sociedade civil e com os parlamentares. Os integrantes do MRSB defendiam a ampliação dos direitos de cidadania às camadas sociais marginalizadas pelo processo de acumulação capitalista. As pressões sociais e políticas para reformular a política de saúde estavam vivas; dessa forma; foi elaborado um amplo projeto de reordenamento do setor que, inicialmente, recebeu o nome de Pró-Saúde e mais tarde foi rebatizado de Prev-saúde. O Prev-saúde tinha os seguintes objetivos principais: a) fortalecer a APS; b) estabelecer a hierarquização das formas de atendimento por níveis de complexidade; c) promover a integração dos serviços; d) a regionalização dos atendimentos. Entretanto, o Prev-saúde nunca se concretizou, pois ele se estruturou em princípios adversos aos interesses corporativos predominantes na época. Segundo Marques (2010, p. 34), as pressões contrárias ao Prev-saúde tinham três origens principais: I) A Associação Brasileira de Medicina de Grupos e Empresarial (ABRANGE), a qual representava a iniciativa privada; II) os interesses da área hospitalar privada, a grande beneficiária da política em vigor; III) os interesses do clientelismo político presente no processo de credenciamento de médicos e dentistas. Nos anos iniciais da décadade 1980, a crise Previdenciária agravou-se em decorrência do gasto excessivo com o pagamento de provedores privados e, também, pelo desvio de recursos para outras áreas. Em 1981, o governo, então, lançou o pacote da previdência a fim de conter a crise fiscal, promoveu o reajuste das alíquotas de contribuição, diminuiu os benefícios dos aposentados e realizou uma intervenção na área da assistência médica previdenciária em virtude dos gastos excessivos. Esse foi o contexto de criação do Conselho Consultivo de Administração da Saúde Previdenciária (CONASP). O CONASP estava vinculado ao MPAS com a incumbência de organizar e racionalizar a assistência médica. Cabia a esse órgão o papel de sugerir critérios para alocação dos recursos previdenciários do setor saúde, recomendar políticas de financiamento e de assistência à saúde, bem como analisar e avaliar a operação e o controle da Secretaria de Assistência Médica da Previdência Social – em resumo, diminuir e racionalizar os gastos. (ESCOREL; NASCIMENTO; EDLER, 2005, p. 73) Mediante convênio entre o MPAS, o MS e o Ministério da Educação e Cultura (MEC), as Ações Integradas de Saúde (AIS) promoveram medidas descentralizadoras que trouxeram 31 avanços aos serviços de saúde, tais como o fortalecimento da rede básica ambulatorial, a articulação dos serviços públicos municipais e a contratação de recursos humanos. Entretanto, novamente os interesses do setor privado voltaram a permear o INAMPS, fraudando a emissão de Autorização de Internação Hospitalar (AIH). Nesse período, vários integrantes do MRSB inseriram-se na alta burocracia do Estado, especialmente nas áreas de saúde e previdência social. Os sanitaristas defendiam reformas na política de saúde a fim de melhorar e democratizar o atendimento à saúde, pois a política de saúde, adotada até então pelos governos militares, punha ênfase numa medicina de cunho individual e assistencialista, em detrimento de ações vigorosas no campo da saúde coletiva [...]. Além de privilegiar uma prática médica curativa, em detrimento de medidas de ações preventivas de interesse coletivo, a política de saúde acabou por propiciar um processo de corrupção incontrolável, por parte dos setores privados, que, na busca do superfaturamento, multiplicavam e desdobravam os atos médicos, optavam por internações mais caras, enfatizavam procedimentos cirúrgicos desnecessários. (ESCOREL; NASCIMENTO; EDLER, 2005, p. 67) Os atores envolvidos na MRSB articularam-se para questionar a crise enfrentada pelo setor de saúde, que, apresentando uma baixa eficácia na assistência médica e da cobertura dos serviços de saúde, não registrava melhoras na qualidade de saúde da população. O sistema de saúde continuava ineficiente a despeito dos altos custos de investimentos no modelo médico hospitalar, em tecnologia e em medicamentos, aumentando ainda mais as críticas à política de saúde em vigor. O MRSB defendeu a democratização da política de saúde em três frentes: na produção teórica, que resultou na construção do conceito de Saúde Coletiva; na atuação política de articulação em torno da questão da saúde e em favor da redemocratização do país; e, por fim, em um processo de conscientização e valorização da saúde como um direito universal e de natureza pública. Por meio do movimento sanitário, quer em nível local, quer em outras instâncias da saúde, foram colocadas em prática inúmeras experiências alternativas que objetivavam suprir a predominância do interesse privado sobre o público. O MRSB defendia a universalização da cobertura, a ampliação dos programas preventivos e o fortalecimento da atenção básica para a população de baixa renda, o aumento do controle sobre os provedores privados e a descentralização. (ARRETCHE, 2005, p. 291) Os autores Borges (2012) e Paim (2009) salientam que o MRSB visava a superação do sistema de saúde vigente no Brasil visto que este apresentava as seguintes características: 32 insuficiência, má distribuição, descoordenação, inadequação, ineficiência, ineficácia, autoritarismo, centralização, corrupção e injustiça. É importante ressaltar que a classe média não teve uma atuação importante no processo de luta pelo fortalecimento da política de saúde e de criação do SUS. Tal processo ocorreu com o fim do INAMPS, pois o INPS estabeleceu convênios com as empresas privadas a partir de 1968. Dessa forma, segundo Ocké-Reis (2012, p. 24), “ocorreu a privatização do seguro social, o que, somado ao crescimento endógeno de mercado de planos, interditou o projeto estratégico do SUS, o projeto da reforma sanitária”. Para aumentar o debate tanto com a sociedade civil como com os parlamentares, as lideranças do MRSB utilizaram o método de ocupação de postos estratégicos no governo, marcando presença nos espaços de discussão da política de saúde e ampliando as discussões sobre saúde a todos os setores interessados. A concepção ampliada trazida pelo MRSB a respeito da política de saúde contribuiu para que essa área se desvinculasse de sua forma histórica caracterizada como centralizadora, autoritária, privatista, hospitalocêntrica, meritocrática e residual. A partir de então, a saúde 2 passou a ser entendida como um direito de todos e dever do Estado. O ano de 1987 marcou a criação do Sistema Unificado e Descentralizado de Saúde (SUDS), por meio de um convênio entre o INAMPS e os governos estaduais. Por meio desse convênio, vislumbrava-se que os estados, progressivamente, coordenassem o processo de municipalização da saúde. Os princípios fundamentais do SUDS eram: a universalização, a equidade, a descentralização, a regionalização, a hierarquização e a participação comunitária. Castro e Fausto (2012, p. 177) enfatizam que “a atenção primária em saúde era tratada como parte intrínseca às propostas para a reorganização dos serviços de saúde numa perspectiva sistêmica, abrangente e universal”. Para Castro (2012), é correto afirmar que o SUDS preocupou-se em redirecionar os recursos federais para os municípios, evitando que aqueles destinados à saúde fossem apropriados de forma clientelista, fato bastante comum na realidade brasileira, inclusive nos dias de hoje. 2 A saúde, em seu sentido mais abrangente, foi considerada como “resultante das condições de alimentação, habitação, educação, renda, meio ambiente, trabalho, transporte, emprego, lazer, liberdade, acesso e possa da terra e acesso a serviços de saúde”. É assim, antes de tudo, o resultado das formas de organização social da produção, as quais podem gerar grandes desigualdades nos níveis de vida. A saúde não é conceito abstrato. Define-se no contexto histórico de determinada sociedade e num dado momento de seu desenvolvimento, devendo ser conquistada pela população em suas lutas cotidianas (Relatório final da VII Conferência Nacional de Saúde, Anais, 1987, p. 382). 33 É importante correlacionar a criação do SUDS com a instalação, na Câmara dos Deputados, da Comissão Nacional de Reforma Sanitária (CNRS) na qual eram desenvolvidos os trabalhos da Constituinte. Santos (2009, p. 22) destaca a importância dessa comissão composta por representantes de todos os segmentos interessados na saúde: o do setor público e privado, dos setores sociais , de parlamentares, que debateu por quase um ano a formulação de uma proposta de um Sistema Único de Saúde, que subsidiou a Assembleia Constituinte na redação final do capítulo sobre a saúde na Constituição Federal de 1988. 1.4 O SUS: UMA NOVA PERSPECTIVA PARA A SAÚDE PÚBLICA BRASILEIRA A criação do Sistema Único de Saúde (SUS) originou-se das pressões dos movimentos sociais, dentre eles o de Reforma Sanitária, que criticou de forma contundente o modelo vigente de saúde porque este privilegiava as práticas curativas e a não integralidadedas ações de saúde. Além disso, os reformistas foram influenciados pela experiência do Welfare State 3 europeu que implementou políticas sociais universais e integrais (OCKÉ-REIS, 2012). Com a promulgação das Leis Orgânicas nº 8080 e nº 8142, de 1990, o SUS teve o seu arcabouço jurídico legal delineado, sendo normatizado o processo de descentralização administrativa e definidos os critérios de financiamento da política de saúde. Entretanto, as inovações mais radicais relativas ao modelo de atenção proposto pela legislação do SUS somente foram implementadas após a criação da Norma Operacional Básica nº 96, de 1996 4 . O SUS estabeleceu a universalidade do acesso aos serviços de saúde em todos os níveis (federal, estadual, municipal), sendo criado um comando único em cada esfera de governo. Por isso, o SUS é um sistema hierarquizado, descentralizado, integral e universal a todos os cidadãos brasileiros. O princípio constitucional da universalidade garantiu o direito à saúde, entendido como um dever do Estado, a todos os cidadãos. Além disso, resgatou uma dívida histórica com a sociedade brasileira que, por várias décadas, permitiu o acesso aos serviços de saúde somente para os segurados e contribuintes da previdência social. Vários foram os avanços obtidos com a criação do SUS, conforme evidencia Mendes (2013, p. 28) quase seis mil hospitais e mais de sessenta mil ambulatórios contratados, mais de dois bilhões de procedimentos ambulatoriais por ano, mais de onze milhões de internações hospitalares por ano, aproximadamente dez milhões de procedimentos 3 Estado de Bem-Estar Social (tradução nossa). 4 Mais informações a esse respeito estão contidas no Anexo 1. 34 de quimioterapia e radioterapia por ano, mais de duzentas mil cirurgias cardíacas por ano e mais de 150 mil vacinas por ano. O SUS pratica programas que são referência internacional, mesmo considerando países desenvolvidos, como o Sistema Nacional de Imunizações, o Programa de Controle de HIV/Aids e o Sistema Nacional de Transplantes de Órgãos que tem a maior produção mundial de transplantes realizados em sistemas públicos de saúde do mundo, 24 mil em 2012. O programa brasileiro de atenção primária à saúde tem sido considerado, por sua extensão e cobertura, um paradigma a ser seguido por outros países. Com esses processos o SUS tem contribuído significativamente para a melhoria dos níveis sanitários dos brasileiros. Entre 2000 e 2010, a taxa de mortalidade infantil caiu 40%, tendo baixado de 26,6 para 16,2 óbitos em menores de um ano por mil nascidos vivos. Entretanto, desde o período de sua formulação até os dias de hoje, o SUS tem enfrentado vários problemas correlacionados à adoção do ideário neoliberal no Brasil e que comprometem a concepção da política de saúde como universal. 1.5 A REFORMA PSIQUIÁTRICA BRASILEIRA Movimento científico-político-social, a reforma psiquiátrica brasileira teve inicio na década de 1950 nos países europeus e, no final da década de 1970, chegou ao Brasil. Os trabalhadores do campo da saúde mental denunciaram as péssimas condições de higiene, a violência e a mercantilização da loucura presente no interior dos manicômios privados espalhados por todo o território nacional. Esses trabalhadores defendiam o processo de desinstitucionalização da loucura e a superação do modelo asilar (AMARANTE, 1995). Sem dúvida alguma, o contexto político social de derrocada da autocracia militar e a reabertura do Estado aos princípios democráticos contribuíram de forma significativa para o fortalecimento da reforma psiquiátrica brasileira. Além disso, a realização da 8ª Conferência Nacional de Saúde, em 1986, da 1ª Conferência Nacional de Saúde Mental, em 1987, e, cinco anos mais tarde, da 2ª Conferência Nacional de Saúde Mental viabilizou a construção de novos caminhos para a saúde pública e para a saúde mental no país. As primeiras experiências no campo da saúde mental de cunho desinstitucionalizante surgiram, no Brasil, a partir da segunda metade dos anos 1980. Contudo, é importante destacar que a assistência em saúde mental estruturada em um modelo territorial e comunitário não é nova. Desviatt (1999) considera que essa concepção de assistência foi gestada após longas discussões de projetos e de proposições sobre o tema. No contexto internacional, a realização da Conferência Regional para a Reestruturação da Assistência Psiquiátrica, realizada em Caracas, em 1990, cumpriu um papel preponderante. Nessa Conferência, diferentes países da América Latina, incluindo o Brasil, comprometeram- 35 se a promover a reestruturação da assistência psiquiátrica, a rever criticamente o papel hegemônico e centralizador do hospital psiquiátrico, a salvaguardar os direitos civis, a dignidade pessoal e os direitos humanos dos usuários, além de propiciar a sua permanência em seu meio comunitário. Signatário da “Declaração de Caracas”, o Brasil comprometeu-se a rever a assistência psiquiátrica prestada aos cidadãos. Entretanto, Gonçalves e Sena (2001, p. 50) afirmam que a desinstitucionalização não se restringe à substituição do hospital por um aparato de cuidados externos envolvendo prioritariamente questões de caráter técnico- administrativo-assistencial como a aplicação de recursos na criação de serviços substitutivos. Envolve questões do campo jurídico-político e sociocultural. Exige que, de fato haja um deslocamento das práticas psiquiátricas para práticas de cuidado realizadas na comunidade. Ao longo dos anos 1990 e no início do século XXI, a Reforma Psiquiátrica ganhou folêgo e começou a materializar-se em serviços extra-hospitalares, com a função de substituir o atendimento hospitalar por todo o território nacional. Novos serviços em saúde mental foram normatizandos a partir de algumas definições administrativas e operacionais. A aprovação da Lei Federal nº 10.216/01 tem origem na “Lei Paulo Delgado”, que defendeu a extinção dos hospícios e a criação de serviços substitutivos comunitários e a regulamentação da internação psiquiátrica. Vale ressaltar que a “Lei Paulo Delgado” tramitou no Congresso Nacional por doze anos. Após a promulgação da Lei n.10.216/01, o Governo Federal criou uma série de novas leis e outras portarias 5 para que o SUS ofereça uma rede de serviços de saúde mental articulada e efetiva em diferentes níveis de complexidade para atender as pessoas com transtorno mentais e com necessidades decorrentes do consumo de álcool e outras drogas, sem as quais a política de saúde mental fica insustentável. A RAPS é constituída por vários serviços substitutivos e territoriais tais como os CAPS, os Núcleos de Atenção Psicossocial (NAPS), os Hospitais-Dia, os Centros de Convivência, o Serviço de Urgência e Emergência Psiquiátrica em Pronto-Socorro Geral, o Serviço de Residência Terapêutica (SRT), etc. O CAPS tem a função de prestar o acolhimento e a atenção às pessoas com transtornos mentais graves e persistentes, procurando preservar e fortalecer os laços sociais em seu território. São serviços de saúde municipais abertos, comunitários, que oferecem atendimento diário, que buscam realizar “o acompanhamento clínico e reinserção social” de seus usuários 5 Para mais informações sobre os marcos legais e jurídicos da saúde mental, consultar o Apêndice A desta tese. 36 “por meio de acesso ao trabalho, ao lazer, exercício de dos direitos civis e fortalecimento dos laços familiares e comunitários” (DELGADO et al, 2007, p. 59). É inquestionável que, nos últimos catorze anos, vários avanços foram logrados. Ampliou-se a cobertura do atendimento territorial em nível nacional 6 , houve uma diversificação da rede substitutiva por meio da criação dos Centros de Convivência, dos Consultóriosna Rua, das Equipes de Redução de danos e de iniciativas de inclusão social pelo trabalho. É importante ressaltar que, no ano de 2011, o SUS sofreu mudanças substanciais por meio do estabelecimento da estratégia da Rede de Atenção à Saúde (RAS). A RAS objetiva a formação de relações horizontais entre os pontos de atenção à saúde, tendo como seu núcleo fundamental a APS. No campo específico da saúde mental, a RAPS foi escolhida como uma das redes prioritárias, aumentando o percentual de investimento aplicado na saúde mental. Ao mesmo tempo, houve o fechamento de 7.449 leitos psiquiátricos 7 que ofertavam serviços de baixa qualidade assistencial, de forma pactuada e programada, conforme prevê o Programa Anual de Reestruturação da Assistência Psiquiátrica (PRH), no período de 2010 a 2013. O fechamento dos leitos hospitalares ocorreu, sobretudo, em hospitais de grande porte. Em contrapartida, houve a ampliação do número de leitos psiquiátricos em hospitais de menor porte. Essa mudança reafirma o compromisso da política de saúde mental, em curso no Brasil, que objetiva garantir a melhoria na qualidade da assistência prestada. Essa realidade também pode ser comprovada com a ampliação dos SRT nos estados em que houve o descredenciamento dos hospitais psiquiátricos. A nova rede de serviços, apesar de possuir ainda lacunas, possibilitou a interiorização da política de saúde mental em diversos municípios brasileiros antes desassistidos. Entretanto, os formuladores da política nacional de saúde mental, juntamente com os trabalhadores do campo, usuários e familiares perceberam que, para dar sustentabilidade ao processo de reforma psiquiátrica, torna-se necessário a construção de uma rede de atenção e assistência que ultrapasse a saúde mental e englobe, necessariamente, as demais políticas sociais. Nesse sentido, Amarante (2007) enfatiza que, para dar sustentação à reforma psiquiátrica, é imprescindível o fortalecimento do conceito ampliado de saúde, da clínica ampliada, do trabalho interdisciplinar e intersetorial e da noção de rede. A mudança operada pela atual política de saúde mental está intimamente correlacionada ao novo conceito de saúde-doença que passa a compreender a saúde não mais 6 Para mais informações, consultar: http://portal.saude.gov.br/portal/arquivos/pdf/mentalemdados2011.pdf. 7 http://agenciabrasil.ebc.com.br/noticia/2013-09-03/sus-desativou-quase-13-mil-leitos-entre-2010-e-2014. 37 como ausência de doença, como uma produção social, sendo esta influenciada pelos fatores políticos, econômicos, sociais, culturais e cognitivos. Desta forma, a atenção integral ao indivíduo e a sua família necessita englobar as prática sanitárias e sociais (GIOVANELLA; LOBATO, 2002). As novas concepções de saúde coletiva sustentam-se no pilar promoção- saúde-doença-cuidado e, com essa compreensão, pretendem impulsionar a construção de políticas públicas saudáveis e intersetoriais. No campo da saúde mental, os avanços foram enormes e apontam para o deslocamento do tratamento hospitalocêntrico para o territorial, colaborando para o amadurecimento da reforma psiquiátrica no país. No entanto, a expansão dos serviços territoriais por si só não assegura a sua natureza não-manicomial e não garante a prestação de serviços de qualidade. Portanto, apesar dos avanços logrados, o processo de reforma psiquiátrica deve ser contínuo e repleto de questionamentos e de inquietações para que a RAPS esteja em permanente reavaliação, evitando a cronificação da assistência. 1.6 O NEOLIBERALISMO COMO ALTERNATIVA AO WELFARE STATE No âmbito internacional, a crise política e econômica 8 que atingiu os países desenvolvidos, na década de 1970, favoreceu o avanço do neoliberalismo. A crise atingiu fortemente os países desenvolvidos, trazendo uma profunda recessão, com altas taxas de inflação associadas a baixos níveis de crescimento econômico. Sua expressão mais aguda foi o enfraquecimento das políticas Keynesianas 9 que, por conseguinte, impôs cortes no orçamento das políticas sociais, enfraquecendo os direitos sociais. Esse fato estimulou um processo de reestruturação do capital que extrapolou o âmbito da produção e atingiu diretamente a vida dos trabalhadores. Ao colapsar os anos de ouro 10 do capitalismo, as políticas sociais sofreram cortes severos em seu financiamento. Assim, as políticas sociais, que eram universais, passaram a 8 Na metade da década de 1970, os países capitalistas desenvolvidos buscaram alternativas para conter a crise econômica ocorrida entre os anos 1974-1975. Esta crise ocasionou a “primeira recessão generalizada da economia capitalista internacional desde a Segunda Guerra Mundial” (NETTO, 1996, p. 90). 9 Segundo Vasconcelos, Eduardo (2008, p. 45), a partir da profunda crise econômica de 1929, e particularmente da II Guerra Mundial, se desenvolveram em vários países centrais a experiência de políticas Keynesianas, inspiradas nas ideias de Keynes, pelas quais o Estado intervém na economia com o propósito de manter o crescimento econômico, a demanda de trabalho, o controle do desemprego e/ou capacidade da compra do cidadão, pelo seguro-desemprego e demais benefícios sociais, e pela oferta de programas sociais estatais em habitação, infraestrutura, educação, saúde etc. esses modelos trabalhistas e social-democratas podia, incorporar inúmeras reivindicações dos trabalhadores e de aumentar a eficiência no processo de reprodução da força de trabalho, sem alterar significativamente a estrutura de poder econômico e social. 10 Termo utilizado por Eric Hobsbawn (2009). 38 ser seletivas e focalizadas, isto é, destinadas a grupos sociais mais específicos e vulnerabilizados. Essa mudança no perfil das políticas sociais correlaciona-se ao baixo crescimento do Estado e à diminuição de sua arrecadação tributária. A crise provocou, ainda, outro efeito: a diminuição do nível de emprego, que, por sua vez, ocasionou “um desequilíbrio entre os direitos adquiridos e a capacidade do Estado de mantê-los” (SADER, 2010, p. 38). Sem sombra de dúvida, a crise econômica afetou a capacidade financeira do Estado em prover os direitos sociais já consolidados, dando início ao que Sader (2010, p. 38) denomina de ‘democracia restrita’, ou seja, de atendimento seletivo dos direitos e, sobretudo, um corte naqueles existentes. A palavra ‘governabilidade’ passou a ser incluída no vocabulário da nova versão do liberalismo, como categoria central, significando ‘possibilidade’, ‘viabilidade’, ‘exequibilidade’, incluindo agora o filtro financeiro como critério de realização dos direitos. O sistema capitalista baseia-se em ciclos de expansão nos quais são criados novos mercados ou são aprofundados os existentes. Mas, os ciclos de crise são, também, inerentes ao sistema, por isso em todos os continentes registram-se crises financeiras, expressões localizadas da dinâmica necessariamente contraditória do sistema capitalista, e, crises, não só financeiras, fazem, também necessárias, parte da dinâmica capitalista – não existe capitalismo sem crise. São próprias deste sistema as crises cíclicas que, desde a segunda década do século XIX, ele vem experimentando regularmente. (NETTO, 2012, p. 415) Como alternativa à crise, o ideário neoliberal estruturou-se sob o tripé: a) flexibilização da produção e das relações de trabalho; b) desregulamentação das relações comerciais e dos círculos financeiros; e c) privatização. Paulatinamente, vários governantes 11 adotaram o receituário neoliberal mundo afora. Todavia, considerando a conjuntura de cada estado-nação, a adoção desse ideário apresenta-se mais nefasta para a população à medida que enfraquece os direitos sociais e as políticas sociais. Nos países periféricos