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Sílvio Gallo Gabriele Cornelli Márcio Danelon (organizadores) Yol. VII Sílvio Gallo Gabriele Cornelli Márcio Danelon (organizadores) FILOSOFIA DO ENSINO DE FILOSOFIA EDITORA ▼ VOZES Petrópolis 2 0 0 3 C o l e ç ã o F il o s o f i a n a E s c o l a Coordenadores: Walter Omar Kohan e Ana Míriam Wuensch - Filosofia para crianças - A tentativa pioneira de Matthew Lipman Walter Omar Kohan e Ana Míriam Wuensch (orgs.) - Filosofia para crianças na prática escolar Walter Omar Kohan e Vera Waksman (orgs.) - Filosofia e infância - Possibilidades de um encontro Walter Omar Kohan e David Kennedy (orgs.) - Filosofia para crianças em debate Walter Omar Kohan e Bernardina Leal (orgs.) -Filosofia na escola pública Walter Omar Kohan, Bernardina Leal e Álvaro Ribeiro (orgs.) ~ Filosofia no ensino médio Walter Omar Kohan e Sílvio Gallo (orgs.) - Filosofia do ensino de filosofia Sílvio Gallo, Gabriele Cornelli e Márcio Danelon (orgs.) Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) F i lo s o f ia d o e n s in o d e f i lo s o f ia / S í lv io G a l lo , G a b r ie le C o r n e ll i , M á r c io D a n e lo n ( o r g a n iz a d o r e s ) V o z e s , 2 0 0 3 . - P e t r ó p o l is , R J : I S B N 8 5 . 3 2 6 . 2 8 3 0 - 3 V á r io s a u to r e s . 1 . F i l o s o f i a - E s tu d o e e n s in o I . G a l lo , S í lv io . I I . C o r n e l l i , G a b r ie l le . U I. D a n e lo n , M á r c io . 0 2 - 6 8 3 7 C D D - 1 0 7 índices para catálogo sistemático: 1. Filosofia : Estudo e ensino 107 SUMÁRIO Apresentação (Gabriele Cornelli), 9 PARTE I - A FILOSOFIA QUE COMEÇA 1. A filosofia que começa: desafios para o ensino da filosofia no próximo milênio (Stéphane Douaillier), 17 PARTE II - FILOSOFIA DO ENSINO DE FILOSOFIA 2. O ensino da filosofia frente à educação como formação (Walter Ornar Kohan), 33 3. O ensino da filosofia: hisloricidade do conhecimento e construtividade da aprendizagem (Antônio J. Severino), 50 4. Ensino da filosofia e filosofia do ensino filosófico (Alejandro A. Cerletti), 61 5. Ética e cidadania no ensino da filosofia (Sílvio Gallo), 70 6. Filosofia do ensino de filosofia (Mauricio Langón), 90 7. Adorno, Rorty e o ensino de filosofia (ou o professor de filosofia e o grande filósofo: diferenças e similitudes) (Paulo Ghiraldelli Jr.), 101 PARTE III - PRÁTICAS DO ENSINO DE FILOSOFIA 8. O ensino de filosofia na Argentina: apresentação, problemas é perspectivas (Guillermo A. Obiols), 115 9. O ensino de filosofia na Itália (Enzo Ruffaldi), 134 10. A filosofia, a universidade e suas possibilidades: em torno da política e do mercado (Danilo di Manno de Almeida), 151 11. O ensino de filosofia e a formação de professores (Junot Cornélio Matos), 174 Anexo: Carta de Piracicaba, 189 APRESENTAÇÃO A filosofia não é um templo - dizia Canguilhem - mas um canteiro de obras. As próximas páginas nascem como ferramentas de um can teiro específico, do qual resta obviamente apenas um simples ensaio: o I Congresso Brasileiro de Professores de Filosofia, que aconteceu em Piracicaba, interior de São Paulo, de 5 a 8 de novembro de 2000, na Universidade Metodista de Piracicaba. Mesas-redondas, sessões especiais, comunicações, posters e as sempre importantes conversas “de corredor e de boteco” contribuíram para fazer do Congresso um momento funda mental para a construção não ainda de uma associação nacio nal de professores (mas disso também se falou), nem tanto de um espaço de articulação de estratégias e políticas ligadas ao ensino de filosofia no Brasil (mesmo que isso também se pro curasse), mas de um verdadeiro canteiro, cujos materiais e fer ramentas eram trazidos de vários lugares e ali compartilhados no intento de construir não tanto uma casa, nem um teto, para os professores de filosofia, mas um espaço de movimento, um momento de reflexão. Assim, com os objetivos de explorar, filosoficamente, a di dática do ensino de filosofia em seus vários níveis, gerar espa ços para troca de experiências entre professores atuantes em todo o país e explorar novas possibilidades teóricas e metodo lógicas para pensar e praticar o ensino de filosofia, o Congres so discutiu os impasses e desafios da filosofia no sistema de en sino brasileiro contemporâneo, tentou consolidar um espaço de intervenção sobre o ensino de filosofia para professores atuantes em todo o país, chegando também a pensar os atuais espaços públicos da filosofia no Brasil. 9 Deste canteiro restam boas discussões, muitos contatos, projetos de colaboração para o futuro e - para todos - esta pu blicação, que quer se apresentar como uma caixa de ferramen tas do pensar o ensino de filosofia hoje. Os textos, todos apresentados e discutidos no Congresso de Piracicaba, têm a diversidade como definição mais própria, tanto do ponto de vista da proveniência geográfica (França, Itália, Argentina, Uruguai e vários estados do Brasil), como - e talvez mais precisamente - do ponto de vista a partir do qual as questões relativas ao ensino da filosofia são abordadas. Des ta forma, tradições filosófico-pedagógicas, experiências insti tucionais, profissionais e existenciais, “histórias” e “presen tes” da filosofia entre a legislação educativa e as mais diversas salas de aula (incluindo aquelas sem lousas e carteiras...) se en contram para formar uma linguagem complexa e irredutível a uma indesejável homogeneidade. A uma leitura atenta não foge, porém, um ponto de con vergência na diversidade acima indicada, que surge na singula- rização de um campo de discussão que, pensando a filosofia como ensino, revela a necessidade da reflexão sobre sua função política, seu significado enquanto instrumento de formação de homens e mulheres cidadãos. Este campo que podemos resumir nas interseções da tría de filosofia-ensino-política, que encontraremos como pano de fundo conceituai em praticamente todas as contribuições a se guir, permite assim reconhecer à reflexão sobre o ensino da fi losofia não somente um passaporte, ou uma “carteira de iden tidade” filosófica no interior da Filosofia (aquela dos grandes clássicos), mas - ao mesmo tempo - a definição de um outro lugar hermenêutico, um ponto de vista próprio, a partir do qual pensar a mesma filosofia. Isto é, após reafirmar mais uma vez que refletir sobre o en sino de filosofia é também ofício da filosofia, no lugar de uma simples reivindicação de um espaço dentro da filosofia para pensar o seu ensino, o canteiro de Piracicaba parece elaborar uma nova compreensão deste mesmo espaço. Assim o ensino 10 de filosofia adquire, nestas páginas, a conotação de um lugar muito particular e significativo a partir do qual pensar a pró pria Filosofia, toda ela, mesmo - ou talvez, sobretudo - aquela com F maiusculo. Este livro divide-se, assim, em três partes. A primeira, ao modo de uma introdução, é dedicada ex clusivamente ao sugestivo texto de Stéphane Douaillier: A fi losofia que começa. Aqui o autor, a partir da proposição, no Fédon de Platão, de uma contradição entre dois modelos ori ginários de ensino de filosofia (o socrático e o pitagórico), evi dencia dificuldades de identificação da filosofia e de sua dis tinção dos outros saberes quando pensada simplesmente como atividade de “pensar por si mesmos”. O ensino de filo sofia encontra sua especificidade quando é pensado, pelo au tor, com “poder de começo”, segundo nascimento, prática de contínua refração a partir dos clássicos, guiada por um profes sor de filosofia que deve ser sempre mestre de ignorância, e por isso mestre de começar. A segunda e a terceira partes do livro organizam as discus sões a partir de dois eixos fundamentais: de um lado, a discus são teórica da Filosofia do ensino de filosofia , e do outro lado, a partilha de reflexões e experiências de Práticas do ensino de filosofia. Na segunda parte {Filosofia do ensino de filosofia),Walter Omar Kohan (O ensino da filosofia frente à educação com o form ação) começa se perguntando “para que filosofia?” e aca ba notando que a filosofia foi e continua em grande parte a serviço de uma paidéia formativa e fabricadora de modelos de pessoas humanas. A partir da inspiração socrática, o autor propõe a necessidade de uma prática pedagógica da filosofia que abandone a lógica educacional formativa, restando aberta à soberania única da pergunta. Antônio J. Severino (O ensino da filosofia: historicidade do conhecimento e construtividade da aprendizagem) procura na dupla dimensão, política e peda gógica, do pensar filosófico, a definição do filósofo como edu cador da cidade. Reafirmando a validade, portanto, da univer 11 salização da filosofia, o autor reafirma a mediação estratégica, para o ensino da filosofia, da historicidade do conhecimento humano, mas longe do risco de idealizações historicistas. Ále- jandroA. Cerletti {Ensino da filosofia e filosofia do ensino filo sófico), refletindo a partir de alguns problemas ligados à for mação dos professores de filosofia, anota uma mudança que vem acontecendo neste âmbito, no sentido de uma compreen são de ensino de filosofia não tanto com ensino de “algo”, mas como “ensinar a filosofar”, isto é, como construção de um olhar problematizador. Desta perspectiva deriva, segundo o autor, a necessidade da priorização das didáticas específicas, sendo as experiências realizadas no interior destas últimas a base sobre a qual construir uma eventual generalização didáti ca. Sílvio Gallo {Ética e cidadania no ensino da filosofia) per- gunta-se de que ética e de que cidadania se fala nas políticas educacionais latino-americanas. A partir da análise dos funda mentos filosóficos que sustentam a compreensão dos termos, o autor questiona o caráter formativo de toda e qualquer filo sofia, e, portanto, de toda e qualquer forma de ensinar filoso fia, encontrando na educação para a singularidade e numa fi losofia da imanência os caminhos de uma educação possível à ética e cidadania. Maurício Langón {Filosofia do ensino de fi losofia) constrói a reflexão “de volta” da filosofia do ensino de filosofia partindo da constatação de que, a bem ver, a questão não é de ensino, mas de aprendizagem. Desta forma, a própria questão didática muda seu sentido, por não se tratar de uma memorização de um conteúdo, mas da aquisição de capacida des necessárias para o desenvolvimento de uma certa ativida de: a do filosofar. Indicando algumas destas atividades pró prias do filosofar, o autor define a didática do filosofar não como um modo da didática, mas como um modo específico do filosofar. Enfim, Paulo Ghiraldelli Jr. {Adorno, Rorty e o en sino de filosofia [ou o professor de filosofia e o grande filósofo: diferenças e similitudes]), partindo da tese de que existe uma diferença entre filósofo e professor de filosofia, busca, através da leitura de Adorno e Rorty, identificá-la na possibilidade (e oportunidade) que o primeiro teria de cometer erros, ao con trário do segundo. 12 Na terceira parte (Práticas do ensino de filosofia), Guiller- m o A. Obiols (O ensino de filosofia na Argentina), após um breve percurso histórico relativo do ensino de filosofia na Argentina até a recente reforma educativa, propõe alguns mo delos metodológicos de ensino de filosofia para o segundo grau, mantendo como referencial fudamental os dois rostos que a filosofia deveria mostrar, quando ensinada: o informati vo e o formativo, isto é, a filosofia e o filosofar. Enzo Ruffaldi (O ensino de filosofia na Itália) destaca a abordagem marcada- mente histórica da tradição italiana no que diz respeito ao en sino de filosofia. Recentes propostas de mudanças no sistema escolar fizeram surgir o desafio de uma redefinição radical de conteúdos e métodos, com um destaque de especial interesse para dois modelos de organização do trabalho na sala de aula: a sala como laboratório e a classe como comunidade de pes quisa. Danilo diM anno de Almeida {A filosofia, a imiversidade e suas possibilidades: em torno da política e do mercado) reco nhece que historicamente a filosofia achou sua casa na Univer sidade. O autor, a partir da leitura crítica de Schopenhauer e Nietzsche e de uma específica experiência institucional, discu te os riscos, implícitos nesta moradia, de redução de sua capa cidade crítica e de encantamento com si mesma e com as re gras acadêmicas ou do mercado. Junot Cornélio Matos (O en sino de filosofia e a form ação de professores) propõe as ques tões da relação entre filosofia e educação a partir de uma leitu ra comparativa dos filósofos brasileiros que se dedicaram à discussão desta questão. De maneira especial o autor discute o estilo específico do filosofar brasileiro e a formação dos pro fessores de filosofia nos cursos de graduação. Enfim, como anexo, o leitor encontrará no fim destas pá ginas a Carta de Piracicaba, documento produzido pelo Con gresso no sentido de uma afirmação de um anseio a favor da inserção da filosofia nos currículos escolares. Além destas e muitas outras palavras que marcaram o Con gresso, restaram indicativos de continuidade e vários projetos concretos, como os de organizar fóruns de professores de filo sofia em nível regional, da oportunidade de realizar em breve 13 um II Congresso Brasileiro de Professores de Filosofia, de redo brar o esforço para a realização de novas publicações nesta área, de criar linhas de pesquisa específicas sobre o ensino de fi losofia em nível de pós-graduação. Entre todos esses, o projeto que mais teve destaque foi o da criação, através de uma série de reuniões de articulação regional e nacional, de um Conselho Deliberativo Nacional, com representações dos estados presen tes no encontro e aberto a novas indicações vindas de estados que não tiveram representação no Congresso, além de um Co mitê Executivo, formado por um representante de cada grande região do país. Ambos com objetivo de debater as questões liga das à articulação dos professores de filosofia visando a operacio- nalização de algum tipo de entidade nacional. Mais além destas palavras e dos projetos, o Congresso e a presente publicação querem ser testemunho de uma vontade, de um desejo forte, apesar de tudo, de continuar apostando na filosofia como momento significativo para formação do indi víduo em experiência escolar. O Congresso e esta publicação não teriam sido possíveis sem o apoio do Conselho Nacional de Desenvolvimento Ci entífico e Tecnológico (CNPq), da Fundação de Amparo à Pes quisa do Estado de São Paulo (Fapesp), da Universidade Meto dista de Piracicaba (Unimep) e da Editora Vozes. A todos e to das vai nosso agradecimento sincero. Piracicaba, junho de 2001 Gabríele Com elli 14 PARTE I A filosofia que começa 1. A FILOSOFIA QUE COMEÇA: DESAFIOS PARA O ENSINO DA FILOSOFIA NO PRÓXIMO MILÊNIO* Stéph a n e D o u a ilu e r * * Do ensino filosófico que se poderia desejar para os tempos futuros talvez se possa dizer que teria de aceitar o desafio de ser, quem sabe, pitagórico. Por pitagórico, nessa proposição, tentar-se-ia significar não tanto a realidade histórica atestada e cientificamente estudada de uma tradição antiga, mas certos traços gerais que essas escolas parecem ter mostrado visíveis no seu tempo e que parecem ter dado origem às primeiras dis- sociações a respeito das próprias palavras filosofar (pbiloso- phein) e filosofia (plnlosophia). Dificilmente informados sobre as atividades reais que ocorriam no interior dessas escolas pitagóricas, durante lon gos séculos da Antigüidade, em geral recebemos de fato, ao in vés, a imagem sob a qual eram percebidas particularmente dois traços dessa imagem. Conforme o primeiro, essas escolas parecem ter oferecido um ensino de uma progressividade mi nuciosamente definida: o aluno deveria ali efetuar um percur * Tradução do espanhol por Ephraim Ferreira Alves. ** Doutor em Filosofiac Professor Titular no Departamento de Filosofia na Universi dade Paris VIII. É co-diretor das coleções La Phtlosopbie em commun (Éditions Lharmattan) e Regarás croisés sur la plnlosophie (Éditions Lysimaque). 17 so que o levasse de uma periferia compartilhada com o conhe cimento comum para graus que o introduzissem nos rudimen tos da ciência e permitissem aos poucos aos espíritos mais do tados e melhor aplicados terem acesso a um núcleo de conhe cimento último da doutrina. A palavra pbilosopbein , com tudo o que exprime de desejo e movimento para um saber, te- ria como tarefa ali significar essa percepção de um mundo e de um estado de conhecimento a atingir, o percurso que levaria até lá, a tensão na qual efetuar este último. De acordo com o segundo traço dessa imagem, essas escolas parecem ter forma do com esse método certos espíritos sábios que não teriam re cusado, quando alguma cidade lho solicitasse, pôr seus altos conhecimentos e sua profunda honestidade a serviço da reso lução de problemas que podiam surgir no seio do mundo anti go e, sob este aspecto, fazer o papel de peritos disponíveis para as cidades em apuros ou geralmente de elites políticas produzidas por instituições de formação de altíssimo nível. Escreve Jâmblico, na Vida de Pitágoras (249): A escrupulosa honestidade dos pitagóricos e ao mesmo tempo a própria vontade das cidades faziam que eles fossem solicitados para estar à frente do governo e da administração dos negócios públicos. Por esses traços, as escolas pitagóricas se deixariam então compreender, como teriam sido, por um lado, unidades bem estruturadas de produção sábia e, por outro, como reservas de serviços de peritos. O mundo antigo, porém, ainda que tivesse podido conhecer o seu valor, parece não se ter interessado muito por essas escolas. Não teria considerado como dever da cidade favorecer a sua existência. Pior: nos repetidos episódios em que se organizaram perseguições contra elas, em que suas casas foram incendiadas e seus membros expulsos de cidade em cidade para serem assassinados, as cidades gregas não te riam pensado um instante sequer como seu dever ou de seu in teresse proteger esses lugares e esses homens que se consagra vam às nobres e eventualmente úteis tarefas do saber. Conta Jâmblico, por exemplo: 18 Os cidadãos de Ciloa não cessaram de perseguir os pitagó- ricos com sua animosidade. Levaram a conspiração contra eles a tal ponto que um dia em que os pitagóricos se tinham reuni do em assembléia na casa de Mílon, em Crotona, e delibera vam sobre os negócios da cidade, incendiaram a casa e todos os seus ocupantes pereceram queimados, salvo dois (...). Catás trofe tão grave e tão espantosa não suscitou reação alguma da parte das cidades. Indiferentes, guardaram o mais profundo si lêncio sobre essa catástrofe (Vida de Pitâgoras, 249-250). O ensino de Platão, que se desenvolveu a partir da figura de Sócrates, apresenta alguns traços semelhantes. Desenvol veu-se aparentemente no mesmo espaço conflitivo e em um espaço de despreocupação do poder político ilustrados pelos célebres episódios do processo contra Sócrates ou os percalços de Platão na corte dos tiranos de Siracusa. Ele se situou sob a determinação da busca de um saber preocupada em se explici tar de modo semelhante sob os nomes de filosofar (p b iloso - pheiri) e de filosofia (philosophia). Associou-se também à pers pectiva de dotar o mundo grego-de elites dirigentes, de sorte que Platão parece ter formado esse projeto fundando a Acade mia. No entanto, essas semelhanças não impedem que se lance a hipótese que aquilo que se introduziu, com Platão, sob o nome de philosophia, e com o que lidamos ainda hoje, foi uma empreitada diferente em seu princípio e em suas conseqüên- cias da vontade pitagórica de instituir puros espaços de sabe doria eventualmente dispostos a se descobrirem úteis ao mun do em que se situam. Assim, com efeito, não se apresenta o mundo de filosofia que é descrito nos Diálogos de Platão, e cuja especificidade pode-se tentar perceber precisamente onde Pla tão parece ter sido levado a precisar a diferença de seu projeto em confronto com os pitagóricos e, sem dúvida, em confronto com o que o mundo antigo compreendia sob o nome de esco las sábias e filosóficas. 1. A alma platônica Platão introduz notavelmente um membro de um círculo pitagórico (Equécrates de Flionte) num diálogo que, de fato, 19 põe em cena um momento da vida de Sócrates absolutamente decisivo para o futuro da philosophia tal como a praticava, a saber, no Fédon. O Fédon, que narra como se sabe a morte de Sócrates, é decisivo sob esse aspecto por ao menos duas ra zões. Aborda em primeiro lugar, instalando-se nesse momento singular, a questão da herança de Sócrates. Morto Sócrates (que está efetivamente morto quando Fédon narra essa mor te), entre que mãos, sob que formas, em que lugares pode-se imaginar ou conhecer que o seu ensino tem continuidade? Ele aborda a questão, a seguir, no seio de uma circunstância parti cular que é a ausência de Platão (que se apresenta como pre tendente a essa herança) no momento da última hora de Só crates. Na representação tradicional que o mundo antigo fazia de um homem sábio e de grande ciência, a sua última hora ti nha extrema importância. Ouve-se um eco disso na Ética a Ni- côm aco (1,9-11) de Aristóteles, ao lembrar que o sentido últi mo de uma vida ou de uma obra fica em suspenso até o último instante dessa vida e dessa obra, e Hegel ou Nietzsche tentan do compreender aquilo que Sócrates quis dizer ao pedir no úl timo instante que se sacrificasse por ele um galo a Esculápio, testemunharão, também eles, essa mesma inquietude. Na últi ma hora, parece, na última palavra, no último gesto, decide-se não apenas a herança da obra, mas ainda se fixa o sentido defi nitivo dessa obra. E parece bem claro, aos olhos dessa lógica, que são aqueles que durante mais tempo tiveram contato com a obra, que se mantiveram na relação mais íntima com o ho mem de ciência ou de sabedoria, que conheceram todos os ca pítulos, e todos os episódios até o último, que elaboraram a re presentação mais completa de seu sentido, que parecem na hora da morte deste último os mais qualificados para se torna rem seus herdeiros e continuarem a fazer repercutir sua obra. Do ponto de vista dessa lógica, na cena organizada por Platão no exórdio do Fédon, Equécrates de Flionte, membro de uma escola pitagórica, desejoso talvez de obter informa ções sobre a escola de filosofia socrática que lhe parece irá se instalar em Atenas depois da morte de Sócrates, interroga Fé don. Quais foram até o último momento, pergunta ele, as pa 20 lavras e os atos de Sócrates? JB quais as pessoas, mais ou menos dignas ou capazes de serem suas testemunhas, que lhe recolhe ram o legado? O ensino da filosofia, tal como o imagina Equé- crates de Flionte, tem como fonte o legado - e se possível o le gado exato - de um saber. Possuir o conhecimento mais incon testável e o mais amplo possível, é isto, a seus olhos, que colo ca alguém na condição de ensinar. Pode-se ensinar quando se é sábio. Quando se possui uma ciência. Ensinar teria sido a tare fa de Sócrates, em vista de sua ciência e sabedoria. Estando ele morto, ensinar seria a tarefa daqueles que, por se terem apega do a elas freqüentando-o, por tê-las aprendido dele e com ele, e aprofundado em seus núcleos significativos essenciais, teriam tido acesso a essas mesmas ciência e sabedoria. Essa representação possui a força de cobrir em larga mar gem aquilo que chamamos de estudos de filosofia. No entan to, Platão, como fazemos também nós sem nos darmos sempre conta, efetua uma ruptura prenhe de sentido no que tange a essa representação. Na dramaturgia do Fédon, essa ruptura entra em cena quando Fédon demora a responder às pergun tas feitas por Equécrates sobre as últimas palavras e últimos gestos de Sócrates, que poderiam fixar definitivamente ocor- pus socrático, bem como a respeito dos discípulos presentes que poderiam ser os seus herdeiros. Fédon fala inicialmente de uma outra coisa, que parece não poder esperar, e é muito mais importante, tocar na verdadeira questão levantada por Equécrates, e que é ele m esm o: Agora, portanto, eu (Fédon) - como o faz dizer Platão - enquanto eu estava presente junto a Sócrates, eu sentia coisas espantosas (tbaumasia epaton). Essa ruptura põe em cena diversos deslocamentos que, as sim como o indica a referência feita nesse momento ao espan to (itbaumasia), concernem segundo Platão à própria especifi cidade da filosofia. O primeiro modifica de certo modo a na tureza do legado. Na reação de Fédon se aponta que a filosofia socrática não está mais contida nas palavras, nos gestos e nos testemunhos do ensino de Sócrates, mas antes de tudo naquilo 21 que se traduziu deles em certas almas. Fédon opera na abertu ra do diálogo uma passagem regularmente operada nas argu mentações platônicas, e que leva da consideração do que acontece no mundo das coisas (sensíveis) à atenção por aquilo que se passa na alma. Esse deslocamento parece até apontar, dando ao Fédon o seu tom particular, para aquilo que parece ser um levar em conta uma alma singular: “Agora, portanto, eu”, declara com efeito Fédon. O terceiro elemento que pare ce acompanhar, nesse preâmbulo do Fédon, esses deslocamen tos, é enfim o de uma em oção (epaton ), dessa alma e desse “eu”. Assim, nesse momento da vida de Sócrates em que se joga a questão do legado de seu ensino bem como, em boa par te, da aventura que se vai chamar philosophia, Platão faz Fé don dizer que a realidade a partir da qual se pode tentar pen sar esse legado e essa aventura é a de uma alma singular emocio nada de maneira espantosa. Bem entendido, pode-se facilmente adivinhar aquilo que Platão, postulando a herança socrática, ganha no contexto an tigo das escolas de sabedoria, apresentando assim as coisas. Ausente, na última hóra, aos últimos atos e últimas palavras que poderíam ter reservado alguma revelação última que mo dificasse o sentido da obra socrática, Platão fica sendo um pre tendente tanto mais legítimo à continuação do ensino socráti- co quando se pensa que a produtividade na alma seria mais re levante que as palavras e os atos, e que seria igualmente im portante, na fonte dessa produtividade, a emoção na alma que a precedeu e que, pela indicação de Platão, teria sido nele de intensidade particular, visto que o mesmo diálogo do Fédon nos informa que nessa hora érucial Platão teria estado enfer m o (Platon de oim ai esthenei). Platão, nesta espécie de esclare cimento que o Fédon efetua a respeito da questão da herança socrática, supera assim algumas objeções que se poderíam opor à sua vontade de se fazer um continuador do ensino de Sócrates, e ao mesmo tempo refletindo sobre o seu lugar pró prio no seio da configuração dos que estavam mais ou menos perto de Sócrates, sobre a proximidade atípica com Sócrates que parece ter sido a sua, sobre as modalidades específicas em 22 que escolheu assumir a continuação de seu ensino e que, de fato, marcaram talvez até o dia de hoje aquilo que pode ser praticado sob o nome de ensino filosófico. 2 . Pensar por si mesmo Upi dos efeitos remotos que, no seio'do ensino filosófico tal como é praticado, por exemplo, na França hoje, parece lembrar que a filosofia tem iniciálmente como lugar a alma e não as proposições alinhadas de um saber qualquer - se diz en tre outros em um convite feito aos alunos desse ensino para que pensem por si mesmos. Há uma história, que se poderia reconstituir, desse convite. Em seus momentos tardios, ele se encarnou em uma evolução do ensino filosófico francês que esboçou a sua forma institucional1, arrancando-o à prática an terior à Revolução Francesa de um curso ditado em latim es- colástico, firmemente ancorado em um manual autorizado, constituído por uma série finita de questões sábias e de respos tas consagradas, tiradas de Aristóteles e Descartes, submeten do os poucos desenvolvimentos autorizados às figuras codifi cadas da explicação e da disputa, reduzindo o exame de fim de estudos à estrita verificação de sua aprendizagem. Em um mo vimento que o levou à sua forma quase contemporânea em meados de 1863 , esse ensino chegou à sua representação como ato livre do pensamento desenvolvendo ao menos três dimensões. O uso da língua vulgar substitui o do latim (intro duzida em 1808 nos liceus, a língua vulgar torna-se ali a práti ca efetiva em 1829). O estrito tratamento de uma série delimi tada de questões articuladas a suas respostas consagradas dá lugar a uma improvisação pessoal chamada lição ou curso do professor (1830), que se articula à perspectiva de produzir nos alunos 2>capacidade de redigir uma composição pessoal (enfo que que se afirma como objetivo privilegiado do ensino filosó fico entre 1820 e 1864), e que ganha todo o vigor a partir de 1. Cf. Douailler, S. ôc Vermcren, P. (1987). “Uinstitutionnalisatíon de Penseignement philosophique français”. In: Univers philosophique. Encyclopédie philosophique uni- verselle. Paris: Presses Universitaires de France, vol. I, p. 808-814. 23 uma liberdade concedida aós professores para tratarem as no ções no programa na ordem que preferissem (1863). A depen dência, enfim, dos manuais que desfiavam os conteúdos a assi milar dá lugar a uma livre consulta dos professores aos textos de história da filosofia no seio de uma lista sempre mais liberal (a partir de 1830). Em cima dessa tríplice base, que libera a língua, a palavra e a matéria, e apesar de diversos episódios políticos que resultaram dessa liberação e foram recentemente estudados por Patrice Vermeren2, o ensino filosófico francês se tornou predominantemente uma prática confiada à respon sabilidade daqueles que o exercem por profissão, responsabi lidade determinada a minima por um programa tipo e pela de finição de um exame final, que autoriza um grande leque de possibilidades (com relação ao qual o recrutamento dos pro fessores e suas práticas efetivas não deixam de apresentar pa radoxalmente o corretivo de atitudes relativamente estereoti padas), e que tomaram entre outros como lema a fórmula kan- tiana segundo a qual não se aprende filosofia mas a filosofar. Ou seja, portanto, quer se trate do professor ou do aluno, a pensar por si mesmo. A desenvolver um espanto. A pôr em movimento a sua alma. Compreendido assim, o ensino filosófico implica ainda uma dificuldade. Pensar por si mesmo, espantar-se, pôr em movimento a própria alma, não são, é claro, atividades sufici entemente específicas para que se possa identificar o próprio de um ensino, de uma disciplina, de um estilo de exercícios, isto é, identificar precisamente aquilo que se impôs neste mo mento nas instituições francesas como disciplina escolar. E uma segunda leitura que se poderia fazer da história que levou na França ao ensino filosófico que aí se ministra hoje mostra ria que esse ensino não chegou a esclarecer a reserva de com petências que a sua frequência produziría nos inúmeros alu nos que o sistema escolar francês obriga a seguir um curso de filosofia. Método universal de análise nas escolas normais do II ano, invenção de um poder espiritual novo para um mundo 2. Vermeren, P. (1995). Le jeu de la philosophie et de VEtat, Paris: UHarrnattan. 24 pós-Revolução sob Victor Cousin, cultura da autonomia da razão na virada kantiana efetuada após a guerra de 1870, des pertar para um fim metafísico das coisas e dos saberes na Sor- bonne triunfante do final do século X IX e do início do século X X , coroamento letrado e humanista da cultura dos liceus, mediação responsável para a época e o universo das ciências “duras” e sociais etc., o ensino filosófico francês se viu na rea lidade justificado ao longo do tempo por funções bem diferen tes. Essas justificações3, cuja sucessão histórica parece ter sidomenos capaz de evidenciar um progresso ou aprofundamento do ensino filosófico do que propor uma série de salvamentos inesperados de seu futuro contra o desgaste das representa ções herdadas, parecem sobretudo trair a natureza perecível de cada uma. As promessas reiteradas de competências que os alunos ganhariam freqüentando a filosofia e a aquisição de seus saberes específicos continuam mantendo de pé o obstácu lo de deixar, apesar de tudo, os responsáveis sociais e políticos um tanto indiferentes no fundo, e estes não se comoveriam mais que na época antiga se ocorresse uma catástrofe à filoso fia e aos filósofos. Os responsáveis sociais e políticos, por me lhor disposição que alimentem quanto a esse ensino, não se deixam ensurdecer por suas boas intenções a ponto de não en tender nas justificativas propostas que as competências pro metidas não poderíam ser sob certos aspectos mais que uma reserva de competências, o luxo de um complemento de ho nestidade, de penetração, de sabedoria. E, então, uma catás trofe que atingisse a filosofia não poderia, a seus olhos, pre tender ser uma catástrofe absoluta. 3. O “nascimento” de Platão A decisão de dar continuidade à tarefa de ensino ou de transmissão contida na filosofia exige, com efeito, que ela seja compreendida em outro cenário que aquele que perseveraria 3. Cf., entre outros, Douaillcr, S., Mauve, Cli., Navet, G.,'Pompougnac, J.-C . Sc Ver- mercn, P. (1988). La philosophie saisie par l*Etat (petits écrits sur Fenseignemerit pbilosophlque en Frattce, 1789-1900). Paris: Aubier. 25 na evidência, reinventada ao ensejo de uma institucionaliza ção disciplinar e escolar da filosofia, de lhe dar como partida as efetivas aptidões da filosofia para exprimir seu universo sob a forma de um programa bem estruturado de produção sapi- encial e a se oferecer nessa situação como reserva de compe tências específicas, ou seja, aquilo que foi designado aqui, por comodidade de exposição, como “pitagorismo”. Esse outro cenário parece que se pode deixar decifrar nas páginas já cita das do Fédon e na ruptura - a que já se aludiu - que parecem manifestar com relação às modalidades normalmente espera das de constituição de uma escola “socrática” de filosofia de pois da morte de Sócrates ao lado das muitas outras escolas de sabedoria da antiguidade. Em termos estritos, para nós que le mos o Fédon, a morte de Sócrates e todo o futuro aí implícito para ser tomado como o tema para a história da filosofia e de seu ensino que é chamada a tornar-se, já nos é contada no Fé don a partir de uma continuação do ensino socrático. Ela nos é contada segundo a maneira como Platão entende que deva efetuar-se essa continuação. O que nos acontece, sob a forma do Fédon, já não é o ensino do próprio Sócrates - a esta altura ele já está morto - mas a sua continuação e, neste sentido, tal vez uma das formas originárias daquilo que estaríamos já au torizados a chamar um ensino de filosofia. E, então, aquilo que o Fédon, enquanto já este ensino insinua, está, como se lem brou, em lugar dos elementos constitutivos capazes de fundar uma unidade original de produção sapiencial (os discípulos in formados, os conteúdos garantidos, as operações característi cas), a emoção pessoal e prévia de um espanto que a tradição muitas vezes destacou nas proposições platônicas, mas que aqui parece suscetível de algumas precisões complementares. A emoção atestada por Fédon seria, indica o texto, como que um afeto desconcertante (atopon patbos) e como que uma mistura insólita (anethes krasis) de prazer e dor (hedone, lype). O prazer superior a todos os outros (panton ediston) que re presenta para Fédon a possibilidade de lembrar-se de Sócra tes, de falar ele mesmo sobre ele ou de escutar outro falar so bre ele (Fédon, 58d), ou seja, o prazer supremo que suscita nele alguma coisa semelhante ao que designamos por ensino 26 da filosofia, se apresenta como tendo tido no seu efetivo início uma afeição insólita, desconcertante, mista, de prazer e dor. Haveria grande vantagem em compreender plenamente aqui lo sobre o que o próprio Platão deu assim testemunho, mas parece bem que fazendo precisar por Fédon que esta era a si tuação específica de abandono (diekeim etha) na qual se teriam achado diante da morte de Sócrates os presentes do círculo so- crático, a saber, ora rindo, ora chorando (tote men gelontes, eniote de dakryontes), tenha com essa caracterização respon dido na realidade da maneira mais profunda à pergunta do pi- tagórico Equécrates sobre esse círculo e suas possibilidades de futuro naquele momento. Existem outros testemunhos que associam a especificida de daquilo que Platão faz e essa questão de risos e lágrimas. Na Vida que lhe consagra, Diógenes Laércio narra que Platão, de pois de ter ouvido Sócrates, teria queimado tragédias que es boçara e se teria voltado para a escrita de caracteres segundo o modelo dos Mimos de Sofron (Vidas e doutrinas dos filósofos ilustres, III, 5 e 18). No final do Banquete, o próprio Platão apresenta Sócrates defendendo diante de Agatão e de Aristó- fanes a idéia de uma arte que fosse capaz de unir a de compor as tragédias e a de fazer as comédias {Banquete, 223d). Nesses testemunhos, a atividade que Platão preferiu escolher se mos tra no surgimento que ela efetua fora de um contexto compre endendo perdas e achados, e no poder de invenção que parece a seus próprios olhos conter. Que Platão tenha reivindicado, e no fundo tenha sido bem-sucedido nessa reivindicação, trans mitir o ensino de Sócrates e situar-se assim num dos pontos de partida da filosofia, é uma circunstância cuja improbabilidade talvez nos seja difícil perceber, bem como a silenciosa, ou qua se silenciosa, audácia. Pela imagem da anedota duvidosa, igual mente contada por Diógenes Laércio, pretendendo que Sócra tes, tendo um dia ouvido Platão ler o Lísias, teria exclamado: “Por Hércules! Que mentiras conta esse moço a meu respeito” (Vidas e doutrinas dos filósofos ilustres, III, 35), a transmissão que Platão efetua a partir do ensino socrático se oferece à pos teridade sem que Platão talvez tenha sido um dos mais próxi 27 mos ou um dos mais reconhecidos por Sócrates, sem que te nha feito parte até o fim do círculo dos presentes, depositários da autoridade das últimas palavras e dos últimos atos de Só crates, sem que ele se tenha julgado obrigado a limitar sua obra aos fatos, gestos e palavras daquele a quem ele atribuiu quase inteiramente sua obra. Contra todas as garantias recebi das de uma transmissão sapiencial do ensino socrático, Platão mostra a emoção que experimentou, o sentimento de estar deslocado (atopon) e fora de seus hábitos (aetes) por alguma conjunção de uma perda e de uma possibilidade de invenção, a convicção de ser deste modo singular verdadeiramente fiel à lição de filosofia. E talvez convenha, para abordar o que teria ali começado de ensino da filosofia, endurecer alguns de seus traços e reuni-los provisoriamente nas seguintes proposições: 1. O ensino da filosofia, mais que um prolongamento sa piencial específico, é um poder de começo. E o que se pode, entre outras coisas, decifrar do prólogo do Fédon : diante da questão de um continuar depois de Sócrates, a reafirmação, para efetuar a continuação, de um começo de Platão. A des- continuidade física da filosofia (mortes de homens, perdas de manuscritos, destruição de escolas, esquecimento dos contex tos etc.) não se supera somente pela renovação das disciplinas, o arquivamento dos escritos, a defesa das instituições, o aper feiçoamento dos paradigmas explicativos, mas ainda por uma série descontínua de recomeços que o ato de ensinar produz em particular no dia-a-dia. 2. Esse começo não se efetua na pureza de um começo que põe seus primeiros elementos e inicia nos encadeamentos re gulados que levam à posse do saber que daí se deixa derivar, mas procede por efração em um sistema de representações e deconhecimentos já existente. Ele vem, por exemplo, no caso de Platão, fazer efração na esfera em que Platão se destina à atividade poética e especialmente à tragédia. 3. Ao lugar que o ensino da filosofia traz seus próprios co nhecimentos, seu universo singular de referências, seu conjun 28 to de problemas específicos, deve-se pôr que trata mais pro fundamente sobre um mundo dè conhecimentos, de referências, de problemas que não é em primeiro lugar o seu. Esse mundo pode ser denominado, tendo em vista a efração que a filosofia opera aí, um mundo privado. 4. Efetuando a efração que opera nesse mundo privado, o poder de começo que o ensino da filosofia faz nascer em uma inteligência viva pode ser chamado de segundo nascimento, na medida em que se exerce sobre uma inteligência já nascida. 5. Como o segundo nascimento filosófico não faz nascer para um mundo da filosofia, a outra vida que se vive graças à efração do ensino filosófico é uma outra vida desse próprio mundo que a sofre. A efração sofrida por Platão, por exemplo, não deixa de realizar-se entre outras no seio de sua destinação poética. Isto é que é verdadeiramente espantoso: não ter aces so a um outro mundo, como na clausura “pitagórica”, mas ex perimentar a capacidade de nosso próprio mundo de diferir de si mesmo sob a ação de um segundo nascimento. 6. A efração, que opera o começo de uma diferenciação de um mundo e de um sujeito em relação a si mesmo, se produz da maneira mais verdadeira mediante um mestre que não identifica a abertura dessa diferença com seu saber, que não propõe que o seu próprio mundo diferente, aberto, crítico, li vre etc., tome o lugar da esfera que deve efetuar para si mesmo o seu segundo nascimento, e, então, deve-se dizer que esse mestre, segundo o oráculo de Delfos, Sócrates e Platão, e de pois da exemplar reatualiz ição que dele fez Jacques Rancière., em um livro com este títu) j, é um mestre ignorante4. 7. O mestre de filosofia deve ser duplamente ignorante. Deve, em primeiro lugar, ignorar como a esfera privada, na qual a sua ação faz irrupção e efração, pode se desdobrar e tor- nar-se diferente de si mesma, isto é, começar por sua própria conta a operação de um segundo nascimento. 4. Rancière, J . (1987). Lc waitre ignorant. Paris: Fayard. 29 8. O mestre de filosofia, para efetuar essa operação, deve, por isso, ignorar, ele mesmo, algumas coisas, isto é, dar o exemplo - o seu e o de todos os filósofos que estiveram às vol tas com uma grande ignorância - de uma ausência de saber que possui a força de pôr fora do mundo no qual se está para se pôr a com eçar alguma coisa. Jacques Rancière, por exem plo, precisou este ponto em um texto intitulado “Nós que so mos tão críticos”, escrevendo: O ensino filosófico pode ser o lugar onde a transmissão dos conhecimentos se autoriza a passar a uma coisa mais sé ria: a transmissão do sentimento da ignorância. E a tanto nos torna particularmente aptos o nosso interminável confronto com esses poucos textos e essas poucas personalidades - mal grado todos os esforços dos explicadores - continuamos não compreendendo, ignorância mantida graças à qual chegamos talvez a aprender e a ensinar através deles outras coisas5. 9. O ensino da filosofia não se distingue essencialmente dos outros tipos de ensino por essa prática da efração, do co meço, da ignorância. As outras disciplinas não estão de modo algum condenadas a se constituir em unidades de produção de sabedoria, identificando e limitando suas esferas de saber e de efeito de saber ao que se deduziría progressiva e estrita mente de elementos enunciados e postos. Existe uma vida filo sófica das outras disciplinas. 10. O ensino filosófico assim compreendido não cessa de ultrapassar de dentro e de fora os lugares e as formas em que se mantém. Não cessa de impedir sua biblioteca interior de se estabilizar em um saber sedimentado de Platão, Descartes, Kant ou Hegel. Não cessa também de enriqueceressa bibliote ca com ocasiões para recomeçar com Platão, Descartes, Kant ou Hegel. Por essa razão, a filosofia, no vestíbulo de um próxi mo milênio, se mantém ainda na expectativa de seus começos. 5. Rancière, J . (1986). “Nous qui sommes si critiques”. In: La grève des pbilosopbes, école et philosopbie. Paris: Osiris. 30 PARTE II Filosofia do ensino de filosofia 2. O ENSINO DA FILOSOFIA FRENTE À EDUCAÇÃO COMO FORMAÇÃO* ** W ALTER OAí ARKOHAN*» A filosofia não tem necessidade de defensores na medida em que sua justificação é assunto seu. Mas a defesa do ensino da filosofia terá necessidade de uma filosofia crítica do ensino. Georges Canguilhem, Nouvelle Critique (1975). 1. Primeiras palavras “Para que filosofia?” é uma dessas perguntas com história abundante e futuro assegurado. É, além disso, uma pergunta que muitos filósofos, e só eles, gostam de fazer. No fundo, pa rece tratar-se não só de uma questão de gosto, mas de inevitá vel busca de legitimação teórica de uma disciplina que, só por seu nome, não goza como outras desse privilégio. Tem-se que justificar os para que da filosofia, porque sua utilidade e seu sentido não costumam estar outorgados previamente. Talvez, * Agradecimentos do Autor pela leitura atenta deste trabalho a Lnura Agratti, cujas observações permitiram melhorá-lo em vários aspectos. Tradução do espanhol por Wanderson Fíor do Nascimento. ** Doutor cm Filosofia pela Universidade Iberoamericana (México) sob orientação de Matthew Lipman. Professor de Filosofia da Educação na Graduação e Pós-gra duação da Faculdade de Educação da Universidade de Brasília. Ê Professor Coor denador do Projeto de Extensão A Filosofia na Escola na UnB. 33 por isso, o interesse de quem se dedica à filosofa costuma ser discutir para fora, com os “não filósofos”, esta pergunta. Não é habitual que os filósofos se encontrem entre si para discutir questões como estas. É que, ainda que discordem na forma de respondê-la, não costumam ter dúvidas sobre sua importân cia. Contudo, nunca é demais apresentar a pergunta a outros, a aqueles que ainda não descobriram sua significat\vidade. Esta pretensão pode levar à organização de eventos que tra tam exclusivamente desta questão e os resultados muitas vezes não são convincentes. Referindo-se a um congresso recente mente ocorrido em Granada, na Espanha, com o título “Para que filosofia?”, o filósofo espanhol M. Reyes Mate comenta que serviu apenas “para marcar distâncias, entre os exposito res e ouvintes, entre a biblioteca e a rua, entre a profissão e a vida” (1996: 667). É o que costuma acontecer com as pergun tas dos filósofos: de tão interessantes e importantes que são, poucos acabam por perguntá-las. Em épocas em .que não se organizavam em congressos de filosofia, os filósofos escreviam in extenso sobre esta pergunta para o grande público. Dadas as implicações educacionais da filosofia, como dirá José Gaos em uma das epígrafes deste tra balho, em muitos casos, as perguntas “Para que filosofia?” e “Para que ensinar filosofia?”, que não são a mesma pergunta, se tornam muito próximas, até um ponto que quase se confun dem. Esta ligação é percebida, por exemplo, no modo em que Platão tematiza estas questões em seus Diálogos. Em A Repú blica, afirma que a filosofia é um alvo de estudos que tem como conteúdo um Bem transcendente, que os governantes devem conhecer para instaurar, com legitimidade, uma pólis justa (A República, V-VII). Ali, os conhecimentos objetivos da filosofia têm um caráter duplamente educacional, enquanto ensinam a quem os aprende e enquanto este ensinará aos ou tros cidadãos no exercício da função de governo. Deste modo, os sentidos políticos e pedagógicos da filosofia se superpõem. Através de sua história, a filosofia tem estado sempre ligada ao ensino de si mesma, além de ser ela mesma uma paidéia no exercício da crítica (Derrida, 1 9 9 0 :1 5 8 ,1 6 6 ) . O ensino da fi 34 losofia não pode prescindir da filosofia. É issoque Cangui- Ihem sugere na epígrafe. A pergunta “para que ensinar filosofia?” interessa não só a filósofos, mas também a educadores. No séc. XVI, Montaigne disse que a filosofia deve ser uma matéria na educação dos pe quenos para formar pessoas mais inteligentes, felizes e ajuiza das, mais livres de espírito (1984: cap. 26). Se não se quer tor nar às crianças seres servis e tímidos, afirma Montaigne, de ve-se dar-lhes a oportunidade de fazer algo por si mesmas. O ensino da filosofia é aqui a peça-chave de uma formação hu manista para a autonomia, oposta aos valores da educação je- suítica dominante na época. Na modernidade do séc. XVIII, Kant afirma a importância do ensino da filosofia, que ele entende como um ensinar a filo sofar. Para Kant (1995), os sentidos mais plenos deste ensino não estão dados pela transmissão de um suposto saber acaba do, fechado, completo, portanto externo ao sujeito que o aprende, mas pelo exercício da razão na observação e investi gação de seus princípios universais. Em nosso século, as respostas à pergunta “para que ensinar filosofia?” têm se multiplicado. Um caso interessante resulta na ênfase que muitas dessas respostas concedem à palavra “críti ca”. Constatamos que, em diversas tradições, o ensino da filo sofia está ligado à formação de uma consciência ou capacidade crítica. Contudo, essa atitude crítica é entendida de diversas formas em função do marco teórico de referência. Por exem plo, na tradição analítica, ela está associada, freqüentemente, ao desenvolvimento de certas habilidades de pensamento (Sal- merón, 1992: 120-2); no pragmatismo, está ligada a um julgar com critério, a um apreciar com cuidado (Dewey, 1925; Lip- man, 1 9 9 8 ); entre os primeiros membros da Escola de Fran- ckfurt, a consciência crítica é entendida como oposição à natu ralização das idéias, saberes e valores dominantes (Horkheimer, 1990: 289); no marxismo de nossos dias, está usualmente liga da à transformação do mundo (Sánchez Vázquez, 1997: 416); entre alguns pós-estruturalistas, é entendida como um pôr em questão as evidências; um trazer à luz o pensamento que se 35 oculta em todas as instituições, um “tornar difíceis os gestos por demais fáceis” (Foucault, 1981). Neste trabalho não pretendemos analisar detidamente os sentidos concedidos contemporaneamente ao ensino da filo sofia. O que nos importa, entretanto, é problematizar uma li nha comum que diferentes percursos filosóficos têm compar tilhado no momento de pensar os sentidos educativos da filo sofia. Referimo-nos à idéia de que o ensino da filosofia está a serviço da formação ou fabricação de certo ideal de pessoa. Em outras palavras, que a filosofia contribui para uma paidéia formativa, fabricadora. Para analisar este espaço comum re servado ao ensinar filosofia, vamos trabalhar em quatro mo mentos. Em um primeiro momento, precisaremos em que sen tido, no ocidente, a educação tem estado, quase sempre, asso ciada à idéia de formação ou fabricação, pelo menos desde A República de Platão. Em um segundo momento, daremos al guns exemplos sobre como a filosofia tem estado também comprometida com esta educação formativa. Em um terceiro momento, nos deteremos na idéia de infância que sustenta as pedagogias e filosofias formativas. Finalmente, esboçaremos algumas propostas para situar a experiência da filosofia em uma lógica educacional não formativa. 2. A educação a serviço da formação O papel desempenhado pela educação em todas as utopias políticas, desde a antiguidade até nossos dias, mostra bem com o pode parecer natural querer com eçar um mundo novo com aqueles que são novos por nascimento e por natureza. Hannah Arendt, A crise da educação (1961). No livro II de A República, Platão discute de que forma devem ser educados os guardiões de sua pólis. O exame da ques 36 tão pode determinar, diz “Sócrates”, a gênese, o ponto de par tida, a causa, da justiça e da injustiça na Atenas de seu tempo (II, 376d); esse exame situa tal causa nos relatos de Homero e Hesíodo que sustentam a educação tradicional na Grécia, tex tos que afirmam valores contrários àqueles que devem reger na pólis. Se se quer pensar em uma cidade mais justa, é preciso mudar os textos com os quais se educa em Atenas, nos diz Pla tão. Ao discutir que relatos serão incluídos para substituir aos tradicionais, “Sócrates” faz o seguinte comentário com Adi- manto a respeito daqueles textos com os quais as crianças en tram em contato em primeiro lugar: Por conseguinte, sabes que o princípio de toda a obra é o principal, especialmente nos menores e mais tenros; porque é então que se forma e imprime o tipo que alguém quer disse minar em cada pessoa (Platão, A República II, 377 a-b). Os primeiros momentos são os mais importantes da vida, diz “Sócrates”. Por isso afirma que não se permitirá que os pe quenos escutem relatos que contenham mentiras e opiniões contrárias às que se esperam deles no futuro. Porque, se pensa mos a vida como uma seqüência em desenvolvimento, como um devir progressivo, como um fruto que será resultado das se mentes plantadas, tudo o que venha depois dependerá desses primeiros passos. Tem-se aí a sua importância extraordinária, pelas marcas indeléveis que se recebem na tenra idade (II, 378 e). Por isso, ter-se-á que cuidar especialmente desses primeiros tra ços, não tanto pelo que eles são, mas pelo que deles irá devir, pelo que gerarão em um tempo posterior. Por fim, estas peque nas criaturas serão os futuros guardiões, governantes da pólis. Tem-se que pensar nisso ao desenhar sua educação, diz Platão. Não importa tanto o que são, mas o que serão, o que podem ser e o que devem ser. Os novos são algo a ser. No caso deste relato platônico, estas crianças devem ser, no futuro, reis que filoso fem, filósofos que governem de modo justo a pólis. Neste texto de A República, é “alguém” externo, um ou tro, o educador, o filósofo, o político, o legislador, o fundador da pólis, quem vai pensar e plasmar em cada um o que quer 37 que este seja. É a idéia de educação como formação, o dar uma forma a outro. Dar forma. Formá-lo. Qual forma? No caso de Platão, em última instância é a forma das formas, são as idéias, os a priori, os modelos, os paradigmas, os em si transcenden tes que indicarão a direção da formação. Assim formadas, as crianças poderão ser os cidadãos que queremos que sejam. Neste registro, as crianças não interessam por serem crian ças, mas porque serão adultos no futuro. E, nós, os adultos do presente, os fundadores da pólis, os que sabemos da ausência de certezas e os riscos desse chegar a ser, queremos o melhor para eles que é, ao mesmo tempo, o que nós consideramos me lhor, o melhor para nós, o que não temos podido ser, mas que remos fazer que os outros sejam. Podemos, inclusive, acompa nhá-los, ajudá-los, nesse caminho. Para isso os educaremos, desde a mais tenra idade. Neste acompanhar aos novos (hoi néoi) encontra sentido a educação: na passagem de um mundo velho que já não queremos a um mundo novo - novo para nós, claro, velho para os novos - , que os outros trarão com nossa ajuda; ou nós traremos com sua ajuda, como você prefira. Encontramos aqui os elementos clássicos que definem uma pedagogia formativa (Larrosa, 1996: 21). Por um lado, educa-se para desenvolver certas disposições que, se conside ra, existem em bruto, em potência; por outro lado, educa-se para com-formar, para dar forma a, a um modelo prescritivo, que tenha sido estabelecido previamente. A educação é assim entendida como uma tarefa moral (Larrosa, 1996: 423), nor mativa, como um ajustar a cada um a aquilo que deve ser. Se gundo essa orientação, são os ideais os que processam o de senvolvimento de uma prática educacional. No caso de Pla tão, esses ideais são, a priori, independentes de nossa vontade, e permitirão o império, neste mundo, da razão, do bem, da justiça, da harmonia, da beleza. As crianças, ao final, são nossaoportunidade de realizar estes ideais e sua educação nossa me lhor ferramenta para tal fim. Esta educação de A República - como toda educação for mativa - não resiste à tentação de se apropriar da novidade 38 dos novos de que fala H. Arendtna epígrafe, a tentação de fa zer da educação uma tarefa eminentemente política e da polí tica o sentido final de uma educação. Educa-se para politizar os novos, para fazê-los participantes de uma pólis que se defi ne para eles. O novo, cada nascimento, gera esperança e medo. Entre uma e outro, a partir de seu cultivo, abriga-se uma educação a serviço da política e uma política com fins educativos (Arendt, 1961: 176). 3. A filosofia a serviço da formação e da política Temos visto que toda filosofia é, por sua natureza e em certo sentido, pedagógica - de onde podem os inferir que o filósofo , todo filósofo, também é, em um certo sentido, um pedagogo. José Gaos, “Filosofia e pedagogia”, In: Filosofia da filosofia e história da filosofia (1947). Em A República não só a educação, mas também a filoso fia está a serviço da formação e da política. Duplamente. Por um lado, a filosofia forma a quem entra em contato com ela, a quem nela transita. Por outro lado, estes transeuntes da filoso fia que detêm seu conhecimento, aqueles que conhecem as rea lidades em si mesmas, governarão a pólis em função de seus conhecimentos filosóficos. Mais ainda: se acaso se recusassem e pretendessem permanecer contemplando aqueles ideais, se riam obrigados a governar aos outros. Pois, finalmente, o esta do os formou para isso. Os governantes devem filosofar, os fi lósofos devem governar, para que a pólis seja mais racional, melhor, mais justa, mais harmoniosa, mais bela. Não têm ou tra opção. Deste modo, a filosofia se torna uma tarefa eminen temente política e o exercício da política uma forma de filoso fia. Filosofa-se para politizar os novos, para fazê-los partici pantes de uma pólis que se define para eles. 39 Muitas águas têm corrido sob a ponte da filosofia, mas não tem mudado significativamente a cor das águas. O ensino da filosofia continua sendo enquadrado em uma lógica de for mação. Pensemos nos já citados Montaigne e Kant, ou, mais contemporaneamente, em ferventes defesas do ensino da filo sofia nas escolas devido a seus fins formativos: a filosofia ao serviço de uma cidadania crítica, tolerante, responsável, plu ralista, enfim, todos os adjetivos que se queira outorgar, aos mais adequados ao contexto1. Um exemplo nítido de uma filosofia com intencionalidade formativa é o programa Filosofia para crianças de Matthew Lipman. Ali a prática da filosofia está ao serviço de uma edu cação para a democracia, entendida como investigação delibe rativa (Lipman, 1998). Segundo Lipman, levar a filosofia às crianças se justifica porque ela lhes oferece,' pelo menos, três ferramentas que os participantes de toda democracia necessi tam: 1) um trato rico e variado com conceitos gerais e contro versos como verdade, justiça e liberdade; 2) uma elevação de seus processos reflexivos a um pensar de ordem superior (que reúne as dimensões crítica, criativa e ética do pensar); 3) um diálogo significativo que abre as portas para a elaboração de juízos criteriosos (Lipman, 1998: 6-7). Nesta proposta é a ló gica da democracia {uma democracia) que define os sentidos do ensino da filosofia. Levar a filosofia às crianças, com sua história, com seus métodos e seus temas se justifica, para Lip man, pelas vantagens sociais que essa prática venha a ocasio nar (Lipman, 1988: 198). Aqui também as crianças são, antes de mais nada, futuros cidadãos da democracia; como tais, pre cisam da filosofia, não tanto pelo que são, mas pelo que po dem chegar a ser. Desta maneira, uma democracia idealizada, bem entendida, marca a direção da prática da filosofia. Sem falar da educação nem das crianças, esta mesma lógica susten 1. Temos acompanhado de perto esta discussão a propósito das ambiguidades da últi ma Lei Nacional de Diretrizes e Bases da Educação a respeito da inclusão da filoso fia como disciplina obrigatória no ensino médio (Lei 9.394/96). Organizamos um debate sobre esta questão em Gallo, S. &C Kohan, W. (2000). 40 ta a prioridade que o neopragmatismo de Richard Rorty de fende da democracia a respeito da filosofia (Rorty, 1991). 4. A infância formada (A criança] com o os mortos, com o as mulheres, com o as massas, com o o objeto, com o todas as categorias expulsas da razão dominante, conserva todos os meios para vingar-se e colocar aos donos da realidade um problem a insolúvel. Jean Baudrillard, O continente negro da infância (1995). Hannah Arendt afirmou a essência da educação radica na natalidade, no fato de que seres humanos nascem no mundo (1961: 174). Que nasce algo novo no mundo significa que o mundo e o recém-chegado são mutuamente estranhos; não há continuidade entre eles, mas ruptura. A educação é uma tenta tiva por matizar essa tensão, entre o novo e o velho, o revolu cionário e o conservador, o privado e o público; nasce alguém sem voz (in-faits) que precisa falar para comunicar uma novi dade que o mundo não quer escutar porque indica sua própria negação; educar é fazer possível a emergência dessa voz de forma que a novidade possa ser comunicada em um mundo hostil a ela. A tensão não é fácil de superar e o fio costuma romper-se no ponto mais frágil: o da novidade; os que jâ estão no mundo, os que educam, acabam sempre por determinar um futuro político que, para os novos, os recém-chegados, será sempre velho. O problema da educação tem sido visto, a partir desta perspectiva, como o de encontrar a melhor manei ra de fazer com que os novos falem a língua que os velhos pen sam que eles devem falar. Mas o problema também pode ser visto como o problema de qual será a língua que falarão os sem voz, o que pressupõe ouvir o que esses que não falam têm a dizer sobre a sua própria 41 língua. Eis o paradoxo de uma educação não prevista, aberta ao novo, à diferença: ouvir uma outra língua, ainda não falada. Os filósofos têm-se ocupado bastante destes sem voz atra vés da história. Quase sempre com perspectivas formativas, para cumprir um projeto pedagógico. Talvez o fragmento 52 de Heráclito, que se vale da imagem de uma criança que joga para ilustrar a lógica do tempo e o começo do Zaratustra de Nietzsche, onde a criança é a possibilidade de metamorfose que se situa a partir de um ponto extramoral, sejam exemplos nos quais a infância não é apenas adultez em potência, mas afirmação de alguma outra coisa, de algo que não se sustente em uma lógica adulta dominante. Ao mesmo tempo, a infância não aparece nesses exemplos como algo que deva ser desen volvido, orientado, processado, não há continuidade entre in fância e mundo nem entre infância e adultez. Jorge Larrosa, fi lósofo espanhol contemporâneo, tem explorado estas idéias afirmando a infância como enigma, aquilo que nem sabemos e nem tematizamos, como algo que escapa a nossos saberes, nossos poderes e nossas vontades, que resiste a nossas tentati vas de controlá-lo e dominá-lo (Larrosa, 1999). A infância como enigma sugere que temos fracassado, que não conseguimos construir, através das crianças, um mundo melhor. Imagem da alteridade, a infância resiste às nossas estra tégias pedagógicas mais sofisticadas. Ela enfrenta nossas pre tensões por mitigar sua alteridade, repudia nossa desatenção para a novidade que cada criança traz consigo, se incomoda com nossas sãs intenções de construir um mundo melhor. A in fância não é apenas o objeto educacional de nossos ideais. Como imagem de afirmação, de novidade, de indeterminação, de liberdade, a infância é uma figura do porvir que nenhuma educação que seja sensível a essa novidade pode antecipar. E uma possibilidade para pensar uma nova educação do novo. Esta concepção da infância aparece também na imagem bachelardiana da infância como devaneio (Bachelard, 1997: 149),na figura do poeta, uma figura que precisa da solidão, que conhece a fortuna de sonhar; existência livre, sem limites, 42 imagem da imensidão, dos múltiplos nascimentos da vida. A infância não é uma etapa de vida, não são os primeiros anos da existência, mas uma reserva que nos permite dinamizar a vida, uma água que sai da sombra, um estado anímico que permite reviver a liberdade, que se dinamiza em um devaneio benfei tor, quando os homens nos deixam em paz (1997: 150, 169, 175-7). A infância precisa ser deixada em paz, não só a infân cia das crianças, mas também a nossa infância, a que sempre nos acompanha, a novidade e o acontecimento que nenhuma educação totalitária é capaz de mitigar. É verossímil o encontro entre filosofia e infância? De que forma? Alguém poderia pensar que é um despropósito ensinar filosofia às crianças em um contexto como o nosso, em que o ensino da filosofia nem sequer está consolidado em seus últi mos anos no ensino médio. É possível que o seja. Contudo, este despropósito pode ter um sentido educativo não formati- vo, não só para as crianças. O que é a infância afinal? Como a filosofia, uma forma de resistência. Afirma a possibilidade da novidade, um começo, irrompe no mundo com sua diferença. Luta por criar-se a si mesma. E um símbolo, temos dito, de um. porvir, de uma educação que não é possível antecipar. É uma possibilidade, possibilita pensar. Parece uma impossibilidade, mas é sempre possível. É pura eventualidade, ocorrência, acon tecimento. E toda possibilidade, a possibilidade de manter viva “a capacidade de ruptura com a significação dominante”, como diz Guattari (1991: 18). Ainda que se sinta bem no cor po de uma criança que brinca, a infância, assim entendida, não tem idade. Quem sabe, a experiência da filosofia ajude a manter viva esta infância nas crianças, chamadas hoje a pior das infantili- zações, a que tira delas sua outredade, seu enigma, sua amea ça. Quem sabe essa experiência da filosofia também contribua a preservar nossa infância, a infância dos adultos, a do nosso pensar. Quem sabe, com isso, manteria viva também a sua própria infância, a infância da filosofia, o que ela tem de im previsível, inesperado, impossível. Talvez sejam suficientes sentidos para seu ensino, qualquer que seja a idade dos que en 43 sinam e dos que aprendem, nestes tempos em que uma visão monolítica do real pretende esgotar todo o campo do possível. 5. Uma lógica não formativa para o ensino da filosofia Um filósofo não se define somente com o um indivíduo a quem houvesse acontecido algo, iluminação, êxtase, duelo, intuição>, possessão e outras crises que tão bem conhecem os poetas e os místicos. Tampouco é uma alm a quebrantada que tomaria por objeto de reflexão a sacudida que o perturbou, para compreendê-la, desde fora, dominando-a pela razão. É antes um espírito que decide transformar sua existência por m eio da inteligência continuada e vivida do que lhe ocorre, compreensão que ele deve conquistar não contando com nada mais que suãs próprias forças. Roger-Pol Droit, N a companhia dos filósofos (1999). Recapitulemos. Estamos num Encontro de Professores de Filosofia, para pensar sobre o seu ensino. Procuremos proble- matizar os sentidos outorgados a esse ensino. Traçamos uma linha que nos permite reconhecer uma história onde a educa ção e a filosofia têm sido fortemente impregnadas pela idéia de formação. A filosofia tem sido ensinada, basicamente, para formar pessoas, para fazer algo de alguém. Esta estratégia pressupõe uma idéia de infância ligada à maleabilidade, à au sência de forma e à conseqüente necessidade de ser informa da. Procuramos oferecer, na parte anterior, elementos que permitam pensar “outra” infância. 44 Podemos seguir e repensar o próprio ensino da filósofiá. Se não é ao serviço da formáção, como podemos pensar seus sentidos? Ensinar filosofia para quê se não é para formar cida dãos para um mundo melhor? Nas próximas linhas tentare mos dar algumas pistas que permitam desenvolvimentos pos teriores. Não estamos em condições de responder tamanhas perguntas, mas, sim, sugerir algumas linhas de trabalho. Parece-nos que esta questão está estreitamente ligada à concepção de filosofia que se afirma quando se ensina. Neste sentido, temos defendido, em outros trabalhos2, que ensinar filosofia bem pode ter que ver com promover experiências de pensamento filosófico. A noção de experiência de pensamen to nos parece fundamental enquanto delimita um espaço qüe alude as clássicas dicotomias entre professor de filosofia e fÜó- sofOj filosofia e filosofar, teoria e práxis. Uma experiência de pensamento é uma prática teórica, intersubjetiva, irrepetívef,' intransferível, uma forma de exercer o pensar que chamamos de “filosófica” quando dá ênfase à crítica, à criação, à difereri- ça, à resistência e a uma interlocüção com umá história de pensamentos que no ocidente tem mais de 26 séculos. Para que, então, impulsionar experiências de pensamento filosófico? Sócrates é sempre uma forte inspiração em filoso fia. Por ser um fundador e deixar abertas as portas da cidade fundada. Pelo que ele tem dito e pelo que se tem dito dele. Por não haver escrito nada e ensinar a outros a escrevê-lo. Por efi- sinar na filosofia.,Pelas experiências de pensamento filosófico' que parece ter impulsionado na cidade. Sócrates, nos parece, sugere um espaço pára problemati- zar as relações entre filosofia e política. E a imagem de umá possibilidade da filosofia em sua relação com a política, umá afirmação de uma prática filosófica, não política, da política.- Mostra que, entre filosofia e política, há mais tensões que cófri- 2. Temos desenvolvido mais a fundo esta idéia em “Fundamentos à prática da filosofo* na escola pública”. ín: Kohan, W., Leal, B. & Ribeiro, A. (orgs.) (2000). FUosoftd 11a escola pública. Petrópolis: Vòzes, p. 21-73. 45 plèmentaridades. É o próprio Sócrates que problematiza a di mensão política da filosofia afirmada em A República: ele não parece afirmar nenhuma política positiva, não mostra nenhum projeto político pelo qual educar, mas é, contudo, um dos poucos, se não é o único ateniense que, segundo o próprio Platão, se dedica “à verdadeira arte da política” (Gorgias, 52 Id), o único que a pratica nesse tempo, o único que faz polí tica de verdade e que, ao mesmo tempo, por essa razão é con denado à morte pela política instituída. Sócrates se opõe às di versas políticas positivas - às democracias, às oligarquias, às ti ranias - através do exercício da filosofia. Ele faz da filosofia uma tarefa eminentemente política e da política uma forma de exercício da filosofia. Afirma um sentido radical para a filoso fia política, que não se encontra na fundamentação de uma utopia, mas em uma forma de vida sustentada pela pergunta, pela aporia, pelo não saber. Pratica uma política e uma filoso fia filosóficas, não políticas no seu sentido estreito e estrito. Sócrates é também uma figura que nos permite pensar a prática e a dimensão pedagógica da filosofia como substanti vamente não formativas, no sentido que temos dado a este ter mo neste trabalho. Sócrates, o menos platônico, o dos primei ros diálogos - por exemplo, o do Eutífron, Críton e Apologia - não parece ter em vista nenhum projeto político, nenhum tipo de cidadão. Só questiona os modos da política afirmados em Atenas. Resiste a eles. Os interroga. Os desoculta. Mas depois de Sócrates veio Platão e a pergunta se tornou resposta, a resistência se tornou proposta e o desocultamento se fez realidade absoluta. Platão entendeu a filosofia política como a afirmação de uma utopia, de um direcionamento co mum por vir, essa pó lis justa onde cada parte cumpre sua fun ção que lhe corresponde (A República IV, 432). Os filósofos que vieram depois foram seduzidos mais por Platão do que por Sócrates. E as utopias se sucederam umas as outras. Pense mos em Aristóteles, Rousseau, Locke,Hobbes, Kant, Marx. Com todas as suas diferenças nos modos de conceber a filoso fia e a política, há um mesmo sentido afirmativo ao pensar a fi losofia política. Deste modo, a filosofia foi alienando-se a si 46 mesma na política, em uma postulação de um dever ser, em certo modo, imune à problematização filosófica. Sua pedago gia não podia não refletir esse estado e a filosofia foi sendo en sinada com sentidos não filosóficos. Quando se ensina filoso fia para afirmar uma política - ou uma moral, uma pedagogia, uma religião, que para este caso é o mesmo, são todas ordens determinantes - , se impossibilita a filosofia porque a moral, a pedagogia, a política e a religião são para a filosofia um pro blema e não um ponto de chegada. Quando se buscam finali dades morais, políticas, pedagógicas, religiosas, a filosofia se torna impossível. Por outro lado, quando a filosofia é possível, a moral, a política, a pedagogia e a religião são um espaço va zio, uma interrogação, um intervalo. Se o ensino da filosofia quer voltar à filosofia, precisa in verter seu platonismo político, recusar a formação política dos cidadãos. Entendida como experiência do pensamento fi losófico, esse ensino não admite nenhuma ordem determinan te. Pensa o impensável. Suspeita que o impossível é possível. Dá testemunho da soberania da pergunta. Afirma a diferença, as outras bases da ordem, suas outras possibilidades, seus pon tos negros, seus enfrentamentos, suas exclusões, seus devires. Como pensar os sentidos deste ensino da pergunta, da di ferença, da resistência? Como se dá esta experiência em uma instituição superpovoada de ordens determinantes como a es cola? É possível ensinar filosofia, no sentido aqui especifica do, na escola, ou em qualquer instituição? É possível uma edu cação filosófica da filosofia? É possível educar na filosofia? Como vocês sabem, em filosofia sempre é interessante acabar com perguntas. Referências bibliográficas ARENDT, Hannah (1961). “The crises of education”. In: Between past and future. Six exercises in political thought. New York: The VikLng Press, p. 173-196. BACHELARD, Gastón (1997). La poética de Ia ensonación. Buenos Aires: FCE. 47 DERRIDA, Jacques (1990). Du clroit à la philosophie. Paris: Galli- mard. DEWEY, John (1925). “The criticai function of philosophy”. 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Com esta colocação, não estou assumindo nenhuma teoria pragmatista, utilitarista ou existencialista, mas apenas afirmando a íntima vinculação do pensar ao existir concreto do homem. Se isso já é válido para qualquer manifestação da subjetivi- • dade, o é muito mais ainda para o caso do conhecimento filo * Mestre em Filosofia pela Universidade Católica dc Louvain e Doutor era Filosofia pela PUC/SP. Professor de Filosofia da Educação na Graduação e Pós-graduação da Faculdade de Educação da Universidade dc São Paulo. Foi membro do Conselho Estadual dc Educação entre 1983 e 1987. 50 sófico, apesar de ser ele a modalidade que mais se expressa com autonomia frente a essas' coordenadas objetivas. Mas esta é uma força entrópica que leva à ilusão, à alienação. Cabe, sim, reconhecer que uma pragmaticidade básica para a filoso fia se traduz como função intencionalizadora de nossa exis tência. É o esforço de busca de senüdo deste existir, caben do-lhe explicitar referências para a condução dessa existência, como intencionalização das práticas reais que a constituem. 1. A filosofia como p a id éia : a educação política Isto quer dizer que o pensar filosófico, em sua substantivi- dade, desdobra-se numa dupla dimensão: uma dimensão polí tica e uma dimensão pedagógica, ou seja, a busca do sentido não é única e exclusivamente um problema do sujeito indivi dual, não é só epistêmica e ética; ela é sempre ligada à esfera do sujeito coletivo, histórico e social. A humanidade, como sujeito coletivo pensante, busca ex- plicitar/construir sentidos que tenham a ver com o direciona mento do agir histórico de seu conjunto. É sempre prenhe de universalidade, por mais que seja um exercício individual. Ora, isso transforma toda atividade intelectual, e de modo direto e explícito, a filosofia, numa explícita pedagogia política. A fi losofia se torna uma paidéia, na medida em que, necessaria mente, se destina a formar a* coletividade humana. Por isso mesmo, e na exacerbação, todo filósofo é um educador da cida de, Não sem razão, impõe-se insistir em que o compromisso fun damental do conhecimento é com a construção da cidadania, entendida esta como um forma adequada de existência no âm bito da pólis, adequada porque realizando uma necessária qua lidade de vida, que o próprio conhecimento, ferramenta privile giada da espécie, lhe permite configurar historicamente. Assim, discutir o ensino da filosofia, no meu entender, pressupõe que tenhamos sempre presente este modo intrínse co de ser do pensar filosófico’. A tarefa pedagógica relacionada com o filosofar me parece direcionada por estes dois vetores. 51 Com efeito, o refletir filosófico assim concebido
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