Buscar

A filosofia do ensino de filosofia

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes
Você viu 3, do total de 189 páginas

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes
Você viu 6, do total de 189 páginas

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes
Você viu 9, do total de 189 páginas

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Prévia do material em texto

Sílvio Gallo 
Gabriele Cornelli 
Márcio Danelon
(organizadores)
Yol. VII
Sílvio Gallo 
Gabriele Cornelli 
Márcio Danelon 
(organizadores)
FILOSOFIA DO ENSINO 
DE FILOSOFIA
EDITORA 
▼ VOZES
Petrópolis
2 0 0 3
C o l e ç ã o F il o s o f i a n a E s c o l a
Coordenadores: Walter Omar Kohan e Ana Míriam Wuensch
- Filosofia para crianças - A tentativa pioneira de Matthew Lipman 
Walter Omar Kohan e Ana Míriam Wuensch (orgs.)
- Filosofia para crianças na prática escolar 
Walter Omar Kohan e Vera Waksman (orgs.)
- Filosofia e infância - Possibilidades de um encontro 
Walter Omar Kohan e David Kennedy (orgs.)
- Filosofia para crianças em debate
Walter Omar Kohan e Bernardina Leal (orgs.)
-Filosofia na escola pública
Walter Omar Kohan, Bernardina Leal e Álvaro Ribeiro (orgs.)
~ Filosofia no ensino médio 
Walter Omar Kohan e Sílvio Gallo (orgs.)
- Filosofia do ensino de filosofia
Sílvio Gallo, Gabriele Cornelli e Márcio Danelon (orgs.)
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) 
(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)
F i lo s o f ia d o e n s in o d e f i lo s o f ia / S í lv io G a l lo , G a b r ie le C o r n e ll i ,
M á r c io D a n e lo n ( o r g a n iz a d o r e s ) 
V o z e s , 2 0 0 3 .
- P e t r ó p o l is , R J :
I S B N 8 5 . 3 2 6 . 2 8 3 0 - 3
V á r io s a u to r e s .
1 . F i l o s o f i a - E s tu d o e e n s in o I . G a l lo , S í lv io . I I . C o r n e l l i , G a b r ie l le .
U I. D a n e lo n , M á r c io .
0 2 - 6 8 3 7 C D D - 1 0 7
índices para catálogo sistemático:
1. Filosofia : Estudo e ensino 107
SUMÁRIO
Apresentação (Gabriele Cornelli), 9
PARTE I - A FILOSOFIA QUE COMEÇA
1. A filosofia que começa: desafios para o ensino da 
filosofia no próximo milênio (Stéphane Douaillier), 17
PARTE II - FILOSOFIA DO ENSINO DE FILOSOFIA
2. O ensino da filosofia frente à educação como 
formação (Walter Ornar Kohan), 33
3. O ensino da filosofia: hisloricidade do conhecimento e 
construtividade da aprendizagem (Antônio J.
Severino), 50
4. Ensino da filosofia e filosofia do ensino filosófico 
(Alejandro A. Cerletti), 61
5. Ética e cidadania no ensino da filosofia (Sílvio Gallo), 70
6. Filosofia do ensino de filosofia (Mauricio Langón), 90
7. Adorno, Rorty e o ensino de filosofia (ou o professor 
de filosofia e o grande filósofo: diferenças e 
similitudes) (Paulo Ghiraldelli Jr.), 101
PARTE III - PRÁTICAS DO ENSINO DE FILOSOFIA
8. O ensino de filosofia na Argentina: apresentação, 
problemas é perspectivas (Guillermo A. Obiols), 115
9. O ensino de filosofia na Itália (Enzo Ruffaldi), 134
10. A filosofia, a universidade e suas possibilidades: em 
torno da política e do mercado (Danilo di Manno de 
Almeida), 151
11. O ensino de filosofia e a formação de professores 
(Junot Cornélio Matos), 174
Anexo: Carta de Piracicaba, 189
APRESENTAÇÃO
A filosofia não é um templo - dizia Canguilhem - mas um 
canteiro de obras.
As próximas páginas nascem como ferramentas de um can­
teiro específico, do qual resta obviamente apenas um simples 
ensaio: o I Congresso Brasileiro de Professores de Filosofia, 
que aconteceu em Piracicaba, interior de São Paulo, de 5 a 8 de 
novembro de 2000, na Universidade Metodista de Piracicaba.
Mesas-redondas, sessões especiais, comunicações, posters 
e as sempre importantes conversas “de corredor e de boteco” 
contribuíram para fazer do Congresso um momento funda­
mental para a construção não ainda de uma associação nacio­
nal de professores (mas disso também se falou), nem tanto de 
um espaço de articulação de estratégias e políticas ligadas ao 
ensino de filosofia no Brasil (mesmo que isso também se pro­
curasse), mas de um verdadeiro canteiro, cujos materiais e fer­
ramentas eram trazidos de vários lugares e ali compartilhados 
no intento de construir não tanto uma casa, nem um teto, para 
os professores de filosofia, mas um espaço de movimento, um 
momento de reflexão.
Assim, com os objetivos de explorar, filosoficamente, a di­
dática do ensino de filosofia em seus vários níveis, gerar espa­
ços para troca de experiências entre professores atuantes em 
todo o país e explorar novas possibilidades teóricas e metodo­
lógicas para pensar e praticar o ensino de filosofia, o Congres­
so discutiu os impasses e desafios da filosofia no sistema de en­
sino brasileiro contemporâneo, tentou consolidar um espaço 
de intervenção sobre o ensino de filosofia para professores 
atuantes em todo o país, chegando também a pensar os atuais 
espaços públicos da filosofia no Brasil.
9
Deste canteiro restam boas discussões, muitos contatos, 
projetos de colaboração para o futuro e - para todos - esta pu­
blicação, que quer se apresentar como uma caixa de ferramen­
tas do pensar o ensino de filosofia hoje.
Os textos, todos apresentados e discutidos no Congresso 
de Piracicaba, têm a diversidade como definição mais própria, 
tanto do ponto de vista da proveniência geográfica (França, 
Itália, Argentina, Uruguai e vários estados do Brasil), como - e 
talvez mais precisamente - do ponto de vista a partir do qual 
as questões relativas ao ensino da filosofia são abordadas. Des­
ta forma, tradições filosófico-pedagógicas, experiências insti­
tucionais, profissionais e existenciais, “histórias” e “presen­
tes” da filosofia entre a legislação educativa e as mais diversas 
salas de aula (incluindo aquelas sem lousas e carteiras...) se en­
contram para formar uma linguagem complexa e irredutível a 
uma indesejável homogeneidade.
A uma leitura atenta não foge, porém, um ponto de con­
vergência na diversidade acima indicada, que surge na singula- 
rização de um campo de discussão que, pensando a filosofia 
como ensino, revela a necessidade da reflexão sobre sua função 
política, seu significado enquanto instrumento de formação de 
homens e mulheres cidadãos.
Este campo que podemos resumir nas interseções da tría­
de filosofia-ensino-política, que encontraremos como pano de 
fundo conceituai em praticamente todas as contribuições a se­
guir, permite assim reconhecer à reflexão sobre o ensino da fi­
losofia não somente um passaporte, ou uma “carteira de iden­
tidade” filosófica no interior da Filosofia (aquela dos grandes 
clássicos), mas - ao mesmo tempo - a definição de um outro 
lugar hermenêutico, um ponto de vista próprio, a partir do 
qual pensar a mesma filosofia.
Isto é, após reafirmar mais uma vez que refletir sobre o en­
sino de filosofia é também ofício da filosofia, no lugar de uma 
simples reivindicação de um espaço dentro da filosofia para 
pensar o seu ensino, o canteiro de Piracicaba parece elaborar 
uma nova compreensão deste mesmo espaço. Assim o ensino
10
de filosofia adquire, nestas páginas, a conotação de um lugar 
muito particular e significativo a partir do qual pensar a pró­
pria Filosofia, toda ela, mesmo - ou talvez, sobretudo - aquela 
com F maiusculo.
Este livro divide-se, assim, em três partes.
A primeira, ao modo de uma introdução, é dedicada ex­
clusivamente ao sugestivo texto de Stéphane Douaillier: A fi­
losofia que começa. Aqui o autor, a partir da proposição, no 
Fédon de Platão, de uma contradição entre dois modelos ori­
ginários de ensino de filosofia (o socrático e o pitagórico), evi­
dencia dificuldades de identificação da filosofia e de sua dis­
tinção dos outros saberes quando pensada simplesmente 
como atividade de “pensar por si mesmos”. O ensino de filo­
sofia encontra sua especificidade quando é pensado, pelo au­
tor, com “poder de começo”, segundo nascimento, prática de 
contínua refração a partir dos clássicos, guiada por um profes­
sor de filosofia que deve ser sempre mestre de ignorância, e 
por isso mestre de começar.
A segunda e a terceira partes do livro organizam as discus­
sões a partir de dois eixos fundamentais: de um lado, a discus­
são teórica da Filosofia do ensino de filosofia , e do outro lado, 
a partilha de reflexões e experiências de Práticas do ensino de 
filosofia.
Na segunda parte {Filosofia do ensino de filosofia),Walter 
Omar Kohan (O ensino da filosofia frente à educação com o 
form ação) começa se perguntando “para que filosofia?” e aca­
ba notando que a filosofia foi e continua em grande parte a 
serviço de uma paidéia formativa e fabricadora de modelos de 
pessoas humanas. A partir da inspiração socrática, o autor 
propõe a necessidade de uma prática pedagógica da filosofia 
que abandone a lógica educacional formativa, restando aberta 
à soberania única da pergunta. Antônio J. Severino (O ensino 
da filosofia: historicidade do conhecimento e construtividade 
da aprendizagem) procura na dupla dimensão, política e peda­
gógica, do pensar filosófico, a definição do filósofo como edu­
cador da cidade. Reafirmando a validade, portanto, da univer­
11
salização da filosofia, o autor reafirma a mediação estratégica, 
para o ensino da filosofia, da historicidade do conhecimento 
humano, mas longe do risco de idealizações historicistas. Ále- 
jandroA. Cerletti {Ensino da filosofia e filosofia do ensino filo­
sófico), refletindo a partir de alguns problemas ligados à for­
mação dos professores de filosofia, anota uma mudança que 
vem acontecendo neste âmbito, no sentido de uma compreen­
são de ensino de filosofia não tanto com ensino de “algo”, mas 
como “ensinar a filosofar”, isto é, como construção de um 
olhar problematizador. Desta perspectiva deriva, segundo o 
autor, a necessidade da priorização das didáticas específicas, 
sendo as experiências realizadas no interior destas últimas a 
base sobre a qual construir uma eventual generalização didáti­
ca. Sílvio Gallo {Ética e cidadania no ensino da filosofia) per- 
gunta-se de que ética e de que cidadania se fala nas políticas 
educacionais latino-americanas. A partir da análise dos funda­
mentos filosóficos que sustentam a compreensão dos termos, 
o autor questiona o caráter formativo de toda e qualquer filo­
sofia, e, portanto, de toda e qualquer forma de ensinar filoso­
fia, encontrando na educação para a singularidade e numa fi­
losofia da imanência os caminhos de uma educação possível à 
ética e cidadania. Maurício Langón {Filosofia do ensino de fi­
losofia) constrói a reflexão “de volta” da filosofia do ensino de 
filosofia partindo da constatação de que, a bem ver, a questão 
não é de ensino, mas de aprendizagem. Desta forma, a própria 
questão didática muda seu sentido, por não se tratar de uma 
memorização de um conteúdo, mas da aquisição de capacida­
des necessárias para o desenvolvimento de uma certa ativida­
de: a do filosofar. Indicando algumas destas atividades pró­
prias do filosofar, o autor define a didática do filosofar não 
como um modo da didática, mas como um modo específico 
do filosofar. Enfim, Paulo Ghiraldelli Jr. {Adorno, Rorty e o en­
sino de filosofia [ou o professor de filosofia e o grande filósofo: 
diferenças e similitudes]), partindo da tese de que existe uma 
diferença entre filósofo e professor de filosofia, busca, através 
da leitura de Adorno e Rorty, identificá-la na possibilidade (e 
oportunidade) que o primeiro teria de cometer erros, ao con­
trário do segundo.
12
Na terceira parte (Práticas do ensino de filosofia), Guiller- 
m o A. Obiols (O ensino de filosofia na Argentina), após um 
breve percurso histórico relativo do ensino de filosofia na 
Argentina até a recente reforma educativa, propõe alguns mo­
delos metodológicos de ensino de filosofia para o segundo 
grau, mantendo como referencial fudamental os dois rostos 
que a filosofia deveria mostrar, quando ensinada: o informati­
vo e o formativo, isto é, a filosofia e o filosofar. Enzo Ruffaldi 
(O ensino de filosofia na Itália) destaca a abordagem marcada- 
mente histórica da tradição italiana no que diz respeito ao en­
sino de filosofia. Recentes propostas de mudanças no sistema 
escolar fizeram surgir o desafio de uma redefinição radical de 
conteúdos e métodos, com um destaque de especial interesse 
para dois modelos de organização do trabalho na sala de aula: 
a sala como laboratório e a classe como comunidade de pes­
quisa. Danilo diM anno de Almeida {A filosofia, a imiversidade 
e suas possibilidades: em torno da política e do mercado) reco­
nhece que historicamente a filosofia achou sua casa na Univer­
sidade. O autor, a partir da leitura crítica de Schopenhauer e 
Nietzsche e de uma específica experiência institucional, discu­
te os riscos, implícitos nesta moradia, de redução de sua capa­
cidade crítica e de encantamento com si mesma e com as re­
gras acadêmicas ou do mercado. Junot Cornélio Matos (O en­
sino de filosofia e a form ação de professores) propõe as ques­
tões da relação entre filosofia e educação a partir de uma leitu­
ra comparativa dos filósofos brasileiros que se dedicaram à 
discussão desta questão. De maneira especial o autor discute o 
estilo específico do filosofar brasileiro e a formação dos pro­
fessores de filosofia nos cursos de graduação.
Enfim, como anexo, o leitor encontrará no fim destas pá­
ginas a Carta de Piracicaba, documento produzido pelo Con­
gresso no sentido de uma afirmação de um anseio a favor da 
inserção da filosofia nos currículos escolares.
Além destas e muitas outras palavras que marcaram o Con­
gresso, restaram indicativos de continuidade e vários projetos 
concretos, como os de organizar fóruns de professores de filo­
sofia em nível regional, da oportunidade de realizar em breve
13
um II Congresso Brasileiro de Professores de Filosofia, de redo­
brar o esforço para a realização de novas publicações nesta 
área, de criar linhas de pesquisa específicas sobre o ensino de fi­
losofia em nível de pós-graduação. Entre todos esses, o projeto 
que mais teve destaque foi o da criação, através de uma série de 
reuniões de articulação regional e nacional, de um Conselho 
Deliberativo Nacional, com representações dos estados presen­
tes no encontro e aberto a novas indicações vindas de estados 
que não tiveram representação no Congresso, além de um Co­
mitê Executivo, formado por um representante de cada grande 
região do país. Ambos com objetivo de debater as questões liga­
das à articulação dos professores de filosofia visando a operacio- 
nalização de algum tipo de entidade nacional.
Mais além destas palavras e dos projetos, o Congresso e a 
presente publicação querem ser testemunho de uma vontade, 
de um desejo forte, apesar de tudo, de continuar apostando na 
filosofia como momento significativo para formação do indi­
víduo em experiência escolar.
O Congresso e esta publicação não teriam sido possíveis 
sem o apoio do Conselho Nacional de Desenvolvimento Ci­
entífico e Tecnológico (CNPq), da Fundação de Amparo à Pes­
quisa do Estado de São Paulo (Fapesp), da Universidade Meto­
dista de Piracicaba (Unimep) e da Editora Vozes. A todos e to­
das vai nosso agradecimento sincero.
Piracicaba, junho de 2001 
Gabríele Com elli
14
PARTE I
A filosofia que começa
1. A FILOSOFIA QUE COMEÇA: 
DESAFIOS PARA O ENSINO DA 
FILOSOFIA NO PRÓXIMO MILÊNIO*
Stéph a n e D o u a ilu e r * *
Do ensino filosófico que se poderia desejar para os tempos 
futuros talvez se possa dizer que teria de aceitar o desafio de 
ser, quem sabe, pitagórico. Por pitagórico, nessa proposição, 
tentar-se-ia significar não tanto a realidade histórica atestada e 
cientificamente estudada de uma tradição antiga, mas certos 
traços gerais que essas escolas parecem ter mostrado visíveis 
no seu tempo e que parecem ter dado origem às primeiras dis- 
sociações a respeito das próprias palavras filosofar (pbiloso- 
phein) e filosofia (plnlosophia).
Dificilmente informados sobre as atividades reais que 
ocorriam no interior dessas escolas pitagóricas, durante lon­
gos séculos da Antigüidade, em geral recebemos de fato, ao in­
vés, a imagem sob a qual eram percebidas particularmente 
dois traços dessa imagem. Conforme o primeiro, essas escolas 
parecem ter oferecido um ensino de uma progressividade mi­
nuciosamente definida: o aluno deveria ali efetuar um percur­
* Tradução do espanhol por Ephraim Ferreira Alves.
** Doutor em Filosofiac Professor Titular no Departamento de Filosofia na Universi­
dade Paris VIII. É co-diretor das coleções La Phtlosopbie em commun (Éditions 
Lharmattan) e Regarás croisés sur la plnlosophie (Éditions Lysimaque).
17
so que o levasse de uma periferia compartilhada com o conhe­
cimento comum para graus que o introduzissem nos rudimen­
tos da ciência e permitissem aos poucos aos espíritos mais do­
tados e melhor aplicados terem acesso a um núcleo de conhe­
cimento último da doutrina. A palavra pbilosopbein , com 
tudo o que exprime de desejo e movimento para um saber, te- 
ria como tarefa ali significar essa percepção de um mundo e de 
um estado de conhecimento a atingir, o percurso que levaria 
até lá, a tensão na qual efetuar este último. De acordo com o 
segundo traço dessa imagem, essas escolas parecem ter forma­
do com esse método certos espíritos sábios que não teriam re­
cusado, quando alguma cidade lho solicitasse, pôr seus altos 
conhecimentos e sua profunda honestidade a serviço da reso­
lução de problemas que podiam surgir no seio do mundo anti­
go e, sob este aspecto, fazer o papel de peritos disponíveis 
para as cidades em apuros ou geralmente de elites políticas 
produzidas por instituições de formação de altíssimo nível. 
Escreve Jâmblico, na Vida de Pitágoras (249):
A escrupulosa honestidade dos pitagóricos e ao mesmo 
tempo a própria vontade das cidades faziam que eles fossem 
solicitados para estar à frente do governo e da administração 
dos negócios públicos.
Por esses traços, as escolas pitagóricas se deixariam então 
compreender, como teriam sido, por um lado, unidades bem 
estruturadas de produção sábia e, por outro, como reservas de 
serviços de peritos. O mundo antigo, porém, ainda que tivesse 
podido conhecer o seu valor, parece não se ter interessado 
muito por essas escolas. Não teria considerado como dever da 
cidade favorecer a sua existência. Pior: nos repetidos episódios 
em que se organizaram perseguições contra elas, em que suas 
casas foram incendiadas e seus membros expulsos de cidade 
em cidade para serem assassinados, as cidades gregas não te­
riam pensado um instante sequer como seu dever ou de seu in­
teresse proteger esses lugares e esses homens que se consagra­
vam às nobres e eventualmente úteis tarefas do saber. Conta 
Jâmblico, por exemplo:
18
Os cidadãos de Ciloa não cessaram de perseguir os pitagó- 
ricos com sua animosidade. Levaram a conspiração contra eles 
a tal ponto que um dia em que os pitagóricos se tinham reuni­
do em assembléia na casa de Mílon, em Crotona, e delibera­
vam sobre os negócios da cidade, incendiaram a casa e todos os 
seus ocupantes pereceram queimados, salvo dois (...). Catás­
trofe tão grave e tão espantosa não suscitou reação alguma da 
parte das cidades. Indiferentes, guardaram o mais profundo si­
lêncio sobre essa catástrofe (Vida de Pitâgoras, 249-250).
O ensino de Platão, que se desenvolveu a partir da figura 
de Sócrates, apresenta alguns traços semelhantes. Desenvol­
veu-se aparentemente no mesmo espaço conflitivo e em um 
espaço de despreocupação do poder político ilustrados pelos 
célebres episódios do processo contra Sócrates ou os percalços 
de Platão na corte dos tiranos de Siracusa. Ele se situou sob a 
determinação da busca de um saber preocupada em se explici­
tar de modo semelhante sob os nomes de filosofar (p b iloso - 
pheiri) e de filosofia (philosophia). Associou-se também à pers­
pectiva de dotar o mundo grego-de elites dirigentes, de sorte 
que Platão parece ter formado esse projeto fundando a Acade­
mia. No entanto, essas semelhanças não impedem que se lance 
a hipótese que aquilo que se introduziu, com Platão, sob o 
nome de philosophia, e com o que lidamos ainda hoje, foi uma 
empreitada diferente em seu princípio e em suas conseqüên- 
cias da vontade pitagórica de instituir puros espaços de sabe­
doria eventualmente dispostos a se descobrirem úteis ao mun­
do em que se situam. Assim, com efeito, não se apresenta o 
mundo de filosofia que é descrito nos Diálogos de Platão, e cuja 
especificidade pode-se tentar perceber precisamente onde Pla­
tão parece ter sido levado a precisar a diferença de seu projeto 
em confronto com os pitagóricos e, sem dúvida, em confronto 
com o que o mundo antigo compreendia sob o nome de esco­
las sábias e filosóficas.
1. A alma platônica
Platão introduz notavelmente um membro de um círculo 
pitagórico (Equécrates de Flionte) num diálogo que, de fato,
19
põe em cena um momento da vida de Sócrates absolutamente 
decisivo para o futuro da philosophia tal como a praticava, a 
saber, no Fédon. O Fédon, que narra como se sabe a morte de 
Sócrates, é decisivo sob esse aspecto por ao menos duas ra­
zões. Aborda em primeiro lugar, instalando-se nesse momento 
singular, a questão da herança de Sócrates. Morto Sócrates 
(que está efetivamente morto quando Fédon narra essa mor­
te), entre que mãos, sob que formas, em que lugares pode-se 
imaginar ou conhecer que o seu ensino tem continuidade? Ele 
aborda a questão, a seguir, no seio de uma circunstância parti­
cular que é a ausência de Platão (que se apresenta como pre­
tendente a essa herança) no momento da última hora de Só­
crates. Na representação tradicional que o mundo antigo fazia 
de um homem sábio e de grande ciência, a sua última hora ti­
nha extrema importância. Ouve-se um eco disso na Ética a Ni- 
côm aco (1,9-11) de Aristóteles, ao lembrar que o sentido últi­
mo de uma vida ou de uma obra fica em suspenso até o último 
instante dessa vida e dessa obra, e Hegel ou Nietzsche tentan­
do compreender aquilo que Sócrates quis dizer ao pedir no úl­
timo instante que se sacrificasse por ele um galo a Esculápio, 
testemunharão, também eles, essa mesma inquietude. Na últi­
ma hora, parece, na última palavra, no último gesto, decide-se 
não apenas a herança da obra, mas ainda se fixa o sentido defi­
nitivo dessa obra. E parece bem claro, aos olhos dessa lógica, 
que são aqueles que durante mais tempo tiveram contato com 
a obra, que se mantiveram na relação mais íntima com o ho­
mem de ciência ou de sabedoria, que conheceram todos os ca­
pítulos, e todos os episódios até o último, que elaboraram a re­
presentação mais completa de seu sentido, que parecem na 
hora da morte deste último os mais qualificados para se torna­
rem seus herdeiros e continuarem a fazer repercutir sua obra.
Do ponto de vista dessa lógica, na cena organizada por 
Platão no exórdio do Fédon, Equécrates de Flionte, membro 
de uma escola pitagórica, desejoso talvez de obter informa­
ções sobre a escola de filosofia socrática que lhe parece irá se 
instalar em Atenas depois da morte de Sócrates, interroga Fé­
don. Quais foram até o último momento, pergunta ele, as pa­
20
lavras e os atos de Sócrates? JB quais as pessoas, mais ou menos 
dignas ou capazes de serem suas testemunhas, que lhe recolhe­
ram o legado? O ensino da filosofia, tal como o imagina Equé- 
crates de Flionte, tem como fonte o legado - e se possível o le­
gado exato - de um saber. Possuir o conhecimento mais incon­
testável e o mais amplo possível, é isto, a seus olhos, que colo­
ca alguém na condição de ensinar. Pode-se ensinar quando se é 
sábio. Quando se possui uma ciência. Ensinar teria sido a tare­
fa de Sócrates, em vista de sua ciência e sabedoria. Estando ele 
morto, ensinar seria a tarefa daqueles que, por se terem apega­
do a elas freqüentando-o, por tê-las aprendido dele e com ele, 
e aprofundado em seus núcleos significativos essenciais, teriam 
tido acesso a essas mesmas ciência e sabedoria.
Essa representação possui a força de cobrir em larga mar­
gem aquilo que chamamos de estudos de filosofia. No entan­
to, Platão, como fazemos também nós sem nos darmos sempre 
conta, efetua uma ruptura prenhe de sentido no que tange a 
essa representação. Na dramaturgia do Fédon, essa ruptura 
entra em cena quando Fédon demora a responder às pergun­
tas feitas por Equécrates sobre as últimas palavras e últimos 
gestos de Sócrates, que poderiam fixar definitivamente ocor- 
pus socrático, bem como a respeito dos discípulos presentes 
que poderiam ser os seus herdeiros. Fédon fala inicialmente 
de uma outra coisa, que parece não poder esperar, e é muito 
mais importante, tocar na verdadeira questão levantada por 
Equécrates, e que é ele m esm o:
Agora, portanto, eu (Fédon) - como o faz dizer Platão - 
enquanto eu estava presente junto a Sócrates, eu sentia coisas 
espantosas (tbaumasia epaton).
Essa ruptura põe em cena diversos deslocamentos que, as­
sim como o indica a referência feita nesse momento ao espan­
to (itbaumasia), concernem segundo Platão à própria especifi­
cidade da filosofia. O primeiro modifica de certo modo a na­
tureza do legado. Na reação de Fédon se aponta que a filosofia 
socrática não está mais contida nas palavras, nos gestos e nos 
testemunhos do ensino de Sócrates, mas antes de tudo naquilo
21
que se traduziu deles em certas almas. Fédon opera na abertu­
ra do diálogo uma passagem regularmente operada nas argu­
mentações platônicas, e que leva da consideração do que 
acontece no mundo das coisas (sensíveis) à atenção por aquilo 
que se passa na alma. Esse deslocamento parece até apontar, 
dando ao Fédon o seu tom particular, para aquilo que parece 
ser um levar em conta uma alma singular: “Agora, portanto, 
eu”, declara com efeito Fédon. O terceiro elemento que pare­
ce acompanhar, nesse preâmbulo do Fédon, esses deslocamen­
tos, é enfim o de uma em oção (epaton ), dessa alma e desse 
“eu”. Assim, nesse momento da vida de Sócrates em que se 
joga a questão do legado de seu ensino bem como, em boa par­
te, da aventura que se vai chamar philosophia, Platão faz Fé­
don dizer que a realidade a partir da qual se pode tentar pen­
sar esse legado e essa aventura é a de uma alma singular emocio­
nada de maneira espantosa.
Bem entendido, pode-se facilmente adivinhar aquilo que 
Platão, postulando a herança socrática, ganha no contexto an­
tigo das escolas de sabedoria, apresentando assim as coisas. 
Ausente, na última hóra, aos últimos atos e últimas palavras 
que poderíam ter reservado alguma revelação última que mo­
dificasse o sentido da obra socrática, Platão fica sendo um pre­
tendente tanto mais legítimo à continuação do ensino socráti- 
co quando se pensa que a produtividade na alma seria mais re­
levante que as palavras e os atos, e que seria igualmente im­
portante, na fonte dessa produtividade, a emoção na alma que 
a precedeu e que, pela indicação de Platão, teria sido nele de 
intensidade particular, visto que o mesmo diálogo do Fédon 
nos informa que nessa hora érucial Platão teria estado enfer­
m o (Platon de oim ai esthenei). Platão, nesta espécie de esclare­
cimento que o Fédon efetua a respeito da questão da herança 
socrática, supera assim algumas objeções que se poderíam 
opor à sua vontade de se fazer um continuador do ensino de 
Sócrates, e ao mesmo tempo refletindo sobre o seu lugar pró­
prio no seio da configuração dos que estavam mais ou menos 
perto de Sócrates, sobre a proximidade atípica com Sócrates 
que parece ter sido a sua, sobre as modalidades específicas em
22
que escolheu assumir a continuação de seu ensino e que, de 
fato, marcaram talvez até o dia de hoje aquilo que pode ser 
praticado sob o nome de ensino filosófico.
2 . Pensar por si mesmo
Upi dos efeitos remotos que, no seio'do ensino filosófico 
tal como é praticado, por exemplo, na França hoje, parece 
lembrar que a filosofia tem iniciálmente como lugar a alma e 
não as proposições alinhadas de um saber qualquer - se diz en­
tre outros em um convite feito aos alunos desse ensino para 
que pensem por si mesmos. Há uma história, que se poderia 
reconstituir, desse convite. Em seus momentos tardios, ele se 
encarnou em uma evolução do ensino filosófico francês que 
esboçou a sua forma institucional1, arrancando-o à prática an­
terior à Revolução Francesa de um curso ditado em latim es- 
colástico, firmemente ancorado em um manual autorizado, 
constituído por uma série finita de questões sábias e de respos­
tas consagradas, tiradas de Aristóteles e Descartes, submeten­
do os poucos desenvolvimentos autorizados às figuras codifi­
cadas da explicação e da disputa, reduzindo o exame de fim de 
estudos à estrita verificação de sua aprendizagem. Em um mo­
vimento que o levou à sua forma quase contemporânea em 
meados de 1863 , esse ensino chegou à sua representação 
como ato livre do pensamento desenvolvendo ao menos três 
dimensões. O uso da língua vulgar substitui o do latim (intro­
duzida em 1808 nos liceus, a língua vulgar torna-se ali a práti­
ca efetiva em 1829). O estrito tratamento de uma série delimi­
tada de questões articuladas a suas respostas consagradas dá 
lugar a uma improvisação pessoal chamada lição ou curso do 
professor (1830), que se articula à perspectiva de produzir nos 
alunos 2>capacidade de redigir uma composição pessoal (enfo­
que que se afirma como objetivo privilegiado do ensino filosó­
fico entre 1820 e 1864), e que ganha todo o vigor a partir de
1. Cf. Douailler, S. ôc Vermcren, P. (1987). “Uinstitutionnalisatíon de Penseignement 
philosophique français”. In: Univers philosophique. Encyclopédie philosophique uni- 
verselle. Paris: Presses Universitaires de France, vol. I, p. 808-814.
23
uma liberdade concedida aós professores para tratarem as no­
ções no programa na ordem que preferissem (1863). A depen­
dência, enfim, dos manuais que desfiavam os conteúdos a assi­
milar dá lugar a uma livre consulta dos professores aos textos 
de história da filosofia no seio de uma lista sempre mais liberal 
(a partir de 1830). Em cima dessa tríplice base, que libera a 
língua, a palavra e a matéria, e apesar de diversos episódios 
políticos que resultaram dessa liberação e foram recentemente 
estudados por Patrice Vermeren2, o ensino filosófico francês 
se tornou predominantemente uma prática confiada à respon­
sabilidade daqueles que o exercem por profissão, responsabi­
lidade determinada a minima por um programa tipo e pela de­
finição de um exame final, que autoriza um grande leque de 
possibilidades (com relação ao qual o recrutamento dos pro­
fessores e suas práticas efetivas não deixam de apresentar pa­
radoxalmente o corretivo de atitudes relativamente estereoti­
padas), e que tomaram entre outros como lema a fórmula kan- 
tiana segundo a qual não se aprende filosofia mas a filosofar. 
Ou seja, portanto, quer se trate do professor ou do aluno, a 
pensar por si mesmo. A desenvolver um espanto. A pôr em 
movimento a sua alma.
Compreendido assim, o ensino filosófico implica ainda 
uma dificuldade. Pensar por si mesmo, espantar-se, pôr em 
movimento a própria alma, não são, é claro, atividades sufici­
entemente específicas para que se possa identificar o próprio 
de um ensino, de uma disciplina, de um estilo de exercícios, 
isto é, identificar precisamente aquilo que se impôs neste mo­
mento nas instituições francesas como disciplina escolar. E 
uma segunda leitura que se poderia fazer da história que levou 
na França ao ensino filosófico que aí se ministra hoje mostra­
ria que esse ensino não chegou a esclarecer a reserva de com­
petências que a sua frequência produziría nos inúmeros alu­
nos que o sistema escolar francês obriga a seguir um curso de 
filosofia. Método universal de análise nas escolas normais do 
II ano, invenção de um poder espiritual novo para um mundo
2. Vermeren, P. (1995). Le jeu de la philosophie et de VEtat, Paris: UHarrnattan.
24
pós-Revolução sob Victor Cousin, cultura da autonomia da 
razão na virada kantiana efetuada após a guerra de 1870, des­
pertar para um fim metafísico das coisas e dos saberes na Sor- 
bonne triunfante do final do século X IX e do início do século 
X X , coroamento letrado e humanista da cultura dos liceus, 
mediação responsável para a época e o universo das ciências 
“duras” e sociais etc., o ensino filosófico francês se viu na rea­
lidade justificado ao longo do tempo por funções bem diferen­
tes. Essas justificações3, cuja sucessão histórica parece ter sidomenos capaz de evidenciar um progresso ou aprofundamento 
do ensino filosófico do que propor uma série de salvamentos 
inesperados de seu futuro contra o desgaste das representa­
ções herdadas, parecem sobretudo trair a natureza perecível 
de cada uma. As promessas reiteradas de competências que os 
alunos ganhariam freqüentando a filosofia e a aquisição de 
seus saberes específicos continuam mantendo de pé o obstácu­
lo de deixar, apesar de tudo, os responsáveis sociais e políticos 
um tanto indiferentes no fundo, e estes não se comoveriam 
mais que na época antiga se ocorresse uma catástrofe à filoso­
fia e aos filósofos. Os responsáveis sociais e políticos, por me­
lhor disposição que alimentem quanto a esse ensino, não se 
deixam ensurdecer por suas boas intenções a ponto de não en­
tender nas justificativas propostas que as competências pro­
metidas não poderíam ser sob certos aspectos mais que uma 
reserva de competências, o luxo de um complemento de ho­
nestidade, de penetração, de sabedoria. E, então, uma catás­
trofe que atingisse a filosofia não poderia, a seus olhos, pre­
tender ser uma catástrofe absoluta.
3. O “nascimento” de Platão
A decisão de dar continuidade à tarefa de ensino ou de 
transmissão contida na filosofia exige, com efeito, que ela seja 
compreendida em outro cenário que aquele que perseveraria
3. Cf., entre outros, Douaillcr, S., Mauve, Cli., Navet, G.,'Pompougnac, J.-C . Sc Ver- 
mercn, P. (1988). La philosophie saisie par l*Etat (petits écrits sur Fenseignemerit 
pbilosophlque en Frattce, 1789-1900). Paris: Aubier.
25
na evidência, reinventada ao ensejo de uma institucionaliza­
ção disciplinar e escolar da filosofia, de lhe dar como partida 
as efetivas aptidões da filosofia para exprimir seu universo sob 
a forma de um programa bem estruturado de produção sapi- 
encial e a se oferecer nessa situação como reserva de compe­
tências específicas, ou seja, aquilo que foi designado aqui, por 
comodidade de exposição, como “pitagorismo”. Esse outro 
cenário parece que se pode deixar decifrar nas páginas já cita­
das do Fédon e na ruptura - a que já se aludiu - que parecem 
manifestar com relação às modalidades normalmente espera­
das de constituição de uma escola “socrática” de filosofia de­
pois da morte de Sócrates ao lado das muitas outras escolas de 
sabedoria da antiguidade. Em termos estritos, para nós que le­
mos o Fédon, a morte de Sócrates e todo o futuro aí implícito 
para ser tomado como o tema para a história da filosofia e de 
seu ensino que é chamada a tornar-se, já nos é contada no Fé­
don a partir de uma continuação do ensino socrático. Ela nos é 
contada segundo a maneira como Platão entende que deva 
efetuar-se essa continuação. O que nos acontece, sob a forma 
do Fédon, já não é o ensino do próprio Sócrates - a esta altura 
ele já está morto - mas a sua continuação e, neste sentido, tal­
vez uma das formas originárias daquilo que estaríamos já au­
torizados a chamar um ensino de filosofia. E, então, aquilo que 
o Fédon, enquanto já este ensino insinua, está, como se lem­
brou, em lugar dos elementos constitutivos capazes de fundar 
uma unidade original de produção sapiencial (os discípulos in­
formados, os conteúdos garantidos, as operações característi­
cas), a emoção pessoal e prévia de um espanto que a tradição 
muitas vezes destacou nas proposições platônicas, mas que 
aqui parece suscetível de algumas precisões complementares. 
A emoção atestada por Fédon seria, indica o texto, como que 
um afeto desconcertante (atopon patbos) e como que uma 
mistura insólita (anethes krasis) de prazer e dor (hedone, lype). 
O prazer superior a todos os outros (panton ediston) que re­
presenta para Fédon a possibilidade de lembrar-se de Sócra­
tes, de falar ele mesmo sobre ele ou de escutar outro falar so­
bre ele (Fédon, 58d), ou seja, o prazer supremo que suscita 
nele alguma coisa semelhante ao que designamos por ensino
26
da filosofia, se apresenta como tendo tido no seu efetivo início 
uma afeição insólita, desconcertante, mista, de prazer e dor. 
Haveria grande vantagem em compreender plenamente aqui­
lo sobre o que o próprio Platão deu assim testemunho, mas 
parece bem que fazendo precisar por Fédon que esta era a si­
tuação específica de abandono (diekeim etha) na qual se teriam 
achado diante da morte de Sócrates os presentes do círculo so- 
crático, a saber, ora rindo, ora chorando (tote men gelontes, 
eniote de dakryontes), tenha com essa caracterização respon­
dido na realidade da maneira mais profunda à pergunta do pi- 
tagórico Equécrates sobre esse círculo e suas possibilidades de 
futuro naquele momento.
Existem outros testemunhos que associam a especificida­
de daquilo que Platão faz e essa questão de risos e lágrimas. Na 
Vida que lhe consagra, Diógenes Laércio narra que Platão, de­
pois de ter ouvido Sócrates, teria queimado tragédias que es­
boçara e se teria voltado para a escrita de caracteres segundo o 
modelo dos Mimos de Sofron (Vidas e doutrinas dos filósofos 
ilustres, III, 5 e 18). No final do Banquete, o próprio Platão 
apresenta Sócrates defendendo diante de Agatão e de Aristó- 
fanes a idéia de uma arte que fosse capaz de unir a de compor 
as tragédias e a de fazer as comédias {Banquete, 223d). Nesses 
testemunhos, a atividade que Platão preferiu escolher se mos­
tra no surgimento que ela efetua fora de um contexto compre­
endendo perdas e achados, e no poder de invenção que parece 
a seus próprios olhos conter. Que Platão tenha reivindicado, e 
no fundo tenha sido bem-sucedido nessa reivindicação, trans­
mitir o ensino de Sócrates e situar-se assim num dos pontos de 
partida da filosofia, é uma circunstância cuja improbabilidade 
talvez nos seja difícil perceber, bem como a silenciosa, ou qua­
se silenciosa, audácia. Pela imagem da anedota duvidosa, igual­
mente contada por Diógenes Laércio, pretendendo que Sócra­
tes, tendo um dia ouvido Platão ler o Lísias, teria exclamado: 
“Por Hércules! Que mentiras conta esse moço a meu respeito” 
(Vidas e doutrinas dos filósofos ilustres, III, 35), a transmissão 
que Platão efetua a partir do ensino socrático se oferece à pos­
teridade sem que Platão talvez tenha sido um dos mais próxi­
27
mos ou um dos mais reconhecidos por Sócrates, sem que te­
nha feito parte até o fim do círculo dos presentes, depositários 
da autoridade das últimas palavras e dos últimos atos de Só­
crates, sem que ele se tenha julgado obrigado a limitar sua 
obra aos fatos, gestos e palavras daquele a quem ele atribuiu 
quase inteiramente sua obra. Contra todas as garantias recebi­
das de uma transmissão sapiencial do ensino socrático, Platão 
mostra a emoção que experimentou, o sentimento de estar 
deslocado (atopon) e fora de seus hábitos (aetes) por alguma 
conjunção de uma perda e de uma possibilidade de invenção, 
a convicção de ser deste modo singular verdadeiramente fiel à 
lição de filosofia. E talvez convenha, para abordar o que teria 
ali começado de ensino da filosofia, endurecer alguns de seus 
traços e reuni-los provisoriamente nas seguintes proposições:
1. O ensino da filosofia, mais que um prolongamento sa­
piencial específico, é um poder de começo. E o que se pode, 
entre outras coisas, decifrar do prólogo do Fédon : diante da 
questão de um continuar depois de Sócrates, a reafirmação, 
para efetuar a continuação, de um começo de Platão. A des- 
continuidade física da filosofia (mortes de homens, perdas de 
manuscritos, destruição de escolas, esquecimento dos contex­
tos etc.) não se supera somente pela renovação das disciplinas, 
o arquivamento dos escritos, a defesa das instituições, o aper­
feiçoamento dos paradigmas explicativos, mas ainda por uma 
série descontínua de recomeços que o ato de ensinar produz 
em particular no dia-a-dia.
2. Esse começo não se efetua na pureza de um começo que 
põe seus primeiros elementos e inicia nos encadeamentos re­
gulados que levam à posse do saber que daí se deixa derivar, 
mas procede por efração em um sistema de representações e 
deconhecimentos já existente. Ele vem, por exemplo, no caso 
de Platão, fazer efração na esfera em que Platão se destina à 
atividade poética e especialmente à tragédia.
3. Ao lugar que o ensino da filosofia traz seus próprios co­
nhecimentos, seu universo singular de referências, seu conjun­
28
to de problemas específicos, deve-se pôr que trata mais pro­
fundamente sobre um mundo dè conhecimentos, de referências, 
de problemas que não é em primeiro lugar o seu. Esse mundo 
pode ser denominado, tendo em vista a efração que a filosofia 
opera aí, um mundo privado.
4. Efetuando a efração que opera nesse mundo privado, o 
poder de começo que o ensino da filosofia faz nascer em uma 
inteligência viva pode ser chamado de segundo nascimento, 
na medida em que se exerce sobre uma inteligência já nascida.
5. Como o segundo nascimento filosófico não faz nascer 
para um mundo da filosofia, a outra vida que se vive graças à 
efração do ensino filosófico é uma outra vida desse próprio 
mundo que a sofre. A efração sofrida por Platão, por exemplo, 
não deixa de realizar-se entre outras no seio de sua destinação 
poética. Isto é que é verdadeiramente espantoso: não ter aces­
so a um outro mundo, como na clausura “pitagórica”, mas ex­
perimentar a capacidade de nosso próprio mundo de diferir 
de si mesmo sob a ação de um segundo nascimento.
6. A efração, que opera o começo de uma diferenciação de 
um mundo e de um sujeito em relação a si mesmo, se produz 
da maneira mais verdadeira mediante um mestre que não 
identifica a abertura dessa diferença com seu saber, que não 
propõe que o seu próprio mundo diferente, aberto, crítico, li­
vre etc., tome o lugar da esfera que deve efetuar para si mesmo 
o seu segundo nascimento, e, então, deve-se dizer que esse 
mestre, segundo o oráculo de Delfos, Sócrates e Platão, e de­
pois da exemplar reatualiz ição que dele fez Jacques Rancière., 
em um livro com este títu) j, é um mestre ignorante4.
7. O mestre de filosofia deve ser duplamente ignorante. 
Deve, em primeiro lugar, ignorar como a esfera privada, na 
qual a sua ação faz irrupção e efração, pode se desdobrar e tor- 
nar-se diferente de si mesma, isto é, começar por sua própria 
conta a operação de um segundo nascimento.
4. Rancière, J . (1987). Lc waitre ignorant. Paris: Fayard.
29
8. O mestre de filosofia, para efetuar essa operação, deve, 
por isso, ignorar, ele mesmo, algumas coisas, isto é, dar o 
exemplo - o seu e o de todos os filósofos que estiveram às vol­
tas com uma grande ignorância - de uma ausência de saber 
que possui a força de pôr fora do mundo no qual se está para 
se pôr a com eçar alguma coisa. Jacques Rancière, por exem­
plo, precisou este ponto em um texto intitulado “Nós que so­
mos tão críticos”, escrevendo:
O ensino filosófico pode ser o lugar onde a transmissão 
dos conhecimentos se autoriza a passar a uma coisa mais sé­
ria: a transmissão do sentimento da ignorância. E a tanto nos 
torna particularmente aptos o nosso interminável confronto 
com esses poucos textos e essas poucas personalidades - mal­
grado todos os esforços dos explicadores - continuamos não 
compreendendo, ignorância mantida graças à qual chegamos 
talvez a aprender e a ensinar através deles outras coisas5.
9. O ensino da filosofia não se distingue essencialmente 
dos outros tipos de ensino por essa prática da efração, do co­
meço, da ignorância. As outras disciplinas não estão de modo 
algum condenadas a se constituir em unidades de produção de 
sabedoria, identificando e limitando suas esferas de saber e 
de efeito de saber ao que se deduziría progressiva e estrita­
mente de elementos enunciados e postos. Existe uma vida filo­
sófica das outras disciplinas.
10. O ensino filosófico assim compreendido não cessa de 
ultrapassar de dentro e de fora os lugares e as formas em que 
se mantém. Não cessa de impedir sua biblioteca interior de se 
estabilizar em um saber sedimentado de Platão, Descartes, 
Kant ou Hegel. Não cessa também de enriqueceressa bibliote­
ca com ocasiões para recomeçar com Platão, Descartes, Kant 
ou Hegel. Por essa razão, a filosofia, no vestíbulo de um próxi­
mo milênio, se mantém ainda na expectativa de seus começos.
5. Rancière, J . (1986). “Nous qui sommes si critiques”. In: La grève des pbilosopbes, 
école et philosopbie. Paris: Osiris.
30
PARTE II
Filosofia do ensino de filosofia
2. O ENSINO DA FILOSOFIA FRENTE À 
EDUCAÇÃO COMO FORMAÇÃO* **
W ALTER OAí ARKOHAN*»
A filosofia não tem 
necessidade de defensores na 
medida em que sua justificação é 
assunto seu. Mas a defesa do 
ensino da filosofia terá 
necessidade de uma filosofia 
crítica do ensino.
Georges Canguilhem, Nouvelle 
Critique (1975).
1. Primeiras palavras
“Para que filosofia?” é uma dessas perguntas com história 
abundante e futuro assegurado. É, além disso, uma pergunta 
que muitos filósofos, e só eles, gostam de fazer. No fundo, pa­
rece tratar-se não só de uma questão de gosto, mas de inevitá­
vel busca de legitimação teórica de uma disciplina que, só por 
seu nome, não goza como outras desse privilégio. Tem-se que 
justificar os para que da filosofia, porque sua utilidade e seu 
sentido não costumam estar outorgados previamente. Talvez,
* Agradecimentos do Autor pela leitura atenta deste trabalho a Lnura Agratti, cujas 
observações permitiram melhorá-lo em vários aspectos. Tradução do espanhol por 
Wanderson Fíor do Nascimento.
** Doutor cm Filosofia pela Universidade Iberoamericana (México) sob orientação 
de Matthew Lipman. Professor de Filosofia da Educação na Graduação e Pós-gra­
duação da Faculdade de Educação da Universidade de Brasília. Ê Professor Coor­
denador do Projeto de Extensão A Filosofia na Escola na UnB.
33
por isso, o interesse de quem se dedica à filosofa costuma ser 
discutir para fora, com os “não filósofos”, esta pergunta. Não 
é habitual que os filósofos se encontrem entre si para discutir 
questões como estas. É que, ainda que discordem na forma de 
respondê-la, não costumam ter dúvidas sobre sua importân­
cia. Contudo, nunca é demais apresentar a pergunta a outros, 
a aqueles que ainda não descobriram sua significat\vidade. 
Esta pretensão pode levar à organização de eventos que tra­
tam exclusivamente desta questão e os resultados muitas vezes 
não são convincentes. Referindo-se a um congresso recente­
mente ocorrido em Granada, na Espanha, com o título “Para 
que filosofia?”, o filósofo espanhol M. Reyes Mate comenta 
que serviu apenas “para marcar distâncias, entre os exposito­
res e ouvintes, entre a biblioteca e a rua, entre a profissão e a 
vida” (1996: 667). É o que costuma acontecer com as pergun­
tas dos filósofos: de tão interessantes e importantes que são, 
poucos acabam por perguntá-las.
Em épocas em .que não se organizavam em congressos de 
filosofia, os filósofos escreviam in extenso sobre esta pergunta 
para o grande público. Dadas as implicações educacionais da 
filosofia, como dirá José Gaos em uma das epígrafes deste tra­
balho, em muitos casos, as perguntas “Para que filosofia?” e 
“Para que ensinar filosofia?”, que não são a mesma pergunta, 
se tornam muito próximas, até um ponto que quase se confun­
dem. Esta ligação é percebida, por exemplo, no modo em que 
Platão tematiza estas questões em seus Diálogos. Em A Repú­
blica, afirma que a filosofia é um alvo de estudos que tem 
como conteúdo um Bem transcendente, que os governantes 
devem conhecer para instaurar, com legitimidade, uma pólis 
justa (A República, V-VII). Ali, os conhecimentos objetivos da 
filosofia têm um caráter duplamente educacional, enquanto 
ensinam a quem os aprende e enquanto este ensinará aos ou­
tros cidadãos no exercício da função de governo. Deste modo, 
os sentidos políticos e pedagógicos da filosofia se superpõem. 
Através de sua história, a filosofia tem estado sempre ligada ao 
ensino de si mesma, além de ser ela mesma uma paidéia no 
exercício da crítica (Derrida, 1 9 9 0 :1 5 8 ,1 6 6 ) . O ensino da fi­
34
losofia não pode prescindir da filosofia. É issoque Cangui- 
Ihem sugere na epígrafe.
A pergunta “para que ensinar filosofia?” interessa não só a 
filósofos, mas também a educadores. No séc. XVI, Montaigne 
disse que a filosofia deve ser uma matéria na educação dos pe­
quenos para formar pessoas mais inteligentes, felizes e ajuiza­
das, mais livres de espírito (1984: cap. 26). Se não se quer tor­
nar às crianças seres servis e tímidos, afirma Montaigne, de­
ve-se dar-lhes a oportunidade de fazer algo por si mesmas. O 
ensino da filosofia é aqui a peça-chave de uma formação hu­
manista para a autonomia, oposta aos valores da educação je- 
suítica dominante na época.
Na modernidade do séc. XVIII, Kant afirma a importância 
do ensino da filosofia, que ele entende como um ensinar a filo­
sofar. Para Kant (1995), os sentidos mais plenos deste ensino 
não estão dados pela transmissão de um suposto saber acaba­
do, fechado, completo, portanto externo ao sujeito que o 
aprende, mas pelo exercício da razão na observação e investi­
gação de seus princípios universais.
Em nosso século, as respostas à pergunta “para que ensinar 
filosofia?” têm se multiplicado. Um caso interessante resulta na 
ênfase que muitas dessas respostas concedem à palavra “críti­
ca”. Constatamos que, em diversas tradições, o ensino da filo­
sofia está ligado à formação de uma consciência ou capacidade 
crítica. Contudo, essa atitude crítica é entendida de diversas 
formas em função do marco teórico de referência. Por exem­
plo, na tradição analítica, ela está associada, freqüentemente, 
ao desenvolvimento de certas habilidades de pensamento (Sal- 
merón, 1992: 120-2); no pragmatismo, está ligada a um julgar 
com critério, a um apreciar com cuidado (Dewey, 1925; Lip- 
man, 1 9 9 8 ); entre os primeiros membros da Escola de Fran- 
ckfurt, a consciência crítica é entendida como oposição à natu­
ralização das idéias, saberes e valores dominantes (Horkheimer, 
1990: 289); no marxismo de nossos dias, está usualmente liga­
da à transformação do mundo (Sánchez Vázquez, 1997: 416); 
entre alguns pós-estruturalistas, é entendida como um pôr em 
questão as evidências; um trazer à luz o pensamento que se
35
oculta em todas as instituições, um “tornar difíceis os gestos 
por demais fáceis” (Foucault, 1981).
Neste trabalho não pretendemos analisar detidamente os 
sentidos concedidos contemporaneamente ao ensino da filo­
sofia. O que nos importa, entretanto, é problematizar uma li­
nha comum que diferentes percursos filosóficos têm compar­
tilhado no momento de pensar os sentidos educativos da filo­
sofia. Referimo-nos à idéia de que o ensino da filosofia está a 
serviço da formação ou fabricação de certo ideal de pessoa. 
Em outras palavras, que a filosofia contribui para uma paidéia 
formativa, fabricadora. Para analisar este espaço comum re­
servado ao ensinar filosofia, vamos trabalhar em quatro mo­
mentos. Em um primeiro momento, precisaremos em que sen­
tido, no ocidente, a educação tem estado, quase sempre, asso­
ciada à idéia de formação ou fabricação, pelo menos desde A 
República de Platão. Em um segundo momento, daremos al­
guns exemplos sobre como a filosofia tem estado também 
comprometida com esta educação formativa. Em um terceiro 
momento, nos deteremos na idéia de infância que sustenta as 
pedagogias e filosofias formativas. Finalmente, esboçaremos 
algumas propostas para situar a experiência da filosofia em 
uma lógica educacional não formativa.
2. A educação a serviço da formação
O papel desempenhado pela 
educação em todas as utopias 
políticas, desde a antiguidade até 
nossos dias, mostra bem com o 
pode parecer natural querer 
com eçar um mundo novo com 
aqueles que são novos por 
nascimento e por natureza. 
Hannah Arendt, A crise da 
educação (1961).
No livro II de A República, Platão discute de que forma 
devem ser educados os guardiões de sua pólis. O exame da ques­
36
tão pode determinar, diz “Sócrates”, a gênese, o ponto de par­
tida, a causa, da justiça e da injustiça na Atenas de seu tempo 
(II, 376d); esse exame situa tal causa nos relatos de Homero e 
Hesíodo que sustentam a educação tradicional na Grécia, tex­
tos que afirmam valores contrários àqueles que devem reger 
na pólis. Se se quer pensar em uma cidade mais justa, é preciso 
mudar os textos com os quais se educa em Atenas, nos diz Pla­
tão. Ao discutir que relatos serão incluídos para substituir aos 
tradicionais, “Sócrates” faz o seguinte comentário com Adi- 
manto a respeito daqueles textos com os quais as crianças en­
tram em contato em primeiro lugar:
Por conseguinte, sabes que o princípio de toda a obra é o 
principal, especialmente nos menores e mais tenros; porque é 
então que se forma e imprime o tipo que alguém quer disse­
minar em cada pessoa (Platão, A República II, 377 a-b).
Os primeiros momentos são os mais importantes da vida, 
diz “Sócrates”. Por isso afirma que não se permitirá que os pe­
quenos escutem relatos que contenham mentiras e opiniões 
contrárias às que se esperam deles no futuro. Porque, se pensa­
mos a vida como uma seqüência em desenvolvimento, como 
um devir progressivo, como um fruto que será resultado das se­
mentes plantadas, tudo o que venha depois dependerá desses 
primeiros passos. Tem-se aí a sua importância extraordinária, 
pelas marcas indeléveis que se recebem na tenra idade (II, 378 e). 
Por isso, ter-se-á que cuidar especialmente desses primeiros tra­
ços, não tanto pelo que eles são, mas pelo que deles irá devir, 
pelo que gerarão em um tempo posterior. Por fim, estas peque­
nas criaturas serão os futuros guardiões, governantes da pólis. 
Tem-se que pensar nisso ao desenhar sua educação, diz Platão. 
Não importa tanto o que são, mas o que serão, o que podem ser 
e o que devem ser. Os novos são algo a ser. No caso deste relato 
platônico, estas crianças devem ser, no futuro, reis que filoso­
fem, filósofos que governem de modo justo a pólis.
Neste texto de A República, é “alguém” externo, um ou­
tro, o educador, o filósofo, o político, o legislador, o fundador 
da pólis, quem vai pensar e plasmar em cada um o que quer
37
que este seja. É a idéia de educação como formação, o dar uma 
forma a outro. Dar forma. Formá-lo. Qual forma? No caso de 
Platão, em última instância é a forma das formas, são as idéias, 
os a priori, os modelos, os paradigmas, os em si transcenden­
tes que indicarão a direção da formação. Assim formadas, as 
crianças poderão ser os cidadãos que queremos que sejam.
Neste registro, as crianças não interessam por serem crian­
ças, mas porque serão adultos no futuro. E, nós, os adultos do 
presente, os fundadores da pólis, os que sabemos da ausência 
de certezas e os riscos desse chegar a ser, queremos o melhor 
para eles que é, ao mesmo tempo, o que nós consideramos me­
lhor, o melhor para nós, o que não temos podido ser, mas que­
remos fazer que os outros sejam. Podemos, inclusive, acompa­
nhá-los, ajudá-los, nesse caminho. Para isso os educaremos, 
desde a mais tenra idade. Neste acompanhar aos novos (hoi 
néoi) encontra sentido a educação: na passagem de um mundo 
velho que já não queremos a um mundo novo - novo para nós, 
claro, velho para os novos - , que os outros trarão com nossa 
ajuda; ou nós traremos com sua ajuda, como você prefira.
Encontramos aqui os elementos clássicos que definem 
uma pedagogia formativa (Larrosa, 1996: 21). Por um lado, 
educa-se para desenvolver certas disposições que, se conside­
ra, existem em bruto, em potência; por outro lado, educa-se 
para com-formar, para dar forma a, a um modelo prescritivo, 
que tenha sido estabelecido previamente. A educação é assim 
entendida como uma tarefa moral (Larrosa, 1996: 423), nor­
mativa, como um ajustar a cada um a aquilo que deve ser. Se­
gundo essa orientação, são os ideais os que processam o de­
senvolvimento de uma prática educacional. No caso de Pla­
tão, esses ideais são, a priori, independentes de nossa vontade, 
e permitirão o império, neste mundo, da razão, do bem, da 
justiça, da harmonia, da beleza. As crianças, ao final, são nossaoportunidade de realizar estes ideais e sua educação nossa me­
lhor ferramenta para tal fim.
Esta educação de A República - como toda educação for­
mativa - não resiste à tentação de se apropriar da novidade
38
dos novos de que fala H. Arendtna epígrafe, a tentação de fa­
zer da educação uma tarefa eminentemente política e da polí­
tica o sentido final de uma educação. Educa-se para politizar 
os novos, para fazê-los participantes de uma pólis que se defi­
ne para eles. O novo, cada nascimento, gera esperança e 
medo. Entre uma e outro, a partir de seu cultivo, abriga-se 
uma educação a serviço da política e uma política com fins 
educativos (Arendt, 1961: 176).
3. A filosofia a serviço da formação e da política
Temos visto que toda filosofia 
é, por sua natureza e em certo 
sentido, pedagógica - de onde 
podem os inferir que o filósofo , 
todo filósofo, também é, em um 
certo sentido, um pedagogo.
José Gaos, “Filosofia e 
pedagogia”, In: Filosofia da 
filosofia e história da filosofia 
(1947).
Em A República não só a educação, mas também a filoso­
fia está a serviço da formação e da política. Duplamente. Por 
um lado, a filosofia forma a quem entra em contato com ela, a 
quem nela transita. Por outro lado, estes transeuntes da filoso­
fia que detêm seu conhecimento, aqueles que conhecem as rea­
lidades em si mesmas, governarão a pólis em função de seus 
conhecimentos filosóficos. Mais ainda: se acaso se recusassem 
e pretendessem permanecer contemplando aqueles ideais, se­
riam obrigados a governar aos outros. Pois, finalmente, o esta­
do os formou para isso. Os governantes devem filosofar, os fi­
lósofos devem governar, para que a pólis seja mais racional, 
melhor, mais justa, mais harmoniosa, mais bela. Não têm ou­
tra opção. Deste modo, a filosofia se torna uma tarefa eminen­
temente política e o exercício da política uma forma de filoso­
fia. Filosofa-se para politizar os novos, para fazê-los partici­
pantes de uma pólis que se define para eles.
39
Muitas águas têm corrido sob a ponte da filosofia, mas 
não tem mudado significativamente a cor das águas. O ensino 
da filosofia continua sendo enquadrado em uma lógica de for­
mação. Pensemos nos já citados Montaigne e Kant, ou, mais 
contemporaneamente, em ferventes defesas do ensino da filo­
sofia nas escolas devido a seus fins formativos: a filosofia ao 
serviço de uma cidadania crítica, tolerante, responsável, plu­
ralista, enfim, todos os adjetivos que se queira outorgar, aos 
mais adequados ao contexto1.
Um exemplo nítido de uma filosofia com intencionalidade 
formativa é o programa Filosofia para crianças de Matthew 
Lipman. Ali a prática da filosofia está ao serviço de uma edu­
cação para a democracia, entendida como investigação delibe­
rativa (Lipman, 1998). Segundo Lipman, levar a filosofia às 
crianças se justifica porque ela lhes oferece,' pelo menos, três 
ferramentas que os participantes de toda democracia necessi­
tam: 1) um trato rico e variado com conceitos gerais e contro­
versos como verdade, justiça e liberdade; 2) uma elevação de 
seus processos reflexivos a um pensar de ordem superior (que 
reúne as dimensões crítica, criativa e ética do pensar); 3) um 
diálogo significativo que abre as portas para a elaboração de 
juízos criteriosos (Lipman, 1998: 6-7). Nesta proposta é a ló­
gica da democracia {uma democracia) que define os sentidos 
do ensino da filosofia. Levar a filosofia às crianças, com sua 
história, com seus métodos e seus temas se justifica, para Lip­
man, pelas vantagens sociais que essa prática venha a ocasio­
nar (Lipman, 1988: 198). Aqui também as crianças são, antes 
de mais nada, futuros cidadãos da democracia; como tais, pre­
cisam da filosofia, não tanto pelo que são, mas pelo que po­
dem chegar a ser. Desta maneira, uma democracia idealizada, 
bem entendida, marca a direção da prática da filosofia. Sem 
falar da educação nem das crianças, esta mesma lógica susten­
1. Temos acompanhado de perto esta discussão a propósito das ambiguidades da últi­
ma Lei Nacional de Diretrizes e Bases da Educação a respeito da inclusão da filoso­
fia como disciplina obrigatória no ensino médio (Lei 9.394/96). Organizamos um 
debate sobre esta questão em Gallo, S. &C Kohan, W. (2000).
40
ta a prioridade que o neopragmatismo de Richard Rorty de­
fende da democracia a respeito da filosofia (Rorty, 1991).
4. A infância formada
(A criança] com o os mortos, 
com o as mulheres, com o as 
massas, com o o objeto, com o 
todas as categorias expulsas da 
razão dominante, conserva todos 
os meios para vingar-se e colocar 
aos donos da realidade um 
problem a insolúvel.
Jean Baudrillard, O continente 
negro da infância (1995).
Hannah Arendt afirmou a essência da educação radica na 
natalidade, no fato de que seres humanos nascem no mundo 
(1961: 174). Que nasce algo novo no mundo significa que o 
mundo e o recém-chegado são mutuamente estranhos; não há 
continuidade entre eles, mas ruptura. A educação é uma tenta­
tiva por matizar essa tensão, entre o novo e o velho, o revolu­
cionário e o conservador, o privado e o público; nasce alguém 
sem voz (in-faits) que precisa falar para comunicar uma novi­
dade que o mundo não quer escutar porque indica sua própria 
negação; educar é fazer possível a emergência dessa voz de 
forma que a novidade possa ser comunicada em um mundo 
hostil a ela. A tensão não é fácil de superar e o fio costuma 
romper-se no ponto mais frágil: o da novidade; os que jâ estão 
no mundo, os que educam, acabam sempre por determinar 
um futuro político que, para os novos, os recém-chegados, 
será sempre velho. O problema da educação tem sido visto, a 
partir desta perspectiva, como o de encontrar a melhor manei­
ra de fazer com que os novos falem a língua que os velhos pen­
sam que eles devem falar.
Mas o problema também pode ser visto como o problema 
de qual será a língua que falarão os sem voz, o que pressupõe 
ouvir o que esses que não falam têm a dizer sobre a sua própria
41
língua. Eis o paradoxo de uma educação não prevista, aberta ao 
novo, à diferença: ouvir uma outra língua, ainda não falada.
Os filósofos têm-se ocupado bastante destes sem voz atra­
vés da história. Quase sempre com perspectivas formativas, 
para cumprir um projeto pedagógico. Talvez o fragmento 52 
de Heráclito, que se vale da imagem de uma criança que joga 
para ilustrar a lógica do tempo e o começo do Zaratustra de 
Nietzsche, onde a criança é a possibilidade de metamorfose 
que se situa a partir de um ponto extramoral, sejam exemplos 
nos quais a infância não é apenas adultez em potência, mas 
afirmação de alguma outra coisa, de algo que não se sustente 
em uma lógica adulta dominante. Ao mesmo tempo, a infância 
não aparece nesses exemplos como algo que deva ser desen­
volvido, orientado, processado, não há continuidade entre in­
fância e mundo nem entre infância e adultez. Jorge Larrosa, fi­
lósofo espanhol contemporâneo, tem explorado estas idéias 
afirmando a infância como enigma, aquilo que nem sabemos e 
nem tematizamos, como algo que escapa a nossos saberes, 
nossos poderes e nossas vontades, que resiste a nossas tentati­
vas de controlá-lo e dominá-lo (Larrosa, 1999).
A infância como enigma sugere que temos fracassado, que 
não conseguimos construir, através das crianças, um mundo 
melhor. Imagem da alteridade, a infância resiste às nossas estra­
tégias pedagógicas mais sofisticadas. Ela enfrenta nossas pre­
tensões por mitigar sua alteridade, repudia nossa desatenção 
para a novidade que cada criança traz consigo, se incomoda 
com nossas sãs intenções de construir um mundo melhor. A in­
fância não é apenas o objeto educacional de nossos ideais. 
Como imagem de afirmação, de novidade, de indeterminação, 
de liberdade, a infância é uma figura do porvir que nenhuma 
educação que seja sensível a essa novidade pode antecipar. E 
uma possibilidade para pensar uma nova educação do novo.
Esta concepção da infância aparece também na imagem 
bachelardiana da infância como devaneio (Bachelard, 1997: 
149),na figura do poeta, uma figura que precisa da solidão, 
que conhece a fortuna de sonhar; existência livre, sem limites,
42
imagem da imensidão, dos múltiplos nascimentos da vida. A 
infância não é uma etapa de vida, não são os primeiros anos da 
existência, mas uma reserva que nos permite dinamizar a vida, 
uma água que sai da sombra, um estado anímico que permite 
reviver a liberdade, que se dinamiza em um devaneio benfei­
tor, quando os homens nos deixam em paz (1997: 150, 169, 
175-7). A infância precisa ser deixada em paz, não só a infân­
cia das crianças, mas também a nossa infância, a que sempre 
nos acompanha, a novidade e o acontecimento que nenhuma 
educação totalitária é capaz de mitigar.
É verossímil o encontro entre filosofia e infância? De que 
forma? Alguém poderia pensar que é um despropósito ensinar 
filosofia às crianças em um contexto como o nosso, em que o 
ensino da filosofia nem sequer está consolidado em seus últi­
mos anos no ensino médio. É possível que o seja. Contudo, 
este despropósito pode ter um sentido educativo não formati- 
vo, não só para as crianças. O que é a infância afinal? Como a 
filosofia, uma forma de resistência. Afirma a possibilidade da 
novidade, um começo, irrompe no mundo com sua diferença. 
Luta por criar-se a si mesma. E um símbolo, temos dito, de um. 
porvir, de uma educação que não é possível antecipar. É uma 
possibilidade, possibilita pensar. Parece uma impossibilidade, 
mas é sempre possível. É pura eventualidade, ocorrência, acon­
tecimento. E toda possibilidade, a possibilidade de manter 
viva “a capacidade de ruptura com a significação dominante”, 
como diz Guattari (1991: 18). Ainda que se sinta bem no cor­
po de uma criança que brinca, a infância, assim entendida, não 
tem idade.
Quem sabe, a experiência da filosofia ajude a manter viva 
esta infância nas crianças, chamadas hoje a pior das infantili- 
zações, a que tira delas sua outredade, seu enigma, sua amea­
ça. Quem sabe essa experiência da filosofia também contribua 
a preservar nossa infância, a infância dos adultos, a do nosso 
pensar. Quem sabe, com isso, manteria viva também a sua 
própria infância, a infância da filosofia, o que ela tem de im­
previsível, inesperado, impossível. Talvez sejam suficientes 
sentidos para seu ensino, qualquer que seja a idade dos que en­
43
sinam e dos que aprendem, nestes tempos em que uma visão 
monolítica do real pretende esgotar todo o campo do possível.
5. Uma lógica não formativa para o ensino da filosofia
Um filósofo não se define 
somente com o um indivíduo a 
quem houvesse acontecido algo, 
iluminação, êxtase, duelo, 
intuição>, possessão e outras crises 
que tão bem conhecem os poetas e 
os místicos. Tampouco é uma 
alm a quebrantada que tomaria por 
objeto de reflexão a sacudida que 
o perturbou, para compreendê-la, 
desde fora, dominando-a pela 
razão. É antes um espírito que 
decide transformar sua existência 
por m eio da inteligência 
continuada e vivida do que lhe 
ocorre, compreensão que ele deve 
conquistar não contando com 
nada mais que suãs próprias 
forças.
Roger-Pol Droit, N a companhia 
dos filósofos (1999).
Recapitulemos. Estamos num Encontro de Professores de 
Filosofia, para pensar sobre o seu ensino. Procuremos proble- 
matizar os sentidos outorgados a esse ensino. Traçamos uma 
linha que nos permite reconhecer uma história onde a educa­
ção e a filosofia têm sido fortemente impregnadas pela idéia 
de formação. A filosofia tem sido ensinada, basicamente, para 
formar pessoas, para fazer algo de alguém. Esta estratégia 
pressupõe uma idéia de infância ligada à maleabilidade, à au­
sência de forma e à conseqüente necessidade de ser informa­
da. Procuramos oferecer, na parte anterior, elementos que 
permitam pensar “outra” infância.
44
Podemos seguir e repensar o próprio ensino da filósofiá. 
Se não é ao serviço da formáção, como podemos pensar seus 
sentidos? Ensinar filosofia para quê se não é para formar cida­
dãos para um mundo melhor? Nas próximas linhas tentare­
mos dar algumas pistas que permitam desenvolvimentos pos­
teriores. Não estamos em condições de responder tamanhas 
perguntas, mas, sim, sugerir algumas linhas de trabalho.
Parece-nos que esta questão está estreitamente ligada à 
concepção de filosofia que se afirma quando se ensina. Neste 
sentido, temos defendido, em outros trabalhos2, que ensinar 
filosofia bem pode ter que ver com promover experiências de 
pensamento filosófico. A noção de experiência de pensamen­
to nos parece fundamental enquanto delimita um espaço qüe 
alude as clássicas dicotomias entre professor de filosofia e fÜó- 
sofOj filosofia e filosofar, teoria e práxis. Uma experiência de 
pensamento é uma prática teórica, intersubjetiva, irrepetívef,' 
intransferível, uma forma de exercer o pensar que chamamos 
de “filosófica” quando dá ênfase à crítica, à criação, à difereri- 
ça, à resistência e a uma interlocüção com umá história de 
pensamentos que no ocidente tem mais de 26 séculos.
Para que, então, impulsionar experiências de pensamento 
filosófico? Sócrates é sempre uma forte inspiração em filoso­
fia. Por ser um fundador e deixar abertas as portas da cidade 
fundada. Pelo que ele tem dito e pelo que se tem dito dele. Por 
não haver escrito nada e ensinar a outros a escrevê-lo. Por efi- 
sinar na filosofia.,Pelas experiências de pensamento filosófico' 
que parece ter impulsionado na cidade.
Sócrates, nos parece, sugere um espaço pára problemati- 
zar as relações entre filosofia e política. E a imagem de umá 
possibilidade da filosofia em sua relação com a política, umá 
afirmação de uma prática filosófica, não política, da política.- 
Mostra que, entre filosofia e política, há mais tensões que cófri-
2. Temos desenvolvido mais a fundo esta idéia em “Fundamentos à prática da filosofo* 
na escola pública”. ín: Kohan, W., Leal, B. & Ribeiro, A. (orgs.) (2000). FUosoftd 
11a escola pública. Petrópolis: Vòzes, p. 21-73.
45
plèmentaridades. É o próprio Sócrates que problematiza a di­
mensão política da filosofia afirmada em A República: ele não 
parece afirmar nenhuma política positiva, não mostra nenhum 
projeto político pelo qual educar, mas é, contudo, um dos 
poucos, se não é o único ateniense que, segundo o próprio 
Platão, se dedica “à verdadeira arte da política” (Gorgias, 
52 Id), o único que a pratica nesse tempo, o único que faz polí­
tica de verdade e que, ao mesmo tempo, por essa razão é con­
denado à morte pela política instituída. Sócrates se opõe às di­
versas políticas positivas - às democracias, às oligarquias, às ti­
ranias - através do exercício da filosofia. Ele faz da filosofia 
uma tarefa eminentemente política e da política uma forma de 
exercício da filosofia. Afirma um sentido radical para a filoso­
fia política, que não se encontra na fundamentação de uma 
utopia, mas em uma forma de vida sustentada pela pergunta, 
pela aporia, pelo não saber. Pratica uma política e uma filoso­
fia filosóficas, não políticas no seu sentido estreito e estrito.
Sócrates é também uma figura que nos permite pensar a 
prática e a dimensão pedagógica da filosofia como substanti­
vamente não formativas, no sentido que temos dado a este ter­
mo neste trabalho. Sócrates, o menos platônico, o dos primei­
ros diálogos - por exemplo, o do Eutífron, Críton e Apologia - 
não parece ter em vista nenhum projeto político, nenhum tipo 
de cidadão. Só questiona os modos da política afirmados em 
Atenas. Resiste a eles. Os interroga. Os desoculta.
Mas depois de Sócrates veio Platão e a pergunta se tornou 
resposta, a resistência se tornou proposta e o desocultamento 
se fez realidade absoluta. Platão entendeu a filosofia política 
como a afirmação de uma utopia, de um direcionamento co­
mum por vir, essa pó lis justa onde cada parte cumpre sua fun­
ção que lhe corresponde (A República IV, 432). Os filósofos 
que vieram depois foram seduzidos mais por Platão do que 
por Sócrates. E as utopias se sucederam umas as outras. Pense­
mos em Aristóteles, Rousseau, Locke,Hobbes, Kant, Marx. 
Com todas as suas diferenças nos modos de conceber a filoso­
fia e a política, há um mesmo sentido afirmativo ao pensar a fi­
losofia política. Deste modo, a filosofia foi alienando-se a si
46
mesma na política, em uma postulação de um dever ser, em 
certo modo, imune à problematização filosófica. Sua pedago­
gia não podia não refletir esse estado e a filosofia foi sendo en­
sinada com sentidos não filosóficos. Quando se ensina filoso­
fia para afirmar uma política - ou uma moral, uma pedagogia, 
uma religião, que para este caso é o mesmo, são todas ordens 
determinantes - , se impossibilita a filosofia porque a moral, a 
pedagogia, a política e a religião são para a filosofia um pro­
blema e não um ponto de chegada. Quando se buscam finali­
dades morais, políticas, pedagógicas, religiosas, a filosofia se 
torna impossível. Por outro lado, quando a filosofia é possível, 
a moral, a política, a pedagogia e a religião são um espaço va­
zio, uma interrogação, um intervalo.
Se o ensino da filosofia quer voltar à filosofia, precisa in­
verter seu platonismo político, recusar a formação política 
dos cidadãos. Entendida como experiência do pensamento fi­
losófico, esse ensino não admite nenhuma ordem determinan­
te. Pensa o impensável. Suspeita que o impossível é possível. 
Dá testemunho da soberania da pergunta. Afirma a diferença, 
as outras bases da ordem, suas outras possibilidades, seus pon­
tos negros, seus enfrentamentos, suas exclusões, seus devires.
Como pensar os sentidos deste ensino da pergunta, da di­
ferença, da resistência? Como se dá esta experiência em uma 
instituição superpovoada de ordens determinantes como a es­
cola? É possível ensinar filosofia, no sentido aqui especifica­
do, na escola, ou em qualquer instituição? É possível uma edu­
cação filosófica da filosofia? É possível educar na filosofia? 
Como vocês sabem, em filosofia sempre é interessante acabar 
com perguntas.
Referências bibliográficas
ARENDT, Hannah (1961). “The crises of education”. In: Between
past and future. Six exercises in political thought. New York:
The VikLng Press, p. 173-196.
BACHELARD, Gastón (1997). La poética de Ia ensonación. Buenos
Aires: FCE.
47
DERRIDA, Jacques (1990). Du clroit à la philosophie. Paris: Galli- 
mard.
DEWEY, John (1925). “The criticai function of philosophy”. In: 
Experience and nature. Chicago: Open Court.
FOUCAULT, Michel (1981). “Est-il donc important de penser?” In: 
Libération, Paris, n. 15, 30-31 maio, p. 21.
GAOS, José (1947). Filosofia de la filosofia e historia de la filosofia. 
México: Stylo.
GALLO, Sílvio & KOHAN, Walter (orgs.) (2000). Filosofia no ensi­
no médio. Petrópolis: Vozes [Coleção “Filosofia na escola”, vo­
lume VI].
GUATTARI, Félix (1991). “El mundo en la era de los posmedios ma- 
sivos”. In: Clarin. Buenos Aires, 3 de novembro, p. 18-19 
[Entrevista com Jorge Halperín].
HORKHEIMER, Max (1990). Teoria critica. Buenos Aires: Amor- 
rortu.
KANT, Immanuel (1995). “Sobre la ensenanza de la filosofia”, Ma­
nia, n. 1, p. 111-113.
KENNEDY, David & KOHAN, Walter (orgs.) (1999). Filosofia e 
Infância: possibilidades de um encontro. Petrópolis: Vozes [Co­
leção “Filosofia na Escola”, volume III].
KOHAN, Walter, LEAL, Bernardina & RIBEIRO, Álvaro (orgs.) 
(2000). Filosofia na escola pública. Petrópolis: Vozes [Coleção 
“Filosofia na Escola”, volume V].
LARROSA, Jorge (1996). La experiencia de la lectura. Barcelona: 
Laertes.
— (1999). “O enigma da infância”. In: Pedagogia profana. Belo Ho­
rizonte: Autêntica, p. 183-198.
LIPMAN, Mattliew (1988). Philosophy goes to school. Philadelphia: 
Temple University Press.
-— (1998). “The contributions of philosophy to deliberative demo- 
cracy”. In: EVANS, David & KUÇURADI, Ioanna. Teaching phi­
losophy on the eve ofthe twenty-first century. Ankara, Turquia: 
International Federation of Philosophical Societes, p. 6-29.
MONTAIGNE, Michel de (1984). “Acerca de la educación de los ni- 
fios”. In: Eitsayos. Buenos Aires: Orbis/Hyspamérica.
48
PLATÓN. Apologia de Sócrates; Eutífron; Críton; Gorgias; La Repú­
blica [várias edições],
REYES MATE, Manuel (1996). “La filosofia hoy: iconsciência críti­
ca o taller de reparaciones?” In: OLIVE, León &c VILLORO, 
Luis (eds.). Homenaje a Fernando Salmerón: Filosofia moral, 
educación e historia. México, DF: Facultad de Filosofia y Letras, 
Instituto de Investigaciones Filosóficas, Unam, p. 667-688.
RORTY, Richard (1991). “The priority of democracy to philo- 
sophy”. In: Philosophical Papers. New York: Cambridge Univer- 
sity Press, vol. 1.
SÁNCHEZ VÁZQUEZ, Adolfo (1997). Filosofia y circunstancias. 
Barcelona: Anthropos.
49
3. O ENSINO DA FILOSOFIA: 
HISTORICIDADE DO CONHECIMENTO E 
CONSTRUTIVIDADE DA APRENDIZAGEM
ANTÔNIO J. SEVERINO*
Introdução
Falar da prática e do ensino de filosofia nos remete ao 
exercício da subjetividade - o que nos faz lembrar que toda 
atividade intelectual humana, todo conhecimento como ex­
pressão dessa subjetividade, já emerge no plano histórico e an­
tropológico da espécie, intimamente articulado com o todo da 
prática existencial do homem. O conhecimento surge como 
uma estratégia da existência. Não constitui uma esfera isolada 
das demais coordenadas da vida, em que pese sua força centrí­
fuga rumo à pretensa autonomia de funcionamento. Com esta 
colocação, não estou assumindo nenhuma teoria pragmatista, 
utilitarista ou existencialista, mas apenas afirmando a íntima 
vinculação do pensar ao existir concreto do homem.
Se isso já é válido para qualquer manifestação da subjetivi- • 
dade, o é muito mais ainda para o caso do conhecimento filo­
* Mestre em Filosofia pela Universidade Católica dc Louvain e Doutor era Filosofia 
pela PUC/SP. Professor de Filosofia da Educação na Graduação e Pós-graduação da 
Faculdade de Educação da Universidade dc São Paulo. Foi membro do Conselho 
Estadual dc Educação entre 1983 e 1987.
50
sófico, apesar de ser ele a modalidade que mais se expressa 
com autonomia frente a essas' coordenadas objetivas. Mas esta 
é uma força entrópica que leva à ilusão, à alienação. Cabe, 
sim, reconhecer que uma pragmaticidade básica para a filoso­
fia se traduz como função intencionalizadora de nossa exis­
tência. É o esforço de busca de senüdo deste existir, caben­
do-lhe explicitar referências para a condução dessa existência, 
como intencionalização das práticas reais que a constituem.
1. A filosofia como p a id éia : a educação política
Isto quer dizer que o pensar filosófico, em sua substantivi- 
dade, desdobra-se numa dupla dimensão: uma dimensão polí­
tica e uma dimensão pedagógica, ou seja, a busca do sentido 
não é única e exclusivamente um problema do sujeito indivi­
dual, não é só epistêmica e ética; ela é sempre ligada à esfera 
do sujeito coletivo, histórico e social.
A humanidade, como sujeito coletivo pensante, busca ex- 
plicitar/construir sentidos que tenham a ver com o direciona­
mento do agir histórico de seu conjunto. É sempre prenhe de 
universalidade, por mais que seja um exercício individual. Ora, 
isso transforma toda atividade intelectual, e de modo direto e 
explícito, a filosofia, numa explícita pedagogia política. A fi­
losofia se torna uma paidéia, na medida em que, necessaria­
mente, se destina a formar a* coletividade humana. Por isso 
mesmo, e na exacerbação, todo filósofo é um educador da cida­
de, Não sem razão, impõe-se insistir em que o compromisso fun­
damental do conhecimento é com a construção da cidadania, 
entendida esta como um forma adequada de existência no âm­
bito da pólis, adequada porque realizando uma necessária qua­
lidade de vida, que o próprio conhecimento, ferramenta privile­
giada da espécie, lhe permite configurar historicamente.
Assim, discutir o ensino da filosofia, no meu entender, 
pressupõe que tenhamos sempre presente este modo intrínse­
co de ser do pensar filosófico’. A tarefa pedagógica relacionada 
com o filosofar me parece direcionada por estes dois vetores.
51
Com efeito, o refletir filosófico assim concebido

Outros materiais