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CAPÍTULO 2 O processo de projeto Saca-rolhas. (Imagem cedida por A-Best Fixture Co., Akron, Ohio.) SUMÁRIO 2.1 Introdução e sinopse . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 14 2.2 O processo de projeto . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 14 2.3 Tipos de Projeto . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 18 2.4 Ferramentas de projeto e dados de materiais . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 18 2.5 Função, material, forma e processo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 20 2.6 Estudo de caso: dispositivos para abrir garrafas arrolhadas . . . . . . . . . . . . . . . . 21 2.7 Resumo e conclusões . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 23 2.8 Leitura adicional . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 25 Materials Selection in Mechanical Design DOI: 10.1016/B978-1-85617-663-7.00002-3 © 2011 Michael F. Ashby. Publicado por Elsevier Ltd. Todos os direitos reservados. 2.1 INTRODUÇÃO E SINOPSE Aqui, nossa principal preocupação é o projeto mecânico: os princípios físicos, o funcionamento adequado e a produção de sistemas mecânicos. Isso não significa que ignoramos o projeto in- dustrial – padrão, cor, textura e (acima de tudo) o apelo para o consumidor –, mas isso vem mais adiante. O melhor ponto de partida no desenvolvimento de produto é o bom projeto mecânico e como a seleção de materiais e processos contribui para tal. Nossa meta é desenvolver uma metodologia para selecionar materiais e processos guiada pelo projeto; isto é, uma metodologia que usa como insumos os requisitos funcionais do projeto. Para isso, em primeiro lugar, temos de examinar brevemente o processo de projeto em si. Como a maioria das áreas técnicas, o projeto mecânico está incrustado com seu jargão especial próprio e parte dele beira o incompreensível. Precisamos de muito pouco, mas não podemos evitá-lo de todo. Este capítulo apresenta algumas das palavras e frases – o vocabulário – de projeto, os estágios em sua implementação e os modos como a seleção de materiais está ligada a tudo isso. 2.2 O PROCESSO DE PROJETO O ponto de partida de um projeto é uma necessidade de mercado ou uma nova ideia; o ponto final é a especificação completa de um produto que atende a necessidade ou corporifica a ideia. Antes de satisfazer uma necessidade é preciso identificá-la. É essencial definir a necessidade com exatidão – isto é, formular uma declaração de necessidade, muitas vezes nesta forma: “Precisamos de um dispositivo para executar a tarefa X”, expressa como um conjunto de requisitos de proje- to. Quem escreve sobre projeto enfatiza que a declaração de necessidade deve ser neutra em relação à solução (isto é, não deve deixar implícito como a tarefa será executada) para evitar o pensamento estreito restringido por preconcepções. Entre a declaração de necessidade e a es- pecificação do produto encontram-se os estágios mostrados na Figura 2.1: conceito, corporificação e projeto detalhado, que explicaremos adiante. O produto em si é denominado sistema técnico. Um sistema técnico consiste em subunidades e componentes, reunidos de modo tal que executa a tarefa exigida, como mostra a subdivisão na Figura 2.2. É como descrever um gato (o sistema) dizendo que é composto de cabeça, corpo, rabo, quatro pernas e assim por diante (as subunidades), cada uma formada por componentes: fêmu- res, quadríceps, garras, pele. Essa subdivisão é um modo útil de analisar um projeto existente, mas não ajuda muito no processo de projeto em si, ou seja, no planejamento de novos projetos. Melhor, para essa finalidade, é uma subdivisão baseada nas ideias da análise de sistemas, que considera os insumos, fluxos e saídas de informações, energia e materiais, como na Figura 2.3. Esse projeto converte os insumos nas saídas (ou resultados). Um motor elétrico, por exem- plo, converte energia elétrica em energia mecânica; uma prensa de forjar pega material e lhe dá outra forma; um alarme contra roubo coleta informações e as converte em ruído. Nessa abordagem, o sistema é subdividido em subsistemas conectados e cada qual desempenha uma função específica, como mostrado na Figura 2.3. O arranjo resultante é denominado estrutura de função ou subdivisão de função do sistema. É o mesmo que descrever um gato como uma liga- ção adequada entre um sistema respiratório, um sistema cardiovascular, um sistema nervoso, CAPÍTULO 2: O processo de projeto 14 Necessidade de mercado: Requisitos de projeto Especificação do produto Determinar estrutura da função Procurar princípios de funcionamento Avaliar e selecionar conceitos Desenvolver layout, escala, forma Modelar e analisar unidades Avaliar e selecionar layouts Iterar Analisar componentes detalhadamente Otimizar desempenho e custo Escolha final de material e processo Corporificação Detalhe Conceito Sistema técnico Subunidade 1 Componente 1.1 Componente 1.2 Componente 1.3 Subunidade 2 Subunidade 3 Componente 2.1 Componente 2.2 Componente 2.3 Componente 3.1 Componente 3.2 Componente 3.3 FIGURA 2.1 O fluxograma de projeto. O projeto prossegue desde a identificação de uma necessidade de mercado, esclarecida como um conjunto de requisitos de projeto, por meio de conceito, corporificação e análise detalhada até uma especificação de produto. FIGURA 2.2 A análise de um sistema técnico como uma subdivisão em unidades e componentes. A seleção de material e processo está no nível do componente. 2.2 O processo de projeto 15 um sistema digestivo, e assim por diante. Projetos alternativos ligam as funções unitárias de modos alternativos, combinam funções, ou as subdividem. A estrutura de função dá um meio sistemático para avaliar opções de projeto. O projeto prossegue com o desenvolvimento de conceitos para executar as funções na es- trutura de função, cada uma baseada em um princípio de funcionamento. Nesse estágio concei- tual do projeto, todas as opções estão abertas: o projetista considera conceitos alternativos e os modos como eles podem ser separados ou combinados. O estágio seguinte, corporificação, leva em conta os conceitos promissores e procura analisar sua operação em um nível aproximado. Isso envolve dimensionar os componentes e selecionar materiais que terão um desempenho adequado nas faixas de tensão, temperatura e ambiente sugeridas pelos requisitos de projeto, examinando as implicações para desempenho e custo. O estágio de corporificação termina com um leiaute viável, que então é passado para o estágio de projeto detalhado. Aqui são elaboradas as especificações para cada componente. Componentes críticos podem ser submetidos a aná- lises mecânicas ou térmicas precisas. Métodos de otimização são aplicados a componentes e grupos de componentes para maximizar desempenho. Em seguida é feita uma escolha final de geometria e material e os métodos de produção são analisados e custeados. O estágio termina com uma especificação de produção detalhada. Até aqui tudo parece muito bom, muito bem. Quem dera fosse tão simples. O processo linear sugerido pela Figura 2.1 oculta a forte ligação entre os três estágios. As consequências das escolhas feitas nos estágios do conceito ou da corporificação podem não ficar aparentes até que o detalhe seja examinado. Iteração, laços de retorno para explorar alternativas, é uma parte essencial do processo de projeto. Pense em cada uma das muitas escolhas possíveis que poderiam ser feitas como um arranjo de bolhas no espaço de projeto, como mostra a Figura 2.4. Aqui C1, C2… são conceitos possíveis FIGURA 2.3 A estrutura de função é uma abordagem de sistemas para a análise de um sistema técnico, visto como transformação de energia, materiais e informações (sinais). Essa abordagem, quandoelaborada, ajuda a pensar em projetos alternativos como estrutura. Energia Material Informações Função 1 Insumos Função 3 Função 5 Função 6 Sistema técnico Saídas Função 2 Função 4 Energia Material Informações Subsistemas CAPÍTULO 2: O processo de projeto 16 e E1, E2… e D1, D2… são corporificações possíveis e suas elaborações detalhadas. O processo de projeto torna-se um processo de criação de caminhos e ligação de bolhas compatíveis até conseguir uma ligação de cima (necessidade de mercado) a baixo (especificação do produto). Alguns caminhos tentativos dão em becos sem saída, outros voltam para trás. É como procurar uma trilha em terreno difícil – pode ser necessário voltar para trás muitas vezes para ir em frente no fim. Uma vez encontrado um caminho, é sempre possível fazer com que ele pareça linear e lógico (e muitos livros fazem isso), mas a realidade é mais parecida com a Figura 2.4 do que com a Figura 2.1. Assim, uma parte fundamental do projeto, e da seleção de materiais para ele, é a flexibilidade, a capacidade de explorar alternativas rapidamente, tendo sempre em mente o grande quadro, bem como os detalhes. Nosso foco em capítulos posteriores será a se- leção de materiais e processos, onde surge exatamente a mesma necessidade. Isso exige algum tipo de mapeamento dos “universos” de materiais e processos de modo a permitir inspeção rápida de alternativas e ao mesmo tempo fornecer detalhes quando necessários. Os diagramas de seleção do Capítulo 4 e os métodos do Capítulo 5 ajudam a fazer isso. Descritas no campo abstrato, essas ideais não são fáceis de entender. Um exemplo ajuda – vem no Item 2.6. Antes, vamos aos tipos de projeto. Especificação do produto C2 C6 C4 C7 E3 C5 E1 E6 D3 E5 D1 Corporificação Detalhe Conceito Necessidade de mercado: Requisitos de projeto C3 E2 D2 D5 D6 E7 D4 E8 E4 C1 FIGURA 2.4 O convoluto caminho do projeto. Aqui as bolhas C representam conceitos; as bolhas E, corporificações das bolhas C; e as bolhas D, realizações detalhadas das bolhas E. O processo está completo quando pode-se identificar um caminho compatível desde “necessidade” até “especificação”. É um caminho tortuoso (a linha vermelha cheia) com retornos e becos sem saída (as linhas tracejadas). Isso cria a necessidade de ferramentas que permitam acesso fluido a informações de materiais em diferentes níveis de amplitude e detalhe. 2.2 O processo de projeto 17 2.3 TIPOS DE PROJETO Nem sempre é necessário começar, por assim dizer, do zero. O projeto original precisa de envol- vimento com uma nova ideia ou princípio de funcionamento (a caneta esferográfica, o disco compacto). Novos materiais podem oferecer novas e exclusivas combinações de propriedades que habilitam o projeto original. Assim, o silício de alta pureza habilitou o transistor; o vidro de alta pureza, a fibra ótica; magnetos de alta força coerciva, o minúsculo fone de ouvido; lasers de estado sólido, o disco compacto. Às vezes o novo material sugere o novo produto. Em outras, ao contrário, o novo produto demanda o desenvolvimento de um novo material: a tecnologia nuclear impulsionou o desenvolvimento de uma série de novas ligas de zircônio e aços inoxi- dáveis de baixo teor de carbono; a tecnologia espacial estimulou o desenvolvimento de compó- sitos leves; hoje, a tecnologia da turbina a gás impulsiona o desenvolvimento de ligas de alta temperatura e revestimentos cerâmicos. O projeto original parece interessante, e é. Porém, a maioria dos projetos não é assim. Quase todos os projetos são adaptativos ou desenvolvimentistas. O ponto de partida é um pro- duto ou um grupo de produtos existente. O motivo para refazer o projeto pode ser aprimorar o desempenho, reduzir custo ou adaptá-lo às mudanças nas condições do mercado. O projeto adaptativo toma um conceito existente e procura um avanço incremental no desempenho me- diante um refinamento do princípio de funcionamento. Muitas vezes, ele também é possibilitado pelos desenvolvimentos em materiais: polímeros que substituem metais em eletrodomésticos; fibra de carbono que substitui a madeira em equipamentos esportivos. Os mercados de eletro- domésticos e equipamentos esportivos são dinâmicos e competitivos. Com frequência, esses mercados podem ter sido conquistados (e perdidos) pelo modo como o fabricante adaptou o produto explorando novos materiais. Por fim, o projeto variante envolve uma mudança de escala ou dimensão, ou detalhamento sem mudança de função, ou do método de consegui-la: o aumento de tamanho das caldeiras, ou dos vasos de pressão, ou das turbinas, por exemplo. Mudança de escala ou de circunstâncias de uso pode exigir mudança de material: botes pequenos são feitos de fibra de vidro, navios grandes são feitos de aço; pequenas caldeiras são feitas de cobre, as grandes, de aço; aviões subsônicos são feitos de uma liga, supersônicos, de outra – tudo por boas razões, como detalharemos em capítulos posteriores. 2.4 FERRAMENTAS DE PROJETO E DADOS DE MATERIAIS Para implementar as etapas da Figura 2.1, utilizamos ferramentas de projeto. Elas são mostradas como insumos, ligadas à esquerda da principal espinha dorsal da metodologia de projeto na Figura 2.5. As ferramentas habilitam a modelagem e a otimização de um projeto, aliviando os aspectos rotineiros de cada fase. Modeladores de função sugerem estruturas de função viáveis. Otimizadores de configuração sugerem ou refinam formas. Pacotes de modelagem geomé- trica e de sólidos em três dimensões permitem visualização e criam arquivos que podem ser baixados para sistemas de prototipagem e fabricação controlados numericamente. Softwares CAPÍTULO 2: O processo de projeto 18 de otimização, DFM, DFA,1 e de estimativa de custo permitem o refinamento de aspectos de fabricação. Pacotes de elemento finito (FE) e de dinâmica de fluidos por computador (CFD) permitem análises mecânicas e térmicas precisas; mesmo quando a geometria é complexa, as deformações são grandes e as temperaturas variam. Há uma progressão natural na utilização das ferramentas à medida que o projeto evolui: análise e modelagem aproximadas no estágio conceitual; modelagem e otimização mais sofisticadas no estágio da corporificação; e análise precisa (“exata”, se bem que nunca nada é exato) no estágio do projeto detalhado. Ferramentas para seleção de materiais desempenham um papel importante em cada es- tágio do projeto. A natureza dos dados necessários nos primeiros estágios é muito diferente em nível de precisão e amplitude dos necessários mais tarde (Figura 2.5, à direita). No estágio do conceito, o projetista precisa de valores aproximados das propriedades, porém para uma faixa de materiais mais ampla possível. Todas as opções estão em aberto: um polímero pode ser a melhor escolha para um conceito, um metal para outro, ainda que a função seja a mesma. O problema, nesse estágio, não é precisão e detalhe; é amplitude e velocidade de acesso: como a vasta gama de dados pode ser apresentada para dar ao projetista a maior liberdade possível para considerar alternativas? 1 FIGURA 2.5 O fluxograma de projeto, mostrando como ferramentas de projeto e seleção de materiais entram no procedimento. Informações sobre materiais são necessárias em cada estágio, mas em níveis muito diferentes de amplitude e precisão. A iteração é parte do processo. Necessidade de mercado: Requisitos de projeto Especificação do produto Corporificação Detalhe Conceito Dados para TODOS os materiais, nível baixo de precisão e detalhe Dados para um SUBCONJUNTO de materiais, nível mais alto de precisão e detalhe Dados para UM material, o nível mais alto de precisão e detalhe Necessidades de dados de materiais Modelagem de função Estudos de viabilidade Análise aproximada Modelagem geométrica Métodos de simulação Seletor de materiais Modelagem de custo Modelagem de componente Modelagem por elemento finito (FEM) DFM, DFA Ferramentas de projeto 2.4 Ferramentas de projeto e dadosde materiais 19 No estágio da corporificação o cenário é mais estreito. São necessários dados para um subconjunto de materiais, porém em um nível mais alto de precisão e detalhe. Esses dados são encontrados em manuais e softwares mais especializados que tratam de uma única classe ou subclasse de materiais – metais ou apenas ligas de alumínio, por exemplo. Agora, o risco é perder de vista o maior sortimento de materiais ao qual devemos retornar se os detalhes não funcio- narem; é fácil ficar preso a uma única linha de pensamento – um único conjunto de “conexões” no sentido da Figura 2.4 – quando outras conexões podem oferecer uma solução melhor. O estágio final, do projeto detalhado, exige um nível ainda mais alto de precisão e detalhe, porém para apenas um ou alguns poucos materiais. O que há de melhor para esse tipo de infor- mação são as planilhas de dados publicadas pelos próprios fabricantes dos materiais e os bancos de dados detalhados para classes de materiais restritas. Um determinado material (polietileno, por exemplo) tem uma faixa de propriedades derivada dos modos de fabricação utilizados por fabricantes diferentes. No estágio do projeto detalhado temos de identificar um fornecedor e usar as propriedades de seu produto nos cálculos de projeto; um produto de outro fornecedor pode ser diferente. E, às vezes, nem isso é suficiente. Se o componente é crítico (o que significa que, se falhar, o resultado, em algum sentido ou outro, poderia ser desastroso), então é prudente realizar ensaios por conta própria para medir as propriedades críticas, usando uma amostra do material que será utilizado para fazer o produto em questão. O insumo dado por materiais não termina com o estabelecimento da produção. Produtos falham em serviço e falhas contêm informações. É imprudente o fabricante que não coleta e analisa dados de falhas. Muitas vezes esses dados indicam a utilização errônea de um material, coisa que pode ser eliminada por revisão do projeto ou nova seleção de material. Portanto, a escolha do material depende da função. Mas essa não é a única restrição. 2.5 FUNÇÃO, MATERIAL, FORMA E PROCESSO A seleção de materiais está amarrada a processo e forma. Para obter uma forma, o material é submetido a processos que, coletivamente, são denominados fabricação: incluem processos pri- mários de conformação (por exemplo, fundição e forjamento), processos de remoção de material (usinagem, furação), processos de união (por exemplo, soldagem) e processos de acabamento (por exemplo, pintura ou eletrogalvanização). Função, material, forma e processo interagem (Figura 2.6). A função, como já descrevemos, influencia a escolha do material. A escolha do material influencia processos em razão da capacidade de um material ser fundido ou moldado ou soldado ou tratado termicamente. O processo determina a forma, o tamanho, a precisão e, é claro, o custo. Essas interações são de duas vias: a especificação da forma restringe a escolha de material e processo; porém, igualmente, a especificação do processo limita a escolha do material e as formas acessí- veis. Quanto mais sofisticado o projeto, mais rigorosas as especificações e maiores as interações. A interação entre função, material, forma e processo está no coração do processo de sele- ção de materiais. É um tema ao qual voltaremos ao longo deste livro, abordando cada um dos hexágonos da Figura 2.6 por vez. Porém, primeiro veremos um estudo de caso para ilustrar o processo de projeto. CAPÍTULO 2: O processo de projeto 20 2.6 ESTUDO DE CASO: DISPOSITIVOS PARA ABRIR GARRAFAS ARROLHADAS O vinho, como o queijo, é uma das melhorias da natureza feitas pelo homem. E, desde que os seres humanos começaram a gostar de vinho, também começaram a se preocupar com rolhas que o mantivessem selado com segurança em frascos e garrafas. “Corticum… demovebit ampho- rae…” (Desarrolhem a ânfora…), cantou Horácio2 para celebrar o aniversário de sua miraculosa escapada da morte ao cair de uma árvore. Porém, como ele fazia isso? Uma garrafa arrolhada cria uma necessidade de mercado: a necessidade de ter acesso ao vinho que está dentro dela. Poderíamos enunciá-la assim: “Precisa-se de um dispositivo para arrancar rolhas de garrafas de vinho”. Mas, espere aí! A necessidade deve ser expressa sob uma forma neutra em relação à solução e essa não está de acordo. A meta é ter acesso ao vinho; nosso enunciado implica que isso será feito mediante a remoção da rolha, e que esta será removida por tração. Poderia haver outros meios. Portanto, tentaremos novamente: “Precisa-se de um disposi- tivo que permita acesso ao vinho dentro de uma garrafa arrolhada” (Figura 2.7), e poderíamos acrescentar, “com conveniência, custo baixo e sem contaminar o vinho”. A Figura 2.7 mostra cinco conceitos para fazer isso. Na ordem, os dispositivos agem para remover a rolha por tração axial (arrancar, puxar); para removê-la por esforços de cisalhamento; para empurrá-la para fora por baixo; para pulverizá-la; e para ignorá-la de todo quebrando o gargalo da garrafa.3 Existem vários dispositivos que usam os três primeiros desses conceitos. Os outros também são usados, se bem que, em geral, somente em momentos de desespero. Esses eliminaremos com a desculpa que poderiam contaminar o vinho, e examinaremos os outros mais de perto, explorando os princípios de funcionamento. A Figura 2.8 mostra um exemplo para cada um 2 Odes, Livro III, Ode 8, linha 10. 3 a absorção de álcool, envolvia uma tenaz com pinças em forma de anel. As pinças eram aquecidas ao rubro e então apertadas ao redor do frio gargalo da garrafa. O choque térmico removia o gargalo com capricho e sem resíduos. FIGURA 2.6 O problema central da seleção de materiais em projeto mecânico: a interação entre função, material, processo e forma. Função Material Processo Forma 2.6 Estudo de caso: dispositivos para abrir garrafas arrolhadas 21 dos três primeiros conceitos: no primeiro, um saca-rolhas perfura a rolha à qual é aplicada uma tração axial; no segundo, lâminas elásticas delgadas inseridas dos lados da rolha aplicam esforços de cisalhamento quando torcidas e puxadas; e no terceiro, a rolha é perfurada por uma agulha oca pela qual um gás é bombeado e empurra a rolha para fora do gargalo. Exemplos de todos os três aparecem na figura da página de abertura deste capítulo. A Figura 2.9 mostra desenhos esquemáticos de corporificação para dispositivos baseados em apenas um conceito – o da tração axial. O primeiro é uma tração direta; os outros três usam algum tipo de vantagem mecânica – tração com alavanca, tração com engrenagem e tração auxiliada por mola. As corporificações identificam os requisitos funcionais de cada componente do dispositivo, que poderiam ser expressos em declarações como: Um parafuso barato para transmitir uma carga prescrita à rolha. Uma alavanca leve (isto é, uma viga) para suportar um momento de flexão prescrito. Uma lâmina elástica delgada que não se curvará quando inserida entre a rolha e o gargalo da garrafa. Uma agulha fina e oca, rígida e resistente o suficiente para penetrar em uma rolha. ? (a) (b) (c) (e)(d) FIGURA 2.7 Esquerda: a necessidade de mercado; procura-se um dispositivo que permita acesso ao vinho contido em uma garrafa arrolhada. Direita: cinco conceitos possíveis, que ilustram princípios físicos, para atender a necessidade. FIGURA 2.8 Princípios de funcionamento para implementar os três primeiros conceitos da Figura 2.7. Exemplos de todos eles aparecem na figura na página de abertura deste capítulo. (a) (b) (c) CAPÍTULO 2: O processo de projeto 22 Os requisitos funcionais de cada componente são os insumos para o processo de seleção de materiais. Levam diretamente aos limites de propriedades e índices de materiais, como descrito no Capítulo 5, no qual examinaremos procedimentos com requisitos como “viga leve, forte” ou “lâmina delgada, elástica” e os usaremos para identificar um subconjunto de materiais que executam tais funçõesparticularmente bem. A escolha final de material e processo é parte do estágio do projeto detalhado (Figura 2.9), que resulta nas especificações completas que habilitam a fabricação. Concluímos voltando à ideia de estrutura de função. A ideia para o saca-rolhas é apresentada no desenho esquemático na parte superior da Figura 2.10: gerar uma força, transmitir uma força, aplicar a força à rolha. Cada projeto alternativo utiliza princípios de funcionamento diferentes para executar essas funções, como indicado na parte inferior da figura. Outros poderiam ser imaginados para fazer outras conexões. 2.7 RESUMO E CONCLUSÕES Projeto é um processo iterativo. O ponto de partida é uma necessidade de mercado representada por um conjunto de requisitos de projeto. Em seguida são elaborados conceitos para um produto que satisfaça a necessidade. Se as estimativas iniciais e a exploração de alternativas sugerirem que o conceito é viável, o projeto passa para o estágio de corporificação: princípios de funcionamento são selecionados, tamanho e leiaute são decididos e são feitas estimativas iniciais de desempenho e custo. Se o resultado for bem-sucedido, o projetista passa para o estágio do projeto detalhado: FIGURA 2.9 Esquerda: corporificações: (a) tração direta; (b) tração com alavanca; (c) tração com engrenagem; (d) tração auxiliada por mola (uma mola no corpo é comprimida à medida que o parafuso penetra na rolha). Direita: projeto detalhado da alavanca da corporificação com escolha de material. (a) (b) (c) (d) 4,02,0 2,0 22,090,0 112,0 ∅ 2,0 Aço inoxidável tipo 302 usinado de uma barra comercial ALAVANCA Fenólico fundido coloridoCABO Todas as dimensões em mm 24,0 40,0 3,6 4,0∅11,0 ∅ 14,5 ∅ 22,0 2.7 Resumo e conclusões 23 otimização de desempenho, análise completa de componentes críticos, preparação de desenhos de produção detalhados (normalmente em arquivos CAD), especificações de tolerância, precisão, montagem e métodos de acabamento. A seleção de materiais entra em cada estágio, mas em níveis diferentes de amplitude e precisão. No estágio conceitual todos os materiais e processos são candidatos potenciais, o que exige um procedimento que permita rápido acesso a dados para uma ampla faixa de cada um, se bem que sem necessidade de grande precisão. A seleção preliminar passa ao estágio de cor- porificação, para o qual os cálculos e otimizações exigem informações com um nível mais alto de precisão e detalhe. Eles eliminam quase todos os materiais e processos, sobrando apenas uma pequena lista de materiais e processos candidatos ao estágio final, detalhado, do projeto. Para esses poucos candidatos são necessários dados de qualidade ainda mais alta. Existem dados que atendem às necessidades de todos esses níveis. Cada nível requer seu próprio sistema de gerenciamento de dados, descritos nos capítulos seguintes. O sistema de gerenciamento deve ser guiado pelo projeto, mas ainda assim reconhecer a riqueza de escolha e abranger a complexa interação entre o material, sua forma, o processo que lhe dá essa forma e a função que ele deve executar. E deve permitir iteração rápida – laços de retorno quando um determinado caminho demonstra não ser lucrativo. Agora existem ferramentas que nos ajudam a fazer tudo isso. Veremos uma delas – a plataforma CES para seleção de materiais e processos – mais adiante neste livro. Porém, dada essa complexidade, por que não optar pela aposta mais segura: aferrar-se ao que já foi usado antes? Muitos escolheram essa opção. Poucos ainda estão no mercado. FIGURA 2.10 A estrutura de função e princípios funcionais para saca-rolhas. Tração direta Tração com alavanca Impulso com alavanca Saca-rolhas Lâminas de cisalhamento Pressão de gás Tração com engrenagem Impulso direto Injeção de gás Eixo Ligação Gerar força Transmitir força Aplicar força à rolha CAPÍTulO 2: O processo de projeto 24 Des_Mecanico.indb 24 02/03/12 16:25 2.8 lEITuRA ADICIONAl Existe um abismo entre livros sobre metodologia de projeto e livros sobre seleção de materiais: cada um ignora solenemente o outro. O livro de French é notável por suas percepções, mas a palavra “material” não aparece em seu índice. Pahl e Beitz gozam de uma reputação quase bíblica na área de projeto, porém o texto desses autores é de difícil leitura. Ullman e Cross ado- tam uma abordagem mais leve e são mais fáceis de digerir. Os livros de Budinski e Budinski, Charles, Crane e Furness, e Farag apresentam bem o caso dos materiais, mas não são tão bons em projeto. Lewis ilustra a seleção de materiais por meio de estudos de casos, mas não desen- volve um procedimento sistemático. A melhor solução é, talvez, Dieter. Textos gerais sobre metodologia de projeto Cross, N. Engineering design methods (3ª ed.). Wiley, 2000. Um texto duradouro que descreve o processo de projeto com ênfase no desenvolvimento e avaliação de soluções alternativas. Dieter, G. E., & Schmidt, L. C. Engineering design (4ª ed.). McGraw-Hill, 2009. Uma introdução clara por autores com forte experiência em materiais. French, M. J. Conceptual design for engineers. The Design Council, Londres, e Springer, 1985. A origem do diagrama de blocos “Conceito – Corporificação – Detalhe” do processo de projeto. O livro focaliza o estágio do conceito, demonstrando como simples princípios físicos guiam o desenvolvimento de soluções para problemas de projeto. Pahl, G., & Beitz, W. Engineering design (2ª ed.). Traduzido para o inglês por K. Wallace & L. Blessing, The Design Council, Londres, e Springer Verlag, 1997. A Bíblia – ou talvez mais exatamente o Antigo Testamento – da área do projeto técnico. Desenvolve mé- todos formais na rigorosa tradição germânica. Ullman, D. G. The mechanical design process. McGraw-Hill, 1992. Uma visão norte-americana do projeto. Desenvolve modos para atacar um problema inicialmente malde- finido em uma série de etapas, algo muito parecido com o sugerido pela Figura 2.1 deste capítulo. Ulrich, K. T., & Eppinger, S. D. Product design and development. McGraw-Hill, 1995. Um texto abrangente e de fácil leitura sobre projeto de produto, ensinado no MIT. Muitos exemplos úteis, mas quase nenhuma menção a materiais. Textos gerais sobre seleção de materiais em projeto Ashby, M., Shercliff, H., & Cebon, D. Materials: Engineering, science, processing and design (2ª ed.). Butterworth- -Heinemann. Edição norte-americana, 2010. Um texto introdutório que apresenta ideias que são desenvolvidas mais detalhadamente neste livro. Askeland, D. R., & Phulé, P. P. The science and engineering of materials (5ª ed.). Thomson, 2006. Um texto maduro que trata a fundo da ciência dos materiais de engenharia. Budinski, K. G., & Budinski, M. K. Engineering materials, properties and selection (9ª ed.). Prentice Hall, 2010. Como o de Askeland, este é um texto maduro sobre materiais, que trata em detalhes sobre propriedades de materiais e processos. Callister, W. D. Materials science and engineering: An introduction (8ª ed.). John Wiley & Sons, 2010. Um texto maduro que adota a abordagem baseada na ciência para a apresentação do ensino de materiais. Charles, J. A., Crane, F. A. A., & Furness, J. A. G. Selection and use of engineering materials (3ª ed.). Butterworth- -Heinemann, 1997. Uma abordagem para a seleção de materiais guiada pela ciência dos materiais, em vez de pelo projeto. 2 .8 Leitura adicional 25 Des_Mecanico.indb 25 02/03/12 16:25 Dieter, G. E. Engineering design, a materials and processing approach (3ª ed.). McGraw-Hill, 1999. Um texto bem-equilibrado e muito respeitado, que focaliza o lugar dos materiais e do processamento no projeto técnico. Farag, M. M. Materials and process selection for engineering design (2ª ed.). CRC Press, Taylor and Francis, 2008. Uma abordagem da ciência dos materiais para a seleção de materiais. Lewis, G. Selection of engineering materials. Prentice-Hall, 1990. Um texto sobre seleção de materiais para projeto técnico, baseado, em grande parte, em estudosde casos. Shackelford, J. F. Introduction to materials science for engineers (7ª ed.). Prentice Hall. 2009. Um texto maduro sobre materiais com uma inclinação em favor do projeto. E sobre rolhas e saca-rolhas The Design Council. Programa de auxílio ao ensino EDTAP DE9. The Design Council, Londres, 1994. McKearin, H. On “stopping”, bottling and binning. International Bottler and Packer, abril, pp. 47-54, 1973. Perry, E. Corkscrews and bottle openers. Shire Publications, 1980. Watney, B. M., & Babbige, H. D. Corkscrews. Sotheby’s Publications, 1981. CAPÍTulO 2: O processo de projeto 26 Des_Mecanico.indb 26 02/03/12 16:25 2 - O processo de projeto Introdução E Sinopse O Processo De Projeto Tipos De Projeto Ferramentas De Projeto E Dados De Materiais Função, Material, Forma E Processo Estudo De Caso: Dispositivos Para Abrir Garrafas Arrolhadas Resumo E Conclusões
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