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Pós-Graduação em Gestão Estratégica na Áreas Social e de Saúde Módulo Básico Planejamento em Saúde Walter Oliveira FAEL Diretor Executivo Marcelo Antônio Aguilar Diretor Acadêmico Francisco Carlos Sardo Coordenador Pedagógico Osnir Jugler EDitorA FAEL Autoria Walter Oliveira Gerente Editorial William Marlos da Costa Projeto Gráfico e Capa Patrícia Librelato Rodrigues revisão Jaqueline Nascimento Programação Visual e Diagramação Karlla Cristyne Plaviak AtEnção: esse texto é de responsabilidade integral do(s) autor(es), não correspondendo, necessariamente, à opinião da Fael. É expressamente proibida a venda, reprodução ou veiculação parcial ou total do conteúdo deste material, sem autorização prévia da Fael. EDitorA FAEL Avenida Silva Jardim, 167 Curitiba | PR | CEP 80.230-000 FAEL Rodovia Deputado Olívio Belich, Km 30 PR 427 Lapa PR CEP 83.750-000 FotoS DA CAPA Foto1: OKSun/Shutterstock Foto2: Bevan Goldswain/Shutterstock Foto3: Yuri Arcurs/Shutterstock Foto4: mangostock/Shutterstock Foto5: Alexander Raths/Shutterstock Todos os direitos reservados. 2012 Planejamento em Saúde 1 . Raízes históricas do planejamento 1.1 Campo de estudos do planejamento O tema do planejamento nos remete a dois aspec- tos fundamentais na história do ser humano: as ope- rações militares e a necessidade de soluções para a convivência nas cidades. Na verdade os dois estão inter- relacionados. Platão, em uma de suas obras capitais, A República, mostra que o crescimento das cidades era pensado também em relação à necessidade de expan- são de territórios. Esta expansão era sentida como um processo natural e levava, muitas vezes, ao confronto entre as cidades-estado (como organiza-se a Grécia) e nações. A expansão trazia para as cidades bens que elas não podiam produzir e as guerras surgiam quando não era possível obter os bens desejados por ações puramente diplomáticas e comerciais. As guerras con- tribuiam, portanto, para a obtenção de bens, inclusive escravos. Além disso, havia a necessidade de segurança contra os outros estados, o que alimentava o potencial para as guerras. Para as guerras era necessário que se organizas- sem exércitos e complexos sistemas logísticos. Estes empreendimentos eram conduzidos, na Grécia clássica, por oficiais chamados estrátegos, equivalentes, na atu- alidade, aos generais. Surge daí o vocábulo estratégia, que passou, na idade contemporânea, a denominar um tipo de planejamento, o planejamento estratégico. Do ponto de vista do planejamento das cidades, o que se buscava, já desde as civilizações clássicas, era a garantia de uma convivência interna pacífica. Neste sentido, esperava-se que as transações sociais, em que podemos incluir o comércio, ajudassem na construção de uma vida tão confortável quanto possível. A religião implicava diretamente a busca do con- forto e da segurança. Muitas necessidades não podem ser supridas puramente pela ação humana. A produção de alimentos mediante atividade agrícola, por exemplo, depende de aspectos climáticos e ecológicos e estes sempre constituíram um desafio ao controle material. Os deuses eram invocados para aplacar a natureza, favore- cer semeaduras e colheitas, proteger contra os inimigos e proporcionar iluminação espiritual e orientação sobre decisões vitais. Por isso, em todas as civilizações torna- ram-se importantes as organizações que mediassem as relações com o sobrenatural. Em algumas sociedades privilegiou-se a mitologia, como na Grécia, em outras o sistema clerical, como no Egito. Todas primaram pelo extremo senso de organização que inseria a religião como parte essencial do plano de vida das pessoas nos povoados, vilarejos ou cidades. A procura por equilíbrio entre as funções, atri- buições e privilégios de determinados grupos sociais gerou uma ética atenta à equidade, à justiça e à soli- dariedade. Esta visão encontra-se na raiz do conceito de cidadania. Nas cidades e nações, alguns grupos, por serem considerados benfeitores, superiores ou por um poder garantido pela força ou ainda por serem naturais do lugar, adquiriam privilégios em relação a uma série de benefícios necessários à manutenção e aperfeiçoa- mento do padrão de vida. Entre os benfeitores estavam imperadores, reis, ditadores, além de, líderes religiosos, comerciantes e militares, entre outros. Governantes que buscavam mais justiça social facilitavam o avanço dos direitos civis, políticos e sociais. Com esta dinâmica os planos para o desenvolvimento das cidades e nações eram pensados e executados tanto pelos membros dos governos como, em alguns casos, a partir da população comum, através de diversas formas de representação (PINSKY, 2005). Para manter o funcionamento das cidades em meio a fenômenos naturais muitas vezes imprevisí- veis e guerras constantes ou cíclicas, era necessário um padrão de organização a partir de configurações políticas, sociais e religiosas. Assim, a vida no Egito e entre os hebreus tinha como fulcro o poder religioso. A Grécia desenvolveu eventualmente a democracia que se pautava politicamente por conselhos políticos e orientava-se pela influência dos oráculos em um con- texto histórico que valorizava a filosofia e a busca da beleza definida como uma forma de equilíbrio. Roma estabeleceu o Senado e manteve o sistema mitológico criado pelos gregos. Estas civilizações históricas desen- volveram poderosos exércitos, como os de Atenas e Esparta, na Grécia. Roma, especialmente, inovou a prá- tica da guerra com a criação das legiões. MóDuLO BÁSICO | 2 | A organização militar da maioria das civilizações antigas era submetida aos governos, mas, em geral, mantinha, por sua força inerente, uma autonomia que lhe permitia pensar seu próprio planejamento. As estra- tégias eram assunto essencialmente pertinente aos generais (estrategistas) e seus subordinados. A religião tudo mediava e o comércio e as indústrias da época, que também implicavam planos de ação, permitiam o financiamento das atividades sociais, incluindo as guer- ras, e modulavam o padrão de vida. Infere-se desta introdução que o planejamento é uma prática antiga, inerente à vida humana e sobre a qual as sociedades têm se debruçado para buscar a opera- cionalização dos fenômenos da vida cotidiana, entre eles a produção e distribuição de bens necessários à sobrevi- vência, as trocas comerciais, a expansão de territórios e mercados e a busca da realização espiritual. Através das épocas ocorreram, paulatinamente, no mundo ocidental, o privilégio à racionalidade, o desenvol- vimento da ciência e a hegemonia da tecnologia como elemento organizador da vida. Neste contexto, o plane- jamento passou a ser estudado de forma sistemática e tornou-se uma disciplina dentro do esquema de organi- zação de saberes, ligando-se, principalmente, ao campo da administração. Esta sistematização do estudo do pla- nejamento ocorre, junto com o surgimento do campo da administração, ao final do século XIX, quando o desen- volvimento da produção de bens para distribuição em massa, no contexto da nova ordem capitalista, demanda a ordenação dos processos de trabalho e o controle dis- ciplinar dos trabalhadores (FOuCAuLT, 2001). A nova ciência da administração dedicou-se, ini- cialmente, à construção de uma teoria das organiza- ções. As organizações constituem o centro nevrálgico de sustento da vida moderna. Nada opera-se sem as organizações que elaboram, implementam, controlam e avaliam as transações humanas, organizando e distri- buindo os bens necessários a elas. As organizações são institucionalizadas, controladas pelo Estado e pelas ten- dências de mercado, contextualizadas na ordem social, política e econômica vigente. O processo de vida, identificado como processo social de complexidade extrema, exige padrões de comportamento adequados à ordem constituída. O planejamento torna-se, desta forma, essencial para regular as relações humanas, mediadas por organizações e instituições. A saúdeé uma área especialmente importante da vida e mediada por organizações e instituições de grande influência sobre as pessoas. O campo de estudos do pla- nejamento tem, na área da saúde, uma atuação funda- mental. E, como em outras áreas, sua história inicia-se pelas necessidades básicas nas diferentes épocas. Neste texto vamos contar, de forma sucinta, a his- tória do planejamento na saúde, verificar o panorama atual do conhecimento sobre planejamento em saúde e examinar o papel do planejamento no desenvolvimento e consolidação do Sistema Único de Saúde (SuS), o sistema nacional de saúde do Brasil. 1.2 As origens do planejamento em saúde O planejamento em saúde no Brasil acompanha a história geral da saúde no país. Esta deve ser compre- endida a partir de suas raízes na Europa, de onde nossa cultura emerge com a colonização portuguesa. Impor- tante, também, é a influência dos Estados unidos, a partir do século XX. Nesta trajetória ressalta-se a influência das transformações políticas e dos movimentos próprios da área da saúde. Nesta secção vamos examinar estas raí- zes históricas, o que nos permitirá compreender melhor o estabelecimento dos mecanismos de planejamento e como eles se adequaram ao contexto da construção de nossos sistemas de saúde até os dias atuais. A saúde é um valor capital entre os seres humanos. Entretanto, no mundo ocidental, era tradicionalmente assunto de tratamento privado. Não foi até a ocorrência das grandes pestes, que ameaçavam devastar a civili- zação, que a saúde passou a ser assunto de interesse público e coletivo. Diante da destruição promovida pelas pestes, as cidades da Europa tomaram uma série de providên- cias visando à prevenção da disseminação da doença. Estas medidas aplicaram-se, inicialmente, ao controle das migrações, exercendo-se diretamente nos portos. Embarcações chegadas de outros lugares eram estri- tamente revistadas, vigiadas e passou-se a utilizar uma medida denominada quarentena, que consistia em impe- dir o desembarque de tripulações e passageiros por até 40 dias, quando se confirmava não ter havido nenhuma manifestação suspeita de peste entre os viajantes. PLANEJAMENTO EM SAÚDE | 3 | A cidade de Paris desenvolveu um complexo sis- tema de controle para detectar, precocemente, portado- res da peste, conforme afirma Foucault (2001). um fun- cionário da prefeitura percorria diariamente certo número de quarteirões em determinado horário. Em cada casa, neste horário, todos os habitantes deveriam chegar à janela. A ausência de algum morador era considerada suspeita, o funcionário podia entrar na casa para inspe- ção e exigir a presença do ausente. A cidade mantinha registros de controle e planejamento para manter este serviço ativo e obter os resultados esperados. Não se falava, entretanto, àquela época, em uma área específica da saúde. As medidas tomadas para o bem-estar eram sociais gerais. A expansão das cidades propiciou, na França, uma política que ficou conhecida como o Hospital Geral. O termo não denominava, como hoje, um local de tratamento, mas um aparelho admi- nistrativo de organização social, funcionando mais ou menos da forma como funcionaria hoje uma secretaria de assistência social, mas com foco em controle. O Hospital Geral encarregava-se de vigiar, atender e internar pessoas em situação social de vulnerabilidade ou que eram vistos como ameaças ou incômodos. Nes- tas instituições passaram a ser internados pessoas com doenças crônicas, portadores de deficiências físicas ou mentais, mendigos, ladrões, prostitutas, condenados por crimes não atentatórios à vida, como de adultério, usurá- rios, enfim uma variedade de transgressores de normas e vítimas de contingências sociais (FOuCAuLT, 1999). A iniciativa de internações pelo Hospital Geral, na França, espalhou-se rapidamente pelo resto da Europa. A partir do século XVIII, o Iluminismo favoreceu o desenvolvimento das diversas ciências. A medicina desenvolveu-se e aplicava-se, principalmente, de forma privada, atendendo aos que podiam pagar. Livrar-se das doenças, mesmo as mais simples, era um privilégio das classes economicamente favorecidas. Para os despos- suídos haviam os tratamentos proporcionados em hos- pitais operados por instituições de caridade, geralmente de natureza religiosa. Contudo, havia problemas que não atingiam apenas uma determinada classe, mas se estendiam à população como um todo. Havia, portanto, uma demanda de planos para lidar com estes proble- mas que nem a medicina privada nem as instituições de caridade podiam, por si só, solucionar. A epidemia de cólera, ocorrida em Londres no século XVIII, propiciou historicamente o avanço do pla- nejamento em saúde. John Snow, médico comissionado pela Coroa Britânica, conduziu um detalhado e rigoroso estudo que revelou que a doença manifestava-se de acordo com o curso de um determinado rio. Concluiu que a transmissão do cólera dava-se a partir da distri- buição de águas e conseguiu planejar medidas gerais de combate à epidemia. Esta época foi de grande desenvolvimento para a saúde pública. Criaram-se, nos Estados unidos, os departamentos estaduais de saúde, centros onde se pla- nejavam, desenhavam e executavam ações de controle e proteção da saúde das populações, originando-se daí os sistemas nacionais e locais de saúde. Outro marco histórico da saúde pública e do plane- jamento em saúde foi o movimento da Medicina Social, na Europa, entre 1830 e 1870, e que visava a atender, de acordo com Rosen (1980), à necessidade de lidar com problemas coletivos de saúde. A Europa, na segunda metade do século XIX, tinha altos índices de mortalidade por todo tipo de doença, principalmente as transmissíveis. As condições de sane- amento eram péssimas, assim como as condições de trabalho. Crianças e mulheres, inclusive grávidas, traba- lhavam até 14 horas por dia, às vezes em locais sem nenhuma ventilação e em troca de salários baixíssimos, às vezes apenas em troca de comida (ROS, 2006). Este quadro mobilizou a classe médica, que passou a lutar não só para o avanço da ciência, mas, também, para o estabelecimento de leis, políticas e ações que pudessem interferir na produção de doenças e de saúde. Reconhe- cia-se, desta forma, que a saúde e a doença podiam ser produzidas não só pelos agentes patológicos, como vírus e bactérias, mas, também, pelas condições sociais, conceito ao qual passamos a nos referir como da deter- minação social do processo saúde-doença. Saúde pública gera, portanto, a demanda de polí- ticas e planejamento social. É assunto de Estado e de interesse público. Estudar planejamento em saúde é, também, discutir estas relações entre políticas de saúde, Estado e sociedade, que, por sua vez, referem-se ao exercício do poder. MóDuLO BÁSICO | 4 | 1.3 Estado, poder e planejamento em saúde O Estado é frequentemente apresentado como um dispositivo de controle das atividades e relações huma- nas, com poderes governamentais delegados pelos cidadãos, mas, muitas vezes, a serviço de interesses particulares. De outro lado, a sociedade constitui-se dos cidadãos que organizam sua vida enquanto habitantes de um território onde um Estado exerce seu poder. As relações entre o Estado e a sociedade civil são mediadas por contratos, pactos. O direito natural é passado ao governo, que o transforma em direito civil, oferecendo garantias para a vida, a liberdade e a pro- priedade privada dos cidadãos. Neste contexto, as leis são promulgadas e aplicadas pelos poderes governa- mentais. Os pactos orientam o exercício da cidadania e são mediados por organizações civis. Estes pactos atende- rão melhor às aspirações cidadãs quanto mais forem independentes dos poderes governamentais. Os estados ocidentais modernos apoiam-se em uma base ideológica liberal. O Estado liberal associa-se à ordem econômica capitalista e ao sistema político da democracia, orientando-se pelo respeito à liberdade do indivíduo. Esta base morallhe autoriza a regular as tran- sações pertinentes à esfera pública e os negócios da vida privada. um avanço do estado liberal foi o chamado welfare state (estado do bem-estar) no qual se praticam grandes investimentos estatais, privilegiando, sobretudo, o bem-estar social. O welfare state foi uma experiên- cia que caracterizou alguns países da Europa, particu- larmente os países nórdicos, como Suécia, Noruega e Dinamarca, durante um bom período do século XX. Contemporaneamente, vivemos sob a tentativa de dominância de uma ideologia a que denominamos neoliberalismo, que radicaliza globalmente a liberdade dos fluxos dos negócios e a privatização de bens e ser- viços, professando que o Estado esteja minimamente presente – ou totalmente ausente – na regulação dos mercados de bens e capitais. Esta diminuição da influ- ência dos governos, a radicalização do Estado mínimo, deixa desprotegidos os direitos sociais estabelecidos no âmbito do Estado liberal e do welfare state. Na perspec- tiva neoliberal valoriza-se fortemente o lucro, o arrocho salarial e ajustes fiscais. Cortam-se os programas sociais e favorecem-se a privatização e o “enxugamento”, o desemprego em massa de trabalhadores com fins de maximizar lucros de empresas. Com o lucro assumindo um papel de valor estruturante da vida, a visão contábil passa a ter prioridade nas avaliações e no planejamento das atividades da sociedade. É neste contexto evolutivo do Estado que analisa- mos a evolução das políticas de saúde e dos sistemas de saúde na maioria dos países do mundo. No Brasil, esta evolução acompanhou as oscilações relativas à história dos sistemas de governo, da colônia ao impé- rio, da Primeira República à Ditadura Militar e daí até a implantação do SuS. uma última e importante reflexão. O Estado é uma abstração, uma instituição, sendo seu aparato – isto é, seus governos, poderes legislativos e judiciários – exer- cidos concretamente por pessoas. Assim, a dinâmica da vida civil é determinada pela atuação dos sujeitos que ocupam as diversas posições nas organizações públicas e privadas. Neste sentido, o planejamento é, também, um estudo de como os seres humanos lidam com o poder. No entanto, como estudar assunto tão complexo e apa- rentemente indecifrável? Esta questão será abordada mais à frente, na secção 4.2, a partir da página 20. 2 . História da saúde pública no Brasil e a importância do planejamento 2.1 A saúde pública no reinado e no império A história do planejamento em saúde confunde-se com a própria história da saúde pública no Brasil. Esta é a história das epidemias, das campanhas sanitárias, da implantação de serviços, da evolução do pensamento em saúde, da relação das políticas de saúde com as políticas de governo e com as políticas de Estado. A evolução da saúde pública no Brasil ocorre em consonância com o desenvolvimento do Estado brasileiro, PLANEJAMENTO EM SAÚDE | 5 | com constantes conflitos de poder traduzidos em emba- tes ideológicos, políticos e administrativos, em meio a dis- putas intensas no terreno assistencial e da gestão. Esta história evolui como um movimento, uma dinâmica que reflete interesses locais, regionais e nacionais, bem como as tendências políticas internacionais. Movimento que res- ponde à denúncia de desigualdades sociais extremas, ao mesmo tempo em que incorpora avanços tecnológicos e discute uma ética da vida e dos direitos da cidadania. Examinemos, portanto, as fases históricas da saúde pública no Brasil e veremos revelado, ao mesmo tempo, como se estabeleceu o planejamento das ações de saúde desde os primórdios até o estabelecimento do SuS. A vinda da corte real portuguesa, em 1808, pro- porcionou a instauração de um reinado no Brasil e pro- moveu uma grande transformação no campo social, político e sanitário. Na área da saúde a preocupação principal, da época do reinado até as primeiras décadas do século XX, era o combate às epidemias. A partir de 1850, seguindo o exemplo dos países europeus e dos Estados unidos, algumas províncias começaram a coletar dados estatísticos das doenças. Revelaram-se taxas de mortalidade consideradas extre- mamente altas para a febre amarela e a tuberculose que, em 1860, no Rio de Janeiro, mataram, cada uma, cerca de 1% da população. À época já se falava da necessi- dade de planejadores e administradores de saúde. Em 1887, final do regime monárquico, 0,4% do orçamento da nação era destinado à higiene pública comparados a 35% para o setor ferroviário e 19,6% para o setor da marinha e guerra (ROS, 2000). Esta primeira fase da saúde pública caracterizou-se por campanhas de combate às epidemias, modelo chamado sanitarismo campanhista. Percebe-se, desde aí, a tendência dos governos a negligenciar a proteção social, com escassez relativa de recursos para a área da saúde. Já havia necessidade de se fomentar uma cultura de planejamento no país. 2.2 A saúde nas primeiras décadas do século xx O setor saúde na Primeira república (1889- 1920) atrelava-se à realidade econômica do Estado, cuja base era a agricultura, principalmente cultivo e exportação de café. Atenção especial era dada ao sane- amento dos portos e à força de trabalho que garantia a produção e o escoamento dos produtos. A febre ama- rela e a varíola continuavam a assolar o país, causando, juntamente com os surtos epidêmicos de cólera e peste, enormes danos pessoais e materiais. Em 1903 foi criada, no Rio de Janeiro, a Diretoria Geral de Saúde Pública, sendo nomeado como diretor Oswaldo Cruz, que centrou seus esforços em campa- nhas para combate às endemias e epidemias que ame- açavam a saúde da população. Oswaldo Cruz utilizou fortemente o poder de polícia do Estado, deflagrando a chamada guerra da vacina que culminou em confli- tos armados com a população. Na atenção à saúde individual a predominância era dos atendimentos privados. O atendimento em hospi- tais públicos, administrados, principalmente, por institui- ções de caridade, assumia características de assistência social. Políticas públicas dotavam recursos para internar pessoas sofrendo de doenças mentais, hanseníase e tuberculose. No entanto, a primeira política pública de grande impacto social foi a criação das Caixas de Aposenta- dorias e Pensões (CAP), em 1923. As CAPs eram órgãos de previdência, mas ofereciam serviços médicos e farmacêuticos aos trabalhadores. Eram financiadas e administradas por empregados e empregadores, tendo o poder público ingerência apenas para solver eventuais conflitos entre um membro e a organização. Na era Vargas inaugurou-se um novo modelo previ- denciário com a criação dos Institutos de Aposentadorias e Pensões (IAPs), não mais organizados por empresas, mas por categorias de trabalhadores. Foram criados, por exemplo, o IAPB (de bancários), IAPI (industriários), IAPM (marítimos) e outros. Com os IAPs e a criação, em 1930, do Ministério do Trabalho, o Estado passa a responsabilizar-se pela previdência, a controlar sua ges- tão, financiamento, arrecadação, benefícios e capital. Os IAPs, como as CAPs, continuaram a oferecer aos trabalhadores serviços médicos e farmacêuticos, mas, com a criação, em 1930, do Ministério da Educa- ção e Saúde, as ações de saúde coletiva passam a ter um local de referência no aparelho de Estado. O sani- tarismo campanhista ainda era o modelo hegemô- nico e a assistência médica individual continuava divi- dida entre os atendimentos privados e as instituições de caridade. Foram se consolidando certas maneiras MóDuLO BÁSICO | 6 | de administrar a saúde, o Estado cuidando das ações coletivas e do asilo das pessoas desamparadas ou com doenças crônicas. 2.3 A saúde: da Segunda Guerra Mundial à Ditadura Militar Em meio à Segunda Guerra Mundial e nos anos subsequentes cresceu enormemente a influência da cultura americana no Brasil. Contudo, nos anos 50 do século XX, as iniciativas europeias de investimento esta- tal para o bem-estar social, o chamadowelfare state, passaram a servir como modelo para nosso desenvol- vimento social. O governo Vargas seguiu este modelo por meio do fortalecimento do sistema previdenciário. A assistência médica vinculou-se fortemente à previdência, atendendo uma demanda dos trabalhadores que não era resolvida no serviço público. A previdência sofreu sua primeira grande crise, pois o aumento dos gastos, inclusive com a assistência médica, não foi compensado por um aumento suficiente de receitas. O Ministério da Saúde (MS), criado em 1953, incorporou a missão de cuidar de campanhas e ações preventivas, mas sem grande presença na provisão direta de serviços, exceto de asilo a doentes crônicos. A assistência individual continuava a ser predominante- mente privada ou de caridade, reiterando a dicotomia entre saúde pública e assistência individual. Chegamos à década de 60 do século XX com uma nação mais urbana e um modelo de saúde que come- çava a se assemelhar ao modelo americano, com gran- des hospitais privados ou ligados à previdência social. O cuidado era exercido exclusivamente por médicos, sendo considerados os outros profissionais de saúde meros auxiliares. Cunhou-se o termo modelo medico- cêntrico e hospitalocêntrico. uma das medidas de maior impacto no período da Ditadura Militar deu-se em 1967, com a unificação dos IAPs no Instituto Nacional da Previdência Social (INPS). O INPS abriu a previdência a uma influência crescente dos proprietários de hospitais e das indústrias farmacêu- tica e de equipamentos médico-hospitalares. A previdência ampliou consideravelmente a assis- tência médica. O foco deixou de ser nas grandes epi- demias que costumavam atingir a todos quase que indiscriminadamente e passou a ser em doenças mais afetadas por hábitos e condições de vida, tornando mais marcante as repercussões das diferenças sociais. A demanda na saúde refletia as necessidades de uma nova sociedade urbana e de um complexo mercado protagonizado por produtores, fornecedores e comprado- res de novos equipamentos e serviços. O Estado provia cada vez mais serviços de saúde, mas, principalmente, terceirizados, como de hospitais, clínicas e laboratórios. O novo modelo é referido como médico-assistencial pri- vatista, instaurando-se um complexo sistema industrial médico-farmacêutico-hospitalar (MENDES, 1996). Em 1974, foi lançado um relatório, do Ministro da Saúde do Canadá, Lalonde, trabalhando a ideia da pro- moção da saúde, que se constituiu em um novo para- digma, assumindo a tese da saúde como fenômeno ligado à qualidade de vida. A saúde passou, assim, a ser vista como produto de hábitos e costumes coletivos, mas com repercussão individual. Já a conferência promovida pela Organização Mun- dial de Saúde, em 1978, em Alma Ata, capital do atual Cazaquistão, declarava que a saúde coletiva dependia do fortalecimento da Atenção Primária à Saúde (APS). Alma-Ata problematizava as desigualdades sociais na equação sanitária. Os inimigos da saúde não eram mais apenas os germes das grandes epidemias, mas grandes males sociais, como a fome, as desigualdades, a falta de saneamento básico, a destruiç!ao do meio ambiente e a exclusão social. O que significa atenção primária à saúde Em Alma Ata, atenção primária à saúde significava: transformação do modelo assistencial; x diminuição da mortalidade, principalmente x infantil; aumento da cobertura vacinal; x disponibilidade de água potável; x disponibilidade de esgoto sanitário; x extensão da atenção à saúde para todos os x grupos, sobretudo os socialmente excluídos. PLANEJAMENTO EM SAÚDE | 7 | No período da Ditadura Militar o planejamento passou também a protagonizar a gestão das políticas sociais. De departamentos isolados que essencial- mente planejavam campanhas e o cuidado asilar de crônicos, passou-se à gestão de gigantescos órgãos públicos ligados ao sistema previdência-saúde e de serviços prestados por clínicas e hospitais, em meio a grande avanço tecnológico. Os indicadores, contudo, não respondiam positivamente e os problemas sociais se agravavam. O sistema não se mostrava eficaz e exigia outras direções. 2.4 O SUS: bases constitucionais A queda da Ditadura Militar propiciou um período de democratização no qual um dos pontos fundamen- tais foi a criação de uma nova Constituição Federal, em 1988. A saúde é tratada, na nova Constituição, no Título VIII (Da ordem social), capítulo II (A seguridade social). A primeira grande ruptura é que a lei magna separa, nas seções do referido capítulo, saúde (seção II), previ- dência (seção III) e assistência social (seção IV). A seção específica da saúde contém os Artigos 196 a 200 e apresenta a saúde como direito de todos e dever do Estado, a ser garantido por políticas sociais e econômicas, visando à redução de riscos de doenças e outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recu- peração (BRASIL, 1991). A Constituição cria o Sistema Único de Saúde (SuS), e estabelece suas diretrizes: descentralização, com direção única em cada esfera de governo; atendimento integral, com prioridade para ações preventivas sem prejuízo dos serviços assisten- ciais; e participação da comunidade. Dispõe sobre o financiamento, que deverá constar do orçamento da seguridade social, da união, dos estados, do DF e dos municípios, além de outras fontes, e estabelece as competências do sistema. O SuS é mais que uma reforma de serviços, é uma mudança sistêmica que só pode ocorrer plenamente no contexto de uma reforma de Estado. um empreen- dimento de tal porte exige estratégias compatíveis e os gestores de diferentes níveis têm que lidar com pro- blemas já antigos e outros para os quais não há ainda experiências que facilitem a busca de soluções. Ficou claro que na primeira fase da implantação seria importante o trabalho de liderança para popula- rizar a inovação, difundir os princípios constitucionais do SuS, conquistar adeptos dentro da área da saúde, formar pessoal. 2.5 O novo modelo de atenção do SUS Referimo-nos comumente a modelos de atenção em saúde como o conjunto de princípios, representa- ções mentais, políticas, relações e procedimentos que proporcionam uma maneira de vivenciar a saúde como elemento da organização social. Os modelos podem ser analisados de várias maneiras, considerando-se dife- rentes elementos. Para fins de análise do planejamento, vamos considerar nosso modelo em uma perspectiva histórica, que nos permite entender a construção de nossa atual realidade. Do reinado de D. João VI até a Primeira República o modelo de atenção revestia-se de características essen- cialmente curativistas, ou seja, a ideia era curar as doenças, com ações clínicas realizadas no âmbito privado, exerci- das, principalmente, por profissionais liberais. Para os que não podiam pagar havia a caridade. Na saúde coletiva as ações caracterizavam o “sanitarismo campanhista”. No segundo período, que inclui a era Vargas e outros governos do pós-guerra, o modelo ainda era essencial- mente curativista, mas houve o desenvolvimento de uma rede de hospitais públicos e privados. O modelo era tam- bém médicocêntrico e hospitalocêntrico, porém emer- giu a abordagem preventiva, fortalecendo-se a ideia de prevenir as doenças ao invés de simplesmente lidar com suas consequências quando já instaladas. Os profissionais de saúde já não se restringiam ao trabalho liberal, incor- poraram-se ao mercado de trabalho como assalariados, inseridos na assistência aos trabalhadores via IAPs. A década de 60 do século XX anunciou uma abor- dagem multifatorial, ou seja, a saúde como resultante de múltiplos fatores, inclusive o estilo de vida. As pers- pectivas curativista e preventiva continuam em voga, bem como as características hospitalocêntrica e médi- co-cêntrica. Amplia-se a rede de hospitais públicos e privados, estes agora majoritariamente conveniados ao INPS e, posteriormente, ao Inamps. O trabalhoé exer- cido, principalmente, por profissionais assalariados e MóDuLO BÁSICO | 8 | Planejamento é uma prática com sentido de conduzir processos de trabalho e de gestão. organizam-se, aos poucos, equipes multiprofissionais. A saúde identifica-se com os movimentos sociais e passa a relacionar-se com a defesa dos direitos humanos. A ênfase da saúde pública passa a ser na APS. Na década de 80 do século XX a saúde vai aos poucos configurando-se como direito do cidadão e dever do Estado, que deve provê-la na forma de atenção integral. Propõe-se o modelo promocional, com foco na pessoa e nas condições e no estilo de vida. Adota-se, no Brasil, a partir da 8ª Conferência Nacional de Saúde (1986), uma concepção de saúde que considera sua determinação multifatorial e sua produção social. O tra- balho é exercido cada vez mais de forma interdisciplinar. A ênfase da saúde coletiva é na APS. Nos anos 90 do século XX, com a implantação pro- gressiva do SuS, assume-se, definitivamente, a saúde como direito do cidadão e dever do Estado, a ser exe- cutada por um sistema nacional unificado, com acesso universal. O modelo, de atenção integral, visa promover e reabilitar a saúde e prevenir doenças mediante ações intersetoriais e descentralizadas, organizadas segundo uma hierarquia de complexidades. O mercado de traba- lho tem a predominância de profissionais assalariados, fortalecendo-se a atuação interdisciplinar. A ênfase da saúde coletiva é na atenção primária. Chegamos ao período atual. O SuS encontra-se em fase de consolidação, com foco na integração das ações intersetoriais de saúde e na garantia do financia- mento do sistema. Devido aos problemas enfrentados no setor público, uma grande parcela da população prefere o atendimento por planos de saúde privados empresariais ou pagos individualmente. Percebe-se o recrudescimento das ações contrárias aos princípios do SuS em esferas de governo, na indústria farmacêutica e por parte de corporações profissionais. O modelo de atenção integral estruturado pela APS está definitiva- mente aceito no contexto do SuS e exige formação per- manente dos recursos humanos. O mercado de trabalho é dominado por profissionais assalariados, cooperativas médicas e um relativamente pequeno número de pro- fissionais liberais. O modelo privilegia a interdisciplinari- dade, redimensionou-se a distribuição de poderes, com o avanço da descentralização e da participação comuni- tária, bem como nas relações profissionais, com a opo- sição ao modelo medicocêntrico e hospitalocêntrico. O SuS pretende substituir, portanto, o modelo curativista, hospitalocêntrico-médicocêntrico, médico- privatista, apoiado no complexo médico-hospitalar- farmacêutico, por um modelo de atenção integral, com acesso universal, descentralizado, hierarquizado e regio- nalizado, equitativo e com abordagem promocional e preventiva sem prejuízo das ações visando à recupera- ção da saúde e contando com participação comunitária na gestão (controle social). Considera-se a saúde como determinada pelas condições sociais. A operacionalização do sistema reveste-se de con- tornos delicados, exige, ao mesmo tempo, firmeza e flexibilidade nas negociações e pactos conduzidos por gestores e outros atores sociais e, acima de tudo, pla- nejamento com vistas aos resultados que, a médio e longo prazo, se deseja alcançar. Está na hora, portanto, de examinarmos os concei- tos e os métodos de planejamento mais utilizados na área da saúde, no âmbito da gestão pública. 3 . Planejamento: conceitos e métodos 3.1 Conceito de planejamento Planejamento é uma prática com sentido de con- duzir processos de trabalho e de gestão. Não existe por si, está sempre a serviço de alguma outra prática, subordinado a alguma ação. Planeja-se alguma coisa, não existe planejamento do nada. E planeja-se quando se quer obter um resultado que é uma alteração em relação ao momento inicial. A exceção é quando se pla- neja para que nada aconteça, mas este é também um resultado e esta é uma forma especial, o comum é que se busque uma diferença, uma alteração a se realizar no tempo. Por isso planejamento é um termo essencial- mente associado à temporalidade e à mudança. PLANEJAMENTO EM SAÚDE | 9 | As maneiras de planejar dependem do tipo de ação com que este planejamento se envolve, das con- figurações particulares de cada campo de ação. São de estilos diferentes as ações de planejamento para obter resultados na guerra, na educação, na religião ou na saúde. Por outro lado, como disciplina de estudo, o pla- nejamento tem desenvolvido suas teses, suas teorias, suas propostas de operacionalização e algumas destas podem ser pensadas independentemente do contexto em que serão utilizadas. Desta forma, há uma parte do estudo voltada para ações universalizadas, independentes daquilo que se vai planejar. Outra parte atrela-se ao campo de ação, à maneira particular como este campo se insere na socie- dade e na cultura. Por isso o planejamento é um campo de estudos que admite abordagens metodológicas, téc- nicas, políticas, éticas e jurídicas particulares. Neste texto vamos abordar as duas formas de estudo: primeiro, o planejamento em sua forma mais geral, independente de aplicação, e, segundo, o plane- jamento em saúde. 3.2 Teorias do planejamento Planejar significa propor ações para influenciar o futuro. É propor com vistas aos resultados que se quer obter. O planejamento, como disciplina, incorpora conhecimentos de diferentes áreas, desde a contabili- zação de recursos materiais necessários para executar um projeto, a decisões sobre como conduzir melhor as relações em um departamento de uma organização. Por isso, o planejamento insere-se no campo da administra- ção, que é uma ciência humana, mas estuda-se plane- jamento, direta ou indiretamente, em outras disciplinas, como sociologia, antropologia, enfermagem, psicologia e saúde coletiva. O estudo do planejamento origina-se da Teoria das Organizações, a partir do conhecimento acumulado na prática de organizações do setor privado. As teorias fun- damentais do planejamento são, portanto, teorias liga- das à administração de empresas privadas. Estas teorias consagraram algumas definições de planejamento. A maneira mais tradicional, e que se encontra nos manuais mais populares de planejamento, é defini-lo como uma atividade em que se traçam objetivos e colocam-se em prática os meios para atingi-los. Esquematicamente, esta definição tradicional pode ser assim representada: A M (Meios) O (Objetivo) Nesta tradição desenvolveram-se esquemas cada vez mais sofisticados em que se descrevem os passos necessários para, saindo do ponto A, atingir o ponto O. Os primeiros esquemas apontavam pas- sos intermediários nesta caminhada linear, como no exemplo abaixo: A Formulação de P Aplicação P Monitoração da aplicação O P é o plano que vai direcionar as ações realizadas para atingir o objetivo. As reflexões sobre a prática levaram à inserção de outras variáveis. Por exemplo, dependendo do nível de complexidade da organização, pode ser útil mapear objetivos intermediários que deverão marcar a cami- nhada para o objetivo final. Desta forma podemos modi- ficar o desenho anterior: A P1 B P2 → C P3 ... ... N Pn Z P é o plano geral que inclui formulações e aplica- ções em partes (P1, P2 ... Pn); B, C ... N representam objetivos intermediários. E, pensando de forma cada vez mais detalhada, foi-se reconhecendo que estes planos, suas aplicações, os objetivos intermediários, os objetivos finais constitu- íam um processo que envolvia priorização, implantação e condução dos planos, eventuais mudanças de curso, avaliação do impacto do processo sobre o sistema como um todo, enfim, passou-se a perceber que plane- jamento implica um conjunto de ações sistêmicas, não pode ser considerado como ação isolada, tem que levar consideração a relação entre as partes da organização, tem que visualizar o sistema comoum todo. MóDuLO BÁSICO | 10 | Esta linha de raciocínio reflete-se na definição de planejamento de Leevey e Loomba (1973, p. 19): Processo de analisar e entender um sistema, avaliar suas capacidades, formular suas metas e objetivos, formular cursos alternativos de ação para atingir essas metas e objetivos, avaliar a efetividade dessas ações ou planos, escolher o(s) plano(s) prioritário(s), iniciar as ações necessárias para a sua implantação e estabelecer um monitoramento contínuo do sistema, a fim de atingir um nível ótimo de relacionamento entre o plano e o sistema. 3.3 Planejamento e gestão Planejamento é um instrumento essencial de ges- tão. Por isso, os dois campos de estudo estão firme- mente entrelaçados. Planejar é executar planos previa- mente estabelecidos para obter mudanças que levem uma organização a funcionar melhor do que antes da execução do plano. Por isso é importante verificar como se encara e estrutura um plano e entender as relações básicas entre planejar e gerenciar. 3.3. 1 O plano um bom plano, no contexto da gestão de uma organização, constitui-se no detalhamento do processo de mudança entre a situação atual e a desejada. Moder- namente também nos referimos à Situação Desejada (SD) como Imagem Objetivo (IO). S.A. P SD. ou IO. SA = Situação atual P = Plano SD = Situação desejada IO = Imagem objetivo O plano pode ser elaborado, executado e avaliado de diversas maneiras. Para ser eficaz, em geral, ele não deve ser: uma receita feita por uma única pessoa x uma camisa de força x permanente ou imutável x um plano é, inicialmente, um norteador. Quando as circunstâncias exigem sua alteração e desde que se chegue a esta conclusão de forma confiável, há que elaborar um plano alternativo, o que se usa, às vezes, no jargão, como o “plano B”. É comum que, quando antevemos possíveis obstáculos, já tenhamos formulado o plano B antes mesmo de colocar o plano principal em prática, assim evitando possíveis desarticulações quando o possível obstáculo ocorrer. S.A. P / O / PB S.D. O = Obstáculo PB = Plano B 3.3. 2 Planejar e gerenciar Podemos definir gerenciamento como o processo de tomar decisões que afetam a estrutura e os proces- sos de produção de um sistema. Gerenciar é, essen- cialmente, decidir, por isso a qualidade fundamental do gerente é a capacidade de tomar decisões e a habili- dade para conduzir os processos de mudança que as decisões possam implicar. Atribuições da gerência O gerente, e aqui utilizaremos o termo como sinô- nimo de gestor, exerce múltiplas funções, inclusive a de ser responsável pela execução do plano da organização. Por outro lado, toda pessoa, ao responsabilizar-se pela execução de um plano, torna-se, mesmo que momen- taneamente, um gerente. O planejamento é o instrumento fundamental para prover segurança ao gestor para que possa conduzir os processos necessários para obter a melhoria da orga- nização no que se refere ao seu funcionamento geral. Para que se tenha uma ideia desta relação entre gerên- cia/gestão e planejamento, vamos imaginar uma organi- zação na qual não se faça planejamento. Esquematicamente, podemos dizer que tal organi- zação funciona assim: coordena-se o trabalho do sistema ”por inér- x cia”, i.e., os acontecimentos vão se sucedendo e a gestão vai conduzindo os processos de acordo com cada nova demanda; não há plano: administra-se o x status quo; PLANEJAMENTO EM SAÚDE | 11 | com a ausência de planos não se pensa ante- x cipadamente e metodicamente em como lidar com as demandas; os produtos são obtidos de acordo com os x insumos e recursos disponíveis, mas estes não são planejados em termos de seu uso mais eficiente e eficaz; não está clara a x missão da organização no âmbito de todos os componentes do sistema; não há x visão de como desenvolver o sis- tema; “apaga-se incêndios” e “faz-se a máquina fun- x cionar.” Embora seja quase impensável uma organização contemporânea sem uma gestão apoiada no planeja- nento, a realidade é que, muitas vezes, ele está despres- tigiado, por falta de apoio direto ou por falta de geren- tes e planejadores habilidosos, e acaba-se na situação adversa que o esquema sugere, apagando-se incêndios e “tocando” o trabalho “do jeito que dá”. Quando isto ocorre nos serviços públicos de saúde, reflete-se, prin- cipalmente, ao nível da “ponta”, ou seja, nos locais onde o serviço é realizado, nos centros de saúde, nas depen- dências de atendimento dos hospitais, nas atividades dos agentes de saúde junto à população. 3.4 Conduzindo processos de planejamento Tendo em vista as relações entre gestão/gerência e planejamento, pode-se afirmar que o gestor/gerente é, essencialmente, um líder com grande capacidade de acomodar o planejamento à gestão. De preferência deve ser um bom planejador ele mesmo, mas deve delegar a um departamento ou a pessoas específicas, depen- dendo das características particulares da organização, a função de planejar. E deve privilegiar esta função, que podemos apontar como o coração da organização, o motor central do sistema. Com uma boa visão de planejamento e com apoio de uma boa equipe, o gestor pode mais facilmente via- bilizar soluções aos problemas que deve resolver. Para isso, deve exercitar certas habilidades entre as quais pode-se apontar: criatividade, flexibilidade, visão, lide- rança, habilidade nas relações humanas, autoridade, confiabilidade, ousadia para criar e inovar, coragem de correr riscos, conhecimentos em administração, conhe- cimentos técnicos da área específica de atuação, com- promisso com a missão da organização e, no caso da administração pública, compromisso fundamental com o bem-estar coletivo. uma gerência com habilidades, tais como as des- critas acima, pode facilitar a instauração de caracterís- ticas necessárias ao bom funcionamento de uma orga- nização, entre elas: consciência sobre atividades fim e atividades meio, clima organizacional positivo, trabalho harmônico em equipe, liderança confiável, fluxo proces- sual eficiente, processos de decisão bem aceitos pela comunidade organizacional e processos operacionais eficazes e que não criem entre os membros estresses desnecessários. Com uma gestão e um ambiente organizacional que usufruam de uma boa proporção das qualidades descri- tas acima, pode-se esperar que o planejamento maxi- mize seu potencial para determinar os destinos da orga- nização. Este cabedal de qualidades é essencial para que o planejamento volte-se para a missão da saúde coletiva, que é servir a coletividade na perspectiva de promover seu bem-estar, sua qualidade de vida e sua saúde. 3.5 Métodos de planejamento Os métodos de planejamento atualmente mais utili- zados em saúde são: planejamento normativo x planejamento estratégico x planejamento estratégico situacional (PES) x Vamos entender, basicamente, esses métodos elencados a seguir. Planejamento normativo O objetivo é promover mudanças pretendidas, projetadas para o futuro, sem considerar o contexto, acidentes de percurso, etc. Esse é um método pouco dinâmico, estanque, que não leva em consideração toda a complexidade das organizações humanas. É o método que pode ser esquematizado da maneira mais simples, antes do avanço geral das teorias do planejamento: A Plano O MóDuLO BÁSICO | 12 | O que se vê neste esquema é que, uma vez identi- ficado o objetivo e traçado o plano, a ideia é se chegar àquele objetivo sem qualquer mudança de plano. Se o objetivo não foi alcançado, o planejamento é conside- rado um fracasso. Neste método a responsabilidade principal, por pensar o planejamento, formular o plano, aplicar o plano e avaliar os resultados, está no nível central do sistema. Quem planeja é um chefe, um coordenador, uma equipe central que, geralmente, centraliza todo o processo. O resto dos participantes apenas executa, não tomando, às vezes, nem mesmo conhecimento dos objetivos ou do plano como um todo. Há ordens a serem executadaspor membros passivos, que não compartilham da con- dução do planejamento. Por mais que este método pareça primitivo e seja altamente improvável que se consiga, realmente, apli- cá-lo, por muito tempo foi pensado como um grande avanço e, por incrível que pareça, pode-se dizer que ele ainda é usado e apresentado desta forma, em mui- tas empresas e na gestão pública. Há muita gente que pensa exatamente assim, “havia um objetivo e ele não foi atingido, o planejamento é, portanto, ruim”. Os que criticam este método afirmam que plane- jamento aplica-se a ações que ocorrem no decorrer da vida das pessoas e a vida é muito mais complexa do que este esquema considera. É mínima a possibilidade do métdo contribuir positivamente para o avanço dos processos de trabalho ou de gestão. Planejamento estratégico (PE) É uma abordagem do planejamento que indica meios diversos pelos quais se julga que seja possível atingir os objetivos desejados a médio e longo prazo. Aos meios utilizados denominamos estratégias, quando aplicadas a provocar mudanças significativas no curso das organizações. O PE é um avanço significativo em relação ao Plane- jamento Normativo (PN). O PN identifica um curso para o processo de planejamento e busca a aderência a este curso a qualquer custo. Qualquer desvio é considerado ameaça ao sucesso do planejamento e a monitoração é sempre no sentido de conseguir realizar tudo que foi pla- nejado, da forma que foi planejado, para obter os resulta- dos que são os únicos considerados satisfatórios. O PE propõe que, quando se aplica um plano, podem ocorrer fatos que provocam a necessidade de mudança de planos e é necessário estar atento para não perder essas possibilidades de vista. A não identificação da necessidade de uma mudança de planos ou a teimo- sia em manter um plano que deve ser mudado são os grandes perigos, pois podem comprometer os resulta- dos. O mesmo se aplica para os objetivos intermediários ou finais. Pode-se iniciar um processo de planejamento com um objetivo e em meio a seu desenvolvimento não só mudar o curso do plano como mudar até mesmo os objetivos, pois, com a mudança de curso, é possível, e até provável, que não se consiga mais chegar aos objetivos inicialmente traçados. O PE é, portanto, dinâmico, mais complexo, oferece mais possibilidades de mudanças de curso e demanda planos muito mais detalhados no sentido de prever, em alguns casos, possíveis situações que poderão provocar mudanças de curso. A visão do PE é sistêmica, pois o plano deve considerar a estrutura do sistema como um todo. Se for uma organização, um departamento de uma organização ou um órgão público de nível nacional, não adianta, na perspectiva do PE, planejar apenas olhando para si mesmo. Além dos fatos oriundos da própria organização, deverão ocorrer fatos originados de meios externos e tudo isso tem que ser levado em considera- ção no momento de planejar e aplicar o plano. Essa visão exige dos processos de PE uma sofisti- cação e uma complexidade muito maior do que quando se tenta aplicar um PN. Por isso, o PE é pensado como de responsabilidade compartilhada. Não é só no nível central que será formulado o plano, mas com a cola- boração de elementos pertencentes a todos os níveis da organização. E este processo de colaboração deve ocorrer em todas as fases do planejamento, desde sua elaboração até sua avaliação. Isso é de extrema impor- tância para o sucesso do PE, que não é medido, obvia- mente, por alcançar os objetivos traçados inicialmente, mas por outros indicadores que surgirão à medida que o processo se desenvolve. No contexto do PE podemos identificar três níveis de atuação: estratégico, tático e operacional. Chiavenato (2006) considera cada um destes níveis como uma forma de planejamento em si. nível Estratégico x – considera-se que há necessidade de PE quando se quer promover PLANEJAMENTO EM SAÚDE | 13 | A realização das ações do nível estratégico são de responsabilidade central do sistema. uma transformação da organização. Ao nível estratégico pensa-se quais são as transforma- ções que se quer obter e os meios gerais que levarão a organização na direção desta trans- formação. Com a popularização do termo PE pode-se, facil- mente, confundir qualquer plano como PE. No entanto, só consideramos um planejamento estratégico quando ele tem esse sentido de mudança profunda, de trans- formação de uma organização, seja em sua estrutura, em sua lógica, em como são pensadas suas funções sociais, ou seja, em um nível mais amplo. um plano para um evento ou um plano para a mudança do funciona- mento de um serviço, mas que não altera a maneira de atuar da organização como um todo, não é conside- rado PE, de acordo com a definição que aqui estamos seguindo. A realização das ações do nível estratégico são de responsabilidade central do sistema. São os executivos, gestores que tomam a responsabilidade de conduzir, de liderar estas ações de transformação, de cunho político, que levam a organização na direção desejada para atin- gir os objetivos previstos. nível tático x – uma vez definidos os objetivos de mudança e as estratégias para caminhar em direção a estes objetivos, o processo de PE deve pensar o papel dos elementos consti- tutivos da organização na realização do plano. As ações delegadas a um nível intermediá- rio estão em uma dimensão abaixo da visão ampla, característica das ações estratégicas. São ações de condução do nível gerencial, dos departamentos, dos órgãos que executam uma série de funções dentro do planejamento e que vão dar a base para as transformações. Estas são as ações táticas. O nível tático define a estrutura sistêmica para a ação organizacional. Isso quer dizer que este nível separa o nível superior de decisões, o político, estratégico, das estruturas que executarão as tarefas, permitindo que se divida a organização em, pelo menos, três níveis, no que se refere à execução dos planos. O nível tático define, também, as medidas de efeti- vidade. É neste nível que se discutem, criam e aplicam os indicadores, que são os parâmetros de medida para análise dos resultados. O nível tático é de responsabilidade da estrutura média das organizações, em que operam os gerentes, coordenadores e supervisores. nível operacional x – é a instância básica do processo de planejamento. Prevê o detalha- mento, as tarefas necessárias para a realização das táticas, dando consistência às estratégias. É o trabalho da “ponta” do sistema, em que se realizam as ações reais do dia a dia, em que se cuida de cada tarefa em sua concretude. Em nível operacional cuida-se do dimensionamento da estrutura necessária às ações. Para cada ação é necessário saber quais os recursos necessários, quem é responsável pela execução, quando a ação será execu- tada, o que se espera de sua realização. E apresenta-se, também, o cálculo real dos insumos. O nível operacional é de responsabilidade do corpo funcional da organização. O planejamento pode, ainda, ser olhado sob outros aspectos de sua realização. Está muito em voga falar-se, por exemplo, de planejamento participativo. Quando nos referimos a esta maneira de conduzir um processo de planejamento, não estamos, na verdade, falando de mais um nível ou uma instância, mas de uma maneira de tra- balhar, que se baseia em envolver, tanto quanto possível, os principais (ou todos) interessados no processo do planejamento. Contudo, o planejamento também tem admitido formas de pensamento contestatórias como conse- quência do próprio tempo em que vivemos. Edginton (2010) afirma que ele não usa mais a abordagem de PE. “A realidade é muito veloz e o mundo muda muito rapidamente para querermos fazer um planejamento estratégico”. Este autor preconiza que se utilize uma abordagem totalmente prática em planejamento, base- ada na experiência empírica de gerenciamento e que se lance mão apenas de planos táticos. MóDuLO BÁSICO | 14 | 4 . Planejamento emSaúde e Reforma Sanitária 4.1 As bases conceituais do planejamento em saúde Na área da saúde e no contexto da gestão pública o planejamento vincula-se diretamente à elaboração, condução e avaliação de políticas de saúde, as quais têm um cunho eminentemente social. Por isso, pode- mos introduzir nosso estudo de planejamento em saúde, no contexto da gestão pública, definindo política social. Políticas sociais são ações realizadas por gover- nos ou sancionadas por eles e que interferem direta e significativamente na qualidade da vida da sociedade. Lembramos que não realizar ações (“não fazer nada” a respeito de alguma coisa) é, também, uma forma de agir, portanto inclui-se entre as ações a ausência delibe- rada de ações. Isso quer dizer que os governos estão realizando políticas sociais quando agem ou quando escolhem não agir. A definição de DiNitto (1991) de política social para o bem-estar (social welfare policy) explicita esta propo- sição. Segundo a autora, política social para o bem-estar é qualquer coisa que o governo escolhe fazer, ou não fazer, que afeta a qualidade de vida de seu povo. O pla- nejamento, na gestão pública, é definido em relação a estas ações ou inações de governos. A teoria do planejamento desenvolveu-se a partir do setor privado e os textos orientadores do pensamento, neste campo, continham um viés trazido pela maneira como as empresas atuam na ordem capitalista. Este viés inclui a aceitação do lucro como valor fundamental e estruturante do agir social, a exploração do trabalho como meio para obtenção do lucro, a mínima regula- ção governamental sobre os negócios, a visão de ser humano como consumidor e não como sujeito de direi- tos e a priorização da ordem econômica em detrimento do desenvolvimento humano sustentável. Por isso, os textos de planejamento eram vistos com suspeita pelos pensadores da área da saúde, engajados, principalmente, a partir da década de 80 do século XX, no movimento de reformar a saúde pública no Brasil, o Movimento da Reforma Sanitária (RS). Estes pensadores optariam por criar suas próprias definições e teorias e, consequente- mente, suas propostas e formas particulares de abordar o planejamento na saúde e de políticas sociais. um destes pensadores da RS, Emerson Mehry, define planejamento de uma maneira extremamente sim- ples, como “modo de agir sobre algo de modo eficaz” (MEHRY,1994). Para Rivera (1989), planejar é a arte de elaborar o plano de um processo de mudança. Neste sentido, os processos de reforma têm, em geral, o plane- jamento como um dos pilares para sua implantação. Tancredi, Barros e Ferreira, já ao final da década de 90 do século XX, mostram que, ao final, as definições tradicionais foram até certo ponto incorporadas nos tex- tos identificados com o avanço do SuS. Estes autores definem planejamento como: Arte de elaborar o plano de um processo de mudança. Conjunto de conhecimentos práticos e teó- ricos organizados de modo a possibilitar interagir com a realidade, programar as estratégias e ações necessárias, e tudo o mais que seja delas decorrente, no sentido de tornar possível alcançar os objetivos e metas dese- jados e nele preestabelecidos (TANCREDI; BARROS; FERREIRA, 1998). Houve, entretanto, uma maneira própria de encarar o planejamento no contexto da RS. Os pensadores da reforma criaram sua própria teoria estratégica e a apli- caram para construir e viabilizar o SuS. Dois pensado- res, particularmente, formularam teorias que orientaram o planejamento em saúde na perspectiva da construção do SuS: Mario Testa e Carlos Matus. 4.2 O pensamento estratégico de Mario Testa O Planejamento Estratégico (PE), cuja difusão inten- sifica-se no Brasil a partir da década de 70 do século XX, constituiu-se um campo teórico atraente para o movimento sanitário, pois compreende um conjunto de conhecimentos práticos e teóricos ordenados de modo a possibilitar interações entre realidades e a programar estratégias e ações para alcançar objetivos e metas desejados. No entanto, este campo de conhecimento era visto, ao mesmo tempo, com desconfiança, porque, PLANEJAMENTO EM SAÚDE | 15 | como já vimos anteriormente, dirigia-se, principalmente, à administração de empresas privadas, enquanto o pla- nejamento de nosso sistema de saúde destinava-se à administração pública. Contudo, esta era, então, carente de teorias bem elaboradas e amplamente aceitas. A Organização Pan-Americana de Saúde (OPAS), sucursal da OMS para as Américas, implementara uma experiência de planejamento na década de 60 do século XX por meio do método Cendes-Opas de pro- gramação em saúde, uma metodologia voltada para o gerenciamento com escassez de recursos. Mario Testa, médico sanitarista argentino, foi um dos criadores deste método cujo objetivo era desenvolver instrumentos de reflexão-ação que possibilitassem a transformação da saúde da sociedade. O movimento da RS não buscava simplesmente alterar a forma de prestação de serviços, mas uma transformação da estrutura institucional e das relações que se estabeleciam entre os atores sociais nas áreas envolvidas com a saúde. O pensamento estraté- gico de Mario Testa caía como uma luva, pois tratava, particularmente, da redistribuição do poder como estra- tégia de ação política. Verificar as relações de poder e sua relevância em um processo de mudança é essencial para que se planejem ações para alcançá-la. O processo brasi- leiro de democratização da saúde preocupava-se com a distribuição de poderes e responsabilidades, com as relações entre gestores e representantes da sociedade civil. A partir desta preocupação visava interferir nas ins- tâncias de decisão, inclusive na distribuição e aplicação de recursos. Chegamos, inevitavelmente, à discussão do poder, anunciada ao abordarmos as relações entre Estado, poder e planejamento em saúde, ao final da secção 1.3 (p. 6). 4.2. 1 Entendendo o poder como categoria explicativa da vida social Para C. Wright Mills (1963), o poder permite a quem o exerce influir, mediante suas decisões, na vida cotidiana e nos projetos de vida de outros. Mario Testa (1992) define o poder como prática ideológica que se traduz como dominação (submissão de uns a outros) e hegemonia (capacidade de viabilização de um projeto). Toma o poder como categoria explicativa da realidade, ou seja, podemos explicar o que acontece no cotidiano a partir do exame dos interesses, meios e manipulações relativas ao poder. Testa considera o poder segundo três tipos: técnico, administrativo e político. Poder técnico é a capacidade de gerar, aprovar e manipular informação. Poder administrativo é a capaci- dade de apropriar-se e de alocar recursos (na lingua- gem comum, chamado, geralmente, de poder político). Poder político é a capacidade de provocar mobiliza- ções. Esta capacidade depende, basicamente, da visão de realidade – do saber, empírico ou científico. Desta forma, Testa corrobora a visão de Foucault (1986) que associa poder e saber. O PE, na visão de Mario Testa, deve inserir a dis- cussão do poder, enfatizar a legitimação e aceitação das iniciativas de governo e de instituições pela socie- dade e reafirmar a necessidade do envolvimento das comunidades, dos interessados, não mais como meros espectadores, mas como agentes de mudança, como atores sociais, como participantes diretos do processo de planejamento, em todos os níveis. Para a gestão do SuS, este saber estratégico apresentava-se como extremamente adequado, pois dirigia-se, essencial- mente, à administração pública, comprometia-se com a justiça social, com a cidadania e com a eficácia na gestão e na prestação dos serviços. um conceito central no pensamento de Testa é o diagnóstico de saúde que consiste em agrupar fatos e informações, utilizando-os como base de análise da situação de saúde de uma população e para reve- lar desigualdades e suas determinações no campo da saúde. O diagnóstico de saúde divide-se em: adminis- trativo– relacionado ao crescimento e à produtividade; estratégico – relacionado ao propósito de mudança; e ideológico, relacionado ao propósito de legitimação. O diagnóstico administrativo está mais relacionado a dados epidemiológicos, quantitativos, úteis para com- parar, prever e revelar a realidade da saúde de uma população. O estratégico realiza uma interpretação social da epidemiologia, tentando entender os proces- sos de saúde-doença como parte própria e indissolú- vel da sociedade. O ideológico refere-se ao objetivo de que uma proposta seja aceitável pela maioria da sociedade. MóDuLO BÁSICO | 16 | Este conceito de diagnóstico de saúde possibilita que se vá além das tradicionais análises quantitativas, associando indicadores sociais às causas das doenças. 4.3 O planejamento estratégico situacional Carlos Matus, economista chileno que trabalhou no governo socialista de Salvador Allende, é identificado como o criador do Planejamento Estratégico Situacional (PES). Para ele, o planejamento deve estar a serviço da libertação de forma que, no curso dos acontecimentos, as pessoas de conduzidas transformem-se em conduto- res (MATuS, 1997). Esta linha de raciocínio coaduna-se perfeitamente com uma gestão pública que teria de mudar a realidade da atenção, em meio a uma situação de desigualdades, para um caminho de democratização. Para Campos (2001) o PES foi “o” método de planejamento mais difundido na RS brasileira. Simpli- ficado, reformulado ou em sua complexidade integral, o método foi, principalmente a partir dos anos 80 do século XX, estrategicamente introduzido em programas de pós-graduação e estimulado nos núcleos de planeja- mento e gestão da saúde. Na ótica do PES, as ações devem ser planejadas levando em conta o caráter situacional. São avaliados os recursos disponíveis em cada situação, sejam huma- nos, financeiros, estruturais ou políticos; e tudo mais que possa interferir positiva ou negativamente no processo de execução. Cada adversidade ou obstáculo é cha- mado de “nó crítico” e demanda avaliação e reavaliação, visto que a realidade é mutável e que qualquer ação pode transformá-la. Matus, como Testa, enfatiza que quem planeja é um ator social: “o ator social é uma personalidade, uma organização ou um grupamento humano, que de forma estável ou transitória tem capacidade de acumular força, desenvolver interesses e necessidades produzindo fatos na situação” (MATuS, 1997, p. 82). O planejamento é essencialmente interativo. Não é somente um problema de administração das coisas pelas pessoas, mas de inte- ração entre as pessoas na busca de seus objetivos (SÁ, 2001). Ao enfocar prioritariamente o contexto situacional, o PES enfatiza a participação dos atores e aproxima-se mais da possibilidade de sucesso, exatamente por envol- ver e responsabilizar todos estes atores. Por isso, muitos autores consideram o PES um método com maior soli- dez nas mudanças. O planejamento, reflete Matus (1997), não é só ciência e técnica, é, também, arte: a arte de gerenciar, governar, implementar e avaliar, em situações de poder compartido. Matus reconhece a pluralidade de atores, com diferentes capacidades (poderes) e interesses, disputando orientações ideológicas, projetos técnico- administrativos e os recursos para implementá-los. Os métodos de planejamento de Testa e Matus associam-se à administração pública e enfatizam o papel dos sujeitos atores. Relacionam-se a governos e, portanto, são essencialmente políticos. Ao privilegiar a dimensão humana e política, estes enfoques rompem com pressupostos tecnocráticos aceitos tacitamente em outros métodos de pensamento. Não há como solucionar determinada situação sem levar em conta os demais âmbitos envolvidos direta ou indiretamente, por isso o PES parte de situações deter- minadas e dos outros atores primariamente envolvidos para uma complexificação na qual seja possível detectar as inter-relações de outras situações e as interferências de outros atores. Ignorar o contexto situacional e as inte- rações dos sujeitos pode desarticular todo um trabalho de planejamento. O planejamento na lógica de Matus e Testa passou a ser largamente utilizado no âmbito do setor público, parti- cularmente na área da saúde. São, sem dúvida, os méto- dos que fundamentaram a RS e a construção do SuS. 5 . O planejamento e o SUS 5.1 Regulamentação do SUS: leis orgânicas da saúde e normas operacionais A promulgação da Constituição Federativa de 1988 não evitou a consolidação do modelo econômico neoliberal, eminentemente privatista. Mantém-se uma forma essencialmente clientelista nas relações políticas, com grande visibilidade da corrupção. Neste contexto, PLANEJAMENTO EM SAÚDE | 17 | Do ponto de vista jurídico a regulamentação do SUS era fundamental. o movimento sanitário concentrou-se nas negociações para garantir os dispositivos jurídicos, o financiamento e a descentralização na gestão pública. Do ponto de vista jurídico a regulamentação do SuS era fundamental. Previa-se uma oposição ferrenha, pois o novo sistema mexia com estruturas do complexo médico-hopitalar-farmacêutico. Além disso mexia, tam- bém, com a política tradicional ao promover descentrali- zação da gestão e dos recursos financeiros. Duas leis, conhecidas como as leis orgânicas da saúde, regularam os artigos constitucionais: a Lei n. 8.080/90 sofreu vários vetos do presidente Collor, principalmente relacionados ao financiamento e à par- ticipação dos cidadãos na gestão. Foi necessária uma segunda, a Lei n. 8.142/90, que dispôs sobre os dois temas que haviam ficado mais prejudicados na lei ante- rior. A Lei n. 8.080/90 versa sobre a organização básica das ações e serviços de saúde e sobre a dire- ção, gestão, competências e atribuições de cada esfera de governo no SuS. Estabelece as atribuições adminis- trativas e competências da união, dos estados e dos municípios, enuncia as relações e regulações básicas que o SuS deve exercitar junto aos serviços privados e traça objetivos para a política de recursos humanos que deve ser formalizada e executada articuladamente pelas diferentes esferas de governo. A Lei n. 8.142/90 dispõe sobre a participação da comunidade na gestão do SuS e sobre as transfe- rências intergovernamentais de recursos financeiros na área da saúde. Estabelece as conferências de saúde e os conselhos de saúde como instâncias colegiadas em cada esfera de governo. Estabelece o Fundo Nacional de Saúde com recursos alocados pelo MS e os crité- rios para o repasse regular e automático para estados e municípios para fins de cobertura de ações e serviços a serem realizados por estes. Apesar dos percalços, o SuS foi regulamentado. Contudo, ainda havia que deliberar sobre a opera- cionalização, ou seja, como transformar o discurso em prática. Para isso, o presidente do Inamps, que ainda existia, editou, em 1991, a Norma Operacional Básica (NOB) n. 01/91, que visava, principalmente, ao processo de descentralização. Na verdade, a NOB n. 01/91 con- tribui para o desenho institucional descentralizado, mas criou um sério problema, ao adotar como lógica para a transferência de recursos para estados e municípios a produção de serviços, utilizando as mesmas tabelas que se usava para o pagamento dos prestadores pri- vados. O recebimento de recursos permanecia como função do número de procedimentos executados, em detrimento de qualquer menção à qualidade dos ser- viços. Isso descaracterizava o sistema, sabotando as atividades de prevenção e promoção para as quais não havia qualquer incentivo material. Era a lógica do Inamps sobrepondo-se à do SuS, por isso muitos se referem a esta contradição como a “inampsização” do SuS. O tema da descentralização suscitava conflitos e demandava constante atenção, propiciando um movi- mento subsidiário pela municipalização da saúde. Da IX Conferência Nacional de Saúde, em 1992, emergiu o documento Descentralização das ações e serviços de saúde – a ousadiade cumprir e fazer cumprir a lei, que serviu de base para a NOB n. 01/93, publicada poucos meses antes da extinção do Inamps. A NOB n. 01/93 escalonava as ações no sentido de viabilizar as mudanças necessárias para a descen- tralização. Foram estabelecidas diferentes fases para a habilitação dos municípios, demonstrando-se compre- ensão das limitações técnicas e operacionais em nível local e regional. A norma constitui a comissão inter- gestora tripartite (CIT), na esfera federal, composta por representantes do MS, da entidade representativa dos secretários estaduais de saúde (Conass) e da entidade representativa dos secretários municipais de saúde (Conasems); e comissões intergestoras bipartite (CIB) na esfera estadual, formadas por representantes da Secre- taria Estadual de Saúde e da entidade representativa dos secretários municipais de saúde do estado. Estas comis- sões passam a ser instâncias privilegiadas de negocia- ção, pactuação, articulação e integração – planejamento – entre gestores, com vistas à descentralização. MóDuLO BÁSICO | 18 | A NOB n. 01/93 estabelecia, ainda, as condições de gestão para os estados e municípios, de acordo com as menores ou maiores responsabilidades assumidas. Analisando os resultados da NOB n. 01/93 verifica-se que, em 1996, 63% dos municípios brasileiros já esta- vam habilitados em alguma modalidade de gestão, mas apenas 3%, e em sua maioria de médio e grande porte, na modalidade semiplena, que realmente representava uma gestão descentralizada. No mesmo ano três quar- tos dos recursos federais eram repassados aos municí- pios por meio do pagamento por produção de serviços. Desta forma, o sistema não atendia ao estabelecido na constituição federal 5.2 Estratégia saúde da família Apesar dos avanços que se vinha obtendo com a regulamentação legal, a descentralização e a parti- cipação comunitária, o SuS precisava operacionalizar, no cotidiano dos serviços, seu modelo de atenção. A busca de solução veio por meio do Programa Saúde da Família – (PSF), em estreita articulação com o Programa Agentes Comunitários de Saúde (PACS). A antiga fundação SESP, já desde a década de 40 do século XX, contava em seus quadros com agentes de saúde, atuando com atividades “extramuros”, em áreas desassistidas, principalmente no interior do país. Faziam parte destes quadros as “visitadoras sanitárias”, os guardas para a malária e os auxiliares de sanea- mento, os antigos guardas sanitários. Na década de 60 do século XX, a OMS deu a conhecer a experiência dos “médicos de pés descalços”, agentes estruturantes da APS na China. Durante a década de 80 do século XX, criou-se, no Distrito Federal, a figura do agente de saúde, em número de 10 por centro de saúde, com atividades essencialmente externas. Na era SuS o agente comunitário de saúde (ACS) surge com a finalidade de auxiliar o enfrentamento dos altos índices de morbimortalidade infantil no nordeste. Atribui-se à criação do PACS, em 1991, o sucesso no combate àqueles índices no Ceará, de onde passou a servir como modelo para o resto do país. O programa elaborou um perfil básico inicial para o ACS: ter mais de 18 anos, saber ler e escrever, demons- trar capacidade de liderança e residir na comunidade em que presta serviços há, pelo menos, dois anos (SOuZA, 2002). Alguns requisitos mudaram como, por exemplo, a exigência atual de que o ACS tenha pelo menos o ensino fundamental completo. Além disso, está em dis- cussão a forma contratual deste agente pelo sistema, se devem ser concursados ou continuar contratados sob o regime da CLT. O PACS atribuía, inicialmente, ao ACS responsabi- lidade de acompanhar 150 a 200 famílias residentes em uma mesma área da comunidade. Esta delegação de responsabilidade marcou a mudança do objeto de intervenção da saúde do indivíduo para a família e intro- duziu a noção de área de cobertura, base do processo de territorialização, concepção fundamental do modo operacional da atenção primária no SuS. O programa estimulou uma abordagem proativa ao não esperar a demanda, mas ir de encontro a ela, fortalecendo, assim, as ações preventivas e promocionais. O programa estabeleceu critérios para que o muni- cípio pudesse aderir, entre eles ter um enfermeiro que assumisse a função de instrutor/supervisor, ter instalado o Conselho Municipal de Saúde e o Fundo Municipal de Saúde para receber os recursos. Desta forma, con- tribuiu em três aspectos fundamentais: ajudou a fixar enfermeiros em municípios precários e de interior, que era a maioria dos que aderiram a princípio. Estimulou o controle social e a descentralização e um plano estraté- gico bem elaborado. Eventualmente, o PACS expandiu-se para outras regiões, passou a integrar organicamente o SuS, sendo considerado o precursor da ESF (Estratégia Saúde da Família). A concretização de uma estratégia estruturante, abrangente e capaz de efetivar, na prática, a mudança de modelo assistencial, de romper com a passividade até então percebida nas unidades básicas de saúde e de estender as ações ao seio da comunidade só se deu com a criação, em 1994, do PSF e seu reconhecimento, em 1997, como ESF. O PSF foi concebido com base na formação de unidades programáticas atuando sob a lógica da res- ponsabilidade sanitária no território. uma unidade de SF deveria ser composta por, pelo menos, um médico, um enfermeiro, um ou dois auxiliares de enfermagem e um PLANEJAMENTO EM SAÚDE | 19 | O fato de considerar a equipe como uma unidade não significa construir novas unidades físicas. número de ACS proporcional ao número de famílias a serem atendidas. A equipe, trabalhando em caráter mul- tidisciplinar, seria responsável por até 4.500 pessoas ou mil famílias. O fato de considerar a equipe como uma unidade não significa construir novas unidades físicas, mas que a equipe trabalharia sob uma lógica diferente do modelo tradicional. um dos problemas consequentes a esta forma de trabalhar foi a percepção de desigualda- des, influenciando no clima organizacional das unidades básicas de saúde (uBS) tanto com relação aos proces- sos de trabalho quanto na forma de remuneração, pois o PSF tinha recursos próprios e adotava seus próprios padrões de contrato trabalhista. As equipes de SF passaram a reordenar todo o fun- cionamento da atenção à saúde. A territorialização, o tra- balho interdisciplinar, os acompanhamentos domiciliares, os trabalhos educativos e promocionais com grupos, o planejamento em conjunto com a gestão e o estímulo à participação dos conselhos locais de saúde na ges- tão das ações, os esforços intersetoriais e, sobretudo, o vínculo entre equipe e população atendida passaram a representar a marca da atenção primária do SuS. Isto levou o MS a elevar o programa ao status de estratégia central para a atenção básica e reformulação do modelo de assistência. 5.3 Gestão, descentralização e financiamento Enquanto evoluía o modelo assistencial, por meio da ESF, o SuS continuava a enfrentar sérios problemas nos âmbitos da gestão, da descentralização e do finan- ciamento. A NOB n. 01/96 tentou corrigir alguns destes problemas. A transferência de recursos passou a ser regular e automática, fundo a fundo, o que trouxe auto- nomia aos estados e municípios possibilitando a gestão descentralizada. A norma estabelece tetos financeiros para todas as esferas de governo. O teto financeiro global federal constitui-se de um piso da atenção básica – uma parte fixa, o PAB fixo e um PAB variável. O PAB fixo determina um valor per capita e por ano. O PAB variável refere-se a incentivos para programas específicos, entre eles PACS e PSF. Indica, ainda, outras fontes de financiamento como remunerações de internações hospitalares, com base nas Autorizações de Internações Hospitalares (AIHs). Cria-se a Programação Pactuada e Integrada (PPI) entre municípios e com participação do gestor estadual, para definir os tetos dos municípios. Outro benefício da NOB n. 01/96
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