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A fábrica da infelicidade: trabalho cognitivo e crise da new economy Franco Berardi (Bifo) Título original La fabbrica dell'infclicità: 1/C11l ecollom)' e movimento dei cognitariato Coleção: Espaços do desenvolvimento Coordenação: Giuseppe Cocco Revisão de provas Daniel Seidl Vinícius Renaud Reoisão tecnica Giuseppe Cocco Diagramaçào Carolina Falcão Gerência de produção Maria Gabriela Delgado Capa Barbara Szaniecki CIP-BRASIL. Catalogação-na-fonte Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ A fábrica da infelicidade: rrabalho cognitivo e crise da IICIP ("OIlOI7lY/ Franco Berardi (Bifo). Rio de Janeiro: DP&A, 2005 . . - (Espaços do desenvolvimento) 168p., 14 x 21cm Inclui bibliografia ISBN 85-7490-320-5 1. Sociologia. 2. Globalizaçào. 1. Título. II. Série. Franco Berardi (Bifo) A fábrica da infelicidade trabalho cognitivo e crise da neweconomy Tradução Orlando dos Reis ~DP&A. editora. coleção espoços~ desenvolvimento Proibida a reprodução, total ou parcial, por qualquer meio ou processo, seja reprográfico, fotográfico, gráfico, microfilmagem, etc. Estas proibições aplicam-se também às características gráficas e/ ou editoriais. A violação dos direitos autorais é punível como crime (Código Penal art. 184 e §§; Lei 6.895/80), com busca, apreensão e indenizações diversas (Lei 9.610/98 - Lei dos Direitos Autorais- a11S. 122, 123, 124 e 126). © da edição italiana DeriveApprodi ©datraduçãoDP&AeditoraLtda. DP&Aeditora Rua Joaquim Silva, 98 - 2° andar - Lapa CEP 20.241-110-R1O DEJANEIRO-RJ -BRASIL Tel./Fax: (21) 2232-1768 Endereço eletrônico: dpa@dpa.com.br Sítio: www.dpa.com.br Impresso no Brasil 2005 Sumário Introdução 7 capítulo I A ideologia felicista 11 capítulo II O trabalho cognitivo na rede 37 capítulo III Neweconomy & semiocapital 75 capítulo IV Paradoxos do globalismo 107 capítulo V Rekombinant 133 capítulo VI Conclusão fora do tema 161 Referências bibliográficas 165 Introdução Ascensão e queda da classe virtual Quando este livro foi escrito, a new economy revelava os primei- ros sinais de uma crise que seria posteriormente estendida e agra- vada, a ponto de desencadear o processo de recessão no qual o mundo entrou em 2001 e que teve um momento de trágica precipitação e reviravolta quando, em 11 de setembro, o símbolo do poder eco- nômico ocidental, as torres do World Trade Center, foi destruído pelo ataque realizado por um comando suicida. Com vertiginosa rapidez na última década, assistimos à sucessão de três fases dife- rentes: a ascensão de uma classe social ligada à virtualização, que teve seu triunfo no impressionante incremento de valor nos títulos tec- nológicos da bolsa, a crise ideológica, psíquica, econômica e social do modelo new economy, e a precipitação da crise e sua derrubada angus- tiosa, em forma de violência e guerra, de militarização da economia. A fábrica da infelicidade é um livro dedicado à análise da ideo- logia virtual, a suas aporias teóricas e principalmente a sua fragili- dade cultural. Nos últimos anos, todos começamos a nos dar conta do fato de que o neoliberalismo não é em nada o mais perfeito dos programas políticos, que o mercado não é destinado a corrigir-se por si mesmo, que a mão invisível de srnithiana memória não é capaz de regular os processos sociais e econômicos para produzir uma perfeita auto- regulação do ciclo. E, principalmente, começa a parecer evidente que a infoprodução não é um reino de felicidade para quem tra- balha nas condições da auto-empresa em rede. No edifício discur- sivo da new economy, estava implícita uma promessa de felicidade e de auto-realização no trabalho. A crise financeira dos títulos tecno- lógicos desencadeou um mal-estar que até aquele momento fora DP&A editora 8 A fábrica da infelicidade removido, sufocado com maciças doses de substâncias (financeiras e psicofarmacológicas), mas não se podia mais esconder quando se tornou claro que estavam sendo reduzidos os investimentos e, por- tanto, diminuía o incentivo constante a adiar toda reflexão, todo relaxamento, todo aprofundamento. A tese essencial deste livro é esta: no cerne da new economy, como modelo produtivo e como discurso cultural, temos uma promessa de felicidade individual, de sucesso garantido, de ampliação dos ho- rizontes de experiência e conhecimento. Essa promessa era falsa, como todo discurso publicitário. Estimulados pela expectativa de felicidade e de sucesso, milhões de jovens trabalhadores altamente escolarizados aceitaram trabalhar em condições horríveis de esrresse, de superexploração, de subemprego, deslumbrados por uma ambí- gua representação em que o trabalhador aparece como empresário de si mesmo, e a competição é elevada a regra existencial universal. A derrocada da ideologia felicista ligada à economia de rede ini- ciou-se quando os títulos tecnológicos começaram a perder pontos nas bolsas de todo o mundo e difundiu-se a previsão de um inchaço da chamada "bolha especulativa". Posteriormente se acentuou o sentimento de mal-estar, quando à crise financeira se seguiu uma crise econômica verdadeira e própria com as características da crise de superprodução semiótica e tecnológica. Finalmente, abriu-se um abismo de tristeza desesperada, quando a classe virtual descobriu que era vulnerável fisicamente, quando a violência mostrou que podia penetrar no edifício transparente da virtualidade. O apocalipse reve- lou à classe virtual que ela não está imune à crise, à recessão, ao sofri- mento e à guerra. A esta altura, mudaram-se as perspectivas radicalmente. Quan- do as torres de Manhattan foram destruídas por homens transfor- mados em bombas, a classe virtual (que dentro daquelas torres vi- viam em barricadas e no afã de seu trabalho) saiu de sua condição de puríssimo espírito e descobriu ter um corpo físico, carnal, que pode ser atingido, ferido, assassinado. E descobriu que tinha um corpo social, que pode ser empobrecido, demitido, posto em condi- ções de sofrimento, de marginalização, de miséria, e um corpo afe- tivo, erótico, que pode entrar numa fase de depressão e pânico. Introdução 9 Em outros termos, a classe yirtual descobriu que também é cog- nitariado, quer dizer, trabalho cognitivo dotado de um corpo social e carnal, implicado conscientemente ou não no processo de produ- ção de valores e mercadorias semióticas, que pode ser sujeito à ex- ploração, ao estresse, como também sofrer privações afetivas, entrar em estado de pânico e por fim ser violentado e assassinado. A classe virtual descobriu um corpo e uma condição social. P~r isso, deixou de ser classe virtual e começou a se tornar cognitariado. O ciclo da semioprodução, neste momento, entra numa crise vertiginosa que envolve não só a condição social dos trabalhadores cognitivos, mas também sua função de produtores de significado. Até agora, a produção de sinais ficara separada, quase na contramão da produção de sentido. Quanto mais rápida a produtividade se- miótica, tanto mais rara a produção de sentido, porque o sentido é um fator de afrouxamento da circulação de informações. "Redu- zam o sentido, se quiserem que os sinais circulem com rapidez." Esse era o princípio de incremento da produtividade semiótica. Mas tal princípio entra em crise. A recessão econômica, a explosão do ciclo de produção serniótica acelerada restitui à internet um fôlego que vinha perdendo. Vão-se os publicitários, bate em retirada o exército das dot.com, o investimento econômico é reduzido. E tudo isso tem seus aspectos negativos, mas também seus aspectos positivos. O fracasso e a dissolução da new economy, ou seja, do marco categorial e ideológico que continha nos anos anteriores o desenvol- vimento de um modo de produção centrado na sernioprodução, não implica uma derrocada da net economy, isto é, do processo de Produção conectado em rede. Os dois fenômenos estão ligados, sem dúvida, porque a derrubada da ilusão ideológica e do clima psico- lógico que acompanhou por alguns anos a proliferação da economia de rede tirou a energia da atividade de projeção e inovação,reduziu drasticame t -" I do na cri M_ n e a propensao a invesur e ançou o merca o na cnse. as nao são a mesma coisa. A infra-esrrutura da rede continuou a crescer e :. a~ticular-se durante anos, e hoje se articula uma questão: que o Jettvos que tilid d fi - . . .. d I ' U I I a es, que unçoes sociais e cornurucatrvas esen-Vo v ' era no futuro a infra-estrutura telecornunicariva digital que se 10 A fábrica da infelicidade desenvolveu em torno da internet? Que objetivos terão a banda larga, a fibra ótica, o UMTS (Universal Mobile Telecommunications Systern), em suma, todas aquelas infra-estruturas técnicas produ- zidas na onda expansiva dos últimos anos da década de 1990 e hoje amplamente inutilizadas, perigosamente desertas? Descortina-se um vastíssimo campo de imaginação: imaginar, para os próximos anos, interfaces de uso, modalidades de co ncate- nação, formatos da narração conectiva e da narração imersiva, ativar uma nova mitopoese da rede, caminhando ao longo da beira do abismo que a guerra e a recessão escancararam. Trata-se de imaginar tudo aquilo que se tornará produtivo du- rante e depois de se abrir o abismo, porque, se não desaparecer a própria humanidade, a rede sobreviverá. Capítulo I A ideologia felicista Vancouver, fevereiro de 2000. Dia chuvoso, como muitas vezes ocorre naquela costa re- cortada e coberta de bosques. Meu amigo A. Zen me leva em visita ao estabelecimento em que trabalha. O lugar fica na periferia, quase confinando com as florestas. Observando bem além das portas escuras de vidro, podem- se ver os ursos que ficam atrás do estacionamento, onde se alinham ordenadamente os carros dos 600 dependentes da Electronic Arts, uma das mais importantes empresas mundiais produtoras de videogames. O ambiente está agitado. São os dias do lançamento da P52 (p/aystation 2) da Sonv A revista Newsweek publica, na página principal, a figura de um garoto diante do teclado de um com- putador e uma tela psicodélica. Para produzir a P52, a Sonv desenvolveu um dispositivo cha- mado Emotion engine, capaz de gerar 2 milhões de micropolí- qonos' por segundo (as p/aystations da primeira geração, em circulação até o ano 2000, podiam gerar apenas 300 mil). O efeito gerado pela nova plataforma será conseqüente- mente o de um realismo imersivo extremamente refinado e envolvente. As pesquisas sobre realidade virtual, que durante os anos 1990 não tiveram muita evidência, voltam ao centro do cenário. A P52 é a porta de entrada da difusão popular desse tema. Além disso, é concebida para poder ligar-se à internet. Teremos cada vez mais a possibilidade de participar de aventu ras de jogos on-tine com jogadores remotos: serão cons- tituídos times de predadores, de mercenários, de cavaleiros à procura de dragões. No começo de 2000, a fusão da America Online e da Time- Warner iniciou o tempo da convergência. Mas, no processo de convergência midiática, os atores não são apenas a televisão e a rede. I Com a expressão "micropolígono" entendemos o pomo luminoso que (Orna possível a percepção de uma profundidade rridirncnsionnl. (N.E.) DP&A editora 12 A fábrica da infelicidade A convergência para um hipersistema narrativo se delineia como um processo com três atores. A rede engloba a televisão (ou melhor, e alternativamente, a televisão invade a rede), mas também se delineia o enxerto de um terceiro componente, que é a imersão perceptiva, a realidade virtual. Em 1999, os lucros obtidos com a venda de playstations su- peraram os lucros obtidos com os salões de cinema de todo o mundo. O que significa isso em termos psicoperceptivos, antropológicos e, portanto, sociais? O que significa isso em termos de tempo emocional? Os usuários de playstations são crianças e adultos (no começo de 2000, calculava-se que 51% do mercado era cons- tituído de pessoas com menos de 18 anos). Podemos prever que o tempo emocional das novas gerações de seres chamados humanos será cada vez mais absorvido pelas tecnologias produzidas pela Sony ou pela Microsoft (a empresa de Bill Gates decidiu entrar no setor das tecnologias imersivas no começo de 2000, justamente no meio da tempestade judiciária desen- cadeada pelas autoridades antimonopolistas americanas). O consumo, a emoção, o trabalho, a linguagem, tudo isso está em jogo quando falamos de convergência hipermidiática. Meu amigo A. Zen fala-me da organização do trabalho na empresa da qual é funcionário. Ele se ocupa de motion capture, isto é, das técnicas graças às quais é possível transferir os movimentos do corpo humano para a tela e tornar os movi- mentos dos átomos virtuais cada vez mais realistas, cada vez mais humanos. No estabelecimento, trabalha-se em ilhas relativamente au- tônomas, em que cada pessoa organiza o próprio trabalho como preferir. Os tempos são livremente escolhidos pelos trabalha- dores, o importante é concretizar o projeto dentro dos prazos estabelecidos de início. A. Zen me acompanha na seção de prova. Numa enorme sala iluminada por luzes quentes, separadas por paredes de plástico, trabalham 150 jovens. A atividade deles (paga numa média de cerca de 3 mil dólares canadenses) consiste, lite- ralmente, em jogar o dia todo. Testam os jogos que sairão para diversos mercados do mundo. Carros que saem da estrada com escritos em alemão; jo- gadores de basquete que correm na tela lançando a bola, en- quanto, no fundo, aparecem escritos em chinês e em turco; um perigoso guerreiro de traços malaios que se atira contra o muro bufando palavras desconexas em espanhol. Diante de cada tela, um rapaz controla o funcionamento do game horas a fio. A ideolog ia felicista 13 Começamos a bater papo com um dos jovens testadores, saboreando um café ralo ná saleta cheia de cores dedicada ao re/ax, enquanto fora, além das paredes de vidro, o céu está agora mais escuro. "Você vive em casa com seus pais?", pergunta meu amigo ao jovem testador, que tem um brinquinho na orelha direita. "Não, mudei", responde o moço. "Agora vivo sozinho com minha playstation." "Quer dizer que, quando volta para casa, continua a brincar?", pergunto-lhe espantado, interrompendo a conversa. "Que mais deveria fazer?", sorri o moço da seção de teste. "Você sabe, no último mês recebi apenas um telefonema. Era de uma pessoa que se enganou de número." Ideologia felicista e neuromutação O processo de produção globalizado tende a se tornar um pro- cesso de produção de mente por meio de mente. Seu produto espe- cífico e essencial são os estados mentais. Surgiu, pois, de uma verda- deira e própria ideologia da felicidade, que, entretanto, oculta, ou melhor, remove efeitos de infelicidade crescente que se manifestam fora do circuito virtualizado, mas também dentro, no trabalho, na vida e no psiquismo daqueles que estão envolvidos pelo processo de produção virtual. O sofrimento da maior parte da população mundial, dos que são excluídos do circuito da infoprodução ou que são, simplesmente, terminais passivos, manifesta-se como empobrecimento material e como superexploração. O sofrimento da classe virtual, da minoria que participa da rede, tem, essencialmente, um caráter mental, psí- quico. A economia psíquica absorve e redefine o próprio território da economia material, no que diz respeito aos infoprodutores. A economia digital constrói um sistema tecnocomunicativo que tende para uma nova condição cognitiva global. Essa nova condição cognitiva implica e promove o surgimento progressivo de novas fa- culdades cognitivas, como a ubiqüidade e a telepatia. Por meio de u~ trabalho constante de programação, instalação de cabos, inter- faclamento e - " d d - di . I .conexao, o circuito e pro uçao Iglta cna as macro- estruturas e rni d d I d ,. dIcrOestruturas esses novos mo e os o sensono e a cognição A' f . I d . • 111 ra-estrutura socia ten e a se tornar a mesma coisa 14 A fábrica da infelicidade que o processo de elaboração cognitiva e interativa da mente. Esse processo não se verifica sem uma verdadeira e própria mutação an- tropológica, que em primeiro lugar investe no psiquismo sociale individual. A Sony decidiu chamar o motor da playstation 2 de Emotion engine. ~ uma escolha conceitualmente reveladora, que nos permite entender o que há de decisivo na relação entre tecnocosmo digitali- zado e mente humana: a máquina digital incorpora um número crescente de automatismos emocionais, que são inoculados no orga- nismo humano desde a infância, desde as primeiras fases formativas. Não entenderemos nada da sociedade que está se desenvolvendo sem levar em conta o fato de que suas células constitutivas, organis- mos bioconscientes que por convenção estamos acostumados a con- siderar seres humanos, estão atravessando uma fase de reprograma- ção neurológica, psíquica, relacional. O hardware dos organismos bioconscientes está em fase de mutação, de reprojeção acelerada. Não podemos pensar que nesses novos terminais possa funcionar o mesmo software que funcionava nos organismos gerados pela revo- lução humanista. Por exemplo, no caso dos videogames, das telas tridimensionais e tecnologias imersivas, observamos o seguinte processo: vamos para a criação de interfaces imersivas que tornam possível a estimulação de efeitos emocionais assistidos pela máquina. A emoção, enten- dida como estimulação de reações físicas e psíquicas apenas parcial- mente controláveis pela racional idade, cada vez mais é solicitada e provocada por cadeias de automatismos tecnológicos. Isso não pode acontecer sem uma mudança do mesmo aparelho neural, do mesmo hardware do corpo-mente. Nesse sentido, vemos uma convergência entre tecnologias infor- máticas e tecnologias psicotrópicas de tipo químico (psicofármacos, drogas) e de tipo biotécnico (tomadas eletrônicas, indução calcu- lada de neuromutações). As características da semioesfera imersiva hipermidiática produ- zem efeitos sobre o sistema emocional, os quais só podemos imagi- nar na emersão de formas pânicas ou depressivas que surgem na psique social e no comportamento coletivo. A ideologia felicista 15 É preciso abandonar o preconceito segundo o qual o Homo sa- piens representa o ponto de chégada último e máximo da evolução. Por isso, é necessário abandonar o ponto de vista do Homo sapiens, que predispõe à suspeita, à rejeição e à incompreensão nos confron- tos da mutação que existem no organismo bioconsciente. Sem leme nem bússola no oceano fracional Duas atitudes mentais predominam no panorama intelectual. Uma deriva do pensamento crítico do século XX, das experiências políticas de tipo socialista. A outra floresce na exuberante selva da economia pós-industrial. A primeira se fundamenta no temor da inovação tecnológica e econômica como portadora de um mal, ou ao menos de um perigo. Essa atitude se manifesta com uma cultura política conservadora e retrógrada. A flexibilidade do trabalho é vista apenas como um ataque às condições de vida e salário. A globalização econômica é vista como uma maquinação do imperialismo americano, e a difusão de novos imaginários e da língua inglesa é vista como um plano pérfido de sujeição da cultura mundial. A internet é um instrumento ambíguo que só se pode aceitar porque veicula mensagens ideológicas de alarme sobre a periculosidade do próprio instrumento, e porque in- forma sobre a cultura passada como uma extensão ilimitada da bi- blioteca. A segunda atitude consiste, ao contrário, na exaltação da eco- nomia capitalista como se a ela se devesse atribuir o enriquecimento que provém do progresso da ciência e da tecnologia. O mercado competitivo é v~sto como o único ambiente no qual essas conquistas se tornam possíveis, e a violência competitiva, a miséria e a margi- nalização são consideradas um preço inevitável. Como a evolução da natureza, com sua impiedosa seleção elimina os fracos e permite aos fortes prosperar. Dessa forma, a sociedade humana não pode progredir a não ser graças à violência e à exploração. O trabalho, a pro~utividade, a competição são considerados os valores-guia aos quals tudo dev 'c. dA' I' . . , .e ser sacnuca o. VIO encia, a guerra, a rruserta são 16 A fábrica da infelicidade resíduos marginais provisórios de um mundo ainda não perfeito. Só a plena homologação econômica saberá eliminar aqueles resíduos. Essas duas posições são intelectualmente insatisfarórias, moral- mente hipócritas e politicamente paralisantes. O conservadorismo antagonista repropõe modelos de pensamento e de ação que não têm mais vitalidade e, sobretudo, não têm consenso entre as multidões exterrn inadas dos miseráveis da Terra. Perdeu-se o horizonte da alternativa social, porque o comunis- mo no qual esse horizonte se encontrava revelou-se um sistema so- cial totalitário e estático, incapaz de competir com o dinamismo tec- nológico do capitalismo. Ficaram perdidas toda força de atração e toda capacidade de orientação para as massas dos explorados, por- que estes se converteram aos cultos obscurantistas do integralismo, do nacionalismo e do tribalismo. Assim, o antagonismo socialista, esquecida sua antiga vocação internacionalista, acabou identifi- cando seu inimigo principal na globalização e, nessa sua oposição, ele se encontra ao lado do fascismo e das obsessões iden tirarias deses- peradas da desterri torialização capitalista. A ideologia liberalista tem, por sua vez, a energia da inovação, o poder de um imaginário internacionalista - que o socialismo perdeu. Mas não oferece nenhuma esperança de reduzir a massa de miséria e de exclusão. Pelo contrário, quanto mais rica, eficiente e agressiva se torna a classe global que domina as novas tecnologias e concentra em suas mãos o domínio sobre a rede mundial, tanto mais se ex- pande a massa dos excluídos. E dessa forma se torna realista a pre- visão de uma longa separação entre uma minoria, que produz e se comunica no circuito de conexão global tirando vantagens crescen- tes no plano econômico e cultural, e uma enorme maioria de ex- cluídos obrigados a exercer, em condições semi-escravas, as funções dependentes daquele circuito global, ou simplesmente destinada à guerra, à miséria, à doença. O pensamento criativo deve hoje estar à altura de uma situação sem precedentes, à altura de uma sociedade que não se parece em nada (ou quase) com aquelas sociedades nas quais cresceram as orga- nizações políticas revolucionárias e das quais germinaram os regimes socialistas, ou as grandes democracias do Ocidente. Nem a revo- A ideologia felicista 17 lução socialista (expressão totalmente quimérica e inconsistente que hoje só pode usar quem pretende cair no ridículo) nem a democracia (expressão muito usada, mas não menos falsa, não menos incon- sistente) são capazes de oferecer uma perspectiva, refrear e dissolver a obsessão identitária que se concentra nos nazismos que ressurgem ou nos integralismos conflitantes. . Talvez seja da política que devemos propriamente nos desem- baraçar. Essa arte de governar não tem realmen te mais realismo numa sociedade infinitamente complexa, na qual a vontade é inca- paz de buscar seus fins, e na qual seus fins são miragens, porque não apoiamos mais os pés num terreno estável, mas navegamos num oceano absolutamente instável. Estamos à procura de um método de mudança que esteja livre das premissas (hoje enganosas) da governabilidade, da finalidade, da redutibilidade do mundo a projetos racionais. A política foi uma técnica capaz de produzir efeitos de conjunto a partir do governo de um certo número de processos decisivos. Devemos agir numa situação na qual os processos decisivos são infinitos, ingovernáveis, e as mutações têm caráter fracional e recombinante. É totalmente insensato propor a subversão de um sistema abso- lutamente caótico, o oceano neurotelemático no qual navegamos. Só andando no sentido do processo podemos introduzir elementos para modificá-Io. A modificação pode ter apenas um caráter fracional, e de nenhum modo um caráter frontal. A sociedade moderna e industrial podia ser descrita como uma realidade de tipo territorial. Era possível pôr o leme na direção de uma ilha que aparecia no horizonte e com força de vontade atingi-Ia e conquistá-Ia. Mas não existe nenhum sentido em propor finali- da~es, objetivos, quando nos movemos num oceano em que todas as Ilhas que vemos no horizonte são flutuantes e se deslocam com velocidades diferentes e imprevisíveis. P.rocuraremos aqui um método de mudança que faça frutificar os pnncípios da navegação, da fracionalidade e da recombinação. Não temos nem bússola nem leme. Não sabemos aonde que- remos ir. 18 A fábrica da infelicidade o limite do cibertempo Rosa Luxemburgo dizia que o capitalismo é intimamente im- pelido para um processo de expansão contínua. O imperialismo era para ela a conseqüência econômica, política e militar dessa necessi- dade de expansão. Mas o que acontece quando todo o espaço do ter- ritório planetário foi submetido ao poder da economia capitalista, e todo objeto da vida cotidiana foi transformado em mercadoria? Durante um certo período, a conquista do espaço extraterrestre foi considerada a direção de desenvolvimento para uma nova aven- tura da expansão capitalista. Em seguida, por motivos dificilmente decifráveis, aquela direção de desenvolvimento se interrompeu, ou foi reduzida, e atualmente a direção de expansão e desenvolvimento parece ser a conquista do espaço interno, do mundo interior, o es- paço da mente, da alma: o espaço temporal. A colonização do tempo foi um objetivo fundamental do de- senvolvimento do capitalismo durante a idade moderna: a mudança antropológica que o capitalismo produziu na mente humana e na vida cotidiana foi principalmente a transformação na percepção do tempo. Agora alguma coisa de novo está acontecendo: o tempo se tornou o principal terreno da batalha. Tempo-mente, cibertempo. O que significa cibertempo? Para responder a essa pergunta, devemos, primeiro, retomar à definição de ciberespaço, termo que nos últimos anos entrou amplamente na linguagem. O ciberespaço é a esfera de interação de inúmeras fontes hu- manas e maquínicas de enunciação, a esfera de conexão entre mentes e máquinas: está em expansão virtualmente ilimitada, pode crescer indefinidamente, porque é o ponto de interseção do corpo orgânico com o corpo inorgânico da máquina eletrônica. O ciberespaço não é a única dimensão que emerge do desenvol- vimento dessa conexão. Há um outro aspecto que devemos levar em consideração: o cibertempo. O cibertempo é a face orgânica do pro- cesso, o tempo necessário para que o cérebro humano possa elaborar a massa de dados informativos e de estímulos emocionais prove- nientes do ciberespaço. O cibertempo não é ilimitadamente expan- A ideolog ia felicista 19 sível, porque sua expansão é demarcada por fatores orgânicos. É possível expandir a capacidade de elaboração do cérebro com dro- gas, com o adestramento e a atenção, graças à ampliação das capaci- dades intelectuais, mas o cérebro orgânico tem limites que estão co- nexos com a dimensão emocional e sensível do organismo consciente. Chamamos "ciberespaço" o universo global das relações possíveis dentro de um sistema rizomático, que conecta virtualmente todo terminal humano com qualquer outro terminal humano, por meio de máquinas digitais. O ciberespaço é um rizoma neurotelemático, isto é, uma rede não-hierárquica e não-linear que liga mentes hu- manas e dispositivos eletrônicos. Sua extensão é infinita. O cibertempo, ao contrário, não é ilimitadamente extensível, porque é ligado à intensidade da experiência que o organismo cons- ciente dedica a elaborar informações que provêm do ciberespaço. A esfera objetiva do ciberespaço se expande com a velocidade da repli- cação digital, mas o núcleo subjetivo do cibertempo evolui a um ritmo lento, o ritmo da corporeidade, do gozo e do sofrimento. Devemos nos deter com atenção sobre essa passagem, porque na relação ciberespaço/cibertempo criam-se as condições da muta- ção, mas também as contradições do modelo infoprodutivo. A com- posição técnica do modelo muda, mas a apropriação cognitiva e a reatividade psíquica não seguem de maneira linear tal mudança. Que fique bem claro: não pretendo dizer que as modalidades de ela- boração mentais sejam naturais, imutáveis. Ao contrário, insisto que uma mutação é produzida pela exposição da mente orgânica à tec- no~sfera digital, mas a mudança do ambiente tecnológico é muito mais rápida do que a dos hábitos culturais e dos modelos cognitivos. . A camada da infoesfera se torna sempre mais densa, e o estímulo Informativo invade todo átomo da atenção humana. Mas o tempo mental não é infinito nem expansível de maneira irresrrita. O nú- cleo subjetivo do ciberrempo elabora os sinais com o ritmo lento da matéria ,. P d . orgal1lca. o emos aumentar o tempo de exposição do or- ganismo às informações, ficar mais tempo diante da tela do com- ~utad~r, ou acelerar os tempos de reação aos estímulos provenientes o universo h' idiá A ',. d diperrru iatico. expenencla, contu o, não po e ser 20 A fábrica da infelicidade intensificada além de um certo limite, a partir do qual a aceleração da experiência provoca uma redução da consciência do estímulo, uma perda de intensidade que se refere à esfera estética, da sensi- bilidade e também à esfera da ética. Banaliza-se a experiência do outro, que é substância da dimen- são tanto estética quanto ética. O outro se torna parte de uma es- timulação interrompida e frenética na qual é sempre mais difícil separar o que é fisicamente existente do que é simulado em forma virtual. A singularidade da experiência se dissolve a favor de uma repe- tição padronizada. A intensidade da emoção não é diminuída, mas suspende-se a realidade do objeto emocional. O organismo consci- ente, o corpo-mente individual não cessa de provar emoções, quan- do solicitado por um ambiente virtual. Pelo contrário, os estímulos ernotivos se intensificam e determinam reações sempre mais acele- radas. Mas o objeto emocional perde reconhecibilidade, distingui- bilidade, concretude. O objeto emocional não é mais um outro ser vivo, mas um estímulo como tantos outros. Um estímulo que é ela- borado rapidamente, cada vez mais rapidamente. Podemos encontrar uma versão particularmente pessimista dessa passagem nas obras recentes de Paul Virilio. Ele sustenta, há algum tempo, que a aceleração produz um empobrecimento da experiência e que a virtualização produz uma dissolução da alteridade. O imperativo moral, diz Virilio, não existe mais: ama teu pró- ximo. Somos convidados a amar o (tele)distante. E o distante é o outro sem a flsicidade, o odor do corpo, sem o medo e a dor de um ser vivo. O distante é o outro cuja existência não podemos auten- ticar, a verdade intensiva, a reciprocidade desejante. Quanto mais informação, tanto menos significado, diz por sua vez Anhur Kroker. Para acelerar e fluidificar a circulação das infor- mações, de fato é necessário remover das vias de comunicação roda ambigüidade, e não existe significado sem ambigüidade. Quanro mais informação, tanto menos significado; quanto mais informação, tanto menos prazer de comunicar. A ideolog ia felicista 21 As posições expressas por Arthur Kroker e Paul Virilio têm uma en- toação conservadora, porque se colocam em posição negativa frente à inovação tecnológica, como se fosse possível detê-Ia, ou como se fosse possível identificar uma autenticidade do humano, definir condições humanas naturais fora das quais o humano é pervertido Sem dúvida, as teses de Kroker e de Virilio contêm muitos ele- mentos de verdade. Mas seus discursos são dominados por um sen- timento conservador, nostálgico. É a nostalgia de uma autenticida- de humana que as tecnologias estão apagando. Não existe autenticidade humana independente das condições nas quais o humano se deter- mina concretamente. É preciso transferir o eixo da análise e da crí- tica: não é do ponto de vista de uma autenticidade humana ideal que podemos falar do homem e da mulher concreta. Qual o ponto de vista que podemos adotar para julgar o mundo presente, as relações de produção e de troca, as tecnologias e as for- mas sociais que elas determinam? Creio que não existe nenhumponto de vista útil para um juízo sobre o existente que não seja o da felicidade do organismo consciente. Só o sofrimento e o prazer do organismo consciente - indivi- dual e coletivo - são critérios úteis para um juízo ético e político que não pressuponha posições de valor de tipo idealístico (como a de au- tenticidade humana) ou hipostático (como a de natureza humana). Uma palavra que não se deveria usar A palavra "felicidade" não deveria ser usada nos livros. É uma palavra que não se deveria escrever, e sim apenas habitar silenciosa- mente, quando possível. É uma palavra tabu, que a custo talvez pos- samos viver, mas certamente não pensar de forma sistemática. Por isso, tal palavra foi suprimida do discurso entre as pessoas respeitá- veis, e não há direito de cidadania na república do saber científico. Aristóteles diz que todos os homens querem ser felizes. Terêncio Varrone enumera 289 interpretações da palavra "felicidade". Watz- klawicz, por sua vez, COnta esta historieta judaica: "Tenho a inten- ção de casar-me com a senhorita Katz", diz o filho. "Mas a senhorita 22 A fábrica da infelicidade Katz não tem dinheiro para o dote", responde o pai. E o filho rebate: "Soment~ Com ela poderei ser feliz". "Ser feliz?", pergunta o pai. "E o que você vai ganhar com isso?" Todo o discurso de Watzklawicz é orientado para desfazer a idéia de que existe uma condição sadia, natural, da existência, e que devemos realizar tal condição para po- dermos ser felizes. Precisamente a pretensão de existir uma condição feliz é a premissa para a pessoa se tornar infeliz, diz Watzklawicz. Por sua vez, Freud, numa carta a Fliess, fala de "indeterminabi_ lidade da análise". Com essa expressão, Freud define o fim, o POnto de chegada e mesmo o sentido último da psicanálise. Diz que o POnto de chegada do processo analítico é a compreensão da indetermina_ bilidade da análise, o que significa que nenhuma ciência e nenhuma técnica pode propor-se a procura da felicidade. Se a felicidade pode ser definida como uma integração plena e sem resíduos do organismo consciente Com seu ambiente, podemos dizer que essa integração é irrealizável, porque o código da mente e o do mundo são intraduzíveis, ou mesmo porque a implemen_ tação do organismo consciente e do mundo é uma implementaçãoimperfeita. Num de seus mais notáveis e belos livros, O mal-estar da civi- lização, Sigmund Freud explica por que não pode figurar no discur- so científico sobre a sociedade humana a palavra "felicidade". O acesso à felicidade implica remover, esquecer, colocar entre parên- teses a própria idéia de felicidade. O acesso à civilização, até porque implica um investimento produtivo e racional da libido, envolve uma sublimação do desejo e daquilo que Freud define como instin- tos primários (Trieb). É essa remoção o fundamento do sacrifício no qual se baseiam o progresso da civilização, o despertar do prazer e o investimento das energias em formas socialmente úteis, cambiá- veis, acumuláveis. É nessa evitação da relação entre desejo e rea- lidade vivida que se fundamenta em particular o desenvolvimento da economia capitalista. O que se acumula no tempo, constituindo a premissa e a base do desenvolvimento econômico e do progresso civil, é precisamente a distância entre o desejo e a realidade vivida. Graças a essa distân- A ideologia felicista 23 cia, o mundo pôde esrender-se, complicar-se, absorvendo tempo de trabalho e inteligência. O que se acumula na economia capita- lista é prazer não-vivido, ou prazer sublimado. Essa problemática está no centro do livro de crítica da eco- nomia capitalista de Bataille, intitulado A parte maldita. Com base na idéia de que o desenvolvimento econômico se funda na acu- mulação de prazer não-vivido, Bataille formula a hipótese de que a parte maldita é o excesso de desejo, aquele desejo que deve ser sacrificado e não-vivido para deixar espaço ao desenvolvimento da economia. A parte maldita é a crítica viva da economia e do capita- lismo, o desejo que reafirma sua existência contra a lógica sacrifical que sustenta o capitalismo. Os neurofisiólogos são capazes de definir os fenômenos psí- quicos, emotivos, de humor, como manifestações de processos quí- micos que se desenvolvem no cérebro. Mas é duvidoso que esse tipo de explicação seja suficiente para esclarecer o comportamento hu- mano em sua complexidade e no contexto das relações sociais. Como se faz atuar, como se alimenta toda essa química e essa hidráulica de agentes químicos na neurotransrnissão do amor e da (in)felicidade? Quais as arquiteturas sociais da psicoquímica? Quais as arquiteturas tecnológicas; quais as arquiteturas culturais? Sem dúvida, podemos considerar a felicidade o efeito de um pro- cesso fisioquímico, e, por isso, podemos intervir em certos tipos de infelicidade, em várias formas de sofrimento mental como a ânsia ou a depressão, ministrando substâncias capazes de agir nas molé- culas do cérebro, como os psicofármacos. Mas o sofrimento mental não é redutível a isso. Não é suficiente explicar os processos neuro- fásicos que a acompanham e a produzem, para entender como se de- termina a depressão, a psicopatia, a melancolia, a tristeza, o medo, o pânico. Esses fenômenos da realidade psíquica vivida não são re- dutíveis a suas determinantes químicas e neurais, embora as impli- quem necessariamente. Neurologistas e fisiólogos fundamentam sua diagnose e suas te- rapias na condição física do cérebro humano, a partir do qual ana- lisam posteriormente a relação entre mente e mundo. É um proce- 24 A fábrica da infelicidade dimento utilíssimo, e a psicoterapia obtém grande vantagem no uso de psicofármacos. Substâncias como o Prozac se revelaram capazes de modificar as modalidades de interação mente-mundo, e toda uma farmacopéia de ansiolíticos, antidepressivos, tranqüilizantes, euforizantes desenvolve uma função essencial para regularizar o humor, reduzir o sofrimento, tornar tolerável a existência. É legítimo e praticamente eficaz o ponto de vista da psicofarma_ cologia. Mas Sua compreensão do sofrimento mental tem um cará- ter mecanicista e redutivo. Trata-se de uma perspectiva parcial, uni- lateral, insuficiente para explicar os fenômenos da psicopatia e do mal-estar, e inadequada para modificar o processo psicopatogênico, pelo menos em seus aspectos clínicos. Se quisermos analisar a relação entre a mente e o mundo, uma abordagem de tipo mentalista tem indubitáveis vantagens. Se pen- sarmos que o mundo é projeção dos estados da mente, poderemos chegar à conclusão de que será suficiente corrigir, curar e pacificar a condição em que se encontra o panorama da mente, para que o mundo se torne melhor. Numa perspectiva desse tipo, um caminho de solução para en- carar o problema da felicidade podem ser os psicofármacos, mas tam- bém as técnicas de meditação e ioga. Por mais útil e interessante que seja considerar o mundo uma projeção da atividade mental, é pre- ciso reconhecer que esta é somente uma parte da realidade. A psico- logia budista considera a relação Com o mundo e Com os OUtros seres humanos, e até a própria realidade objetiva, um efeito das projeçõesda mente. Mesmo os mais terríveis demônios não devem se espantar por- que não passam de projeções de nossa mente, diz o bardo (narrador) Todol, livro tibetano dos mortos, que, embora anterior à impor- tação do budismo no Tibete por parte de Padmasambhava, antecipa os fundamentos da psicologia budista. Uma vez que o bem e o mal se manifestam no mundo, devem ser considerados projeções, e o que deve ser curado, modificado, aperfeiçoado, não é o mundo, mas o estado da mente. A ideologia felicista 25 Totalmente diversa é a abordagem da felicidade implícita no pensamento político moderno. No vocabulário político, tal palavra tem um lugar muito marginal, embora a Constituição americana afirme que todo indivíduo tem o direito de procurar a própria felici- dade. O Iluminismo inocula no espírito da modernidade a idéia- pouco motivada com a prova dos fatos - segundo a qual o progresso científicoe civil produziria um constante incremento da felicidade coletiva. Todavia, por trás das declarações de princípio, todo discurso so- bre esse tema parece levemente embaraçoso, talvez pela simples razão de que toda valoração quantitativa sobre a felicidade é impossível, e é abusiva qualquer objeção a esse vago conceito. Como podemos tentar uma valoração quantitativa sobre o vo- lume de felicidade de que gozavam os homens nas épocas da histó- ria passada? As agências de pesquisa de opinião talvez façam sonda- gens sobre a sexualidade, o prazer e a insatisfação. Mas como podem ser dignas de crédito sondagens baseadas em argumentos desse tipo? Mesmo supondo que os entrevistados digam a verdade (e certa- mente não é o caso), não é evidente que todo ser humano perceba de maneira diferente o próprio corpo e registre os estados mentais segundo critérios totalmente pessoais? Certa vez, ouvi dizer que a felicidade e a infelicidade são im- parcialmente distribuídas no tempo e no espaço, independentemente das condições sociais. Pode ser, mas parece quase impossível não considerar a Alemanha dos anos hitleristas (pense no filme O ovo da serpente, de Ingmar Bergman) ou a Rússia de Stalin (pense no livro O mestre e Margarida, de Bulgakov), ambientes particular- mente predispostos a uma tristeza difusa e à angústia. Sobre a felicidade e a infelicidade, portanto, não podemos ter certeza, nem é oportuno fazer histórias. Entretanto, apesar de todas essas dificuldades e todas essas precauções, desejo apontar alguns aspectos do panorama psíquico da sociedade contemporânea, par- tindo de suas condições produtivas, comunicativas e tecnológicas. 26 A fábrica da infelicidade A felicização do discurso econômico A felicidade não é um objeto científico, mas um objeto ideo- lógico muito importante, e nesse sentido é estudado. Em Outros termos, quero dizer que, embora não podendo manter um discurso cientificamente motivado e coerente sobre a felicidade, de modo que somos capazes de defini-Ia apenas de maneira muito vaga, no dis- curso público vemos circular fluxos de comunicação construídos em torno de uma idéia da felicidade. Vemos circular fragmentos e solici- tações imaginárias, pouco motivadas e coerentes, mas nem por isso menos eficazes. O discurso público se fundamenta na idéia de que ser feliz não só é possível, mas quase obrigatório, e, se quisermos al- cançar esse objetivo, é necessário observar algumas regras, seguir cer- tos modelos de comportamento. A história do Iluminismo e do positivismo introduziu na cul- tura moderna a convicção, ou antes a ilusão, de que o progresso cien- tífico, econômico, tecnológico tem o efeito de estender a felicidade humana e consolidar suas bases até generalizá-Ia. Durante a época clássica da modernidade, e também no século XX, e mesmo nas décadas que se seguiram à Segunda Guerra, esse discurso ideológico funcionou, marcando de cerra forma o fundo inconsciente dos comportamentos e das expectativas da maioria da sociedade. O positivismo identificava o progresso científico com o pro- gresso da felicidade humana, apesar de Freud ter se opOSto a essa confiança em seu próprio terreno, no terreno da ciência posi tivista, projetada nas profundidades da mente humana. O século XX con- tinuou a cultivar a ilusão positivista, pelo menos na cultura de massa e mesmo no fundo implícito da cultura política. O discurso político totalitário e o democrático, no século XX, colocaram igualmente a felicidade como horiZOnte da ação coletiva. O totalitarismo impôs procedimentos comportamentais obrigató- rios e pretendeu que os cidadãos os aceitassem com entusiasmo, à CUsta da marginalização ou da perseguição como derrotados. Mas a democracia não visa a um consenso entusiástico, pois, numa visão madura, concebemos a democracia como procura inter- A ideologia felicista 27 minável de um modus vivendi que conceda a cada um a possibi- lidade de seguir as condutas pessoais e públicas capazes de lhe pro- porcionar alguma felicidade relativa.rO -capitalismo, que muitas vezes (sem motivo algum) é apresentado como o companheiro inse- parável da democracia (quando sabemos que ele pode prosperar fa- cilmente à sombra de regimes bem diferentes dos democráticos), não é tão tolerante. Exige uma participação entusiástica na compe- tição universal, na qual não se pode vencer sem empenhar com plena convicção todas as energias próprias. Em nome de uma felicidade coletiva e homologada, os regimes totalitários, como o nazismo, o fascismo e o socialismo autoritário das repúblicas populares, negaram a liberdade das pessoas e desse modo criaram as condições de uma imensa tristeza. Também a eco- nomia liberal, com o culto do lucro e do sucesso, que se apresenta em forma caricatural mas persuasiva no discurso publicitário, aca- bou produzindo uma infelicidade de competição, de derrota e cul pabilidade. O discurso público de nosso tempo (que traduz, no processo de globalização, o êxito da economia liberal) está impregnado da ideo- logia da felicidade. Por isso, não podemos fugir ao problema da fe- licidade, apesar de todas as cautelas e perplexidades de que falamos nas páginas anteriores. A ideologia da new economy afirma que o livre jogo do mercado cria o máximo de felicidade para a humanidade em geral. Não po- demos então fugir ao jogo; não podemos evitar a pergunta sobre o que os economistas e políticos entendem quando falam de felici- dade. E não se objete que o discurso dos economistas e políticos é diferente do discurso dos publicitários. Um dos efeitos da new eco- nomy no campo ideológico consiste exatamente na assimilação des- ses discursos e na transformação da publicidade numa espécie de paradigma de pensamento econômico e de ação política. Portanto, torna-se necessária uma verificação: é real mente ver- dade que a evolução tecnoprodutiva e tecnocomunicativa está pro- duzindo um aumento da felicidade? Somos obrigados a usar essa palavra, mas preferiríamos não ter que falar dela. E somos obrigados 28 A fábrica da infelicidade a dizer aquilo que gostaríamos de experimentar apenas silenciosa- mente, porque em torno dessa palavra gira a ideologia contempo_ rânea e igualmente o imaginário social que o media system produz constantemente. É mais do que sabido que o discurso publicitário se fundamenta na criação de modelos imaginários de felicidade com os quais os consumidores são convidados a se conformar. A publicidade é uma produção sistemática de ilusões e por isso também de desilusões, de competição e derrota, de euforia e depressão. O mecanismo co- municativo da publicidade se baseia na produção de um sentido de indagação e, ao mesmo tempo, na solicitação a um consumo para o qual estaremos preparados, permitindo realizar enfim aquela felici- dade que foge a nós. É muito compreensível que essa seja a essência do mecanismo publicitário, mas o que é mais interessante é que, nos últimos anos, o tema da felicidade prosperou a partir do círculo dos publicitários que vivem de persuadir e migrou para o centro do discurso econômico. A auto-realização e a rejeição ao trabalho O surgimento da felicidade no campo do discurso econômico não pode ser considerado um simples efeito de superfície, uma Con- taminação da austera disciplina econômica pela cintilante cultura dos comunicadores publicitários. Isso também existe, é verdade, mas devemos entrever alguma coisa de mais profundo, se quisermos ex- plicar a felicização do discurso econômico. Para tanto, devemos, em primeiro lugar, remontar aos anos em que mais profunda foi a crise do modo de produção industrial, caracterizado pelas formas repe- titivas do trabalho assalariado e pela despersonalização da linha de montagem. Nos anos 1960 e 1970, justamente quando o sistema industrial alcançava seu ponto culminante e realizava a perfeição do modelo fordista, repetirivo e mecânico, o sentimento operário de rejeição e de estranheza ao trabalho industrial associou-se a um filão cultural que tornava a alienação o eixo crítico essencial. Em seu significado filosófico,alienação significa perda da própria autenticidade humana A ideologia felicista 29 e permuta de tudo que há de hun;ano no~ homens e mulheres com algo materialmente valioso, como o salário, o dinheiro, os objetos de consumo. Filosofias de origem idealistae de influência existen- cialista difundiram-se amplamente nos movimentos de contestação daqueles anos. Elas consideravam o capitalismo a causa de uma alie- nação que tirava das pessoas sua autenticidade humana. e dava em troca uma participação no circuito das mercadorias. Em conse- qüência, essas filosofias indicavam como objetivo político principal a conquista de uma condição social em que o trabalho produtivo e a auto-realização fossem a mesma coisa. Mais tarde, a partir da segunda metade dos anos 1970, os movi- mentos feministas, jovens e gays reconheceram-se na idéia de que o que é "pessoal é político". Na luta social, queriam dizer, não estão em jogo apenas o poder político e o governo da república. Estão em jogo, e em primeiro lugar, a qualidade da vida cotidiana, o prazer e o sofrimento, a auto-realização, o respeito à diversidade: está em jogo o desejo que age como motor da ação coletiva. Uma revista que teve certa influência nos movimentos juvenis da década de 1970, intitulada A/traverso, foi publicada um dia com a manchete "A felicidade é subversiva quando se torna coletiva". O movimento de 1977, tanto em sua variante italiana, colorida e cria- tiva, quanto em sua variante inglesa, punk, gótica e inquietante, fundamenta-se numa intuição: o desejo é a força que põe em movi- mento todo processo de transformação social, toda mutação do imaginário, toda transferência da energia coletiva. Somente a partir do desejo explicam-se a rejeição operária ao trabalho assalariado, a rejeição de entregar a própria vida aos ritmos da linha de monta- gem, o absenteísmo, a sabotagem. O surgimento, nas décadas de 1960 e 1970, do valor político do tema da felicidade e da auto-realização pessoal está ligado à re- jeição e à insubordinação pelo modo de produção industrial, que enfim parecia maduro e decrépito, em sua perfeição técnica e fun- cional. Naquela situação, a individualidade rica, consciente, final- mente capaz de libertação e de autonomia produtiva e cultural, 30 A fábrica da infelicidade distanciava-se com ódio da ideologia sacrifical e da ética do tra- balho: o trabalho é denunciado como pura execução repeririv., e hierárquica, desprovida de inteligência e criatividade. Naquele movimento, então, a ideologia da felicidade teve papel poderoso de desagregação: da fábrica taylorista e do ciclo de produ- ção fordista, mas também de todo o pilar social e disciplinar que se estruturava no modelo da indústria. Tecnologia da infoprodução Nos anos seguintes, acontecimentos determinantes implicaram uma reviravolta no panorama produtivo, social e cultural. Em pri- meiro lugar, difundiu-se, com velocidade impressionante, uma nova tecnologia de produção, a tecnologia digital, que tornou possíveis transformações de vários tipos nas modalidades do trabalho produ- tivo e em Sua concatenação. Em segundo lugar, entrou em crise a estrutura hierárquica na qual se fundava o modelo da indústria. A aspiração da auto-realização tornou-se a mola mestra na recons- trução de um modelo social eficaz e integrou-se perfeitamente nas modalidades produtivas digitais. É estúpida e vitimista a atitude de quem lê esse tipo de dinâmica em termos de recuperação, como se as forças sociais estivessem empenhadas numa espécie de eterna fuga e distanciamento do controle e como se o sistema estivesse em- penhado numa espécie de perseguição perpétua dos comportamen_ tos subversivos. É mais interessante entender a história social como um cruza- mento contínuo entre rejeição do trabalho dependente e reestrutu- ração do sistema produtivo, no qual se pode perceber um aspecto de COntraste e um aspecto de mesma substância. O capital e a classe operária na sociedade industrial tinham um interesse contraditó- rio, mas também um interesse comum. A contradição estava no fato de que o capital tinha em vista extrair do trabalho vivo a máxima quantidade possível de tempo de trabalho e de valor, enquanto os operários tinham todo interesse em não se deixar espremer como limões e manter por si energias físicas e intelectuais. A ideologia felicista 31 Mas essa mesma substância consistia no fato de que tanto os ope- rários quanto o capital tinham interesse en:_~:duzir o tempo de tra- balho necessário, introduzindo automatismos produtivos, máqui- nas, tecnologias. E isso aconteceu efetivamente. A luta pelo poder operário levou o capital a substituir operários e máquinas, exata- mente como previa Karl Marx no capítulo sobre as máquinas nos Grundrisse. A introdução de tecnologias microeletrônicas, a digi- ralização do maquinário e a informatização dos processos produ- tivos levam rapidamente a uma transformação das características do trabalho e a uma inrelectualização geral. Durante todo o século XX, colocava-se o problema da relação entre trabalho intelectual e tra- balho manual. Max Weber ternatiza essa relação, Lenin faz dela a base da teoria do partido e Gramsci repensa tudo isso sob uma nova luz. Mas quando, na tradição teórica do movimento operário, fala- se de trabalho intelectual, entende-se uma função separada do pro- cesso produtivo de mercadorias, uma função de controle, governo, organização ideológica do consenso: em suma, uma função de tipo dirigente ou político. A função propriamente produtiva era essencialmente delegada ao trabalho manual, isto é, à transformação direta da matéria física. E o trabalho intelectual adquire um poder material tornando-se instrumento de aumento de potência, técnica ou política, do tra- balho industrial e da classe operária. Já na época industrial madura, difundia-se a auto mação, ou seja, a possibilidade de absorver fun- ções de transformação da matéria pelos maquinários, de modo que o trabalho manual era intensamente aumentado em sua potência. Com a introdução de máquinas de controle numérico, dos sistemas de autornação flexível, nos anos 1970, intensificou-se a transferên- cia de funções operativas para as máquinas. A transformação decisiva chega nos anos 1980, com a informatização sistemática das prin- cipais seções produtivas. Graças à digitalização, todo acontecimento material pode ser não só simbolizado, mas também simulado e subs- tituído por uma informação. Em conseqüência, torna-se possível reduzir progressivamente todo o processo produtivo para elabora- ção e troca de informações. 32 A fábrica da infelicidade o que é realmente informação? Informação não é apenas trans- ferência ,de sinais que se referem a um objeto ou a um aConteci_ rnenro, Informação é criação de uma forma inoculada no aconte- cimento ou no objeto. Informação é criação de valor, produção de mercadoria. Todo objeto, todo acontecimento, toda mercadoria pode ser substituída por uma informação, por um algoritmo corres- pondente, capaz de trazer à existência permutável aquele objeto, aquele acontecimento. Por isso, a passagem da economia industrial à infoeconomia não é, como pensam obstinadamente os economistas ortodoxos, um fenômeno importante, mas setorial, destinado a substituir uma parte do processo produtivo, mas não a envolver a produção de merca- dorias materiais. A infoprodução se estende a todos os ciclos de produção de mercadorias, de serviços, de objetos materiais e semió- ticos, porque a digitalização cria um simulacro do mundo, opera- cionalmente integrado ao mundo físico. A formação do modelo infoprodutivo é acompanhada de uma evolução cultural, psíquica, que envolve a força de trabalho, que envolve a própria percepção da atividade. Na sociedade industrial clássica, o trabalhador se sentia expropriado da própria intelectua- lidade, da própria individualidade e da própria criatividade. Essa despersonalização tinha desencadeado uma reação cultural, social e, por fim, abertamente política COntra a forma do trabalho indus- trial massificado. O modelo infoprodutivoque surge nas últimas décadas parece interpretar e acolher exatamente aquele protesto. Na produção high-tech, de fato, são exatamente as faculdades cogni- tivas que são aplicadas ao trabalho e as peculiaridades pessoais são valorizadas. Há uma continuidade objetiva, embora nem sempre cons- ciente e culturalmente explícita, entre rebelião anti-hierárquica e dérégulation econômica, entre vontade de auto-realização pessoal e fIorescimento da auto-empresa infoproduriva. A autonomia da sociedade com referência ao Estado é um tema fortemente radicado nos movimentos antiautoritários dos anos 1960 e 1970, os quais rompem seus laços históricos Com o movimento operário do século A ideologia felicista xx e distanciam-se da concepção estatal do movimento socialista e comunista. O tema da autonomia social se liga objetivamente à reivindicação liberalista por uma absoluta liberdade de imprensa dos regulamen tos estatais e de todo vínculo solidarista e social. Existe aqui uma contradição que nunca foi assumida conscien temente e, por isso, nunca foi criticada e superada por aqueles que, como nós, interpretaram de modo teórico aqueles movimentos anriautoritários e depois acabaram lutando contra o liberalismo que, porém, de cerra forma, tinha recebido deles a herança e fizera frutificar seus efeitos culturais e sociais. Não é uma casualidade se tantos empresários inovadores que surgiram nos anos 1980 e 1990 formaram-se na década de 1970 nos movimentos pós-socialistas antiautoritãrios, anárquicos, autônomos. Esse não é o sinal da trai- ção dos valores revolucionários, nem o da superioridade intelectual daqueles que souberam transferir a vanguarda política no campo das profissões inovadoras. Trata-se simplesmente de uma conver- gência entre interesses de autonomia social e desenvolvimento do capital que já a classe operária revolucionária tinha conhecido e ex- perimentado nos anos do segundo pós-guerra. A intelectualização do trabalho, efeito não-secundário da trans formação tecnológica e organizativa do processo de produção nas últimas duas décadas do século, abre novas possibilidades à auto- realização da qual os movimentos libertários tinham feito seu obje tivo. Mas isso abre também um campo de novas energias à valo- rização do capital. A aversão operária ao trabalho industrial, a crítica difusa à hierarquia e à repetitividade tinha tirado energia ao capital, pelo final dos anos 1970. O desejo estava fora do capital e atraía forças que se distanciavam de seu domínio. Hoje se dá o inverso: o desejo chama as energias para a empresa, para a auto-realização no trabalho. E fora da em- presa econômica, fora do trabalho produtivo, fora do business, parece não haver mais nenhum desejo, nenhuma vitalidade. Precisamente pela absorção da criatividade, do desejo, pelo im pulso idealista e liberrário para a auto-realização da pessoa, o capital soube encontrar de novo sua energia psíquica, ideológica e também econômica. 34 A fábrica da infelicidade Desejo/economia Esse .nexo paradoxal entre força libertária do desejo e reconsti- tuição do nexo econômico é objeto de reflexão filosófica, no âmbito do pensamento radical pós-estruturalista. Em Paris, no final dos anos 1970, essa reflexão se manifesta por meio de uma polêmica entre alguns dos mais importantes filósofos. De um lado, Gilles Deleuze, Félix Guattari e Michel Foucault tinham analisado o ca- ráter substancialmente repressivo da forma social do capital e ti- nham esboçado na corporeidade desejante a força principal de uma revolução libertária, de uma ruptura dos dispositivos de controle e exploração. Do outro, Jean Baudrillard criticava essa visão afir- mando que, de fato, o desejo era considerado uma energia capaz de recarregar o capitalismo, de colocar novamente em circulação ener- gias que ele tinha perdido. Em Oublier Foucault, o autor ataca as teorias do desejo com a motivação de que toda libertação do desejo é destinada a fazer funcionar a máquina energética da valorização capitalista. Naturalmente, há alguma verdade na observação de Baudril- lard. É verdade que o capital fez frutificar de maneira espasmódica um culto da pessoa que nasce exatamente da rejeição à desperso- nalização industrial. Essa rejeição se massifica no final dos anos 1970. Nas duas décadas seguintes, o individualismo de massa se torna, em dois níveis, o impulsionador do hipercapitalismo que hoje se desdobra, aparentemente, de modo insuperável. Em nível pro- dutivo, o individualismo enCOntra as tecnologias individualizadas do computador e faz explodir o fenômeno da microempresa como sinal de auro-realização. Em nível de consumo, produz um- pro- liferação de novas necessidades, de novos produtos para comercia- lizar e de uma progressiva mercantilização de qualquer aspecto da relação social, afetiva, cultural. Em nome de que princípio devería- mos nos Opor a esse casamento do desejo Com a economia? O radi- calismo dialético respondia Com segurança: em nome da abolição do capitalismo. Todavia, não é mais possível uma visão dialética e, portanto, não é possível crer nas abolições. Menos do que em qual- quer outro tempo, podemos crer na abolição do capitalismo. O ca- A ideologia felicista pital é uma modalidade de semi~tização çl.omundo que impregnou irreversivelmente as formas cognitivas, os comportamentos, as expec- tativas, as motivações. O pensamento radical de derivação hegeliana (ao qual indubi tavelmente remonta o situacionisrno) considera toda evolução do capital como recuperação de uma energia originária na, qual se ma- nifesta dialeticamente a autenticidade negada pelo estado presente das coisas. A obsessão da recuperação é uma das fixações típicas do pensamento radical e, sistematicamente, condenou-o à impotência ou ao desespero. Talvez o discurso dos anti-recuperadores assuma características sacrificais e autolesivas. Como aquele indivíduo que se castrou para causar despei to na própria mulher, est ~s estariam dispostos a causar mal a si mesmos para suscitar despeito ao capital, e temem como o pior perigo a própria felicidade se esta correr o risco de fortalecer o odiado inimigo. Os situacionistas tardios, nos- tálgico-dialéticos, parecem crer que o capital existe como entidade separada, como vontade abstrata ou como subjetividade maléfica que se nutre das energias que provêm da sociedade. Na realidade, o capital é a modalidade específica de valorização econômica das energias sociais e intelectuais, e impregna todo o sis- tema cognitivo, modelando sua percepção, seu comportamento. O que podemos propor não é abolir totalmente o capital (o que signifi- caria quase abolir uma função cognitiva, uma modalidade de semio- tização encarnada no cérebro da sociedade), mas mudar continua- mente seu equilíbrio, evitando sua estabilização, e assim impedir que se consolide uma forma de poder imóvel enquanto o conteúdo produtivo está em constante mutação.
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