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curso de extensão : cineclub luz , filosofia e ação : os ladroes de bicicleta (italia 1948)

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Anuário da Produção 
Acadêmica Docente 
Vol. II, Nº. 3, Ano 2008 
José de Moura Candelária Neto 
Faculdade Anhanguera de Taubaté 
zcand@uol.com.br 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
VITTORIO DE SICA E CHARLES CHAPLIN – UM 
DIÁLOGO HUMANISTA NO CINEMA 
 
RESUMO 
Este trabalho procura configurar um certo tipo de cinema comprometido 
com profundas inclinações poético-humanistas, diante do qual pareça possí-
vel uma aproximação entre dois cineastas tão distantes no tempo - e, sobre-
tudo, nas origens - quanto são Vittório De Sica e Charles Chaplin. Pretende, 
ainda, apoiar-se também no substrato de uma concepção de mundo huma-
nista, transformada em urdidura poética audiovisual, para encontrar, no 
corpo dos filmes de Vittório De Sica (em especial, “Ladrões de Bicicleta”), 
ecos da poética cinematográfica e da sensibilidade humanista de Charles 
Chaplin (especialmente nos filmes “Tempos Modernos” e “O Garoto” ) . 
Raras vezes conseguimos observar sensibilidades estéticas e éticas tão simi-
lares e, ao mesmo tempo, tão singulares quanto as desses dois cineastas. 
Nesse percurso de leitura intertextual, cinema, poesia e ética se encontram. 
Palavras-Chave: Cinema; poética; intertextualidade; humanismo; neo-
realismo. 
ABSTRACT 
This work aims set some kind of cinema committed to deep-humanist poetic 
inclinations, before which seems possible a rapprochement between two 
filmmakers so distant in time - and especially at the roots - as is Vittorio De 
Sica and Charles Chaplin. We also want to support the substrate is also a 
humanist conception of the world, transformed into poetic audiovisual warp 
to find in the body of the films of Vittorio De Sica (especially "Bicycle 
Thieves"), echoes of poetic cinema and the humanist sensibility of Charles 
Chaplin (especially in the films "Modern Times" and "The Kid"). Rarely have 
we seen as ethical and aesthetic sensibilities similar and at the same time, as 
natural as those of these two filmmakers. In this journey of intertextual. 
Keywords: Cinema; poetics; intertextuality; humanism; neo-realism.
Anhanguera Educacional S.A. 
Correspondência/Contato 
Alameda Maria Tereza, 2000 
Valinhos, São Paulo 
CEP 13.278-181 
rc.ipade@unianhanguera.edu.br 
Coordenação 
Instituto de Pesquisas Aplicadas e 
Desenvolvimento Educacional - IPADE 
Artigo Original 
Recebido em: 15/10/2008 
Avaliado em: 19/2/2009 
Publicação: 13 de março de 2009 
Vittorio De Sica e Charles Chaplin – um diálogo humanista no cinema 
Anuário da Produção Acadêmica Docente • Vol. II, Nº. 3, Ano 2008 • p. 297-307 
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1. O NEO-REALISMO DE DE SICA 
De início, gostaria de escrever um pouco a respeito de minhas impressões iniciais sobre 
a escritura poético-cinematográfica de Vittório De Sica. Essas impressões são o fruto de 
vivências advindas, de um lado, do encantamento propiciado pelo contato direto e in-
substituível com alguns dos filmes desse grande cineasta e, de outro, das reflexões sus-
citadas pela leitura de textos produzidos por teóricos e estudiosos do cinema italiano e, 
em especial, do movimento cinematográfico neo-realista. 
Se de início recorro a André Bazin para poder situar um pouco melhor Vittó-
rio De Sica dentro do rico panorama do cinema realizado na Itália durante (e princi-
palmente) as décadas de 40 e 50, é porque ele parece ter sido especialmente feliz na 
maneira como sua sensibilidade percebeu alguns dos aspectos essenciais relacionados 
à poética deste cineasta, em particular. 
Para ele, enquanto o cinema de Rosseilini podia ser configurado estilistica-
mente, como um “olhar”, o cinema de De Sica seria, antes de tudo, uma “sensibilidade” 
(BAZIN, 1991). 
Embora concedesse objetividade ao relato e ao contexto criado pelo cenário 
realista, a mis-en-scéne no cinema de De Sica foi capaz de transcender a mera exteriori-
dade realista, e seus personagens, embora pareçam presos a uma consciência desespe-
rada da incomunicabilidade. 
são o que são, porém iluminados do interior pela ternura que ele é capaz de lhes 
emprestar. Nele, a mis-en-scéne parece modelar-se por si só como a forma natural 
de uma matéria viva. (BAZIN, 1991). 
Antes de continuar, cabe aqui uma consideração especial sobretudo com rela-
ção à colaboração do roteirista Cesare Zavattini com Vittório De Sica. O binômio De Si-
ca – Zavattini é sem dúvida um dos mais (se não o mais) perfeito exemplo de simbiose 
entre um roteirista e um diretor na história do cinema. Não caberia aqui, portanto, pre-
tender analisar na obra de De Sica aquilo que pertenceria propriamente a De Sica e a-
quilo que viria de Zavattini, se não, apenas deixar anotada a importância deste extra-
ordinário artista na urdidura da poética cinematográfica de De Sica e nas configurações 
estéticas e estilísticas do cinema neo-realista italiano, já que este foi, sem dúvida, o seu 
maior colaborador. 
Para Bazin, 
é pela poesia que o realismo de De Sica ganha sentido, pois há em arte, no princí-
pio de todo realismo, um paradoxo estético a ser resolvido. A reprodução fiel da 
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realidade não é arte [...] o neo-realismo só conhece a imanência. E unicamente do 
aspecto, da pura aparência dos seres e do mundo que ele pretende, a posteriori, 
deduzir os ensinamentos neles contidos. Ele é uma fenomenologia. (BAZIN, 
1991). 
O cinema de De Sica foi capaz de questionar, a um só tempo, os meios de ex-
pressão já consagrados e cristalizados pelo cinema clássico e também as categorias tra-
dicionais do mero espetáculo cinernatográfico. 
Radicalmente subvertida, a estrutura do relato encontra no cinema de De Sica 
a vocação para respeitar a duração do evento. A decupagem e a montagem expressio-
nistas que contribuíram para criar o universo artificial e abstrato do cinema clássico de-
ram lugar a uma decupagem que não pretendia acrescentar nada a realidade subsisten-
te e a uma montagem que buscava um mínimo de cortes e efeitos. 
As elipses, que no cinema clássico eram indícios de estilemas peculiares, no 
cinema neo-realista passaram a ser simplesmente uma “lacuna da realidade, ou antes, 
do conhecimento que temos dela e que é por natureza limitado” [...] “o neo-realismo 
tornou-se uma posição ontológica antes de ser estética “. (BAZIN, 1991). 
De Sica pedia a seus intérpretes para “serem” antes de se “expressarem”, isso 
revela um pouco que medida eram articuladas esses conceitos. Esse humanismo de 
Zavattini e De Sica fundou, por assim dizer, uma “ética da solidariedade” que acabou 
por gerar uma poética cinematográfica concentrada nos interesses do humano e do so-
cial, comprometida com um processo de crítica ao universo artificial criado pelo cine-
ma dominante e comprometido com a produção industrial e o mero espetáculo. 
O cinema de De Sica é fundado na resistência ao espetáculo, na representação 
dos fatos mais corriqueiros do cotidiano, é um cinema que ama as ruas e os espaços a-
bertos e que se sente preso e asfixiado dentro dos estúdios. 
Cinema denúncia, ele se presta certamente a uma crítica aos valores do cinema 
burguês, já que não pretende extrair espetáculos e ficções da realidade para transfor-
má-la em simples material para entretenimento. Ao contrário, sua prática se funda na 
compreensão da importância histórica da observação da realidade como forma de to-
mada de consciência da condição humana, plasmada ela mesma, aí sim, em material 
cinematográfico capaz de emanar autenticidade. 
Um cinema que pretende debruçar-se mais sobre a vida mesma do que sobre a 
imaginação sobre a vida, e com isso é capaz de reduzir, por assim dizer, o espaço que 
separa a coisa em si de sua representação. 
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De Sica conseguiu dar crédito a realidade. Soube partir do gesto banal e corri-
queiropara perseguir – através de um olhar profundamente humanista – a significação 
essencial das pequenas coisas. São estes pequenos gestos e fatos banais que no cinema 
de De Sica contém os germes da realidade mais profunda: o detalhe, o instante, adqui-
rem para ele dimensões capazes de nos dizer mais sobre a vida do homem e da socie-
dade do que a grandiloqüência desmedida e artificial do cinema de mero entreteni-
mento. 
O que está implícito na crítica ao artifício e à fantasia, neste debruçar-se sobre a 
realidade, é a idéia da produção de um discurso que se apresenta como ‘filtragem 
do real’ (uso aqui uma expressão de André Bazin) [...] A expressão ‘filtragem do 
real’ corresponde a tal operação paciente da consciência que se ‘deixa atravessar’ 
exaustivamente pelos dados que compõem uma situação singular, de modo a que 
um pedaço integral de realidade nela se deposita, tal como a imagem fotográfica, 
é o resultado de um “depósito” do mundo visível da película. Bazin é bem explí-
cito nesta metáfora: ele insiste em que a fotografia mantém a integridade do real 
recortado; ela não decompõe tal recorte nem o reconstrói, ela o capta em bloco. O 
olhar neo-realista seria a realização deste modelo baziniano no nível da captação 
da essência da realidade. (XAVIER, 1984). 
Desse modo, a crítica feita à decupagem clássica deu-se em função da sua vo-
cação para a criação de um universo falso, artificial e abstrato e ao caráter implicitante 
manipulatório que ela exerceu sobre a realidade, destruindo, por assim dizer, a possibi-
lidade de revelar aquilo que é mais essencial ao cinema neo-realista: a essência da rea-
lidade, a coisa em si. 
De acordo com o modelo de filtragem vimos portanto que o observador expõe-se 
exaustivamente à incidência do fluxo de realidade diante de si, de tal modo que 
sua consciência fica “embebida” de tal realidade numa forma depurada. Com o 
poder revelatório conferido a cada situação singular, em particular a cada ima-
gem-depósito, o uso da montagem torna-se não essencial e até perturbador. 
(XAVIER, 1984). 
O cinema de De Sica pareceu, então, profundamente modelar aos olhos de Ba-
zin, naquilo que o crítico francês considerava mais significativo no que se refere à pra-
tica cinematográfica. O “modelo” ideal para André Bazin deveria ser um tipo de cine-
ma que fosse capaz de a um só tempo: progredir rumo a um estilo narrativo cada vez 
mais realista; utilizar a banda som para ampliar a noção deste mesmo realismo; com-
por uma narrativa cinematográfica que fosse capaz de aproximar-se do estilo romanes-
co “objetivo” e “de reportagem”; minimizar ao máximo a utilização dos efeitos da 
montagem; buscar um cinema da continuidade (desenvolvimento continuo da imagem 
sem cortes) e superar a decupagem clássica (cheia de planos e cortes “artificiais”). 
A poética cinematográfica de De Sica estava, sem dúvida, comprometida com 
todas estas propostas estéticas de maneira visceral. Bazin ainda vai descobrir no cine-
ma de De Sica outras características que considera fundamentais para a produção da-
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quilo que ele enxergava como estilemas do cinema moderno. Entre elas, talvez a prin-
cipal tenha sido a utilização do plano-seqüência aliado à profundidade de campo. 
Para Bazin, e certamente para De Sica, a utilização do plano-seqüência aliado à 
profundidade de campo era capaz de restituir um grau maior de realidade à imagem 
cinematográfica. 
Bazin vai apontar, primeiro, a evolução técnica dos aparelhos e da película sensí-
vel, graças aos quais a filmagem tornou-se mais fácil e, graças aos quais tornou-se 
possível o recurso da profundidade de campo. Ele vai dizer que temos aí um e-
xemplo de como a técnica tem seus reflexos nítidos no nível da linguagem. Em 
segundo lugar ele vai apontar a preferência do cinema moderno pelo uso de mo-
vimento de câmera e pela exploração da profundidade de campo, de modo a 
substituir os freqüentes cortes do cinema clássico pelo fluxo contínuo de imagens. 
Ele procura citar situações onde a multiplicidade de planos e a montagem do mé-
todo clássico estariam sendo substituídos pelo uso de um único plano longo. Será 
este longo plano que receberá a denominação de palno-seqüência. Nome inspira-
do no fato de que, dentro da segmentação seqüência/cena/plano, o alongamento 
deste último estaria produzindo modificações qualitativas na organização do fil-
me, de modo a que um único plano passe a cumprir a função dramática da se-
qüência do esquema clássico... 
A decupagem clássica seria um processo analítico artificial, de decomposição da 
realidade em fragmentos irreais e reconstituição dos pedaços que montam um 
todo expressivo, mas abstrato, consistente logicamente (como um discurso,), mas 
sem o peso de realidade adquirido pela adoção do plano-seqüência. No novo ci-
nema, no verdadeiro cinema realista, a montagem continua a existir, mas apenas 
como um resíduo: seu papel é puramente negativo, de eliminação inevitável nu-
ma realidade abundante demais. Ou seja, a montagem não institui nenhuma sig-
nificação, nenhuma relação essencial. O plano-seqüência, as relações contidas si-
multaneamente numa mesma imagem os movimentos de câmera e a exploração 
de um espaço que se abre continuamente revelam o essencial. No limite, como 
realização máxima da ‘janela cinematográfica’, o modelo baziniano e o filme-ideal 
de Zavattini tem encontro marcado. (XAVIER, 1984). 
Bazin conclui que o uso da profundidade de campo associada ao plano-
seqüência acaba por colocar o espectador numa relação de maior intimidade com a i-
magem, convidando-o a uma participação mais ativa na hora de atribuir sentido as i-
magens, já que a decupagem e a montagem neo-realistas não condicionam um sentido 
unívuoco para a imagem, e cita “Ladrões de Bicicleta” e “Umberto D” de Vittório De 
Sica como exemplos modelares deste tipo de cinema. 
Mas, para além das características gerais que tornam a obra de De Sica uma 
obra exemplar e que traz consigo as marcas fundamentais do movimento neo-realista 
italiano (elementos históricos e temporais; elementos reais e documentários; elementos 
técnicos e de produção; o elemento coral e o elemento crítico, entre outros), Bazin reco-
nhece em De Sica um elemento particular forte o suficiente para diferenciá-lo de ma-
neira muito especial dos outros realizadores neo-realistas: a intensidade poética da 
“presença humana”. 
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E é sobretudo com base nesse humanismo detectado por Bazin e tornado poé-
tica cinematográfica por De Sica que passamos a tecer alguns comentários sobre o seu 
cinema, no sentido de sugerir alguns pontos de aproximação entre o seu universo e al-
guns pontos do universo poético-cinematográfico urdido pelo cineasta Charles Cha-
plin. 
2. VITTORIO DE SICA E CHARLES CHAPLIN – UM DIÁLOGO HUMANISTA NO 
CINEMA 
 Antes de retomar a análise da obra de De Sica, e em especial “Ladrões de Bicicleta”, 
gostaria de tecer alguns comentários sobre a poética cinematográfica de Charles Cha-
plin, principalmente no que diz respeito ao viés humanista que anima sua obra, e que a 
coloca, desse modo, a meu ver, muito próxima da obra de De Sica. De início recorro à 
algumas considerações tecidas por Glauber Rocha com relação à obra de Chaplin e que 
vão ao encontro daquilo que pretendo discutir: 
Chaplin é imigrante aventureiro, marginal, operário e usa máscaras populares 
reprimidas para desmascarar o carnaval capitalista... Chaplin conta a dialética 
histórica de um proletariemigranteuropeu que pratica, através do cinema, a revo-
lução humanista do povo.O Estado Capitalista é a Babilônia para Ciro/Chaplin: 
Presidentes, Ministros, Senadores, Juízes, Deputados, Padres, Pastores, Exército, 
Polícia, Burocratas, Comerciantes, Empresários,Indústrias, Proletários e Margi-
nais alienados são atacados por Charlot, que enfrenta as armas da violência física 
com a violência do humorismo psicopolítico. O cinema de Chaplin, mais rico de 
expressividade que as velhas artes e que o cinema teatral/romanesco de Griffith, 
é feito do ponto de vista do oprimido. O Homem e o artista Chaplin permanece-
ram impassíveis, amando, sobretudo os valores da humanidade... É o mesmo 
convicto inimigo da técnica que procura na poesia o alívio para as dores recebi-
das da máquina. 
Sua atitude de cineasta – negando até onde pode o cinema de som, cor e telas gi-
gantes – ou sua atitude política – mostrando em Tempos Modernos a máquina 
destruindo o homem – são provas de fidelidade à imagem pura, à força expres-
sional do cinema adulterada e também do horror do capitalismo sem alma. Em 
Chaplin são condicionados valores eternos; por isso nega o originalismo, a mas-
turbação artística e pseudoinovadores de uma Arte que só nele se realiza como 
expressão de vida e que só em novos gênios encontra continuação... 
A linguagem humorística de Chaplin contribuiu para despertar a consciência re-
volucionária? Á questão não se esgota na palavra científica que tenta aprisionar a 
metáfora poética num laboratório de probabilidades: Chaplin ilumina o Século 
XX porque nele o povo se faz imagem. (ROCHA, 1983). 
 
Glauber Rocha, um de nossos maiores cineastas, dotado de uma extrema sen-
sibilidade, foi capaz em poucas linhas de ir direto ao ponto que me parece mais rele-
vante para essa discussão. Sua intuição artística e sua visão quase metafísica do cinema 
foram capazes de revelar-lhe – e a nós também – aquilo que, para além da técnica ci-
nematográfica, é mais fundamental na obra de Chaplin: a dimensão da presença da fi-
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gura humana. Pois é essa presença do humano na obra de Chaplin, e a capacidade que 
ele teve de infundir à um só tempo dignidade e poesia à esta figura (quase sempre fi-
guras do povo mais simples) que permitiu aproximar o seu cinema humanista do ci-
nema de De Sica. 
Muito embora até possam existir algumas características estilísticas e técnicas 
que possibilitassem uma tentativa de aproximação entre a poética cinematográfica de 
Chaplin e a poética do neo-realismo ( decupagem que privilegiava os planos gerais, au-
sência de efeitos expressionistas na montagem, longos planos-seqüência – onde ações 
completas se realizavam na íntegra e sem cortes a cada tomada e relativa profundidade 
de campo), não é sob essa ótica que me parece mais adequado aproximar Chaplin de 
De Sica. O objeto mais rico, e que parece ser o material capaz de animar ambos em suas 
realizações é notadamente a presença da figura humana em toda a sua dimensão e po-
esia. 
A propósito dessa presença da figura humana, voltamos a Bazin quando ele 
chega a usar a palavra Ternura para definir a postura de De Sica frente as suas perso-
nagens, e chega a afirmar que “é pela poesia que o realismo de De Sica ganha seu sen-
tido “. (BAZIN, 1991). Segundo Bazin, “para definir De Sica é preciso, portanto, remon-
tar à própria origem de sua arte, que é a ternura e o amor”. (BAZIN, 1991). 
Ele nota que para além das divergências aparentes entre seus filmes, subsiste a 
elas uma afeição inesgotável que o autor tem por seus personagens, e que torna mesmo 
as personagens mais negativas (do ponto de vista ético e moral) ainda assim dignas de 
compreensão e dotadas de uma indiscutível humanidade. 
A ternura em De Sica tem uma qualidade bem particular, e por isso dificilmente 
se presta a qualquer generalização moral, religiosa ou política. As ambigüidades 
de Milagre em Milão e de Ladrões de Bicicleta foram amplamente utilizadas pe-
los democrata-cristãos ou pelos comunistas. Não ousarei afirmar que a gentileza 
de De Sica tem mais valor ‘em si’ que a terceira virtude teologal ou que a consci-
ência de classe, mas vejo na modéstia de sua posição uma vantagem artística ób-
via. Ela garante sua autenticidade e, ao mesmo tempo, lhe assegura sua universa-
lidade.Tal inclinação ao amor é menos uma questão de moral que de tempera-
mento pessoal e ético. Uma disposição bem sucedida natural que se desenvolveu 
num clima napolitano; eis o que concerne à autenticidade. Mas essas raízes psico-
lógicas estão mais profundamente interessadas que as camadas de nossa consci-
ência cultivadas pelas ideologias partidárias. Paradoxalmente, e devido à quali-
dade singular, ao sabor inimitável delas, já que não foram catalogadas nos herbá-
rios dos moralistas e dos políticos, elas escapam à censura deles, e a gentileza na-
politana de De Sica tornar-se, graças ao cinema, a mais vasta mensagem de amor 
que o nosso tempo teve a sorte de ouvir desde a de Chaplin. (BAZIN, 1991). 
Esta mensagem de amor deixada por Chaplin e herdada por De Sica é no en-
tender de Bazin a essência da arte cinematográfica: 
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Observemos, de passagem, o que o cinema deve ao amor das criaturas. Não con-
seguiríamos compreender inteiramente a arte de um Renoir, de um Vigo e sobre-
tudo de um Chaplin se não procurássemos antes de quê variedade particular de 
ternura, de quê afeição sensual ou sentimental seus filmes são o espelho. Acredito 
que, mais do que qualquer outra arte, o cinema é a ar/e própria ao amor... Nin-
guém além de De Sica hoje pode pretender a herança de Chaplin. (BAZIN, 1991). 
Essa herança Chapliniana parece deixar rastros por toda a obra de De Sica, 
configurando-se das maneiras mais variadas. Ao perseguir esses rastros somos levados 
a pensar em dois filmes em particular, cada qual, fundamental dentro da obra de seus 
respectivos realizadores: “Tempos Modernos” de Charles Chaplin, e “Ladrões de Bici-
cleta” de Vittório De Sica. 
Se no filme de Chaplin sua personagem do vagabundo vê-se isolado e desu-
manizado frente à engrenagem das máquinas, o mesmo ocorre com Ricci o pai desem-
pregado frente às engrenagens de um sistema capaz de aliená-lo do trabalho e até de 
seus valores mais profundos. 
A presença da criança na obra de De Sica é fundamental para a criação da 
mensagem do seu universo. A ligação entre Ricci e seu filho Bruno é de uma ternura 
somente igualável àquela estabelecida entre o vagabundo Carlitos e o menino abando-
nado de “O Garoto”. Pois é a presença da criança, que sobretudo em “Ladrões de Bici-
cleta”, dá uma dimensão ética à aventura do adulto. 
Uma das características mais impressionantes na mis-en-scéne de “Ladrões de 
Bicicleta” é a força silenciosa do olhar do menino Bruno. É através de seu olhar, ao 
mesmo tempo ingênuo e inquiridor, que flagramos o dilema ético de Ricci (o pai). O 
olhar constante e insistente do filho durante toda a estória coloca sob tensão o pai de-
sempregado, que não consegue roubar a bicicleta, senão, distante do olhar do filho. O 
olhar da criança condiciona todo o comportamento do adulto durante todo o filme, é 
ele que faz com que o filme se desenrole não apenas como um drama social, mas tam-
bém adquira sua dimensão moral e ética. 
Como nos filmes de Chaplin, a matéria sobre a qual se constrói a estória de 
“Ladrões de Bicicleta” não é um acontecimento extraordinário e impressionante, e sim 
um acontecimento banal e cotidiano: um operário passa um dia inteiro procurando a 
bicicleta que lhe fora roubada. Se não encontrar a bicicleta ele, com certeza, perderá o 
emprego. À noite, já desesperado ele tenta roubar outra bicicleta e é pego. Depois de 
solto, ele volta para casa (acompanhado pelo filho), ainda pobre e também humilhado 
por ter também roubado uma bicicleta. 
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Em “Tempos Modernos” a personagem de Carlitos inicia sua açõescumprin-
do o que parece ser apenas mais um dia de trabalho na fábrica. O filme começa como 
sendo “a história da indústria, da empresa individual, da humanidade em busca da fe-
licidade”. 
Mais tarde, já desempregado Carlitos sai do hospício e vaga pelas ruas, onde 
acaba sendo preso como um líder comunista. Depois acaba salvando a pequena ladra, 
com quem acaba o filme de mãos dadas andando pela estrada, tão pobre como começa-
ra, porém com a esperança renovada. 
De volta à “Ladrões de Bicicleta”, o filme de De Sica ainda apresenta outras 
configurações dignas de nota: A marca da bicicleta roubada é “Fides”, talvez aqui uma 
alusão a perda da “fé”, e a necessidade absoluta de readquiri-la, dentro daquele uni-
verso. De Sica ainda nos apresenta outras situações interessantes, como o fato de que 
na hora em que a bicicleta de Ricci foi roubada, este se encontrava colocando um cartaz 
que anunciava a exibição de um filme americano, talvez numa referência direta à pesa-
da invasão do cinema estrangeiro (em especial americano) na Itália. 
O mesmo descrédito com que as instituições são apresentadas nos filmes de 
Chaplin parece configurar-se também em “Ladrões de Bicicleta”, pois Ricci vai desistir 
de pedir ajuda às instituições (indiferentes e burocráticas) para ir aos subterrâneos em 
busca de auxílio para achar sua bicicleta. 
Pai e filho ao saírem da sessão com a vidente sentam-se na calçada numa cita-
ção inquestionável à “O Garoto” de Chaplin, e a cena do restaurante onde o menino 
Bruno brinca com a mussarela do sanduíche (esticando-a) para se vingar do menino ri-
co é de uma poesia eminentemente chapliniana. 
Henri Agel, em seu livro Vittório De Sica, escreve um pouco sobre esse parale-
lo entre o cineasta italiano e Chaplin: 
Un certain nombre de critiques ont toutefois estimé qu’un moment du film 
abolissait toute desesperance impliquée dans les dixiémes de l’oeuvre. Paolo 
Jacchia résume cette opinion dans les lignes qu’il consacre à l‘avant - dernier 
épsode du film. Apres avoir signalé le vide glacial et terrible dans lequel le 
monde moderne isole I’ individu, il opppose la destinée de Charlot et celle de 
Ricci. 
Les héros des “Temps Modernes”, dit le critique italien, n‘a rencontré personne 
quie pût lui faire prendre conscience de la solidarité de classe. Au contraire, le 
geste final de I’homme – un ouvrier Lui Aussi tout comme I’infortune voleur – 
Qui laisse partir Ricci esta la consécration de cette solidarité et pourra susciter 
chez le protaganiste une prise de conscience”. (AGEL, 1955). 
 
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3. CONSIDERAÇÕES FINAIS 
 As ligações entre o universo destes dois grandes cineastas ainda pode e deve ser mais 
minuciosamente exploradas em várias outras implicações éticas e estéticas, porém o 
que me parece claro é a maneira como a figura humana é capaz de emergir da obra 
destes criadores de maneira tão poética e tão sublime. Poucas vezes o homem do povo 
foi apresentado com tamanha grandeza e humanidade na história da arte e do cinema, 
como nos filmes de Charles Chaplin e Vittório De Sica. 
Finalizo este trabalho transcrevendo algumas linhas escritas por André Bazin 
à respeito de “Ladrões de Bicicleta”, e que demonstram a maneira pela qual a sua sen-
sibilidade percebeu as profundas relações entre a obra de Chaplin e De Sica: 
A cumplicidade que se estabelece entre o pai e o filho é de uma sutileza que pe-
netra até as raízes da vida moral. E a admiração que a criança com o tal tem pelo 
pai e a consciência que este tem dela, que conferem no final do filme sua grande-
za trágica. Á vergonha social do operário desmascarado e esbofeteado em plena 
rua não é nada perto daquela de ter tido seu filho por testemunha. Quando tem a 
tentação de roubar a bicicleta a presença silenciosa do menino que advinha o 
pensamento de seu pai é de uma crueldade obscena. 
Se ele tenta se livrar dele mandando-o tomar o bonde, é como se diz a uma crian-
ça, em apartamentos pequenos demais, para ir esperar uma hora no corredor. E 
preciso remontar aos melhores filmes de Carlitos para encontrar situações de 
uma profundidade mais comovente em sua concisão. Á esse respeito, o gesto fi-
nal da criança, que dá novamente a mão ao pai, foi freqüentemente mal interpre-
tado. Seria indigno por parte do filme ver nisso como concessão à sensibilidade 
do público. Se De Sica oferece tal satisfação aos espectadores, é porque faz parte 
da lógica do drama. A aventura mascara uma etapa decisiva nas relações entre o 
pai e o filho, algo como a puberdade. O homem até então era um deus para seu 
filho; as relações deles estavam sob o signo da admiração. Elas foram comprome-
tidas pelo gesto do pai. As lágrimas que eles derramam enquanto caminham lado 
a lado, os braços pendentes são o desespero de um paraíso perdido. A criança, 
porém retorna ao pai através de sua degradação, agora ela o amará como um 
homem, com sua vergonha. 
A mão que escorrega na sua mão não é nem o sinal de um perdão, nem de um 
consolo pueril, e sim gesto mais grave que possa marcar as relações de um pai e 
de seu filho: o gesto que os torna iguais. (BAZIN, 1991). 
REFERÊNCIAS 
AGEL, Henri. Vittório De Sica. Paris: Éditions Universitaires, 1955. 
BAZIN, André. Charles Chaplin. São Paulo: Impressão, 1989. 
______. O cinema – ensaios. São Paulo: Brasiliense, 1991. 
FABRIS, Mariaosaria. O neo-realismo cinematográfico italiano: uma leitura. São Paulo: Edesp-
FAPESP, 1996. 
ROCHA, Glauber. O século do cinema. Rio de Janeiro: Alhambra, 1983. 
XAVIER, Ismail. O discurso cinematográfico (opacidade e a transparência). São Paulo: Paz e 
Terra, 1984. 
José de Moura Candelária Neto 
Anuário da Produção Acadêmica Docente • Vol. II, Nº. 3, Ano 2008 • p. 297-307 
307 
José de Moura Candelária Neto 
Mestre em Ciências da Comunicação (Comuni-
cação e Estética do Audiovisual) pela Escola de 
Comunicações e Artes da Universidade de São 
Paulo ECA-USP. Professor universitário desde 
1998. Videomaker, roteirista e artista plástico. 
Docente do Departamento de Comunicação 
Social na Faculdade Anhanguera de Taubaté.

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