Prévia do material em texto
PEDRO ANTONIO VIEIRA ROSÂNGELA DE LIMA VIEIRA FELIPE AMIN FILOMENO Organizadores Passado e Presente na Análise dos Sistemas-Mundo © Pedro Antonio Vieira; Rosângela de Lima Vieira; Felipe Amin Filomeno Conselho Editorial Immanuel Wallerstein, Fernando Novais, Hoyêdo Lins, e Francisco Luiz Corsi Projeto gráfico, diagramação e capa Rita Motta - www.editoratribo.blogspot.com Revisão Sérgio Meira Impressão Gráfica e Editora Copiart Ltda 1ª Edição - 2012 - São Paulo – SP CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO-NA-FONTE SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ B83 O Brasil e o capitalismo histórico : passado e presente na análise dos sistemas-mundo / organização Pedro Antonio Vieira, Rosângela de Lima Vieira, Felipe Amin Filomeno.- São Paulo, SP : Cultura Acadêmica Editora, 2012. 327 p. ISBN 978-85-7983-386-1 1. Capitalismo - Brasil - História. 2. Capital (Economia). I. Vieira, Pedro Antonio. II. Vieira, Rosângela de Lima. III. Filomeno, Felipe Amin. IV. Série. 13-1521. CDD: 330.1220981 CDU: 330.142.23(81) 043362 Sumário Introdução ............................................................................................................7 Passado, presente e futuro da análise dos sistemas-mundo no Brasil Pedro Antonio Vieira, Rosângela de Lima Vieira, Felipe Amin Filomeno S E Ç Ã O 1 FUNDAMENTOS DA ANÁLISE DOS SISTEMAS-MUNDO Capítulo 1 A análise dos sistemas-mundo como movimento do saber ......................17 Immanuel Wallerstein Capítulo 2 A perspectiva dos sistemas-mundo: fundamentos e tendências .............29 Eduardo Barros Mariutti S E Ç Ã O 2 O CAPITALISMO CONTEMPORÂNEO Capítulo 3 O fim do longo século XX ...............................................................................77 Beverly Silver e Giovanni Arrighi Capítulo 4 Continuidades e transformações na evolução dos sistemas-mundo ................................................................................................97 Christopher Chase-Dunn e Roy Kwon Capítulo 5 Desigualdades mundiais de renda: em direção a uma perspectiva crítica .......................................................................................... 137 Roberto Patricio Korzeniewicz Capítulo 6 Das eras douradas aos “tempos bicudos” do capitalismo mundial: práticas empresariais e ilicitudes como estrutura .................................................. 169 Antonio José Escobar Brussi S E Ç Ã O 3 O BRASIL NO SISTEMA-MUNDO CAPITALISTA Capítulo 7 A economia-mundo, Portugal e o “Brasil” no longo século XVI (1450- 1650) ................................................................................................................. 207 Pedro Antonio Vieira Capítulo 8 A cadeia mercantil do café produzido no Brasil entre 1830 e 1929 ..... 265 Rosângela de Lima Vieira Capítulo 9 A mudança institucional em perspectiva histórico-mundial: competição transnacional e propriedade intelectual na agricultura de soja da América do Sul ................................................................................................................ 297 Felipe Amin Filomeno 7 Introdução PASSADO, PRESENTE E FUTURO DA ANÁLISE DOS SISTEMAS-MUNDO NO BRASIL PEDRO ANTONIO VIEIRA (Universidade Federal de Santa Catarina) ROSÂNGELA DE LIMA VIEIRA (Universidade Estadual Paulista-Marília) FELIPE AMIN FILOMENO (Universidade Federal de Santa Catarina) É experimentando um sentimento de grande júbilo e de realização que entregamos ao público de língua portuguesa este que é o primeiro li- vro produzido no Brasil completamente dedicado à Análise dos Sistemas- Mundo (ASM). O sentimento de júbilo e realização se deve a que o livro vem à luz mais ou menos treze anos depois que um grupo de professores do então Departamento de Economia (hoje Economia e Relações Internacionais) da Universidade Federal de Santa Catarina se juntou para estudar autores O BRASIL E O CAPITALISMO HISTÓRICO 8 não lidos no curso de Economia, tais como Karl Polanyi, Fernand Braudel, Immanuel Wallerstein e Giovanni Arrighi. Os seminários envolveram pro- fessores e alunos de outros cursos, que aos poucos foram se dispersando e voltando para suas respectivas linhas teóricas, enquanto nós já não podíamos fazer o mesmo, tal foi nosso entusiasmo com as obras de Fernand Braudel, Immanuel Wallerstein e Giovanni Arrighi. Continuamos então a estudá-las, incorporando-as em disciplinas da graduação e da pós-graduação, de modo que, aos poucos, monografias e dissertações foram elaboradas tendo como referencial teórico a ASM. Em 2006, foi criado o Grupo de Pesquisa em Economia Política dos Sistemas-Mundo (GPEPSM), que no ano seguinte organizou em Florianó- polis o I Colóquio Brasileiro em Economia Política dos Sistemas-Mundo. Desde então, o Colóquio é realizado anualmente, tendo sido organi- zado pelo Prof. Antonio Brussi na Universidade de Brasília (2009), pelo Prof. Eduardo Mariutti na UNICAMP (2011), e pela Profa. Rosângela de Lima Vieira na UNESP-Marília (2012). A continuidade dos Colóquios e sua organização em outras universidades que não sua sede ini- cial, a UFSC em Florianópolis, revelam a difusão da ASM pelo meio acadê- mico brasileiro, difusão que, ademais das limitações daqueles que lideram o processo, enfrenta dificuldades inerentes a qualquer inovação, mas que, no caso específico, parecem decorrer de certas peculiaridades do meio acadê- mico vis-à-vis a ASM. No que segue, e no limite do espaço desta Introdução, indicaremos estas peculiaridades, começando pelas peculiaridades da ASM. Como reitera Immanuel Wallerstein neste volume, a ASM nasceu como um protesto con- tra as Ciências Sociais, particularmente a sua expressão dominante nos anos 1970, a teoria da modernização. Para impensar as Ciências Sociais, quatro princípios metodológicos foram desenvolvidos no processo de criação cole- tiva da ASM: as Ciências Sociais deveriam ser históricas, a unidade de análise deveria ser o sistema mundial (em lugar da economia/estado/sociedade na- cional), a temporalidade de referência deveria ser a longue durée braudeliana e o enfoque necessariamente unidisciplinar (WALLERSTEIN, 2002). Não é difícil perceber o quanto esta proposta desafiava cada disciplina em particular 9 INTRODUÇÃO e o conjunto delas. Desde 1974, quando foi lançado o primeiro volume de O Moderno Sistema-Mundo, obra seminal de Wallerstein, a ASM avançou bastante nos EUA, mas não muito fora dele, embora o suficiente para ser considerada por Wallerstein como um movimento do saber (ver o seu texto neste volume). Na América Latina, a entrada da ASM nos circuitos acadêmi- cos foi praticamente nula até o início da década de 2000. Até onde vai nosso conhecimento, somente no México existe uma contribuição relevante, a de Carlos Antonio Aguirre Rojas. No Brasil, embora fossem lidos, Wallerstein e Arrighi não tinham inspirado programas de pesquisas consistentes. Por quê? Se temos em mente seus quatro princípios metodológicos, é compreensí- vel que a ASM enfrentasse grandes barreiras. Comecemos pelas resistências mais gerais, quer dizer, não exclusivas do Brasil. Em primeiro lugar, assim como em todos os processos de trabalho, tam- bém no labor científico, instalou-se uma divisão do trabalho, que, ao se revelar tão eficiente na geração de conhecimento quanto na de objetos, foi se repro- duzindo e se constituindo em uma sólida estrutura - neste caso, uma estrutura do saber da economia-mundo capitalista (LEE, 1998). E as estruturas limitam e condicionam as ações humanas. No caso das Ciências Sociais, esta divisão do trabalho não só se expressa na separação entre as diversas disciplinas – Econo- mia, Sociologia, Ciência política, História, Antropologia, entre outras – como também em especializações dentro de cada uma delas. Além das universida- des, esta organização do trabalho científico é replicada nas agênciasgoverna- mentais de fomento à pesquisa, dando lugar a uma rede de interesses (cargos, prestígio, complementações salariais, financiamentos etc.) que pode dificultar e mesmo sufocar propostas metodológicas que desafiem o status quo. Ao serem transplantadas para a América Latina, as Ciências Sociais foram adaptadas às condições econômicas, políticas e intelectuais dos vários países da região nas décadas de 1950 e seguintes, marcadas, até a década de 1980, pelo embate entre dois grandes projetos civilizatórios no contexto da Guerra Fria: o desenvolvimentismo, entendido como a busca, pelos países da região, dos padrões de riqueza e bem-estar vigentes nos países chamados desenvolvidos através do capitalismo, e o socialismo, que seria a promoção do bem-estar e justiça social através da socialização dos meios de produção. O BRASIL E O CAPITALISMO HISTÓRICO 10 No meio acadêmico latino-americano, estes dois projetos civilizatórios foram incorporados nos pensamentos cepalino-desenvolvimentista e mar- xista-revolucionário, os quais, em que pesem as diferenças, são tributários das ciências sociais do século dezenove e, principalmente, adotam o estado/ economia/sociedade nacional como unidade de análise para o estudo das permanências e da mudança social. O “nacionalismo metodológico” expresso naquelas duas vertentes correspondeu a projetos políticos que tomavam o estado/economia/sociedade nacional como espaço prioritário da ação polí- tica. Teoria e prática interagiam para privilegiar o espaço nacional. De fato, ambas as correntes teóricas passaram a ver no estado nacional o agente prin- cipal da mudança – desenvolvimento/industrialização para os cepalinos e implantação do socialismo para os marxistas. Quando colocados em prática simultaneamente, os quatro princípios metodológicos da ASM alteram significativamente os objetivos, procedi- mentos e resultados das pesquisas sobre a mudança social, originando um outro programa político, e assim, mais uma área de atrito com acadêmicos- militantes das duas correntes antes mencionadas. Entretanto, o próprio de- senvolvimento da economia-mundo parece estar trazendo água para o moi- nho da ASM. Por um lado, os dois processos civilizatórios e suas expressões acadêmico-científicas perderam força após 1980 e, por outro, a atual (quar- ta) onda de globalização1 está fazendo até o cidadão comum perceber que a humanidade compartilha um único e mesmo mundo. Ao compartilhar esta percepção, que também contribui para expor as limitações da perspectiva nacional, também o meio acadêmico e intelectual - especialmente as novas gerações de cientistas sociais - está mais aberto a enfoques sistêmicos. A presente obra é tanto um resultado, como, esperamos, um fator impul- sionador desta abertura. No Brasil, algumas obras de Immanuel Wallerstein 1 A primeira ocorreu no século XIII e foi estudada por Janet L. Abu-Lughod no livro Be- fore European Hegemony –The World System A.D. 1250-1350 (Oxford Univertity Press, 1989); a segunda, iniciada pelos portugueses no século XV, deu lugar, já no XVI, ao que se convencionou chamar Os Grandes Descobrimentos e ao nascimento da Economia-Mundo Capitalista; a terceira, no século XIX, liderada pela Grã-Bretanha, deu lugar ao que Hobsbawn chamou a era do Imperialismo e praticamente incorporou todo o globo terrestre à Economia-Mundo Capitalista. 11 INTRODUÇÃO e Giovanni Arrighi, dois dos principais expoentes da ASM, tem sido publi- cadas. Poderíamos até dizer que, neste aspecto, Arrighi têm sido mais co- nhecido porque seus três principais livros têm edição brasileira2. Contudo, nenhum dos quatro volumes da obra seminal da perspectiva, The Modern World-System, de Immanuel Wallerstein, mereceu uma edição brasileira3. Considerando que o conhecimento desta obra é fundamental para o contato direto com os fundamentos sistêmicos, históricos e unidisciplinares da ASM, podemos imaginar a lacuna que isto implica para a formação das novas ge- rações de pesquisadores. Além de Arrighi e Wallerstein, continuam com- pletamente desconhecidos no Brasil pesquisadores que têm dado contribui- ções importantes para a ASM, como é o caso de Christopher Chase-Dunn e Roberto Patrício Korzeniewicz. Faltava também no Brasil uma obra dedicada inteiramente à ASM e que apresentasse, além dos autores estrangeiros, as contribuições que pesqui- sadores brasileiros estão dando para este campo de estudos. O presente livro é o primeiro passo nesta direção. A intenção dos organizadores foi oferecer uma obra em que a ASM apareça tanto em discussões teórico-metodológicas quanto em pesquisas empíricas, abarcando tanto o passado quanto o presen- te, do Brasil e do mundo. Assim, a coletânea de textos revela a pluralidade e o potencial da ASM para o estudo da mudança social e dos problemas que afligem a humanidade na atual conjuntura do sistema-mundo capitalista. Na parte I do livro são discutidos os fundamentos e tendências da Aná- lise dos Sistemas-Mundo. No texto de abertura, Immanuel Wallerstein faz uma espécie de recuperação da evolução, das pretensões e dos dilemas atuais da ASM. A tese central do criador da ASM é que “A análise dos Sistemas- Mundo é mais do que uma perspectiva; é também mais do que uma teoria, se é que é uma teoria. É um movimento do saber, e isso é de crucial importân- cia para o desenvolvimento futuro das ciências sociais históricas.” Como se vê, a ASM está sendo vista não apenas como uma inovação epistemológica, 2 O leitor não terá dificuldade de encontrar essas obras, razão pela qual não as relacionamos aqui. 3 Os dois primeiros volumes foram publicados por Edições Afrontamento de Portugal, mas estão esgotados. O BRASIL E O CAPITALISMO HISTÓRICO 12 mas sim como um movimento social, uma força de mudança social, no cam- po do saber. Como movimento de mudança, o destino da ASM está indis- soluvelmente ligado à evolução da economia-mundo capitalista. No capítulo 2, Eduardo Mariutti aponta as condições para o surgimento da Análise dos Sistemas-Mundo, focando em dois contextos históricos, a modernidade e o período de 1945 a 1968 para, na sequência, analisar criticamente a evolução desta perspectiva, balizando a análise em torno da sua oposição radical à teoria da modernização e apontando os pontos de convergência com o ma- terialismo histórico. A parte II do livro contém trabalhos dedicados à análise da conjun- tura atual do sistema-mundo capitalista. No capítulo 3, Giovanni Arrighi e Beverly Silver utilizam a teoria dos ciclos sistêmicos de acumulação para analisar as transformações associadas ao governo de George W. Bush, à crise mundial inaugurada em 2008, e à ascensão da China. O trabalho, que é um dos últimos de Arrighi, é uma extensão da análise feita em O Longo Século XX (por Arrighi) e em Caos e Governabilidade no Moderno Sistema Mundial (por Arrighi, Silver e colaboradores). No capítulo 4, Christopher Chase-Dunn e Roy Kwon analisam o capitalismo contemporâneo da perspectiva evolucionária e comparativa dos sistemas-mundo. Fenômenos como a Primavera Árabe, o movimento “Occupy Wall Street” e a ascensão de governos de centro-esquerda na Amé- rica Latina são situados num esquema analítico que considera três horizon- tes temporais: 500, 5.000 e 50.000 anos. No capítulo 5, Roberto Patricio Korzeniewicz, que tem empregado a ASM para estudar a desigualdade mundial de renda, avalia o impacto que as transformações que têm caracterizado a economia-mundo nos últimos vinte anos e a crise atual tiveram sobre a estratificação e a mobilidade so- cial em nível mundial. Após oferecer uma análise empírica do problema, Korzeniewicz usa o trabalho de Giovanni Arrighi para mostrar por que tan- to as abordagens dominantes quanto as críticas são incapazes de explicar a redução recente da desigualdade mundial. O autor conclui ressaltando al- guns dos dilemas enfrentados atualmente por aqueles que visam promover “uma ordem mundial mais igual e solidária”. 13 INTRODUÇÃONo capítulo 6, Antonio Brussi argumenta que práticas empresariais ilícitas, como o descaminho (contrabando) e a pirataria nos dias atuais, são traços estruturais do sistema-mundo capitalista. Em uma análise que vai des- de a hegemonia holandesa, passando pelo século americano até a atualidade, Brussi demonstra que tais “inovações” ético-empresariais, embora rejeitadas e até mesmo combatidas no contexto de sua ocorrência, acabam por banaliza- rem-se com o passar do tempo, transformando-se em práticas correntes dos negócios do ciclo de acumulação que fez emergir aquelas inovações. A parte III do livro é composta de trabalhos que aplicam a perspectiva dos sistemas-mundo em estudos sobre o Brasil. No capítulo 7, Pedro Antonio Vieira insere Portugal e sua colônia americana no desenvolvimento da eco- nomia-mundo capitalista no longo século XVI. O autor argumenta que o sucesso do Estado e da sociedade portuguesa do Antigo Regime em impedir o pleno desenvolvimento de ideias e práticas capitalistas em seus domínios, mas não no sistema-mundo, fez com que Portugal se atrasasse relativamente às regiões mais dinâmicas, de modo que, por volta de 1650, Portugal e o “Brasil” estivessem firmemente situados na periferia da economia-mundo. No capítulo 8, Rosângela de Lima Vieira faz uma interpretação do desenvolvimento da cafeicultura no Brasil usando o conceito de cadeia mer- cantil da Análise dos Sistemas-Mundo. A autora mostra a distribuição es- pacial das diversas atividades que compõem a cadeia mercantil do café no período 1830-1929, apontando as relações e assimetrias existentes entre os diversos componentes da cadeia mercantil entre si e destes com a economia- mundo capitalista. No capítulo 9, Felipe Amin Filomeno aplica a Análise dos Sistemas- Mundo ao estudo da mudança institucional, utilizando a metodologia da “comparação incorporada”. O autor mostra que o fortalecimento dos direitos de propriedade intelectual na agricultura de soja da América do Sul após 1980 foi a reprodução, em escala regional e setorial, de uma tendência mun- dial associada ao declínio da hegemonia dos EUA. No caso de Argentina, Brasil e Paraguai, a reprodução desta tendência foi facilitada pela competi- ção entre estados e produtores rurais da região por tecnologia e mercados estrangeiros. O BRASIL E O CAPITALISMO HISTÓRICO 14 Por fim, os organizadores querem agradecer a todos os autores que, além dos textos, foram sempre solícitos no atendimento dos prazos e das demandas burocráticas inerentes à publicação de um livro.Também expres- samos nossos profundos agradecimentos à Pró-Reitoria de Pós-Graduação e ao Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais da Universida- de Federal de Santa Catarina pelo apoio financeiro a nós concedido. Bibliografia LEE, Richard. Structures of Knowledge. In: HOPKINS, T.K.; WALLERSTEIN, I.(orgs.). The Age of Transition-Trajectory of the World-System, 1945- 2025. London & New Jersey: Zed Books e Pluto Press (Australia), 1998. WALLERSTEIN, I. O fim do mundo como o concebemos: Ciência Social para o século XXI. Rio de Janeiro: Revan, 2002. S E Ç Ã O 1 FUNDAMENTOS DA ANÁLISE DOS SISTEMAS-MUNDO 17 C A P Í T U L O 1 A Análise dos Sistemas-Mundo como movimento do saber IMMANUEL WALLERSTEIN1 A Análise dos Sistemas-Mundo é mais do que uma perspectiva; é tam- bém mais do que uma teoria, se é que é uma teoria. É um movimento do saber, e isso é de crucial importância para o desenvolvimento futuro das ciências sociais históricas. Um movimento do saber é um movimento social intelectual. Ele propõe uma reorientação no modo como organizamos nosso entendimen- to do mundo. No caso da análise dos sistemas-mundo, ela se baseia na rejeição das categorias das ciências sociais herdadas do século dezenove. Ela propõe substituir estas categorias por uma nova ciência social histórica. No decorrer dos milênios, quase todo argumento, proposição ou con- ceito nas ciências sociais históricas provavelmente tem sido afirmado milha- res de vezes. Traçar a história dos conceitos é um interessante, e, algumas 1 Doutor em Sociologia pela Columbia University, é atualmente Senior Research Scholar na Yale University e, de 1976 a 2005, foi diretor do Fernand Braudel Center da State University of New York - Binghamton. O BRASIL E O CAPITALISMO HISTÓRICO 18 vezes, válido exercício de história intelectual. Mas é somente quando um conceito ou conjunto de conceitos é adotado por uma minoria suficiente- mente ampla de pessoas que ele se torna capaz de afetar a evolução corrente do conhecimento coletivo. Quando esta dimensão é alcançada, pode-se falar deles como sendo um movimento do saber, o que significa que há um grupo de pesquisado- res suficientemente grande em número e coerentes o bastante em termos de organização para sustentarem suas posições nos debates coletivos e, talvez, vencerem esse debate no decorrer do tempo. Por certo, se e quando eles che- gam a vencer o debate, então esses conceitos constituirão um novo modo de análise, temporariamente dominante e, por sua vez, sujeito a ser posterior- mente desafiado pelos novos movimentos do saber. As premissas hoje dominantes nas ciências sociais históricas foram esta- belecidas aproximadamente entre 1850 e 1945. Estas premissas foram analisadas no relatório da Comissão Gulbekian, que eu presidi.2 O contexto em que es- tas foram adotadas foi o do estado do sistema-mundo naquele mesmo período. Era o período de auge da dominação política, econômica e cultural do Ocidente sobre o sistema-mundo. No modo de pensar do setor dominante do sistema- mundo, havia diferenças radicais entre o “o Ocidente e o resto”. Este contexto mudou depois de 1945. E as novas realidades globais apresentaram várias dissonâncias em relação ao modelo organizacional das ciências sociais históricas vigente em 1945. As duas principais mudanças na realidade global depois de 1945 foram (1) a elevação dos EUA ao papel de potência hegemônica e a peculiar relação estabelecida por eles com a URSS, e (2) a considerável força que os movimentos antissistêmicos tradicionais vieram a demonstrar por todo o sistema-mundo no período pós-1945. O modelo organizacional das ciências sociais baseado na diferença epistemológica radical entre o Ocidente e o resto levou a uma clara seg- mentação disciplinar no modo de estudar cada um desses epaços. Emer- giu uma clara divisão do trabalho acadêmico. A pesquisa sobre o passado das sociedades ocidentais foi atribuida à História. As sociedades ocidentais 2 I. WALLERSTEIN et al., Open the Social Sciences: Report of the Gulbenkian Commission on the Restructuring of the Social Sciences, Stanford, CA: Stanford Univ. Press, 1996. Este relatório foi traduzido para 25 línguas. No Brasil, foi publicado pela Cortez em 1996. 19 A ANÁLISE DOS SISTEMAS-MUNDO COMO MOVIMENTO DO SABER contemporâneas se tornaram o foco do trio de disciplinas nomotéticas – a Economia estudando o mercado, a Ciência Política estudando o estado, e a Sociologia estudando a sociedade civil. O estudo do mundo não ocidental foi dividido entre a antropologia, que estudava os pequenos grupos, as assim chamadas “tribos”, e os estudos orientais, investigando as grandes, mas con- sideradas congeladas, “altas” civilizações. Este padrão de estudo teve proble- mas para lidar com as novas realidades pós-1945. Isto provocou um debate sobre se, e de que modo, se poderia adaptar as premissas dominantes para torná-las mais relevantes a estas novas realidades globais. No período que vai mais ou menos de 1945 a 1965/70, houve quatro diferentes tentativas de adaptar as premissas dominantes das ciências sociais mundiais a estas novas realidades globais. Cada tentativa parecia realizar al- guns ajustes plausíveis no modelo, mas cada um delas demonstrou ao final suas limitações. A primeira e possivelmente a mais importante tentativa foi da teoria da modernização. Em lugar de separar o estudo do mundo “civilizado” do estudodo resto do mundo como se fossem lugares epistemológicos distintos, a teoria da modernização tentou historicizar as diferenças entre os dois espa- ços. Ela argumentava que o mundo “desenvolvido” não era ontologicamente diferente do mundo “subdesenvolvido”, mas apenas estava à frente dele no tempo. Os países subdesenvolvidos poderiam alcançar os países desenvolvi- dos aprendendo com os modelos dos países mais avançados e fazendo certas mudanças essenciais nas suas práticas sócio-culturais. A segunda tentativa foi a da teoria da dependência, que emergiu pri- meramente da análise centro-periferia da CEPAL (Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe) sob Raúl Prebisch, e depois foi elaborada com uma ênfase mais política por diversos intelectuais latino-americanos e sul-asiáticos. Diferente da teoria da modernização, a teoria da dependência tinha um outro modelo de tempo. Opondo-se à ideia de que todos os estados começaram no mesmo ponto, com alguns avançando mais rapidamente que os outros, os teóricos da dependência enfatizavam o “desenvolvimento do subdesenvolvimento” (para usar a famosa expressão de Gunder Frank) Isto significava que do mesmo ponto de partida, algumas regiões se moveram para frente para se tornarem “desenvolvidas” e outras se moveram adiante no tempo para se tornarem “subdesenvolvidas”. Concluiu-se que as O BRASIL E O CAPITALISMO HISTÓRICO 20 mudanças essenciais para realizar o catching-up não estavam na arena socio- cultural mas nas arenas econômica e política. Somente desta maneira, pode- riam os países “subdesenvolvidos” sair da sua posição de inferior. A terceira tentativa foi a do revisionismo marxista, que tomou duas formas. A primeira variante foi uma consequência do famoso discurso de Khrushchev no 20o. Congresso do Partido Comunista da União Soviética em 1956. Do mesmo modo que a teoria da modernização, o modelo sovié- tico pós-1956 historicizou a diferença, e o caminho proposto para realizar o catching-up acabou se tornando surpreendentemente similar ao defendido pela teoria da modernização, com uma diferença crucial: a versão soviética sugeria que o país/modelo “avançado”, a ser imitado, era a URSS e não os EUA. A segunda e possivelmente mais importante variante do revisionismo marxista tomou outra direção. Ela foi lançada pela discussão sobre o “modo de produção asiático” que teve lugar primeiramente na Hungria e em alguns países da Europa Ociental. O modo de produção asiático foi um dos con- ceitos menos felizes de Marx e foi abertamente banido por Stálin. Ter dado credibilidade renovada a este conceito gerou duas consequências teóricas. Provocou o questionamento da automaticidade da sequência de modos de produção que supostamente iria do comunismo primitivo ao mundo comu- nista do futuro. Desse modo possibilitou discutir a validade do conceito ilu- minista do “progresso” inevitável e unilinear. A segunda consequência diz respeito ao debate da “questão nacional”. Se alguns países (ou sociedades, ou formações sociais), mas não todos, pas- saram por um modo de produção asiático (ou algo coisa equivalente), isso significava que não havia mais um único caminho que todos os países deviam percorrer. Isto implicava que a análise social marxista de partes específicas do mundo deveria se basear nas particularidades históricas destas partes do mun- do. O marxismo clássico era essencialmente nomotético. Esta discussão levava na direção de uma epistemologia idiográfica. Ela permitia à análise marxista deixar de tentar encaixar a história do não-ocidente em uma sequencia deri- vada da análise do pensamento e das instituições européias. A quarta tentativa foi aquela baseada no conceito braudeliano de longue durée e sua dupla ênfase na importância central da história socioeconômica 21 A ANÁLISE DOS SISTEMAS-MUNDO COMO MOVIMENTO DO SABER combinada com a minimização da importância da história política episó- dica, a assim chamada histoire événementielle. Este ataque à historiografia político-diplomática narrativa tradicional alcançou grande sucesso em par- tes significativas da comunidade histórica mundial. A limitação de cada um dos três primeiros revisionismos é terem con- tinuado a considerar estados/sociedades/formações sociais como entidades autônomas separadas que seguem caminhos autônomos paralelos, em dife- rentes velocidades, em direção a um futuro mais ou menos inevitável. Isso impedia explicar a contínua polarização das diferentes regiões do sistema- mundo, polarização que parecia estar se ampliando em vez de estar se re- duzindo. A limitação do caminho braudeliano foi que seus praticantes ten- deram a confinar seu trabalho à análise dos séculos XV ao XVIII e estavam amplamente despreparados para olhar tanto para o tempo presente quanto para o longo itinerário de mudança histórica através dos milênios. O que desfez o relativo sucesso de todas as quatro formas de revisio- nismo foi revolução mundial de 1968. Para sermos exatos, a primeira preo- cupação dos estudantes e da juventude que lideraram as diversas rebeliões que nós associamos a 1968 não eram as esturuturas do saber. Em seus ataques às várias estruturas de autoridade, eles estavam acima de tudo preocupados com o que eles viam como as execráveis consequências da hegemonia dos EUA, bem como com o que muitos (talvez a maioria) deles consideravam o conluio soviético com os Estados Unidos. Em segundo lugar, eles estavam preocupados com o fracasso dos movimentos antissistêmicos históricos em chegar ao segundo passo da sua estratégia de dois passos – primeiro chegar ao poder do estado, para então mudar o mundo – adotada por estes movi- mentos no final do século XIX. De fato, eles disseram a estes movimentos: vocês mais ou menos alcançaram o poder do estado (para a maioria nos anos 1950 e 1960), mas definitivamente vocês não mudaram o mundo. Entretanto, na medida em que o processo revolucionário mundial avançou, mais e mais participantes dessas rebeliões começaram a sentir que os modos de organizar o saber e as categorias que estavam sendo usadas eram, elas próprias, os grandes obstáculos ao tipo de transformação que eles esperavam alcançar. Eles voltaram então sua atenção aos modos pelo qual o O BRASIL E O CAPITALISMO HISTÓRICO 22 quadro epistemológico dominante sistematicamente negligenciava os “po- vos esquecidos”. E começaram a demandar que as instituições do saber refo- cassem sua atenção nas realidades históricas e sociológicas. Este novo impulso – visto tanto por seus defensores quanto pelos ad- versários como um impulso político – provocou outra mudança nas realida- des do sistema-mundo e possibilitou que os dissidentes do saber obtivessem apoio suficiente para que pudessem dizer que tinham se transformado em movimentos do saber. A análise dos sistemas-mundo como um movimento do saber nasceu neste momento e dentro deste contexto. O que a análise dos sistemas-mundo tentou fazer foi tomar elementos de cada uma das quatro tentativas revisio- nistas e, juntando-os, construir uma ferramenta que fosse capaz de desafiar as premissas epistemológicas até então dominantes e que tinham moldado as assim chamadas disciplinas - como argumentos intelectuais, como aparatos organizacionais e como fenômenos culturais. Como qualquer outro movimento do saber, a análise dos sistemas- mundo não é constituída por um exército disciplinado, mas por um con- junto de pessoas que, embora compartilhem certas premissas, perseguem diferentes ênfases dentro deste marco. Eu começarei delineando o que sig- nifica para mim a combinação de argumentos que eu denomino análise dos sistemas-mundo. Depois disso discutirei outras variações dentro do campo geral da análise dos sistemas-mundo. Para mim, o elemento chave na análise dos sistemas-mundo é a ênfase na unidade de análise – um sistema-mundo ao invés do estado/sociedade/ formação social. A palavra “mundo” de modo nenhum é sinônimo de glo- bal ou planetário, mas simplesmente se referea uma unidade relativamente grande (em termos de área e população) no interior da qual existe uma di- visão axial do trabalho. Estamos falando de “um” mundo, não “do” mundo, como diria Fernand Braudel. O segundo elemento chave para mim é que “sistemas-mundo” (como todos os sistemas) não são eternos. Eles têm vida. Eles passam a existir; eles perfazem seus itinerários históricos de acordo com o conjunto de regras que definem e governam o sistema; e eles finalmente se afastam tanto do 23 A ANÁLISE DOS SISTEMAS-MUNDO COMO MOVIMENTO DO SABER equilíbrio que o sistema entra em uma crise estrutural terminal. Portanto, a questão crucial aqui é o argumento de que todos os sistemas são históricos e sistêmicos. A ênfase da teoria da modernização na historização das diferenças entre centro e periferia é fundamental. Do mesmo modo o é a noção de Prebisch e dos dependentistas de que a brecha entre centro e periferia está se ampliando ao invés de diminuir – uma parte necessária da explicação do desvio do equilíbrio no decorrer do tempo. Um terceiro elemento crucial é a recusa à separação ontológica das ima- ginadas arenas, tão caras ao velho conjunto de premissas dominantes – a [are- na] política, a econômica e a sociocultural. Para os teóricos da modernização, como para aqueles que aderiram ao conjunto de premissas dominantes antes de 1945, a autonomia intelectual das três arenas era a principal característica definidora do que eles chamavam modernidade. Para a análise dos sistemas- mundo, as assim denominadas três arenas estão intrinsecamente conectadas. Elas definem umas as outras. Nenhuma das três é “primoridal” e todas devem ser analisadas na sua definição mútua. Consequentemente, a análise dos siste- mas-mundo é inerentemente unidisciplinar (em oposição a ser multi-, inter-, ou transdisciplinar) em relação às ciências sociais históricas. Por fim, a análise dos sistemas-mundo recusa a institucionalização ocorrida durante o século XIX do conceito de duas culturas e defende a su- peração desta falsa (e historicamente muito recente) divisão epistemológi- ca. A divisão idiográfico-nomotético entre filosofia e ciência data somente da segunda metade do século dezoito. Com a invenção, no século XIX, das “ciências sociais” como uma categoria intermediária, esta divisão foi incor- porada nas ciências sociais como a divisão entre a história idiográfica e as três ciências sociais nomotéticas. A análise dos sistemas-mundo afirma que esta divisão epistemológica entre a história e as ciências sociais nomotéticas foi sempre falsa e agora é obsoleta. Na medida em que a análise dos sistemas-mundo ganhou força como um movimento do saber, existiram versões mais ou menos inseridas dentro deste grande campo, as quais colocaram ênfases diferentes e/ou adicionais na agenda epistemológica e de pesquisa. O BRASIL E O CAPITALISMO HISTÓRICO 24 Uma dessas versões foi a impulsionada por Chris Chase-Dunn e Tho- mas Hall, entre outros. Esta versão argumentou contra limitar os esforços práticos de pesquisa ao “moderno sistema-mundo” como uma “economia- mundo capitalista” – e que na maior parte de sua existência se localizava em um espaço menor que o globo terrestre. Fazer isso, sugeria-se, tendia a deixar importantes questões fora da discussão. Uma era o que estava acon- tecendo, durante os tempos modernos, em regiões definidas como estando fora da divisão axial do trabalho da economia-mundo capitalista, bem como os complexos processos pelos quais zonas externas eram incorporadas à di- visão axial do trabalho. Além disso, este grupo não estava preocupado apenas com que a prá- tica de devotar esforços de pesquisa primariamente, e até exclusivamente, à economia-mundo capitalista, levasse ao que pode ser chamado exclusões espaciais da análise. O grupo se preocupava também com o que pode ser chamado de exclusões temporais de longo prazo da análise. Este grupo de- sejava olhar para duas questões de mais longo prazo. Uma era o desenvol- vimento histórico de muito longo prazo da interação social humana. Eles diligentemente confrontaram a há muito estabelecida questão da “evolução histórica”- o que “evoluiu” e se a evolução foi teleológica. Adicionalmente, entretanto, este grupo sentiu que havia conhecimen- tos valiosos a serem descobertos pela comparação sistemática de diferentes tipos de sistemas históricos, para o que os casos teriam que ser necessaria- mente obtidos das análises de sistemas históricos de todos os tipos e de todas as áreas geográficas no decorrer de vários milhares de anos. Isto pode ser chamado de análise comparativa de sistemas históricos. Uma segunda versão da análise comparativa de sistemas históricos, embora limitando-se ao período histórico “moderno” (cerca de 1500 ao pre- sente), foi aquela desenvolvida por Giovanni Arrighi e Takeshi Hamashita, entre outros. Basicamente, eles se propuseram a comparar a evolução do sis- tema comercial centrado na China com aquele que se desenvolveu como sistema comercial centrado na Europa ocidental no período pós-1500. Eles olharam para os modos como as estruturas dos dois sistemas diferiam – com Arrighi argumentando que as diferenças persistem até hoje – bem como para os crescentes vínculos entre os dois sistemas no transcorrer dos séculos. 25 A ANÁLISE DOS SISTEMAS-MUNDO COMO MOVIMENTO DO SABER A crescente relevância econômica e geopolítica da China no sistema- mundo desde a década de 1980 atraiu crescentemente a atenção dos estudio- sos do mundo para o papel histórico da China, e provocou, em particular, reclamações sobre o negligenciamento, pelos estudiosos pan-europeus, do papel da China. Desde então, um volume relativamente grande de literatura vem sendo produzido sobre a China e o mundo, tanto em linguas asiáticas como europeias. Esta literatura é muito diversificada e somente parte dela pode ser considerada como estando dentro do grande campo da análise dos sistemas-mundo. André Gunder Frank nos seus escritos pós-1990 insistiu no conceito de que desde sempre somente existiu um sistema mundo (e por isso ele retirou o hífen), e traçou sua existência até no mínimo 5000 anos atrás. Para Frank, a China foi sempre o centro deste sistema (exceto um tanto brevemente no século XIX e em parte do XX). Embora Frank tenha usado muitas ferramentas metodológicas derivadas da análise dos sistemas-mundo, ele atacou as outras versões (de fato, todas as outras) como sendo eurocêntricas e rejeitou o pró- prio conceito de capitalismo como variável a ser incluída na análise. Outros neste grupo de acadêmicos centrados na China, como Kenneth Pomeranz, insistiram na reanálise dos dados que comparavam a China e a Europa Ocidental entre os séculos dezesseis e dezoito, e procuraram mostrar que o que Pomeranz chamou de a “grande divergência” ocorreu somente no século dezenove. Pomeranz, entretanto, não procura situar a si mesmo na família dos analistas dos sistemas-mundo, ainda que de alguma maneira sua análise concreta esteja de acordo com a versão Arrighi-Hamashita. De fato, a versão de Pomeranz reforça a visão tradicional e dominante das ciências sociais, segundo a qual a mudança chave nos tempos modernos foi a “revo- lução industrial” que se considerava ter ocorrido (ao menos primariamente) na Inglaterra no limiar do século dezenove. Enquanto este debate se desenvolvia entre os analistas dos sistemas- mundo no período 1970-2010, duas coisas aconteceram, alterando o cará- ter da análise dos sistemas-mundo como movimento do saber. A primeira foi o surgimento e mesmo o triunfo, da globalização neoliberal no sistema- mundo. A segunda foi a mudança de atitude das principais organizações O BRASIL E O CAPITALISMO HISTÓRICO 26 disciplinares e dos livros-textos para com a análise dos sistemas-mundo. Consideremos cada uma separadamente. A estagnação da economia-mundo que começou nos anos 1970 (uma fase B do Kondratieff) se combinou com o debilitamento, como resultado da revolução mundial de 1968,da dominação do liberalismo centrista. A com- binação permitiu às forças conservadoras promoverem uma tentativa mundial de reverter todas as mudanças políticas, econômicas e culturais ocorridas no período 1945-1970. Esta campanha política recebeu o depreciativo rótulo de neoliberalismo, e foi encarnada originalmente no sucesso político do Partido Conservador transformado da Sra. Thatcher, no Reino Unido, e do Partido Republicano transformado de Ronald Reagan, nos Estados Unidos. Os neoliberais mudaram o marco analítico que aplicavam ao sistema- mundo de “desenvolvimentismo” (que prevaleceu no período 1945-1970) para algo que eles denominaram globalização. Eles usaram este novo marco para impor, primariamente através do Tesouro estadunidense e do Fundo Monetário Internacional (FMI), um programa prático que passou a ser cha- mado Consenso de Washington. Este demandava que todos os países não “desenvolvidos” instituíssem um programa que dava prioridade ao cres- cimento orientado para exportações, ao mesmo tempo que abrissem suas fronteiras ao investimento externo direto, privatizando empresas estatais, reduzindo seus programas de bem-estar, e diminuindo suas burocracias. Geopoliticamente, este esforço político foi um enorme sucesso no mundo todo, no perído transcorrido aproximadamente entre a metade do anos 1970 e cerca de 1995. Dentro das ciências sociais históricas, a resposta a esta nova realidade política mundial, foi fazer da globalização a palavra da moda na pesquisa e na publicação. Um dos resultados foi, um tanto paradoxalmente, tornar a análise dos sistemas-mundo mais respeitável academicamente. Anterior- mente, a análise dos sistemas-mundo ou era objeto de fortes acusações por seus supostos erros, ou era tratada com uma desdenhosa recusa a reconhecer seu caráter acadêmico. De repente, a análise dos sistemas-mundo passou a ser vista, e mesmo aclamada, com uma precursora da teoria da globalização, ainda que em uma versão muito comprometida politicamente. A análise dos 27 A ANÁLISE DOS SISTEMAS-MUNDO COMO MOVIMENTO DO SABER sistemas-mundo (usualmente referida como teoria dos sistemas-mundo) passou a ser incluída em escritos e livros-textos como uma visão teórica al- ternativa em meio a uma lista de visões teóricas alternativas à globalização. Na verdade, entretanto, a análise dos sistemas-mundo não era uma precursora da teoria da globalização, mas algo bem diferente. A análise dos sistemas-mundo nunca pretendeu fazer parte de uma lista de teorias alter- nativas. Ela pensava a si mesma como formulando uma rejeição a todo o arcabouço das ciências sociais dominantes. A análise dos sistemas-mundo conclamava a uma reformatação drástica do marco intelectual das ciências sociais, convocando para uma reorganização unidisciplinar. A análise dos sistemas-mundo combinou esta visão das ciências sociais históricas com a demanda pela superação da divisão epistemológica entre as “duas culturas” e a recriação de um marco epistemológico único para todo o saber. O triunfo do Consenso de Washington passou a ser desafiado politi- camente na segunda metade dos anos 1990, na medida em que as promessas neoliberais de melhoramento econômico universal se revelaram uma mira- gem. Esta crescente desilusão foi reforçada pelas sucessivas crises financeiras ocorridas desde então e que levaram finalmente a um sério questionamento da viabilidade do prometido retorno ao “crescimento” econômico universal. O grau em que a economia-mundo capitalista pode retomar seus tra- dicionais e repetidos retornos a uma expansão normal é matéria de algum debate mesmo dentro do campo da análise dos sistemas-mundo. Se alguém acredita, como eu, que o moderno sistema-mundo está em um crise estru- tural, e, portanto, em uma bifurcação, e no meio de uma transição para um novo sistema global, então uma pergunta é o que acontece, neste processo, com a análise dos sistemas-mundo enquanto movimento do saber. A força da análise dos sistemas-mundo como movimento do saber é que ela tem resistido à tentação de definir a si mesma muito estreita e dog- maticamente, ainda que não se permitindo ser definida tão frouxamente a ponto de que qualquer um que pareça lidar com questões para além de nações/sociedades/formações sociais singulares ser considerado parte da família. Este tem sido um projeto organizacional difícil, mas que até hoje tem funcionado. De fato, a análise dos sistemas-mundo como movimento O BRASIL E O CAPITALISMO HISTÓRICO 28 do saber tem sido relativamente exitosa em difundir seus seguidores por to- das as atuais disciplinas das ciências sociais históricas e difundido sua base organizacional para além dos Estados Unidos, para outras partes do mundo – notavelmente, mas não somente, para América Latina, Europa Ocidental e o leste asiático. A questão para a análise dos sistemas-mundo como movimento do sa- ber é se ela pode continuar jogando o jogo organizacional que tem jogado até agora. Na medida em que uma transição estrutural transcorre, o sucesso da análise dos sistemas-mundo pode ser medido pelo seu desaparecimento como um movimento do saber resultante da reorganização radical do mundo do sa- ber. É cedo demais para dizer se isso de fato vai acontecer. Mas se a análise dos sistemas-mundo acabar se tornando meramente uma posição teórica a mais dentro das ciências sociais, ela terá falhado no que esperava realizar. 29 A perspectiva dos sistemas-mundo: fundamentos e tendências EDUARDO BARROS MARIUTTI4 In general, in a deep conflict, the eyes of the downtrodden are more acute about the reality of the present. For it is in their interest to perceive correctly in order to expose the hypocrisies of the rulers. (Immanuel Wallerstein) A mudança social só pode ser compreendida no plano da totalidade. Embora ambígua, esta hipótese constitui a base fundamental da perspectiva do sistema-mundo. Se acreditarmos na autoimagem de Wallerstein, tal pers- pectiva não foi constituída a priori, mas como o resultado de uma indagação prévia, isto é, um conjunto de estudos orientados para tentar compreender 4 Doutor em Economia pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). Professor do Instituto de Economia da UNICAMP. C A P Í T U L O 2 O BRASIL E O CAPITALISMO HISTÓRICO 30 os fundamentos sociais dos conflitos políticos nos EUA nas décadas de 1950 e 60, com o objetivo de - enquanto homem racional, confessa - discriminar as suas diversas modalidades para conseguir interferir no curso dos aconte- cimentos, almejando constituir uma sociedade melhor. Esta preocupação, simultaneamente ingênua e pretensiosa, levou o então jovem sociólogo a es- tudar os processos de descolonização na África, acreditando que ao observar o fenômeno em seus estágios iniciais – em um nível mais elementar, portan- to – ele teria mais facilidade para entender a sua forma mais complexa. Mas a experiência não foi bem-sucedida: trouxe mais problemas do que soluções. Suspeitando das bases de sua própria formação intelectual, Wallerstein se viu forçado a revisitar as grandes questões debatidas durante a fase de forma- ção das Ciências Sociais, entre os séculos XVIII e XIX. Como se sabe, além das profundas transformações sociais, este período foi marcado pela disputa acirrada entre as formas mais tradicionais do conhecimento – Teologia (em franco declínio), Filosofia e História – e as novas modalidades de reflexão, as ciências. Wallerstein suspeitou que esta discussão teórica não poderia ser realizada de forma independente, isto é, destacada da compreensão do proces- so histórico que resultou na formação do mundo moderno. O primeiro passo concreto nesta direção foi dado em 1974, com a publicação de The Modern World-System I, livro que, indubitavelmente, deu origem à perspectiva do sistema-mundo. Logo, como ponto de partida, utilizarei como parâmetro básico o con- junto da obra deste autor para conduzir a argumentação. Seria impossível em um capítulo cobrir todas as dimensõese, sobretudo, as diversas correntes que fazem parte – ou que alegam fazer parte - da perspectiva do sistema- mundo. A despeito de um certo ecletismo que a caracteriza, nem toda teoria sistêmica – ou “pensamento sistêmico” - é compatível com esta perspectiva.5 5 A própria ênfase de Wallerstein na ideia de que se trata de uma perspectiva e não de uma te- oria do sistema-mundo abre margem para o ecletismo: ela se define essencialmente pela críti- ca reflexiva dos pressupostos das ciências sociais “modernas”, que sistematicamente deslocam a atenção da verdadeira unidade de análise – o sistema-mundo e não as estruturas e subsiste- mas que ele contém – e prometem uma objetividade que não podem realizar. É cedo demais para teorizar: “Eu tenho considerado o trabalho dos últimos vinte anos e de mais alguns que virão com o trabalho de limpar a vegetação rasteira, para que possamos construir um aparato 31 A PERSPECTIVA DOS SISTEMAS-MUNDO Além disto, a despeito das contínuas – e distintas – reverências de Wallerstein e Arrighi a Fernand Braudel, a reflexão do notável historiador francês – como ele próprio salientou (BRAUDEL, 1997 p. 58) – não corresponde perfeitamen- te à problemática da perspectiva do sistema-mundo. O objetivo deste capítulo é duplo. Inicialmente discriminarei os fundamentos que delimitaram o quadro geral onde a reflexão sobre a dinâmica da sociedade se desenrolou, respeitan- do duas temporalidades. A primeira, de mais longa duração, diz respeito à he- rança da intensa discussão epistemológica travada, sobretudo, no século XIX, e que, em meio às lutas sociais, precedeu e condicionou a institucionalização das Ciências Sociais e do sistema universitário contemporâneo. A segun- da, mais conjuntural, incorpora as questões mais circunscritas ao período compreendido entre, grosso modo, 1945 e 1968, momento em que as deter- minações sociais que possibilitaram a consolidação da perspectiva do sistema- -mundo ficaram mais explícitas e, por conta dos desdobramentos de 1968, possibilitaram a sua difusão. O segundo objetivo é diferente. Trata de apontar as perspectivas que se abrem a esta corrente de pensamento, frente a algumas tendências recentes, das quais podemos destacar dois desdobramentos: i) a expansão do escopo analítico, isto é, a investigação de outros sistemas-mundo (ou as relações entre sistemas-mundo distintos, porém contemporâneos); e ii) o debate teórico em torno da própria ideia de sistema, particularmente, a apro- ximação cautelosa com a “teoria” do caos. As determinações mais profundas: a era moderna e suas contradições Há uma forte correlação entre a formação do sistema-mundo capitalista e o estabelecimento da ciência moderna. No intuito de nos aproximarmos mais adequado para as ciências sociais” (WALLERSTEIN, 1998, p. 103). Embora essa postura possa efetivamente dar margem à pluralidade – bastante evidente dentre os seus entusiastas – há critérios mínimos que garantem a especificidade da perspectiva: a fusão entre o tempo e o espaço na demarcação dos limites do sistema-mundo (qualquer que seja ele) e a tipologia básica em que as análises se sustentam: a distinção entre economia-mundo e império-mundo. O BRASIL E O CAPITALISMO HISTÓRICO 32 mais rapidamente do nosso problema, é necessário restringir um pouco mais esta afirmação: há uma conexão entre a consolidação de uma economia- mundo baseada no modo de produção capitalista6 no “Ocidente” em ex- pansão (1640-1815) e a constituição das ciências sociais [1850-1914(45)], isto é, a formação de um domínio específico do conhecimento, dividi- do em disciplinas supostamente autônomas (antropologia, ciência políti- ca, economia, geografia, história e sociologia) e, também, a criação de um aparato institucional capaz de preservar e fomentar a especialização do conhecimento nestes moldes. Como isto ocorreu em conjunto com a con- versão da economia-mundo europeia em um empreendimento praticamen- te global (1815-1917), a divisão do conhecimento estabelecida no núcleo do sistema se impôs sobre praticamente todo o planeta. Esta correlação fica ainda mais nítida se levarmos em conta a grande questão que subjaz a todas as disciplinas das ciências sociais: explicar a ascensão do “Ocidente”, isto é, explicar o processo geral do qual as próprias ciências sociais são uma expressão (WALLERSTEIN, 1992a, p. 561-3; 1992b). A reconstituição des- te processo, mesmo que sumária, exige uma breve descrição do sistema de ideias típico do sistema precedente. No plano das estruturas do pensamento, tal como elas se expressavam com mais nitidez nas camadas dominantes, o feudalismo tinha como base uma concepção essencialmente transcendente sobre a realidade, onde prati- camente todos os aspectos da vida se expressavam de acordo com a temática religiosa. Por conta disto, as contestações sociais eram percebidas e se ex- pressavam como heresias. A linguagem da política era, portanto, essencial- mente religiosa. E este traço sobreviveu, com algumas transformações im- portantes, no Antigo Regime. A ascensão dos Estados Absolutos exacerbou, contudo, uma contradição importante: a tensão entre o poder temporal e o poder espiritual. No primeiro caso, a tendência foi a criação de uma ideologia 6 Ao conceber o sistema-mundo como a unidade de análise Wallerstein é forçado a utilizar uma concepção bastante restrita – e pouco rigorosa - de Modo de Produção: este termo é usado, por vezes, como sinônimo de organização da produção, ora como sistema econômico e, de forma mais recorrente (e ainda menos precisa), como um sistema que submete praticamente tudo a uma “lei do valor”: a acumulação incessante de capitais. Wallerstein á categórico em um aspecto: em um sistema-mundo consolidado, apenas um Modo de Produção pode dominar, embora ele possa subordinar diversos outros. 33 A PERSPECTIVA DOS SISTEMAS-MUNDO essencialmente fundada na razão de Estado (a base das prerrogativas do Príncipe), que abriu caminho para uma concepção política das lutas sociais. As forças associadas ao poder espiritual, por sua vez, tiveram de racionalizar seu discurso e suas bases burocráticas, reforçando – e tentando uniformizar – a liturgia,7 em conjunto com a afirmação da autoridade do Papa, respal- dada pelo colegiado dos bispos mais notáveis que viviam ao seu redor. As tentativas de resolver o problema, tido a partir de então como fundamental pela cristandade – i.e. criar uma unidade entre o Império e o Papado –, fra- cassaram duplamente. O reforço do poder Papal encontrou resistências de base doutrinária que, ao se mesclarem com questões mundanas, assumiram uma forma política que, ao final, redundou na divisão da Igreja (Reforma e Contrarreforma). As tentativas de criação de uma unidade política, por sua vez, foram bloqueadas por coalizações defensivas, que tomavam a forma de um dinâmico sistema de alianças (equilíbrio de poder).8 As implicações destas transformações no plano do pensamento foram elegantemente sintetizadas por Mannheim: O Estado Absoluto, tendo como uma de suas prerrogativas a consecu- ção de sua própria interpretação do mundo, deu um passo que, com 7 Esta orientação afetava diretamente o cotidiano das heterogêneas comunidades camponesas, criando um terreno propício à manifestação de revoltas, vistas pelos olhos eclesiásticos como heresias que, como tal, deveriam ser erradicadas violentamente. Estas agitações também afe- tavam o poder secular em consolidação. Onde a Coroa era forte, a tendência foi no sentido de reprimir, em conjunto com a Igreja, os infiéis (fato que, no futuro, converteu o Tribunal do Santo Ofício em um braço do Estado). Porém, onde o Rei era fraco (ou praticamente inexisten- te, como nos sistemas de Dietas da Europa Centro-Oriental), as heresias foram um elemento político importante a favor dos nobres locais. Logo, o entrecruzamento entre as tensões sociais e a disputa teológica, centrada no papel dos representantes da Igreja (se eram sobrenaturais ou não) é uma das marcasmais características do Antigo Regime. 8 Nem sempre se destaca a relação complementar entre os dois movimentos: a questão reli- giosa como um ingrediente da questão política (e vice versa). Mas Arrighi (1996, p. 42) vai direto ao ponto: “Paralelamente a essa escalada dos custos de proteção [os constantes conflitos militares do Século XVI e XVII], houve uma escalada na luta ideológica. A progressiva desar- ticulação do sistema de governo medieval levara a uma mistura de propostas religiosas ino- vadoras e restauradoras, vindas de cima, seguindo o princípio do cuius régio eius religio, que provocou o ressentimento popular e rebeliões contra ambas. À medida que os governantes transformavam a religião num instrumento de suas lutas pelo poder, os súditos seguiram seu exemplo e transformaram a religião num instrumento de insurreição contra os governantes”. O BRASIL E O CAPITALISMO HISTÓRICO 34 a democratização da sociedade, posteriormente tendeu cada vez mais para a abertura de um precedente. Mostrou que a política era capaz de usar sua concepção de mundo como uma arma e que a política não era apenas uma luta pelo poder, mas veio realmente a se tornar pela primeira vez significativa quando, enfim, infundiu em seus obje- tivos uma espécie de filosofia política com uma concepção política do mundo.[...] Primeiro, o liberalismo, depois, seguindo hesitantemente o seu exemplo, o conservadorismo, e, finalmente, o socialismo, to- dos fizeram de seus objetivos políticos um credo filosófico, uma visão de mundo com métodos de pensamento bem fundados e conclusões prescritas. Assim, à ruptura da visão de mundo religiosa veio somar-se o fracionamento das visões políticas. (MANNHEIM, 1986, p. 63). Em suma: o Antigo Regime, de forma contraditória, acelerou o pro- cesso de secularização da vida social, afetando as estruturas do pensamento: a inspiração transcendental, que reduzia o papel do empirismo e impunha uma aura mística à sociedade, tendeu a ser substituída por uma concepção centrada na imanência, que abriu o caminho para a reflexão sobre a dinâ- mica endógena da sociedade (HOBSBAWM, 2000, cap. 13; NOVAIS, 2005, p. 162-4; SANTOS, 1992, p. 17-9). Com isto, as lutas políticas ganharam um novo terreno: o campo da reflexão imanente sobre a natureza dos problemas sociais. E, evidentemen- te, o diagnóstico sobre as suas causas era o guia para propor as linhas de ação. No século XVIII, após a Revolução Francesa, um novo aspecto passou a ser decisivo: a generalização da ideia de progresso e sua implicação mais imediata, isto é, de que a mudança social é possível e, para alguns, inevitável (WALLERSTEIN, 1991, p. 7-22). Isto exigiu uma mudança no rumo da dis- cussão. A questão decisiva: uma vez removidos os obstáculos reacionários ou obscurantistas, o progresso seria automático? Ou, pelo contrário, destruir os últimos elementos do Antigo Regime era apenas o passo inicial? Mas, de qual- quer modo, a mudança social passou a ser aceita como algo comum, encora- jando uma linha de pensamento otimista, que tinha como pressuposto básico a tese de que o colapso do Antigo Regime libertou a sociedade dos seus gri- lhões e que, dali em diante, a tendência seria o progresso da humanidade em todos os planos. O pensamento conservador, por sua vez, tentava contra-arrestar este excesso de otimismo, salientando que as sociedades se formam por 35 A PERSPECTIVA DOS SISTEMAS-MUNDO sedimentação e que, portanto, “mudanças” muito rápidas podem comprometer a ordem social, prejudicando a todos (WALLERSTEIN, 2011 p. 2-5). A ques- tão começou a mudar depois do período cujo símbolo máximo foi Robespierre. Frente ao conjunto de forças que se precipitaram após a fase jacobina da Revolução Francesa, o pensamento conservador se viu forçado a definir uma identidade mínima, bem como um programa político calcado fundamental- mente na tradição, no caráter “orgânico” (i.e. hierárquico) da sociedade e, sobre- tudo, no alcance reduzido do voluntarismo.9 Este movimento, por sua vez, deu mais coesão ao bloco heterogêneo de forças sociais e sistemas de ideias que, pos- teriormente, foram definidos como “liberais”. A oposição entre o liberalismo e o conservadorismo, por sua vez, grosso modo, abriu caminho para reivindicações mais radicais, rotuladas posteriormente de socialistas ou libertárias. Estas ramificações, contudo, só ficaram mais nítidas a partir de 1848, quando a insurreição dos trabalhadores urbanos, momentaneamente, con- quistou o poder na França, em conjunto com diversos levantes em outros países europeus (a “primavera dos povos”). Embora derrotados por uma combinação de repressão sanguinária imediata, seguida de pequenas conces- sões a conta-gotas, o sucesso momentâneo destes movimentos produziu dois efeitos principais. Entre as camadas dominantes, favoreceu uma tendência à aproximação entre o pensamento conservador e o liberal, pautado pelas re- formas em nome da estabilidade social (o “despotismo ilustrado” e seu con- gênere, um liberalismo mais pragmático e cada vez mais distante das noções 9 O conservadorismo é, como todo sistema de ideias complexo, bastante heterogêneo. Para nossos propósitos, basta reter alguns elementos que são comuns a todas as suas variantes: i) a desconfiança com relação à Razão e, principalmente, na possibilidade de utilizá-la como critério na adoção de políticas destinadas a aprimorar a sociedade; ii) uma visão da História centrada na lenta cristalização dos costumes (na longa duração), que fundamenta a rejeição aos movimentos “bruscos” da política; iii) uma tendência ao pragmatismo, que deriva da desconfiança da razão e do que é novo (ou que se propõe como novo), na medida exata em que o “novo” é incerto, e não passou pela prova do Tempo; iv) a crítica à espontaneidade, típica do pensamento anarquista e demais correntes libertárias. É contra esta atitude que os conservadores diluem o papel do indivíduo (mas não necessariamente eliminam, tal como na vigorosa linha conservadora baseada em Tocqueville) e valorizam as ordens, corporações, a família e demais grupos sociais tradicionais. Esses atributos, na realidade, refletem um traço fundamental: embora tenha sofrido modificações importantes, o conservadorismo moderno permanece, essencialmente, uma doutrina negativa, que se exacerba na medida em que a mo- dernidade desloca os costumes mais “tradicionais” e se aferra à ideia de progresso. O BRASIL E O CAPITALISMO HISTÓRICO 36 mais radicais de democracia). No outro polo também ocorreram mudan- ças significativas. Ao passar a conceber a revolução como um movimento de superação da ordem vigente, baseada na insurreição social guiada por uma teoria sobre a dinâmica da sociedade, o socialismo saiu da sombra do pensamento liberal. A tendência, desde então, foi que, mesmo com a even- tual oposição tática e até mesmo estratégica do pensamento anarquista,10 o marxismo passou a dominar o pensamento socialista e, principalmente, o movimento operário internacional.11 Em suma, em um ambiente instável, propenso à radicalização, e com a preponderância do marxismo no pensamento socialista, os liberais foram 10 Dentro do campo revolucionário, o exemplo mais cristalino desta oposição simultaneamente teórica, “institucional” (A Aliança Internacional da Democracia Socialista) e tática é Bakunin. Contra o alegado cientificismo defendido por Marx e Engels – a diferenciação entre socialismo utópico e científico, exposta no Manifesto do Partido Comunista - que ele tentava ridicularizar, taxando de “douto socialismo”, “o pior de todos os governos despóticos!” (BAKUNIN, 2001, p. 62) – e seu sujeito – o proletariado, taticamente liderado pelos Partidos Operários - ele contra- punha a solidariedade espontânea (“paixão instintiva” era o termo de sua predileção), típica das camadas mais humildes do proletariado, que eventualmente poderia ganhar expressão na con- solidação de comunidades regionais horizontalmente administradas, articuladas eventualmentepor um regime federativo. Por fim, sua crítica a qualquer forma de hierarquia – baseada na ideia de que o poder político (que para ele é quase sinônimo de partidário e estatal) necessariamente “despersonifica” e corrompe – era contrária à tática proposta por Marx, Engels e seus aliados na condução da Associação Internacional dos Trabalhadores. Para Bakunin, eles representavam o setor mais aburguesado do proletariado. Seu herói, portanto era outro: “Por flor do proletariado quero dizer, principalmente, essa grande massa, esses milhões de não-civilizados, deserdados, miseráveis e analfabetos que o Sr. Engels e o Sr. Marx pretendem submeter ao regime paternal de um governo muito forte, sem dúvida, para a sua própria salvação, como todos os governos não foram estabelecidos, é evidente, no próprio interesse das massas. Por flor do proletariado, refiro-me precisamente a essa carne de governo eterno, essa grande canalha popular, que, sendo mais ou menos virgem de toda civilização burguesa, traz em seu seio, em suas paixões, em seus instintos, em suas aspirações, em todas as necessidades e misérias de sua posição coletiva, todos os germes do socialismo do futuro, e que só ela é hoje bastante poderosa para inaugurar e fazer triunfar a Revolução Social.” (BAKUNIN, 2001, p. 60-1). Mas Bakunin foi vítima do seu despre- zo pela política convencional e, talvez, do excesso de igualitarismo econômico (termo que ele gostava de destacar, já que, em todos os outros domínios, ele era um defensor da espontaneida- de e da diversidade). Uma postura excessivamente antissistêmica para a época? 11 Curiosamente, isto decorreu da derrota da primavera dos povos que, de um lado, enfraqueceu as tradições socialistas mais arraigadas (ligadas aos artesãos em luta contra o sistema de máqui- nas, pequenos camponeses, e sistemas de pensamento mais formalmente elaborados, inspirados em personalidades como Charles Fourier, Saint-Simon e Proudhon) e, de outro, aprimorou o senso tático de Marx e Engels, empenhados desde então a analisar com mais acuidade o papel da luta de classes na História, para entender melhor os motivos da derrota (CLAUDIN, 1976). 37 A PERSPECTIVA DOS SISTEMAS-MUNDO forçados a deslocar para o primeiro plano a defesa da propriedade e da or- dem, opondo-se, portanto, à revolução e, por conta disto, reforçaram sua afinidade com o conservadorismo. O próprio pensamento conservador não saiu incólume. Pressionados por todos os flancos, especialmente pelas reivin- dicações populares, os conservadores foram forçados a admitir as reformas e, até mesmo, quando no poder (as diversas restaurações), implementá-las, com o alegado objetivo de reduzir o ritmo das mudanças para garantir a estabilidade. No plano formal, a questão que dividia o campo político dizia respeito à fonte da soberania: mesmo com a resistência do pensamento con- servador, a zona de consenso era de que a soberania brota do povo. Mas os impasses persistiam: como se define o povo? E como o poder que dele emana deve ser institucionalizado? Em outros termos, retendo a generalizada per- cepção de que o progresso era a tendência, essa mesma pergunta podia ser formulada de outro modo: qual o sujeito histórico que deveria controlar os rumos da sociedade (ou, pelo menos, o ritmo das mudanças)? Uma ideologia12 não pode prescindir de um protagonista. Para os liberais, a despeito das imensas controvérsias internas, o protagonista é o indivíduo autônomo (e, portanto, o povo ou a sociedade é, essencialmente, 12 Ideologia não pode ser confundida com visão de mundo (Weltanschauung). “Modernidade é a combinação de uma determinada realidade social com uma determinada Weltanschauung, ou visão de mundo, que substituiu e até sepultou uma outra combinação, que nós denominamos Ancien Régime.[...] Neste sentido, uma ideologia não é, em si mesma, uma Weltanschauung, mas uma das respostas possíveis a esta nova Weltanschaaung que chamamos de moder- nidade.” (WALLERSTEIN, 2002, p. 83-4). O ponto é que ideologias só fazem sentido no interior de visões que sejam imanentes e admitam a endogeneidade da mudança so- cial: elas representam metaestratégias políticas destinadas a tentar controlar as mudanças (WALLERSTEIN, 2011, p. 1; 2002, p. 86-90). Para tentar destacar isto, Wallerstein criou a exótica categoria Geocultura (uma analogia com “Geopolítica”), entendida como um conjun- to de ideias, valores e normas que são amplamente aceitas no conjunto do sistema-mundo e, deste modo, constrange as ações sociais em seu interior (2007a cap. 4). Quem tem familiari- dade com a obra de Mannheim irá perceber sua influência. E ela não reside apenas na clara afinidade entre a Geocultura e o sentido “total” de ideologia: a ideia de que os momentos transitórios são caracterizados por rupturas fundamentais na unidade do pensamento típico de uma dada época – convertendo deste modo as ideologias em armas políticas – é bastante trivial na sociologia do conhecimento. Curiosamente, ao discutir ideologia, Wallerstein não cita Mannheim: as únicas referências a ele são feitas em outro âmbito, mediante a comparação entre as concepções de utopia em Mannheim, Engels e Thomas More (cf. WALLERSTEIN, 1991, p. 170-84). Esta é uma temática que precisa ser desenvolvida, e isto envolverá um diá- logo mais intenso com a “velha” sociologia do conhecimento e o que os adeptos das Relações Internacionais costumam denominar de “teoria crítica”. A este respeito, ver Cox (1996, cap. 6). O BRASIL E O CAPITALISMO HISTÓRICO 38 concebido como um agregado de indivíduos). Os conservadores, por sua vez, elegem os grupos tradicionais como os portadores legítimos da sobera- nia (os indivíduos são meros portadores de padrões de conduta social pro- fundamente arraigados, quase inconscientes). Os socialistas tendem a inver- ter a forma de se pensar: o agente histórico por excelência é – ou deveria ser – o conjunto da sociedade, pois a própria ideia de indivíduo é a expressão de um certo desenvolvimento da sociedade. Estas três ideologias, embora distintas, respondiam a pressões ins- trumentais que, no fim das contas, geraram um ponto aglutinador. O meio para realizar as promessas do liberalismo e do socialismo – ou para evitar a desordem generalizada, de uma perspectiva conservadora – é a tomada do Estado. E esta manobra pode ser também legitimada defensivamen- te: para impedir que os adversários consolidem definitivamente o seu po- der ou, nos casos de grande instabilidade social, julga-se necessário tomar as rédeas do Estado antes que alguma coalizão rival se consolide e o faça. Contudo, independentemente da tática (ofensiva ou defensiva), todo mo- vimento, para ter alguma chance de sucesso, precisa criar estruturas buro- cráticas capazes de arrecadar recursos, consolidar lideranças, coordenar e educar grupos numerosos para a ação política. Na visão de Wallerstein, his- toricamente, todos os movimentos antissistêmicos que tomaram o poder só conseguiram introduzir, com graus de sucesso e de profundidade variáveis, reformas que simplesmente retardaram a manifestação das contradições do capitalismo. No limite, portanto, a crítica de Wallerstein é congruen- te com a empreendida pelos anarquistas mais radicais, em sua incessante denúncia contra a cooptação que é inerente às práticas do poder.13 Com o 13 Como já sugeri, esta era a tônica de Bakunin contra a suposta tática marxista de conquista do Estado pela ação vanguardista dos partidos operários. Há claros pontos de convergência com o aspecto crítico implícito na veemente retomada da ideia de antipoder, empreendida por John Holloway (2003). Talvez por força do seu ofício, Wallerstein busca se distanciar das posições exclusivamente militantes: em tese, há um espaço positivo na agenda intelectual, mas ela deve ser capaz de assimilar democraticamente o discurso de todos os grupos de in- teresse (de um modo que, curiosamente, lembra a Ética Discursiva habermasiana). Mas este espaço é, a seu ver, curiosamente,restrito. Durante a fase de funcionamento regular, o sistema não admite contraposições essenciais – afinal, capitular frente à instrumentalização derivada do liberalismo “centrista” não foi o resultado de todas as lutas intelectuais desde 1789 a 89? Na 39 A PERSPECTIVA DOS SISTEMAS-MUNDO primado das táticas – isto é, da razão instrumental – os meios se converte- ram em fins, e isto bloqueou a reação contra o capitalismo. Pelo menos até 1968. Retornarei a esse ponto. Mas um reparo é necessário: as diferenças en- tre as três “ideologias” são muito mais importantes do que os elementos que elas podem possuir em comum.14 Esta tentativa de inventar uma unidade essencial na Geocultura do sistema-mundo – a redução das três ideologias em uma, expressa na vitória do liberalismo “centrista” – é arbitrária e, de tão simplista, atenta contra a credibilidade da perspectiva do sistema-mundo. Os desdobramentos acima descritos, contudo, não operam apenas no âmbito das ideologias. A suposta consolidação da Geocultura do sistema- mundo moderno envolveu a transposição da luta política para duas ou- tras arenas: os movimentos sociais antissistêmicos e as ciências sociais. A distinção entre estas arenas é um procedimento eminentemente analítico, fase de crise a situação é diferente. Por conta da imprevisibilidade intrínseca destas situações, o que nos resta é uma orientação moral: a luta na direção de um sistema igualitário e democrá- tico, na medida exata que um sistema democrático só pode ser igualitário (WALLERSTEIN, 2002, p. 35). E, neste aspecto, ressurge o constante diálogo de Wallerstein com a tradição do pensamento anarquista: em Utopístics, a forma organizacional das unidades imaginadas por ele como o padrão de um sistema moralmente superior possui o mesmo estilo de instituição celebrado pelos anarquistas (e alguns marxistas “autonomistas”): os modelos de autogestão, locais e descentralizadas, orientados para atender as demandas da comunidade. E, com uma pitada de Proudhon e Braudel, as inter-relações entre as múltiplas “empresas” produtivas não lucrativas poderiam ser mediadas pelo mercado, não o antimercado do capitalismo, mas o mercado de concorrência perfeita (o “mercado verdadeiro”) (WALLERSTEIN, 1998a, p. 74-5). Essas formas de organização de orientação mais artesanal e espontânea sempre exerceram fascínio sobre intelectuais humanistas – especialmente oriundos das fileiras da classe média, que ascenderam socialmente na grande expansão do sistema universitário ocorrida a partir da década de 1950 - e de bem nascidos diletantes. 14 O volume 4 de The Modern World System, um livro importante, repleto de insights frutí- feros e fundado em cima das questões que realmente são essenciais, infelizmente, reproduz e intensifica o que After Liberalism tinha de pior: uma espécie de análise combinatória das diversas formas possíveis de discurso ideológico, levando em conta alguns parâmetros: su- jeito histórico, relação com a noção de progresso e os eventuais pontos de oposição e de aproximação. Para Wallerstein – em linha, como veremos, com um dos elementos da pers- pectiva idiográfica - todas as ideologias são negativas, já que elas se formam por oposição. No entanto, por conta da oposição ferrenha, para manter a polaridade, elas podem gerar combinações: e foram estas combinações, sempre mediadas pela tentativa de controlar o Estado, que resultaram na preponderância do liberalismo “centrista”, e, desse modo, na criação de uma unidade, a Geocultura. O BRASIL E O CAPITALISMO HISTÓRICO 40 pois, a despeito de certa autonomia, elas são profundamente articuladas e interagem de forma dinâmica. A própria imprecisão do termo “movi- mentos antissistêmicos” expressa isto. No vocabulário da perspectiva do sistema-mundo este termo designa reações radicais contra o sistema ou, pelo menos, a alguns de seus elementos centrais, em suas mais variadas formas. E a lista é imensa e heterogênea: contracultura, feminismo, mo- vimento verde, insurreições (como Chiapas, por exemplo), extremismo religioso etc. Não entrarei aqui em detalhes sobre esta dimensão da dis- cussão. O fato de os movimentos antissistêmicos se expressarem também no plano da ciência é significativo: revela as peculiaridades do sistema- mundo moderno (como dito, na Idade Média estes movimentos assumiam uma linguagem teológica). Mas, em um paradoxo aparente, Wallerstein repete à exaustão que um movimento antissitêmico é um movimento para a transformação do sistema, mas, ao mesmo tempo, é um produto do sistema (WALLERSTEIN, 2001, p. 58-64; 2007a, p. 64-5). Tendo em vista o conjunto de sua obra (as reflexões sobre este tema são recorrentes, porém esparsas), o argumento básico é o seguinte: na fase de formação do sistema – durante a consolidação de sua geocultura - tais movimentos realmente apresentam uma possibilidade significativa de transformação. O resultado desta luta é decisivo para definir as estruturas do sistema, em todas as dimensões da re- alidade social. No entanto, durante o seu funcionamento regular, tais movi- mentos – a despeito de sua retórica - não conseguem ultrapassar os marcos do sistema. Isso muda, naturalmente, na fase da crise terminal (que, em sua opinião, vivemos desde 1968): a janela para transformações fundamentais está, portanto, aberta (WALLERSTEIN, 1998a, especialmente p. 1-33).15 Em suma: os movimentos antissistêmicos se mesclaram com a batalha ideológica 15 Este é mais um ponto frágil. Em alguns momentos, Wallerstein dá a entender que era pos- sível, entre 1879-1848, um resultado diferente da polêmica “vitória” do liberalismo centrista. No entanto, quando ele discute as tendências seculares e, principalmente em seus textos pos- teriores à década de 1990, a tendência de sua argumentação muda: a derrota das reações é tida como inevitável, pois o sistema estava em sua fase de funcionamento regular. Mas, misteriosa- mente, depois do colapso do socialismo real, Wallerstein parece ter tido acesso aos desígnios (até então) secretos da divina Providência: agora é diferente, pois, ao se aproximar das assín- totas – algo já em curso desde 1968, mas que deve ocorrer definitivamente por volta de 2025 - o sistema entrará definitivamente na fase de bifurcação. Agora – e somente agora – o futuro está aberto. 41 A PERSPECTIVA DOS SISTEMAS-MUNDO que, no sistema-mundo moderno, irradiou-se para o plano das Ciências So- ciais em constituição. É aqui que concentraremos as nossas atenções. Mas alguns pequenos reparos e adições devem que ser feitas ao modo como Wallerstein e seus discípulos tendem a reconstituir esse evento (WALLERSTEIN, 2011, p. 219-73; 1991, parte 1). A discussão empreendida nos séculos XVIII e XIX não é inédita: o que muda é o terreno onde ela pre- tende ser empreendida. Longe de inventar sistemas de pensamento essencial- mente novos, esta época testemunhou a secularização das grandes questões discutidas há séculos pelos grandes teólogos. Desde o seu início, a escolástica foi marcada por duas grandes polêmicas. De um lado, a tensão entre a Razão e a Fé (se são domínios separados ou conjugados e, sobretudo, na polêmica referente ao papel dos sentidos – isto é, da dimensão empírica - na busca da verdade) e, de outro, a espinhosa questão dos Universais, transposta da tradição grega (Platão e Aristóteles) para o pensamento cristão, mediante o contraste entre o realismo medieval e seu antípoda, o nominalismo (LEITE Jr., 2001). Como era de se esperar, dada a tendência transcendental e a cen- tralidade na dimensão religiosa, estes problemas abstratos se referiam a questões pragmáticas, tais como o papel específico da Igreja e da liturgia na condução da sociedade e, de especial significado, o espaço do livre-arbítrio16 (GRANGER, 1962, p. 7-43). Frente a uma visão de mundo imanente, per- meada pela noção de progresso, estes problemas fundamentais passa- ram a se expressar de forma distinta. Concomitantemente às profundas transformações institucionaisque sepultaram a estrutura organizacional e as próprias aspirações da Universidade Medieval (baseada no diletantis- mo e na busca da Verdade, do Bom e do Belo), uma grande tendência se materializou: o desmembramento entre as “ciências” e as Humanidades, que rapidamente estimulou a capciosa antítese nomotético-idiográfica. A base do conhecimento científico é a alegada universalidade dos fenôme- nos que visa compreender. Logo, por definição, não é possível uma ciência do singular. Por ter se cristalizado incialmente nas ciências posteriormente 16 O pensamento liberal é herdeiro direto deste tipo de tensão, na medida em que tem como base uma questão bastante similar: como combinar a dimensão da liberdade individual com uma sociedade progressivamente baseada na interdependência? O BRASIL E O CAPITALISMO HISTÓRICO 42 batizadas de naturais, a visão nomotética não produziu tanta celeuma. A questão mudou quando, a partir do século XVIII, tentou-se aplicar de forma mais sistemática este princípio ao estudo da sociedade. A reação imediata dos humanistas baseou-se na tese de que, ao contrário dos objetos físicos (e dos animais irracionais, que respondem a instintos básicos), o homem, mesmo sujeito a constrangimentos minimamente niveladores, toma deci- sões individuais espontâneas (de novo, o livre-arbítrio), possui imaginação e, pode-se aduzir, tais decisões são sempre tomadas em um contexto especí- fico que, portanto, influencia os resultados. A reação dos humanistas engendrou o que se convencionou denomi- nar visão ideográfica. Toda realidade social em uma dada época17 é específica e organicamente integrada. Levando isto ao limite, chega-se a duas implica- ções interligadas: i) uma época - ou qualquer segmento da realidade - não pode ser reduzida a nenhum componente essencial (o procedimento padrão da orientação nomotética); ii) por conta disto, não existe nenhum critério obje- tivo, no sentido de transcender as situações concretas, que pode ser utilizado como parâmetro para comparar períodos diferentes. Esse aspecto, natural- mente, se radicalizado, abre o caminho para uma variante muito peculiar do relativismo: há, evidentemente, em todas as épocas, uma tensão entre pon- tos de vista distintos, ancorados em torno de alguns pontos de gravitação.18 Essencialmente, todas as ideologias em disputa, além de necessariamente 17 Ponto onde já começa a polêmica: quais são os limites de uma época ou de uma socieda- de? A escola histórica alemã, por exemplo, de forte inclinação ideográfica, claramente queria demarcar as diferenças entre a sociedade germânica (cujos limites eram, também, bastante indefinidos) e a anglo-saxã, embora, evidentemente, ambas fossem contemporâneas. 18 A identificação e análise destes pontos aglutinadores, onde as polarizações ficam mais ex- pressivas e, portanto, ganham sentido é um vasto campo de pesquisas, ainda insuficientemen- te explorado. Fernando Novais dá um exemplo de tema aglutinante: “A evolução das idéias políticas na Época Moderna, aliás, dá lugar a problemas peculiares: nenhum setor da produ- ção cultural revela mais claramente a sua natureza ideológica que o pensamento político, ça va de soi; difícil, sim, é demarcar o elemento comum na oposição contínua que os teóricos mantêm entre si. Talvez se pudesse acompanhar as vicissitudes da ‘teoria do contrato’, desde os jesuítas espanhóis e os polemistas protestantes franceses no século XVI, passando pelos clás- sicos da revolução inglesa (Locke, especialmente), até Rousseau. A ideia do ‘contrato social’ seria o terreno comum de entrecruzamento e oposições entre os vários teóricos” (NOVAIS, 2005, p. 164). 43 A PERSPECTIVA DOS SISTEMAS-MUNDO parciais e enviesadas, são, no cerne, negativas: se definem pelo choque e pelo antagonismo; é exatamente este contraste que possibilita a mudança e, no limite, permite, dentro do horizonte da idiografia, a percepção da mudança social.19 Mas a idiografia representava claramente uma reação defensiva: os ideais de uma ciência positiva e generalizável estavam progressivamente ex- travasando o seu leito de origem – a mecânica celeste, em moldes newtonia- nos – e se aproximando cada vez mais do estudo sistemático da sociedade. Além da capacidade de persuasão por conta de seu forte conteúdo empírico, as ciências naturais – devido a seus efeitos práticos evidentes - não depen- diam exclusivamente do sistema universitário para se reproduzirem institu- cionalmente (WALLERSTEIN, 2011, p. 221-6). E, exatamente por conta de sua popularidade, estes cientistas eram muito bem vistos na nova estrutura universitária em constituição.20 A tradição ideográfica, contudo, conseguiu resistir a esta pressão, lutando pela revitalização da Universidade – um ponto de apoio fundamental para saberes distantes da prática – e, ao mesmo tem- po, gerando verdadeiros focos de resistência nas faculdades e departamentos de História, Letras, Artes e Humanidades em geral. Em um aspecto, contudo, a reação ideográfica contava com um apoio mais amplo: com a crescente identificação da soberania com o povo, cada Es- tado tinha de inventar o seu (HOBSBAWM, 1990, p. 103-17). E para fazê-lo era necessário homogeneizar minimante as tradições “populares” e, simulta- neamente, fabricar uma história, uma geografia e uma literatura nacionais. Neste aspecto, os historiadores, classicistas e especialistas em literatura se 19 Não é possível associar a idiografia exclusivamente com o relativismo absoluto: afirmar que eventos isolados só podem ser efetivamente compreendidos se situados organicamente em sua época não impede, necessariamente, a qualificação das épocas. O pensamento idiográfico não recusa, necessariamente, conceitos gerais como Feudalismo, Capitalismo, Liberalismo, etc. O pensamento idiográfico se opõe a filosofias da história lineares e a formas de pen- samento reducionistas, que tentam decodificar a realidade em elementos invariantes e, por conta disto, universais (BENDIX, 1967; COX, 1996, p. 65-6). 20 Este impulso teve força para afastar as nascentes ciências sociais do campo das Humanida- des, mas, para o bem do espírito humano, não foi suficiente para abolir a distinção entre os domínios da natureza e da sociedade (uma tendência que, como veremos, ressuscitou no final do século XX e, tragicamente, adentrou no XXI): por mais que alguns desejassem, por moti- vos que deveriam ser óbvios para qualquer pessoa dotada de bom senso, os cientistas sociais jamais foram plenamente integrados à hard science. (C.G.R.C.S., 1996, p. 17-9; 21). O BRASIL E O CAPITALISMO HISTÓRICO 44 tornaram fundamentais. Enfim, a tradição ideográfica saiu dos restritos cír- culos intelectuais que a cultivavam – de forma diletante, muitas vezes - e en- controu uma possibilidade de aplicação prática: 21 a construção da nação ficou a seu cargo. Esta tarefa exigia recursos e a criação de uma estrutura institu- cional mínima, cuja expressão burocrática mais evidente envolvia a definição dos currículos obrigatórios do sistema educacional e, de forma congruente, a padronização (e controle indireto) sobre os meios de comunicação.22 O relatório da Comissão Gulbenkian para a reestruturação das ciên- cias sociais – presidido por Wallerstein - resume muito bem esta situação: No decurso do século XIX, as várias disciplinas como que se abriram em leque cobrindo toda uma gama de posições epistemológicas. Num dos extremos situava-se a matemática (uma atividade de natureza não empírica), e logo encostadas a ela as ciências naturais experimentais (perfiladas, por sua vez, numa espécie de ordem decrescente segundo o respectivo grau de determinismo – a física, a química, a biologia). No extremo oposto achavam-se as humanidades (ou artes e letras), co- meçando pela filosofia (contraponto da matemática enquanto ativida- de não empírica), seguida do estudo das práticas artísticas formais (as literaturas, a pintura e a escultura, a musicologia), que na sua prática concreta se aproximavam muitasvezes da própria história, ao prefi- gurarem-se como uma história das artes. Por fim, entre as humanida- des e as ciências naturais ficava o estudo das realidades sociais, com a história (ideográfica) a situar-se junto das faculdades de artes e letras ou mesmo no seu interior e com as “ciências sociais” (nomotéticas) 21 Para os países que se situavam no epicentro da competição mundial, a etnografia tornou- se um saber importante: tanto para preservar as regiões anexadas quanto para favorecer a penetração e a conquista de novos povos. 22 “A ‘questão nacional’, como os velhos marxistas a chamavam, está situada na intersecção da política, da tecnologia e da transformação social. As nações existem não apenas como funções de um tipo particular de estado territorial ou da aspiração em assim se estabelecer – amplamente falando, o Estado-Cidadão da Revolução Francesa – como também no con- texto de um estágio peculiar de desenvolvimento econômico e tecnológico. A maioria dos estudiosos, hoje, concordaria que as línguas padronizadas nacionais, faladas ou escritas, não podem emergir nessa forma antes da imprensa e da alfabetização em massa e, portanto, da escolarização em massa.” (HOBSBAWM, 1990, p. 19). Logo, portanto, desde o ensino básico ao superior, criaram-se condições institucionais mínimas para a preservação das disciplinas de orientação ideográfica. 45 A PERSPECTIVA DOS SISTEMAS-MUNDO na proximidade das ciências da natureza. Postos perante uma sepa- ração cada vez mais rígida dos saberes em duas esferas diferentes, cada uma delas com a sua ênfase epistemológica própria, os estudiosos das realidades sociais viram-se como que entalados e profundamente di- vididos por estas questões epistemológicas. (C.G.R.C.S., 1996, p. 24). Assim, a despeito da resistência dos humanistas, pelo menos até 1968, as ciências sociais de inspiração nomotética predominaram. As pretensões universalistas das ciências sociais dependiam, contudo, da clara e precisa delimitação do seu objeto. O ganho em generalização, por- tanto, depende da redução da escala dos fenômenos e seu confinamento dentro de fronteiras estanques. É evidente que isto traz problemas teóricos. Até onde reduzir? Ou, em outros termos, como traçar as fronteiras do conhecimento? A princípio, para as orientações epistemológicas fundadas na distinção radical entre o domínio do conhecimento científico - tido como autônomo e liga- do essencialmente à capacidade de imaginação dos cientistas (WALTZ, 2002, p. 19-20, 24) - e a “realidade”, a demarcação dos objetos é arbitrária: o único critério de validade – utilitário, portanto - é a aceitação e o emprego dos recor- tes pela comunidade científica. Contudo, no fim das contas, o modo como o pensamento liberal segmenta a realidade acabou comandando a delimitação dos objetos das ciências de inspiração nomotética: o mercado, objeto da Eco- nomia, o Estado, que entrou para a alçada da Ciência Política e a “socieda- de civil”, domínio da Sociologia (WALLERSTEIN, 2011, p. 243; WOLF, 2010, p. 7-19). É evidente que, no interior de cada uma destas disciplinas, há um intenso e acalorado debate, com focos de resistência ideográfica, bem como variantes que se intitulam “heterodoxas”, isto é, que visam calibrar o excesso de formalismo e abstração com incursões pela História, com o objetivo de fundamentar e dar mais concretude aos conceitos. 23 23 Há, inclusive, tentativas de fusão entre os domínios. No âmbito da Economia, isto se expressa nas diversas ressurreições da Economia Política (que tenta estabelecer uma simbiose com a política, com a “intrusão” da História) e, em um terreno mais inclinado à nomotética, do Neoinstitucionalismo (que tenta aproximar a Economia e a Política (reduzida ao funcionalismo e à “teoria dos jogos”, uma aproximação favorecida pela suposta homologia entre os seus métodos)). São comuns também as tentativas de combinação entre a sociologia e a ciência política (sociologia do poder (Michael Mann e, e em menor grau Charles Tilly O BRASIL E O CAPITALISMO HISTÓRICO 46 Entretanto, a despeito das reações, o movimento dominante foi no sentido de uma delimitação cada vez mais rigorosa dos objetos, que tinha como objetivo não somente dominá-los racionalmente, mas, sobretudo, in- terferir na realidade para tentar dar conta, sempre de forma segmentada, dos “problemas sociais” e, desse modo, dar continuidade ao progresso da socie- dade.24 O cientificismo consolidado no final do século XIX, portanto, tinha algumas fontes comuns de inspiração, que lhe conferiam uma certa unidade epistemológica: i) a empiria como base da comprovação das teorias, ii) as pretensões de objetividade, mediante a clivagem da realidade, fundamen- tada na separação entre sujeito e objeto do conhecimento; iii) as noções de equilíbrio e circulação; e iv) o princípio da simetria temporal, isto é, a ideia de que o tempo é um parâmetro externo aos fenômenos, configurando-se portanto como uma simples medida.25 Enfim, na batalha entre a generaliza- ção absoluta e o particularismo, as ciências sociais, estimuladas pelas ciên- cias naturais, tenderam para uma posição nomotética, que só podia se realizar (mais afinado com uma ciência política retrospectiva)), a macrossociologia histórica, etc.). Mas estes esforços – que, geralmente, tem como horizonte a interdisciplinaridade, e não a transdiciplinaridade almejada pela perspectiva do sistema-mundo – jamais foram capazes de ameaçar seriamente o mainstream em cada uma das grandes ciências sociais nomotéticas. 24 “As ciências sociais emergentes recortam, pois, esferas da existência – econômica, social, polí- tica, cultural – para poder conceituar sobre o seu objeto, isto é, para poder dominá-lo racional- mente. [...] Quanto mais rigoroso o recorte do objeto, mais precisa a conceitualização, e final- mente mais eficaz a sua aplicação. Efetivamente há uma relação intrínseca entre a cientificidade e a capacidade de intervenção no real: das ciências exatas para as humanas já existe um diferen- cial. No interior das ciências humanas, se compararmos, como às vezes se faz, a economia com a sociologia, isso fica manifesto. A história, por sua vez, configura uma situação-limite, uma vez que carece de sentido “história aplicada.” (NOVAIS; FORASTIERI, 2011, p. 22). 25 No calor dos acontecimentos, a tese da reversibilidade dos fenômenos - desdobramento lógico de um universo mecânico baseado na simetria temporal – contudo, encontrou maior resistência entre os adeptos das ciências sociais, principalmente entre os reformistas: embria- gados pela ideia de progresso, como eles poderiam imaginar a possibilidade de um retorno às velhas condições? A modernidade era vista, portanto, como um ponto de mutação irreversí- vel. Boaventura de Sousa Santos chamou a atenção para este aspecto curioso: “Na mecânica Newtoniana, o mundo da matéria é uma visto como uma máquina cujas operações podem ser determinadas precisamente por meio de leis físicas e matemáticas – um mundo eterno e estático pairando em um espaço vazio, um mundo onde o racionalismo cartesiano torna cognoscível pela divisão em suas partes constituintes. Esta idéia de um mundo-máquina era tão forte que se tornou na grande hipótese universal da era moderna. É surpreendente, até mesmo paradoxal, que esta forma de conhecimento pudesse se tornar um dos pilares da ideia de progresso que impregnou o pensamento europeu desde o século dezoito e que se converteu no símbolo intelectual da ascensão da burguesia.” (SANTOS, 1992, p. 17 - grifos meus). 47 A PERSPECTIVA DOS SISTEMAS-MUNDO segmentando a realidade social em esferas da existência autônomas, fato que caminhou a par com a burocratização da Universidade, dividida em depar- tamentos e faculdades especializadas nos novos ramos do conhecimento. É este modelo, gestado essencialmente na França, EUA, Grã-Bretanha e, de certo modo, na Alemanha, que tendeu a se difundir na segunda metade do século XX, nas condições excepcionais criadas nos “AnosDourados”. As determinações da conjuntura: 1945-1968 A perspectiva do sistema-mundo surgiu deliberadamente como um contraponto à “teoria da modernização” que, como se sabe, tem como fun- damento a degeneração de um dos principais legados do iluminismo: a tese do progresso automático (WALLERSTEIN, 1998b, p. 106). Embora mais ex- plícita na ciência econômica e na sociologia, esta “teoria” se difundiu por praticamente todos os ramos das ciências sociais, induzida pela crescente importância estratégica da vasta zona não ocidental e, também, por conta da expansão do sistema universitário para além dos países centrais. A teoria, que se propunha universal, tinha de dar conta de duas “anomalias”: o mundo não ocidental e o terceiro mundo (WALLERSTEIN, 2007b, cap. 2). Como as- similar realidades tão distintas a uma teoria concebida essencialmente com base na trajetória dos países desenvolvidos? A saída foi relativamente sim- ples. Todos os Estados/Sociedades Nacionais representam simultaneamente um conteúdo geral e singular. O caráter geral reside na sequência de estágios a serem atravessados, enquanto o caráter particular deriva, fundamental- mente, das diferenças com relação aos países desenvolvidos (que represen- tam a unidade de referência), entendidas essencialmente como obstáculos à evolução: ao oferecerem resistência, explicam o atraso relativo da sociedade em questão (ARRIGHI, 1998, p.114-6; WALLERSTEIN, 1991, p. 266-72). Além de uma clara antagonista, a perspectiva do sistema-mundo é herdeira direta de três grandes debates que ocuparam o centro da discus- são acadêmica entre 1945 e 70: i) o surgimento da CEPAL e a consolidação da “teoria” da dependência; ii) o debate sobre a transição do feudalismo ao O BRASIL E O CAPITALISMO HISTÓRICO 48 capitalismo;26 e iii) os desdobramentos da “velha” tensão entre a História e as Ciências Sociais, travada fundamentalmente pela escola dos Annales. A filiação mais explícita é, evidentemente, com a teoria da dependência. Não somente pelo fato da distinção entre centro e periferia – e os diversos me- canismos de exploração derivados diretamente desta assimetria fundamen- tal - representar um dos elementos fundamentais desta perspectiva. Outro aspecto é igualmente importante: demonstrando um desconforto com o establishment, a teoria da dependência expressou a recusa dos intelectuais do terceiro-mundo em aceitarem acriticamente as teorias econômicas domi- nantes, fato que não somente lançou um desafio direto à teoria da moderni- zação como, ao mesmo tempo, abriu a possibilidade de elevar o diálogo entre a História, a Sociologia, a Ciência Política e a Economia. O “clássico” debate sobre a transição, travado originalmente entre Maurice Dobb e Paul Sweezy nas páginas da revista Science & Society teve também um papel fundamental. A própria ideia de transição retomava pro- blemas teóricos decisivos: há uma dinâmica discernível na fase de transi- ção? Ou ela é governada totalmente pelo acaso? Se existe dinâmica, onde ela se situa: no impacto do comércio de longa distância sobre os padrões de consumo da nobreza, nos mercados locais e nas aldeias (i.e. a dissolução da “economia natural”). Ou, essencialmente, a dinâmica deriva da dispu- ta entre as classes sociais pelo excedente, luta que desencadeia revoltas ge- rais que só terminam com a conquista do Estado e, na sequência, com o desenvolvimento das forças produtivas? As implicações políticas do debate 26 Immanuel Wallerstein (2004, p. 11-2), recentemente, fez menção a 4 debates: os três acima citados mais a polêmica em torno do “Modo Asiático de Produção”. Situado na Guerra Fria, este debate tinha implicações políticas muito claras: se não há uma sucessão unilinear e ine- xorável de Modos de Produção, é legítimo refletir se a URSS encontra-se mesmo na fase de transição ao Comunismo ou se, pelo contrário, ela deu origem a um novo Modo de Produção (muito similar ao asiático, isto é, um modo de produção redistributivo, onde o poder público era o organizador da economia), fato que exigiria transformações significativas nos prognós- ticos do Partido Comunista da URSS sobre o seu futuro e sobre o futuro dos países do terceiro mundo. O interesse deste debate para a perspectiva do sistema-mundo é duplo: i) por romper com a ideia de sucessão automática, mediante estágios predefinidos, esta discussão ajudou a contestar as variantes “marxistas” da teoria da modernização; ii) o debate, pelo menos indire- tamente, alimentou movimentos antissistêmicos mais radicais, que passaram a denunciar um suposto conluio americano-soviético para manter o status quo na década de 1960. 49 A PERSPECTIVA DOS SISTEMAS-MUNDO eram nítidas: o próprio Sweezy, ao abrir a sua crítica a Dobb, afirmou ex- plicitamente em 1950 que o interesse pela passagem do feudalismo ao capi- talismo derivava da situação contemporânea, isto é, a transição ao socialis- mo. Por fim, e para nós isto é mais importante, o debate sobre a transição era marcado por outra sobreposição de problemas: ao lado das questões específicas da transição, na essência, a discussão envolvia concepções distintas sobre o Materialismo Histórico e, mais particularmente, sobre o conceito de Modo de Produção. Quais mecanismos fazem um novo modo de produção brotar das contradições internas do velho? A transição se proces- sa mediante o progresso das forças produtivas, que entram em contradição com as relações de produção ou é a mudança nas relações de produção que explica o desenvolvimento das forças produtivas?27 Outro tema importante, implícito em toda a discussão, diz respeito à polêmica em torno da unidade da análise. A mudança ocorre – e, portanto, só pode ser compreendida - no plano do conjunto ou, pelo contrário, ela é a resultante de múltiplas transições, onde as diversas sociedades mudam no seu próprio ritmo, predominantemente em função de seus atributos internos?28 No primeiro caso, as dificuldades residem em pelo menos dois pontos. Pri- meiro, como combinar a análise das subunidades – os Estados em consoli- dação – com o movimento do conjunto; ou, em outros termos, como esta- belecer as mediações entre a determinação geral e o movimento das partes? Segundo, como definir critérios para a periodização do conjunto? Se isso já 27 Essa questão se mescla com outra: qual é o papel específico da luta de classes durante um período transitório? Ela conduz à transição (fato que implica grau considerável de indetermi- nação) ou, pelo contrário, ela se processa dentro de limites estabelecidos pelas combinações entre as forças produtivas e as relações de produção? O conflito entre as camadas dominantes – e sua transformação - pode ser mais decisivo na transição do que as tentativas de insubor- dinação das camadas inferiores da sociedade? 28 Questão que, imediatamente, leva a outra: nas variantes do marxismo que não tomam axio- maticamente a economia como a base da dinâmica social (e da mudança), há alguma esfera da existência social que determina a posição ou o movimento das demais e, portanto, conduz a transição? Na primeira fase da polêmica sobre a transição, mesmo as versões mais econo- micistas do materialismo histórico abriram caminho para incorporar as transformações indu- zidas pela política. Na segunda fase, contudo, Guy Bois tentou reforçar a posição mais orto- doxa, questionando o marxismo “político” derivado de Dobb e reforçado por Robert Brenner (MARIUTTI, 2004). O BRASIL E O CAPITALISMO HISTÓRICO 50 é difícil em um modo de produção consolidado, as dificuldades aumentam tremendamente quando o problema envolve um período transitório. No se- gundo caso, a tendência foi buscar uma saída falsamente conciliatória, sus- tentando que a transição envolve um amplo leque temporal (do século XV ao XIX), que é pontuada por diversas revoluções burguesas, que progressi- vamente sedimentam o capitalismo nas diversas formações sociais. De uma forma bastante original, Immanuel Wallerstein combinou os aspectos mais relevantesda perspectiva de Dobb29 com as principais questões levantadas por Sweezy, em especial a sua insistência em afirmar que as explicações de- veriam levar em conta não só os países isoladamente, mas, sobretudo, a sua integração a uma unidade mais ampla, o sistema mediterrânico Europeu. Assim, o debate sobre a transição teve uma dupla função: ao promover uma reflexão metodológica sobre o Materialismo Histórico, flexibilizou as orto- doxias marxistas e, ao mesmo tempo, favoreceu um diálogo mais intenso entre a Economia e as demais Ciências Sociais. 29 Dobb enfatizou um aspecto decisivo: não há nenhuma relação linear entre o desenvol- vimento do comércio e o afrouxamento dos laços servis, rumo ao trabalho assalariado. A expansão do comércio foi acompanhada tanto pelo reforço como pela dissolução da servidão. O caráter decisivo não era o comércio, mas que classe social desenvolvia as relações mercantis ou se associava ao mercador: onde o produtor direto teve acesso aos mercados, a tendência foi no sentido do trabalho livre. Mas onde a nobreza se associava ao mercador, a tendência era o reforço da servidão. Embora Dobb fosse um ferrenho defensor do papel crucial das trans- formações internas – para a Grã-Bretanha pelo menos – na condução da transição, isso abriu caminho para uma interpretação apta a destacar a dimensão transnacional da luta de classes. Isto, além de ampliar a discussão para os movimentos do conjunto, possibilita destacar os vínculos entre a forma de controle sobre o trabalho, o sistema político e o poder do Estado: “Por que há uma coincidência temporal entre diferentes modos de organização do trabalho – escravidão, ‘feudalismo’ [i.é., o reforço da servidão na Europa Oriental], trabalho assalariado e auto-emprego [pequeno produtor independente] – no interior da Economia-Mundo? Por que cada forma de controle de trabalho se ajusta melhor a tipos particulares de produção. E porque estes modos estavam concentrados em zonas distintas da economia-mundo [...]? Porque as formas distintas de controle sobre o trabalho afetam significativamente o sistema político (a força do aparato de Estado em particular) e as possibilidades de uma burguesia autóctone prosperar. A economia-mundo estava precisamente baseada no pressuposto de que existiam estas três zonas [periferia, semi-periferia e centro] e que elas possuíam efetivamente diferentes formas de controle sobre o trabalho. Se não fosse deste modo, não seria possível assegurar o tipo de fluxos de excedentes que permitiu que o sistema capitalista existisse.” (WALLERSTEIN, 1974, p. 87). 51 A PERSPECTIVA DOS SISTEMAS-MUNDO Estas tendências corriam paralelamente com a ruidosa retomada da polêmica entre a História e as Ciências Sociais, sediada predominantemente na França. Em todas – e são várias - as reconstituições da gênese da pers- pectiva do Sistema-Mundo, Wallerstein enfatiza o peso de Braudel, mas sem dar a devida ênfase ao seu primeiro e mais significativo grande interlocutor: Claude Lévi-Strauss. No final da década de 1940, em um famoso artigo (“História e Etnologia”), retomado posteriormente em Antropologia Estru- tural [1958], Lévi-Strauss passou a defender ostensivamente a necessidade de se desfazer dos “saberes tradicionais” (as disciplinas isoladas, encerradas em si mesmas) mediante a criação de um espaço interdisciplinar de pes- quisa, fundado em uma análise sincrônica, apta a captar invariantes ocul- tas pela superfície dos acontecimentos (RODRIGUES, 2009). O problema é que, para Lévi-Strauss, era a etnologia - irmanada com a linguística - que deveria conduzir a discussão. Caberia à História apenas organizar os dados e os acontecimentos referentes às expressões conscientes da vida social, isto é, operar na superfície. Braudel redarguiu, salientando que a historiografia inspirada em Marc Bloch e Lucien Febvre já havia aberto caminho para a in- terdisciplinaridade e, sobretudo, para a superação da reflexão situada domi- nantemente no nível dos acontecimentos. Contra as alegadas invariâncias uni- versais ressaltadas por Lévi-Strauss,30 Braudel intensificou o seu diálogo com a sociologia e a economia (que, rapidamente ocupou uma posição central), bem como estruturou o seu programa de pesquisas em torno da questão da tempo- ralidade, com clara ênfase na Longa Duração, isto é, o nível da realidade onde dominam os elementos inconscientes da vida social, mas que não são imóveis, pois variam no tempo extremamente lento das civilizações.31 30 Infelizmente, não há espaço para aprofundar este tema aqui. Mas a função de Levi-Strauss não foi apenas a de antípoda de Braudel. O renomado antropólogo publicou nos Annales em algumas ocasiões e tendeu a se aproximar mais ainda, ao atenuar as diferenças entre o (seu) estruturalismo e a História da segunda geração dos Annales. Ironicamente, a continuidade da aproximação entre a antropologia - uma certa antropologia pelo menos - e a Nova História destruiu esse diálogo, mediante a “dissolução” das estruturas. Se a qualidade dos interlocutores é um critério para avaliar a vitalidade de uma corrente do pensamento, a substituição de Lévi- Strauss por Marhsal Sahlins diz muito sobre a relevância da Nova História. 31 As implicações políticas desta visão são evidentes: o tempo curto – de uma geração, por exemplo - não é capaz de produzir nenhuma mudança fundamental. As ditas “revoluções” O BRASIL E O CAPITALISMO HISTÓRICO 52 Aqui reside, portanto, o elemento central: as estruturas sociais são móveis, de desgaste muito lento, fato que de saída inviabiliza a absolutização dos modelos estáticos, típica das posições mais ortodoxas das ciências so- ciais. Tais modelos têm a sua função, mas somente serão úteis se confronta- dos com a dimensão das temporalidades e seus ritmos variáveis de mudança. É, portanto, no plano da longa duração que a perspectiva do sistema-mundo pretende se situar. Outro elemento, que deriva diretamente da reflexão mais madura de Braudel, envolve a diferenciação entre a lógica transparente do mercado livre e a opaca zona dos privilégios e do monopólio. A peculia- ridade é que esta distinção é transposta para a estruturação da economia- mundo. No centro concentram-se as posições monopolistas – os poderes fi- nanceiro (elemento pouco desenvolvido por Wallerstein, mas enfatizado por Arrighi32), tecnológico e militar - enquanto a periferia está sujeita às pres- sões similares às do mercado livre, que, portanto limitam a sua capacidade. Esta mesma estruturação se repete no interior das várias sociedades, onde os monopólios sociais – associados ao racismo e os diversos preconceitos recriados pelo capitalismo, que segmentam a força de trabalho - persistem como uma forma de perpetuação das camadas dominantes. Esses elementos são suficientes para darmos o passo decisivo: a de- finição abstrata de sistema-mundo para, na sequência, esboçarmos as só arranham a superfície: por mais espetaculares que possam parecer, toda a poeira que elas levantam acaba por se assentar mais ou menos no mesmo lugar. E esse viés conservador foi se acentuando, principalmente após ascendência intelectual de Jean Paul Sartre, com um programa de pesquisa orientado pela subjetividade e centrado na ação política imediata. A única brecha aberta por Braudel neste sentido aparece em suas alusões à espontaneidade que ressurge sistematicamente nas economias de mercado “genuínas”, que ressurgem somente para serem engolidas e metabolizadas pelo “capitalismo”. Logo, esta posição abre um fosso intransponível entre Braudel e Wallerstein. 32 Giovanni Arrighi, em O Longo Século XX (1996) afirmou que a principal categoria do livro, os ciclos sistêmicos de acumulação, foram inspirados na reflexão de Braudel. Mas isto, na realidade, o afasta da problemática a qual pretende se filiar. Fernand Braudel jamais tentou reformar conceitos ou modalidades de reflexão, introjetando elementos da “história” para corrigir o excesso de abs- tração. Este procedimento tornou-se padrãoentre as diversas ciências sociais que se pretendem “heterodoxas”. Curiosamente, foi exatamente este papel que Levi-Strauss tentou atribuir à história: um ponto de apoio para uma reflexão essencialmente sincrônica. Por extensão, portanto, não é difícil notar que esta apropriação de Braudel por Arrighi é, no mínimo questionável. 53 A PERSPECTIVA DOS SISTEMAS-MUNDO características essenciais do sistema-mundo moderno. Wallerstein define sistema-mundo como um sistema social que possui limites espaço-tem- porais, estruturas, regras de legitimação e elevado grau de coerência. É di- nâmico, pois os grupos que existem em seu interior estão constantemente envolvidos em uma luta para modelar o sistema em seu proveito. Sintetica- mente: o que caracteriza um sistema-mundo é o fato de a sua dinâmica ser, em grande medida, interna (autocontida). Deste modo, o próprio sistema representa a unidade em torno da qual qualquer análise deve estruturar-se. O sistema-mundo moderno é, contudo, uma economia-mundo capitalista, regida por uma “lei do valor”, que determina a distribuição da maior par- cela do excedente para aqueles que dão prioridade à diretriz fundamen- tal do sistema: a acumulação incessante de capitais. Assim, acumular por acumular representa o princípio nuclear que orienta todo o sistema e lhe confere sentido.33 O sistema-mundo moderno configura um todo espaço-temporal, cujo escopo espacial coincide com o eixo da divisão social do trabalho que integra as suas partes constituintes. Este eixo se materializa em uma com- plexa cadeia de mercadorias onde, para cada processo de produção, existem alguns vínculos para diante e para trás, responsáveis pela interdependência da rede mundial de valorização do capital. Por intermédio desta rede, di- versas formas de controle e de remuneração do trabalho são subsumidas ao capital: o trabalho compulsório (e o infantil), as cooperativas de produtores independentes e as economias familiares semiproletarizadas (onde o salário é a menor parcela das diversas fontes de renda da família) são alguns exem- plos.34 Deste modo, a divisão do trabalho que articula a economia-mundo 33 Naturalmente, Wallerstein matiza esta afirmação: isto não quer dizer que todos os seus membros operam implacavelmente com base nesta “lei do valor”. Mas, em congruência com os fundamentos do sistema, todas as instituições da economia-mundo capitalista são designa- das para recompensar materialmente os que aderem ao seu princípio básico e, indiretamente, para punir os que não o fazem (WALLERSTEIN, 2001). 34 Wallerstein não concebe a multiplicidade de regimes de trabalho como um mero anacro- nismo ou um resquício pré-capitalista. Pelo contrário. Seu papel na valorização do capital é análogo ao exercido pelas disparidades geográficas entre zonas de salários elevados/baixos salários, criadas artificialmente pelo controle internacional sobre a mobilidade da mão de obra: o recurso ao trabalho compulsório e ao emprego da força de trabalho parcialmente O BRASIL E O CAPITALISMO HISTÓRICO 54 não é somente ocupacional, mas também regional: ela reflete uma hierarquia de tarefas que demandam níveis distintos de qualificação e de capitalização, determinando assim a transferência extensiva da mais-valia da periferia para o centro. Mas o quadro é um pouco mais complexo. Entre o centro e a pe- riferia da economia-mundo existe uma zona intermediária, razoavelmente favorecida pela divisão mundial do trabalho: a semiperiferia. Por combinar características dos dois extremos que polarizam a economia-mundo capita- lista, ela atua como uma zona periférica para os Estados do centro e, simul- taneamente, como centro com relação à periferia. Esta posição intermediária reduz a tensão entre os extremos e, deste modo, ajuda a preservar o sistema- mundo moderno.35 Mas, além disto, ela proporciona também uma função dinamizadora: nos períodos de contração econômica, quando a luta para açambarcar um quinhão do excedente mundial em declínio se intensifica, convertida em mercadoria ajuda a estabelecer limites às reivindicações dos trabalhadores as- salariados com maior poder de barganha, ao mesmo tempo em que gera fontes alternativas de valorização. 35 “O sistema-mundo capitalista precisa de um setor semi-periférico por duas razões: uma primariamente política e outra político-econômica. A razão política é muito direta e até mes- mo elementar. Um sistema baseado na recompensa desigual precisa estar constantemente preocupado com a rebelião dos oprimidos. Um sistema polarizado com um pequeno setor distinto de status superior e de rendimentos elevados confrontado com um setor relativa- mente homogêneo de baixo status e baixo rendimento que inclui a maioria avassaladora dos indivíduos leva rapidamente à formação de classes für sich e à luta aguda e desintegradora. O principal meio político capaz de evitar estas crises é a criação de setores “intermediários”, que tendem a acreditar que estão melhores do que os de baixo, ao invés de pensar que estão piores do que o setor superior. Este mecanismo óbvio, operacional em todo tipo de estrutura social, possui a mesma função em sistemas-mundo.” (WALLERSTEIN, 1979, p. 69). A razão “político-econômica” é um pouco mais complexa e, sobretudo, controversa. A semiperiferia possibilita novas zonas de investimento, por conta de sua situação peculiar: uma capacidade de consumo mais elevada do que a da periferia, mas com custos de remuneração do trabalho menores do que o centro. Uma maior gradação das trocas desiguais atenua a tensão entre o progresso tecnológico incessante e as pressões ao aumento salarial nos países centrais. (Ibid, p. 69-71). A referência óbvia aqui é a Arghiri Emmanuel (1972). “Sem trocas desiguais, não seria lucrativo expandir o escopo da divisão do trabalho. E sem esta expansão, não seria lu- crativo manter uma economia-mundo capitalista, que neste caso iria se desintegrar ou ser revertida em um império-mundo.” (WALLERSTEIN, 1979, p. 71). O segundo elemento im- portante é, exatamente, a sugestão de que os estratos intermediários operam simultaneamente como forças moderadoras e mistificadoras: dificultam a criação de uma consciência de classe ou alguma forma de identidade entre o grande grupo de oprimidos. 55 A PERSPECTIVA DOS SISTEMAS-MUNDO alguns estados semiperiféricos podem tirar proveito de sua constituição hí- brida e ameaçar o centro do sistema, promovendo deste modo transforma- ções significativas nas estruturas de poder e de riqueza internacionais.36 Por fim, resta demarcar o escopo temporal do sistema-mundo mo- derno. A duração de todo sistema é marcada por três “períodos” que de- vem ser distinguidos: a sua gênese; o período de “funcionamento normal” (relativamente longo); e o seu declínio (WALLERSTEIN, 1988; 1998a). A gênese e a derrocada de um sistema-mundo caracterizam-se pelo fato de seus desdobramentos serem intrinsecamente imprevisíveis. O período de desenvolvimento regular, pelo contrário, é presidido por contradições in- ternas que modelam a sua evolução. É neste período que se desenvolvem as perspectivas sincrônicas e se consolida uma visão de mundo dominante – uma Geocultura – que, como vimos, resiste e absorve os movimentos an- tissistêmicos.37 Abstratamente, a crítica mais óbvia a tal definição é quanto ao seu caráter hermético: se tomarmos a reconstituição do sistema-mundo moderno feita por Wallerstein, será que realmente podemos falar em contra- dições internas? Afinal, durante a dita fase de funcionamento regular, parece não existir muita saída, pelo menos não no estilo marxiano, i.e., mediante a superação das contradições, onde o velho cria as condições para a emergên- cia do “novo”. Se relembrarmos as intromissões de um vocabulário oriundo 36 Fernand BRAUDEL, ao mesmo tempo em que critica Wallerstein por estar “hipnotiza- do” pelo século XVI, neste aspecto, em particular, reconhece a importância da semiperiferia: “Assim, através de todos os avatares políticos da Europa,por causa deles ou a despeito deles, constituiu-se precocemente uma ordem econômica européia, ou melhor, ocidental, ultrapas- sando os limites do continente, utilizando as suas diferenças de voltagem e as suas tensões. Bem cedo o “coração” da Europa viu-se cercado por uma semiperiferia próxima e um pe- riferia longínqua. Ora, essa semiperiferia que oprime o coração, que o obriga a bater mais depressa – o norte da Itália em redor de Veneza nos séculos XIV e XV, os Países Baixos em torno de Antuérpia – é talvez a característica essencial da estrutura européia. Ao que parece, não há semiperiferia em torno de Pequim, de Delhi, de Ispahan, de Istambul, até de Moscou.” (BRAUDEL, 1997, p. 45) [vol. 3]. 37 Ao longo de sua obra, Wallerstein foi modificando ligeiramente os recortes temporais que demarcou em 1974, culminando na criação do conceito de “longos períodos sobrepostos” (WALLERSTEIN, 2011, p. xii). Mas, no que diz respeito à consolidação e funcionamento re- gular da Geocultura, o período é 1789-1873/1914. Depois de 1914 o primado do liberalismo reformista começou a ser ameaçado, e as rupturas mais decisivas começaram a aparecer a partir de 1968. O BRASIL E O CAPITALISMO HISTÓRICO 56 da física, os sistemas-mundo parecem estar sujeitos a duas tendências dis- tintas que disparam a sua fase terminal: a entropia (como, por exemplo, o colapso do Império Romano) ou, de forma alternativa, a ultrapassagem das assíntotas, isto é, um afastamento dos pontos de equilíbrio que leva o sistema para a zona de bifurcação, tornando-o intrinsecamente imprevisível. Concretamente, a polêmica é outra: como demarcar o início do siste- ma - o debate sobre a transição ao capitalismo – e, sobretudo, como saber se realmente estamos na fase terminal do sistema-mundo moderno?38 Quan- to ao primeiro problema, a posição de Wallerstein é bastante clara: todos os elementos do capitalismo surgiram no longo século XVI (1450-1640) e, de forma intrinsecamente imprevisível no decorrer do processo, este período 38 Outro ponto polêmico, que não poderemos aprofundar aqui, diz respeito à periodização dos ciclos que compõem o sistema-mundo moderno: de um lado, a polêmica tese da articula- ção dos ciclos de longa (tendências seculares), média (Kondratieff) e curta duração. De outro, a celeuma em torno dos ciclos hegemônicos (disputa que extravasa o campo da perspectiva do sistema-mundo) e seu vínculo com os “ciclos sistêmicos de acumulação” (Arrighi). Apro- fundei este tema em Mariutti (2008, p. 45-86). Contudo, um aspecto importante é necessário destacar aqui. Um limite básico à discussão sobre os ciclos econômicos é sua evidente capi- tulação ao status quo. Ernest Mandel destaca isto ao repudiar veementemente a discussão sobre os ciclos de Kondratieff. Há, na opinião de Mandel, uma diferença fundamental entre a passagem da fase ascendente para a descendente e a reversão da fase descendente para a ascendente. Um certo caráter automático só se verifica no primeiro caso. A explicação para isto repousa na tendência à queda da taxa de lucro, que é imanente à economia capitalista: o pico da fase ascendente é caracterizado pela superprodução, a qual intensifica o problema da realização da mais-valia e acaba por reverter as expectativas de lucratividade. Esta inver- são das expectativas produz a queda dos investimentos e a redução do ritmo da economia (fase B). Já a passagem da fase de declínio para a nova fase de expansão só pode ocorrer se for provocada por choques sistêmicos exógenos, capazes de gerar a expansão súbita do mer- cado e transformar positivamente as condições de acumulação capitalista. De acordo com Mandel (1996, p. 618-21), estes choques ocorreram três vezes na história: a) em 1848, com as revoluções burguesas e a descoberta do ouro na Califórnia; b) depois de 1893, com a esca- lada de investimentos no mundo colonial (imperialismo) em conjunto com a descoberta de jazidas de ouro na África do Sul; c) a partir de 1940 nos EUA e 1948-9 na Europa Ocidental e no Japão, devido ao acúmulo dos resultados de longo prazo do fascismo e da guerra. As implicações políticas deste ajuste teórico são evidentes: a única característica automática do capitalismo é sua tendência à autodestruição. A irrupção de crises é um atributo normal do modo de produção capitalista: a solução destas crises é que envolve sempre transformações importantes no regime de acumulação, as quais sempre são modeladas pela luta de classes. Assim, uma situação de crise é sempre crítica, no sentido de exigir uma reforma significativa do capitalismo ou a sua supressão. 57 A PERSPECTIVA DOS SISTEMAS-MUNDO estabeleceu uma nova estrutura, que se consolidou com a grande expansão que se seguiu à “crise do século XVII”.39 O segundo problema, evidentemente, é muito mais importante e impossível de resolver teoricamente: ou melhor, a posição tomada irá refletir ações políticas efetivas, que, portanto, irão moldar nosso futuro imediato. Podemos até duvidar que a crise começou em 1968. Mas são fortes os indícios de que vivemos em um momento marcado por in- certezas fundamentais e, portanto, passível de sofrer transformações radicais – para o bem e para o mal. Simplesmente por ter formulado o problema nestes termos, Wallerstein e a perspectiva do sistema-mundo são uma referência fun- damental no debate sobre os rumos da nossa sociedade. Voltarei mais uma vez a esse ponto, logo à frente. Perspectivas teóricas: para além do sistema-mundo moderno Como sugeri, a publicação de The Modern World-System I é, inequi- vocamente, o marco inicial da perspectiva do sistema-mundo. A rota fixada originalmente por Wallerstein tinha como eixo básico a intervenção na rea- lidade social, amparada por uma análise da economia-mundo contemporâ- nea, escorada em uma reconstituição de seus elementos fundamentais, nu- trida pela História. Tal empreitada tem como premissa fundamental a ideia, cara a Benedeto Croce, de que toda História é sempre contemporânea: O passado só pode ser contado como realmente é, não como foi. Pois recontar o passado é um ato social do presente, feito por homens do presente e que afeta o sistema social do presente. A “verdade” muda porque a sociedade muda. Em cada momento dado, nada é sucessivo, tudo é contemporâneo, mesmo o que é passado. E no presente somos todos irremediavelmente o produto do nosso meio, do nosso ofício, da 39 Termo que, naturalmente ele rejeita: em sua visão, devemos conceber esse fenômeno não como uma crise, mas como uma retração dentro de uma estrutura que se consolidou no ápice de uma expansão precedente (isto é, a expansão que se seguiu à crise do XIV, que encerrou o feudalismo e liberou os elementos que se combinaram, forjando o capitalismo). O BRASIL E O CAPITALISMO HISTÓRICO 58 nossa personalidade e do nosso papel social, bem como das pressões es- truturais dentro das quais nós operamos. (WALLERSTEIN, 1974, p. 9). Esta premissa continua sendo basilar. Mas o fato de toda história ser contemporânea, evidentemente, não deve ser entendida de forma estreita: não se pode rejeitar a priori nenhum tema histórico, por mais remoto que seja. Dentre os diversos temas de interesse do analista social, a questão central não é o que se estuda, mas como. E uma série de estudos nas últimas décadas ex- travasou a ênfase original na economia-mundo capitalista, tentando transpor as categorias forjadas para dar conta deste fenômeno para o estudo de outros sistemas-mundo. Uma tarefa que não é nem um pouco trivial (AMIN, 1991; CHASE-DUNN, 1992). Nesta linha, Before European Hegemony é um exemplo vívido de expan- são do escopo e de variação temática que, essencialmente, não rompe com as preocupações referentes aos problemas sociais do presente. O ponto de partida da pesquisa, que levou a autora a escrever o livro, é potencialmente frutífero: munida de diversos estudos gerais (com claro destaque para Willian McNeill), Janet Abu-Lughod passou a investigar as diversas conexões – em todasas esfe- ras da vida social - entre grandes entidades geo-históricas (sistemas-mundo?) distintas, isto é, os múltiplos circuitos – que transcendem o comércio - que articulavam (frouxamente, é importante insistir) as grandes civilizações da Eurásia, cerca de 1250-1350. O ponto alto do livro é, exatamente, a discrimi- nação das conexões entre diversos “sistemas e subsistemas” em uma ampla zona geográfica, que envolvia uma parcela da Europa, do Oriente Médio (no qual, coerentemente, ela inclui o Norte da África) e a zona costeira e as este- pes asiáticas. Se ela mantivesse a inspiração original – o estudo dos diversos circuitos entre sistemas-mundo em um período específico – o livro ganharia em qualidade.40 Mas não foi o que ela acabou fazendo. O seu verdadeiro mote é des- mistificar as explicações civilizacionais pautadas pela alegada superioridade 40 Samir Amin (1991, p. 357-9), por exemplo, faz isto de forma muito mais rigorosa. 59 A PERSPECTIVA DOS SISTEMAS-MUNDO dos valores e/ou instituições Ocidentais. Contudo, é perfeitamente possível criticar o eurocentrismo sem exagerar na imaginação, sugerindo a existência de um efêmero sistema-mundo (a expressão é dela) que não possui uma uni- dade em nenhuma esfera da existência social. Sem cerimônias, ela explicita esta manobra em vários pontos do livro. Como ilustração, segue o trecho mais conspícuo: Finalmente, dada a existência deste incipiente sistema mundial onde nenhuma unidade prevalece na cultura, religião ou nos arranjos eco- nômico-institucionais [!!], é difícil aceitar uma explicação puramente ‘cultural’ para a dominância [do Ocidente]. [...] O fato de que o ‘Oci- dente venceu’ no século XVI [uma afirmação estranha, para quem conhece o argumento de Wallerstein, ou mesmo de Braudel], onde o sistema precedente abortou, não pode ser utilizado para argumentar convincentemente que apenas as instituições e a cultura do Ocidente poderiam ter triunfado. (ABU-LUGHOD, 1989, p. 354). Uma página antes: “Explicações que se concentram em carac- terísticas tecnológicas, culturais, psicológicas ou até mesmo econômi- cas especiais da sociedade europeia não são suficientes, já que elas ten- dem a ignorar as mudanças contextuais no sistema preexistente.” (Ibid, p. 353). Um pouco antes disto, outro malabarismo: “O propósito deste ca- pítulo conclusivo não é apenas sintetizar nossas descobertas sobre o século XIII, mas para formular uma questão de muito maior significado, a saber. Por que sistemas mundiais fracassam?” (Ibid, p. 352). Nesta visão (que também é profundamente anacrônica), o Ocidente só triunfou porque este amplo e heterogêneo “sistema mundial”41 perdeu a coesão, principalmente por conta do declínio do Oriente, que abriu caminho para a conquista ocidental, a qual reformulou os circuitos anteriores, subordinando-os à força, pela sucessão de potências europeias. 41 Sintomaticamente, em todo o livro, a autora utiliza a expressão world system, ao invés de world-system. Aí reside a fragilidade teórica fundamental do livro: o exagero na elasticidade do termo sistema retira o seu conteúdo concreto, fazendo com que praticamente tudo possa ser agregado ao estudo. O BRASIL E O CAPITALISMO HISTÓRICO 60 Mas, sem dúvida alguma, o exemplo mais tragicômico é o ex- travagante e incoerente Reorient que, infelizmente, chegou a influen- ciar o último livro de Giovanni Arrighi (2008). Há alguma história por trás deste livro. Frank pegou carona em algumas “reflexões” anterio- res, tais como, por exemplo, Wilbert Moore que, na década de 1960, de- fendeu a criação de uma “sociologia global”, isto é, apta a abranger todo o globo terrestre, que deve ser compreendido como um “supersistema”, que articula em graus variáveis todos os sistemas menores (MOORE, 1996). Como, infelizmente, o papel aceita tudo, Frank consegue ir mais lon- ge, ao afirmar que o presente sistema mundial tem quase 5.000 anos, pois surgiu por volta de 2500 a.C. (talvez mais cedo!), com as conexões “sistêmi- cas” estabelecidas entre a Ásia Oriental, a Europa Ocidental e o sul da África, que formaram uma unidade que já recebeu várias designações, tais como “ecúmeno”, “ilha da terra” e “civilização central” (FRANK, 1990; FRANK; GILLS, 1992)42 Em Reorient – para alívio do leitor - os marcos temporais são menores. Seguindo a trilha aberta por Janet Abu-Lughod, Frank se concen- tra na economia “global” situada entre 1400 e 1800, onde o “centro” mudou da Ásia para a Europa (FRANK, 1998). Como parece ter se tornando uma prática comum entre os adeptos da perspectiva do sistema-mundo (carac- terização que parece não agradar mais a Frank, já que ele adotou uma pers- pectiva dita globológica43 (sic)), o livro termina com uma profecia: estamos a testemunhar o retorno do centro da economia global à Ásia, mais especifi- camente para a China (e não para o arquipélago capitalista asiático, centra- do em torno do Japão, como havia profetizado Giovanni Arrighi, no início dos anos 90). Frank, representando os oprimidos não europeus, procura desmascarar o mito de origem da ciência ocidental: a excepcionalidade do 42 Para a crítica desta posição ver Amin (1991, p. 351-3; 377-85); Arrighi (1999); e Wallerstein (1999). 43 Ibid, p. XV. O termo não é dele, mas de Albert Bergesen (1982). Porém, Frank levou esta ideia às últimas consequências. Ele afirma que escreveu Reorient com o propósito de substi- tuir a ciência eurocêntrica inaugurada por Marx e Weber (grotescamente apelidados de “Marx Weber”) pela globologia: o único método realmente holístico, capaz de superar o falso univer- salismo eurocêntrico (FRANK, 1998, p. 12-34). 61 A PERSPECTIVA DOS SISTEMAS-MUNDO Ocidente como a base da formação do capitalismo. Na realidade, a ascensão do Ocidente não teve nada de excepcional, pois tratou-se apenas de mais um episódio na longa e intermitente sucessão de centros da economia global. Ele vai além.44 Foi, na verdade, o declínio do Oriente que possibilitou que os europeus ocupassem o centro da economia-mundo no século XIX, com a autoproclamada “Revolução Industrial” (FRANK, 1998, p. 264-7). Para o au- tor não faz sentido usar este termo, pois não houve revolução alguma: os eu- ropeus, com base na exploração da prata americana e do tráfico de escravos africanos, simplesmente emularam - através da substituição de importações (sim, esse é o termo que ele usa!) - as técnicas industriais do Oriente (ibid, p. 276-320; 327-339 (particularmente p. 334-9)). Em uma seção intitulada “Subindo nos Ombros dos Asiáticos” Frank usa uma frase de efeito que tra- duz seu argumento básico: “Então, como ocorreu a ascensão do Ocidente? A resposta, literalmente em uma palavra, é que os Europeus compraram [com a prata dos americanos e com o trabalho compulsório dos africanos] para si um assento, ou melhor, um vagão inteiro, no trem asiático” (ibid, p. 277). Este estilo de interpretação dispensa comentários. A perspectiva do sistema-mundo sempre disputou espaço com outras correntes que visam dar ênfase aos efeitos dos processos sistêmicos sobre as unidades menores. Sua peculiaridade, contudo, nunca repousou na lógica sistêmica per se, mas sim na aspiração de criar uma ciência social unitária, fundada na articulação en- tre o tempo e o espaço, em constante diálogo com a História. É esse diálogo que visa garantir a concretude dos fenômenos, isto é, a delimitação de suas fronteiras temporais e, essencialmente, a sua duração. Logo, a tendência a ampliar a noção de sistema, para tentar dar conta do maior número possível de interações é um claro descaminho. Uma vez tomada esta trilha, os grandes marcos divisórios – como, por exemplo, a própria consolidação do sistema- mundo moderno – desaparecem e a própria ideia de mudança social perde o seu sentido, pois é dissolvida na atemporalidade. Ampliando ao máximo o perímetro espaçotemporal, sempre é possível identificar “conexões sistê- micas”, inclusive as que transcendem a dimensão social (CHASE-DUNN, 44 Ou aquém: comoapontei, essa ideia já tinha sido exposta por Janet Abu-Lughod. O BRASIL E O CAPITALISMO HISTÓRICO 62 1992, p. 317-9). O limite desta tendência é a Big History, isto é, a fantástica tentativa de reconstituir a história do mundo partindo do Big Bang aos dias atuais, inclusive com projeções para o futuro: será que, frente a um mundo superpopuloso, a humanidade repetirá as “épicas” migrações do paleolítico, só que na escala do sistema solar? (CHRISTIAN, 2005, parte 6).45 Acredito que até mesmo Gunder Frank ficaria acanhado frente a tal disparate. Desa- pontado com certeza, pois não há nenhuma referência no livro ao sistema de 5000 anos que ele alega ter descoberto. A Big History parece ser totalmente refratária à curta duração. O que está em jogo, portanto, são as próprias noções de sistema e de totalidade. Este tipo de reflexão sempre gira em torno de clichês, tais como, por exemplo, o todo é maior do que a simples soma das partes ou, alternati- vamente, de que não se pode confundir totalidade com plenitude. Ambos os chavões são corretos, mas nem um pouco evidentes e, o que é mais relevante, suscitam múltiplas interpretações. Os adeptos da Nova História – mesmo os da novíssima, acusados frequentemente de fazer uma história em migalhas – são defensores intransigentes da totalidade. Mas nunca a totalidade perseguida pela perspectiva do sistema-mundo, e sim outro tipo de totalidade, baseada em procedimento diverso: as “migalhas” são tratadas como totalidades: 45 O livro, intitulado Maps of time: an introduction to Big History, é realmente surpreendente. O relato começa com a origem do universo. O ritmo se acelera com o surgimento do planeta Terra, quando, depois de uma parte mais monótona (a história natural da terra antes da vida), o autor discorre sobre o surgimento das primeiras formas de vida elementares, que evolvem para os grandes ecossistemas, até o surgimento da humanidade e da vida social (também ele- mentar). O problema é que a humanidade passou milênios vivendo em “mundos” separados, até o advento da modernidade que, progressivamente unifica a humanidade (globalização!!). Mas o futuro é incerto... Nada garante que a globalização irá sobreviver. Se os constrangimentos ambientais não destruírem o capitalismo, provavelmente a humanidade irá começar a coloniza- ção da Lua e do sistema solar. O autor é cético com a possibilidade de ultrapassar estes marcos, por conta das grandes distâncias e da sugestão de Einstein de que nada pode ir mais rápido que a velocidade da luz (cf. p. 484). No entanto, nada impede a humanidade de produzir “arcas es- paciais” lançadas para o desconhecido: se elas forem mais confortáveis do que os asteroides ou planetas eventualmente encontrados, os tripulantes podem viver nelas indefinidamente. Mas, mesmo confinada ao sistema solar, será que a unidade da sociedade humana resistirá às distân- cias siderais? O isolamento no cosmo irá, tal como na ilha de Galápagos, produzir a especiação? Quem tiver interesse nestes problemas, deve consultar o livro! 63 A PERSPECTIVA DOS SISTEMAS-MUNDO Deve-se destacar também a redefinição que [os adeptos da Nova His- tória] fazem da concepção de totalidade. “Totalidade” passa a ser em- pregada em um sentido diverso daquele normalmente utilizado no campo da história, como se pode observar no texto de Braudel [...]. Não se trata das grandes visões de conjunto, se uma abordagem que procura a inteligibilidade do singular dentro de um contexto que ar- ticule as esferas da existência. Trata-se agora de, uma vez eleito o ob- jeto de investigação, recortado de um real multifacetado, considera-lo em si como uma totalidade. Desconsideram-se por esta via os amplos quadros conceituais. (NOVAIS; FORASTIERI, 2010, p. 63-4). Enfim, tanto os cultores da história em migalhas quanto os adeptos da Big History provavelmente concordariam com os clichés acima aludidos. Mas as suas problemáticas são fundamentalmente distintas. No primeiro caso, al- guns historiadores conseguem, focando em alguns eventos isolados, captar as dimensões mais gerais. No outro extremo (Big History, Globologia), ao invés de totalidade, o termo mais usado é sistema. E a tendência é estender ao má- ximo o campo de visão (no tempo e no espaço), com base em uma lógica cha- mada geralmente de evolucionária, tomada de empréstimo do Darwinismo e que rapidamente se difundiu para o estudo dos sistemas complexos. Aqui há uma profusão de exemplos. David Christian baseia todo o seu “mapa do tempo” nesta lógica. A própria Janet Abu-Lughod, embora com um pouco mais de pudor, só foi capaz de vislumbrar o seu efêmero sistema-mundo do século XIII usando uma variante deste tipo de raciocínio, que ela batizou como teoria dos “vetores”, apta a explicar “transformações sistêmicas”.46 George Modelsky, para poder fundamentar a sua teoria dos 46 Corretamente, ela afirma que as relações de determinação em um sistema são complexas: elas não podem ser concebidas a partir de variáveis discretas, tidas como independentes. A transformação se expressa em mudanças na direção e configuração dos grandes vetores (que, invariavelmente, ela usa como sinônimo de tendência). Estas mudanças são, entretanto, a resultante do efeito cumulativo de múltiplas variações em vetores menores que, embora inde- pendentes, são influenciados pelas pressões do sistema. Até aqui, nada de novo. O problema básico, que a afasta definitivamente da perspectiva do sistema-mundo, é a sua noção de ciclo: eles variam também em função do seu grau de organização ou de desorganização. Em outros termos: o sistema ascende quando a conexão entre as suas partes aumenta – i.e, ele torna-se mais reticulado – e declina quando as conexões se esgarçam (ABU-LUGHOD, 1989, p. 368-9). O BRASIL E O CAPITALISMO HISTÓRICO 64 ciclos hegemônicos – rival direta da perspectiva do sistema-mundo – tentou definir melhor esta lógica. Em sua opinião, a característica fundamental das análises fundamentadas neste tipo de lógica é a ênfase na dinâmica dos pro- cessos (nas mais variadas escalas), e não o foco nos atributos das unidades. Tal postura teórica afasta-se, em seu julgamento, da física clássica (mecâni- ca) e se aproxima da perspectiva que ele julga típica das ciências biológicas:47 A mudança da mecânica para a biologia – isto é, uma mudança entre metaparadigmas [!!] – envolve a passagem da estática para a dinâmi- ca. A análise se desloca de uma realidade time-free para uma realida- de time-prone que implica a irreversibilidade e portanto abre cami- nho para a história [...] Empregamos esta analogia porque, em nosso ponto de vista, sistemas biológicos e sociais são sujeitos a processos evolucionários e por este motivo guardam certas similitudes. Eles são sistemas complexos que exibem pressões seletivas, assim como coo- peração e sinergia; e suas transformações são baseadas na informação e inovação. (MODELSKI; POZNANSKI, 1996). Por esta via, o caminho aberto para a História existe apenas no plano da retórica. Este tipo de lógica, aparentemente polivalente, na realidade, apa- ga as diferenças entre os sistemas físico-naturais e a sociedade.48 O tempo todo ela está falando das frouxas e intermitentes ligações entre sistemas-mundo (que se processam no que Wallerstein chamou de Arena Externa), e não de um sistema-mundo do- tado de dinâmica própria. Foi esta trilha que, como já adiantei, tragicamente, Gunder Frank et caterva seguiu. 47 Na verdade, quando ele fala em biologia, refere-se principalmente ao darwinismo – parti- cularmente do estudo dos padrões de seleção natural – e, aparentemente, aos estudos sobre ecossistemas complexos. 48 A ideia não é, naturalmente, tentar reforçar a “velha” clivagem entre ciências naturais e so- ciais, muito menos continuar a tratar a natureza como uma exterioridade meramente passiva, reversível e atemporal. Qualquer tentativa coerente de aproximação entre estes dois conjun- tos deve partir de suas diferenças. Projetar traços sociais na natureza nãoresolve o problema, do mesmo modo que a tradição original – tratar a sociedade como se ela fosse “natural” (eli- minando as idiossincrasias e a subjetividade, em prol da quantificação) – criou mais dificul- dades do que soluções. A grande questão, contudo, não diz respeito somente se ou como será possível unir as ciências sociais às naturais: o verdadeiro desafio é reconstruir a centralidade das humanidades, subordinando as tendências pragmáticas e o culto à tecnologia à de uma sociedade melhor e mais igualitária. Em suma: as preocupações de Rousseau – a relação entre 65 A PERSPECTIVA DOS SISTEMAS-MUNDO E, infelizmente, esta tendência veio para ficar, com elevado poder de contágio até mesmo sobre a perspectiva do sistema-mundo. Uma coisa é respeitar a natureza e lutar para criar formas de desenvolvimento social ecologicamente sustentáveis. Outra, mediante uma infantil reação ao cien- tificismo iluminista, é tentar ver inteligência na natureza (ou em sistemas complexos). É relevante o fato de, recentemente, em diversos casos, a Hard Science ter se aproximado das características típicas das ciências sociais de inspiração ideográfica, mediante a adoção do princípio da incerteza (que implica a diluição da separação radical entre sujeito e objeto, aceitando que os instrumentos de medida perturbam e alteram os fenômenos), a ênfase na irreversibilidade, instabilidade e na não linearidade. Mas este movimen- to é muito menos profundo do que parece, pois ele simplesmente encoraja um raciocínio probabilístico,49 que está contaminando inclusive as próprias ciências sociais de orientação ideográfica, exatamente, devo repetir, por di- luir a separação entre fenômenos naturais e sociais.50 Os cientistas deveriam ciência e virtude; como reduzir o hiato entre o que a sociedade efetivamente é e o que ela po- der ser - devem ser reconduzidas ao centro do debate público (SANTOS, 1992, p. 9-11; 34-5). 49 “Ao longo das últimas décadas, um conceito novo tem conhecido um êxito cada vez maior: a noção de instabilidade dinâmica associada à de ‘caos’. Este último sugere desordem, im- previsibilidade, mas veremos que não é assim. É possível, porém, como constataremos nes- tas páginas, incluir o ‘caos’ nas leis da natureza, mas contanto que generalizemos esta noção para nela incluirmos as noções de probabilidade e irreversibilidade. Em suma, a noção de instabilidade obriga-nos a abandonar a descrição de situações individuais (trajetórias, fun- ções de onda) para adotarmos descrições estatísticas. É, pois, no plano estatístico que pode- mos evidenciar o aparecimento de uma simetria temporal quebrada.” (PRIGOGINE, 2002, p. 8) (Grifo meu). Prigogine foi capaz de assimilar alguns conceitos e insights típicos das ciências humanas, que são incorporados à sua “teoria” das estruturas dissipativas e da or- dem mediante flutuações, que desembocam na ideia da bifurcação e da geração espontânea de novos sistemas. Pergunto: há alguma contribuição no sentido inverso, isto é, isso contribui de alguma maneira para renovar a tradição hermenêutica das ciências sociais? O único efeito positivo parece operar no ego dos humanistas e cientistas sociais: frequentemente acusados de estarem atrasados com relação à Hard Science, o advento da teoria do caos mostrou que, na verdade, eles podem ocupar uma posição de vanguarda. 50 As ciências sociais, ao se constituírem, tentaram analisar a sociedade de forma análoga à natureza. Esta tendência se inverteu: “Este fato não só começou a mudar o equilíbrio de poder vivido nas lutas internas das ciências sociais como contribuiu também para reduzir a distinção rígida que vê as ciências naturais e as ciências sociais como dois ‘superdomínios’ totalmente apartados. No entanto, e ao contrário de anteriores tentativas no mesmo sentido, esta diminuição das contradições entre as ciências naturais e sociais não implicou conceber a O BRASIL E O CAPITALISMO HISTÓRICO 66 aprender com a prática dos humanistas, filósofos e historiadores, e não o contrário, como tem ocorrido: a parceria com a “teoria” da complexidade – também conhecida como teoria do caos – é, neste sentido, catastrófica, pois, em última análise, o que se faz é, além de incorporar alguns conceitos das ciências sociais, estender a lógica utilizada no estudo dos sistemas comple- xos para a sociedade. Mas tal lógica, por definição, não explica o propósito dos fenômenos e, principalmente, apenas permite controlar minimamente seus efeitos. Em uma síntese elegante: “As leis da ciência moderna são ba- seadas em um tipo de causalidade formal que dá prioridade ao como-isso- funciona em detrimento de quem-é-o-ator ou qual-é-o-propósito das coi- sas” (SANTOS, 1992, p. 17). A teoria do caos não irá nos ajudar a mudar essa tendência. Simplificando um pouco, podemos dizer que a teoria da com- plexidade tende a oscilar entre duas orientações distintas: i) majorita- riamente, os fenômenos do mundo real são caóticos, isto é, instáveis. Deste modo, a análise destes fenômenos, cujas possibilidades de previsão são limitadas, deve fundamentar-se, como já foi adiantado, dominantemente em estimativas probabilísticas, em um ambiente de profunda incerteza; e ii) no seio da aparente onipresença do caos, contudo, existem sistemas abran- gentes, porém dotados de ordem interna, isto é, baseados em leis determi- nísticas, que geram padrões discerníveis. No entanto, impulsionados por suas próprias leis (ou sofrendo a influência de outros sistemas ou fenômenos ex- ternos51), todo e qualquer sistema tende a desagregar-se, isto é, a entrar na “fase de bifurcação”: as oscilações tornam-se mais abruptas e progressivamen- te aleatórias. Quando se atinge este ponto, as leis que ordenavam o sistema não são mais capazes de fazê-lo. A partir daí, um ou vários novos sistemas podem surgir. Mas enquanto um novo conjunto de leis internas não for conso- lidado, a trajetória do sistema é intrinsecamente imprevisível (BIRKEN, 1999; humanidade como algo de mecânico, mas antes o conceber a natureza como algo de ativo e criativo” (C.G.R.C.S., 1996, p. 91-2). Uma posição deísta, plenamente compatível com a moda de alguns adeptos da Hard Science aceitarem a tese do “design inteligente”. 51 E essa é sempre a dificuldade: definir o que é interno e o que é externo, a natureza das deter- minações ou influências internas. Tudo depende de como se delimitam as fronteiras. 67 A PERSPECTIVA DOS SISTEMAS-MUNDO EKELAND, 1998; PRIGOGINE, 1996). Wallerstein se aproximou deste tipo de reflexão para tentar reforçar seu argumento mais polêmico: a tese de que vi- vemos, desde 1968, uma crise fundamental do capitalismo, que provavelmente irá gerar um novo sistema. Estamos, portanto, vivendo a fase de bifurcação do “capitalismo histórico”.52 Não é necessário, contudo, aproximar-se da teoria da complexidade para salientar este aspecto. De fato, os períodos de crise são paradoxais: por conta da deterioração das coações estruturais, a liberdade dos atores sociais aumenta. Mas este acréscimo da liberdade intensifica a imprevisibilidade, logo, como lidar com essa liberdade ampliada torna-se a questão política decisiva. E, neste aspecto, sem capitular a modismos transpostos das ciências naturais, a perspectiva do sistema-mundo pode contribuir significativamente para a construção de uma sociedade melhor. Em primeiro lugar, por sua ên- fase no imbricamento entre a Ciência, a Moral e a Política (WALLERSTEIN, 1998, p. 1-33), ela possibilita um diagnóstico bastante preciso das contradi- ções fundamentais da sociedade em que vivemos, que se traduz na necessida- de de reformular radicalmente os padrões científicos e, sobretudo, a prática política contemporânea. A restauração conservadora, cujas raízes remontam à década de 1970, tentou responder a estas contradições pela truculência política e pela exasperação dos direitos de propriedade dos plutocratas, que desencadearam forças de fragmentação difíceis de serem contidas, e que 52 “Pode-se descreveruma crise sistêmica como a situação em que o sistema chegou a um pon- to de bifurcação, ou ao primeiro de sucessivos pontos de bifurcação. Ao se afastarem de seus pontos de equilíbrio, os sistemas chegam a essas bifurcações, onde múltiplas soluções para a instabilidade, por oposição a uma única, se tornam possíveis. Nesses pontos, o sistema vê-se diante de uma escolha entre possibilidades. A escolha depende tanto da história do sistema como da força imediata de elementos externos à sua lógica interna. Esses elementos externos, chamados “ruídos”, são ignorados quando os sistemas estão funcionando normalmente. Em situações distantes do ponto de equilíbrio, porém, os efeitos das variações aleatórias provoca- das pelos “ruídos” são ampliados, justamente por causa do aumento do desequilíbrio. Agindo caoticamente, o sistema se reconstruirá radicalmente, de maneiras imprevisíveis, mas que conduzem a novas formas de ordem. Nestas condições, pode haver (e normalmente há) não só uma, mas uma cascata de bifurcações, até que um novo sistema, isto é, uma nova estrutura dotada de relativo equilíbrio de longo prazo, se estabeleça e mais uma vez entremos em uma situação de estabilidade determinística. O novo sistema emergente é diferente do velho e, provavelmente, mais complexo.” (WALLERSTEIN, 1995, p. 135-6). O BRASIL E O CAPITALISMO HISTÓRICO 68 presidem as diversas manifestações da crise atual. Crise que, se permanecer- mos nos moldes usuais da ciência social vigente (especialmente em sua ver- são mais empobrecedora, o “debate” entre ortodoxia e heterodoxia), sequer pode ser compreendida. Mas, como tentei sugerir aqui, a crítica deve ser reflexiva, isto é, incidir também sobre as premissas teóricas, no caso, sobre a própria perspectiva do sistema-mundo. Neste sentido, uma (re)aproximação maior com o materialismo histórico é fundamental. As provocações gratuitas e a forma jocosa como Wallerstein retrata o marxismo podiam fazer algum sentido na década de 1970 e 80,53 quando o marxismo, além de perder a liga com os movimentos sociais, se encastelou na Universidade e, desse modo, fragmentou-se em diver- sas especialidades isoladas (geografia marxista, sociologia marxista, economia marxista etc.). Contudo, a despeito deste descaminho, o ímpeto básico por detrás da perspectiva do sistema-mundo é muito similar ao marxismo: uma crítica radical da ordem vigente, baseada na fusão entre a reflexão teórica e os movimentos sociais, mediante uma tentativa de fusão entre a História e as Ciências Sociais. Por conta disto, muito antes da perspectiva do sistema-mun- do, o marxismo se propôs como um esforço de criar um saber unitário, apto a superar a antinomia nomotético-ideográfica e, desse modo, superar o conhe- cimento “generalizante-setorializante” engendrado pelas Ciências Sociais. A posição do marxismo neste debate sempre foi sui generis: 53 Parte das provocações não são realmente provocações. Refletindo sobre os movimentos antissistêmicos pós 1968, Wallerstein fez uma declaração que, aos desavisados pode parecer surpreendente: “O marxismo é completamente diferente [da terceira geração da escola dos Annales]. Ele foi concebido como uma ideologia, não de conjuntura, mas de estrutura. Ele se atribuiu a pretensão de ser a ideologia de todas as forças anti-sistêmicas do mundo da economia capitalista e de ser a ideologia da transição mundial do capitalismo para o socialismo. Sua causa parece bem defendida. À medida que se desenvolverem as forças políticas anti- sistêmicas, o marxismo se expandirá, enquanto ideologia. Um dia talvez descubramos que o marxismo subitamente tornou-se o Weltanschauung universal do capitalismo defunto e do sistema que o sucederá, exatamente como o cristianismo foi o Weltanschauung do falecido Império Romano e do período que o sucedeu a partir da proclamação de Constantino.” (WALLERSTEIN, 1989, p. 28). Esta declaração, que despertou a fúria dos marxistas mais cientificistas, capta os atributos essenciais do materialismo histórico, isto é, um movimento de contestação simultaneamente teórico e prático, criado pelas contradições do capitalismo, e que tem como inspiração básica e razão de ser a sua superação. Logo, por mais que os liberais e reacionários tentem enterrar o materialismo histórico, jamais conseguirão: somente o fim do capitalismo poderá realizar esta tarefa. 69 A PERSPECTIVA DOS SISTEMAS-MUNDO Para tanto, importa sondar ainda mais a fundo o processo de for- mação das ciências sociais: elas se constituem, recortando esferas da existência, e desprendendo-se da filosofia e da história, em momentos da nossa História ocidental nos quais demandas exigem a explicação de determinados fenômenos, inseridos naquelas esferas existenciais. Se essa constatação pode considerar-se consensual em história das ci- ências, nem sempre se atenta, ao nosso ver, para o pressuposto inexo- ravelmente implicado na asserção: qual seja, o processo (de formação das ciências sociais) envolve o reconhecimento da impossibilidade de conceitualização simultânea de todas as esferas da existência. Ora, atuando no centro do processo – in the heart of the matter – Marx parte axiomaticamente do pressuposto contrário: todo seu imenso es- forço visa conceituar todas as esferas da existência, para elaborar uma teoria da História. (NOVAIS; FORASTIERI, p. 46-7). Por teoria da história devemos entender uma compreensão básica de sua dinâmica, e não a preocupação prévia de, diante da realidade social, tentar decantar uma filosofia da História unilinear que, congruente com a noção de progresso, supostamente irá conduzir a Humanidade a um telos predeterminado.54 Para concluir, é necessário esclarecer melhor este ponto. É precisa- mente neste sentido que o materialismo histórico é original: ele se apresenta como uma teoria da história. Uma teoria essencialmente indeterminista, já que o dinamismo vem da luta de classes. Mas tal luta é travada dentro de estruturas históricas, que se desgastam na exata medida em que as polariza- ções sociais vão sendo transformadas.55 No entanto, estas estruturas possuem 54 Nestes termos, a questão sempre foi referente ao telos (e ao sujeito histórico mais apropriado para a sua concretização): a razão, a abundância material, a democracia ou, nos termos da Guerra Fria, saber qual era efetivamente o “último estágio”: o capitalismo (deturpado pelas ameaças totalitárias - primeiro o nazismo e depois o comunismo) ou o socialismo real (que não realizava suas potencialidades por conta do cerco capitalista). 55 Aqui há mais uma inovação: o conflito social é a força transformadora por excelência. Sem- pre que uma classe dominante afirma seus valores, sua visão de mundo e cristaliza seus meca- nismos de dominação, ela acaba por gerar, como fruto do seu próprio movimento, a possibili- dade das classes subalternas também definirem uma visão de mundo própria. Portanto, ainda permanece decisiva a distinção entre “classe em si” e “classe para si”, estabelecida por Georg Lukács e sutilmente incorporada por Wallerstein. O BRASIL E O CAPITALISMO HISTÓRICO 70 uma certa duração: a expressão disto é, exatamente, o modo de produção (da vida), que reúne as condições legadas pelas civilizações passadas (decom- postas pela luta de classes), as quais se materializam em novas configurações sociais: estruturas familiares, costumes, normas, técnica etc. Estes elementos se articulam dinamicamente às condições geográficas (o homem é, em parte, moldado pela natureza que o cerca, mas também é capaz de transformá-la. É exatamente esta capacidade que o diferencia dos demais animais).56 De forma sintética: um modo de produção incide sobre a plenitude da vida social, mas, ao mesmo tempo, é redutível a um nexo dominante. Descobrir este nexo é a tarefa fundamental: ele se revela, essencialmente, no modo como as diversas esferas da existência se combinam. E é exatamente neste ponto que surge a compatibilidade entre o Materialismo Histórico e a Perspectivado Sistema- -Mundo. O fato é que a concepção ampliada de Modo de Produção jamais desapareceu do marxismo. No máximo, podemos dizer que ela foi eclipsa- da pela conversão do marxismo às estruturas burocráticas da Universidade Moderna.57 O problema é que as mesmas forças que neutralizaram o 56 O modo como Wallerstein reconstrói a crise do feudalismo – i.é., mostrando como todas as esferas da existência se transformam - e como esta crise gesta as estruturas do capitalismo durante o longo século XVI é compatível com esta concepção ampliada de Modo de Produção (cf. WALLERSTEIN, 1974, cap. 1). Um trecho sintético ilustra isto: “A economia da Europa feudal passava nesse período [séculos XIV e XV] por uma crise interna profunda, que sacudia seus alicerces sociais. As classes dominantes destruíam umas às outras, em grande escala. O sistema da propriedade da terra, base da estrutura econômica, se desfazia, e a reorganização em curso apontava para uma distribuição muito mais igualitária. Os pequenos camponeses demonstravam grande eficiência como produtores. As estruturas políticas ficavam em geral mais fracas, e a preocupação com a luta fratricida entre os politicamente poderosos deixava pouco tempo para reprimir a força crescente das massas populares. O cimento ideológico do catolicismo estava sob grande pressão; movimentos igualitários nasciam no seio da própria Igreja. As coisas estavam de fato desmoronando” (WALLERSTEIN, 1995, p. 39). 57 Esta conversão teve duas raízes. A mais evidente é a tentativa de reduzir o marxismo a uma “teoria econômica” ou, alternativamente, reforçar o caráter “infraestrutural” da Economia. A segunda, em uma aparente reação à primeira, levou os marxistas de gabinete – um produto da expansão do sistema universitário na era de Bretton Woods – a se refugiarem no plano da cultura (com uma ênfase inicial – e muito frutífera - na crítica literária britânica, mas que, infelizmente, logo desandou em vulgatas), usando táticas de guerrilha – crescentemente pernósticas - contra o arrivismo das classes médias “aburguesadas”, que, em sua maioria, esses mesmos intelectuais fazem parte. Foi exatamente a combinação destas duas tendências que gerou a crítica de Wallerstein ao “marxismo”. 71 A PERSPECTIVA DOS SISTEMAS-MUNDO potencial antissistêmico do marxismo estão atuando sobre a perspectiva do sistema-mundo. Logo, se não sucumbir ao formalismo excêntrico da teoria da complexidade, ou a qualquer outro modismo “sistêmico”, esta perspecti- va pode estabelecer uma relação simbiótica com o Materialismo Histórico e todas as formas genuinamente progressistas do pensamento, recolocando deste modo a História – e a luta social - no centro do debate sobre o futuro de nossa sociedade. Referências ABU-LUGHOD, Janet. Before European Hegemony: the world system A. D. 1250-1350. Oxford: Oxford U. Press, 1989. AMIN, Samir “The Ancient World-Systems versus the Modern Capitalist World-System”. Review XIV, n.3, 1991. ARRIGHI, Giovanni. Adam Smith em Pequim. São Paulo: Boitempo, 2008. ________ “Capitalism and the Modern World-System: rethinking the non- debates of the 1970’s”. Review XXI, n. 1, 1998. ________ O Longo Século XX: Dinheiro, poder e as origens do nosso tem- po. Trad. port. São Paulo: Unesp, 1996. BAKUNIN, Mikhail. Escritos contra Marx. São Paulo: Imaginário, 2001. BENDIX, Reinhard. “The Comparative Anaysis of Historical Change”. In: ARGYLE, Michael et al. (orgs.). Social Theory and Ecomomic Change. Londres: Tavistock Publications, 1967. BERGESEN, Albert. “The Emerging Science of the World-System”. Interna- tional Social Science Journal, n. 34, 1982. BIRKEN, L. “Chaos theory and ‘Western Civilization’”. Review XXII, n. 1, 1999. BRAUDEL, Fernand. Civilização Material, Economia e Capitalismo. Sé- culos XV-XVIII. São Paulo: Martins Fontes, 1997. v. 3. C.G.R.C.S. Para Abrir as Ciências Sociais. São Paulo: Cortez, 1996 O BRASIL E O CAPITALISMO HISTÓRICO 72 CHASE-DUNN, Christopher. “The Comparative Study of World-Systems”. Review XV, n. 3, 1992. CHRISTIAN, David. Maps of Time: an introduction to big history. Berke- ley: University of California Press, 2005. COX, Robert. Approaches to World Order. Cambridge: Cambridge U. Press, 1996. CLAUDIN, Fernando. Marx, Engels y La Revolucion de 1848. Madri: Siglo Veintiuno, 1976. EKELAND, Ivar. “What is Chaos Theory?”. Review XXI, n. 2, 1998. EMMANUEL, Arghiri. Unequal Exchange: A Study of Imperialism of Trade. Nova York: Monthly Review Press, 1972 [ed. Original: 1969]. FRANK, Andre Gunder. “A Theoretical Introduction to 5000 Years of World System History”. Review XIII, n. 2, 1990. ______ Reorient: global economy in the Asian Age. Los Angeles: Univ. of California Press, 1998. FRANK, Andre; GILLS, Barry K. “World System Cycles, Crises, and Hegemonical Shifts” Review XV, n. 4, 1992. GRANGER, Gilles-Gaston. A Ciência e as Ciências. São Paulo: Unesp, 1994. HOBSBAWM, Eric J. Nações e Nacionalismo desde 1780: programa, mito e realidade. 2 ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1990. HOLLOWAY, John. Mudar o Mundo Sem Tomar o Poder: o significado da revolução hoje. São Paulo: Viramundo, 2003. ______ A Era das Revoluções: Europa 1789-1848. 12 ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2000. LEITE JUNIOR, Pedro. O Problema dos universais: A perspectiva de Boécio, Abelardo e Ockham. Porto Alegre: EDIPUCS, 2001. MANDEL, Ernest “The International Debate on Long Waves of Capitalist Development: an Intermediary balance sheet”. In: FREEMAN, Christopher (ed.). Long Wave Theory. Cheltenham: Elgar Publishing Co., 1996. 73 A PERSPECTIVA DOS SISTEMAS-MUNDO MARIUTTI, Eduardo B. Balanço do Debate: a transição do feudalismo ao capitalismo. São Paulo: Hucitec, 2004. ______ Colonialismo, Imperialismo e o Desenvolvimento Econômico Europeu. São Paulo: Hucitec, 2008. MODELSKI, George; POZNANSKI, Kazimierz . “Evolutionary Paradigms in the Social Sciences”. International Studies Quarterly, v. 40, n. 3, 1996. MOORE, Wilbert E. “Global Sociology: the world as a singular system”. American Journal of Sociology, v. 71, n. 5, 1966. NOVAIS, Fernando A. Aproximações: estudos de História e Historiografia. São Paulo: CosacNayfi, 2005. NOVAIS, Fernando; FORASTIERI DA SILVA, Rogério (orgs.). Nova Histó- ria em Perspectiva. São Paulo: Cosacnaify, 2011. PRIGOGINE, Ilya. “The Laws of Caos”. Review XIX, n. 1, 1996. ______ As Leis do Caos. São Paulo: Unesp, 2002. RODRIGUES, Enrique Estrada. “Lévi-Strauss, Braudel e o Tempo dos Histo- riadores”. Revista Brasileira de História, v. 29, n. 57, 2009. SANTOS, Boaventura de Sousa. “A Discourse on the Sciences”. Review, v. XV, n. 1, 1992. WALLERSTEIN, Immanuel. The Modern World-System: Capitalist Agriculture and the Origins of the European World-Economy in the Sixteenth Century. Nova York & Londres: Academic Press, 1974. ______ The Capitalist World-Economy. Cambridge: Cambridge U. Press, 1979. ______ “Typology of Crises in the World-System”, Review XI, n. 4, 1988. ______ “A Cultura como Campo de Batalha Ideológico do Sistema Mundial Moderno”. In: FEATHERSTONE, Mike (org.). Cultura Global: nacionalis- mo, Globalização e Modernidade. Petrópolis: Vozes, 1990. ______ Unthinking social science: the limits of nineteenth century para- digms. Cambridge, Mass.: Polity Press, 1991. O BRASIL E O CAPITALISMO HISTÓRICO 74 ______ “The West, Capitalism, and the modern world-system”. Review XV, n. 4, 1992a. ______ “The Challenge of maturity: whither social science”. Review XV, n.1, 1992b. ______ Utopistics – or historical choices of the Twenty-first century. Nova York: New Press, 1998a. _______ “The Rise and Future Demise of World-Systems Analysis”. Review XXI, n. 1, 1998b. _______ Capitalismo Histórico & Civilização Capitalista. Trad. Rio de Ja- neiro: Contraponto, 2001. ______ Após o Liberalismo: em busca da reconstrução do mundo Petrópo- lis: Vozes, 2002. ______ World-System Analysis: an introduction. Durham & Londres: Duke U. Press, 2007a. ______ O Universalismo Europeu:a retórica do poder. São Paulo: Boitem- po, 2007b. ______ The Modern World-System IV – Centrist Liberalism Triumphant, 1789-1914. Berkeley, Los Angeles & Londres: University of California Press, 2011. WALTZ, Kenneth. Teoria das Relações Internacionais. Lisboa: Gradiva, 2002. WOLF, Eric. Europe and the Peole Without History. Berkeley & Los Angeles: University of California Press, 2010. S E Ç Ã O 2 O CAPITALISMO CONTEMPORÂNEO 77 O fim do longo século XX BEVERLY SILVER GIOVANNI ARRIGHI58 Escrevendo há quase vinte anos – logo após o colapso da União Soviética – o historiador britânico Eric Hobsbawm se referiu a uma ampla sensação de confusão em relação ao caminho que o mundo estava toman- do: ele escreveu que parecia que estávamos “rodeados por um nevoeiro glo- bal”. No final do século vinte, os cidadãos do mundo “sabiam com certeza que uma era da história tinha acabado. Eles sabiam pouco mais do que isso” (HOBSBAWM, 1995, p. 558-59). Duas décadas depois que isto foi escrito, a nova era continuou a tomar forma, mas o nevoeiro global não desapareceu. As interpretações sobre a direção da mudança global foram altera- das freneticamente. No final dos anos 90, com um extenso crescimento econômico nos Estados Unidos e sem sérios desafiantes ao seu poder militar 58 Beverly Silver é Doutora em Sociologia pela State University of New York - Binghamton e Professora do Departamento de Sociologia da Johns Hopkins University. Giovanni Arrighi (1937-2009) é Doutor em Economia pela Universidade Bocconi (Itália) e Professor do Departamento de Sociologia da Johns Hopkins University. C A P Í T U L O 3 O BRASIL E O CAPITALISMO HISTÓRICO 78 global, tornou-se comum ouvir previsões sobre um iminente “Segundo Sé- culo Americano”. Tais previsões alcançaram um ponto alto após a crise fi- nanceira do Leste Asiático, de 1997. Porém, a mesa virou. Primeiro, com a explosão da bolha do mercado de ações da Nova Economia nos Estados Unidos, em 2000 e 2001, seguida pela derrocada no Iraque e o fracasso do projeto da administração Bush para um Novo Século Americano. Com a cri- se financeira instalada nos Estados Unidos, em 2008, e o rápido crescimento da China, as discussões sobre o Segundo Século Americano se desvanece- ram. Em lugar disso, especulações sobre um iminente Século Chinês inicia- ram. Ao mesmo tempo, a especulação sobre a extinção do domínio global americano alcançou níveis que não eram vistos desde a década dos anos 70, quando a derrota dos Estados Unidos no Vietnã, os choques do petróleo e a estagflação econômica produziram uma percepção de crise profunda. Como podemos dar sentido a essa frenética alteração de percepções sobre a era da história do mundo em que estamos entrando? Neste capítulo, argumentamos que uma comparação com períodos passados que são ampla- mente análogos ao presente pode ajudar a explicar a mudança de percepções e a dissipar o nevoeiro global que ainda nos rodeia59. Mas, com que período poderíamos comparar o presente? Tornou-se relativamente comum indicar semelhanças entre o início e o final do século vinte. Em ambos os períodos, o capital financeiro chegou a uma posição dominante na economia global em relação ao capital investido na produção. Nos dois períodos, além do mais, a financeirização das atividades econômicas mostrou-se desestabilizadora, cul- minando em grandes crises, especialmente em 1929 e 2008. Esses dois períodos de financeirização são certamente análogos. Po- rém, a ascensão das finanças a um papel dominante no capitalismo mundial não aconteceu somente nos finais dos séculos dezenove e vinte. Como o his- toriador francês Fernand Braudel já havia mencionado, a financeirização do 59 Neste capítulo apresentamos um resumo de alguns dos mais importantes resultados de nossas pesquisas prévias. Aqui preferimos omitir desde citações extensas até a riqueza do material teórico e histórico em que foram construídas nossas análises anteriores. Para uma versão completa dos argumentos apresentados neste capítulo (incluindo referências bibliográficas extensas) ver Arrighi (1996; 2008); Arrighi; Silver (2001a; 2001b); Silver; Arrighi (2003); Silver (2005). 79 O FIM DO LONGO SÉCULO XX capital tem sido uma característica recorrente do capitalismo histórico desde sua origem. Ao escrever na década de 1970 (isto é, antes do início da últi- ma fase de financeirização), Braudel identificou três períodos de expansão financeira sistêmica: em meados do século dezesseis (centrada nas cidades- estado italianas), em meados do século dezoito (centrada na Holanda) e no final do século dezenove (centrada no Reino Unido) (BRAUDEL, 1997). Neste capítulo, tomamos esses três casos de expansão financeira como as comparações históricas apropriadas para compreender o atual (quarto) pe- ríodo de expansão financeira sistêmica. Como hoje, cada um desses períodos passados de financeirização foi precedido por um longo período de expansão material da economia glo- bal, ou seja, um período em que o capital fluiu predominantemente para o comércio e a produção, em vez de para a especulação e a intermediação financeira. Gênova, Holanda, Reino Unido e os Estados Unidos alcançaram sucessivamente a preeminência global assumindo a liderança numa grande expansão material da economia global (como foi o caso, por exemplo, da época dourada do fordismo e keynesianismo liderada pelos Estados Unidos nas décadas de 1950 e 60). Em certo ponto, essas expansões materiais alcan- çaram seus limites (por motivos que serão discutidos mais tarde) e, quando isso aconteceu, o poder dominante da época conduziu uma transferência do investimento em comércio e produção para a intermediação e a especulação financeira em todo o sistema. Uma fase de expansão material seguida por uma fase de expan- são financeira constitui o que nós chamamos de século longo ou ciclo sis- têmico de acumulação (CSA). Podemos identificar quatro séculos lon- gos ou CSAs parcialmente superpostos: (1) um ciclo genovês-ibérico, que vai desde o século quinze até o início do século dezessete; (2) um ciclo holandês, que se estende desde finais do século dezesseis até finais do século dezoito; (3) um ciclo britânico, que vai desde a metade do século dezoito até o início do século vinte; e (4) um ciclo norte-americano, que vai desde finais do século dezenove até o presente. Cada ciclo é denominado de acordo com o (e definido pelo) complexo particular de agentes econômicos e governa- mentais que conduziram o sistema capitalista mundial na direção de expan- sões materiais e financeiras que juntas constituem o século longo. O BRASIL E O CAPITALISMO HISTÓRICO 80 Nos três casos discutidos por Braudel, as expansões financeiras le- varam a um dramático ressurgimento do poder e da prosperidade do país capitalista líder naquele momento (ex. uma segunda época dourada para os holandeses; a Belle Époque Vitoriana dos britânicos). Contudo, em cada um dos casos, o ressurgimento da prosperidade e poder mundial foram de curta duração. Para Braudel, as sucessivas mudanças de capitalistas genoveses, ho- landeses e britânicos para longe do comércio e da indústria, e em direção às fi- nanças, significaram para cada um deles que a expansão material tinha chega- do à sua “maturidade”, era um “sinal de outono”. A financeirização mostrou-se como prelúdio de uma crise terminal da hegemonia mundial e o surgimento de um novo centro geográfico de poder militar e econômico mundial. Será que o mesmo padrão está se repetindo atualmente? Estamos ex- perimentando o “outono” da hegemonia mundial americana? Neste capítulo, argumentamos que a crise financeira de 2008 é um dos últimos indicadores de que isso está realmente acontecendo. Da mesma maneira que seus anteces- sores genoveses, holandeses e britânicos, o capital americano mudou de for- ma crescente para o setor financeiro e para longe do comércio e da produção, na medida em que a maior expansão material em escala mundial, criada pelo fordismo-keynesianismo,alcançou seu limite na década dos anos oitenta. Ao mudar o foco para a área financeira, os Estados Unidos foram bem-sucedi- dos em atrair capitais de todas as partes do mundo, financiando, assim, uma enorme expansão do mercado de ações e de suas forças armadas. A União Soviética colapsou perante tamanha pressão, enquanto os Estados Unidos experimentaram sua própria belle époque nos anos de Reagan-Clinton. Ao final dos anos noventa, a crise dos anos setenta parecia ser parte de uma memória distante e as previsões de um Segundo Século Americano se tor- naram comuns. Contudo, da perspectiva deste capítulo, aqueles que previram um imi- nente Segundo Século Americano estavam confundindo esse “outono” da hegemonia mundial americana com uma “nova primavera”. Em outras pala- vras, estamos testemunhando o final do longo século vinte, um século longo que foi desde a expansão financeira do final do século dezenove até a ex- pansão financeira atual. Um século longo que é coextensivo ao surgimento, 81 O FIM DO LONGO SÉCULO XX florescimento pleno e declínio da era da história capitalista mundial centra- da nos Estados Unidos. Este capítulo também aborda a questão de se o “ou- tono” do poder militar e econômico mundial americano pode ser visto (em retrospectiva) como a “primavera” de um novo poder militar e econômico mundial, como já tinha acontecido nas três expansões financeiras prévias. No restante deste capítulo, comparamos o período presente de finan- ceirização com os períodos prévios, e comparamos o longo século vinte com séculos longos anteriores. Fazemos isto em três etapas principais. Na seção seguinte, identificamos as semelhanças entre os três períodos prévios de fi- nanceirização, indicando os padrões de recorrência ao longo do tempo. Na seção posterior, enfocamos os padrões de evolução. Isso porque os séculos longos não devem ser entendidos como fenômenos primariamente recor- rentes (cíclicos). Em lugar disso, as expansões financeiras que marcaram o início e o fim de cada século longo foram períodos de reorganização funda- mental do sistema mundial. Mostramos de que forma essas reorganizações sucessivas produziram um padrão evolucionário em que o complexo empre- sarial-governamental dominante aumentou através do tempo em tamanho, poder e complexidade, incluindo a complexidade social. Os padrões de recorrência e evolução resumidos nas duas seções a seguir ajudam a estreitar o leque de futuros alternativos possíveis que se abrem para nós neste momento. Porém, como afirmamos na última seção do capítulo, existem boas razões para pensar que não podemos simplesmente projetar o futuro a partir dos padrões de recorrência e evolução do passado. A última parte do capítulo identifica anomalias significativas que poderiam fazer com que resultados futuros se desviem dos padrões passados, e conclui com uma discussão sobre “futuros possíveis”. Recorrência Um tema repetido no segundo e terceiro volumes da trilogia “Civiliza- ção Material, Economia e Capitalismo” de Fernand Braudel, a qual nos leva em um extenso passeio desde o século quinze até o século dezoito, é que o res- surgimento periódico das finanças tem sido uma característica do capitalismo O BRASIL E O CAPITALISMO HISTÓRICO 82 histórico desde seus primórdios. “O capital financeiro”, escreveu Braudel, “não era criança recém-nascida nos anos 1900”. Em lugar disso, ele menciona que houve pelo menos duas ondas anteriores de expansão financeira. Foram perí- odos em que “o capital financeiro estava [...] em posição de assumir o contro- le e dominar, pelo menos por um tempo, todas as atividades no mundo dos negócios”. A primeira onda de financeirização começou por volta de 1560, quando os principais grupos da diáspora de negócios genovesa se retiraram gradualmente do comércio para especializar-se nas finanças; a segunda onda começou por volta de 1740, quando os holandeses começaram a retirar-se do comércio para tornarem-se “os banqueiros da Europa” (BRAUDEL, 1997, v. 3, p. 157; 164; 242-3; 246; 604). Vistas desta perspectiva, as expansões financeiras que começaram nos finais dos séculos dezenove e vinte são a terceira e quarta onda de um pro- cesso sistêmico-mundial recorrente. Durante e depois da Grande Depressão de 1873-1896, quando ficou claro que “a viagem fantástica da revolução in- dustrial” tinha criado uma superabundância de capital monetário que não poderia ser totalmente reinvestido com lucro nas atividades industriais, os ingleses se retiraram cada vez mais da indústria para se especializar nas fi- nanças. Na época em que Braudel estava escrevendo sua trilogia, a quarta (que é a atual) onda de financeirização ainda não havia começado, mas hoje, podemos reconhecer a repetição do mesmo fenômeno: isto é, quando nas últimas décadas do século vinte ficou claro que a era dourada do fordismo- keynesianismo tinha criado uma superabundância de capital em dinheiro que não poderia ser totalmente reinvestido com lucro nas atividades indus- triais, o capital americano mudou o foco da produção industrial para as fi- nanças. Em meados da década de noventa, a parte do total dos lucros corpo- rativos dos Estados Unidos que, em escala mundial, correspondia a finanças, seguros e bens imóveis (FIRE, em inglês) havia superado a parte correspon- dente aos lucros da indústria (KRIPNER, 2005, p. 173-208). É útil reformular as ideias de Braudel sobre o ressurgimento periódico do capital financeiro à luz da fórmula geral do capital de Karl Marx (1959), que com frequência é entendida como descrevendo a lógica das decisões de 83 O FIM DO LONGO SÉCULO XX investimento por parte dos capitalistas individuais60. Os capitalistas transfor- mam seu dinheiro em bens (ex.: máquinas, trabalho) com a expectativa de obter uma quantidade maior de capital em dinheiro em algum ponto futuro no tempo. Eles não participam da produção como um fim em si mesmo. Se os capitalistas não acreditam que seus capitais em dinheiro aumentarão ao investir na produção ou se esta expectativa não se realiza sistematicamente, então, eles tenderão a sair da produção e mudar para formas mais flexíveis (líquidas) de investimento. Porém, a formulação de Marx também pode ser entendida como a descrição de uma lógica sistêmica. Existem fases em que a tendência domi- nante entre os capitalistas é investir seu capital monetário em produção e co- mércio, conduzindo, assim, às diferentes fases de expansão material global. Contudo, o próprio sucesso de qualquer expansão material acaba levando a uma superacumulação de capital. Isto reduz a taxa de retorno das atividades que previamente tinham alimentado a expansão material. O aperto nos lu- cros resulta em uma mudança: a tendência dominante entre os capitalistas passa a ser a conservação de uma parte cada vez maior de seus capitais na forma líquida, criando as “condições de oferta” para expansões financeiras do sistema como um todo. Portanto, as expansões financeiras são sintomá- ticas de uma situação em que o investimento na expansão do comércio e produção já não serve ao propósito de aumentar o fluxo de caixa da classe capitalista de forma tão efetiva como as transações puramente financeiras. Como já mencionado, as expansões financeiras passadas restauraram temporariamente o poder e as fortunas dos estados capitalistas líderes de cada época (o que foi visto mais recentemente na belle époque da era Reagan- Clinton). Como isto aconteceu? Em termos muito amplos, a desaceleração da expansão material associada com o início da expansão financeira provo- cou um aperto nas posições fiscais dos estados, que por sua vez começaram 60 A fórmula geral do capital de Marx é MCM’, onde M é capital em dinheiro investido em C (mercadorias, incluindo trabalho, maquinaria e matéria-prima), e M’ é capital em dinheiro acumulado pelo capitalista depois que os bens produzidos são vendidos. Se M’ for maior do que M, então o capitalista teve lucro. Se M’ for consistentemente menor do que M, entãonão haverá lucro, nem incentivo para que os capitalistas invistam na produção, seja como indiví- duos ou como classe (MARX, 1959). O BRASIL E O CAPITALISMO HISTÓRICO 84 a competir mais intensamente pelo capital circulante que se acumulava nos mercados financeiros, alimentando o “lado da demanda” da equação da ex- pansão financeira. O poder hegemônico mundial dos diferentes momentos (holandeses, britânicos e americanos), devido à sua contínua centralidade nas redes das altas finanças, está mais bem posicionado para transformar a inten- sificação da concorrência pelo capital circulante em vantagem para si e para ter acesso privilegiado à liquidez superabundante que se acumula nos mercados financeiros mundiais. Isto ficou claro nos anos oitenta e noventa, quando os Estados Unidos foram bem-sucedidos em atrair capital circulante do mundo inteiro, alimentando um longo boom no país e provocando severas crises de endividamento em outros lugares do mundo. A primeira grande crise de dívi- da aconteceu na América Latina no início da década de oitenta, produzindo o que as Nações Unidas apelidaram de “a década perdida do desenvolvimento”. Seguiram depois as crises do Leste Europeu e do Leste Asiático. No passado, uma nova expansão material do sistema aconteceu ape- nas quando havia um poder hegemônico capaz de criar as precondições ins- titucionais globais necessárias (financeiras, geopolíticas e sociais). Quando isto aconteceu, como nas décadas de cinquenta e sessenta, em que as insti- tuições globais patrocinadas pelos Estados Unidos ofereciam certo grau de segurança e previsibilidade, os capitalistas rotineiramente aplicavam seus lucros de volta para continuar expandindo o comércio e a produção. Porém, tais condições institucionais globais não são criadas rápida ou facilmente. No passado, as potências em declínio perdiam suas habilidades para manter as condições institucionais globais necessárias antes que as potências ascen- dentes tivessem capacidade ou inclinação para assumir a função de líder. Assim, os períodos de transição de um século longo para outro foram, his- toricamente, períodos de crises econômicas e guerras generalizadas. Este foi claramente o caso da primeira metade do século vinte com a transição da hegemonia britânica para a hegemonia americana. Podemos ver sinais de um dilema semelhante sendo enfrentado pelo mundo hoje. É muito interessante que Marx, em sua discussão sobre acumulação primitiva, registrou um padrão histórico em que as expansões do sistema financeiro recorrentemente desempenhavam o papel central de transferir o 85 O FIM DO LONGO SÉCULO XX capital excedente dos centros geográficos em declínio para os centros do co- mércio e produção capitalista em ascensão. Marx observou uma sequência que começou em Veneza, que “na sua decadência” emprestou grandes quan- tidades de dinheiro para a Holanda, então, a Holanda emprestou “enormes quantidades de dinheiro, especialmente para sua grande rival Inglaterra” quando a primeira “deixou de ser a nação preponderante no comércio e na indústria” (MARX, 1959, p. 775-6). Finalmente, a Inglaterra estava fazendo o mesmo vis-à-vis os Estados Unidos nos dias de Marx. Portanto, as expansões do sistema de crédito tiveram uma importância crucial no recomeço da acu- mulação de capital em um novo centro geográfico seguidamente ao longo da existência do capitalismo histórico ou, para usar a nossa terminologia, as expansões financeiras tiveram uma importância crucial no surgimento de cada novo ciclo sistêmico de acumulação. Dito ainda de outra forma, as expansões financeiras foram histori- camente períodos de transição hegemônica e no decurso delas uma nova liderança emergiu intersticialmente, e, ao longo do tempo, reorganizou o sistema, estabelecendo o cenário para uma nova expansão material em es- cala mundial. As expansões financeiras não têm sido somente o “outono” da hegemonia existente, elas também têm marcado a “primavera” de uma nova grande fase do desenvolvimento capitalista sob uma nova liderança61. Em outras palavras, foi o início de um novo século longo com um centro geográ- fico diferente. Mas devido ao fato de que este processo não foi nem simples nem tranquilo, as expansões financeiras culminaram em períodos bastante longos de caos sistêmico generalizado. Evolução Na seção anterior enfocamos as semelhanças entre os séculos longos. Se fôssemos tirar conclusões baseadas somente nos padrões da recorrên- cia, então, poderíamos concluir que agora estamos no “final do outono” em 61 Podemos imaginar este processo como um conjunto de curvas-S sobrepostas. A sobreposi- ção indica o fato de que um novo ciclo sistêmico de acumulação emerge ao mesmo tempo em que o regime dominante está chegando a seus limites. O BRASIL E O CAPITALISMO HISTÓRICO 86 relação à hegemonia mundial estadunidense e no “início da primavera” de um século longo com centro geográfico diferente (talvez no Leste Asiático). Além disso, poderíamos estar preocupados com a possibilidade de estar- mos entrando (ou já termos entrado) em um período mais ou menos longo de caos sistêmico e de sofrimento humano contínuo e generalizado. Não obstante, precisamente porque o sistema global evoluiu através do tempo, estamos limitados em relação ao que podemos concluir sobre o presente ou futuro próximo se enfocarmos somente os padrões de recorrência. Nesta se- ção, enfocamos o padrão de evolução. A figura 1 resume um padrão histórico de evolução que pode ser visto através do enfoque nas características cambiantes dos containers de poder que abrigaram as sedes das agências capitalistas líderes (isto é, o complexo capital-Estado dominante) dos quatro sucessivos séculos longos: a República de Gênova, a República Holandesa, o Reino Unido e os Estados Unidos62. Um aspecto chave do padrão evolucionário mostrado na figura 1 é a tendên- cia no aumento do tamanho, poder e complexidade do complexo capital- Estado dominante de um século longo para outro. Na época da expansão material centrada em Gênova, a mencionada república era uma cidade-Estado. Era pequena em tamanho, simples em or- ganização, com uma profunda divisão social, muito indefesa militarmen- te e, conforme a maioria dos critérios, um estado fraco comparado com as demais grandes potências da época. A riqueza de Gênova fez dela um alvo tentador para a conquista, porém, devido à falta de um poder militar significativo, os genoveses dependiam da proteção dos monarcas ibéricos, dos quais eles “compravam” proteção. Em contraste, a República Holandesa era uma organização muito maior e mais complexa do que a República de Gênova. Na época da expansão material centrada na Holanda, ela tinha po- der suficiente para ganhar a independência da Espanha imperial, para criar um império altamente lucrativo de postos comerciais no exterior e para manter sob controle as ameaças militares da Inglaterra e da França. Por isso, 62 Para uma análise histórica detalhada dos padrões evolucionários resumidos nesta seção, ver Arrighi (1996); Arrighi; Silver (2001a). 87 O FIM DO LONGO SÉCULO XX diferentemente dos genoveses, os holandeses não tinham que comprar pro- teção de outros estados, eles “produziam” sua própria proteção. Em outras palavras, os holandeses “internalizaram” os custos de proteção que os geno- veses tinham externalizado, como é mostrado na figura 1. Organização governamental líder Tipo de regime/ciclo Custos internalizados Extensivo Intensivo Proteção Produção Transação Reprodução Estado-Mundo Sim Sim Sim Britânico Sim Sim Não Não Estado-Nação Holandês Sim Não Não Não Genovês Não Não Não Não Cidade-Estado Figura 1: Padrões evolucionários do capitalismo mundial Na época da expansão material centrada na Grã-Bretanha, o Reino Unido era um estado nacional plenamente desenvolvido, com um império territorial e comercial de abrangência mundial que deu para sua classe capi- talista e grupos dominantes um comando sem precedentes sobre os recursosnaturais e humanos do mundo. Como os holandeses, a classe capitalista in- glesa não precisava de ajuda das potências estrangeiras para proteger-se (isto é, ambos haviam internalizado seus custos de proteção). Contudo, como “oficina do mundo”, a Grã-Bretanha não precisava de outros para obter as manufaturas sobre as quais se assentava a lucratividade de suas atividades comerciais. Os Ingleses foram além dos holandeses ao internalizarem os cus- tos de produção. Finalmente, os Estados Unidos eram um complexo militar-industrial continental com poder para garantir proteção efetiva para si mesmo e seus aliados, assim como fazer sérias ameaças de estrangulação econômica ou Norte- Americano Não O BRASIL E O CAPITALISMO HISTÓRICO 88 aniquilação militar contra seus inimigos. Esse poder, combinado com o ta- manho, a insularidade e a riqueza natural do país, permitiu que sua classe ca- pitalista internalizasse os custos de proteção e produção, como já tinha sido feito pela classe capitalista britânica. Porém, eles foram pioneiros na formação das corporações multinacionais integradas verticalmente; a classe capitalista americana também foi capaz de internalizar os “custos de transação”, ou seja, internalizar os mercados dos quais dependia a autoexpansão de seu capital. Se fôssemos tirar conclusões baseadas nos padrões da evolução discu- tidos até agora, então, poderíamos predizer que a organização capital-Estado que lideraria qualquer ciclo sistêmico de acumulação futuro seria necessa- riamente de tamanho e complexidade maiores do que os dos Estados Uni- dos. Não é plausível que qualquer dado país consiga preencher esses requisi- tos. Por exemplo, a China é muito maior, mas também muito mais pobre do que os Estados Unidos, apesar de décadas de rápido crescimento econômico. Assim, a evolução futura delineada na figura 1 é um movimento em direção a algum tipo de “Estado-mundo”. Contudo, a clara tendência linear em relação a maior tamanho e com- plexidade é parcialmente moderada por outro padrão histórico, que está resu- mido na figura 1 como um tipo de pêndulo que vai e volta entre regimes de acumulação “intensivos” e “extensivos”. As companhias comerciais Holande- sas, tal como a Companhia das Índias Orientais (VOC), eram organizações formalmente mais complexas que as redes familiares de negócios da diáspora capitalista genovesa. Porém, as empresas familiares nas quais floresceu a in- dústria têxtil britânica eram formalmente menos complexas do que as compa- nhias comerciais holandesas. Além do mais, o sucesso do capital britânico em escala mundial dependeu da recriação, em formas novas e mais complexas, da combinação de estratégias e estruturas do capitalismo cosmopolita genovês e do territorialismo global ibérico. Do mesmo modo, as corporações multina- cionais estadunidenses eram formalmente mais complexas que as empresas familiares britânicas, embora o sucesso do capital estadunidense em escala mundial tenha dependido da recriação em formas novas e mais complexas das estratégias e estruturas do capitalismo corporativo holandês. Quais são as implicações para o presente desse movimento pendular entre regimes “extensivos” (cosmopolita-imperiais) e regimes “intensivos” 89 O FIM DO LONGO SÉCULO XX (corporativo-nacionais) sobrepostos a uma tendência linear de complexi- dade crescente? Se o padrão fosse mantido no futuro, então, poderíamos esperar que as estratégias e estruturas do complexo capital-Estado líder do próximo século longo serão “extensivas” em comparação com o regime norte-americano “intensivo”. Contudo, elas terão uma maior complexidade formal do que as que predominaram na expansão material sistêmica centrada na Inglaterra no século dezenove. Por enquanto, somente vamos mencionar que os sistemas de subcontratação em múltiplos níveis e outras formas flexí- veis de produção associadas ao pós-fordismo (as quais foram, não por acaso, amplamente originadas no Leste Asiático) podem ser vistos como sinais de um movimento pendular na direção “extensiva”63. Apesar desse movimento pendular, ainda é clara a tendência linear de complexidade crescente. Os problemas com a projeção desta tendência linear para o futuro aparecem mais claramente quando levamos em conta a atual divisão no controle dos recursos financeiros e militares globais, sendo que o primeiro está concentrado no Leste Asiático e o último está concentrado nos Estados Unidos. Esta divisão é um fenômeno sem precedentes e cujas implicações discutiremos na próxima seção. Anomalias Uma importante anomalia da presente transição é a bifurcação sem precedentes na localização geográfica dos poderes financeiro e militar. As corporações multinacionais estadunidenses têm investido maciçamente na China, repetindo o padrão histórico observado por Marx em que os centros em declínio transferem capital excedente para os centros em ascensão. Con- tudo, em uma ruptura importante com padrões do passado, o fluxo líqui- do do capital excedente, desde o início da expansão financeira liderada pelos Estados Unidos, tem sido do centro econômico em ascensão para o centro eco- nômico em declínio, mais notoriamente na forma de compras maciças de bônus 63 Para saber mais sobre este ponto, ver Arrighi (1996); Arrighi; Silver (2001a, cap. 2 e conclusão). O BRASIL E O CAPITALISMO HISTÓRICO 90 do Tesouro Americano realizadas pelo Leste Asiático, primeiro pelo Japão e de- pois pela China. Da mesma forma que nas transições hegemônicas do passado, o hegemon em declínio (os Estados Unidos) se transformou de maior nação cre- dora em maior nação devedora. Essa transformação, no caso dos Estados Uni- dos, aconteceu em escala e velocidade sem precedentes (ver figura 2). Ainda assim, os recursos militares de relevância global estão concen- trados esmagadoramente nas mãos dos Estados Unidos. Não há sinais crí- veis de que os estados em ascensão econômica, incluindo a China, tenham a intenção de desafiar diretamente o poder militar dos Estados Unidos. Po- rém, ainda sem um desafio direto, os Estados Unidos não mais possuem os recursos financeiros necessários para dar suporte ao seu aparato militar no mundo (e agora conseguem fazer isso somente entrando numa dívida externa cada vez mais profunda). Além disso, como ficou claro no fracasso do projeto da administração Bush para um Novo Século Americano, a pro- jeção do poder militar não tem sido particularmente efetiva em submeter o mundo à vontade dos Estados Unidos nem no combate à escalada de crises políticas e sociais no nível do sistema. Figura 2: Saldo das transações correntes no balanço de pagamentos Fonte: Baseado em dados do Fundo Monetário Internacional, World Economic Outlook Database, 2010, http://www.imf.org/external/pubs/ft/weo/2010/01/weodata/index.aspx) 91 O FIM DO LONGO SÉCULO XX O cenário futuro sugerido pelo padrão histórico resumido na figura 1 em relação ao aparecimento de um Estado-mundo pressupõe que o mesmo teria acesso, de certa forma, ao capital excedente global que hoje em dia se encontra localizado no Sul Global, especialmente no Leste Asiático. A recen- te expansão das reuniões do G7 dos países mais ricos para incluir grandes países do Sul Global (por exemplo, os encontros do G20) significa mais ou menos o reconhecimento explícito deste pré-requisito e sugere, pelo menos, um reconhecimento parcial de que o projeto de um Estado-mundo domina- do pelo Norte e Ocidente do mundo (por exemplo, baseado primariamente em uma aliança entre os Estados Unidos e Europa Ocidental) já não é mais politicamente viável. Agora, o Ocidente encontra-se sem um dos dois mais importantes ingredientes de sua fortuna nos últimos 500 anos: o controle sobre o capital excedente. Esta é uma enorme anomalia em relação às transi- ções hegemônicas prévias, sendo que todas elas aconteceram no interior do Ocidente e do Norte Globais. A ascensão da China e os cenários alternativos futuros Se um Estado-mundo dominado pelo Ocidente parece pouco prová-vel, quais são as possibilidades da China se tornar o centro de uma nova expansão material do capitalismo em escala mundial no século XXI? Pri- meiro, é importante eliminar considerações irrelevantes deste debate. Após a crise financeira do Leste Asiático de 1997/1998, muitos observadores con- sideraram a ascensão do Leste Asiático uma miragem. Hoje, é comum ouvir previsões de uma iminente crise financeira na China, a qual revelaria que as avaliações feitas sobre a ascensão do país foram exageradas. A ocorrência de uma grande crise financeira na China é uma questão em aberto. Porém, qualquer crise que venha a acontecer seria de pouca relevância para se en- tender se o centro de acumulação de capital em nível mundial tem sido e continuará sendo a China. Como já mencionamos na conclusão de Caos e Governabilidade no Moderno Sistema Mundial, historicamente, as crises fi- nanceiras mais profundas foram experimentadas nos centros emergentes de O BRASIL E O CAPITALISMO HISTÓRICO 92 acumulação de capital em escala mundial (Londres em 1772 e Nova York em 1929), pois sua força financeira superava a sua capacidade institucional para gerenciar o crescente influxo de capital. Não teria sentido argumentar que a crise de Wall Street de 1929-31 e a Grande Depressão subsequente foram sinais de que o epicentro de acumulação de capital não estava se transferindo para os Estados Unidos na primeira metade do século vinte. Igualmente, não teria sentido aplicar o mesmo argumento para as crises financeiras do final do século vinte e início do século vinte e um no Leste Asiático. Porém, como já mencionamos, as expansões materiais sistêmicas an- teriores somente deslancharam quando a potência econômica em ascensão foi capaz de se tornar hegemônica, no sentido gramsciano da palavra. Isto é, conduzir o mundo à criação de arranjos institucionais globais (financeiros, geopolíticos e sociais) capazes de prover a segurança necessária para uma ex- pansão material ampla. Devido ao fato de que o sistema mundial evoluiu em aspectos importantes de um século longo para o seguinte, a natureza dessas instituições globais também mudou. Atualmente, da mesma forma que no passado, as barreiras para uma nova expansão material são tanto sociais como econômicas. Como já argu- mentamos em Caos e Governabilidade no Moderno Sistema Mundial, as su- cessivas hegemonias tiveram que achar maneiras de acomodar demandas de uma gama cada vez mais ampla e profunda de movimentos sociais. Assim, o padrão evolucionário de aumento de tamanho, escopo e complexidade, des- crito anteriormente, implica, também, aumento da complexidade social. A consolidação da hegemonia estadunidense após a Segunda Guerra Mundial (e o início da expansão material sistêmica) não dependeu somente da pre- ponderância dos poderes econômico e militar do país. Dependeu também da implementação de políticas formuladas para acomodar, ao menos em parte, os movimentos de liberação nacional, socialistas e trabalhistas em massa da primeira metade do século vinte. As soluções capitaneadas pelos Estados Unidos - o contrato social de consumo em massa para os trabalhadores do Norte Global, a descolonização e promessa de desenvolvimento para o Sul Global - foram apenas soluções temporárias, já que eram insustentáveis no contexto do capitalismo histórico. Isso porque implementar totalmente essas 93 O FIM DO LONGO SÉCULO XX soluções provocaria um encolhimento dos lucros devido a seus efeitos redis- tributivos substanciais. De fato, a crise inicial da hegemonia estadunidense do final dos anos sessenta aos anos setenta foi em grande medida um evento político-social, desencadeado por protestos sociais ao redor do mundo, à medida que mo- vimentos sociais do Primeiro e do Terceiro Mundos agiram para deman- dar o que, essencialmente, seria o cumprimento mais rápido das promessas sociais implícitas e explícitas da hegemonia estadunidense. Esta crise, que marcou o final da expansão material liderada pelos Estados Unidos, foi tanto um evento econômico quanto político-social. Mais precisamente, estes dois elementos da crise estavam entrelaçados. A expansão financeira do final do século vinte resolveu temporariamente essas crises entrelaçadas para os ca- pitalistas e o governo dos Estados Unidos, levando o país para a belle époque dos anos noventa. A financeirização (a retirada maciça de capitais do comér- cio e da produção em direção à intermediação e à especulação financeiras) teve um efeito debilitante nos movimentos sociais ao redor do mundo, mais notavelmente através do mecanismo da crise da dívida no Sul Global e das demissões em massa no coração do movimento trabalhista no Norte Global. Se todos os séculos longos anteriores pressupunham uma reorgani- zação política e social fundamental do sistema global (por exemplo: o fim do comércio de escravos no Atlântico sob a hegemonia britânica e o fim do colonialismo formal sob a hegemonia americana), o que o tipo de análise realizado neste capítulo sugere sobre o modelo de reorganizações funda- mentais que seriam requeridas atualmente? Primeiro, uma nova hegemonia mundial (fosse liderada por um único estado, uma coalizão de estados ou um estado-mundo) teria que acomodar e promover uma maior igualdade entre o Norte Global e o Sul Global devido ao poder financeiro deste últi- mo. Se a tendência linear de aumento da complexidade social continuar no futuro, então, essa equiparação entre Norte e Sul aconteceria, pelo menos em parte, através da incorporação de um conjunto mais profundo e amplo de movimentos sociais da base da hierarquia social (a ampla agitação social na China, nos centros urbanos e nas áreas rurais, desde o fim da década dos noventa e os esforços do governo chinês para responder a ela, podem O BRASIL E O CAPITALISMO HISTÓRICO 94 ser precursores de outro movimento em direção a uma maior complexidade social em escala mundial). Porém, o que isto significaria mais concretamente? Esta pergunta nos remete a um terceiro ponto, destacado na figura 1, mas que ainda não dis- cutimos. Todas as hegemonias mundiais anteriores foram baseadas na ex- ternalização dos custos de reprodução do trabalho e da natureza. Ou seja, a lucratividade em todas as expansões materiais passadas dependeu do tra- tamento da natureza como um insumo sem custo para a produção. Além disso, a lucratividade dependeu de pagar-se somente para uma pequena mi- noria dos trabalhadores do mundo o custo total (ou quase total) da repro- dução de sua força de trabalho. Ao invés disso, uma grande parcela destes custos de reprodução foi colocada sobre as famílias e comunidades envolvi- das em atividades não remuneradas (tais como a agricultura de subsistência ou o trabalho doméstico não remunerado aplicado no cuidado de crianças, doentes e idosos). A externalização dos custos de reprodução da natureza foi levada ao extremo no longo século vinte com o modelo de produção e consumo em massa associado ao American way of life, o qual é altamente intensivo em uso de recursos e em desperdício. Ademais, desenvolvimento para todos - ou seja, que todos pudessem alcançar o estilo de vida dos norte-americanos - era uma promessa explícita da hegemonia dos Estados Unidos (institucio- nalizada, entre outras formas, através do Programa de Desenvolvimento das Nações Unidas). Ficou claro, pela primeira vez, que esta promessa era “falsa” durante a crise dos anos setenta, sendo os choques no preço do petróleo um indicador particularmente relevante. Mahatma Ghandi já tinha reconhecido o problema em 1928: “O impe- rialismo econômico de uma única e minúscula ilha-nação (Inglaterra) está hoje mantendo o mundo acorrentado. Se uma nação inteira de 300 milhões (a população da Índia naquela época) se encaminhasse para uma exploração econômica similar, devoraria o mundo como se fossem gafanhotos” (apud GUHA, 2000, p. 22). O insight de Ghandi há mais de oitenta anos atrás per- manece fundamental ainda hoje: a ascensão do Ocidentefoi baseada em um modelo ecologicamente insustentável, o qual foi possível somente enquanto 95 O FIM DO LONGO SÉCULO XX a grande maioria da população mundial estivesse excluída desse mesmo ca- minho. Devido à mudança na distribuição geográfica do poder econômico em escala mundial discutida anteriormente, não é claro como o acesso a esse estilo de consumo poderá ser limitado somente a uma pequena percentagem do total da população mundial. Porém, qualquer tentativa séria de genera- lizar o estilo de vida estadunidense só pode conduzir a conflitos ecológicos, políticos e sociais que mais provavelmente formarão a base para um longo período de caos sistêmico do que para uma nova expansão material. O modelo de acumulação que dirigiu a expansão material do longo século vinte não pode prover a base para uma nova expansão material no século vinte e um. Qualquer nova expansão material em escala mundial pressupõe um modelo ecológico, geopolítico e social diferente não somente daquele do longo século vinte, mas também daqueles dos séculos longos an- teriores. Isto pressupõe um caminho alternativo ao uso intensivo de recur- sos que caracteriza o modelo ocidental de desenvolvimento capitalista: um modelo que absorva mais trabalhadores, que desperdice menos recursos, e que não esteja baseado na exclusão da vasta maioria da população mundial de seus benefícios64. Chegamos ao final do longo século vinte. Permanece em aberto a pergunta se vamos considerar razoável nos referirmos à conjuntura que finalmente aparecerá como outro “século longo” do capitalismo histórico ou se vamos perceber, em retrospectiva, que também chegamos ao final do capitalismo histórico. Enquanto isso, um longo e profundo período de caos sistêmico (análogo, mas não idêntico, ao caos sistêmico da primeira metade do século vinte) permanece como uma possibilidade histórica real. Embora o fim do longo século vinte seja inevitável, não há nada de inevi- tável em ele terminar catastroficamente. Evitar esta última possibilidade é a nossa urgente tarefa coletiva. 64 Para conhecer razões para pensar que a China pode ter capacidade de aproveitar o legado da era comunista e a herança da “revolução industriosa” da época imperial para formar um novo modelo híbrido, que constitua um caminho alternativo possível, ver Arrighi (2008). O BRASIL E O CAPITALISMO HISTÓRICO 96 Referências ARRIGHI, Giovanni. O Longo Século XX: Dinheiro, Poder e as Origens do Nosso Tempo. Rio de Janeiro: Contraponto; UNESP, 1996. _______. Adam Smith em Pequim. São Paulo: Boitempo, 2008. ARRIGHI, Giovanni; SILVER, Beverly. Caos e Governabilidade no Moder- no Sistema Mundial. Rio de Janeiro: Contraponto e UFRJ, 2001a. _______. “Capitalism and World (Dis)Order,” Review of International Studies, n. 27, 2001b. BRAUDEL, Fernand. Civilização Material, Economia e Capitalismo. Sé- culos XV-XVIII (3 Vol.) São Paulo: Martins Fontes, 1997. _______. Forças do Trabalho: movimentos de trabalhadores e globalização desde 1870. São Paulo: Boitempo, 2005. GUHA, Ramachandra. Environmentalism: A Global History. New York: Longman, 2000. p. 22. HOBSBAWM, Eric. The Age of Extremes: A History of the World 1914- 1991. New York: Pantheon, 1995. p. 558-59. KRIPNER, Greta R. “The Financialization of the American Economy” So- cio-Economic Review, n. 3, p. 173-208, 2005. MARX, Karl. Capital. V. 1;1867; repr. Moscow: Foreign Languages Publishing House, 1959. SILVER, Beverly; ARRIGHI, Giovanni. “Polanyi’s ‘Double Movement’: The Belle Époques of British and U.S. Hegemony Compared,” Politics and Society, v. 31, n. 2, p. 325-55, 2003. 97 Continuidades e transformações na evolução dos sistemas-mundo CHRISTOPHER CHASE-DUNN E ROY KWON65 Hall e Chase-Dunn (2006; consultar também CHASE-DUNN E HALL, 1997) modificaram os conceitos desenvolvidos pelos estudiosos do sistema-mundo moderno para construir uma perspectiva teórica que per- mitisse comparar o sistema moderno com sistemas-mundo regionais anteriores. Trata-se da perspectiva evolucionária e comparativa dos sis- temas-mundo. A ideia principal é que a evolução sociocultural só pode ser ex- plicada se considerarmos que as organizações políticas66 realizam interações 65 Christopher Chase-Dunn é Doutor em Sociologia pela Stanford University. Roy Kwon é Doutor em Sociologia pela University of California - Riverside. Ambos são pesquisadores do Institute for Research on World-Systems da University of California - Riverside. Os autores agradecem a Kirk Lawrence e Thomas D. Hall pela ajuda com este artigo, que resultou de pesquisa financiada pela National Science Foundation dos Estados Unidos. 66 Neste capítulo, o termo “organização política” aparece como tradução para o português do termo inglês polity, o qual se refere genericamente a organizações, governos ou sistemas políticos (sendo o Estado nacional um tipo de polity). C A P Í T U L O 4 O BRASIL E O CAPITALISMO HISTÓRICO 98 importantes entre si desde a Idade Paleolítica. Hall e Chase-Dunn pro- põem um modelo geral das causas contínuas da evolução da tecnologia e da hierarquia dentro das organizações políticas e em sistemas interliga- dos de organizações políticas (sistemas-mundo). Este é o chamado modelo de reiteração, que é impulsionado por pressões populacionais que intera- gem com a degradação ambiental e conflitos entre as organizações políti- cas. Este modelo de reiteração descreve forças causais básicas que estavam em operação na Idade da Pedra e que continuam a operar no sistema global contemporâneo (ver também CHASE-DUNN E HALL, 1997, Capítulo 6; FLETCHER et al., 2011). Estas são as continuidades. A ideia mais importante que advém desta perspectiva teórica é que as mudanças transformacionais nas instituições, estruturas sociais e lógicas de desenvolvimento são causadas principalmente pelas ações de indivíduos e organizações dentro de comunidades políticas que são semiperiféricas em relação a outras organizações políticas no mesmo sistema. Esta ideia é co- nhecida como a hipótese de desenvolvimento semiperiférico. À medida que os sistemas-mundos regionais se tornaram espacialmen- te maiores e as organizações políticas que se inserem nesses sistemas cresce- ram e se tornaram mais hierárquicas internamente, as relações entre as or- ganizações políticas também passaram a ser mais hierárquicas, porque foram criados novos meios de extração de recursos de povos distantes. Assim, hie- rarquias centro/periferia emergiram de sistemas entre as organizações políti- cas que foram baseados em trocas de maior igualdade. A semiperifericidade é a posição de algumas das organizações políticas em uma hierarquia centro/ periferia. Algumas das organizações políticas que estão localizadas em posi- ções semiperiféricas tornaram-se os agentes que formaram soberanias, esta- dos e impérios maiores por meio de conquistas (organizações políticas semi- periféricas que defendiam suas fronteiras), e alguns dos estados especializados no comércio entre os impérios tributários desenvolveram a produção para fins de troca nas regiões em que operavam. Assim, tanto a escala espacial e de- mográfica da organização política quanto a escala espacial das redes comer- ciais foram ampliadas por organizações políticas semiperiféricas, o que acabou resultando no sistema global em que vivemos agora. O sistema-mundo moderno surgiu quando uma região que era pe- riférica e, mais tarde, tornou-se semiperiférica (Europa), desenvolveu 99 CONTINUIDADES E TRANSFORMAÇÕES NA EVOLUÇÃO DOS SISTEMAS-MUNDO um centro interno de estados capitalistas que se tornou, por fim, capaz de dominar as organizações políticas de todas as outras regiões do plane- ta. Este sistema eurocêntrico foi o primeiro no qual o capitalismo se tornou o modo predominante de acumulação, apesar de cidades-estados capitalis- tas semiperiféricas existirem desde a Idade do Bronze nos espaços entre os impérios tributários. Esse sistema eurocêntricose expandiu em uma série de ondas de colonização e incorporação (Figura 1). A mercantilização se ex- pandiu na Europa, evoluiu e se aprofundou em ondas desde o século XIII, razão pela qual os historiadores discordam sobre quando o capitalismo se tornou o modo predominante. Desde o século XV, o sistema moderno pre- senciou quatro períodos de hegemonia em que a liderança no desenvolvi- mento do capitalismo foi alçada a novos patamares. O primeiro período foi conduzido por uma coalizão entre os capitalistas financeiros genoveses e a Coroa Portuguesa (WALLERSTEIN, 2011 [1974]; ARRIGHI, 1994). Poste- riormente, as hegemonias foram organizações políticas: os holandeses no século XVII, os ingleses no século XIX e os Estados Unidos no século XX (WALLERSTEIN, 1984a). A própria Europa, e todas as quatro regiões hegemônicas modernas, foram ex-semiperiferias que ascenderam, primei- ramente, ao status de centro e, em seguida, ao de hegemonia. Figura 1: Ondas de colonização e descolonização desde 1400 - Número de colônias estabe- lecidas e número de independências Fonte: Henige (1970). Em vermelho: independências nacionais; em azul: colônias estabelecidas O BRASIL E O CAPITALISMO HISTÓRICO 100 Entre esses períodos de hegemonia, havia períodos de rivalidade he- gemônica em que vários candidatos lutaram pelo poder global. O núcleo (core) do sistema-mundo moderno permaneceu multicêntrico, o que significa que vários estados soberanos se aliavam e competiam entre si. Houve sistemas mundiais regionais anteriores que experimentaram um período de império central ampliado em que um único império se tornou tão grande que não ha- via fortes candidatos à predominância. Isso não acontecia no sistema-mundo moderno até o momento em que os Estados Unidos se tornaram a única su- perpotência após a dissolução da União Soviética, em 1989. A sequência de hegemonias pode ser compreendida como a evolução da governança global no sistema moderno. O sistema interestatal, de acordo com a institucionalização no Tratado de Paz de Westfália em 1648, ainda é um aspecto institucional fundamental da organização politica do sistema moderno. O sistema de estados teoricamente soberanos foi expandido a fim de incluir as regiões periféricas em duas grandes ondas de descoloni- zação (Figura 1), o que acabou resultando em uma situação na qual todo o sistema moderno se tornou composto de estados nacionais soberanos. O leste da Ásia foi incorporado a esse sistema no século XIX, embora aspectos do antigo sistema estatal tributário-comercial do Leste Asiático não tenham sido completamente suprimidos por tal incorporação (HAMASHITA, 2003). Proporcionalmente ao sistema como um todo, cada uma das hege- monias suplantou a hegemonia anterior em tamanho. E cada uma desen- volveu as instituições de controle econômico e político-militar que guiaram o sistema ampliado, de modo que o capitalismo penetrou cada vez mais fundo em todas as áreas do planeta. E após as Guerras Napoleônicas nas quais a Grã-Bretanha finalmente derrotou seu principal concorrente, a França, as instituições políticas globais começaram a emergir acima do sis- tema internacional de Estados nacionais. O primeiro protogoverno mundial foi o Concerto da Europa, uma flor frágil que acabou murchando quando seus principais proponentes, a Grã-Bretanha e o Império Austro-Húngaro, discordaram sobre como lidar com a revolução mundial de 1848. O Concer- to foi seguido pela Liga das Nações e, em seguida, pelas Nações Unidas e as instituições financeiras internacionais de Bretton Woods (o Banco Mundial, 101 CONTINUIDADES E TRANSFORMAÇÕES NA EVOLUÇÃO DOS SISTEMAS-MUNDO o Fundo Monetário Internacional e, finalmente, a Organização Mundial do Comércio). A globalização política evidente na trajetória de governança glo- bal evoluiu porque os poderes constituídos travavam uma disputa pesada en- tre si pelo poder geopolítico e por recursos econômicos, mas também por- que a resistência surgiu no interior das organizações políticas centrais e nas regiões não centrais. A série de hegemonias, as ondas de expansão colonial e de descolonização e o surgimento de um protoestado mundial ocorreram quando as elites globais tentaram competir entre si para conter a resistência vinda de baixo. Já foram mencionadas as ondas de descolonização. Outras forças importantes de resistência foram as revoltas de escravos, o movimento sindical, a extensão da cidadania a homens sem nenhuma propriedade, o movimento feminista, e outros movimentos sociais e rebeliões relacionados. Estes movimentos afetaram a evolução da governança global, em parte devido às rebeliões, muitas vezes agrupadas temporalmente, forman- do o que se denominou “revoluções mundiais” (ARRIGHI et al., 1989). A Reforma Protestante na Europa foi um exemplo precoce que desempenhou um grande papel no aumento da hegemonia holandesa. A Revolução Fran- cesa de 1789 estava conectada temporalmente com as revoltas nos EUA e no Haiti. A rebelião de 1848 na Europa foi sincrônica com a Rebelião de Taiping, na China, e foi associada a essa pela difusão de ideias, como também foi as- sociada a várias novas seitas cristãs que surgiram nos Estados Unidos. 1917 foi o ano dos bolcheviques na Rússia, mas também a mesma década viu a Revolta Nacionalista Chinesa, a Revolução Mexicana, a Revolta Árabe e a greve geral em Seattle liderada pela organização sindical Industrial Workers of the World nos Estados Unidos. 1968 viu a revolta dos estudantes nos EUA, Europa, América Latina e os Guardas Vermelhos na China. Em 1989, os mo- vimentos ocorreram, principalmente, na União Soviética e Europa Oriental, mas uma sociedade civil global emergente aprendeu importantes lições so- bre o valor dos direitos civis para a democracia capitalista, sem a necessidade de justificativa. Neste capítulo, a revolução mundial atual (CHASE-DUNN E NIEMEYER, 2009) será discutida como o contramovimento global. A grande O BRASIL E O CAPITALISMO HISTÓRICO 102 questão enfocada aqui é que a evolução do capitalismo e da governança glo- bal é uma reação importante à resistência e às rebeliões vindas de baixo, o que ocorreu de fato no passado e é provável que continue a ocorrer no futuro. Boswell e Chase-Dunn (2000) afirmam que o capitalismo e o socia- lismo têm interagido dialeticamente entre si em um ciclo de feedback positi- vo semelhante a uma espiral. Os movimentos trabalhistas e socialistas eram, obviamente, uma reação à industrialização capitalista, mas a hegemonia dos EUA e das instituições globais pós-Segunda Guerra Mundial também foi es- timulada, de forma relevante, pela Revolução Mundial de 1917 e pelas on- das de descolonização. O destacado livro de Giovanni Arrighi, Terence Hopkins e Immanuel Wallerstein (1984) sobre as revoluções mundiais apontou que os revolucio- nários raramente atingiram suas demandas imediatamente. Em vez disso, “os conservadores esclarecidos” implantaram as exigências de uma revolu- ção prévia, a fim de esfriar os desafios de uma revolução mundial atual. Esta é a maneira pela qual as revoluções mundiais produzem a evolução da go- vernança global. Horizontes temporais Então, o que a perspectiva comparativa e evolutiva dos sistemas-mundo nos diz sobre as continuidades e as transformações da lógica do sistema? E o que se pode dizer sobre a crise financeira mais recente e o contramovi- mento global contemporâneo a partir das perspectivas de longo prazo? Os acontecimentos recentes são apenas outro período de expansão e colapso financeiro e declínio da hegemonia? Ou será que eles constituem, ou são o prenúncio, de uma profunda crise estrutural do modo capitalista de acu- mulação? O que significam os acontecimentos recentes para a evolução do capitalismo e sua possível transformação em uma modalidade diferente de acumulação? 103 CONTINUIDADES E TRANSFORMAÇÕES NA EVOLUÇÃO DOS SISTEMAS-MUNDO 50.000 Anos A partir da perspectiva dos últimos 50.000anos, a grande novidade é demográfica e ambiental. Após lenta expansão, com altos e baixos cícli- cos em determinadas regiões durante milênios, a população humana entrou em uma onda íngreme ascendente nos últimos dois séculos. Os seres huma- nos vêm degradando o meio ambiente em âmbito local e regional a partir do momento em que começaram a usar os recursos naturais de modo intensi- vo. Mas nos últimos 200 anos da produção industrial, a degradação ambien- tal por meio do esgotamento de recursos e da poluição ampliou-se em âmbi- to mundial, sendo o aquecimento global a maior consequência. A transição demográfica para uma população de tamanho equilibrado começou nos países centrais industrializados no século XIX e se espalhou de forma de- sigual para as regiões não centrais no século XX. Medidas de saúde pública reduziram a taxa de mortalidade; o maior grau de escolaridade e o trabalho feminino fora do lar estão diminuindo a taxa de fertilidade. Mas é provável que o número total de seres humanos continue a aumentar por várias déca- das. No ano 2000 havia cerca de seis bilhões de seres humanos na Terra. Mas quando parar de aumentar, o número de pessoas será 8, 10 ou 12 bilhões. Essa explosão populacional foi possível devido à industrialização e à utilização em larga escala de combustíveis fósseis não renováveis. Os com- bustíveis fósseis são luz solar antiga previamente capturada, que levou mi- lhões de anos para se formar, à medida que as plantas e as florestas cresce- ram, morreram, e foram compactadas, gerando petróleo e carvão. A chegada do pico de produção de petróleo está próxima, e é quase certo que os preços da energia subirão novamente após uma longa queda. O recente colapso fi- nanceiro está relacionado a essas mudanças de longo prazo no sentido de que foi causado em parte por setores da elite global que tentavam proteger seus privilégios e riquezas, através da busca de um maior controle sobre os recursos naturais e do excesso de expansão do setor financeiro. Mas as não elites também estão envolvidas. A expansão habitacional, a suburbaniza- ção e o fato de que um número pequeno de pessoas vive em casas maiores têm sido mecanismos importantes, especialmente nos Estados Unidos, para O BRASIL E O CAPITALISMO HISTÓRICO 104 a incorporação de algumas das não elites ao projeto de globalização hegemô- nica do capitalismo corporativo. A cultura do consumismo tornou-se forte- mente arraigada para aqueles que realmente consomem mais, e é também um forte anseio daqueles que esperam aumentar seu consumo aos níveis observados nas regiões centrais. 5.000 Anos O principal significado do horizonte temporal de 5.000 anos é apon- tar-nos para a ascensão e o declínio dos modos de acumulação. As organiza- ções políticas humanas em pequena escala foram integradas principalmente por estruturas normativas institucionalizadas como relações de parentesco – os assim chamados modos de acumulação baseados em relações de paren- tesco. O clã era a economia e a organização política, e era organizado como uma ordem moral de obrigações que permitiram a mobilização e a coor- denação do trabalho social, e que regulava a distribuição. A acumulação baseada no parentesco foi baseada em linguagens compartilhadas e siste- mas de significados, construção de consenso através da comunicação oral e reciprocidade institucionalizada na partilha e nas trocas. À medida que cresceram, as organizações políticas baseadas no parentesco lutaram entre si e as organizações políticas que produziram desigualdades instituciona- lizadas tiveram vantagens de seleção sobre aquelas que não o fizeram. O parentesco em si se tornou hierárquico dentro das soberanias, tomando a forma de linhagens classificadas ou clãs cônicos. Os movimentos sociais que utilizam discursos religiosos têm sido importantes forças de mudança so- cial há milênios. Sociedades baseadas no parentesco muitas vezes reagiram à demanda populacional por recursos através da défaisance (“revogação”) - um subgrupo emigrava, geralmente após surgirem reclamações em termos de violação da ordem moral. As migrações eram, sobretudo, reações ao uso excessivo dos recursos locais causado pelo crescimento populacional e com- petição por esses recursos. Quando novas terras desocupadas ou apenas ligeiramente ocupadas (mas ricas em recursos) tornaram-se acessíveis, 105 CONTINUIDADES E TRANSFORMAÇÕES NA EVOLUÇÃO DOS SISTEMAS-MUNDO os seres humanos passaram a se deslocar, ocupando todos os continentes, exceto a Antártida. Assim que um pedaço de terra era ocupado, uma situ- ação de “circunscrição” elevava o nível de conflito dentro e entre as orga- nizações políticas, produzindo um regulador demográfico (FLETCHER et al., 2011). Nestas circunstâncias, foram estimuladas inovações tecno- lógicas e organizacionais, e a concorrência entre as organizações políticas selecionou, com veemência, novas estratégias bem-sucedidas, levando ao surgimento da hierarquia, da complexidade e de novas lógicas de reprodu- ção social. Há cerca de cinco mil anos, os primeiros estados e cidades surgi- ram na Mesopotâmia, sobrepondo-se às instituições baseadas no parentes- co. Este foi o início dos modos tributários de acumulação no qual o poder do Estado (coerção legítima) se tornou o principal organizador da economia, o mobilizador do trabalho e o acumulador de riqueza e poder. Inovações si- milares ocorreram em grande parte de forma independente no Egito, no vale do Rio Amarelo (Huang-Ho), no vale do Rio Indo, e mais tarde na Mesoa- mérica e nos Andes. Os modos de produção tributários evoluíram à medida que os estados e impérios se tornaram maiores e as técnicas do imperialismo, permitindo a exploração de recursos distantes, foram aprimoradas. Este era, principalmente, o trabalho de estados semiperiféricos que defendiam suas fronteiras (ALVAREZ et al., 2011). Aspectos dos modos de produção tribu- tários (lançamento de impostos, coleta de tributos, acumulação por desapro- priação) ainda existem entre nós, mas têm sido largamente subordinados e subservientes à lógica da acumulação capitalista. Crises e contramovimen- tos estavam frequentemente envolvidos nas guerras e conquistas que trouxe- ram uma mudança social e uma evolução dos métodos de tributação. O modo tributário tornou-se predominante no sistema-mundo da Me- sopotâmia no início da Idade do Bronze (cerca de 3000 a.C.). O sistema mun- dial regional do Leste Asiático ainda era predominantemente tributário na Era Comum do século XIX, tendo durado aproximadamente 5.000 anos. O modo baseado em parentesco durou ainda mais tempo. Todos os grupos hu- manos foram organizados em torno de versões diferentes dos modos basea- dos em parentesco no período Paleolítico e, na verdade, desde que a cultura O BRASIL E O CAPITALISMO HISTÓRICO 106 humana surgiu pela primeira vez com a linguagem. Se datarmos o início do fim dos modos baseados em parentesco a partir da predominância do modo tributário da Mesopotâmia (3000 a.C.), esta primeira alteração qualitativa na lógica básica de reprodução social levou mais de 100.000 anos. 500 Anos Isto nos leva ao modo capitalista. Definimos o modo capitalista de acumulação, com base na acumulação privada dos lucros que retornam à produção de mercadorias, em vez de impostos ou tributos.67 Conforme já dito, as primeiras formas de capitalismo surgiram na Idade do Bronze, na forma de pequenos estados semiperiféricos que se especializaram no comér- cio e na produção de mercadorias. Foi apenas no século XV que esta forma de acumulação tornou-se predominante em um sistema mundial regional (Europa e suas colônias). O capitalismo nasceu na semiperiferia, mas na Eu- ropa, mudou-se para o centro, e os precursores que posteriormente desenvol- veram o capitalismo eram antigas organizações políticas semiperiféricas que alcançaram a hegemonia. As crises econômicas e revoluções mundiais fo- ram elementos importantes naevolução do capitalismo e das instituições de governança global durante séculos. Assim, em comparação com os modos anteriores, o capitalismo ain- da é jovem. Existe há cerca de milênios, mas tem sido predominante em um sistema-mundo há menos de oito séculos. Por outro lado, muitos têm observado que a mudança social, em geral, tem se acelerado. O aumento da arrecadação de tributos com base na coerção institucionalizada levou mais de 100.000 anos. O próprio capitalismo acelera a mudança social, porque 67 O capitalismo é uma combinação de propriedade privada nos meios de produção, troca mercantil e produção de mercadoria visando lucro. Naturalmente há muitas variedades de capitalismo. Desejamos incluir especialmente o que tem sido chamado capitalismo periférico, que é o uso de trabalho forçado (escravidão, servidão) para a produção de mercadoria. O capitalismo de Estado pode existir quando a propriedade não privada dos meios de produção permite a uma elite contolar a sociedade e se apropriar de grandes parcelas dos lucros. 107 CONTINUIDADES E TRANSFORMAÇÕES NA EVOLUÇÃO DOS SISTEMAS-MUNDO revoluciona a tecnologia rapidamente, impulsionando outras instituições; e as pessoas se adaptaram às reconfigurações rápidas da cultura e das institui- ções. Por isso, é plausível que as contradições do capitalismo podem levá-lo a atingir seus limites muito mais rápido do que fizeram os modos tributários e os baseados no parentesco. Transformações entre os modos Para Immanuel Wallerstein (2011 [1974]), o capitalismo começou no longo século XVI (1450-1640), expandiu-se em uma série de ciclos e tendências de crescimento, e agora está se aproximando de “assíntotas” (limites máximos), pois algumas de suas tendências criam problemas que não podem ser resolvidos. Assim, para Wallerstein, o sistema mundial tor- nou-se capitalista e, em seguida, expandiu-se até se tornar totalmente glo- bal, e agora está enfrentando uma grande crise porque certas tendências de longo prazo não podem ser acomodadas dentro da lógica do capitalismo (WALLERSTEIN, 2003). As transformações evolutivas de Wallerstein sur- gem no início e no final. Há um foco na expansão e aprofundamento, bem como ciclos e tendências, mas não há a periodização dos estágios de evolu- ção do sistema-mundo do capitalismo (CHASE-DUNN, 1998, Cap. 3). Isto é muito diferente da representação tanto de Arrighi dos sucessivos (e sobre- postos) ciclos sistêmicos de acumulação, quanto das teorias marxistas mais antigas, dos estágios do desenvolvimento nacional. A ênfase de Wallerstein recai sobre o surgimento e desaparecimento de “sistemas históricos”, onde o capitalismo é definido como “acumulação incessante”. Alguns atores mu- dam de posição, mas o sistema permanece basicamente o mesmo à medida que se expande. Mais cedo ou mais tarde, suas contradições internas encon- trarão limites, e acredita-se que esses limites estejam se aproximando nas próximas cinco décadas. Segundo Wallerstein (2003), as três tendências de crescimento ao lon- go prazo (efeito teto) que o capitalismo não pode controlar são: 1. o aumento dos salários reais ao longo prazo; 2. os custos de longo prazo dos insumos materiais; e O BRASIL E O CAPITALISMO HISTÓRICO 108 3. o aumento de impostos. Todas as três tendências de crescimento causam a queda da taxa mé- dia de lucro. Os capitalistas elaboram estratégias para combater essas ten- dências (automação, a fuga de capitais, a ameaça de corte de empregos, os ataques ao estado-providência social e aos sindicatos), mas na verdade não podem detê-las no longo prazo. A desindustrialização em um lugar leva à industrialização e ao surgimento de movimentos operários em outro lugar (SILVER, 2003). A queda da taxa de lucro significa que o capitalismo, como uma lógica de acumulação, terá de enfrentar uma crise estrutural inconciliá- vel durante os próximos 50 anos, e algum outro sistema surgirá. Wallerstein chama as próximas cinco décadas de “A Era de Transição”. Wallerstein acredita que as perdas recentes por parte dos sindicatos de trabalhadores e dos pobres sejam temporárias. Ele pressupõe que os traba- lhadores acabarão por descobrir como se proteger contra as forças do merca- do globalizado e do “nivelamento por baixo”. Isso talvez subestime um pou- co as dificuldades de mobilização efetiva do trabalho organizado na era do capitalismo globalizado, mas, no longo prazo, Wallerstein provavelmente tem razão. Os sindicatos globais e os partidos políticos poderiam dar aos trabalhadores os instrumentos eficazes para a luta por salários e condições de trabalho livres da exploração das corporações globais se fosse possível superar as questões Norte/Sul que dividem os trabalhadores. Wallerstein é intencionalmente vago (assim como Marx) a respeito da natureza organizacional do novo sistema que substituirá o capitalismo, mas tem certeza de que não será mais o capitalismo. O sociólogo perce- be o declínio da hegemonia norte-americana e a crise do capitalismo glo- bal neoliberal como fortes indícios de que o capitalismo não pode mais se ajustar às suas contradições sistêmicas. Wallerstein afirma que a história mundial já entrou em um período caótico e imprevisível de transforma- ção histórica. Deste período de caos, surgirá um sistema não capitalista novo e qualitativamente diferente. Pode ser um estado autoritário (tributá- rio) global que preserve os privilégios da elite global ou talvez um sistema 109 CONTINUIDADES E TRANSFORMAÇÕES NA EVOLUÇÃO DOS SISTEMAS-MUNDO igualitário em que instituições sem fins lucrativos sirvam às comunidades (WALLERSTEIN, 1998). Estágios do desenvolvimento capitalista mundial: ciclos sistêmicos de acumulação A descrição evolucionária de Giovanni Arrighi (1994) dos “ciclos sis- têmicos de acumulação” resolveu alguns dos problemas da noção de Wal- lerstein de que o capitalismo mundial iniciou no longo século XVI e, em seguida, passou por ciclos repetitivos e tendências. A descrição de Arrighi é explicitamente evolucionária, mas ao invés de postular “estágios do capita- lismo”, examinando cada país para verificar a passagem de tais fases (como fez a maioria dos marxistas mais antigos), ele postula ciclos globais de acu- mulação até certo ponto sobrepostos, no qual o capital financeiro e o poder do Estado assumem formas novas e gradualmente penetram em todo o siste- ma. Este foi um grande avanço em relação tanto aos ciclos mundiais quanto às tendências de Wallerstein e às fases marxistas nacionais tradicionais de abordagem ao capitalismo. Os “ciclos sistêmicos de acumulação” de Arrighi (1994; 2006) se dis- tinguem mais uns dos outros do que os ciclos de expansão e contração e ten- dências seculares de crescimento, de Wallerstein. Além disso, Arrighi (2006) explorou com mais profundidade as diferenças entre o atual período de declínio da hegemonia norte-americana e as décadas do final do século XIX e do início do século XX, quando a hegemonia britânica estava em de- clínio. A ênfase recai menos no início e no fim do sistema mundo-capitalista e mais sobre a evolução de novas formas institucionais de acumulação e a cres- cente incorporação de modos de controle à lógica do capitalismo. Arrighi (2006), seguindo uma dica de Andre Gunder Frank (1998), viu a ascensão da China como presságio de um novo ciclo sistêmico de acumulação em que a “sociedade de mercado” acabará por vir a substituir o capital financeiro vo- raz como a principal forma institucional na próxima fase da história mun- dial. Arrighi não discute o fim do capitalismo e o surgimento de uma outra O BRASIL E O CAPITALISMO HISTÓRICO 110 lógica básica de reprodução social e de acumulação. Sua análise está mais alinhada com a literatura dos “tipos de capitalismo” e das “modernidades múltiplas”, com a ressalva de que ele está analisando todo o sistema ao invés de separar as sociedades nacionais. Arrighi vê o desenvolvimento da sociedade de mercadona China como uma consequência das diferenças entre o Leste Asiático e os sistemas eurocêntricos antes de eles se fundirem no século 19, e também como re- sultado da Revolução Chinesa. Embora a discussão que promove das no- ções de Adam Smith a respeito do controle social sobre o capital financeiro seja interessante, Arrighi é vago em relação a quais forças poderiam contra- balançar o poder do capital financeiro. Na China, obviamente, são o Partido Comunista e a nova classe de mandarins tecnocratas - algo que se asseme- lha, na forma, à discussão de Peter Evans sobre a importância dos tecno- cratas no “Estado desenvolvimentista”, brasileiro, japonês e coreano, embo- ra Arrighi não tenha dito desta maneira. Arrighi também fornece uma análise mais explícita de como a situa- ção do mundo atual é semelhante e diferente do período de declínio do po- der hegemônico britânico antes da Primeira Guerra Mundial (consulte um resumo em CHASE-DUNN; LAWRENCE, 2011, p. 147-151). A versão de Wallerstein é mais apocalíptica e mais milenar. O velho mundo está acabando. O novo mundo está começando. Na bifurcação sistê- mica que se aproxima, o que as pessoas fazem pode ser prefigurativo e cau- sal do mundo vindouro. Wallerstein (1984b) concorda com a análise pro- posta pelos estudantes da Nova Esquerda em 1968 (e um grande número de ativistas do movimento de justiça global atual), na qual a tática de tomada do poder estatal tem se mostrado inútil devido aos resultados decepcionan- tes da Revolução Mundial de 1917 e aos movimentos de descolonização (po- rém, veja abaixo). Globalização econômica Quanto ao fato de o recente colapso em si ser ou não uma crise estrutu- ral ou o início de um longo processo de transformação, é importante examinar 111 CONTINUIDADES E TRANSFORMAÇÕES NA EVOLUÇÃO DOS SISTEMAS-MUNDO as tendências recentes na globalização econômica. Já existe algum sinal de que a economia mundial tenha entrado em um novo período de desglobaliza- ção semelhante ao que ocorreu na primeira metade do século XX? Immanuel Wallerstein afirma que a globalização vem ocorrendo há quinhentos anos, e por isso há pouca coisa que seja verdadeiramente nova com relação ao assim chamado estágio do capitalismo global que, segun- do se acredita, teria surgido nas últimas décadas do século XX. Bem antes do surgimento da globalização na consciência popular, a perspectiva dos sistemas-mundo tinha por foco a economia-mundo e o sistema de polities que interagem, em vez de sociedades nacionais individuais. A globalização, no sentido de expandir e intensificar redes econômicas, políticas, militares e de informação cada vez maiores, tem crescido há milênios, embora de for- ma heterogênea e em ondas. A globalização é tanto um ciclo quanto uma tendência (Figura 2). A onda de integração global que varreu o mundo nas décadas que se seguiram à Segunda Guerra Mundial é melhor compreendi- da através do estudo das semelhanças e diferenças em comparação com as ondas de expansão do comércio internacional e de investimentos estrangei- ros que ocorreram nos séculos anteriores, especialmente na última metade do século XIX. Wallerstein defende a ideia de que a hegemonia norte-americana con- tinua em declínio, tendo interpretado o unilateralismo dos EUA na adminis- tração de Bush como uma repetição dos erros anteriores de hegemonias de- clinantes que tentaram substituir a vantagem econômica comparativa pela superioridade militar (WALLERSTEIN, 2003). A maioria daqueles que re- jeitavam a ideia do declínio hegemônico norte-americano durante o período que Giovanni Arrighi (1994) chamou de belle époque da financeirização pas- sou a concordar com a posição de Wallerstein, na esteira da atual crise finan- ceira global. Wallerstein afirma que quando são levados em conta os ciclos e as tendências do sistema mundial e a dança das cadeiras que é o desenvolvi- mento desigual do capitalismo, a “nova fase do capitalismo global” não pare- ce muito diferente de períodos anteriores. O BRASIL E O CAPITALISMO HISTÓRICO 112 Figura 2: Globalização do Comércio (1820-2009): Importações Mundiais como uma per- centagem do PIB mundial Fontes: Chase-Dunn et al. (2000); Banco Mundial (2011)68 68 Utilizando as estimativas nacionais de importações em moedas nacionais de Mitchell (1992, 1993, 1995), Chase-Dunn et al. (2000) criaram uma medida da globalização do comércio entre 1795 e 1995. Apesar de Chase-Dunn et al. terem explorado a possibilidade de converter estas estimativas de importação em unidades monetárias comparáveis usando taxas de câmbio (FX, em inglês) entre as moedas dos diversos países e o dólar norte-americano, esta estratégia se mostrou irreal, pois pressupõe que as conversões de divisas refletem com precisão o valor relativo dos bens e serviços em diferentes países. Embora uma solução popular para sanar as “deficiências” das taxas de câmbio tenha sido converter essas medidas em paridades do poder de compra (PPC) - que calculam o preço de uma cesta doméstica de bens a fim de gerar uma estimativa mais relativa das moedas nacionais (FIREBAUGH, 2003), Korzeniewicz e Moran (2009, p. 60-3) mostram que as estimativas das PPC são irrealistas para uma pesquisa que examine longos períodos de tempo a menos que os pesos para as PPC sejam recalculados para períodos anteriores de tempo. Dadas as questões associadas à conversão de moeda, Chase-Dunn et al. cuidadosamente compilaram a estimativa da globalização do comércio calculando, separadamente, o nível de abertura de cada nação ao comércio internacional . Para realizar esse cálculo, é computado o nível de abertura comercial de uma nação (importações/PIB), usando moedas locais no numerador e denominador, eliminando-se, assim, a necessidade de converter moedas locais em dólares ou outras unidades comparáveis. Esses estudiosos, em seguida, tomaram a proporção de abertura comercial de cada nação (comércio/PIB) e ponderaram as razões multiplicando-as pela população de um país, que é estimada como uma proporção da população mundial (para uma descrição mais detalhada, consulte CHASE-DUNN et al., 2000, 113 CONTINUIDADES E TRANSFORMAÇÕES NA EVOLUÇÃO DOS SISTEMAS-MUNDO A Figura 2 é uma versão atualizada da série de globalização do comér- cio publicada em Chase-Dunn et al., (2000), e mostra a onda do século XIX de grande integração do comércio global, uma onda curta e volátil entre 1900 e 1929, e o boom do período pós-1945, que se caracteriza como a “fase do capi- talismo global.” A figura indica que a globalização é tanto um ciclo quanto uma tendência irregular. Houve períodos significativos de desglobalização no final do século XIX e na primeira metade do século XX. Pode ser observado o declí- nio acentuado do nível de integração do comércio mundial em 2009. A tendência de crescimento no longo prazo tem sido instável, com quedas ocasionais, como a ocorrida na década de 1970. Mas as reces- sões desde 1945 têm sido seguidas por períodos de retomada que restaura- ram a tendência geral de crescimento da globalização do comércio. A grande diminuição da globalização do comércio, na esteira da crise financeira glo- bal de 2008, representa uma redução de 21% em relação ao ano anterior, a maior reversão em globalização do comércio desde a Segunda Guerra Mun- dial. A questão é se esta forte queda representa ou não uma inversão da ten- dência de crescimento observada desde a metade do século passado. É este o início de um novo período de desglobalização? A crise financeira de 2007-2008 A recente crise financeira gerou uma vasta literatura acadêmica e uma grande reflexão popular sobre suas causas e seu significado para o passado e para o futuro da sociedade mundial. Esta contribuição pretende situar a crise atual e a rede contemporânea de movimentos sociais transnacionais e de regimes nacionais progressistas em uma perspectiva histórico-mundial e evolucionária. O ponto principal é determinar com precisão as semelhanças p. 84-86).No entanto, enquanto as estimativas de Chase-Dunn et al. sobre a globalização do comércio terminam em 1995, a Figura 2 amplia as estimativas usando dados dos Indicadores de Desenvolvimento Mundial (WORLD BANK, 2009, 2010). Também foram comparados os dados de Chase-Dunn aos dados comerciais do Indicador de Desenvolvimento Mundial de comércio para o período de 1960 a 1995, sendo encontrado um elevado grau de semelhança entre essas medidas. Legenda da figura: Importações mundiais/PIB mundial. O BRASIL E O CAPITALISMO HISTÓRICO 114 e diferenças entre a crise atual e as respostas com períodos anteriores de des- locamento e ruptura no moderno sistema-mundo e em sistemas-mundo an- teriores. Esta análise é relatada em Chase-Dunn e Kwon (2011). As conclu- sões são de que as crises financeiras são business as usual para a economia- mundo capitalista. As teorias de uma “nova economia” e de uma “sociedade em rede” foram, sobretudo, justificativas para a financeirização. A grande diferença é o tamanho da bolha e a maior dependência da enorme economia norte-americana e do dólar por parte do resto do mundo. Apesar da bolha financeira global ter sido reinflada com sucesso, até certo ponto, através do resgate de Wall Street financiado pelo governo, os problemas estruturais bá- sicos não foram resolvidos; no entanto, foram evitados (até agora) um colap- so de verdade, a deflação e a retirada de cena da massa inflada de títulos que constituem a bolha financeira. Esta não é uma situação estável, mas também não é o fim do capitalismo. A Revolução Mundial atual A revolução mundial contemporânea é semelhante às anteriores, mas também diferente. Nossa conceituação da Nova Esquerda Global in- clui entidades da sociedade civil: indivíduos, organizações de movimentos sociais, organizações não governamentais (ONGs), mas também os partidos políticos e regimes nacionais progressistas.69 Nesta seção, discutiremos as relações entre os movimentos e os regimes populistas progressistas que sur- giram na América Latina nas últimas décadas, a Primavera Árabe, que co- meçou na Tunísia, em dezembro de 2010, a antiausteridade e o movimento Ocuppy Wall Street, que surgiu em 2011. Em nosso entendimento, os regimes 69 Conceituamos a sociedade civil global e o conjunto de cidadãos do mundo como todos aqueles que têm a intenção de causar impacto no sistema-mundo como um todo. Isto inclui alguns atores cujos objetivos não são compatíveis com os grupos que identificamos como par- te da Nova Esquerda Global. Referimo-nos a alguns dos atores da elite global, cujo princi- pal objetivo é proteger seus privilégios e bens, assim como alguns movimentos fundamenta- listas religiosos. 115 CONTINUIDADES E TRANSFORMAÇÕES NA EVOLUÇÃO DOS SISTEMAS-MUNDO latino-americanos da “Maré Cor-de-Rosa” (Pink Tide) são uma parte im- portante da Nova Esquerda Global, embora se saiba que as relações entre os movimentos e os regimes são tanto de apoio quanto de conflito. Os limites das forças progressistas que se uniram na Nova Esquer- da Global são difusos e o processo de inclusão e exclusão é contínuo (SANTOS, 2006). As regras de inclusão e exclusão que estão contidas na Carta de Prin- cípios do Fórum Social Mundial, embora ainda debatidas, não mudaram muito desde sua formulação em 2001.70 A Nova Esquerda Global emergiu como resistência e como crítica ao capitalismo global (LINDHOLM; ZUQUETE, 2010). É uma coalizão de movimentos sociais que inclui encarnações recentes dos velhos movi- mentos sociais que emergiram no século XIX (trabalho, anarquismo, socia- lismo, comunismo, feminismo, ambientalismo, paz, direitos humanos) e os movimentos que surgiram nas revoluções mundiais de 1968 e 1989 (direitos dos homossexuais, anticorporativismo, comércio justo, causa indígena) e até mesmo os movimentos mais recentes, como slow food/food rights, justi- ça global/alterglobalização, antiglobalização, saúde e HIV e mídia alternati- va (REESE et al., 2008). O foco explícito no Sul Global e na justiça global é um pouco semelhante a algumas instâncias anteriores da Esquerda Global, especialmente da Internacional Comunista, da Conferência de Bandung e dos movimentos anticoloniais. A Nova Esquerda Global contém vestígios e elementos reconfigurados de esquerdas globais anteriores, mas é uma cons- telação de forças qualitativamente diferente, porque: 1. existem elementos novos, 2. os movimentos antigos foram reformulados, e 3. uma nova tecnologia (a Internet) está sendo usada para mobili- zar protestos em tempo real e tentar resolver os problemas Norte/Sul dentro dos movimentos e das contradições entre os movimentos. Há também um processo de aprendizagem em que os sucessos e fra- cassos anteriores da Esquerda Global estão sendo levados em conta, a fim 70 Desde 2005, o Grupo de Pesquisa em Movimentos Sociais Transnacionais da Universi- dade da Califórnia-Riverside realiza estudos sobre os movimentos que participam do Fó- rum Social Mundial. A página do projeto na Internet pode ser visitada no endereço <http:// www.irows.ucr.edu/research/tsmstudy.htm>. O BRASIL E O CAPITALISMO HISTÓRICO 116 de que não se repitam os erros do passado. Muitos movimentos sociais rea- giram ao projeto de globalização neoliberal tornando-se transnacionais para enfrentar os desafios que, obviamente, não são locais ou nacionais (REITAN, 2007). Mas alguns movimentos, especialmente aqueles que compõem a Pri- mavera Árabe, estão focados principalmente na mudança de regime em âmbito local. As relações dentro da família de movimentos antissistêmi- cos e entre os regimes populistas latino-americanos da Maré Cor-de-Rosa são tanto cooperativas quanto competitivas. As questões que dividem os possíveis aliados precisam ser trazidas à tona e analisadas para que seja pos- sível melhorar os esforços de cooperação e tornar mais eficaz uma ação co- letiva global progressiva. A Maré Cor-de-Rosa O Fórum Social Mundial (FSM) não é a única força política que comprova o surgimento da Nova Esquerda Global. O FSM está incorpora- do dentro de um contexto sócio-histórico mais amplo que está desafiando a hegemonia do capital global. Foi esse contexto mais amplo que facilitou a organização do FSM em 2001. Os protestos anti-FMI dos anos oitenta e a rebelião zapatista de 1994 foram precursores da revolução mundial atual que desafiou a ordem capitalista neoliberal. E o Fórum Social Mundial foi conce- bido explicitamente como um projeto contra-hegemônico em contraponto ao Fórum Econômico Mundial (um encontro anual de elites globais funda- do em 1971). A história mundial tem ocorrido em uma série de ondas. A expansão capitalista tem fluido e refluído, e contramovimentos religiosos, humanistas e igualitários surgiram em uma luta dialética cíclica, que Polanyi (1944) de- nominou duplo movimento, enquanto Boswell e Chase-Dunn (2000) cria- ram o termo “espiral do capitalismo e do socialismo”. Esta espiral do ca- pitalismo e do socialismo descreve as ondulações da economia global que se alternavam entre a mercantilização expansiva em toda a economia glo- bal e os movimentos de resistência em prol dos trabalhadores e outros grupos 117 CONTINUIDADES E TRANSFORMAÇÕES NA EVOLUÇÃO DOS SISTEMAS-MUNDO oprimidos. O projeto Reagan/Thatcher de globalização capitalista neoli- beral ampliou o poder do capital transnacional. Esse projeto atingiu seus limites ideológicos e materiais, aumentou a desigualdade dentro de alguns países, agravou a rápida urbanização no Sul Global - o chamado Planeta Fa- vela (DAVIS, 2006), atacou o Estado-Providência e as proteções institucio- nais aos pobres, e acarretou a crise financeira global. Uma rede global de movimentos antissistêmicos surgiu para desa- fiar o neoconservadorismo, o neoliberalismo e o capitalismo corporativo em geral. Esta rede progressista é composta de movimentos sociais cada vez mais transnacionais, bem como um número crescentede governos popu- listas na América Latina, os chamados regimes da Maré Cor-de-Rosa (Pink Tide). A Maré Cor-de-Rosa é composta de regimes populistas de esquer- da que chegaram ao comando do Estado na América Latina, alguns dos quais defendem a transformação estrutural dramática da economia política global e da civilização mundial. Uma diferença importante entre esses regimes e vários regimes de esquerda que os antecederam nas regiões não centrais é que vieram para comandar governos por meio de eleições populares em vez de revoluções violentas. Isso significa uma diferença importante em relação às revolu- ções mundiais anteriores. A expansão da democracia eleitoral para as re- giões não centrais tem sido parte de uma maior incorporação política das ex-colônias no sistema interestatal europeu. Este desenvolvimento evolu- cionário do sistema político global tem sido causado principalmente pela industrialização das regiões não centrais e o aumento da classe trabalha- dora urbana em países não centrais (SILVER, 2003). Embora grande parte da “democratização” do Sul Global consistiu principalmente no surgimento de uma “poliarquia”, em que elites manipulam eleições a fim de manter o controle do Estado (ROBINSON, 1996), em alguns países, os regimes de es- querda da Maré Cor-de-Rosa chegaram ao poder através de eleições. Esta é uma forma muito diferente de se estabelecer regimes do que o caminho tomado pelos regimes de esquerda anteriores nas regiões não centrais. Com poucas exceções, os regimes de esquerda anteriores chegaram ao poder do Estado por meio de guerra civil ou golpe militar. O BRASIL E O CAPITALISMO HISTÓRICO 118 As ideologias dos regimes latino-americanos da Maré Cor-de-Rosa têm sido tanto socialistas quanto indigenistas, com combinações distintas em diferentes países. O grande fio condutor da Maré Cor-de-Rosa, como uma marca distintiva do populismo de esquerda, é a revolução bolivariana li- derada pelo presidente venezuelano, Hugo Chávez. Mas várias outras formas de ideologias políticas progressistas também estão à frente de estados latino- americanos; por exemplo, o indigenista e socialista Evo Morales, Presidente da Bolívia, ou os Fidelistas em Cuba, que permanecem no poder. O Parti- do dos Trabalhadores ainda desempenha um papel importante no Brasil, embora os presidentes eleitos tenham sido políticos pragmáticos, em vez de líderes revolucionários. No Chile, estão no poder os sociais-democratas. Os sandinistas na Nicarágua e a FMLN em El Salvador foram eleitos líderes nacionais. De forma unilateral, a Argentina bravamente reestruturou as pró- prias obrigações da dívida em 2005. O Presidente do Peru é um esquerdis- ta. E vários sociais-democratas de estilo europeu governam algumas ilhas do Caribe. A maioria desses regimes é apoiada pela mobilização das populações historicamente subordinadas, incluindo os indígenas, os pobres e as mulhe- res. A ascensão dos desprovidos de voz e o desafio ao capitalismo neolibe- ral parecem ter seu epicentro na América Latina antes do surgimento da Primavera Árabe. Apesar das diferenças importantes de ênfase, esses regi- mes latino-americanos têm muito em comum, e, como um todo, consti- tuem um importante bloco da Nova Esquerda Global. Concordamos com a avaliação que William I. Robinson (2008) fez da Revolução Bolivariana e o potencial desta para liderar a classe trabalhadora global em um desafio reno- vado para o capitalismo transnacional. A ascensão da esquerda populista tomou conta de quase toda América do Sul e de uma parte considerável da América Central e do Caribe. Por que a América Latina foi o local tanto dos regimes populistas de esquerda quan- to da maioria dos movimentos sociais transnacionais que contestam a glo- balização capitalista neoliberal, até recentemente? Sugerimos que parte da explicação deve-se ao fato de que a América Latina é uma região do mun- do que tem muitos países semiperiféricos. Estes países têm mais opções para 119 CONTINUIDADES E TRANSFORMAÇÕES NA EVOLUÇÃO DOS SISTEMAS-MUNDO buscar estratégias independentes do que os países periféricos, principalmen- te os da África. Mas alguns dos países da Maré Cor-de-Rosa na América Latina também são periféricos. Houve um efeito regional que não parece ocorrer na África ou na Ásia. Talvez o fenômeno da Maré Cor-de-Rosa e os movimentos sociais antineoliberais se concentraram na América Latina porque os Estados Unidos são o maior defensor das políticas neoliberais. A América Latina tem sido o “quintal” neocolonial dos Estados Unidos, e a maioria dos povos da América Latina percebe os Estados Unidos como o “colosso do Norte”. Os EUA têm sido o país hegemônico titular durante o período do projeto de globalização capitalista, e por isso o desafio político para o neoliberalismo tem sido mais forte nessa região do mundo. A África e a Ásia têm uma relação mais complicada com as ex-potências coloniais e com a hegemonia norte-americana. O Presidente da Venezuela Hugo Chávez talvez seja o defensor mais contundente de uma alternativa ao capitalismo global, e sua defesa é bastante facilitada pelas enormes reservas de petróleo venezuelanas. O Banco del Sur (Banco do Sul) que Chávez fundou, por exemplo, recebeu a adesão de mui- tas nações da Maré Cor-de-Rosa e visa substituir o Fundo Monetário Inter- nacional e o Banco Mundial no financiamento de projetos de desenvolvi- mento nas Américas. O objetivo é tornar-se independente das instituições capitalistas financeiras sediadas no Norte Global. Os primeiros Programas de Ajuste Estrutural impostos à América La- tina pelo Fundo Monetário Internacional na década de oitenta foram uma espécie de “terapia de choque” que incentivaram os neoliberais nacionais a atacar o “estado-providência”, os sindicatos e os partidos trabalhistas. Em muitos países, estes ataques resultaram na redução e simplificação das indús- trias urbanas, e os trabalhadores do setor formal perderam seus empregos e foram obrigados a entrar na economia informal, inchando o “planeta fave- la” (DAVIS, 2006). Isto é a formação de uma classe trabalhadora globalizada, conforme descrito por Bill Robinson (2008). Em vários países, o inchaço do setor urbano informal foi mobilizado por líderes políticos em novos movi- mentos e partidos populistas, e em alguns deles, os movimentos acabaram por ser bem-sucedidos na eleição de seus líderes ao poder nacional, criando O BRASIL E O CAPITALISMO HISTÓRICO 120 os regimes da Maré Cor-de-Rosa. Assim, os Programas de Ajuste Estrutu- ral neoliberais provocaram contramovimentos que resultaram nos regi- mes da Maré Cor-de-Rosa. A própria existência do Fórum Social Mundial deve muito ao regi- me da Maré Cor-de-Rosa no Brasil. A transição de um regime autoritário no país na década de oitenta politizou e mobilizou a sociedade civil, contri- buindo para as eleições de presidentes esquerdistas. Um deles foi Fernando Henrique Cardoso, famoso sociólogo brasileiro que foi um dos fundado- res da teoria da dependência. A cidade brasileira de Porto Alegre, onde as primeiras reuniões do Fórum Social Mundial foram realizadas, havia sido um reduto do Partido dos Trabalhadores brasileiro. O Fórum Social Mun- dial nasceu em Porto Alegre com a ajuda indispensável do Partido dos Traba- lhadores e seu ex-líder, que havia sido eleito Presidente do Brasil, Luis Inácio Lula da Silva. A tendência política da Maré Cor-de-Rosa foi um elemen- to importante no contexto e nas condições que permitiram o surgimento do Fórum Social Mundial. As relações entre os movimentos sociais transnacionais progressis- tas e os regimes da Maré Cor-de-Rosa têm sido tanto colaborativas quan- to conflituosas. Já citamos o importante papel desempenhado pelo Parti- do dos Trabalhadores brasileiro na criação do Fórum Social Mundial. No entanto, para muitos militantes nos diversos movimentos, o envolvimento em lutas para a conquista ea manutenção do poder nos estados existentes é uma armadilha que, provavelmente, apenas reproduzirá as injustiças do pas- sado. Esse tipo de preocupação é apontado pelos anarquistas desde o século XIX, mas agora os autonomistas da Itália, Espanha, Alemanha e França tam- bém ecoam estas preocupações. E o movimento zapatista no sul do México, uma das faíscas que desencadeou o movimento de justiça global contra o capitalismo neoliberal, recusou-se terminantemente a participar da políti- ca eleitoral mexicana. De fato, a Nova Esquerda liderada por estudantes na Revolução Mundial de 1968 defendeu uma abordagem crítica semelhan- te aos velhos partidos e estados da esquerda e ao envolvimento na políti- ca eleitoral. Conforme mencionado acima, Immanuel Wallerstein (1984b; 2003) concorda com esta posição política antiestatista. Esta recusa a forma 121 CONTINUIDADES E TRANSFORMAÇÕES NA EVOLUÇÃO DOS SISTEMAS-MUNDO tradicional de fazer política se consagrou na Carta de Princípios do Fórum Social Mundial, onde os representantes de partidos e governos estão teorica- mente proibidos de participar das reuniões do FSM.71 As organizações de esquerda e movimentos mais antigos são muitas vezes retratados como irremediavelmente eurocêntricos e antidemocráti- cos pelos neoanarquistas e autonomistas, que ao invés disso preferem for- mas de redes participativas e horizontalistas de democracia e evitam a liderança de intelectuais proeminentes, bem como de chefes de Estado existentes. Assim, quando Lula, Chávez e Morales tentaram participar do FSM, grandes multidões se reuniram para protestar contra a presença desses líderes. Os organizadores do FSM têm encontrado fórmulas conci- liatórias, como colocar os discursos dos políticos da Maré Cor-de-Rosa em locais adjacentes, mas separados. Uma exceção a esse tipo de disputa é o apoio de autonomistas europeus e anarquistas ao regime de Evo Morales na Bolívia (por exemplo, LÓPEZ; IGLESIAS TURRION, 2006). Muitos dos ativistas do movimento Ocuppy Wall Street, que começou em Nova York no outono de 2011, têm uma atitude semelhante para com a organiza- ção formal e a hierarquia. O movimento se autodescreveu como “sem lide- rança” e centrou-se na tomada direta e democrática de decisões em grupos que se encontram cara a cara. A América Latina tem sido o epicentro da revolução mundial con- temporânea. Se os movimentos e os regimes progressistas pudessem tra- balhar juntos, forneceriam um modelo que estimularia outras regiões do planeta. Os desafios são enormes, mas a maioria da humanidade necessita de instrumentos organizacionais para democratizar a governança global, e o Fórum Social Mundial foi concebido para ser o local a partir de onde tais instrumentos poderiam ser organizados. 71 A Carta de Princípios do Fórum Social Mundial não permite a participação de representantes de organizações que estão envolvidas ou que defendem a luta armada. Tampouco os governos, as instituições confessionais ou os partidos políticos devem enviar representantes para o FSM. Consulte a Carta de Princípios do Fórum Social Mundial na página <http://wsf2007. org/process/wsf-charter>. O BRASIL E O CAPITALISMO HISTÓRICO 122 A crise e os movimentos antissistêmicos Quais foram os efeitos da crise financeira global sobre os contra- movimentos e os regimes progressistas nacionais? O slogan do Fórum So- cial Mundial “Um Outro Mundo é Possível” parece muito mais atraente ago- ra do que quando o projeto de globalização capitalista estava em expansão. O discurso crítico foi levado mais a sério por um público mais amplo. O geó- grafo marxista David Harvey foi entrevistado pela BBC. Os discursos mile- naristas dos regimes da Maré Cor-de-Rosa e os movimentos sociais radicais parecem estar pelo menos parcialmente confirmados. O triunfalismo do “fim da história” e as teorias da “nova economia” parecem ter sido varridos para o lixo. A perspectiva dos sistemas-mundo tem encontrado maior apoio, pelo menos entre os primeiros críticos, como os marxistas mais tradicio- nais. A insistência de Wallerstein, Arrighi e outros de que a hegemonia dos EUA está em declínio há muito tempo já encontrou ampla aceitação. Em um nível mais prático, a maioria das organizações de movimen- tos sociais e ONGs vêm enfrentando mais dificuldade em arrecadar fun- dos, mas isso tem sido contrabalançado por uma participação mais am- pla (ALLISON et al., 2011). O movimento ambientalista está enfrentando alguns contratempos porque tem vindo à tona a questão da elevada taxa de desemprego. De forma geral, a cúpula de Copenhague foi considerada um fracasso. O amplo entendimento de que os custos energéticos vão continu- ar a subir aumentou o número de pessoas que apoia o desenvolvimento da energia nuclear, apesar dos custos ambientais em longo prazo. Mas o terre- moto no Japão , o tsunami e a crise nuclear em 2011 levaram o governo ale- mão à declaração de um futuro não nuclear. Além disso, a alternativa radi- cal do ambientalismo indígena ganhou impulso (WALLERSTEIN, 2010). A Conferência Mundial dos Povos sobre Mudança Climática e Direitos da Mãe Terra, realizada em Cochabamba, na Bolívia, em abril de 2010, discutiu a Declaração Universal dos Direitos da Mãe Terra, um referendo Popular Mundial sobre Mudança Climática, e o estabelecimento de um Tribunal de Justiça Climática. A reunião foi assistida por 30.000 ativistas de mais de 100 países e recebeu o apoio financeiro dos governos da Bolívia e da Venezuela. 123 CONTINUIDADES E TRANSFORMAÇÕES NA EVOLUÇÃO DOS SISTEMAS-MUNDO A Primavera Árabe, o Verão Europeu e o Movimento Ocuppy Wall Street Os movimentos que varreram o mundo árabe desde dezembro de 2010 também fazem parte da revolução mundial atual e podem desempenhar um papel na Nova Esquerda Global. Como em revoluções mundiais anterio- res, o contágio e as novas tecnologias de comunicação têm sido elementos importantes. E, como nas revoluções mundiais anteriores, movimentos bas- tante diferentes, estimulados por diferentes condições locais, convergem na hora de desafiar os poderes constituídos. Os movimentos da Primave- ra Árabe foram bastante diferentes dos movimentos de justiça global, ten- do por principais alvos os regimes autoritários nacionais, em vez do capi- talismo global. Jovens manifestantes usaram a rede social Facebook para organizar principalmente protestos pacíficos que conseguiram fazer com que vários antigos regimes arraigados renunciassem. Os países em que esses movimentos foram bem-sucedidos não são os países mais pobres da África e do Oriente Médio. Ao contrário, foram os países semiperiféricos, em que um grupo grande de mobilização de jovens tem acesso às mídias sociais. Em muitos casos, os velhos autocratas estavam tentando implantar programas de austeridade para que pudessem tomar mais dinheiro emprestado do exte- rior, o que preparou o cenário para os movimentos de massa. Mas os movi- mentos da Primavera Árabe não levantaram, explicitamente, as questões da austeridade e da dependência financeira global.72 As questões levantadas pelos movimentos da Primavera Árabe estavam relacionadas principalmente à democracia nacional, não à justiça global. Mas o exemplo das massas de jovens unidos contra regimes impopulares se es- palhou rapidamente para os estados centrais de segundo nível da Europa. A Espanha e a Grécia testemunharam grandes manifestações antiausterida- de que foram inspiradas na Primavera Árabe. Essas manifestações foram di- rigidas a regimes nacionais impopulares, mas também à estrutura financeira 72 A intervenção da OTAN na Líbia exibiu a ilegitimidade tanto de Khadafi quanto do nascente Estado global que o depôs. O BRASIL E O CAPITALISMO HISTÓRICO 124 global que tem exercido pressão sobre a austeridade draconiana e as novas privatizações no contexto da crise financeira global. Os programas de auste- ridade são as condições impostas pelo capital financeiroglobal para reinflar as estruturas de acumulação desses países europeus centrais de segundo ní- vel. As rebeliões populares antiausteridade poderiam também provocar um colapso ainda maior se os investidores financeiros e respectivos agentes ins- titucionais perdessem a fé na capacidade do sistema de reproduzir as estru- turas existentes de acumulação. Os movimentos antiausteridade também se espalharam para alguns dos estados centrais onde crises fiscais graves le- varam ao desmantelamento dos serviços públicos. O surgimento do movi- mento Ocuppy Wall Street, na cidade de Nova York, e sua rápida dissemina- ção até pequenas cidades dos EUA e outras cidades do mundo todo, mostra que a resistência popular ao capital financeiro global é de fato generalizada (CHASE-DUNN; CURRAN-STRANGE, 2012). O que há de realmente errado com o capitalismo? Os movimentos e regimes que procuram transcender o capitalis- mo devem ter ideias claras sobre o que há realmente de errado com o ca- pitalismo e como é possível corrigir estas deficiências. Estamos de acordo com Arrighi (2006) quanto à ideia de que os mercados em si não são o problema em relação ao capitalismo. O uso de ideias como a mercantiliza- ção e a privatização por políticos neoliberais para atacar os sindicatos e o estado-providência tende a causar uma reação excessiva contra os merca- dos e a mercantilização. Os mercados são úteis para fornecer sinais sobre demandas, pois as pessoas votam com seu dinheiro. As revoluções mundiais anteriores critica- ram a mercantilização como um problema central do capitalismo. Esta foi uma maneira de mobilizar as massas alienadas quanto à impessoalidade das interações de mercado e às enormes desigualdades que pareciam ser produ- zidas por trocas mercantilizadas. O modelo de John Roemer (1994) de so- cialismo de mercado, no qual as ações de grandes empresas são distribuídas 125 CONTINUIDADES E TRANSFORMAÇÕES NA EVOLUÇÃO DOS SISTEMAS-MUNDO igualmente para cada cidadão e podem ser trocadas por ações que são con- sideradas mais rentáveis, continuaria a exercer pressão sobre as grandes em- presas para que essas fossem eficientes e obtivessem lucros, distribuindo as recompensas de forma mais igualitária para toda a população. Isto resolve o problema das “restrições orçamentárias brandas” em economias planificadas, como a União Soviética e a República Popular da China, pois as empresas de- vem vender produtos em um mercado competitivo e devem competir entre si pelo capital. Ainda não se experimentou tal modelo. Os experimentos na distribuição de cupons realizados durante a “terapia de choque” neoliberal na Europa Oriental após a queda do comunismo eram piadas cruéis através das quais as velhas oligarquias comunistas puderam estabelecer-se como no- vas proprietárias capitalistas dos grandes meios de produção. Apesar de con- cordarmos que não se deva experimentar o “socialismo” organizado como uma economia de comando centralizado baseada na propriedade estatal, acredita- mos que outros modelos de socialismo podem muito bem desempenhar um papel importante no futuro, pois o capitalismo produz e reproduz níveis ina- ceitáveis de desigualdade. Boswell e Chase-Dunn (2000) imaginam uma for- ma plausível de socialismo em nível mundial que combina o socialismo de mercado de Roemer com instituições globais que reduzem as relações centro/ periferia e conferem algum poder aos trabalhadores na periferia. A revolução mundial de 1917 também atacou o individualismo como um dos males do capitalismo, o que foi um grande erro. A proteção dos direitos da pessoa humana é um valioso elemento da modernidade que não deveria ser atacado pelos socialistas. É um erro chamá-la de “in- dividualismo burguês” e denegrir as proteções legais dos indivíduos que foram asseguradas em algumas constituições e aplicadas por alguns Esta- dos. A racionalidade coletiva e a validação das comunidades humanas não exigem a rejeição do individualismo como um valor. Esse foi um erro reativo dos movimentos anteriores. As grandes populações já se tornaram acultu- radas às trocas via mercado e aos direitos individuais. A cultura do consu- mismo não é um problema porque o mercado é alienante. O problema está no fato de que tal cultura foi organizada como desperdício perdulário dos recursos naturais e como poluição. Os movimentos neossocialistas precisam O BRASIL E O CAPITALISMO HISTÓRICO 126 construir novas versões de racionalidade coletiva que respeitem os direitos dos indivíduos. As grandes questões do século 21 serão a degradação ambiental, as desigualdades norte/sul e a crise de governança global, devido ao declínio da hegemonia dos EUA. As desigualdades podem ser tratadas por meio da estratégia de socialismo de mercado ou por uma versão global do key- nesianismo, ou uma mistura dos dois. Ambos exigiriam instituições legíti- mas e com grande capacidade de governança global. Crises de degradação ambiental, tais como o aquecimento global e a justiça climática, também exi- girão instituições globais legítimas e eficazes. E a degradação ambiental causa disputas pelos recursos. Essas disputas podem ser reduzidas por meio da re- solução de conflitos por instituições democráticas de governança global. O capitalismo é um problema ambiental porque as empresas capitalistas ten- dem a externalizar os custos ambientais de suas operações. Uma mudança exigirá instituições reguladoras que tenham a capacidade de fazer cumprir as decisões tomadas democraticamente a respeito do uso dos recursos naturais e a respeito de quem vai pagar pela limpeza da poluição. Conclusões Assim sendo, os desenvolvimentos recentes constituem o início da crise terminal do capitalismo ou o início de outro ciclo sistêmico de acumu- lação? Conforme mencionado acima, o capitalismo predominante não existe há tanto tempo, do ponto de vista da sucessão de lógicas de reprodução so- cial qualitativamente diferentes. Mas o capitalismo em si acelera a mudança social. As contradições do capitalismo especificadas por Wallerstein acaba- rão atingindo níveis nos quais elas não poderão ser controladas. Mas quan- do isso vai acontecer? Declarações de uma transformação iminente rumo a um modo qualitativamente diferente, mais humano e sustentável de acu- mulação são úteis para a mobilização de movimentos sociais. No entanto, o milenarismo corre o risco de desapontar quando a nova era utópica não chegar. Porém, são necessários experimentos no socialismo de mercado e 127 CONTINUIDADES E TRANSFORMAÇÕES NA EVOLUÇÃO DOS SISTEMAS-MUNDO em comunidades ambientalmente saudáveis a fim de se demonstrar que es- sas formas de vida social são viáveis. Acreditamos que tanto uma nova etapa do capitalismo quanto uma transformação sistêmica qualitativa são possíveis nas próximas três décadas, mas um novo estágio do capitalismo é mais provável. Foi observado aci- ma que a evolução da governança global ocorre quando os conservadores es- clarecidos implementam as demandas de uma revolução mundial anterior com o propósito de arrefecer as pressões vindas de baixo que são trazidas à tona na revolução mundial corrente. Pensamos que o resultado mais pro- vável da crise atual e da revolução mundial será uma forma de keynesia- nismo global em que parte da elite global, estimulada por revoltas e cri- ses, formará um conjunto mais legítimo e democrático de instituições de governança global a fim de melhorar alguns dos problemas do século 21. Se o declínio da hegemonia dos EUA for lento, como tem sido desde os anos setenta, e se as crises financeira e ambiental forem escalonadas no tempo e os conflitos entre grupos étnicos e nações também forem escalona- dos, os conservadores esclarecidos e seus aliados terão, dessa forma, a chan- ce de construir outra ordem mundial que, mesmo permanecendo capitalista, atenda aos desafios atuais, pelo menos parcialmente. Mas caso essas situações ocorram no mesmo período, os movimentosterão a chance de mudar radical- mente o modo de acumulação para alguma forma de socialismo global. Enquanto isso, de uma forma ou outra, os movimentos precisam es- clarecer o que há de errado com o capitalismo e o que poderia ser feito para substituí-lo. Mesmo que a transformação rumo a uma comunidade coleti- vamente racional global não ocorra desta vez, a propagação das ideias e das demandas sinalizará a direção certa. Referências ALLISON, Juliann; BRECKENRIDGE-JACKSON, Ian; GUENTHER, Katja M. et. al. “Is the economic crisis a crisis for social justice activism/”. Policy Matters v. 5, n. 1 (Spring), 2011. Disponível em: <http://policymatters.ucr.eduAlexis>. O BRASIL E O CAPITALISMO HISTÓRICO 128 ALVAREZ, Hiroko Inoue; LAWRENCE, Kirk;, COURTNEY, Evelyn et al. “Semiperipheral Development and Empire Upsweeps Since the Bronze Age” IROWS Working Paper #56, 2011. Disponível em: <http://irows.ucr.edu/ papers/irows56/irows56.htm>. AMIN, Samir. Capitalism in an Age of Globalization. London: Zed Books, 1997. ARRIGHI, Giovanni. The Long Twentieth Century. London: Verso, 1994. _______. Adam Smith in Beijing. London: Verso, 2006. _______; Terence K. HOPKINS, Terence; WALLERSTEIN, Immanuel. 1989. Antisystemic Movements. London: Verso, s.d. _______; SILVER, Beverly. Chaos and Governance in the Modern World- System: Comparing Hegemonic Transitions. Minneapolis: University of Minnesota Press, 1999. BARBOSA, Luis C.; HALL, Thomas D. “Brazilian slavery and the world eco- nomy”. Western Sociological Review, v. 15, n.1, p. 99-119, 1985. BERGESEN, Albert; SCHOENBERG, Ronald. “Long waves of colonial expan- sion and contraction 1415-1969” In: BERGESEN, Albert (ed.). Studies of the Modern World-System. New York: Academic Press, 1980. p. 231-278. BORNSCHIER, Volker. “On the evolution of inequality in the world sys- tem”. In: STUTER, Christian Suter (ed.). Inequality Beyond Globalization: Economic Changes. Social Transformations and the Dynamics of Inequality. Berlin: World Society Studies, 2010. BORNSCHIER, Volker; CHASE-DUNN, Cristopher (eds.). The Future of Global Conflict. London: Sage, s.d. BOSERUP, Ester. Population and Technological Change. Chicago: Univer- sity of Chicago Press, 1981. BOSWELL, Terry; CHASE-DUNN, Cristopher. The Spiral of Capitalism and Socialism: Toward Global Democracy. Boulder, CO.: Lynne Rienner, 2000. BRENNER,Robert. The Boom and the Bubble: The U.S. in the World Eco- nomy. London: Verso, 2002. 129 CONTINUIDADES E TRANSFORMAÇÕES NA EVOLUÇÃO DOS SISTEMAS-MUNDO BUNKER, Stephen; CICCANTELL, Paul. Globalization and the Race for Resources. Baltimore: Johns Hopkins University Press, 2005. CARROLL, William K. The Making of a Transnational Capitalist Class. London: Zed Press, 2010. CHASE-DUNN, Christopher. Global Formation: Structures of the World- Economy. Lanham, MD: Rowman and Littlefield, 1998. _______. Orfalea Lecture on the evolution of societal organization. Dis- ponível em: <http://www.youtube.com/watch?v=FxNgOkU6NzY>. CHASE-DUNN, C.; BABONES, Salvatore (eds.). Global Social Change: Historical and Comparative Perspectives. Baltimore, MD: Johns Hopkins University Press, s.d.. CHASE-DUNN, C.; BOSWELL, Terry. “Semiperipheral development and global democracy”. In: MOORE, Phoebe; WORTH, Owen. Globalization and the Semiperiphery: New York: Palgrave MacMillan, 2009. CHASE-DUNN, C.; KAWANO, Yukio; BREWER, Benjamin. “Trade glo- balization since 1795: waves of integration in the world-system”. American Sociological Review, v. 65, n. 1, 65, 1, p. 77-95, 2000. CHASE-DUNN, Christopher; HALL, Thomas D. Rise and Demise: Com- paring World-Systems. Boulder, CO: Westview, 1997. CHASE-DUNN, C., KWON, Roy; LAWRENCE, Kirk; INOUE, Hiroko. “Last of the hegemons: U.S. decline and global governance”. International Review of Modern Sociology, v. 37, n. 1, p. 1-29, 2011. CHASE-DUNN, C.; KWON, Roy. “Crises and Counter-Movements in World Evolutionary Perspective”. In: SUTER, Christian; HERKENRATH, Mark (Eds.). The Global Economic Crisis: Perceptions and Impacts (World Society Studies 2011).Wien/Berlin/Zürich: LIT Verlag, 2011. CHASE-DUNN, C.; LAWRENCE, Kirk. “The Next Three Futures, Part One: Looming Crises of Global Inequality, Edcological Degradation, and a Failed System of Global Governance”. Global Society, v. 25, n. 2, p.137-153, 2011. Disponível em: <http://irows.ucr.edu/papers/irows47/irows47.htm>. O BRASIL E O CAPITALISMO HISTÓRICO 130 CHASE-DUNN C.; REESE, Ellen. “Global political party formation in world historical perspective”. In: SEHM-PATOMAKI, Katarina; ULVILA, Marko (eds.). Global Political Parties. London: Zed Press, 2007. CHASE-DUNN, C.; NIEMEYER, R.E.. “The world revolution of 20xx”. p. 35-57 In MATHIAS, Albert; BLUHM, Gesa; HELMIG, Han et al. (eds.). Transnational Political Spaces. Campus Verlag: Frankfurt/New York, 2009. CHASE-DUNN, C.; LERRO, Bruce. “Democratizing Global Governance: Strategy and Tactics in Evolutionary Perspective”. IROWS Working Paper #40, 2008. CHASE-DUNN, Christopher; PODOBNIK, Bruce. “The Next World War: World-System Cycles and Trends”. Journal of World-Systems Research, v. 1, n. 6, 1995. Disponível em: <http://jwsr.ucr.edu/archive/vol1/v1_n6.php>. Chase-Dunn, C.; CURRAN-STRANGE, Michaela. “The diffusion of the Oc- cupy movement in California”. IROWS Working Paper #74, 2012. Disponí- vel em: <http://irows.ucr.edu/papers/irows74/irows74.htm>. CIOFFI, John W. “The Global Financial Crisis: Conflicts of Interest, Regu- latory Failures, and Politics”. Policy Matters, v. 4, n. 1, 2010. Disponível em: <http://policymatters.ucr.edu/>. COLLINS, Randall. “Geopolitical conditions of internationalism, human rights and world law”. Journal of Globalization Studies, v.1 , n. 1, p. 29-45, 2010. DAVIS, Mike. Planet of Slums. London: Verso, 2006. ________. “Spring confronts Winter”. New Left Review, n. 72, p.5-15, 2011. EVANS, Peter B. Dependent Development: the alliance of multinational, state and local capital in Brazil. Princeton Unviersity Press, 1979. FIREBAUGH, Glenn. The New Geography of Global Income Inequality. Cambridge and London: Harvard University Press, 2003. FLETCHER, Jesse B; APKARIAN, Jacob; HANNEMAN, Robert A; INOUE, Hiroko; LAWRENCE, Kirk; CHASE-DUNN, Christopher. ”Demographic Regu- lators in Small-Scale World-Systems”. Structure and Dynamics, v. 5, n.1, 2011. 131 CONTINUIDADES E TRANSFORMAÇÕES NA EVOLUÇÃO DOS SISTEMAS-MUNDO FRANK, Andre Gunder. Reorient: Global Economy in the Asian Age. Berkeley: University of California Press, 1998. GOLDFRANK, Walter L. “Beyond hegemony”. In: BORNSCHIER, Volker; CHASE-DUNN, Christopher (eds.). The Future of Global Conflict. London: Sage, 1999. GOLDSTONE, Jack A. Revolution and Rebellion in the Early Modern World. Berkeley: University of California Press, 1991. GRAMSCI, Antonio. Selections for the Prison Notebooks. New York: In- ternational Publishers, 1971. Grinen, Leonid; KORTAYEV, Andrey. “Will the global crisis lead to global transformations?: the global financial system—pros and cons”. Journal of Globalization Studies, v. 1, n. 1, p. 70-89, may, 2010. HALL, Thomas D.; CHASE-DUNN, Christopher. “Global social change in the long run”. In: C. Chase-Dunn and S. Babones (eds.). Global Social Chan- ge: Historical and Comparative Perspectives. Baltimore: Johns Hopkins Uni- versity Press, 2006. p. 33-58. HAMASHITA, Takeshi. “Tribute and treaties: maritime Asia and treaty port netowrks in the era of negotiations, 1800-1900”. In: ARRIGHI, Giovanni; HAMASHITA, Takeshi; SELDEN, Mark (eds.). The Resurgence of East Asia. London: Routledge, 2003. p. 17-50. HARVEY, David. The Limits to Capital. Cambridge, MA: Blackwell, 1982. _______. The Enigma of Capital, s.l., 2010. _______. “The crisis of capitalism”. 2010. Disponível em: <http://davidhar- vey.org/2010/05/video-the-crises-of-capitalism-at-the-rsa/>. HENIGE, David P. Colonial Governors from the Fifteenth Century to the Present. Madison, WI.: University of WisconsinPress, 1970. HENWOOD, Doug. Wall Street : how it works and for whom London: Ver- so, 1997. HILFERDING, Rudolf. Finance Capital: A Study Of The Latest Phase Of Capitalist Development. London : Routledge & Kegan Paul, 1981. O BRASIL E O CAPITALISMO HISTÓRICO 132 HOBSBAWM, Eric.The Age of Extremes: A History of the World, 1914- 1991. New York: Pantheon, 1994. KAMLANI, Deirdre Shay. The four faces of power in sovereign debt res- tructuring: Explaining Bargaining Outcomes Between Debtor States and Private Creditors Since 1870. Unpublished Thesis, London School of Eco- nomics, 2008. KLEIN, Naomi. The Shock Doctrine: The Rise of Disaster Capitalism. New York: Henry Holt and Company, 2007. KORZENIEWICZ, Roberto P.; MORAN, Timothy Patrick. “Measuring World Income Inequalities.” American Journal of Sociology, v. 106, n.1, p. 209-221, 2000. _______. Unveiling Inequality: A World Historical Perspective. New York, NY: Russell Sage Foundation, 2009. KRIPPNER, Greta R. “The political economy of financial exuberance”. In: LOUNSBURY, Michael (ed.). Markets on Trial: The Economic Sociology of the U.S. Financial Crisis: Part B (Research in the Sociology of Organizations, Volu- me 30) Bingley, UK: Emerald Group Publishing Limited, 2010. p. 141-173. KUECKER, Glen. “The perfect storm”. International Journal of Environ- mental, Cultural and Social Sustainability, n. 3, 2007. LAWRENCE, Kirk. “Toward a democratic and collectively rational global commonwealth: semiperipheral transformation in a post-peak world-system” In: MOORE, Phoebe; WORTH, L.Owen . Globalization and the Semiperi- phery. New York: Palgrave MacMillan, 2009. LINDHOLM, Charles; ZUQUETE; Jose Pedro. The Struggle for the World: Liberation Movements for the 21st Century. Palo Alto, CA: Stanford University Press, 2010. LÓPEZ, Jesús Espasandín and Pablo Iglesias Turrión (eds.) Bolivia en mo- vimiento. Acción colectiva y poder político, 2006. Disponível em: <http:// www.nodo50.org/boliviaenmovimiento/>. MANN, Michael. The Sources of Social Power, Volume 1. Cambridge: Cambridge University Press, 1986. 133 CONTINUIDADES E TRANSFORMAÇÕES NA EVOLUÇÃO DOS SISTEMAS-MUNDO _______. “The Recent Intensification of American Economic and Military Imperialism: Are They Connected? Presented at the annual meeting of the American Sociological Association, Montreal, August 11, 2006. MARTIN, William G. et al. Making Waves: Worldwide Social Movements, 1750-2005. Boulder, CO: Paradigm, 2008. MITCHELL, Brian R. International Historical Statistics: Europe 1750- 1988. 3 ed. New York: Stockton, 1992. _______. International Historical Statistics: The Americas 1750-1988. 2 ed. New York: Stockton, 1993. _______. International Historical Statistics: Africa, Asia, and Oceania 1750-1988. 2 ed. New York: Stockton, 1995. MODELSKI, George; THOMPSON, William R. Leading Sectors and World Powers: The Coevolution of Global Politics and Economics. Colum- bia, SC: University of South Carolina Press, 1996. MONBIOT, George. Manifesto for a New World Order. New York: New Press, 2003. PATOMAKI, Heikki. The Political Economy of Global Security. New York: Routledge, 2008. PFISTER, Ulrich; SUTER, Christian; “International financial relations as part of the world system.” International Studies Quarterly, v. 31, n.3, p. 23-72, 1987. POLANYI, Karl. The great transformation. New York: Farrar & Rinehart, 1944. PODOBNIK, Bruce. Global Energy Shifts. Philadelphia, PA: Temple University Press, 2006. REESE, Ellen; CHASE-DUNN, Cristopher; ANANTRAM, Kadambari;, COYNE, Gary et al. “Research Note: Surveys of World Social Forum Parti- cipants Show Influence of Place and Base in the Global Public Sphere.” Mo- bilization: An International Journal, v.13, n.4, p. 431-445, 2008. Revised version in A Handbook of the World Social Forums Editors: Jackie Smith, Scott Byrd, Ellen Reeseand Elizabeth Smythe. Paradigm Publishers. O BRASIL E O CAPITALISMO HISTÓRICO 134 REIFER, Thomas E. “Lawyers, Guns and Money: Wall Street Lawyers, Invest- ment Bankers and Global Financial Crises, Late 19th to Early 21st Century”. Nexus: Chapman’s Journal of Law & Policy, n. 15, p.119-133, 2009-10. REINHART, Carmen M.; ROGOFF, Kenneth S. “This time is different: a panoramic view of eight centuries of financial crises”. NBER Working Paper 13882. Disponível em: <http://www.nber.org/papers/w13882>. REITAN, Ruth. Global Activism. London: Routledge, 2007. ROBINSON, William I. Promoting Polyarchy: Globalization, US Interven- tion and Hegemony. Cambridge: Cambridge University Press, 1996. _______. Latin America and Globalization. Baltimore: Johns Hopkins Unversity Press, 2008. _______. “The crisis of global capitalism: cyclical, structural or systemic?” In: KONINGS, Martijn (ed.). The Great Credit Crash. London:Verso, 2010. p. 289-310. ROEMER, John. A Future for Socialism. Cambridge, MA: Harvard Univer- sity Press, 1994. SANTOS, Boaventura de Sousa. The Rise of the Global Left. London: Zed Press, 2006. SEN, Jai; WATERMAN, Peter (eds.). World Social Forum: Challenging Empires. Montreal: Black Rose Books, s.d. SMITH, Jackie; KARIDES, Marina; BECKER, Marc et al. Global Demo- cracy and the World Social Forums. Boulder, CO: Paradigm Publishers, 2007. SILVER, Beverly J. Forces of Labor: Workers Movements and Globalization Since 1870. Cambridge: Cambridge University Press, 2003. SUTER, Christian. “Long waves in core-periphery relationships within the international financial system: debt-default cycles of sovereign borrowers.” Review, v. 10, n.3, 1987. _______. Debt cycles in the world-economy: foreign loans, financial crises, and debt settlements, 1820-1990 Boulder: Westview Press, 1992. 135 CONTINUIDADES E TRANSFORMAÇÕES NA EVOLUÇÃO DOS SISTEMAS-MUNDO _______. “Financial crises and the institutional evolution of the global debt restructuring regime, 1820-2008”. Presented at the PEWS Conference on “The Social and Natural Limits of Globalization and the Current Conjunctu- re”, University of San Francisco, August 7, 2009. TAYLOR, Peter. The Way the Modern World Works: Global Hegemony to Global Impasse. New York: Wiley, 1996. TURCHIN, P. Historical dynamics: why states rise and fall. Princeton Uni- versity Press, Princeton, NJ, 2003. TURCHIN, Peter; NEFEDOV, Sergey. Secular Cycles. Princeton, NJ: Prin- ceton University Press, 2009. TURNER, Jonathan H. Principles of Sociology, Volume 1, Macrodynamics. Springer Verlag, 2010. WALLERSTEIN, Immanuel. “The three instances of hegemony in the his- tory of the capitalist world-economy.” In: LENSKI, Gerhard (ed.). Current Issues and Research in Macrosociology. International Studies in Sociology and Social Anthropology. Leiden: E.J. Brill, 1984a. v. 37, p. 100-108. _______. The politics of the world-economy: the states, the movements and the civilizations. Cambridge: Cambridge University Press, 1984b. _______. Utopistics. Or, historical choices of the twenty-first century. New York: The New Press, 1998. _______. The Decline of American Power. New York: New Press, 2003. _______. “Contradictions in the Latin American Left”. Commentary n. 287, Aug. 15, 2010. Disponível em: <http://www.iwallerstein.com/contra- dictions-in-the-latin-american-left/>. WALLERSTEIN, Immanuel. The Modern World-System, Volume 1. Berkeley: University of California Press, 2001 [1974]. WORLD BANK. World Development Indicators [CD ROM]. Washington DC: World Bank, 2009. _______. World Development Indicators [online]. Washington DC: World Bank, 2011. 137 Desigualdades mundiais de renda: em direção a uma perspectiva crítica ROBERTO PATRICIO KORZENIEWICZ73 Há quase 20 anos, na revista New Left Review, Giovanni Arrighi re- sumiu as tendências da estratificação global, demostrando que “após trin- ta anos de esforços de desenvolvimento de todos os tipos, as brechas que separam as rendas do Leste e do Sul das rendas do Oeste e do Norte são, atualmente, maiores do que nunca”. (ARRIGHI, 1991, p. 39-66). O reconhe-cimento dessas brechas, argumentou Arrighi em seu artigo, era necessário para todas as forças progressistas que visavam promover “uma ordem mun- dial mais igual e solidária”. O objetivo deste artigo é reavaliar a base empírica da desigualdade global diante das transformações contínuas que têm carac- terizado a economia-mundo durante os últimos vinte anos e na crise atual, e oferecer uma explicação crítica das atuais tendências da desigualdade 73 Doutor em Sociologia pela State University of New York - Binghamton. Professor da University of Maryland. C A P Í T U L O 5 O BRASIL E O CAPITALISMO HISTÓRICO 138 mundial, a partir de alguns insights teóricos mais gerais de Giovanni Arrighi sobre o desenvolvimento da economia-mundo.74 Tendências da desigualdade mundial e o impacto da crise atual Escrito logo após o colapso da União Soviética e do Bloco do Leste, o artigo de Arrighi (1991, p. 39) indicou que as desigualdades crescentes da renda mundial, que intensificaram apesar da industrialização bem-sucedida em muitas regiões da economia-mundo, eram a origem das “grandes revol- tas políticas de nossos dias”. De acordo com Arrighi (1991, p. 40), em um esforço para aumentar o controle sobre a riqueza, os governos nacionais do século 20, no mundo inteiro, adotaram as estratégias de desenvolvimento prevalecentes, “internalizando dentro de seus domínios algumas caracterís- ticas dos países mais ricos, tais como a industrialização e a urbanização”. No entanto, embora tenha sido bem-sucedida para algumas nações (como o Japão, entre as décadas de 1950 e 1960, ou a Coreia do Sul, entre os anos 70 e 80), essa trajetória de desenvolvimento “não modificou a hierarquia geral da riqueza” na economia-mundo. Para apresentar essas tendências, Arrighi, em sua contribuição para a revista New Left Review, em 1991, comparou tendências no compartilha- mento da renda entre diferentes segmentos das populações da economia- mundo. O primeiro segmento incluiu o que Arrighi (1991, p. 42) denomi- nou núcleo orgânico: nações que, nos 50 anos anteriores a 1991, e de forma contínua, “ocuparam as primeiras posições na hierarquia global da rique- za”: diversos países da Europa Ocidental (Bélgica, Holanda, Luxemburgo, Noruega, Suécia, Dinamarca, Finlândia, Alemanha Ocidental, Áustria, Suíça, França e Reino Unido), da América do Norte (Canadá e Estados Unidos) 74 Nosso foco recai no impacto da crise nas desigualdades mundiais de renda mais do que na trajetória da crise em si. Para uma visão geral da última, consulte o artigo de BLACKBURN, Robin. “The Subprime Crisis” (A Crise do Mercado Subprime), New Left Review, p. 63-106, mar-abr. 2008. 139 DESIGUALDADES MUNDIAIS DE RENDA: EM DIREÇÃO A UMA PERSPECTIVA CRÍTICA e da Oceania (Austrália e Nova Zelândia). Entre os países neste segmento “rico” da economia-mundo, os Estados Unidos assumiram a liderança logo após a Segunda Guerra Mundial, mas uma convergência considerável ocor- reu entre esses países de alta renda após os anos 1950. Arrighi observou que, durante esse período de 50 anos, houve al- guns casos notáveis de crescimento bem-sucedido por parte de países que no mesmo período passaram a ser considerados, de forma geral, os “mila- gres” econômicos de seu tempo: Japão e Coreia do Sul, na Ásia; Itália e Espa- nha, na Europa; Brasil, na América Latina. Para diferenciar essas trajetórias, Arrighi também avaliou o desempenho econômico relativo das nações que faziam parte do bloco socialista, antes dos anos 1990. No entanto, o ponto principal da análise de Arrighi, em seu artigo de 1991, foi a avaliação da trajetória da brecha que separa as nações pobres das ricas. Neste sentido, Arrighi (1991, p. 49) aponta que ocorreu, na verdade, uma redução significativa da participação da grande maioria das populações do mundo na renda mundial durante boa parte do período após a Segunda Guerra Mundial, de forma que “a tendência das desigualdades de renda du- rante os últimos 50 anos foi de declínio entre as regiões ricas, mas de aumen- to para as regiões mais pobres”. Houve uma mudança dessas tendências durante os cerca de vinte anos que se seguiram à publicação do artigo de Arrighi em 1991? Para avaliar essa questão, este artigo reproduz o tipo de exercício empírico realizado por Arrighi: são utilizados os dados da renda nacional para o cálculo do produto nacio- nal bruto per capita (PNBPC) de diversos segmentos da população (POP) no mundo inteiro, expressados como uma porcentagem dos valores equivalentes para o que Arrighi denominou de “núcleo orgânico”. Esse cálculo serve para medir até que ponto as populações de países e/ou regiões específicas alcança- ram os níveis de renda das populações das nações de alta renda. A tabela 1 mostra que houve uma década (entre a metade dos anos 1990 e meados dos anos 2000) em que o crescimento econômico foi mais rá- pido na América do Norte do que no resto do mundo “ocidental” (incluindo Austrália e Nova Zelândia). Entretanto, a posição geral relativa das nações “ocidentais” mais ricas do mundo não mudou drasticamente entre o começo O BRASIL E O CAPITALISMO HISTÓRICO 140 dos anos 1990 e meados dos anos 2000; na verdade, há indícios constantes de uma convergência crescente entre as nações de alta renda. Tabela 1: Comparação do Desempenho Econômico no “Ocidente” de Arrighi (Centro Orgânico) 1973 1980 1985 1990 1995 2000 2005 2006 2007 I, Europa Ocidental (12) PNBPC 79,5 98,4 73,4 94,5 98,9 88,9 95,1 96,1 97,5 POP 49,6 48,0 47,0 46,2 45,2 44,2 43,4 43,3 43 II, América do Norte (2) PNBPC 123,0 103,0 126,5 106,9 103,2 112,0 106,2 105,0 103,7 POP 47,1 48,6 49,5 50,1 51,0 52,0 52,6 52,8 52,9 III, Austrália e N. Zelândia (2) PNBPC 79,4 80,9 82,7 76,1 69,5 65,7 71,4 75,9 78,3 POP 3,3 3,4 3,6 3,7 3,8 3,8 3,9 4,0 4,0 Observações: Os dados de PNBPC (produto nacional bruto per capita) e POP (população) são razões para seus equivalentes do núcleo orgânico de Arrighi (Áustria, Benelux e países escandinavos, Alemanha, Suíça, França, Reino Unido, Estados Unidos, Canadá, Austrália e Nova Zelândia) Fonte: Cálculos do autor baseados no Banco Mundial (2010) E quanto aos cinco países que apareceram como os casos promisso- res mais notáveis de crescimento bem-sucedido nos anos 1980 e começo dos anos 1990? Conforme a tabela 2, abaixo, o Japão, aclamado por autori- dades e formuladores de políticas como um modelo de sucesso econômico nos anos 1980, quando parecia estar ultrapassando rapidamente os Estados Unidos e as outras nações ocidentais do centro, alcançou altos índices no PNBPC relativo na metade dos anos 1990, e declinou, posteriormente, em consequência da estagnação econômica virtual (especialmente em compa- ração ao desempenho dos países ocidentais discutidos anteriormente). Em geral, os níveis de PNBPC relativo do Brasil e da Itália se mantiveram entre o começo dos anos 1990 e meados dos anos 2000 (com pequenas diferen- ças entre os dois países em momentos específicos nos períodos de maior ou menor crescimento). Por outro lado, por conta de oportunidades e estraté- gias relativamente diferentes de crescimento, tanto a Coreia do Sul quanto a Espanha continuaram a alcançar o “núcleo orgânico” durante todo o período (com crescimento mais acentuado após o começo dos anos 2000). 141 DESIGUALDADES MUNDIAIS DE RENDA: EM DIREÇÃO A UMA PERSPECTIVA CRÍTICA Tabela 2: Comparação do Desempenho Econômico nos “milagres econômicos” de Arrighi 1973 1985 1990 2000 2005 2006 2007 1. Leste da Ásia 1.1. Japão PNBPC 61,7 82,8 82,4 123,8 153,4 116,8 97,3 POP 21,7 22,5 22,6 22,3 21,6 21,1 20,5 1.2. Coreia do Sul PNBPC 7,4 14,6 17,7 27,9 41,0 33,0 39,8 POP 6,8 7,4 7,6 7,7 7,8 7,8 7,7 2. Sul da Europa 2.1 Itália PNBPC 55,7 65,0 58,5 83,1 75,1 70,4 76,3 POP 11,0 10,9 10,610,2 9,8 9,5 9,4 2.2 Espanha PNBPC 36,4 48,7 33,7 55,2 55,3 52,0 63,6 POP 3,3 3,4 3,6 3,7 3,8 3,8 3,9 3. América Latina 3.1 Brasil PNBPC 13,5 17,6 11,9 12,5 14,2 13,0 9,7 POP 20,7 23,4 25,5 27,0 27,9 28,9 30,0 Observações: Os dados de PNBPC (produto nacional bruto per capita) e POP (população) são razões para seus equivalentes do núcleo orgânico de Arrighi (consulte a Tabela 1) Fonte: Cálculos do autor baseados no Banco Mundial (2010) O padrão misto de trajetórias de crescimento econômico com grau maior e menor de êxito também caracteriza a maioria das regiões do mundo. Como indicado na tabela 3, abaixo, para muitas nações, os anos 90 e a década seguinte trouxeram convergências insignificantes ou insuficientes com o nú- cleo orgânico. Por exemplo, este foi o caso da América Latina (com exceção do Brasil), que de forma geral perdeu bastante terreno durante os anos 70 e 80, atingindo o patamar mais baixo no começo dos anos 90. Posteriormente, a média relativa do PNBPC para a América Latina com um todo mostrou O BRASIL E O CAPITALISMO HISTÓRICO 142 alguma recuperação em relação ao núcleo orgânico, aproximando-se da posição relativa que ocupava em meados dos anos 80, mas sem recuperar a posição alcançada nos anos 1970. Tabela 3: Comparação do Desempenho Econômico no “Sul “e “Leste” de Arrighi 1973 1980 1985 1990 1995 2000 2005 2006 2007 I. América Latina, excluindo o Brasil PNBPC 18,1 17,6 14,4 10,0 13,3 13,9 12,7 13,5 14,6 POP 32,7 37,1 40,0 42,5 45,3 47,1 48,4 48,6 48,8 II. Hungria e Polônia PNBPC 12,2 15,5 19,7 21,2 23,4 POP 8,4 8,1 7,7 7,7 7,6 III. Oriente Médio e Norte da África PNBPC 9,4 10,0 8,6 8,0 7,1 6,9 7,4 8,1 8,9 POP 22,8 26,1 29,1 31,6 33,6 35,6 38,4 38,8 39,2 IV. África Sub-Sahariana IV.1. Ocidental e Oriental PNBPC 3,5 4,7 2,4 1,5 1,0 0,9 1,1 1,3 1,4 POP 3,3 3,4 3,6 3,7 3,8 3,8 3,9 4,0 4,0 lV.2. Meridional e Central PNBPC 12,2 11,3 8,8 7,1 5,9 4,2 4,7 5,0 5,0 POP 149,1 168,5 183,0 196,3 206,9 218,1 228,3 230,0 231,7 V. Sul da Ásia PNBPC 2,6 2,2 2,2 1,8 1,5 1,5 1,8 1,9 2,1 POP 149,1 168,5 183,0 196,3 206,9 218,1 228,3 230,0 231,7 VI. Sudeste da Ásia PNBPC 3,8 5,5 5,4 4,7 6,6 4,5 5,0 5,3 5,9 POP 33,4 37,9 40,7 43,2 45,1 46,9 48,9 49,2 49,5 VII. China PNBPC 2,8 2,8 1,7 1,5 2,0 3,1 4,4 4,8 5,4 POP 177,4 189,2 197,0 204,9 207,9 209,9 209,1 208,7 208,3 Observações: Os dados de PNBPC (produto nacional bruto per capita) e POP (população) são razões para seus equivalentes do núcleo orgânico de Arrighi (consulte a tabela 1) Fonte: Cálculos do autor baseados no Banco Mundial (2010) 143 DESIGUALDADES MUNDIAIS DE RENDA: EM DIREÇÃO A UMA PERSPECTIVA CRÍTICA Houve um declínio relativo bastante longo também no Oriente Médio e na África do Norte, mas isto ocorreu nas duas últimas décadas do século 20, com uma pequena recuperação do terreno perdido depois de 2001. Os padrões eram comparáveis aos da África Subsaariana e da maior parte do sul da Ásia. Desse modo, a maioria das nações periféricas e semiperiféricas tiveram pouco êxito em alcançar a média do PNBPC do núcleo orgânico nos anos 1990 e 2000, assim como havia ocorrido nos 50 anos precedentes, conforme explica Arrighi em seu artigo de 1991. Obviamente, essas tendências sinalizam apenas uma parte limitada da história das tendências atuais na desigualdade da renda mundial. Com certeza, o que mais impressiona nas últimas duas décadas, desde o artigo de Arrighi, em 1991, são as taxas extremamente altas de crescimento econô- mico vivenciadas por grande parte da população mundial, primeiramente na China, mas posteriormente ocorrendo de modo significativo também na Índia (vide tabela 3). Abaixo, a tabela 4 indica que, nos últimos vinte anos, a China tem crescido a uma taxa média anual impressionante, de cerca de 10%. Na Índia, as taxas de crescimento têm oscilado mais do que na China, mas foi registra- da uma taxa média anual de crescimento do PIB também notável, de 6,3%. Tabela 4: Taxas de Crescimento Anual do PIB para a Índia e China, 1990-2009 China Índia 1990 3,8 5,6 1991 9,2 2,1 1992 14,2 4,4 1993 14,4 4,9 1994 13,1 6,2 1995 10,9 7,4 I996 10,0 7,6 1997 9,3 4,6 1998 7,8 6,0 1999 7,6 6,9 (Continua) O BRASIL E O CAPITALISMO HISTÓRICO 144 China Índia 2000 8,4 5,7 2001 8,3 3,9 2002 9,1 4,6 2003 10,0 6,9 2004 10,1 7,9 2005 10,4 9,2 2006 11,6 9,8 2007 13,0 9,4 2008 9,6 7,3 2009 8,7 5,7 Observação: Preços constantes Fonte: Fundo Monetário Internacional (2010) Qual tem sido o impacto geral das atuais tendências de crescimento econômico na estratificação social global? Para avaliar essa questão, a figura 1, abaixo, exibe duas estimativas distintas da trajetória da desigualdade entre países durante as últimas quatro décadas, mensuradas com os coeficientes de Gini, e calculadas através dos dados de produto interno bruto do Banco Mundial (2010), em dólares americanos constantes (ano 2000) e ponderados pelas estimativas populacionais elaboradas pela mesma instituição.75 Os coe- ficientes de Gini, que são medidas de desigualdade razoavelmente intuitivas e amplamente utilizadas, podem oscilar entre 0 (completa igualdade) e 1 (completa desigualdade). 75 Arrighi e Drangel (1986), e também Korzeniewicz e Moran (2000 e 2009), afirmam que as medidas de renda FX, ajustadas pelo mercado Forex, são as mais adequadas para a análise da desigualdade global, especialmente em estudos longitudinais. (Conclusão) 145 DESIGUALDADES MUNDIAIS DE RENDA: EM DIREÇÃO A UMA PERSPECTIVA CRÍTICA Figura 1: Coeficientes de Gini para desigualdade entre países: 1973-2008 Observação: com a China, tamanho da amostra = 117 países; 86% da população do mundo em 2000 Fonte: Cálculos dos autores baseados no Banco Mundial (2010) As tendências sugeridas pelos coeficientes de Gini na figura 1, acima, realmente confirmam que houve certo declínio nas desigualdades da renda mundial durante os últimos 20 anos. Por volta de 1990, as desigualdades en- tre países atingiram o pico, com o coeficiente de Gini chegando a 0,755. Esse é um nível de desigualdade muito alto (igual ou maior do que o coeficiente de Gini observado na distribuição de renda dentro dos países mais desiguais no mundo – como o Brasil ou a África do Sul). Após 1990, o coeficiente de Gini começou a declinar, alcançando o nível baixo 0,708 em 2008 (embora ainda seja considerado alto para o padrão de distribuição de renda dentro de países). Desse modo, entre 1980 e 2008, utilizando a base de dados FX, os respectivos coeficientes de Gini diminuíram 6,2%. A China e, mais recentemente, a Índia, realmente causaram um im- pacto significativo na configuração de tendências na desigualdade entre pa- íses. De acordo com as tendências exibidas na figura 1, caso a China seja ex- cluída do rol de nações no referido cálculo, desaparecerá uma grande parte da queda dos coeficientes de Gini para o período em análise: com a exclusão O BRASIL E O CAPITALISMO HISTÓRICO 146 da China, os coeficientes de Gini para o período como um todo são conside- ravelmente menores, o pico na desigualdade entre países (0,717) é alcançado entre 2001 e 2002 e a queda da desigualdade, entre 2002 e 2008, é 1,1%, um resultado bem mais modesto. No entanto, isso não significa que a queda das desigualdades da ren- da mundial entre os países seja superestimada pela inclusão da China e da Índia. De fato, esses dois países reúnem cerca de 40% da população mundial em seus territórios; por essa razão, o desempenho relativo de ambos real- mente molda de forma significativa as tendências relevantes da distribuição de renda mundial. Assim, conforme observado por Aglietta (2008, p. 61-2), o crescimento da China e da Índia é como “uma grande bifurcação do capita- lismo”, pois o crescimento contínuo desses dois países nas próximas décadas, mesmo que a taxas um pouco mais baixas do que as observadas nos últimos 20 anos, conseguiria, após algumas gerações, “quase reverter a brecha criada pela revolução industrial, pelo colonialismoe o imperialismo do século 19, seguidos da guerra e das revoluções do século 20”. Além disso, não há dúvida alguma de que o rápido crescimento eco- nômico da China e da Índia nos últimos 20 anos realmente transformou os mercados mundiais de trabalho, nos quais “[a] oferta mundial de mão de obra quase dobrou com a abertura da [China e Índia] ao comércio exterior desde meados dos anos 1990” (AGLIETTA 2008, p. 72). Por isso, Anderson (2007, p. 5) sugere que “a emergência da China como a nova oficina do mun- do [representa] não somente a rápida expansão de uma economia nacional gigantesca, mas também uma mudança na estrutura do mercado mundial”. Historicamente, sempre houve mobilidade de nações individualmen- te; por exemplo, a Suécia no final do século 19, o Japão logo após a Segunda Guerra Mundial, ou a Coreia do Sul, nos anos 1970 e 1980. No entanto, no passado, a mobilidade ascendente das nações individuais ocorreu dentro de um cenário em que a desigualdade sistêmica subsistiu ou se tornou ainda mais pronunciada. A vasta extensão da China e da Índia faz com a que a história agora seja diferente, pois a mobilidade efetiva desses países, mesmo que limitada a esses dois casos, implicaria uma mudança na lógica que pre- valeceu até agora na economia-mundo. 147 DESIGUALDADES MUNDIAIS DE RENDA: EM DIREÇÃO A UMA PERSPECTIVA CRÍTICA Embora os dados existentes desafiem a noção de que as desigualdades globais continuaram crescendo ou permaneceram inalteradas durante os últi- mos 20 anos, algumas ressalvas importantes devem ser observadas em relação à hipótese de convergência. Embora tenha ocorrido um declínio na desigual- dade entre países nos últimos 20 anos, os principais coeficientes de Gini per- manecem muito altos, mesmo com o impressionante crescimento da China (e, por um período menor, da Índia). A título de exemplo, talvez não haja uma única nação no mundo que tenha um nível de desigualdade dentro do país tão alto quanto os níveis exibidos na figura 1 (atualmente, os níveis mais altos de desigualdade dentro dos países são encontrados na África do Sul, no Zimbábue, na Bolívia e no Brasil). Além disso, embora seja necessária, sem dúvida, a in- clusão da China e da Índia em qualquer avaliação dessas tendências, é preciso levar em consideração o fato de que as disparidades entre os países remanes- centes permanecem altas quando se avalia como as diversas populações no mundo inteiro percebem os padrões contemporâneos de mudança. Tabela 5: Taxas de crescimento reais e projetadas para países selecionados e grupos de nações, 2005-2015 2005 2006 2007 2008 2009 2010 2011 2012 2013 2014 2015 G7 2,4 2,6 2,2 0,2 -3,4 2,4 2,3 2,3 2,3 2,2 2,1 União Europeia 2,2 3,4 3,1 0,9 - 4, 1 1,0 1,8 2,2 2,3 2,2 2,1 Europa Central e Oriental 5,9 6,5 5,5 3,0 -3,7 2,8 3,4 4,0 4,0 4,0 4,0 Ásia em desenvolvimento 9,0 9,8 10,6 7,9 6,6 8,7 8,7 8,6 8,6 8,6 8,5 China 10,4 11,6 13,0 9,6 8,7 10,0 9,9 9,8 9,7 9,6 9,5 Índia 9,2 9,8 9,4 7,3 5,7 8,8 8,4 8,0 8,1 8,1 8,1 Oriente Médio e Norte da África 5,4 5,7 5,6 5,1 2,4 4,5 4,8 4,8 4,7 4,8 4,8 África Sub-Sahariana 6,3 6,5 6,9 5,5 2,1 4,7 5,9 5,5 5,6 5,5 5,4 Hemisfério ocidental 4,7 5,6 5,8 4,3 -1,8 4,0 4,0 4,3 4,2 4,1 4,0 Observação: Taxas calculadas com preços correntes; taxas projetadas em itálico Fonte: Fundo Monetário Internacional (2010) O BRASIL E O CAPITALISMO HISTÓRICO 148 Qual impacto pode ser esperado da atual crise econômica nas ten- dências observadas na distribuição mundial da renda? Conforme sugere a tabela 5, abaixo, a expectativa é de que as taxas do crescimento econômico na China e na Índia permaneçam altas em um futuro próximo: o Fundo Mo- netário Internacional (FMI) projeta uma taxa média de crescimento anual de 9,6%, para a China, e de 7,8%, para a Índia, no período de 2008 a 2015. Essas taxas são menores do que o ápice das taxas de crescimento econômico obtidas em 2006 (Índia) ou em 2007 (China), mas permanecem espetacular- mente altas para os padrões mundiais. O rápido crescimento econômico não se limitou apenas à Índia e à China. Diversos países foram privilegiados pela recente alta do preço das matérias primas (por exemplo, este é o caso da Argentina, onde as taxas de crescimento após o colapso econômico do começo dos anos 2000 se apro- ximaram do que os observadores locais na região chamaram de “taxas chi- nesas”). Além disso, as taxas médias de crescimento na América Latina e na África continuaram acima do patamar alcançado nas duas últimas décadas do século 20. Em contraste, a crise foi acompanhada de contração econômica e de- semprego crescente no centro. De acordo com as projeções do FMI, as taxas médias do crescimento econômico no G-7 (Canadá, França, Alemanha, Itá- lia, Japão, Reino Unido e Estados Unidos) decresceram de 2,5%, em 2006, para 2,3%, em 2007, e para 1,1%, em 2008, havendo a expectativa de que continuem baixas, retornando a uma variação de 2,3 a 2,4% no período de 2010 a 2015. No caso dos Estados Unidos, por exemplo, houve um declí- nio constante nas taxas de crescimento econômico entre 2005 e 2008-9, de aproximadamente 3% para quase 0,5%, embora aqui a recuperação tenha sido projetada para alcançar níveis mais altos entre 2011 e 2013 do que no restante dos países do G-7. A atual crise econômica foi especialmente acentuada em alguns dos países que haviam atingido elevadas taxas de crescimento econômico na 149 DESIGUALDADES MUNDIAIS DE RENDA: EM DIREÇÃO A UMA PERSPECTIVA CRÍTICA década de 90 e início dos anos 2000: os assim chamados PIGS (Portugal, Irlanda, Grécia e Espanha). Durante o ano de 2010, Grécia e Portugal se destacaram entre os países cujas dificuldades fiscais resultaram em um de- clínio significativo de mercado em toda a Europa, o que exigiu a elaboração de planos especiais de salvamento pela União Europeia. Mas a crise também teve um forte impacto nos outros dois países. A taxa média de crescimento do PIB na Irlanda no período 1995-2000 foi de 9,6%, mas ficou abaixo de 3% em 2008-9. Na Espanha, o PIB cresceu a uma média mais modesta de 3,8% entre 1997 e 2007, mas ficou abaixo de 2% nos dois anos seguintes. Sendo assim, qual é o impacto total dessas tendências de crescimento econômico sobre a desigualdade global? Para avaliar essa questão, reprodu- zimos o exercício apresentado anteriormente na figura 1 para a estimativa da evolução hipotética de coeficientes de Gini globais em um futuro próximo. Para realizar este exercício, combinamos as projeções de crescimento econô- mico feitas pelo FMI com dados de renda do Banco Mundial utilizados na figura 1 (a amostra resultante para a figura 2 é diferente da amostra utilizada na figura 1). As ressalvas usuais se aplicam aqui: estas projeções são apenas estimativas e, no caso do FMI, essas estimativas são bastante otimistas em re- lação ao ritmo provável de recuperação econômica nos próximos anos. En- tretanto, em vista dessas ressalvas, as estimativas permitem ao menos uma avaliação preliminar do provável impacto da atual crise econômica sobre a desigualdade global. Conforme indicado pela figura 2, adiante, se as estimativas projetadas forem, de alguma forma, precisas, é provável que as desigualdades entre os países continuem a diminuir no futuro próximo. De acordo com essas esti- mativas, pode-se esperar que as desigualdades entre os países diminuam a cada ano, de hoje até 2015: desse modo, na nova série exibida na figura 2, espera-se que a desigualdade entre países diminua do coeficiente de Gini máximo de 0,762, alcançado em 1990, para 0,676 em 2015: um declínio total bastante significativo, de 11,3%. O BRASIL E O CAPITALISMO HISTÓRICO 150 Figura 2: Coeficientes de Gini para desigualdade entre países: 2000-2015 Observação: com a China e a Índia, tamanho da amostra = 174; 97% da população do mun- do em 2000 Fonte: Cálculos dos autores baseados no Banco Mundial (2010); os números após 2009 são projeções baseadas no FMI (2010) Asmesmas ressalvas observadas anteriormente também se aplicam aqui. Essas mudanças da desigualdade entre países estão sendo impulsiona- das principalmente pela China e pela Índia (o declínio do coeficiente de Gini entre 2000 e 2015 é 9,6%, com a inclusão de todos os países, 3,8%, excluindo-se a China, e 2,1%, excluindo-se a China e a Índia). Assim, será fundamental manter altas taxas de crescimento econômico nestes dois países para que essas desigualdades entre países continuem a diminuir no futuro. Isso exigi- rá a contínua atualização tecnológica e organizacional, uma tarefa incitada por líderes políticos e formuladores de políticas nesses dois países, mas sem garantias de resultados.76 Além disso, conforme já observado, o crescimento econômico no caso da China foi associado a um aumento substancial na 76 Consultar, como exemplo, o artigo de John Pomfret, Beijing tries to push beyond ‘Made in China’ status to find name-brand innovation (Pequim tenta superar o status ‘Made in China’ para a inovação de marcas), The Washington Post, 24 maio 2010). Disponível em: <http:// www.washingtonpost.com/wp-dyn/content/article/2010/05/24/AR2010052404126.html>. 151 DESIGUALDADES MUNDIAIS DE RENDA: EM DIREÇÃO A UMA PERSPECTIVA CRÍTICA desigualdade no país: isso pode não apenas se tornar uma fonte de demandas políticas em prol de uma maior equidade dentro do país, dificultando uma trajetória simples de crescimento contínuo, mas também acabar propiciando um novo aumento na desigualdade mundial como um todo.77 Há questões que permanecem em aberto no que tange à evolução das desigualdades entre países nas outras regiões do mundo (especialmente na África e na América Latina). Aqui, não está claro se outros países de ren- da baixa e média serão capazes de seguir o mesmo caminho, por exemplo, encontrar sinergias com o crescimento da China e da Índia por meio da produção de alimentos e matérias-primas, ou se o próprio sucesso da China e da Índia prejudicará as oportunidades de crescimento econômico em ou- tros lugares.78 Além disso, devemos destacar também que mesmo depois de vinte e cinco anos de crescimento extraordinário nas regiões periféricas, as desigualdades entre países continuariam em um nível extremamente alto – poucos países do mundo apresentam coeficientes de Gini acima de 0,676 (o nível em que as desigualdades entre países permaneceria em 2015, se as projeções otimistas para a China e a Índia se mantivessem conforme as pro- jeções do FMI). Talvez os governos dos países ricos também fiquem tentados a adotar políticas destinadas a reverter essas mudanças relativas na desigualdade da renda mundial. Em primeiro lugar, especialmente em resposta à crise econô- mica, os formuladores de políticas de instituições financeiras internacionais e organizações multilaterais em 2010 defenderam a adoção de políticas de ajuste nas nações ricas e um crescimento econômico mais lento na China. Captando alguns aspectos desta estratégia dupla, o jornal The Washington Post observou que “o fluxo da dívida dos EUA com o Banco Popular da China atuou como uma espécie de cartão de crédito coletivo gigante, fi- nanciando consumidores nos Estados Unidos e impulsionando modelos de 77 O Professor Ho-Fung Hung, do Departamento de Sociologia da Universidade Johns Hopkins, está desenvolvendo a pesquisa desta última questão em seu estudo atual. 78 Como exemplo, para uma avaliação pessimista do impacto da produção chinesa de matéria- prima no continente africano, consultar: <http://www.elpais.com/articulo/portada/nuevos/ amos/Africa/elpepusoceps/20100509elpepspor_9/Tes>. O BRASIL E O CAPITALISMO HISTÓRICO 152 negócios de grandes varejistas, como o Wal-Mart”, e resumiu as descobertas recentes do FMI, indicando que [...] para manter a economia global sob controle, o povo norte-america- no e o resto do mundo desenvolvido precisam trabalhar mais antes de se aposentar, pagar impostos mais elevados e esperar menos do gover- no. E as importações baratas que ocupam as prateleiras de mega-redes como o Wal-Mart e a Target? Elas precisam ser mais caras.79 Os planos de ajuste estão gerando grande descontentamento popular em toda a Europa, e é provável que esse descontentamento se intensifique caso os supostos benefícios desses ajustes sejam ofuscados por efeitos nega- tivos e/ou a “equiparação” mais acelerada de países como a China e a Índia. Por outro lado, ainda não há sinais de que os governos dos Estados Unidos e de outras nações ricas tenham sido particularmente eficazes em convencer seus homólogos chineses a desacelerar o crescimento.80 Uma segunda reação possível seria uma onda renovada de protecionis- mo direcionada aos países que estão se industrializando rapidamente. Ape- sar da existência de alguns defensores dessa estratégia, incluindo, por vezes, organizações sindicais nos países mais ricos, houve um avanço conjunto e indiscriminado muito pequeno no sentido de restringir os mercados. Assim, o Fórum Mundial do Comércio observa que “os acordos internacionais, como a estrutura da OMC e as promessas do G20, contribuíram para limitar o efeito das pressões protecionistas sobre as barreiras comerciais. Apesar dos temores em relação ao crescente protecionismo, [...] a grande maioria dos 79 <http://www.washingtonpost.com/wp-dyn/content/article/2010/04/23/AR2010042305258. html>. 80 Assim, um artigo recente publicado no The New York Times (26 out. 2010) indica que “o governo de Obama, diante de uma relação conturbada com a China, no que diz respeito a taxas alfandegárias, comércio e questões de segurança, está tornando sua abordagem com Pequim cada vez mais rígida, procurando aliados para o confronto com esta nova potência agressiva assertiva, que, segundo relatos oficiais, informa ter poucas intenções de negociar com os Estados Unidos. Extraído e traduzido do site: <http://www.nytimes.com/2010/10/26/ world/asia/26china.html?hp>. 153 DESIGUALDADES MUNDIAIS DE RENDA: EM DIREÇÃO A UMA PERSPECTIVA CRÍTICA países não criou barreiras ao comércio.”81 No entanto, grupos de interesse podem ser suficientemente poderosos em áreas específicas da produção e do comércio para impor este tipo de restrições, e/ou um aprofundamento da crise econômica poderia dar vazão a uma maior demanda por protecionismo. Uma terceira área em que, de fato, houve uma reação mais evidente por parte das nações ricas corresponde à migração internacional. Nesse pon- to, muitos países da Europa e os Estados Unidos empregaram esforços po- líticos para a adoção de políticas mais restritivas em relação aos imigrantes. Embora, ao contrário do ocorrido no final do século XIX e início do século XX, essa já não seja mais a arena primária que está gerando o processo atual de convergência limitada entre nações ricas e pobres, é possível especular que focalizar nos migrantes adquire importância simbólica nos esforços para conter a erosão percebida das fronteiras nacionais na atual transformação dos arranjos institucionais globais. Independentemente da intensidade com que essas reações surgem no centro, o que deve ser discutido é se as transformações recentes na distribui- ção mundial da renda avançaram longe demais para serem revertidas por meio das políticas adotadas nos países de alta renda. Para Hung (2009, p. 24), é muito cedo para dizer se a China poderá servir de base para o crescimento, já que “a contenção dos salários no longo prazo restringe o crescimento do poder de consumo da China.” Por outro lado, Aglietta (2008, p. 71) destaca que “juntas, as exportações da China para os Estados Unidos e a Europa não somam mais do que 40% do total”, e que “as exportações representam cerca de 40% do PIB da China”; portanto, é improvável que qualquer redução na demanda por essas exportações nos Estados Unidos e na Europa, seja em decorrência de uma desaceleração econômica ou por qualquer outro motivo, não teriam mais do que um leve impacto no crescimento da China.82 81 Disponível em: <http://www.weforum.org/en/initiatives/gcp/GlobalEnablingTradeReport/index.html>. Acesso em: 28 maio 2010. 82 Gowan (2009, p. 28) também afirma que “as economias do leste asiático, principalmente a da China, serão cada vez mais essenciais para as tendências macroeconômicas globais, ao passo que o longo histórico de centralidade dos Estados Unidos se enfraquecerá durante um longo grande período de estagnação.” O BRASIL E O CAPITALISMO HISTÓRICO 154 Giovanni Arrighi e o repensar das desigualdades de renda mundial Como o trabalho de Giovanni Arrighi nos ajuda a pensar sobre essas transformações nas desigualdades na distribuição da renda mundial? Para alguns formuladores de políticas e teóricos das ciências sociais que são fortes defensores da globalização, essas tendências no crescimento econômico for- necem clara evidência de que as desigualdades entre países estão em declí- nio à medida que os mercados e a industrialização se espalham pelo mundo inteiro. Assim, Sala-I-Martin (2006), brincando com o título de um artigo anterior de Pritchett (1997), simplesmente rotula as tendências atuais como Convergence, Big Time (algo como “Convergência, chegou a hora”). Também Firebaugh (2003, p. 190) argumenta que o aumento da desigualdade entre países antes da década de 60 e o subsequente declínio podem ser atribuídos às diferentes taxas de industrialização nas nações ricas e pobres: como a industrialização se firmou, em primeiro lugar, nas nações ini- cialmente mais ricas, os ricos tornaram-se mais ricos e a desigualdade disparou entre as nações. Agora, como a industrialização está se espa- lhando para as nações mais pobres, as regiões pobres estão colhendo os benefícios do crescimento industrial e a desigualdade está dimi- nuindo entre as nações. Estas avaliações otimistas evocam o paradigma há muito tempo esta- belecido que deu forma aos estudos sobre a “modernização”. Desde meados do século XX, as diversas abordagens da “modernização” argumentaram que da mesma forma que as nações passam por uma transição dos arranjos ru- rais (ou agrícolas/tradicionais) para os urbanos (ou industriais/modernos), a desigualdade entre os países é causada pelo fato de algumas nações tomarem a dianteira no processo de industrialização, enquanto outras ficam para trás. Conforme a famosa hipótese do U invertido de Simon Kuznets (1955), o aumento na desigualdade deveria ser meramente transitório e durar apenas o tempo suficiente para que as nações atrasadas alcançassem as que estavam 155 DESIGUALDADES MUNDIAIS DE RENDA: EM DIREÇÃO A UMA PERSPECTIVA CRÍTICA na liderança.83 Esta linha de interpretação entendia as nações como enti- dades independentes e autônomas que embarcam, embora com diferenças temporais, em um processo universal de transformação da tradição para a modernidade. O grau relativo de comando sobre a renda era percebido como uma consequência da modernização, e a obtenção da riqueza pelas nações indicava o êxito relativo em adotar elementos essenciais da modernização (como a urbanização e a industrialização). Ao longo do tempo, à medida que todas as nações avançassem em direção a práticas e modos de pensamento universais, esperava-se que a convergência ocorresse e que a desigualdade entre as nações declinasse. Perspectivas mais críticas constantemente contestam essa avaliação otimista das tendências atuais. Alguns destes críticos argumentam que assim que passamos dos agregados contábeis da renda nacional para as experiên- cias reais dos pobres e desfavorecidos em todo o mundo, descobriremos que “a desaceleração global cobrou um pedágio mais elevado e desproporcional nos setores mais vulneráveis: os grandes exércitos de trabalhadores mal re- munerados, com baixo nível de escolaridade e sem recursos que formam as superpovoadas profundezas da economia mundial” (BREMAN, 2009, p. 29). Mas de forma ainda mais direta, alguns observadores críticos contes- tam até mesmo a amplitude do declínio das desigualdades da renda mundial. Por exemplo, Milanovic (2005) observa que, enquanto a desigualdade global (combinando dados sobre a desigualdade entre países e dentro dos países) manteve-se relativamente estável, a desigualdade entre países diminuiu li- geiramente durante as últimas duas décadas do século XX. No entanto, o autor indica que este declínio é menor se forem levadas em consideração as crescentes disparidades regionais dentro da China, e desaparece completa- mente se a China for excluída da amostra. Da mesma forma, Wade (2004, 83 Como um exemplo simples deste argumento, consulte Firebaugh (2003, p. 174), que acredi- ta que “o aumento (durante grande parte do século XIX e na primeira metade do século XX), a redução (na segunda metade do século XX) e o decréscimo da desigualdade entre nações são explicadas, essencialmente, pela disparidade na expansão da industrialização para nações pobres. […] Já que a industrialização se iniciou nas nações mais ricas, a expansão da globa- lização estimulou o nível de desigualdade entre nações. […] Agora, no entanto, a difusão da industrialização visa compactar a desigualdade entre nações.” O BRASIL E O CAPITALISMO HISTÓRICO 156 p. 581; ver também WADE, 2008) argumenta que, quando medida pela renda média per capita ajustada pelas paridades do poder de compra, a desigualdade entre países diminuiu, “mas retire a China e mesmo essa medida indicará um aumento da desigualdade”. Por fim, mesmo ao reconhecer que pode ter havido um crescimento econômico significativo em países como a China ou a Índia, os observadores críticos contra-argumentam que este crescimento enfrenta li- mites imediatos, e é improvável que dure por muito tempo.84 Subjacente a estas perspectivas críticas, há a compreensão de que o crescimento da “globalização” ou dos mercados ao longo das últimas duas décadas ainda é marcado por padrões persistentes de polarização e desigual- dade. Aqui, as perspectivas contemporâneas se conectam às abordagens mais antigas e críticas do papel dos mercados na perpetuação das desigualdades. Entre essas abordagens mais antigas, Raul Prebisch (p. ex., 1950) e Arghiri Emmanuel (1972) argumentam que a diferença de riqueza entre nações ricas e pobres foi mantida e/ou aprofundada pelas interações do mercado, pois as diferenças salariais entre o centro e a periferia estavam na origem da dete- rioração dos termos de intercâmbio (Prebisch) ou da troca desigual (Emma- nuel) entre produtos periféricos e centrais.85 Em diferentes graus, a noção de que o mercado é uma arena importante para o desdobramento da troca de- sigual, e de que a troca desigual constitui a principal força que molda as de- sigualdades entre as nações centrais e periféricas, é fundamental para muitas formulações das abordagens do sistema-mundo e da dependência – espe- cialmente aquelas que tendem a perceber as desigualdades principalmente 84 Nessa mesma linha, Balakrishnan (2009, p. 5) argumenta que “a taxa de crescimento da China, em razão do mercado de exportação, estagnará, porque os mercados estarão esgota- dos. Ainda não está claro se o país pode mudar o foco para a acumulação baseada no mercado doméstico sem um decréscimo significativo no crescimento. Apenas após um longo processo sociopolítico de transformação e produção de uma demanda doméstica compensatória é que as bases sólidas do crescimento sustentável serão lançadas para a população de 1,25 bilhão de habitantes.” 85 Representações mais simplistas desses argumentos concluem que para as nações, o status central ou periférico na economia mundial corresponde, respectivamente, à produção ma- nufatureira e à produção de matérias primas. Arrighi (1986; 1990) contestou tal conclusão, criticando qualquer noção de que a manufatura ou a industrialização correspondam neces- sariamente ou estejam ligadas ao desenvolvimento ou a uma fatia maior da renda mundial. 157 DESIGUALDADES MUNDIAIS DE RENDA: EM DIREÇÃO A UMA PERSPECTIVA CRÍTICA como resultado da exploração (de uma classe por outra ou de países pobres por países ricos).86 A obra de GiovanniArrighi nos obriga a pensar criticamente sobre es- tes argumentos. Comecemos pela troca desigual. Depois de lembrar aos leito- res que o conceito de “troca desigual” tal como desenvolvido por Emmanuel “refere-se ao comércio entre estados caracterizados por níveis salariais di- ferentes, mas com a taxa de lucro e nível de produtividade iguais”, Arrighi observa que, apesar do papel histórico que essas trocas podem ter desempe- nhado no aprofundamento da desigualdade entre as nações, nada impede que a troca desigual mude de posição e proporcione vantagens comparativas à periferia. Assim, [um] país que vende commodities que incorporam mão de obra com altos salários em troca de commodities que possuem mão de obra com baixos salários pode continuar fazendo isso e colher os benefícios da troca apenas na medida em que a relação da produção e do consumo entre os dois tipos de commodity seja de complementaridade em vez de concorrência. Se por qualquer razão a relação de complementari- dade enfraquecer e a de concorrência tornar-se mais forte, neste sen- tido, a troca desigual torna-se a arma do país “explorado” para obter riqueza, poder e bem-estar em relação ao país “explorador” e, possi- velmente, em detrimento do mesmo. (ARRIGHI, 1990, p. 12-14). Nesta discussão dos processos de troca desigual, Arrighi reitera uma abordagem que pode ser encontrada em toda a sua obra: processos que pare- cem ser uma característica constitutiva do regime social se caracterizam, na verdade, pela especificidade histórica. O caráter e as consequências da troca desigual, por exemplo, diferem significativamente, dependendo de estarmos focalizando na metade do século XX ou no início do XXI (assim como a hegemonia dos holandeses no século XVII difere, em aspectos significativos, 86 Assim, para Andre Gunder Frank (1979, p. 22-3), “três séculos de comércio desigual baseado em valores desiguais [..] sugaram uma grande quantidade de capital das colônias e das populações do “Novo Mundo”, capital que a Europa investiu em desenvolvimento econômico e que, por sua vez, consolidou o subdesenvolvimento da América Latina no século XIX.” O BRASIL E O CAPITALISMO HISTÓRICO 158 da hegemonia britânica no século XIX, ou a crise da década de 30 em relação a dos anos 2000). A troca desigual pode ter aprofundado as desigualdades da renda mundial na década de 50, mas hoje pode servir de instrumento para que a população nos países mais pobres busque renda relativa maior. Por mais contestador que seja esse retrato da troca desigual, a obra de Giovanni Arrighi leva ainda mais longe esses argumentos. Com base em ideias de seu trabalho anterior sobre a África, Arrighi (1990, p. 16) argumentou que os “[p]rocessos de exclusão são tão importantes quanto os processos de exploração” para o entendimento da “pobreza da maioria da população mundial” e do caráter básico da economia-mundo capita- lista. Assim, por exemplo, Arrighi (1991, p. 58) enfatizou o papel central desempenhado pela exclusão e pela riqueza oligárquica na promoção da desigualdade entre países durante grande parte do século XX: “[a] rique- za do Ocidente é análoga à riqueza oligárquica de Harrod. Não pode ser generalizada porque se baseia em processos relacionais de exploração e de exclusão que pressupõem a privação relativa continuamente reproduzida da maioria da população mundial”. Além disso, esses processos de exclusão resultaram não necessaria- mente apenas, ou mesmo principalmente, dos esforços dos capitalistas, mas dos esforços dos próprios trabalhadores, o que pode ser encontrado clara- mente na obra de Arrighi (1967) sobre A Economia Política da Rodésia. Nessa obra, ele argumentou que trabalhadores brancos organizados da Rodésia usavam a própria força para “perpetuar as condições em que se baseava seu poder, ou seja, a falta de (a) um exército de reserva de população branca; (b) uma população africana branca estável; e, acima de tudo, (c) um sistema efetivo de educação e formação para os africanos” (ARRIGHI 1967, p. 26). Forçando essa exclusão, e ao lado da burguesia nacional e mesquinha, esses interesses estavam em conflito com os da Companhia Britânica da África do Sul (representando, no esquema de Arrighi, os interesses do capitalismo internacional). Como consequência, para Arrighi (1967, p. 27), “houve uma coincidência dos interesses dos africanos (trabalhadores e camponeses) e do capitalismo internacional, pois ambos se beneficiariam de uma maior con- corrência no mercado de força de trabalho qualificada”. 159 DESIGUALDADES MUNDIAIS DE RENDA: EM DIREÇÃO A UMA PERSPECTIVA CRÍTICA Os argumentos de Arrighi encontram fortes paralelos com a descrição feita por Adam Smith (1976) da relação entre cidade e campo no surgimento do capitalismo. Como nos países ricos de hoje, para os habitantes da cidade, no relato de Smith, era mais fácil se associar coletivamente em comparação com os habitantes do campo e, de fato, eles usaram a associação corporativis- ta para regulamentar a produção e o comércio nas cidades com o objetivo de restringir a concorrência externa. Enquanto tais arranjos tendiam a aumen- tar os salários que os empregadores da cidade pagavam aos trabalhadores, “em compensação, [esses empregadores] puderam vender seus produtos a preços mais altos; portanto, dava na mesma, como se costuma dizer; e nas relações entre uma classe e outra dentro da cidade, nenhuma delas saía per- dendo por causa destes regulamentos” (SMITH, 1976, I, p. 139). Além disso, como resultado desses acordos, em suas relações com o campo (“e todo o comércio que apoia e enriquece cada cidade consiste nesse último tipo de relações”) os moradores da cidade foram os “grandes ganhadores” capazes de “comprar, com uma quantidade menor de seu trabalho, a produção de uma quantidade maior de trabalho do campo” (SMITH, 1976, I, p. 139-140). O que Smith descreve é um processo de exclusão seletiva: por meio de arranjos institucionais que estabeleceram um pacto social que restringia a entrada nos mercados, os moradores da cidade atingiram uma combinação virtuosa de crescimento, autonomia política e equidade relativa, que simul- taneamente transferiu as pressões competitivas para o campo. A partir dessa perspectiva, o estabelecimento de pactos sociais caracterizados por equidade relativamente maior em nações ricas (ou na Rodésia de Arrighi) e o surgi- mento de alta desigualdade entre países (ou entre os trabalhadores brancos e os trabalhadores africanos na Rodésia) não são processos separados: ao invés disso, são o resultado de mecanismos institucionais fundamentais que dão suporte à desigualdade mundial. Por exemplo, o reforço das barreiras nacionais à entrada no decorrer do século XX foi parte integrante de um esforço para limitar as pressões competitivas e/ou reduzir a desigualdade nas nações mais ricas, e foi um processo crucial que levou ao desenvolvimento de alta desigualdade entre nações ao longo do mesmo século. O BRASIL E O CAPITALISMO HISTÓRICO 160 Evidentemente, isso não pretende sugerir que a distribuição global desigual de vantagens e desvantagens competitivas resulte exclusivamente da maneira com que as disposições institucionais das nações ricas transferi- ram as pressões competitivas de um local para outro. Certamente, a história é muito mais complicada. Na medida em que as disposições institucionais das nações ricas reforçavam e protegiam os direitos de propriedade, as áreas sob esse regime ofereciam incentivos fenomenais aos produtores potenciais, incentivos que estavam ausentes em outros lugares. Aqui, como nas cidades de Adam Smith (1976, I, p. 426), a “ordem e o bom governo e, com eles, a li- berdade e a segurança dos indivíduos, foram, desta forma, estabelecidos [...], em um momento em que os ocupantes de terras [em outros lugares] estavam expostos a todo tipo de violência”.87 Além disso, uma vez tendo conquis- tado certa vantagem competitiva, as nações mais ricas costumavam dispor de uma quantidademuito maior de recursos – o que Arrighi denominou “riqueza oligárquica” – para manter e ampliar essa vantagem (por exemplo, por meio da inovação tecnológica e uma atualização mais constante da qua- lificação da força de trabalho). Mas quando o foco recai apenas nas nações ricas, como é a prática da maioria das ciências sociais, os arranjos institucionais dessas nações de fato parecem, assim como aqueles das cidades de Adam Smith, ser carac- terizados principalmente pela inclusão. Sob este foco, a estratificação social e a desigualdade parecem ser, basicamente: (a) a partir de uma perspectiva mais próxima do mainstream, o resultado da realização individual, medi- do por critérios universais, nos domínios (por exemplo, educação, mercado de trabalho) caracterizados pelo acesso relativamente irrestrito; (b) em uma versão crítica, a expressão de processos de exploração ligando as populações contidas dentro desses arranjos institucionais. Neste sentido, as perspectivas críticas, do mesmo modo que aquelas mais próximas do mainstream, têm se concentrado em processos considerados 87 “Portanto, qualquer propriedade acumulada pela parcela industriosa da população rural se refugiou, naturalmente, nas cidades, que se tornaram os únicos santuários em que poderia ser assegurada àqueles que a adquiriram” (SMITH, 1976, I, p. 427). 161 DESIGUALDADES MUNDIAIS DE RENDA: EM DIREÇÃO A UMA PERSPECTIVA CRÍTICA endógenos àquilo que consideraríamos as nações ricas. Elvin (2008, p. 108), por exemplo, critica Arrighi por ignorar que “a ‘revolução’ ocidental não foi apenas uma ‘revolução’ no sentido de uma mudança qualitativa que asso- ciamos a este termo; foi, acima de tudo, um processo que, embora posto em movimento há mais de duzentos anos, continua ainda hoje”, sustentado pelo “fluxo contínuo na tecnologia de descobertas científicas” e “pelas ati- tudes mentais e análise que são engendradas pela exposição, ao longo da vida, à ciência moderna”. Numa perspectiva diferente, mas complementar, Walker e Buck (2007, p. 40) consideram a China como sendo “ainda [muito] pré-capitalista qualquer que seja a medida”, tendo apenas começado o cami- nho para o desenvolvimento capitalista. Não é surpreendente que a desigualdade e a estratificação pareçam processos determinados principalmente por arranjos institucionais circuns- critos às fronteiras nacionais (normalmente, como no exemplo acima, as das nações ricas): como na cidade e no campo de Smith, a interação desses ar- ranjos com os processos de exclusão seletiva só pode ser observada quando mudamos nossa unidade de análise com o intuito de abarcar os incluídos e os excluídos. 88 É por isso que a obra de Giovanni Arrighi sempre contrapôs uma narrativa mais holística e relacional, às vezes para desafiar as perspec- tivas dominantes, mas com a mesma frequência, para contestar também as interpretações propostas pelas abordagens mais críticas.89 88 Essas perspectivas críticas se desenvolveram desde cedo. Sorokin, depois de analisar dados referentes ao declínio da população das ilhas do Pacífico durante o século XIX, argumentou que “esses fatos mostram que, em vez de melhorar, o nível de bem-estar social e econômico no século XIX sofreu declínio e causou a extinção de tais povos. Por sua vez, em parte, o desenvolvimento econômico da Europa no século XIX, ocorreu, em parte em razão da explo- ração e do saque. O que foi benéfico para um grupo, foi desastroso para os demais. Ignorar esses outros grupos — centenas de milhares de pessoas na Índia, na Mongólia, na África, na China, ou seja, os nativos de todos os continentes e ilhas não europeus, para alguns dos quais o progresso da Europa custou muitíssimo e que, durante o último século, tiveram crescimento ínfimo no padrão de vida — e fomentar a teoria da ‘espiral permanente do progresso’ com base em alguns países europeus é completamente subjetivo, parcial e fantasioso.” Cf. Sorokin (1927, p. 31). 89 Considerando os conceitos de Arrighi sobre a desigualdade mundial, vê-se que a pers- pectiva relacional está na raiz de sua análise teórica, a qual não é, como afirmam discussões recentes, um simples “resumo dos argumentos de Brenner” sobre a taxa descendente do lucro de países de alta renda. Cf. Elvin (2008, p. 108). O BRASIL E O CAPITALISMO HISTÓRICO 162 Ao focar no estado-nação como a unidade de análise relevante, ten- demos a enfatizar a variedade de estratégias – desde a aquisição do capital humano até a mobilização política – que foram implantadas com o objetivo de conseguir a mobilidade social e/ou lutar contra a exploração. Baseado principalmente na trajetória histórica que esses processos seguiram nas na- ções ricas, este tipo de enfoque moldou as duas perspectivas de estudo da estratificação e da desigualdade: o mainstream e as correntes críticas. Mas, uma vez que reconhecemos que a exclusão desempenha o papel essencial identificado por Arrighi (ou, nessa questão, por Adam Smith) na formação tanto da desigualdade quanto da estratificação social, temos de reconhecer também que, para as pessoas ao redor do mundo, a busca por maior igualda- de implica a luta pela inclusão e contra as formas predominantes de acumu- lação de oportunidades (como aquelas construídas ao longo do século XX em torno das identidades nacionais). Com efeito, numa perspectiva global e, sobretudo, entre o final do século XIX e início do século XXI, a violação das fronteiras por meio da migração tem sido uma das principais estratégias de mobilidade social para os que estão em posição inferior nas distribuições de renda (tanto dentro das nações quanto entre elas). Assim, seria um erro retratar a migração exclusi- vamente, ou mesmo primariamente, como uma consequência indesejada de diversas formas de deslocamento que acompanham a expansão capitalista.90 Assim como a exclusão com base na identidade nacional foi essencial para a desigualdade e para a estratificação social conforme estas se desenvolviam ao longo do século XX, a violação das fronteiras foi uma das principais formas assumidas pelas lutas por inclusão. É por esta razão que a migra- ção internacional constituía o mais importante fator isolado na promoção da convergência econômica entre as nações no final do século XIX e iní- cio do século XX, e também porque esses fluxos sofreram uma interrupção 90 Por exemplo, ao explicar o crescimento das cidades durante “a criação da classe operária inglesa”, Walker e Buck (2007, p. 41) indicam que “todos os camponeses, trabalhadores braçais, artesãos e pequenos manufatureiros foram forçados a se deslocar, pois seus meios de subsistên- cia foram destruídos, seja pela pelo cercamento das terras, apropriação de suas terras ou pela competição do mercado, criada por fazendas e fábricas mais produtivas.” 163 DESIGUALDADES MUNDIAIS DE RENDA: EM DIREÇÃO A UMA PERSPECTIVA CRÍTICA substancial durante o período entre guerras, e porque eles nunca recupera- ram os níveis relativos alcançados na virada do século anterior (O’ROURKE; WILLIAMSON, 1999). Mas a própria existência de restrições baseadas na identidade nacio- nal gerou condições para sua eventual contestação. Neste sentido, as pró- prias disparidades crescentes entre a renda das nações ao longo do tempo geraram fortes incentivos (por exemplo, a redução drástica de salários nos países pobres) (a) para a migração contínua, mesmo quando praticada con- tra as regras institucionais; e (b) de crucial importância no final do século XX, a “terceirização” de empregos qualificados e não qualificados para países periféricos em um “desvio de mercado” que, de fato, supera as restrições do século XX aos fluxos do trabalho. Foi isso que transformou a busca efetiva do crescimento econômico nacional na China e na Índia na mais importante força isolada de promoção da convergência econômica entre as nações do fi- nal do século XX e do início do século XXI, por meio de impactos que foram ampliados pela atual crise econômica.91 Perry Anderson observaque as altas taxas de crescimento, “em meio ao aumento drástico da desigualdade, criaram [na China,] uma classe média subs- tancial ligada ao status quo e uma convicção ideológica mais generalizada, esten- dendo-se além da classe média, dos benefícios da iniciativa privada”. Se quisermos nos basear em Arrighi, essa interpretação não avança o suficiente. Se a exclusão foi, de fato, essencial para as desigualdades de renda do mundo na forma como estas desigualdades se desenvolveram durante grande parte dos séculos XIX e XX, então as tendências atuais de crescimento econômico na China e na Índia, a expansão dos mercados e a globalização, na verdade, podem ser resultado das lutas dos povos periféricos para transformar a desigualdade mundial. Isso ocorre porque, como bem compreendido por Fernand Braudel, e ecoado na obra de Giovanni Arrighi e de outros que atuam em uma perspectiva crítica semelhante, as lutas pela inclusão, muitas vezes, implicam ou até mesmo exigem a expansão dos mercados.92 91 O próprio Arrighi afirmou que muitos procuraram superar o abismo da desigualdade da renda mundial por meio da migração. 92 É por isso que Aglietta (2008, p. 62) afirma que “as economias de mercado e o capitalismo estão ligados, mas não são idênticos. O paradigma do mercado é formado pelo comércio entre iguais; [...]. O capitalismo é uma força de acumulação. [..] A desigualdade está em sua essência”. O BRASIL E O CAPITALISMO HISTÓRICO 164 Conclusão O fato de que a crise está sendo vivenciada como promotora de mo- bilidade ascendente em algumas áreas do mundo (por exemplo, a China e a Índia), mas como mobilidade descendente em outros (por exemplo, o centro rico), mostra a importância de se refletir sobre as alterações das desigual- dades da renda mundial em termos relacionais.93 A partir dessa perspecti- va relacional, o declínio atual das desigualdades da renda mundial levanta questões difíceis para as forças progressistas ao redor do globo. A continui- dade da expansão dos mercados é boa porque fornece maior inclusão para algumas das populações mais pobres do mundo por meio do rápido cresci- mento econômico, ou é má porque provavelmente as até então privilegiadas classes trabalhadoras nas nações mais ricas vivenciam uma deterioração de sua posição relativa (e, talvez, até mesmo absoluta) como resultado dessas alterações? Ou, parafraseando Aglietta, como as forças progressistas devem reagir às vantagens e desvantagens inerentes ao ajuste dos “mecanismos de governança internacional” para a nova “geografia” emergente da desigualda- de mundial? (AGLIETA, 2008, p. 74). Essas questões sempre são difíceis de responder. É por esta razão que, diante da persistência das desigualdades do mundo, há quase quarenta anos Arghiri Emmanuel nos advertiu a tomar cuidado com “o perigo de que, ao concentrarmos nosso ardor revolucionário dentro de [um] grupo minori- tário de países, talvez nos encontremos na tempestade do amanhã, ao lado da minoria. Não será a primeira vez na história que Roma terá caído, não pelos golpes dos romanos, mas sob os dos ‘bárbaros’” (EMMANUEL, 1972, p. 340). Vinte anos mais tarde, Giovanni Arrighi ecoou preocupações se- melhantes, indicando que as desigualdades da renda mundial continuaram a gerar um dilema para as forças progressistas em países ricos, pois “ou os socialistas ocidentais se unirão aos seus companheiros orientais e sulistas, criando um projeto intelectual e um programa político capaz de transfor- mar o atual caos sistêmico em uma nova ordem mundial de igualdade e 93 Faz-se quase desnecessário afirmar que tal perspectiva nos conduz a um lugar bem diferente do que aqueles apregoados pelas panaceias otimistas com raízes no paradigma da modernização. 165 DESIGUALDADES MUNDIAIS DE RENDA: EM DIREÇÃO A UMA PERSPECTIVA CRÍTICA solidariedade, ou seus apelos ao progresso mundial e à justiça social perde- rão toda a credibilidade que ainda lhes resta.” (ARRIGHI, 1991, p. 65). Após vinte anos, nem tudo permanece igual. Ocorre, agora, uma transformação substantiva nas desigualdades da renda mundial que está gerando dilemas difíceis; e as forças progressistas no Ocidente ainda deve- rão delinear as estratégias ou alinhamentos políticos que podem fornecer respostas confortáveis para esses dilemas. Mas no meio dessas transforma- ções contínuas, devemos atentar mais do que nunca para as advertências de Emmanuel e Arrighi: na busca de proteção para os países ricos que sofrem os efeitos negativos da diminuição das desigualdades da renda mundial, de- vemos ter cuidado para que as forças progressistas não se posicionem nova- mente como defensoras da exclusão para a maioria do mundo. Referências AGLIETTA, Michel. Into a New Growth Regime (A caminho de um novo regime de crescimento). New Left Review, n. 54, p. 62, nov.-dez. 2008. ANDERSON, Perry. “Jottings on the Conjecture.” New Left Review, n. 48, p. 5-37, nov.-dec., 2007. ARGHIRI, Emmanuel. Unequal Exchange: a study of the imperialism trade. New York, London: Monthly Review Press, 1972. ARRIGHI, Giovanni. World Income Inequalities and the Future of Socialism (Desigualdade da Renda Mundial e o Futuro do Socialismo). New Left Review, I/189, p. 39-66, Set.-Out. 1991. _______. The Political Economy of Rhodesia. The Hague: Internationaal Instituut Voor Sociale Studien, 1967. _______. “The Developmentalist Illusion: A Reconceptualization of the Semiperiphery.” In: W.G. MARTIN, W. G. (ed.). Semiperipheral States in the World-Economy. New York: Greenwood Press, 1990. p. 11-42. O BRASIL E O CAPITALISMO HISTÓRICO 166 _______; DRANGEL, Jessica Drangel. “The Stratification of the World-Eco- nomy: An Exploration of the Semiperipheral Zone.” Review X, n. 1, p. 9-74, Summer, 1986. BALAKRISHNAN, Gopal. “Speculations on the Stationary State.” New Left Review, n. 59, p. 5-26, sept.-oct. 2009. BANCO MUNDIAL. World Development Indicators. Washington, DC: World Bank, 2010. BLACKBURN, Robin. The Subprime Crisis (A Crise do Mercado Subpri- me). NLR, v. II, n. 50, p. 63-106, mar-abr. 2008. BREMAN, Jan. “Myth of the Global Safety Net.” New Left Review, n. 59, p. 29-36, sept.-oct. 2009. ELVIN, Mark. The Historian as Haruspex (O Historiador como Haruspex). NLR, v. II, n. 52, p. 108, jul.-ago. 2008. EMMANUEL, Arghiri. Unequal Exchange: A Study of the Imperialism of Trade. New York & London: Monthly Review Press, 1972. FIREBAUGH, Glenn. The New Geography of Global Income Inequality. Cambridge, MA: Harvard University Press, 2003. FRANK, Andre Gunder. Capitalism and Underdevelopment in Latin America: Historical Studies of Chile and Brazil. New York: Monthly Review Press, 1967. _______. Dependent Accumulation and Underdevelopment. New York: Monthly Review Press, 1979. FMI - Fundo Monetário Internacional. 2010. World Economic Outlook Database (April). GOWAN, Peter. 2009. “Crisis in the Heartland: Consequences of the New Wall Street System.” New Left Review, n. 55, p. 5-29, jan.-feb. 2009. HUNG, Ho-fung. “America’s Head Servant?” New Left Review, n. 60, p. 5-25, nov.-dec. 2009. KORZENIEWICZ, Roberto Patricio; MORAN, Timothy Patrick. 2000. “Measuring World Income Inequalities.” American Journal of Sociology, n. 106, p. 209–14, 2000. 167 DESIGUALDADES MUNDIAIS DE RENDA: EM DIREÇÃO A UMA PERSPECTIVA CRÍTICA _______. Unveiling Inequality: A World-Historical Perspective. New York: Russell Sage Foundation, 2009. KUZNETS, Simon. “Economic Growth and Income Inequality.” American Economic Review, n. 45, p. 1-28, 1955. MILANOVIC, Branco. Worlds Apart: Measuring International and Global Inequality. Princeton: Princeton University Press, 2005. O’ROURKE, Kevin H.; WILLIAMSON, Jeffrey G. Globalization and His- tory: The Evolution of a Nineteenth-Century Atlantic Economy, (Globali- zação e História: A Evolução de uma Economia Atlântica no Século XIX). Cambridge, MA, 1999. POLANYI, Karl. The Great Transformation: The Political and Economic Origins of our Time. Boston: BeaconPress, 1957[1944]. PREBISCH, Raúl. The Economic Development of Latin America and Its Principal Problems. Lake Success, NY: United Nations (Department of Eco- nomic Affairs, Economic Commission for Latin America), 1950. PRITCHETT, Lant. “Divergence, Big Time.” Journal of Economic Perspectives, n. 11, p. 3-17, 1997. SALA-I-MARTIN, Xavier. “The World Distribution of Income: Falling Poverty and… Convergence, Period!”. Quarterly Journal of Economics, n. 121, p. 351-397, 2006. SMITH, Adam. An Inquiry into the Nature and Causes of The Wealth of Nations. Chicago: The University of Chicago Press, 1976 [1776]. SOROKIN, Pitirim, Mobilidade Social. Nova York, 1927, p. 31. WADE, Robert Hunter. “Is Globalization Reducing Poverty and Inequality?” World Development, n. 32, p. 567-589, 2004. _______. “Globalization, Growth, Poverty, Inequality, Resentment and Im- perialism.” p. 373-409. In: RAVENHILL, J. (ed.). Global Political Economy. Oxford: Oxford University Press, 2008. O BRASIL E O CAPITALISMO HISTÓRICO 168 WALKER, Richard; BUCK, Daniel. “The Chinese Road: Cities in the Transi- tion to Capitalism.” New Left Review, n. 46, p. 39-66, jul.-aug. 2007. WALLERSTEIN, Immanuel. The Modern World System: Capitalist Agri- culture and the Origins of the European World-Economy in the Sixteenth Century. New York: Academic Press, 1974. _______. The Modern World-System II: Mercantilism and the Consoli- dation of the European World-Economy, 1600-1750. New York: Academic Press, 1980. 169 Das eras douradas aos “tempos bicudos” do capitalismo mundial: práticas empresariais e ilicitudes como estrutura ANTONIO JOSÉ ESCOBAR BRUSSI94 No dia da Criança de 2010, o conhecido programa de TV Mais Você trouxe como principal atração nada menos que Xuxa Meneguel, presença mais que apropriada para a devida homenagem que então se prestava aos ‘baixinhos da rainha’. Entre os diversos destaques que realçavam a impor- tância artística e o sucesso comercial da convidada, foi lembrado que Xuxa havia vendido até aquela data mais de 28 milhões de discos, número as- tronomicamente alto em qualquer comparação possível no mercado fono- gráfico brasileiro. Perguntada sobre as razões de tamanho sucesso, Xuxa respondeu que esse número só pôde ser alcançado porque sua carreira ar- tística começou antes da chegada da pirataria sonora, fenômeno que forçou 94 Doutor em Sociologia pela State University of New York - Binghamton. Professor do Insti- tuto de Ciência Política da Universidade de Brasília. C A P Í T U L O 6 O BRASIL E O CAPITALISMO HISTÓRICO 170 o redirecionamento do mercado musical para os shows ao invés de venda de discos/CDs. Na mesma direção, o jornal Correio Braziliense, de 18/7/2010, pu- blicou matéria de página sobre o crime organizado intitulada “A capital do estoura-peito”. Nesse texto, fomos informados que a venda ilegal de cigarros respondia por 43,6% do mercado de cigarros do Distrito Federal e que a Receita Federal deixava de arrecadar um total de dois bilhões de reais anual- mente com a venda de cigarros contrabandeados em todo o Brasil. Também ficamos sabendo que as formas de sonegação são ricas e variadas, indo do velho e conhecido descaminho nas fronteiras até ao contrabando empresa- rial organizado por importadoras mantidas através de liminares na justiça – as liminares e suas “indústrias”.95 Outras notícias nesse e em outros peri- ódicos mostram a montanha de dinheiro e de impostos que comerciantes e governos perdem com vendas ilegais de produtos de informática, celulares, câmaras fotográficas, roupas, perfumes, relógios e muitos outros itens de consumo pessoal. É importante lembrar também que essa invasão de produtos ilegais, que presenciamos com crescente indiferença por todo o país, de modo al- gum se afigura como um fenômeno brasileiro, latino-americano ou mesmo como algo típico da periferia da economia mundial. Longe disso. A presença de produtos ilegais – contrabandeados e/ou pirateados – em praticamente todos os mercados do mundo constitui hoje um dos traços mais marcantes da homogeneização do mercado mundial, evidenciando quão profunda é a permeabilidade das redes de produção e de tráfico por praticamente todos os continentes. É possível afirmar que, ao lado da corrupção política e do mercado das drogas, o comércio ilegal de produtos contrabandeados e/ou pirateados constitui o aspecto mais realçado e difundido da conexão lucro e ilegalidade nesse período de refluxo econômico por que passa a economia- mundo capitalista. 95 Por descaminho entende-se a entrada no país de produtos sem o pagamento de taxas e impostos de importação. Contrabando refere-se à entrada de produtos proibidos de serem co- mercializados no país. Serão utilizados aqui indistintamente porque o que importa na análise é o conteúdo ilícito presente no negócio. 171 DAS ERAS DOURADAS AOS “TEMPOS BICUDOS” DO CAPITALISMO MUNDIAL A literatura sobre o tema também faz referências ao que se manifesta como a parte visível desse mercado ilegal que cresce por toda parte. A esse respeito, é indispensável lembrar dois aspectos complementares que quase não são associados à difusão generalizada desses ilícitos. O primeiro é a es- treita proximidade entre essas atividades ilegais e um agravado processo de imigração em escala mundial que dispersa comunidades de imigrantes por várias regiões do mundo, muitas delas vendo parte de seus membros trans- formarem-se em importadores, mercadores ou mesmo consumidores desses produtos. O segundo ponto relevante a ser lembrado é que a disseminação de tais ilícitos no contexto do capitalismo mundial não pode ser desconecta- da de íntima conexão com o universo das atividades ocupacionais informais. Entretanto, tal moldura não tem apresentado sempre os mesmos con- tornos no sentido de se reconhecer a imigração e a informalidade como par- tes constitutivas daquelas práticas ilícitas. Levando em conta a peculiaridade do momento atual, o presente trabalho pretende destacar esse tipo de ilega- lidade e as atividades econômicas a ela associadas de dois modos comple- mentares. Primeiro, pretende identificá-los como parte da estrutura mesma do capitalismo histórico, i.e., como processos historicamente recorrentes, embora com atores sociais, ambientes sociopolíticos e processos instrumen- tais particularizados e, segundo, demonstrar que a atual composição do ilí- cito com a imigração e a informalidade ocorre apenas no âmbito do atual momento de retração sistêmica. No entanto, é importante antecipar que os conteúdos diferenciados das configurações históricas de ilicitudes na vida econômica vêm mantendo semelhanças em pelo menos três aspectos, a sa- ber: 1) surgem sempre como “inovações” ético-empresariais a princípio for- temente questionadas por seus contemporâneos; 2) envolvem as periferias do sistema-mundo como partes fundamentais do processo; e, por fim, com o passar do tempo, 3) transformam-se em práticas correntes, amplamente reconhecidas e largamente difundidas. Se essa interpretação apresenta fun- damentos de algum modo consistentes, então a banalização do ilícito – e sua subsequente transformação em regras de conduta – pode ser tratada como manifestação recorrente de processos mais longos. Consequentemente, o sentido de sua ocorrência, contemporaneamente associada à informalidade, O BRASIL E O CAPITALISMO HISTÓRICO 172 pode conter informações de interesse para um mais completo entendimento da crise que o mundo vem atravessando. Os anos dourados das Províncias Unidas When the prize from the [Santa. Catarina] was recently put up for sale, who did not marvel at the wealth revealed? Who was not struck with amazement? Who did not feel that the auction in progress was practically the sale of a royal property, rather than of a fortune privately owned? (Hugo Grotius, De Jure Praedae Commentarius) Mesmo não tendo sido os primeiros a organizarem uma companhia de comércio – a Companhia Britânica das Índias Orientais foi fundadaem 1600 – os holandeses sem dúvida foram os que avançaram mais completa- mente na organização desse tipo de empreendimento. A Companhia Ho- landesa das Índias Orientais tornou-se, desde sua fundação, a maior e mais importante empresa comercial de seu tempo, sendo hoje reconhecida como a primeira megacorporação multinacional que se tem notícia. Além disso, suas práticas organizacionais, gerenciais, políticas e ideológicas foram tão inovadoras, a ponto de impulsionar as Províncias Unidas a transformarem-se na primeira entidade político-econômica a abrigar e manter por longo tem- po um projeto de hegemonia política e econômica na economia-mundo ca- pitalista (WALLERSTEIN, 1974). O ponto de partida desse avanço, no entanto, vai ocorrer mais de trin- ta anos depois do início de uma guerra de oitenta anos (1568-1648) que as Províncias Unidas travaram contra o império espanhol em sua luta pela in- dependência. Wilson (2009, p. 254) corretamente associa a decolagem da companhia à captura do cargueiro português Santa Catarina em 1603, o que “pode ter servido como a causa imediata da formação da Companhia Holan- desa das Índias Orientais (a VOC), a corporação acionária que teve a função 173 DAS ERAS DOURADAS AOS “TEMPOS BICUDOS” DO CAPITALISMO MUNDIAL politicamente útil de coordenar as operações corsárias menores, desor- ganizadas e menos eficientes dos mercadores provinciais holandeses independentes”.96 Mesmo reconhecendo o pequeno equívoco de Wilson de associar a captura daquele navio e a apropriação de sua carga com a criação da VOC, porque “a fusão das companhias pioneiras competidoras em uma corporação monopolista” ocorreu um ano antes, em 20 de março de 1602 (BOXER, 1965, p. 23-4), é de qualquer modo inquestionável que a recém- organizada corporação incorporou extensivamente a pilhagem entre suas atividades mais lucrativas. Além disso, o efeito legitimador que os argumen- tos elaborados por Hugo Grotius na defesa do saque do cargueiro portu- guês, publicado nos Comentários sobre a Lei do Saque e da Pilhagem,97 vi- sava muito mais a estender a validade desses atos através dos oceanos como um dos principais instrumentos à disposição das Províncias Unidas em sua luta para afirmarem-se como poder hegemônico na economia mundial (WILSON, 2009). Nesse sentido, o desdobramento consequente das mudan- ças trazidas por Grotius a partir do que deveria ser esperado de um bom marinheiro holandês em alto mar foi o estabelecimento das fundações de uma nova ética ajustada aos avanços, ao Oriente e ao Ocidente, das compa- nhias de comércio holandesas. Ademais, também antecipava as dimensões nacionais da guerra no sentido de que a partir de então essas passariam a ser combatidas por todos os meios à disposição de uma nação – a esse respeito é necessário atentar para a relação simbiótica entre o estado mercantilista e os monopólios comerciais – desse modo transformando as guerras em uma dimensão nacional do poder (no sentido de que elas se tornam responsabi- lidade social dos interesses organizados em um estado nacional) ao invés de confinadas a assuntos dinásticos ou religiosos. Desse modo, De Indis pode também ser entendido como uma antecipação pontual das consequências abrangentes trazidas pela Paz de Westfália quase meio século depois, quando o tratado estabeleceu a autonomia que os estados devem ter em seus assuntos 96 As referências apresentadas neste texto foram traduzidas pelo autor (AB). 97 Segundo Wilson (2009, p. 239) o título original desse texto seminal era De Indis (Sobre as Índias), mas passou a ser mais conhecido por De Jure Praedae Commentarius (Comentários sobre a Lei do Saque e da Pilhagem). O texto foi escrito entre fins de 1604 e novembro de 1606. O BRASIL E O CAPITALISMO HISTÓRICO 174 internos. Desse modo, primeiro o livro e depois o tratado foram organizados para servir como fundações político/ideológicas da primazia holandesa no mundo, porque consolidaram a legitimidade das escolhas políticas dos estados componentes do sistema interestatal e porque estava garantido o recém-ela- borado princípio de um estado perseguir e defender seus interesses nacionais. Resumindo, o conjunto da premissa que suportava a ideia de direi- to nacional à liberdade e à soberania estava baseado na noção de direito subjetivo, que afirmava que o homem como um indivíduo livre e soberano poderia trabalhar e lutar por seu direito, desde que sua ação e objetivos não ignorassem o direito natural como inato ao homem e à humanidade. Tal entendimento da autonomia do indivíduo servia como o ponto central de toda a racionalização que Grotius desenvolveu para fundamentar o direito holandês de organizar um império comercial. Com isso, a pilhagem do Santa Catarina pelo capitão holandês a serviço da VOC, Jacob Van Heemssker- ck, no amanhecer do dia 25 de fevereiro de 1603, foi considerada um ato legítimo de um agente de um estado livre e independente que tinha plena autoridade para atacar indiscriminadamente navios privados ou estatais que pudessem representar ameaça aos interesses holandeses. De acordo com tal entendimento, uma companhia de comércio poderia legitimamente envol- ver-se em uma guerra privada contra outros mercadores ou mesmo contra agentes de outro estado para impor a acima mencionada lei subjetiva, dirigi- da contra qualquer medida que pudesse ameaçar seus direitos de navegação e comércio. Além disso, as penalizações impostas pela ideia de Mare Clausum (Mar Fechado), pelas restrições à navegação que esse princípio ocasionava aos fluxos regulares do comércio, serviam como plena justificação ao direito de pilhagem que os interesses prejudicados poderiam utilizar por reparação às perdas da companhia, dos empregados, dos acionistas e do estado holan- dês. A ausência de um sistema judicial no lugar onde essas confrontações ocorriam – o alto mar – justificava o inquestionável direito de uma guerra justa ser travada como um modo de impor a lei natural, que nesse caso se- ria o direito de cada um buscar seu interesse, tal como o de comercializar livremente. Em uma palavra, Mare Liberum (Mar Livre) era uma abençoada justificativa da guerra. 175 DAS ERAS DOURADAS AOS “TEMPOS BICUDOS” DO CAPITALISMO MUNDIAL A pilhagem do Santa Catarina não serviu apenas como referência para a construção de uma nova ética política/empresarial à disposição das Províncias Unidas em sua luta por hegemonia na economia mundial. Duas outras consequências – uma direta e outra simbólica – intimamente interli- gadas à pirataria mundial floresceram diretamente desse saque e da talentosa defesa daquele ato que Grotius publicou um ano depois. A primeira veio com as riquezas que o mencionado saque trouxe para a VOC. Estimou-se em mais de três milhões de florins – ou gulden – (em torno de trezentas mil libras esterlinas) o valor do carregamento leiloado em Amsterdam no ano seguinte (VAN ITTERSUM, 2006, p. 511). Essa espantosa quantidade de di- nheiro, e ainda mais importante, o baixo custo para obtê-la, é reconhecida como tendo servido como bom argumento às companhias corsárias holan- desas menores e menos eficientes para que unissem seus esforços, conforme a afirmação de Wilson transcrita acima (p. 254). A partir desse episódio as pilhagens da companhia transformaram-se em outra fonte legítima de altos lucros para a VOC, difundindo-se também a outras companhias de comér- cio dos outros estados europeus.98 A segunda consequência veio da grande quantidade de porcelana chinesa embarcada no cargueiro português. Foram tão bem aceitas e as peças alcançaram preços tão altos nos leilões em Ams- terdam que “o termo Kraac porcelein (porcelana de cargueiro) foi aplicado à Ming azul e branco por várias décadas” (BOXER, 1965, p. 174). A demanda cresceu tão rapidamente por todo o norte da Europa que as importações de porcelana do Extremo Oriente podiam ser contadas aos milhões de peças em menos de 50 anos após sua chegada à Holanda. A procura por porce- lana era tanta quepor volta de “1614 os holandeses começaram a imitar as cerâmicas Ming azul e branca e em 50 anos as cerâmicas de Delft estavam produzindo imitações bastante razoáveis das peças de porcelanas chinesas e japonesas.” (BOXER, 1965, p. 175). Com isso, a segunda consequência do sa- que do Santa Catarina deriva da excitação que sua carga acabou por produzir nas comunidades holandesas, estimulando o desenvolvimento de uma longa 98 É importante lembrar que a diferença entre pirata e corsário é que o último age autorizado por um poder estatal enquanto o primeiro empreende uma ação privada. O BRASIL E O CAPITALISMO HISTÓRICO 176 e duradoura indústria de imitação que por mais de 150 anos copiou a cor e o estilo – um dos significados de pirataria – da porcelana do Extremo Oriente (BOXER, 1965, p. 175). Se a montagem de um monopólio comercial evitou uma dolorosa con- corrência doméstica entre as companhias holandesas do início do século XVII, uma decisão que não afetou os sentimentos morais dos habitantes das Provín- cias Unidas, o mesmo não pode ser estendido às vastas prerrogativas e direitos concedidos à empresa, especialmente com o que tais privilégios podiam alcan- çar. Na verdade, se se considerar os campos de ação da companhia poder-se-ia facilmente notar que as atribuições e a autonomia da VOC alcançavam ex- tensões tão vastas que mais de uma vez a empresa foi vista como um estado dentro do estado. Entretanto, se tal concentração de poder era vista como in- dispensável para assegurar à VOC poderio suficiente para desempenhar suas atividades comerciais em terras distantes – entre seus direitos encontram-se autorização para estabelecer tratados e alianças, construir fortificações, alistar pessoal civil, militar e naval de quem se exigia juramento de lealdade à compa- nhia e ao estado, e mesmo declarar “guerras defensivas” (BOXER, 1965, p. 24) – é de qualquer modo necessário enfatizar que o desdobramento de considera- ções ético-morais baseadas nesses tópicos estimulou conflitos desde a criação da corporação. Muitos acionistas potenciais decidiram não se envolver com tal empresa devido ao risco do comportamento da companhia tender perigo- samente para ações agressivas e belicosas. A respeito dessas suspeitas de parte dos investidores em aceitar engajamentos da companhia em guerras, mesmo defensivas, Boxer afirma que: Contudo, a autorização para travar guerra foi suficiente para afastar parte dos investidores das companhias pioneiras, que preferiam vender suas cotas ao invés de transferirem-nas à VOC, pois como mercadores eles tinham organizado aquelas companhias unicamen- te para engajarem-se honradamente em comércio pacífico e amisto- so e não para entregarem-se a quaisquer ações hostis ou agressivas. Esses críticos corretamente perceberam que a VOC seria frequen- temente induzida a fazer uso da espada tanto quanto da caneta. (BOXER, 1965, p. 24). 177 DAS ERAS DOURADAS AOS “TEMPOS BICUDOS” DO CAPITALISMO MUNDIAL O mesmo autor menciona Snouk Hurgronje, um importante acadê- mico islâmico do século XIX, que justificava o desconforto daqueles pios mercadores holandeses para com o comportamento da VOC no Oriente com o seguinte comentário a respeito da Companhia Holandesa das Índias Orientais: O primeiro ato da tragédia Holanda-Índia chama-se ‘Companhia’, e começa quase exatamente com o século XVII. Os principais atores merecem nossa admiração por sua indomável energia, mas o objetivo pelo qual trabalhavam e os meios que empregavam para alcançá-los, eram de tal espécie que nós, mesmo com plena aceitação do princí- pio que devemos julgar seus atos de acordo com os padrões daquele tempo, temos dificuldade de conter nossa aversão. A ‘experiência’ teve início de tal modo que os habitantes da Ásia entraram em contato com a escória da nação holandesa, que os tratavam com desprezo quase insuportável, e cuja tarefa era devotar todos seus esforços para o enriquecimento de um grupo de acionistas na mãe pátria. Os fun- cionários dessa companhia fretada, mantinham tudo sob controle para seus empregadores mas, não menos gananciosos por ganhos que eles, mostravam um ambiente de corrupção que obscurecia o pior de quanto os povos orientais são disso acusados. (BOXER, 1965, p. 50). Simultâneos aos indescritíveis excessos da companhia sobre as popu- lações asiáticas, os rendimentos provenientes do contrabando apresentavam- -se como talvez a mais importante fonte de rendimento daquela “escória da nação holandesa” (the dregs of the Dutch nation), de acordo com os duros ter- mos que Hurgronje utilizou para descrever o pessoal da VOC. A importância do contrabando no conjunto das políticas da VOC de modo algum se devia a terem os holandeses iniciado tal prática como um empreendimento econômi- co regular, pois “tomando por base expressões oficiais de preocupação com a atividade, parece que um substancial comércio ilícito vinha existindo desde pelo menos meados do século XVI” (JONES, 2001, p. 17). Se os mercadores holandeses não podem ser responsabilizados por terem introduzido tais prá- ticas ilícitas na economia-mundo europeia, do mesmo modo também não podem ser acusados de serem os únicos a praticarem-nas extensivamente O BRASIL E O CAPITALISMO HISTÓRICO 178 em seus negócios com o Oriente. Nesse assunto os portugueses levaram o prêmio por terem iniciado tais práticas no seu comércio com as Índias, que continuavam em pleno funcionamento mais de cem anos depois. De Vries (2010, p. 717) estimou que um terço de todos os carregamentos trazidos à Europa pelos portugueses por volta de 1620 “representava descaminho co- mercial”. Nesse caso, por que mencionar essas práticas ilícitas da VOC se eram tão antigas e disseminadas por toda a Europa? O que se quer ressaltar com esses atos ilegais no âmbito das rotinas da companhia é que desde seu início essas práticas tornaram-se parte comple- mentar dos pagamentos que a empresa fazia à sua força de trabalho. Apesar de o contrabando ter sido antigo e onipresente no cenário econômico eu- ropeu, não tendo por isso vínculos de origem com a expansão do comércio holandês de longa distância, um traço profundamente enraizado nas ativida- des empresariais da VOC por toda sua existência pode ser aqui identificado. Desde os primeiros tempos da companhia, o contrabando ou o “comércio privado” tornou-se parte do pagamento de seu pessoal. Tão disseminada foi essa atividade que “do Governador Geral ao camareiro comercializavam por fora e todos sabiam disso” (BOXER, 1965, p. 201). Boxer afirma que os di- retores da companhia não podiam ou não queriam pagar salários razoáveis e, ao lado de seus valores muito baixos, a companhia ainda retinha parte do pagamento de seu pessoal de origem holandesa no Oriente. De acordo com ele, essas práticas serviam como possível prevenção de deserção porque os empregados da empresa não queriam perder quantias razoáveis de salário retidas em poder da companhia. Adjacente à disseminada corrupção da VOC em suas atividades co- merciais a leste e a oeste, sua política salarial longa de dois séculos procurava manter sua força de trabalho em ação através da expectativa de ganhos que o contrabando poderia proporcionar-lhes. Assim, ao lado das mudanças de entendimento a respeito da pilhagem e das inovações pertinentes à guerra trazidas pelas novas interpretações con- tidas no conceito de Mare Liberum, é necessário acrescentar a inovação tra- zida pelo contrabando como suplementação salarial. Com entendimento tão original acerca da recompensa do trabalho certamente estamos muito dis- tantes da piedosa ética cristã prevalecente no período medieval assim como 179 DAS ERAS DOURADAS AOS “TEMPOS BICUDOS” DO CAPITALISMO MUNDIAL de qualquer fundamento ético das virtudes do trabalho ascético ressaltadas pela visão weberiana do Calvinismo. O século americano: crime e recompensa Take up with the white man’s burden Send forth the best ye breed Go bind your sons to exile To serve your captives’need To wait in heavy harness – On fluttered folk and wild – Your new-caught, sullen peoples, Half devil and half child… The White Man’s Burden (Rudyard Kipling) O segundo período aqui tratado a abrigar a gestação de novos funda- mentos ético-morais no conjunto das práticas empresariais da economia mun- dial capitalista teve início imediatamente após o final da guerra civil ameri- cana, depois da posse do presidente Ulisses Grant em 1869 e estendendo-se até a primeira década do século XX. Se o período da dominância comercial holandesa durante o século XVII foi reconhecido como a Era Gloriosa do ca- pitalismo triunfante em seu momento batavo de expansão, o período que teve início com o avanço das estradas de ferro em direção ao oceano Pacífico du- rante a Guerra Civil americana, adentrando por territórios que se tornariam o espaço continental dos Estados Unidos da América, chamou a atenção de nin- guém menos que Mark Twain, escandalizado pelo frenesi que tomava conta do mundo dos negócios e pela contagiante amoralidade que o acompanhava. A lembrança aqui desse aclamado romancista se deve a um de seus romances, cujo título The Gilded Age: A Tale of Today acabou por denominar o último quartel do século XIX nos Estados Unidos: A Era da Aparência.99 99 O sentido literal da expressão significa “A era banhada a ouro”, no sentido de um tempo que apresentava bela, mas ilusória aparência. Foi emprestado de King John, de Shakespeare: “To O BRASIL E O CAPITALISMO HISTÓRICO 180 O núcleo diferenciador do período apresenta duas dimensões com- plementares. De um lado, uma irrefreável expansão da corrupção – em to- das as formas e direções – intimamente associada à organização de grandes empreendimentos, cujas origens desdobravam-se a partir das conexões que a grande finança era capaz de desenvolver com o estado. Tal proximidade ocorreu com o propósito de facilitar política, coercitiva e financeiramente o vertiginoso crescimento das estradas de ferro, que avançavam em direção ao Pacífico ainda durante a Guerra Civil. Como consequência, a crescente com- petição entre financistas e especuladores – ao lado de tensões que emergiam entre as elites políticas ansiosas pelos benefícios trazidos pelos investimentos ferroviários – reforçava e alargava aquela zona cinzenta de ilegalidade, a qual gradualmente passou a ser entendida pelo senso comum como o real senti- do de negócios (businesses). Nesse contexto, a corrupção apresentava dois eixos: o político e o financeiro. No núcleo político, a despeito dos esforços revisionistas dos novos historiadores políticos (ALLEN; ALLEN, 1981, apud ARGERSINGER, 1985-6, p. 670-1), ainda não se conseguiu rejeitar consis- tentemente a interpretação prevalecente que reconhece quão disseminada era a corrupção política depois de 1870 nos Estados Unidos (ARGERSINGER, 1985, p. 6). De uma maneira geral, o que nos interessa mais diretamente a respeito da corrupção durante aquele período era a capilaridade que alcan- çou, sobrepondo-se a partidos, vínculos pessoais e instituições do estado. Diferenciava-se da corrupção mais familiar associada à máquina po- lítica do século XIX em vários aspectos. Era, antes de tudo, não par- tidária. As estradas de ferro buscavam amigos em ambos os partidos. Segundo, não estava concentrada nas eleições democráticas, que eram caras e difíceis de controlar. Terceiro, dependia tanto de lobistas como de autoridades eleitas. (WHITE, 2003, p. 23). A propagação dessas práticas pode ser demonstrada pelo farisaís- mo disseminado na comunidade empresarial da época, quando homens de gild refined gold, to paint the lily... is wasteful and ridiculous excess.” Há ainda o sentido pejora- tivo que contrasta uma era dourada ideal e outra, menos valiosa, com apenas tênue cobertura de ouro sobre metal barato, sentido que acabou prevalecendo para identificar os excessos daqueles anos. In: The Complete Works of Mark Twain, Delphy Classics, The Novels, Prefácio. 181 DAS ERAS DOURADAS AOS “TEMPOS BICUDOS” DO CAPITALISMO MUNDIAL negócios não se incomodavam em continuamente expor o visível contraste entre suas mais que suspeitas atitudes empresariais e as pias práticas reli- giosas que publicamente exibiam. Destaques dessa desfiguração foram Jay Cooke, o financista, e Harvey Fisk, o banqueiro da Central Pacific Railroad (WHITE, 2003, p. 20). A esse respeito, não constitui atenuante reconhecer que o americano comum do século XIX embaralhava o julgamento da economia e de práti- cas políticas com virtudes morais e religiosas sendo, portanto, incapaz de distinguir os fundamentos éticos eventualmente específicos desses cam- pos. O que é importante enfatizar, nesse caso, é que aqueles especuladores ao menos “reconciliavam moralidade e ações abraçando uma moralidade de consequências. Como nos negócios, a moralidade reduzia-se a um mí- nimo que significava aumento na riqueza” (WHITE, 2003, p. 20). O mes- mo autor assegura que a importância da informação ou sua manipulação – no sentido da difusão dos escândalos – não eram novidades na década de 1870, quando a economia americana crescia aos saltos. O que era novo naquela época era “a escala dos mercados e das corporações privadas que os manipulavam, a rapidez e a disseminação da informação e o tamanho da audiência que atingiam, e as novas tecnologias que tornavam tudo isso possível.” Em tal ambiente “caráter entre os financistas da Gilded Age… não era sinônimo de honestidade; tinha muito mais a ver com exaltação, confiança, determinação e força.” (p. 24). A partir do momento em que, seguindo aquele avanço explosivo, tal moralidade esparramou-se pelos po- ros da sociedade americana e consolidou-se como um padrão para avaliar e julgar o comportamento humano, um de seus resultados mais impor- tantes foi fornecer uma nova medida de caráter e de sucesso que se iden- tificava com o tamanho da riqueza material que alguém possuía. Assim, tornou-se quase que natural estender o mesmo princípio da moralidade de consequência para outros níveis de julgamento, como os relacionados ao desempenho do governo, por exemplo, tão identificados que esses julga- mentos estavam com aqueles princípios de poder e riqueza sem qualquer outra consideração. O BRASIL E O CAPITALISMO HISTÓRICO 182 Não faz parte dos propósitos deste trabalho avançar por todas as mu- danças que abalaram a sociedade norte-americana após o final da guerra ci- vil. O que deve ser brevemente mencionado, no entanto, é que a Era Banhada a Ouro – ou da Aparência (Gilded Age) – foi marcada por um período de profunda mudança social, ancorada em um intenso processo de urbaniza- ção, resultado da expansão da industrialização. Esse movimento fez emergir e rapidamente expandir uma nova classe média enquanto essa mesma ex- pansão “[...] eclipsava largamente a ‘velha’ classe média de pequenos empre- endedores, moralistas, vivendo para si mesmos em suas pequenas e isoladas comunidades.” (WIEBE, 1967 apud MAHONEY, 2005, p. 357). A dispersão/ dissolução dos laços tradicionais de identidade e de coesão social, causada pela migração e pela mobilidade vertical e horizontal dela derivadas, aca- bavam por enfraquecer os benefícios que a nova solidariedade no local de trabalho supostamente criava nesse novo ambiente – emprego, promoção e carreira – tornando-os menos úteis e confiáveis em vista de sua fluidez (MAHONEY, 2005). Em tal cenário social […] havia sido forjado um sentimento de identidade autossuficien- te, confiante e independente, apartado da necessidade de aprova- ção, apoio ou referência de amigos, pois tais contatos eram de curta duração e pouco confiáveis com o passar do tempo. Resistindo à solidão, à anomia e a uma ansiedade desconfortante com respeito à brutalidade, com narrativas pessoais mais elaboradas e identidades mais fortemente articuladas, mantendo rotinas ocupadas e ativas e mergulhando no trabalho (tais comportamentos) surgem com re- gularidade no decorrer de tais contextossociais. De fato, pode-se afirmar que a identidade referenciada a partir da classe havia sido desfeita e que (as pessoas) sentiam-se caminhando em direção a uma espécie de limbo social com pouco ou nenhum sentimento de pertencimento a qualquer entidade social concreta e que a luta para definir-se socialmente era travada a partir de dentro. Crescente- mente, em meio ao anonimato, procurava-se o núcleo da identidade dentro de si mesmo. (MAHONEY, 2005, p. 363). 183 DAS ERAS DOURADAS AOS “TEMPOS BICUDOS” DO CAPITALISMO MUNDIAL E era dessa classe média tradicional,100 que atravessava um momento de rápida e radical transformação, que provinha a maior parte dos funcio- nários do estado no período posterior à Guerra da Secessão, com promo- ções para postos mais altos na carreira militar, em novas ocupações civis e em postos diplomáticos principalmente na América Latina e na Europa (MAHONEY, 2005, p. 360). Assim, era essa base social instável, porém as- cendente, que fornecia os novos funcionários para os quadros militares e civis que serviriam o estado durante a Gilded Age. Em uma palavra, se esse contexto de instabilidade social, anomia e conflitos inter e intraclasses foi o ambiente onde o grande negócio e as corporações foram criados e pros- peraram, então é possível concluir que essa Gilded Age, com seu ambiente especulativo e fraudulento e de intenso crescimento econômico, foi o ber- ço de formulações fundamentais da política externa dos Estados Unidos, o Corolário Roosevelt e seu desdobramento imediato, a Diplomacia do Dólar. Desse modo, ambas as inovações devem ser entendidas como o resultado dessa “refundação” ético/moral que se espraiou pela sociedade americana durante aqueles “Anos Dourados”. Com efeito, os tempos de improvisação e inconsistências que marca- ram a política externa americana no final do século XIX estavam sendo pro- gressivamente substituídos por um modelo mais universal e impessoal que dificultava os poderosos lobbies das grandes corporações de intervirem dire- tamente nas decisões do estado. Nesse caso, no entanto, a maior autonomia do estado não afastou as corporações de beneficiarem-se dos resultados des- sas políticas que fortaleciam o poder estatal. Isso porque, a reinterpretação da Doutrina Monroe (Corolário Roosevelt) abria as portas da América La- tina aos interesses corporativos americanos e, ao reforçar o direito exclusivo 100 Essa breve referência às classes médias e o silêncio a respeito da classe operária deve-se ao fato de as primeiras terem tradicionalmente sido consideradas como fornecedoras de quadros burocráticos ao governo federal e a seus estados constitutivos, assim como para as corporações que cresciam no final nas últimas décadas do século XIX. Com referência à classe operária, além de estar ausente dessa mobilidade social ascendente que floresceu durante aqueles anos nos Estados Unidos, sua principal importância na política externa foram suas demandas que acabaram por produzir o que Poulantzas uma vez chamou de “efeitos pertinentes na estrutura”, que significava, aqui, que a Diplomacia do Dólar assegurava mercados para as mercadorias pro- duzidas domesticamente evitando, assim, possíveis conflitos e dificuldades trabalhistas. O BRASIL E O CAPITALISMO HISTÓRICO 184 de intervenção nos assuntos latino-americanos com o argumento de evitar a desordem e o atraso, apresentava ao mesmo tempo os Estados Unidos ao mundo como o portador da boa vontade e o defensor dos legítimos interes- ses da comunidade internacional. 101 O ponto de partida para a abertura de tal janela para o futuro, ou ao menos para parte dele, ocorreu em 1905 com a desvinculação do governo americano da proteção e motivação continuada que vinha exercendo des- de 1892 na defesa dos interesses da San Domingo Improvement Company (SDIC) – que também se estendia à San Domingo Finance Company e à Company of the Dominican Central Railway. “As três companhias tinham os mesmos funcionários e mantinham escritórios nos mesmos endereços no Baixo Manhattan.” (VEESER, 2003, p. 304). As mudanças buscavam substi- tuir as mais que constantes intimidações, ocupações militares e apropriações das arrecadações e dos rendimentos alfandegários dos países da América Central por mecanismos de controle mais discretos e eficientes porque orga- nizados a partir da supervisão dos banqueiros de Nova York e operados por respeitados conselheiros econômicos americanos. O que é interessante destacar, nos limites deste trabalho, é que a lon- ga e insolúvel instabilidade dominicana e a contínua assistência do governo americano à SDIC mostrava, de um lado, a importância dos interesses pri- vados em modelar a política externa americana durante aquele período e, de outro, tornava evidente que os interesses imediatos de uma companhia não podiam abrigar uma solução per se, mesmo com utilização intensiva de força militar. Desse modo, a cooperação governamental juntamente com a participação de fundos privados passaram a ser vistas como essenciais à or- ganização de um plano de longo prazo para o pagamento dos débitos do país através de recursos financeiros privados e garantias providenciadas pelos es- tados envolvidos (no caso, os Estados Unidos). A esse respeito, Veeser (2003, p. 325) enumera os fundamentos da Diplomacia do Dólar como seguem: a) 101 O poema de Kipling, cuja primeira estrofe serviu de epígrafe a esta seção, traz como subtítulo “Os Estados Unidos e as Ilhas Filipinas” (The United States and the Philippine Islands) com o ano 1899, portanto imediatamente após a anexação/aquisição das Filipinas pelos Estados Unidos, em consequência da vitória sobre a Espanha na guerra de 1898. 185 DAS ERAS DOURADAS AOS “TEMPOS BICUDOS” DO CAPITALISMO MUNDIAL a entrada da alta finança de Nova York no financiamento de débitos externos impagáveis; b) a introdução de conselheiros econômicos para a montagem de planos de estabilização que deveriam ser adotados pelos estados devedo- res; c) supervisão estatal das instituições financeiras envolvidas e da situação fiscal do estado devedor; e d) supervisão direta dos rendimentos do estado devedor por parte de agentes do governo americano. Assim, […] os laços entre o ramo (do) executivo, (de) destacados economistas e (de) grandes instituições financeiras – os músculos da Diplomacia do Dólar – foram claramente forjados durante o refinanciamento do débi- to dominicano entre 1905-7… A reabilitação econômica da República Dominicana, patrocinada pelo governo (americano) mas financiada pela iniciativa privada, tornou-se o modelo para trazer estabilidade às turbulentas nações latino americanas. (VEESER, 2003, p. 325). Com esses novos acabamentos foram lançadas as fundações do novo padrão internacional de coexistência entre credores e devedores. Havia ter- minado o período de alegação de precedência por “direitos especiais” por companhias bem representadas em Washington em benefício de um prin- cípio maior de harmonia entre as superpotências e grandes credores. Em uma palavra, foram estabelecidas novas regras de coexistência e compro- missos para um novo período expansivo baseado em investimentos diretos de grandes corporações pelo mundo nos assim chamados países hospedei- ros. Os interesses das corporações eram legalmente garantidos pelos dois princípios do direito internacional amplamente desenvolvidos em períodos precedentes: o princípio da arbitragem e o princípio da extraterritorialida- de. No primeiro caso, as partes contratantes concordavam em reconhecer o julgamento de uma terceira parte na eventualidade de uma disputa e, em caso de violação de contratos, o segundo princípio era invocado para pro- teger os direitos ameaçados.102 Não por acaso, esses princípios foram tema de detalhados estudos efetuados por John Basset Moore, a mais importante 102 A invasão da Nicarágua em 1912 é um bom exemplo de como esses dois princípios eram combinados, ao menos no caso das relações dos Estados Unidos com os países do