Buscar

Flannery O'Connor - Um homem bom é difícil de encontrar

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes
Você viu 3, do total de 22 páginas

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes
Você viu 6, do total de 22 páginas

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes
Você viu 9, do total de 22 páginas

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Prévia do material em texto

COLEÇAO 
' CLASSICOS 
DE 
OURO 
TRADUÇÃO E PREFÁCIO 
LEONARDO FRÓES 
-EDITORA 
NOVA 
FRONTEIRA 
UM HOiVlE;vr BOl'vl l:~ DIFÍCIL DE ENCON"TRAJ.-l,,. 
Universidade Estadual da Georgia, Flannery O'Connor viveu com todo 
o conforto e pôde se envolver com a criação de aves exóticas - entre 
as quais seus adorados pavões, a cujas deleitosas plumagens, iridescentes 
e expressionistas pela explosão de cores, as páginas angustiantes deste 
livro fazem alusões bem frequentes. 
Leonardo Fróes 
10 
ÜM HOMEM BOM É DIFÍCIL DE ENCONTRAR 
A avó não queria ir para a Flórida. Queria visitar uns parentes no leste 
do Tennessee e aproveitava todas as oportunidades para induzir Bailey 
a mudar de ideia. Bailey, o filho com o qual ela morava, seu único 
filho homem, sentado à mesa na beira da cadeira, dobrava-se sobre o 
alaranjado da página de esportes do Journal. "Olhe só isso aqui, Bailey, 
olhe só, leia isso aqui", disse ela em pé a seu lado, com uma das mãos 
no quadril magro e a outra esfregando outra folha de jornal na careca 
do filho. "Esse tal cara que fugiu da penitenciária federal, o Desajustado, 
como e~e mesmo se chama, e que foi justamente em direção à Flórida ... 
Leia só o que diz aqui, veja o que ele fez com as pessoas. Vale a pena 
você ler. Eu é que não levaria os meus filhos, fosse lá para onde fosse, 
com um bandido desses assim à solta na área. Não ficaria em paz com 
a minha consciência." 
Bailey não olhou para cima, não parou de ler o que lia, e ela então 
deu uma volta. Foi ficar cara a cara com a mãe das crianças, mulher 
nova, numa calça folgada, cujo rosto era tão largo e inocente quanto 
um repolho, estando envolto num lenço verde de cabeça amarrado com 
duas pontas no alto, como as orelhas de um coelho. Ela, sentada no sofá 
para alimentar o bebê, dava-lhe geleia de damasco que tirava do vidro. 
"À Flórida as crianças já foram", disse a velha senhora. "Deveriam levá-
-las a algum outro lugar, para variar, para que vejam diferentes partes 
do mundo e possam ter perspectivas mais amplas.Ao leste do Tennessee 
elas nunca foram." 
A mãe das crianças nem pareceu escutar, mas o garoto de oito anos, 
John Wesley, parrudinho e de óculos, disse: "Se a senhora não quer ir 
para a Flórida, por que é que não fica em casa?" Ele e a menina, June 
Star, estavam lendo histórias em quadrinhos no chão. 
"Em casa? Duvido. Por nada desse mundo ela fica", disse June Star 
sem levantar a cabeça. 
"Ah, é? E o que fariam vocês, se esse camarada, o Desajustado, pe-
gasse vocês?" 
DE ENCO>JTR.AR .. 
quebrava a cara dele" ,John Wesley disse. 
por um milhão de dólares ela ficava em casa", June Star 
''Tem medo de estar perdendo coisas. Tem de ir pra toda parte 
a gente." 
bem, mocinha", disse a avó. "Da próxima vez que me pedir 
cachear seu cabelo, você vai ver uma coisa." 
Star disse que seu cabelo já era naturalmente cacheado. 
Na manhã seguinte a avó foi a primeira a entrar no carro, pronta 
partir. Tinha posto num canto sua enorme malinha preta, que pa-
recia uma cabeça de hipopótamo, por baixo da qual ela escondia numa 
cesta o gato, Pitty Sing. Não quis deixar o gato em casa sozinho, por 
três dias, porque ele sentiria muito a sua falta e ela tinha medo de que 
acidentalmente se asfixiasse ao se esfregar num bico de gás. Mas o filho 
dela, Bailey, não gostava de chegar a um motel com um gato. 
A avó ia no banco de trás, no meio, com um neto de cada lado, 
John Wesley e June Star. Bailey e a mãe das crianças com o bebê iam 
na frente e eles saíram às oito e quarenta e cinco de Atlanta com o 
painel indicando 89.944 quilômetros rodados.A avó anotou o número 
por achar que seria interessante saber quantos quilômetros eles teriam 
feito, quando voltassem para casa. Levaram vinte minutos para atingir 
a periferia da cidade. 
A velha senhora se instalou à vontade, tirando as luvas brancas de 
algodão e pondo-as junto com a bolsa no espaço por trás do banco. 
A mãe das crianças continuava com a mesma calça folgada, e com o 
mesmo lenço verde amarrado na cabeça, mas a avó estava usando um 
de palha azul-marinho, cmn um buquê de violetas brancas na 
e um vestido tarnbém azul-marinho de bolinhas brancas. A gola 
organdi branco, com debruns de renda, e um ra-
violetas de pano, que era um sachê, estava pendurado 
um que a visse morta na estrada, em caso de 
tratar-se de uma senhora distinta. 
a seu ver, era bom para viajar, nem muito quente 
e lembrou ::i Bailey que o limite de velocidade 
hora, e que os guardas rodoviários, es-
an1ontoados de árvores, logo saíam em 
FLANNERY O'CoNNOR 
disparada atrás, sem nem dar chance de reduzir. E apontou interessantes 
detalhes dos panoramas: Stone Mountain; o granito azulado que nalguns 
~ ~~ aflorava de ambos os lados da rodovia; os barrancos brilhantes, 
";ie bar~o vermelho rajado ligeiramente de roxo; e as diversas planta-
ções enfileiradas como rendilhados verdes na terra. As árvores estavam 
cheias de uma luz solar prateada, e até mesmo as mais insignificantes 
brilhavam. As crianças iam lendo suas histórias em quadrinhos e a mãe 
tinha voltado a dormir. 
"Vamos passar pela Geórgia bem rápido para não ter de olhar muita 
coisa" ,John Wesley disse. 
"Eu, se eu fosse um menino'', disse a avó, "eu não falaria assim desse 
jeito do meu estado natal. O Tennessee tem montanhas, a Geórgia tem 
suas colinas ... " 
"O Ten'nessee não passa de um lixão, é uma terra de arigós", John 
Wesley disse, "e a Geórgia também é uma porcaria de estado." 
"É isso mesmo", disse June Star. 
"No meu tempo", a avó disse, cruzando os dedos de veias finas, "as 
crianças tinham mais respeito pela terra natal, pelos pais e por tudo o 
mais. Procedia-se bem, naquela época. Oh, mas vejam só o pretinho, 
que graça!", disse e apontou para um menino negro, em pé na porta de 
um barraco. "Não daria um quadro?", perguntou, e todos se viraram, 
olhando o menino negro pelo vidro de trás. Ele deu adeus. 
"Ele estava sem calça", disse June Star. 
"Talvez nem tenha", a avó explicou. "Os negrinhos da roça não são 
assim como nós, não têm coisas." E acrescentou: "Ah, se eu soubesse 
pintar, bem que faria esse quadro!" 
As crianças trocaram de revista. 
A avó se ofereceu para segurar o bebê, que a mãe das crianças lhe 
passou por cima do banco. Tendo-o posto nos joelhos, ela agora o 
puxava para cima e lhe falava das coisas pelas quais estavam passan-
do. Revirava os olhos, fazia bico com a boca, colava a cara magra e 
dura no rosto, lisinho e fofo, da criança, que de vez em quando lhe 
dava algum sorriso distante. Passaram por uma grande plantação de 
algodão com um cercado com cinco ou seis túmulos no meio, como 
uma ilhota. 
13 
HOMEM BOM DIFÍCIL DE El"'CO'.'JTRAR ... 
"Olhem lá o cemitério!", disse a avó, apontando. "O antigo campo-
-santo da fanúlia. Pertencia à fazenda." 
"E onde está a fazenda?" ,John Wesley perguntou. 
"E o vento levou ... ", disse a avó. "Ha, ha." 
As crianças, quando acabaram todas as revistas levadas, abriram e 
comeram seus lanches. A avó comeu um sanduíche de pasta de amen-
doim e uma azeitona e não deixou as crianças jogarem pela janela os 
guardanapos e sacos de papel. Quando não tinham mais o que fazer, 
brincaram de escolher uma nuvem para os outros adivinharem a forma 
que ela sugeria.John Wesley escolheu uma nuvem que tinha forma de 
vaca,June Star falou vaca e ele disse que não, que era carro, ·e June Star 
disse que John Wesley estava jogando sujo e logo estavam os dois, por 
cima da avó, aos tapas. 
A avó disse que contaria uma história se eles ficassem quietos. E ela, 
quando contava uma história, revirava os olhos e agitava a cabeça e era 
toda dramática. Contou então que nos seus tempos de moça tinha sido 
cortejada por um rapaz de Jasper, na Geórgia, chamado Charles Otoline 
Miles Erlanger Robertson. Um rapaz muito atraente, um cavalheiro, 
segundo a avó, que todo sábado à tarde, quando a visitava, levava-lhe 
uma melancia com suas iniciaisgravadas: c.o.M.E.R. Num desses sábados, 
como ela disse, Robertson chegou com a melancia e não havia ninguém 
em casa e ele a deixou na varanda e voltou para Jasper na charrete, mas 
essa melancia ela nunca viu, porque um negrinho a devorou, como ela 
disse, quando leu as iniciais c.o.M.E.R. A historinha agradou em cheio 
a John Wesley, que estourou numa gargalhada e se retorcia de rir, mas 
June Star não achou graça nenhuma. Disse que jamais se casaria com 
um homem_ que se limitasse a levar-lhe uma melancia no sábado.Já a avó 
disse que para ela teria sido um.a beleza se casar com Robertson, porque 
ele era um. hom.en1 nmito distinto e comprou ações da Coca-Cola logo 
que foram lançadas e só tinha morrido há poucos anos, riquíssimo. 
Pararam para comer uns sanduíches grelhados num lugar chamado 
The Tower. Era um misto de salão de festas e posto de gasolina, parte 
em inadeira, parte em estuque, instalado numa clareira nos arredores 
de Timothy. O dono era um_ gordo, Red Sammy Butts, e havia placas 
penduradas ali por toda parte, e por quilômetros na rodovia, dizendo: 
14 
FLANNERY O'CoNNOR 
EXPERIMENTE O AFAMADO GRELHADO DE RED SAMMY. NENHUM SE COMPA-
RA AO DELE! RED SAM, O GORDINHO DA RISADA FELIZ! UM VETERANO! RED 
S~)'., O HOMEM CERTO! 
~~do no chão, do lado de fora do The Tower, estava o próprio Red 
Sammy. Tinha a cabeça enfiada embaixo de um caminhão, enquanto 
um mico cinzento de seus trinta centímetros, amarrado pela corrente 
a um pé de saboeiro, fazia papagueatas por perto. Bastou ver as crianças 
saltarem do carro e correrem na sua direção para o mico pular de volta 
na árvore e subir ao galho mais alto. 
Por dentro, The Tower era um salão comprido e escuro, com um 
balcão de um lado, mesas do outro, e um espaço para dançar no meio. 
Sentaram-se a uma mesa de tábuas, ao lado da vitrola automática, e 
a mulher de Red Sam, alta, queimada, de cabelo e olhos mais claros 
do que sua pele morena, veio atendê-los. A mãe das crianças pôs uma 
moeda na máquina e escolheu "A valsa do Tennessee". A avó disse que 
sempre sentia vontade de dançar com essa música e perguntou a Bailey 
se ele dançaria com ela, mas ele apenas a olhou de banda. Não tinha a 
disposição dela, assim toda animada, e as viagens o deixavam nervoso. 
Os olhos da avó, olhos castanhos, brilhavam muito. Sentada, ela fazia 
de conta que dançava, jogando a cabeça, na cadeira, para os dois lados. 
June Star pediu para tocar uma música que desse para, sapatear e assim a 
mãe das crianças pôs uma outra moedinha e escolheu algo mais rápido. 
June Star pulou na pista e, como era de seu hábito, sapateou. 
"Que gracinha!", disse a mulher de Red Sam, debruçada no balcão. 
"Você quer vir morar comigo? Quer ser a minha filhinha?" 
"Nem por sombra" ,June Star disse, "nem por um milhão de dólares 
eu moraria num lugar tão caído assim!", e voltou correndo para a mesa. 
"Mas não é mesmo uma gracinha?", repetia a mulher, esticando 
polidamente os beiços. 
A avó ralhou: "Não tem vergonha não?" 
Red Sam entrou e disse à esposa para correr com o pedido dos 
fregueses, em vez de ficar ali no balcão fazendo hora. Sua calça cáqui 
vinha arriada até quase as coxas, sob o peso da barriga que despencava 
como um saco de farinha trepidando por baixo da camisa.Aproximou-
-se, sentou-se perto e deixou escapar algo impreciso, combinação de 
15 
HOfdE,Vl BOAI DIFÍCIL D.E EI\.íCO:--.JTRAR ... 
suspiro e cantoria. "Não dá pra levar", dizia." Assim não dá pra levar!", 
e com mn lenço acinzentado enxugava o suor do rosto vermelho. 
"Hoje em dia não se pode confiar em ninguém", disse depois. "Não 
é verdade?" 
"As pessoas certamente não são mais tão gentis corno já foram", 
disse a avó. 
"Semana passada", disse Red Sammy, "vieram aqui dois camaradas, 
num~ Chrysler. Um carro velho, muito rodado, mas bom, e os rapazes 
me pareciam gente direita. Disseram que trabalhavam no moinho, e não 
é que eu vendi gasolina fiado para eles? Por que fui fazer isso?" 
"Porque o senhor é um homem bom", a avó disse. 
"É, dona, acho que sim~", disse Red Sam, como se ficasse, ele mesmo, 
espantado com a resposta. 
Sua mulher chegou com os pedidos, carregando os cinco pratos, 
sem bandeja, de uma só vez: dois em cada mão e mais um equilibrado 
no braço. "Não há alma que seja neste mundo de Deus", disse ela," em 
quem se possa confiar. E eu não excluo ninguém, ninguém mesmo", 
repetiu, olhando para Red Sammy. 
"Vocês leram alguma coisa sobre aquele bandido, o Desajustado, que 
fugiu da cadeia?", a avó perguntou. 
"Eu não ficaria nem mTl pouco surpresa se agora mesmo ele atacasse 
esse lugar aqui", disse a mulher. "Se ele souber que nós estamos aqui, e se 
me aparecer pela frente, não ficarei nada surpresa. Se souber que na caixa 
registradora tem algum dinheiro, não ficarei nada surpresa se ele ... " 
"Chega!", Red Sam disse. "Traz logo as Cocas dos fregueses", e a 
mulher lá se foi a completar o pedido. 
"Um homem bom é dificil de encontrar", disse Red Sammy. "Tudo 
está ficando um horror. Lembro do tempo em que se podia sair tran-
quilam~ente de casa e deixar a porta aberta. Agora não mais." 
Ele e a avó se distraíram conversando sobre tempos melhores. A 
culpada era a Europa, na opinião da velha senhora, se as coisas andavam 
assim~ agora. Pela atitude da Europa, segundo ela, até se poderia pensar 
que os americanos eram feitos de dinheiro, e Red Sam disse que nem 
adiantava falar daquilo, que ela estava coberta de razão.As crianças cor-
reram para fora, para a claridade do sol, e foram ver o macaquinho no 
16 
FLANNERY O'CoNNOR 
saboeiro rendado. O mico estava entretido, catando pulgas que comia, 
como guloseimas, com um demorado estalar de dentes. 
. ~~is, pela ~arde quente, a família prosseguiu em viagem. A avó 
1.Íflvaº umas cochiladas e de quando em quando era despertada pelos 
seus próprios roncos. Nos arredores de Toombsboro, ao acordar de 
vez, lembrou-se de uma velha fazenda que ela havia visitado por ali, 
na região, quando moça. Disse que a casa tinha seis colunas brancas na 
frente, uma fileira de carvalhos conduzindo à entrada e dois pequenos 
caramanchões de madeira, bem na frente, um de cada lado, onde as 
moças sentavam-se com os pretendentes, depois de algumas voltas no 
jardim. A estrada que era preciso pegar para chegar até lá veio-lhe com 
precisão à memória. Ela sabia que Bailey não concordaria em perder 
tempo só para ir ver uma casa velha, mas quanto mais falava nisso, mais 
ela queria r~vê-la, querendo saber se os caramanchões geminados ainda 
estavam de pé. "Havia nessa casa uma passagem secreta", disse pois com 
astúcia, sem contar uma verdade, mas desejando que assim fosse, "e di-
ziam que a prataria da família foi toda escondida lá, quando Sherman 
passou por aqui, e nunca pôde ser encontrada ... " 
"Oba, então vamos lá!", John Wesley disse. "Vamos descobrir essa 
prata! É só abrir o madeirame, é só ir tirando as tábuas, que a gente 
acha. Quem mora lá? Onde é que se pega o caminho? Ei, pai, não dá 
para dobrar por ali?" 
"Nunca vimos uma casa com~ passagem~ secreta", berrou June Star. 
"Vamos ver a casa com passagem secreta! Oba! Papai, temos de ir ver a 
casa com passagem secreta!" 
"Eu sei que não fica longe daqui", disse a avó. "Nem bem uns vinte 
minutos." 
Bailey olhava reto em frente, com o queixo tão rígido quanto uma 
ferradura. "Não", ele disse. 
A gritaria das crianças, querendo ver a casa com passagem secre-
ta, não fez senão aumentar. John Wesley chutava as costas do banco 
dianteiro, e June Star se pendurou no ombro da mãe, em cujo ouvido 
choramíngou desesperada que era sempre assim mesmo, que nem 
nas férias eles se divertiam, que eles nunca podiam fazer o que ELES 
17 
BOív! DTFÍClL DE E'.'ICONTRAR ... 
MESMOS queriam. O bebê já estava berrando. E os chutes de John 
Wesley no assento se tornavam tão fortes que o pai já sentia os golpes 
nos nns. 
"Tá legal!", o pai gritou, e parou o carro no acostamento. "Masvocês querem calar a boca? Querem calar a boca um minuto? Se não 
se calaren1, não vamos a lugar nenhum!" 
"Mas seria muito instrutivo para eles", murmurou a avó. 
"Está bem", Bailey disse, "mas anotem: é a única vez em que nós 
vamos parar por uma coisa dessas. É a primeira e última vez." 
"A estrada de terra que você tem de pegar já ficou lá para trás, a 
uns dois quilômetros", a avó orientou. "Eu a notei quando passamos." 
"Estrada de terra ... ", resmungou Bailey. 
Quando já iam, depois de terem feito um retorno, em direção à tal 
estrada, a avó rememorou outros detalhes da casa, como o belo vitral 
sobre a entrada e o candelabro do salão.John Wesley disse que a passa-
gem secreta provavelmente ficava na lareira. 
"Não se pode entrar na casa", Bailey disse. "Nem sabemos quem 
inora lá." 
"Posso ir por trás, enquanto vocês conversam com as pessoas na 
frente, e entrar por uma janela" ,John Wesley sugeriu. 
"Não", disse a inãe, "vamos ficar todos no carro." 
O carro, sacolejando muito, entrou pela estradinha de barro num 
turbilhão de poeira cor-de-rosa. A avó se lembrou dos tempos em 
que não havia estradas asfaltadas e se levava um dia inteiro para andar 
cinquenta quilômetros. A estradinha era acidentada e íngreme, com 
inesperadas crateras de atoleiros e curvas muito fechadas em perigosos 
barrancos. Ora eles estavam bem no alto de um morro, vendo as copas 
azuladas das árvores que se estendiam lá embaixo, por quilômetros em 
torno, ora, logo a seguir, já estavam numa depressão de terra vermelha, 
com árvores empoeiradas por cima. 
"É melhor esse lugar aparecer logo", Bailey disse, "porque senão eu 
vou voltar." 
Dava a impressão de que ninguém, há meses, passava naquela estrada. 
"Não está muito longe", disse a avó, e justamente quando o disse ela 
teve urn pensamento horroroso. Um pensamento tão embaraçoso que 
18 
FLANNERY O'CoNNOR 
seu rosto corou, seus olhos se dilataram e os pés se mexeram muito no 
chão, atingindo e deslocando a maletinha no canto. No mesmo instante 
e~~ valise se moveu, a folha de jornal que ela usava como tampa 
• ---· w, ' â':a césta· que estava embaixo se levantou com um miado e voou no 
ombro de Bailey. 
As crianças foram jogadas no chão. A mãe, agarrada ao bebê, foi 
jogada porta afora, na estrada. A velha senhora jogada para o banco 
da frente. O carro deu uma capotada e voltou à posição normal, mas 
fora da estrada, e numa vala. Bailey permanecia no lugar do motorista 
com o gato - listrado de cinza, cara branca achatada e focinho cor de 
laranja - agarrado como lagarta em seu pescoço. 
As crianças, assim que conseguiram mexer braços e pernas, saíram 
se espremendo do carro, e gritavam: "Tivemos um ACIDENTE!" Já a avó 
se encolheu 'sob o painel, com a esperança de estar ferida para que a ira 
de Bailey não se abatesse implacável sobre ela. O pensamento horroroso 
que havia tido, pouco antes do acidente, foi que a casa da qual ela se 
lembrava tão bem não ficava na Geórgia, mas sim no Tennessee. 
Bailey tirou o gato do pescoço, com ambas as mãos, e o arremessou 
contra o tronco de um pinheiro, pela janela. Depois, saindo do carro, foi 
procurar a mãe das crianças. Essa, que estava ao lado da valeta estripada, 
e ali sentada segurava o bebê aos berros, tinha ela mesma apenas uma 
fratura no ombro e um corte feio no rosto. "Tivemos um ACIDENTE!", 
gritavam as crianças numa alegria frenética. 
"Mas não morreu ninguém", disse, desapontada,June Star, quando 
a avó desceu mancando do carro com o chapéu ainda preso na cabeça, 
malgrado a aba desabada na frente, que ela tentava recolocar numa po-
sição elegante, e o buquê de violetas caído ao lado. Sentaram-se todos 
na valeta, menos as crianças, todos tremendo muito, para se refazerem 
do susto. 
"Talvez venha um carro por aí", disse a mãe das crianças com a voz 
embargada. 
"Acho que algum órgão meu foi afetado", disse a avó, apalpando-
-se de um lado do corpo, mas ninguém ligou para ela. Os dentes de 
Bailey batiam sem parar.Vestido numa camisa esporte amarela, na qual 
brilhavam, estampadas, umas araras-azuis, ele estava com o rosto da 
19 
U::v1 HOI\-IE.l\'1 DOM :é DIFÍCIL DE SNCONTRAR ... 
mesma cor da camisa. A avó achou melhor não dizer que a tal da casa 
era no Tennessee. 
A estrada se encontrava cerca de três metros acima, e eles podiam ver 
apenas, do outro lado, o topo das árvores. Por trás da vala na qual estavam 
sentados se estendia a mata cerrada, escura e alta. Em poucos minutos 
avistaram um carro, não muito longe, no cocuruto de um morro, que 
vinha bem devagar, como se seus ocupantes os observassem. A avó, para 
lhes chamar a atenção, levantou-se em espalhafatosos acenos, agitando 
os dois braços. O carro, que continuava a se aproximar lentamente, 
desapareceu numa curva e ressurgiu adiante ainda mais devagar, já no 
cume do morro por que eles tinham passado. Era um grande automóvel 
preto e velho, em péssimo estado, que mais parecia um carro fúnebre. 
Levava três homens dentro. 
Parou bem por cima deles e, por alguns minutos, o motorista ficou 
olhando para baixo, lá para onde eles estavam, de um modo fixo, porém 
sem expressão, e não disse nada. Depois, virando a cabeça, sussurrou 
algo aos outros dois, que desceram. Um, o gordo, de calça preta, que 
usava uma camiseta vermelha adornada no peito por um garanhão 
prateado, passou por eles e foi plantar-se à direita, do outro lado, de 
onde concentradamente os olhava, com uma espécie de riso frouxo na 
boca aberta pelo meio. O outro, de calça cáqui e paletó listrado de azul, 
com um chapéu cinza tão enterrado na testa que lhe ocultava a maior 
parte do rosto, lentamente se aproximou pela esquerda. Nenhum dos 
dois falava nada. 
O motorista saltou, mas continuou ao lado do carro, de pé, olhando 
para eles lá embaixo. Era mais velho do que os outros dois homens. Seu 
cabelo já estava meio grisalho, e os óculos de aros prateados davam-lhe 
um ar estudioso. Tinha o rosto enrugado e o peito nu, sem camisa nem 
camiseta. Sua calça blue jeans estava muito apertada e ele empunhava 
um revólver, tendo na outra mão seu chapéu preto. Os dois rapazes 
também estavam armados. 
"Sofremos um ACIDENTE", as crianças gritavam. 
A avó teve a nítida impressão de que já conhecia aquele homem de 
óculos. Seu rosto lhe era bem familiar, como se o tivesse conhecido a 
vida toda, e ela no entanto não conseguia se lembrar quem era. Ele se 
20 
FLANNERY O'CoNNOR 
afastou do carro e começou a descer pelo barranco, firmando os pés 
com atenção, para não escorregar. Usava sapatos de duas cores, marrom 
,e~ sem meias, e linha os tornozelos muito vermelhos e finos. 
'~oa' tarde", ele disse. "Tiveram um probleminha, né?" 
"Capotamos duas vezes!", disse a avó. 
"Uma", ele corrigiu. "Nós vimos quando aconteceu. Ligue lá o 
carro deles, Hiram, pra ver se pega", disse calmamente para o rapaz de 
chapéu cinza. 
"Pra que essa arma?", perguntou John Wesley. "Vai fazer o que com 
essa arma, hem?" 
"Minha senhora", disse o homem para a mãe das crianças, "man-
de essas crianças sentarem-se aí ao seu lado, sim? Crianças me põem 
nervoso. Quero todos vocês sentados juntos aí, aí mesmo onde estão." 
"Por que é que você está dando ordens pra gente?", ]une Star 
perguntou. 
A mata se abria, por trás deles, como uma boca escura. "Venham pra 
cá", disse a mãe. 
"Olha aqui", disse Bailey bruscamente, "nós estamos numa enras-
cada! Estamos nu ... " 
A avó deu um grito. Ficou em pé, encarou o ho~em e disse: "O 
senhor é o Desajustado! Eu logo vi!" 
"É, dona, sou sim", disse o homem, com um ligeiro sorriso, como 
que satisfeito de sua fama, apesar dos pesares, "mas seria muito melhor 
para todos se a senhora não tivesse me reconhecido." 
Bailey se virou abruptamente e disse para a sua mãe qualquer coisa 
que deixou até mesmo as crianças chocadas.A velha senhora começou 
a chorar, e o Desajustado corou. 
"Minha senhora", ele disse, "não fique triste. Às vezes um homem 
dizcoisas sem querer. A intenção dele, penso eu, não era falar assim 
com a senhora." 
"O senhor não atiraria em mulher, não é?", disse a avó, tirando do 
punho do vestido um lencinho limpo para enxugar os olhos. 
O Desajustado enfiou o bico de seu sapato na terra e fez um bu-
raquinho que depois tampou. "Eu detestaria ter de fazer isso", disse. 
2I 
HOJ\IEi\I DO.lvl DIFICIL DE 
"Escute aqui", disse a avó quase gritando," eu sei que o senhor é um 
homem bom. Não aparenta nem um pouco ser pessoa comum. Sei que 
deve ser de boa família!" 
"Ah, isso sim", disse ele, "da melhor do mundo." Deixava à mostra, 
quando ria, seus dentes brancos e fortes. ''Deus nunca fez mulher mais 
perfeita do que a minha mãe, e o coração do meu pai era ouro puro", 
ele disse. O rapaz de camiseta vermelha deu a volta e, com sua arma 
apoiada na cintura, ficou en1 pé por trás deles. O Desajustado se aga-
chou. "Olho nessas crianças, Bobby Lee", disse ele. "Você sabe que elas 
n1e deixam nervoso." Olhava para o grupo dos seis amontoados ali na 
sua frente e parecia confuso, como se não achasse o que di2er. "Nem 
uma nuvem no céu, não é?", observou, olhando para as alturas. "Não 
se vê o sol, mas também não se vê nuvem." 
"Pois é, está um dia lindo!", disse a avó. "Mas ouça", acrescentou," o 
senhor não deveria se chamar de Desajustado, porque eu sei que é um 
homem de bom coração. Basta olhar a sua pessoa, que eu logo vejo." 
"Silêncio!", gritou Bailey. "Boca calada todo mundo! Deixem co-
migo que eu resolvo a parada." Ele estava a postos, na posição de um 
corredor na largada, mas não se moveu. 
"Obrigado por suas boas palavras, minha senhora", disse o Desajus-
tado, traçando com o cabo da arma uma rodinha no chão. 
"Levaria uma rneia hora para ajeitar esse carro", gritou Hiram, 
olhando por cima do capô aberto. 
"Tudo bem, mas primeiro você e o Bobby Lee levem o cara e o 
garotinho para dar uma andada", disse o Desajustado, apontando Bailey 
e John Wesley. "Os rapazes querem te perguntar uma coisa", disse ele 
para Bailey. "Pode dar uma chegadinha ali na mata com eles?" 
"Escute aqui", começou Bailey, "nós estamos numa enrascada terrí-
vel! Será que ninguém percebe?", mas sua voz sumiu, e ele permaneceu 
completamente parado, com os olhos de um azul tão intenso quanto as 
araras da camisa que usava. 
A avó se esticou para ajeitar a beirada do chapéu, como se tivesse de 
ir para a mata também, mas o chapéu acabou caindo na sua mão. Ela o 
olhou por algum tempo e depois o deixou cair no chão. Hiram puxou 
Bailey pelo braço, con10 se estivesse ajudando a um velho.John Wesley 
22 
FLANNERY O'CoNNOR 
se agarrou na mão do pai, e Bobby Lee os seguiu. Foram lá para a mata, 
e quando estavam chegando à orla escura Bailey se virou e, apoiado 
no ~nu e acinzentado de um pinheiro, gritou: "Eu volto logo, 
-~., .. 
m:~ãil:, rrie espere aí!" 
"Volte já! Agora mesmo!", gritou a mãe, mas todos tinham desapa-
recido na mata. 
"Bailey, meu filho!", chamou a avó numa voz trágica, mas deu-se 
conta de que tinha pela frente, agachado no chão, o Desajustado, para o 
qual aliás estava olhando. "Sei que o senhor é um homem bom", disse, 
desesperada. "Não é uma pessoa qualquer!" 
"Não, dona, não sou bom não", o Desajustado disse um segundo de-
pois, como se houvesse refletido sobre o que ela tinha dito, "mas também 
não sou o pior do mundo. Meu pai dizia que eu era de outra raça, diferente 
dos meus irmãbs e irmãs. Dizia que há pessoas capazes de passar a vida toda 
sem perguntar por quê, mas que outras têm de saber o porquê das coisas, e 
que eu era desse tipo e ia me meter em tudo." Pôs o chapéu preto, olhou 
bruscamente para cima e logo desviou o olhar lá para a mata, como se es-
tivesse novamente sem jeito. "Desculpem eu estar sem camisa assim diante 
das senhoras", disse, encolhendo ligeiramente os ombros. "Nós enterramos 
nossas roupas depois da fuga, e temos nos safado com ess~s até achar coisa 
melhor. Essas nós pegamos com um pessoal que encontramos", explicou. 
"Mas então está tudo bem", disse a avó. "Bailey deve ter uma camisa 
extra na mala." 
"Ah, eu vou dar uma olhada", disse o Desajustado, 
"Para onde estão levando eles?", berrou a mãe das crianças. 
"O meu velho era um colosso, Ninguém passava a perna nele. Nunca 
se meteu numa encrenca, sabia como lidar com autoridades." 
"O senhor também, se quisesse tentar, poderia ser honesto", disse a 
avó. "Já pensou que maravilha seria fixar-se numa vida tranquila, sem 
ter de pensar se há alguém a persegui-lo o tempo todo?" 
O Desajustado pareceu refletir. Continuava rabiscando no chão, com 
o cabo da arma, e disse: "Tem sempre alguém atrás da gente." 
A avó pôde notar que os ombros dele eram estreitos demais, logo 
abaixo do chapéu, porque, estando em pé, ela o via de cima. "Costuma 
rezar?", perguntou, 
23 
BOM D[FICJL DE E:-JC:ONTRAR ... 
Ele meneou a cabeça. Ela só viu o chapéu preto balançando em seus 
ombros. E ele disse: "Não." 
A um tiro de pistola na mata seguiu-se logo mais um. Depois, silên-
cio. A cabeça da avó rodopiou. Ela ouviu o vento passando pelo alto 
das árvores como um.a tomada de ar longa e satisfatória. "Bailey, meu 
filhol", gritou. 
"Por uns tempos, fui cantor gospel", disse o Desajustado. "Já fiz um 
pouco de tudo. Fiz meu serviço militar, em terra e no mar, no país e 
lá fora,já me casei duas vezes,já fui agente funerário,já fui ferroviário 
e já lavrei a mãe terra, estive en1 um tornado, certa vez vi um homem 
queimado vivo ... " e olhou para a rnãe das crianças e a garota, que es-
tavam sentadas bem juntinhas, com o rosto pálido e os olhares vidrados. 
"Vi até uma mulher ser chicoteada", acrescentou. 
"Reze", interveio a avó. "Reze ... " 
"Não me lembro de ter sido um mau menino", o Desajustado disse, 
numa voz como que em devaneio, "mas o fato é que lá pelas tantas fiz al-
guma coisa de errado e fui para a cadeia. Enterrado vivo, na penitenciária", 
e olhou para cima, prendendo-lhe a atenção com um olhar persistente. 
"Era então que devia ter começado a rezar", ela disse. "O que foi 
que fez para ser mandado para a penitenciária dessa primeira vez?" 
"Do lado direito uma parede", disse o Desajustado, "do lado es-
querdo outra. Se eu me virasse para cima, via o teto; para baixo, o 
chão. Esqueci o que eu fiz, minha senhora. Sentava lá e ficava tentando 
lembrar o que eu tinha feito e até hoje não lembro. De vez em quando 
parecia que ia vir, que eu ia me lembrar, mas não vinha." 
"Talvez o tenham prendido por engano", disse vagamente a velha 
senhora. 
"Não", ele disse. "Não houve erro. Sabiam tudo a meu respeito." 
"Teria roubado alguma coisa, por acaso?", ela disse. 
O Desajustado, zombando um pouco, riu. "Ninguém tinha nada 
que eu quisesse", disse. "Um. médico lá da penitenciária, um médico 
de cabeça, sabe, cismou que eu mesmo tinha matado meu pai. Inven-
ção dele, é claro. Meu pai morreu na epidemia de gripe de 1919, e eu 
nunca tive nada com isso. Foi enterrado no cemitério da igreja batista 
de Mount Hopewell. Se quiser, pode ir lá ver." 
24 
FLANNERY O'CoNNOR 
"Jesus lhe ajudaria", disse a velha senhora, "se o senhor rezasse." 
"Isso é verdade", disse o Desajustado. 
, ~então por que não reza?", perguntou ela, trêmula, num re-
pootiho deleite. 
"Não quero ajuda", disse ele. Tenho me dado bem sozinho." 
Bobby Lee e Hiram voltaram da mata a passos lentos. O primeiro 
arrastando uma camisa amarela com araras-azuis muito brilhantes. 
"Jogue essa camisa pra mim", disse o Desajustado. E a camisa veio 
voando, pousou em seu ombro e ele a vestiu.A avó não conseguia saber 
o que é que a camisa lhe trazia à lembrança. "Não, dona", disse o De-
sajustado, enquanto a abotoava," eu descobri que o crime não importa. 
Você pode fazer isso ou aquilo, matar um homem ou roubar um pneu 
do carro dele, porque mais cedo ou mais tarde você se esquecerá do 
que fez e seri punido justamente por isso." 
A mãe das crianças começou a dar uns gemidos,como se não pu-
desse respirar muito bem. "Dona", ele pediu, "pode dar uma chegada 
com Bobby Lee e Hiram até ali, com a garotinha, para juntar-se ao 
seu marido?" 
"Sim, obrigada", disse, enfraquecida, a mulher. Seu braço esquerdo 
pendia bambo, e com o outro ela amparava o bebê, que agora estava 
dormindo. "Ajude a moça, Hiram", disse o Desajustado, quando ela já 
se esforçava para sair da valeta, "enquanto o Bobby Lee pega a garota 
pela mão." 
"Não quero que ele me pegue pela mão'', disse June Star. "Parece 
um porco." 
O gordo corou e riu e a pegou pelo braço e foi levando para a mata 
atrás de Hiram e da mãe. 
Sozinha com o Desajustado, a avó constatou ter perdido a voz. Não 
havia uma só nuvem, nem sol, no céu. Nada em torno dela, a não ser a 
mata. Ela queria dizer que ele devia rezar. Abriu e fechou diversas vezes 
a boca, mas a frase não saía. Finalmente deu consigo dizendo: 'Jesus, 
Jesus", querendo dizer Jesus vai lhe ajudar, embora mais parecesse estar 
xingando, pelo modo como falou. 
"É, dona", disse o Desajustado, como se concordasse. "Jesus desequi-
librou as coisas. O mesmo caso, o dele e o meu, só que ele não praticou 
25 
HOMEiVl BOM DJFÍC[L DE ENCONTRAR ... 
nenhum crime, e o meu eles puderam provar, porque tinham tudo 
anotado na minha ficha. É claro", disse ele, "que nunca me mostraram 
a ficha. Por isso agora assino tudo. Há muito que eu digo, o negócio é 
caprichar na assinatura, assinar tudo que fizer e guardar cópia.Você assim 
poderá saber o que fez, podendo comparar o crime ao castigo, para ver 
se correspondem, e por fim terá alguma coisa para provar, se não for 
tratado direito. Se eu rne chamo Desajustado", disse ele, "é porque não 
faço esse ajuste, não consigo encaixar as coisas para que tudo que eu 
fiz de errado corresponda a tudo que sofri de castigo." 
Veio da mata UlTl grito lancinante, logo seguido por um tiro de 
pistola. "A senhora acha justo que um receba punição rigorosa e outro 
nem sequer seja punido?" 
"Jesus!", gritou a velha. "O senhor tem sangue bom. Tenho certeza 
de que não atiraria numa mulher. Sei que vem de boa família ... Jesus, 
reze! Numa senhora o senhor não deve atirar. Eu lhe dou todo o di-
nheiro que eu tenho!" 
"Minha senhora", disse o Desajustado, olhando bem além dela, para 
a mata, "cadáver não dá gorjeta para quem faz o serviço." 
Houve mais dois tiros de pistola e a avó ergueu a cabeça, como uma 
perua sedenta pedindo água para se refrescar, e gritou: "Bailey, meu 
filho! Bailey, meu filho!'', como se o seu coração fosse explodir. 
"Jesus foi o único a ressuscitar os mortos'', prosseguiu o Desajustado, 
"e ele não devia ter feito isso. Desequilibrou tudo. Se ele fazia o que 
dizia, não temos outra coisa a fazer a não ser renunciar a tudo e segui-lo. 
Mas, se não fazia, então o que nos cabe é desfrutar dos poucos minutos 
que nos restarn da n1elhor maneira possível - matando alguém ou 
queimando a casa de alguém ou lhe fazendo alguma outra maldade. 
Sem maldade não há prazer", disse ele, e sua voz era quase um rosnado. 
"Vai ver que ele não ressuscitou os mortos", 1Tlurmurou a velha 
senhora,já sem saber o que dizia e se sentindo tão tonta que arriou na 
vala, à medida que suas pernas foran1 se retorcendo. 
"Se fez ou não fez, não sei, porque eu não estava lá", disse o Desa-
justado. "E bem que eu gostaria de ter estado", acrescentou, dando um 
soco no chão. "Não é justo ser assin1, porque, se eu tivesse estado lá, eu 
saberia. Sabe de uma coisa, niadame", disse em voz alta: "Se eu tivesse 
26 
FtANNERY O'CoNNOR 
estado lá, eu saberia, e não seria como sou agora." Sua voz parecia a 
ponto de rachar, e a cabeça da avó clareou por um instante. Ela viu o 
ro.st~mem contorcendo-se próximo ao dela, como se ele fosse 
eh~ bálbuciou:"Mas você é uma das minhas crianças, um dos meus 
filhinhos!'', esticando o braço para tocá-lo no ombro. O Desajustado 
deu um pulo para trás, como se uma cobra o picasse, e atirou três vezes 
nela, todas no peito. Depois botou a arma no chão, tirou os óculos e 
começou a limpá-los. 
Hiram e Bobby Lee voltaram da mata e pararam na beirada da vala, 
de onde olhavam para a avó lá embaixo, meio sentada, meio deitada 
numa poça de sangue, com as pernas cruzadas sob o corpo, como pernas 
de criança, e o rosto rindo para o alto, para o céu sem nuvens. 
Os olhos do Desajustado, sem os óculos, eram lívidos, orlados de 
vermelho e indefesos. "Levem ela daqui e joguem lá onde jogaram os 
outros", disse ele, apanhando o gato, que se esfregava em sua perna. 
"Ela falava demais, né?", disse em voz cantante Bobby Lee, ao es-
corregar vala adentro. 
"Seria até boa mulher", o Desajustado disse, "se a cada instante de 
sua vida houvesse alguém nas cercanias para lhe dar um tiro." 
"Teria sido gozado!", disse Bobby Lee. 
"Cala essa boca, Bobby Lee! ", disse o Desajustado. "É, na vida não 
há prazer verdadeiro." 
GENTE BOA DA ROÇA 
Além da expressão neutra, em ponto morto, que assumia quando estava 
sozinha, Mrs. Freeman tinha outras duas, para a frente e em marcha a ré, 
das quais sempre se servia nas suas relações com os outros.A expressão 
para a frente era firme e impetuosa como o avanço de um caminhão 
pesado. Seus olhos, sem nunca se desviarem para a direita ou para a 
esquerda, curvavam-se apenas às voltas do relato, como se seguissem 
uma faixa amarela para chegar-lhe ao centro. Raramente ela usava a 
outra expressão, porque nem sempre julgava necessário retratar-se numa 
afirmativa. Mas, quando o fazia, com o rosto enfim estacionado, havia 
em seus olhos negros um movimento quase imperceptível, durante 
o qual eles pareciam retroceder, e o observador veria então que Mrs. 
Freeman, embora estando ali presente, tão real quanto vários sacos de 
cereais empilhados, ali já não se achava em espírito. Mrs. Hopewell há 
muito desistira de tentar convencê-la do que quer que fosse, toda vez 
que isso ocorria. Por mais que falasse, era totalmente incapaz de levar 
Mrs. Freeman a admitir-se errada sobre qualquer questão. Se acaso 
conseguisse lhe arrancar uma frase, com ela plantada à sua frente, seria 
algo mais ou menos assim: "Bem, eu não digo que foi nem que não 
foi." Ou Mrs. Freeman poderia dizer, correndo os olhos pela prateleira 
mais alta da cozinha, onde havia um completo sortimento de vidros 
empoeirados: "Parece que a senhora não comeu quase nada da compota 
de figos que fez no verão passado." 
Era na cozinha, na hora do café da manhã, que elas tratavam de seus 
assuntos mais importantes. Mrs. Hopewell se levantava às sete horas, 
todos os dias, e ia acender seu aquecedor a gás e o de Allegra. Loura 
e corpulenta, mas com uma perna de pau, a moça era sua filha. Mrs. 
Hopewell a considerava uma criança ainda, embora ela estivesse com 
trinta e dois anos e fosse muito instruída. Levantando-se em geral en-
quanto a mãe estava à mesa, Allegra se arrastava até o banheiro e batia 
a porta com força, pouco antes de Mrs. Freeman chegar à porta dos 
fundos. De lá, Allegra ouvia sua mãe dizer "Pode entrar", mas a rápida 
LTI\,I 1-IOIVlEiVl DOI\.l DIFÍCIL DE E~CO~TRAR .. 
conversa em voz baixa que as duas então travavam era indistinguível 
no banheiro. Quando Allegra aparecia, normalmente elas já haviam 
terminado as previsões do tempo e falavam de uma das filhas de Mrs. 
Freeman, Glynese ou Carramae, que Allegra só chamava de Glicerina 
e Caramela.A primeira, ruiva, tinha dezoito anos e muitos admiradores; 
a seaunda loura tinha s01nente quinze, mas J. á estava casada e grávida. b ' , 
Como não conseguia reter nada no estômago, todas as manhãs Mrs. 
Freeman comunicava a Mrs. Hopewell quantas vezes ela havia vomitado 
de novo desde o último informe. 
Mrs. Hopewell dizia de bom grado aos outros que Glynese e Car-
ramae eram duas das melhores moças que já conhecera, que Mrs. 
Freeman era uma dama e que ela jamais se envergonhava de levá-la 
em sua companhia aonde quer que fosse ou de apresentá-la a qualquerum que por acaso encontrassem. Contaria então de que maneira lhe·~ 
ocorrera contratar aquela família, como os Free1nans eram para ela uma 
dádiva do céu e como os tinha consigo há quatro anos. A razão para:~ 
mantê-los assim por tanto tempo era que, embora fossem pobres, não~ 
pertenciam à ralé, eram gente boa da roça. Quando ela telefonou para• 
o homem. cujo norn.e lhe deram como referência, ele disse que Mr. 
Freeman era um bom lavrador, mas ressalvou que a esposa dele era a 
mulher mais enxerida que já havia aparecido sobre a face da Terra. "Ela 
se mete em tudo", disse o homem." Se não entrar em cena antes de a 
poeira baixar, pode apostar que já está morta.Vai querer saber dos seus 
negócios todos. Com ele não há problema", o homem tinha insistido, 
"1nas nem eu nem minha esposa aguentaríamos aquela mulher mais 
um minuto aqui." E foi isso que fez Mrs. Hopewell adiar sua decisão 
por uns dias. 
Afinal ela só os contratara por não haver outros interessados na 
vaga, porérn sabendo de anternão como iria exatamente lidar com a 
tal mulher. Já que ela era do tipo que se intrometia em tudo, Mrs. Ho-
pewell decidiu que não só lhe permitiria intrometer-se mesmo, como 
também. tomaria providências para deixá-la bem por dentro - torná-la-
-ia responsável por tudo, instalando-a no comando. Se não dispunha 
de más qualidades próprias, Mrs. Hopewell tinha porém habilidade 
bastante para se valer das alheias de urn modo tão construtivo que 
150 
FLANNERY O'CoNNOR 
nunca sentia essa carência. Contratara pois os Freemans, conservando-
-os por quatro anos. 
~ ~a é perfeito. Esse era um dos ditos favoritos de Mrs. Hopewell, 
'i}uê a frês por dois também dizia: assim é a vida. A mais importante de 
suas frases era contudo esta: cada um tem o seu modo de ver. Era em 
geral à mesa que faria tais declarações, num tom de delicada insistên-
cia, como se somente ela mesma as sustentasse, e a gordota e pesadona 
Allegra, cuja constante afronta já lhe apagara do rosto toda e qualquer 
expressão, apenas dirigiria os olhos azuis e gélidos para um ponto in-
certo ao seu lado, com a aparência de alguém que por ato de vontade 
própria conquistasse a cegueira e se aferrasse a mantê-la. 
Quando Mrs. Hopewell garantia a Mrs. Freeman que a vida era as-
sim, a empregada dizia: "Eu sempre me digo isso." Ninguém chegava a 
nada a que 'ela própria não tivesse chegado antes, sendo, como era, mais 
rápida de cabeça do que seu marido. No dia em que Mrs. Hopewell 
piscou um olho e lhe disse, depois de eles já trabalharem para ela há al-
gum tempo:"É você que faz a roda girar",Mrs. Freeman replicou:"Ah, 
eu sei. Fui sempre rápida sim, e alguns são mais espertos que os outros." 
"Cada um é de um jeito'', disse Mrs. Hopewell. 
"É, a maioria é mesmo", Mrs. Freeman disse. 
"Tem de ter gente de todo tipo no mundo." 
"Eu sempre me digo isso." 
A moça já se acostumara aos diálogos dessa espécie no café da manhã, 
a seus prolongamentos no almoço e às vezes também até no próprio 
jantar. Se não houvesse visitas, elas faziam suas refeições na cozinha, 
porque era mais prático. Mrs. Freeman sempre dava um jeito de chegar 
quando ainda estavam à mesa para esperar que acabassem. Ou bem se 
plantava à porta, no verão, ou bem, se fosse inverno, punha-se em pé 
com um cotovelo apoiado em cima da geladeira para dali observá-
-las, quando não ia ficar perto do aquecedor a gás, onde suspendia 
um pouquinho sua saia por trás. Vez por outra se encostava à parede e 
meneava seguidamente a cabeça. Para retirar-se, nunca, em nenhuma 
circunstância, ela se apressava. Tudo isso era muito desagradável para 
Mrs. Hopewell, mulher no entanto de suma paciência, capaz de com-
preender que nada é perfeito e que tinha os Freemans em conta de 
151 
LT;\{ !-IOiV!EM BOM DIFÍCIL DE E>JCONTRAR .. 
gente boa da roça, gente da qual, àquela altura da vida, era melhor não 
abrir mão quando se conseguia. 
Com gente da arraia-miúda, já havia tido experiências de sobra, 
pois dera emprego a uma familia de ajudantes por ano, em média, antes 
de estar com os Freemans. As mulheres desses lavradores não eram do 
tipo de pessoa que se queria ter por muito tempo por perto. E Mrs. 
Hopewell, divorciada do marido há bastante tempo, necessitava de al-
guém que lhe fizesse companhia ao percorrer sua propriedade; quando 
instava comAllegra para se incumbir da missão, as observações da moça 
eram geralmente tão mal-humoradas, e as caras que ela fazia tão feias, 
que Mrs. Hopewell não hesitava em dizer: "Se você lião consegue 
vir com prazer, é melhor nem vir comigo", ao que Allegra retrucava, 
aprumando-se angulosa, de pescoço espichado e os ombros rígidos:"Se 
a senhora me quiser, aqui estou - con10 eu sou." 
Mrs. Hopewell desculpava a atitude devido à perna da filha (atingida 
por um tiro, num acidente de caça, quando Allegra tinha dez anos). Para 
ela não era nada fácil compreender que a menina estava agora com trin-.-
ta e dois anos e há m.ais de vinte tinha uma perna apenas. Considerava-a"" 
ainda uma criança por sentir seu coração dilacerar-se ao pensar que a 
pobre moça, cheia de viço e já com aquela idade, nunca sequer dera 
um só passo de dança ou tivera bons momentos de maneira normal. O 
nome dela, de fato, era Allegra mesmo. Porém, assim que saiu de casa, 
ao completar vinte e um anos, ela o mudou legalmente. Mrs. Hopewell 
estava certa de que pensara e repensara muito até chegar ao nome mais 
horroroso existente em qualquer língua. Bastou-lhe estar fora de casa 
para trocar um nome tão bonito como Allegra, sem nada dizer à mãe 
senão depois de o ter feito. Para efeitos legais, seu nome agora era I--Iulga. 
Quando Mrs. Hopewell pensava nesse nome, Hulga, o que lhe vi-
nha à cabeça era o casco largo e cor de pulga de um navio de guerra. 
Recusava-se a usá-lo. Continuava a chamar a filha de Allegra, mas a 
moça só respondia de um modo totalmente automático. 
Hulga se habituara a suportar Mrs. Freeman, que a poupava de 
fazer caminhadas com sua mãe. Até mesmo Glynese e Carramae lhe 
eram úteis, por ocuparem a atenção que em circunstâncias diversas se 
concentraria só nela. De início tinha pensado que não aguentaria Mrs. 
152 
FLANNERY O'CoNNOR 
Freeman, por constatar que era impossível ser grosseira com ela. Mrs. 
Freeman era dada aos mais inesperados ressentimentos, ficando então 
, ~~ada por ~ários dias seguidos, mas a fonte de suas contrariedades 
~.sempre se mantmha obscura. Jamais ela seria atingida por um ataque 
direto, um explícito olhar de banda ou um desaforo na cara. Um belo 
dia, tinha passado a chamá-la de Hulga - sem nenhum aviso prévio. 
Não a chamava assim na frente de Mrs. Hopewell, que se exaspe-
raria com isso. Mas quando ela e a moça, por acaso, se encontravam 
fora de casa, ao dizer-lhe qualquer coisa acrescentava o nome Hulga 
ao final de cada frase, e Allegra-Hulga, por trás de seus grandes óculos, 
franzia o cenho e corava como se tivesse tido sua privacidade invadida. 
O novo nome era considerado por ela uma questão pessoal. Chegara a 
ele, a princípio, apenas levando em conta a fealdade do som, mas depois 
veio a notar todo o espírito de sua adequação. Tinha tido a inspiração 
desse nome ao trabalhar como o feio e suarento Vulcano, que se man-
tinha à forja e que supostamente a Deusa iria visitar quando invocada, 
tomando-o mesmo pelo nome de seu ato criador mais excelso. Um 
de seus grandes triunfos era o fato de sua mãe não ter sido capaz de 
transformar seu próprio pó em Allegra, se bem que o maior de todos 
fosse ela mesma ter podido transformá-lo em Hulga. O modo como 
Mrs. Freeman se deleitava ao empregar o nome só lhe causava entre-
tanto irritação. Era como se os olhinhos redondos e acerados da caseira 
penetrassem muito a fundo em seu corpo, varando-a bem além do rosto 
para atingir algum secreto fato.Algo nela parecia fascinar Mrs. Freeman, 
e Hulga então se deu conta, certo dia, de que era a perna artificial. Mrs. 
Freemantinha particular atração pelos detalhes das infecções misterio-
sas, das deformidades veladas, dos estupros de crianças. Entre as doenças, 
preferia as incuráveis ou crônicas. Hulga entreouviu sua mãe contar-
-lhe o acidente de caça em pormenores, dizendo-lhe que a perna fora 
literalmente esfacelada e que ela não perdera os sentidos. A qualquer 
hora Mrs. Freeman se dispunha a escutar tudo de novo, como se aquilo 
tivesse acontecido uma hora atrás. 
Quando entrava de manhã na cozinha, pisando duro (era capaz de 
andar sem tanto estrépito, mas ela fazia assim de propósito - Mrs. 
Hopewell estava certa - porque o barulho era bem desagradável), 
153 
UM HO.LVJEM DOIVl É DIFÍC1L DE ENCONTRAR., 
Hulga olhava de raspão para as duas e não dizia palavra. Mrs. Hopewell 
estaria com seu quimono vermelho e o cabelo preso por algum len-
ço em farrapos. Mantinha-se ainda à mesa, já no final da refeição, e à 
mesa era vista por Mrs. Freeman, mantida pelo cotovelo e atenta junto 
à geladeira. Hulga sern.pre punha dois ovos para cozinhar, pondo-se 
por sobre eles, de braços cruzados diante do fogão, e Mrs. Hopewell a 
observava - com uma espécie de olhar indireto, dividido entre a filha 
e a empregada -, pensando que ela até que não seria tão feia, se pelo 
rnenos se cuidasse um pouco. Nada havia de tão errado em seu rosto 
que uma expressão rn.ais amena não ajudasse a melhorar. Mrs. Hopewell 
costumava dizer que quem via as coisas pelo lado bom ·sempre ficava 
mais bonito, mesm.o que não o fosse. 
Toda vez que ela considerava Allegra por esse ponto de vista, não 
podia senão ser induzida a crer que se a menina não tivesse se douto-=-
rado teria sido melhor. O título, por certo, não lhe deu relevo algu~'· 
e agora que o possuía ela não tinha mais desculpas para voltar à escola: 
Mrs. Hopewell achava bom que moças fossem para a faculdade par~ 
viver bons momentos, mas Allegra havia "sofrido muito". De qualquer' 
modo, nem mais forças teria para enfrentar aquilo outra vez. Só cercada 
de cuidados, pelo que os médicos lhe tinham dito, sua filha poderia 
viver até os quarenta e cinco anos. Fraca de coração como era,Allegra 
já deixara bem claro que a essa altura estaria longe, se não fosse esse 
problerna, da gente boa da roça e seus morrinhas vermelhos. Estaria 
numa universidade, dando aulas a pessoas capazes de entender do que ela 
estava falando. Quando a imaginava por lá, o que se achava a seu alcance, 
Mrs. Hopewell a veria tão só como um espantalho ensinando a outros 
de igual feitio. Em casa, Allegra passava o dia todo com a mesma saia 
batida, que já tinha há seis anos, e uma camiseta amarela cuja estampa 
desbotada era um caubói a cavalo. Ela achava aquela roupa engraçada; 
Mrs. Hopewell, tomando-a por patetice, tomava-a por mero indício do 
infantilismo da filha, que era uma pessoa brilhante, mas sem um pingo 
de bom senso. A impressãó de Mrs. Hopewell era que de ano para ano 
ela ficava mais diferente dos outros e mais igual a si mesma - balofa 
e grosseira e vesga. Além do m.ais, dizia coisas tão estranhas! À própria 
mãe havia dito - sem pretexto nem preparo, de boca cheia e rosto 
154 
FLANNERY O'CoNNOR 
afogueado: "Já olhou bem em seu íntimo, já? Meu Deus! Quando é 
que vai olhar para dentro, mulher, e ver o que você não é?" Dissera isso 
, ~~tos e, afundando na cadeira de novo e fixando o olhar em seu 
":pra:to, acrescentara: "Malebranche estava certo: não somos nós a nossa 
luz, não somos não." Até hoje Mrs. Hopewell não sabia o que a levara à 
explosão, pois apenas observara, na esperança de que Allegra a apoiasse, 
que um sorriso não fazia mal a ninguém. 
A menina doutorou-se em filosofia e isso deixara Mrs. Hopewell no 
mais completo embaraço. Qualquer um bem que podia dizer "Minha 
filha é enfermeira", ou "Minha filha é professora do ensino básico", ou 
até mesmo "Minha filha é engenheira química". Mas quem diria "Mi-
nha filha é filósofa", se isso era coisa morta e acabada desde os romanos e 
os gregos? Allegra passava os dias lendo, afundada numa poltrona. De vez 
em quando ela saía para dar uma volta, mas não gostava de cachorros, 
gatos, passarinhos, flores, nem da natureza nem de rapazes bonitos. Nos 
rapazes bonitos, se os olhasse farejava tão só a ignorância que tinham. 
Um dia Mrs. Hopewell pegou um dos livros que a menina acabara 
de largar e, abrindo-o casualmente, leu: 
À ciência, por outro lado, cabe de novo sustentar sua sçriedade e sobriedade, 
afirmando que é somente o que existe que lhe concerne. Que pode ser para 
a ciência o nada - senão algo que horripila e um fantasma? Se a ciência 
estiver certa, há uma coisa que então se consolida: conhecer o nada do nada 
é o que a ciência pretende. Essa é afinal a abordagem estritamente cientifica 
do nada. Nós a conhecemos ao pretender conhecer o nada do nada. 
O trecho, que havia sido sublinhado a lápis azul, surtiu o mesmo 
efeito do palavrório de um bruxedo maligno sobre Mrs. Hopewell, que 
fechou rapidamente o livro e saiu do quarto como se estivesse sentindo 
um calafrio. 
Nessa manhã, quando a menina chegou, Mrs. Freeman falava sobre 
Carramae. "Depois do jantar ela vomitou quatro vezes'', informou, "e 
de noite se levantou duas vezes depois das três da manhã. Ontem não 
fez nada de nada, a não ser remexer no armário procurando comida. 
Só ficou por ali, vendo o que era que podia apanhar." 
155 
LrM HC.L\lEi'ví BOM DIFÍCIL DE E;-.;coNTRAR ... 
"Ela tem de comer bem", murmurou Mrs. Hopewell, que tomava 
seu café enquanto olhava para as costas de Allegra ao fogão. Perguntan-
do-se o que teria dito sua filha ao vendedor de Bíblias, não conseguia 
imaginar que tipo de conversa ela poderia ter mantido com ele. 
Ele era um rapaz magro e alto que não usava chapéu e batera à 
porta na véspera para lhes vender uma Bíblia.A malona preta que trazia 
parecia estar tão pesada e o fazia arriar tanto de um lado que ele teve 
de se apoiar no portal para aprumar-se. Malgrado a impressão que dava, 
de estar prestes a despencar ali mesmo, disse em tom jovial: "Bom dia, 
Mrs. Cedars! ", e logo em cima do capacho deixou a mala ficar. Não 
era de todo feio, embora seu terno azul fosse brilhante· demais e suas 
meias amarelas estivessem bem desbeiçadas. Tinha os ossos do rosto 
em acentuado relevo e um cacho gosmento de cabelo castanho a lhe 
cair pela testa. 
"Eu me chamo Hopewell", ela disse. 
"'· 
"Oh!", disse de, afetando estar confuso, mas com um brilho intensO' ~ 
nos olhos. "Como eu vi 'The Cedars' escrito na caixa de correio, pens~ 
que fosse o seu nome", e em risos se deleitou. Pegou então a malona e'7 
sob o disfarce de uns arquejas, foi penetrando aos arrancas pela entrada 
da casa, como se o peso que levava se deslocasse primeiro e o arrastasse 
a reboque. "Mrs. Hopewell!", ele disse, e agarrou-lhe a mão. "Que belo 
nome! Quer dizer boa esperança, não é?", e riu de novo, até seu rosto 
assumir bruscamente uma feição muito sóbria. Fez uma pausa e depois 
disse, lançando-lhe um olhar compenetrado e reto: "Minha senhora, 
vim lhe falar de coisas sérias." 
"Pois bem, entre", ela murmurou meio contrariada, porque o almo-
ço já estava quase pronto. O rapaz, chegando à sala de visitas, sentou-se 
na beirada de uma cadeira de espaldar, pôs a mala entre os pés e deu 
umas olhadas em volta, como se pelas condições do ambiente ele ava-
liasse a freguesa. Nos dois aparadores suas pratarias brilhavam; e ela pôde 
concluir que ele nunca havia estado numa sala tão chique. 
"Mrs. Hopewell'', começou ele, pronunciando seu nome de 
modo a denotar certa intimidade, "sei que a senhora acredita no 
trabalho cristão." 
"Sim, sim", ela sussurrou. 
FLANNERY O'CoNNOR 
"Sei que a senhora", ele disse, e interrompeu-se, com a cabeça posta 
um pouco de lado e ar de estar bem-informado, "é uma boa pessoa. 
A~s já me disseram." 
·.~~·cc' 
.:.,.. 'Mrs. Hopewell não gostava de ser feita de boba. "O que é que está 
vendendo?'', ela perguntou. 
"Bíblias",disse o rapaz, que percorreu com os olhos todo o espaço 
ao redor e só depois disse ainda: "Pelo que vejo, a senhora não tem em 
sua sala uma Bíblia para famílias; é o que está faltando aqui." 
Como Mrs. Hopewell não podia dizer: "Minha filha, que não crê 
em Deus, não me deixaria ter uma Bíblia na sala", ela se enrijeceu um 
pouco e disse: "Minha Bíblia fica na minha cabeceira." Mas não era 
verdade: o livro andava lá pelo sótão. 
"É na ~ala", disse ele," que a palavra de Deus deve ficar." 
"Isso pra mim é uma questão de gosto", ela foi dizendo. "A meu ver. .. " 
Ele porém a interrompeu: "Para um cristão, a palavra de Deus, que 
ele já traz no coração, deve também estar em todos os cômodos da 
casa. E eu sei que a senhora é uma boa cristã, porque está escrito em 
seu rosto." 
Ela se levantou e disse: "Não me leve a mal, mas não quero com-
prar a sua Bíblia; e o meu almoço, pelo cheiro que' sinto, já deve estar 
queimando no fogo." 
Ele continuou sentado. Passou a esfregar as mãos, das quais não tirava 
os olhos, e disse tranquilamente: "Pouca gente hoje, pra falar a verdade, 
quer comprar uma Bíblia - e além do mais, minha senhora, sei que eu 
sou muito humilde, que sou um rapaz da roça. Nem as coisas que tenho 
de dizer eu sei falar muito bem." A essa altura ergueu os olhos e, num 
relance, fitou-lhe a face inamistosa. "Pessoas assim como a senhora não 
podem mesmo perder tempo com uns roceiros que nem eu!" 
"Nada disso!", ela exclamou. "A gente boa da roça é o sal da terra! 
Além do mais, cada um de nós age a seu modo e, para que tudo fun-
cione, tem de ter gente de todo tipo no mundo. Assim é a vida!" 
"A senhora disse uma grande verdade", ele apoiou. 
E ela animou-se toda: "Aliás eu acho que o que está faltando no 
mundo é mais gente boa da roça. Por isso é que ele anda tão mal!" 
157 
O rosto do rapaz se acendeu. eu que nem me apresentei", ele dis-
se. "Eu me chamo Manley Pointer, e venho lá de um fim de mundo, de 
um lugar que ninguém sabe que existe, mas fica perto de Willohobie." 
"Espere um pouco", ela disse. "Tenho de ir dar uma olhadinha 
no almoço." 
Quando entrou na cozinha, encontrou Allegra em pé perto da porta, 
de onde ela escutava a conversa. 
"Livre-se do sal da terra", disse a filha," e vamos comer." 
Mrs. Hopewell, dando-lhe um olhar de desgosto, foi abaixar o fogo 
dos legumes. "Eu não sei ser grosseira com ninguém", disse em voz 
baixa, e voltou para a sala. 
O rapaz tinha aberto a mala e estava com duas Bíblias no colo. 
"Pode guardar seus livros", ela disse. "Eu não quero mesmo não." 
"Obrigado pela sinceridade", disse ele. "Já não se vê mais ninguém·~ 
que seja realmente sincero, a não ser aqui no interior." 
"É, eu sei", ela disse, "por aqui ainda há gente autêntica." Pela fresta 
da porta, um suspiro impaciente lhe chegou aos ouvidos. ~ 
"Muitos rapazes devem vir procurá-la dizendo que trabalham para""' 
pagar seus estudos", disse ele, "mas não vou dar essa desculpa à senhora. 
Aliás, eu nem pretendo estudar. Quero dedicar minha vida ao trabalho 
cristão. É que eu, sabe ... ", e nesse ponto ele abaixou o tom de voz, 
" ... tenho um problema de coração. Parece que não vou viver muito. 
Quando a pessoa sabe que tem saúde fraca e talvez não dure tanto, bem, 
aí, nesse caso ... "Fez uma pausa e, de boca aberta, ficou olhando para ela. 
Ele e Allegra então tinham o mesmo problema! Percebendo que 
seus olhos se enchiam de lágrimas, ela porém se controlou rapidamente 
e sussurrou: "Não quer ficar para almoçar? Para nós seria um grande 
prazer!", e arrependeu-se tão logo se ouviu dizendo isso. 
"Sim senhora", disse ele meio encabulado. "O prazer é todo meu!" 
Allegra lhe deu uma espiada, ao lhe ser apresentada, mas ao longo de 
toda a refeição não voltou a olhar para o rapaz, fingindo nem mesmo 
ouvir as várias observações que ele lhe endereçava. Mrs. Hopewell era 
incapaz de entender a indelicadeza premeditada, embora convivesse 
com isso, e sempre se sentia na obrigação de ser transbordantemente 
hospitaleira para compensar a falta de educação de Allegra. Pediu-lhe 
FLANNERY o·coNNOR 
que falasse de si, e ele não se fez de rogado. Contou que era o sétimo 
de doze filhos e que seu pai fora esmagado por uma árvore quando ele 
. ~~oito anos. Esmagado mesmo, quase, de fato, partido ao meio, a 
~ pcint6 de ficar praticamente irreconhecível. Sua mãe se ajeitou da me-
lhor maneira que pôde, trabalhando além da conta, e sempre fez questão 
de que os filhos frequentassem a escola dominical e nunca deixassem de 
ler a Bíblia de noite. Ele agora estava com dezenove anos e há quatro 
meses vendia Bíblias.Já vendera setenta e sete nesse período, e tinha mais 
duas promessas de compra. Queria ser missionário, porque a seu ver era 
desse modo que se podia fazer mais pelos outros. "Quem perde a vida 
há de encontrá-la", disse, no auge da simplicidade, mostrando-se tão 
sério, tão sincero e tão puro que por nada desse mundo Mrs. Hopewell 
teria dado um sorriso. Para que seus grãos de ervilha não rolassem para 
a mesa, ele os retinha com um pedaço de pão, do qual depois se serviu 
para limpar o prato. E ela pôde notar que Allegra o observava de través 
para ver como o rapaz usava o garfo e a faca, notando também que 
vez por outra ele lançava à moça um olhar apreciativo e forte, como se 
quisesse atrair sua atenção. 
Findo o almoço, Allegra tirou a mesa e sumiu, deixando Mrs. Ho-
pewell a conversar com o rapaz, que voltou a lhe fala,r de sua infância, do 
acidente com seu pai e de uma porção de coisas por que havia passado. 
De cinco em cinco minutos, mais ou menos, ela reprimia um bocejo. 
Duas horas depois ele· continuava sentado, mas finalmente ela lhe disse 
que precisava sair, pois tinha um compromisso na cidade. O vendedor 
pôs suas Bíblias na mala, agradeceu-lhe, preparou-se para retirar-se. 
Já na porta, ao lhe apertar a mão, ele ainda se deteve no entanto para 
dizer que nas suas andanças nunca tinha conhecido uma senhora assim 
tão gentil, e perguntou se poderia aparecer outras vezes. Ela disse que 
revê-lo seria sempre um prazer. 
Allegra, que se achava perto da estrada, aparentemente olhava para 
uma coisa ao longe quando ele desceu a escadinha e foi em sua direção, 
arqueado pela mala pesada, para se pôr bem diante dela. Mrs. Hopewell 
não pôde ouvir o que ele disse e tremia só de pensar no que lhe diria 
Allegra. Mas viu que sua filha tinha dito uma frase e que o rapaz logo 
voltou a falar, fazendo com a mão livre um gesto bem desenvolto. Um 
r59 
UM HOlvIENI DOJ\-1 É DIFÍCIL DE ENCONTRAR ... 
minuto depois Allegra disse outra coisa a que o rapaz mais uma vez deu 
resposta. E então, para seu grande espanto, Mrs. Hopewell viu que os 
dois saíram juntos em direção à porteira. Até lá, por todo o caminho, 
Allegra andou ao lado dele. Mrs. Hopewell nem conseguia supor que 
conversa poderiam ter tido, mas também não ousara perguntar. 
Mrs. Freeman, insistindo em lhe chamar a atenção, passou de junto 
da geladeira para perto do aquecedor, forçando Mrs. Hopewell a se 
virar de rosto para ela, a fim de parecer que a ouvia com real interesse. 
"Glynese estava com terçol, mas ontem de noite saiu com Harvey Hill 
outra vez", ela informou. 
"Hill", disse Mrs. Hopewell, absorta," é o que trabalha na oficina?" 
"Não, não, o que estuda quiroprática", respondeu Mrs. Freeman. 
"Pois então, ela já tinha esse terçol há dois dias. Mas me contou que, 
quando vieram tarde pra casa, ele falou pra ela que podia dar um jeitt'l 
naquilo. Ela quis saber como, e ele mandou ela deitar no banco do carr€{' 
que ele ia logo mostrar. Vai daí que ela deitou espichada e ele aperto\i.~ 
ela toda. Apertou tanto, mas tanto, que o pescoço dela estalou e e~ 
pediu pra parar. Quando foi hoje cedo", disse Mrs. Freeman, "imagi~ 
só: ela não tinha nem sinal de terçol. Sumiu tudinho." 
"Nunca ouvi falar disso antes", disse Mrs. Hopewell. 
"Ele pediu pra ela ir no juiz casar com ele", prosseguiu Mrs. Free-man, "e ela disse que não, que não ia casar num gabinete." 
"Glynese é uma garota e tanto", Mrs. Hopewell disse. "Aliás, todas 
as duas, Glynese e Carramae, são meninas ótimas." 
"Carramae disse que quando ela e o Lyman se casaram o Lyman 
disse que pra ele aquilo sim é que era coisa sagrada. Ela disse que ele 
disse que nem por quinhentos dólares ia aceitar ser casado por pastor." 
"Quanto é mesmo que ele ia querer?", perguntou Allegra ao fogão. 
"Ele disse que não aceitava nem quinhentos dólares", repetiu 
Mrs. Freeman. 
"Bem, nós temos muito o que fazer agora", Mrs. Hopewell disse. 
"Lyman disse que pra ele parecia até mais sagrado", insistiu porém 
Mrs. Freeman. "Ah, e o médico mandou Carramae comer ameixa, em 
vez de tomar remédio. Diz ele que as cólicas são da pressão. Quer saber 
onde é que eu acho que é?" 
IÓO 
FLANNERY O'CoNNOR 
"Dentro de mais umas semanas ela já vai estar melhor", Mrs. Ho-
pewell disse. 
. -~as trompas", concluiu Mrs. Freeman. "Senão ela não ia passar 
~im 'tão mal." 
Hulga, após quebrar num pires seus dois ovos, agora os levava para a 
mesa,junto com uma xícara de café que tinha enchido demais. Sentou-
-se e começou a comer atentamente, pronta a fazer qualquer pergunta 
que servisse para reter Mrs. Freeman caso ela demonstrasse que por 
alguma razão ia sair. Percebendo que a mãe não tirava os olhos dela, 
sabia que a primeira indireta seria sobre o vendedor de Bíblias, assunto 
que não desejava trazer à baila. Por isso perguntou: "E como foi que 
ele fez o pescoço dela estalar?" 
Mrs. Freeman não só lhe deu a descrição detalhada dos estalos 
que o pes'Coço da filha dera nas mãos do quiroprático, como também 
acrescentou que ele tinha um Mercury 55, mas Glynese dizia preferir 
um homem que, mesmo tendo apenas um Plymouth 36, concordasse 
em ser casado por pastor.A moça quis saber como seria se o Plymouth 
do pretendente fosse 32, e Mrs. Freeman falou que Glynese tinha dito 
que era um 36. 
Mrs. Hopewell disse que eram poucas as garotas a,ssim como Glynese, 
com tanto bom senso, dizendo ser justamente isso o que mais admirava 
nela e na irmã. Disse também que por falar em bom senso se lembrava 
da agradável visita de um jovem vendedor de Bíblias na véspera: "Ele 
quase me matava de tédio, meu Deus, mas era tão sincero e puro que 
eu não podia ser grosseira com ele. Gente boa mesmo, sabe, gente boa 
da roça - sal da terra." 
"Eu vi quando ele chegou", disse Mrs. Freeman, "e depois ... quan-
do foi embora", e no tom por ela empregado Hulga pôde sentir uma 
mudança sutil, a ligeira insinuação de que o moço, ao partir, já não 
estava sozinho - não foi? Se nenhuma expressão lhe veio à face, ao 
pescoço porém subiu-lhe o sangue, que ela teve de engolir com uma 
nova colherada de ovo. Mrs. Freeman ficara a contemplá-la como se as 
duas partilhassem de um segredo em comum. 
"Pois é, é preciso gente de todo tipo para fazer o mundo andar", 
disse Mrs. Hopewell. "É muito bom não sermos todos iguais." 
IÓI 
Uivi Hüi'dE~'<1 BOM É DIFÍCIL DE ENCONTRAR ... 
"Tem uns que são mais iguais que outros", Mrs. Freeman disse. 
Hulga se levantou e, pisando duro como nunca, com o dobro do 
barulho necessário, foi para o seu quarto e trancou a porta. Tinha en-
contro marcado na porteira às dez horas com o vendedor de Bíblias. 
Pensara nisso quase metade da noite, tomando tudo a princípio por uma 
grande piada e depois passando a ver as enormes implicações que nisso 
havia. Espichada na cama, imaginava diálogos entre os dois que, apesar 
de loucos na superficie, desciam contudo a profundidades que jamais 
poderiam ser atingidas por qualquer vendedor de Bíblias. Sua conversa 
no dia anterior havia sido dessa espécie. 
Ele, ao parar diante dela, simplesmente ficara ali plantado. Seu rosto 
ossudo, suarento, brilhoso, com um narizinho afilado bem no meio, tinha 
uma expressão diferente da que à mesa do almoço se mostrara. Olhava-a 
então com fascínio, com indisfarçada curiosidade, como uma criança que 
vê no zoológico um novo animal fantástico, e respirava como se tivess~·'· 
corrido por uma grande distância para alcançá-la.A ela, seu olhar frx~~ 
parecia familiar de algum modo, embora ela não conseguisse saber ondi 
é que antes fora olhada assim. Por quase um minuto ele não disse nad;f. 
Depois no entanto sussurrou, corno se estivesse tomando fôlego: "Você 
já comeu algum pintinho nascido há apenas dois dias?" 
A moça o olhou petrificada. Bem que ele poderia ter colocado essa 
questão para análise nalgum simpósio de uma organização filosófica. 
Mas daí a pouco ela respondeu, como se a tivesse considerado por todos 
os ângulos possíveis: "Já sim." 
"Devia ser pequeno à beça!'', disse ele em triunfo, sacudindo-se de 
alto a baixo com urnas risadinhas nervosas, corando muito no rosto e 
por fim se aplacando em seu olhar de admiração categórica, enquanto 
a expressão da rn_oça permanecia exata1nente a mesma. 
"Quantos anos você tem?", ele perguntou então com meiguice. 
Ela esperou um pouco antes de responder. E aí, sem nenhum relevo 
na voz, disse o que quis: "Dezessete." 
O rapaz se desmanchou em sorrisos que ondulavam em sucessão 
como a água na superficie de um lago. "Já vi que você tem uma perna 
de pau", disse ele. "E que é muito decidida, não é? Pois pra mim você 
é urna gostosura." 
162 
FLANNERY O'CoNNOR 
Confusa, a moça ficou calada e séria. 
"Vem comigo até a porteira", ele disse. "Você é uma coisinha gostosa, 
. ~dida, e eu simpatizei com você desde que te vi entrar pela porta." 
-~ ~ Hulga deu uns primeiros passos em frente. 
"Como é que você se chama?", ele perguntou. Seu sorriso, vindo 
de cima, atingiu-a no alto da cabeça. 
"Hulga", ela disse. 
"Hulga", ele repetiu. "Hulga, Hulga. Nunca conheci ninguém com 
esse nome.Você é tímida, não é, Hulga?" 
Ela fez que sim com a cabeça, reparando em sua mãozona vermelha 
na alça da mala enorme. 
"Gosto de meninas de óculos", ele disse. "E eu penso muito. Não 
sou que nem essas pessoas que nunca se abrem para um pensamento 
mais sério. Isso é porque eu posso morrer ... " 
"Eu também posso morrer", disse ela de súbito, olhando bem para 
ele, cujos olhos castanhos, muito miúdos, faiscavam febrilmente. 
"Você não acha", disse ele," que certas pessoas já estão destinadas 
a se encontrar na vida, por causa de tudo o que elas têm em comum? 
Como se todas duas gostassem de pensar coisas sérias?" Trocando a mala 
de mão, para que a outra, a que estava mais perto dela, ficasse livre, ele 
a pegou então pelo braço, com uma leve pressão. "No sábado eu não 
trabalho", disse. "Gosto de andar pela mata e de ver corno se veste a 
mãe natureza. Morro acima e bem longe. Com um piquenique e coisa 
e tal. Não dá pra gente fazer uma caminhada assim amanhã? Ah, Hulga, 
diz que sim", e lançou-lhe um olhar agonizante, como se se sentisse 
a ponto de ser eviscerado ali mesmo. Pareceu até, pois balançou um 
pouco, que ia acabar tombando sobre ela. 
Durante a noite ela havia imaginado que o seduzia. Imaginou-os a 
andar pela fazenda até alcançarem o celeiro por trás das duas lavouras 
mais ao fundo, e que lá, na sua fantasia, as coisas chegaram a tal ponto 
que lhe foi muito fácil enfeitiçá-lo, para depois, é claro, ela ter de levar 
em conta o remorso dele. Até mesmo em mente inferior um verdadeiro 
gênio é capaz de incutir determinada ideia. Mas ela também imaginou 
que tornava nas próprias mãos o seu remorso e o transformava numa 
IÓJ 
l)lVJ flOME;\J BOM DIFÍCIL DE ENCONTRAR .. 
compreensão mais aprofundada da vida. Despia-o de toda vergonha, 
tornando-a assim em coisa útil. 
Exatamente às dez horas ela se dirigiu à porteira, escapulindo sem 
atrair a atenção da mãe. Nada levava de comer, esquecida de que um 
piquenique na mata pressupõe em geral haver comida. Usava uma calça 
larga e uma camisa branca surrada, em cuja gola, como lembrança de 
última hora, pusera um pouco de aerossol,já que perfume ela não tinha 
nenhum. Quando chegou à porteira,não havia ninguém à sua espera. 
Olhando para a estrada de lado a lado deserta, Hulga, furiosa, achou 
que havia sido enganada, que o rapaz só queria, com todo o plano 
concebido por ele, fazê-la andar até ali. Mas de repente eí-lo que surge, 
vindo de trás de um arbusto no barranco do outro lado, de corpo inteiro 
e muito alto. Sorrindo, tirou para cumprimentá-la um chapéu novo e 
de aba larga. Como ele não o usava na véspera, perguntou-se se ele <J 
teria comprado para a ocasião. Era um chapéu cor de torrada, com um;?· 
fita vermelha e branca em volta e um pouco grande para ele, que sai~~ 
de trás do arbusto ainda carregando sua mala preta. Continuava co~ 
o mesmo terno e as mesmas meias amarelas, que, de tanto andar,já st 
enfiavam pelos sapatos adentro. O rapaz atravessou a estrada e disse:"Eu 
sabia que você vinha!" 
Como ele podia saber?, perguntou-se a moça, azeda. Ela apontou 
para a valise e perguntou: "Por que você trouxe as Bíblias?" 
Sempre a sorrir acima dela, como se não pudesse parar, ele a pegou 
pelo braço. "Nunca se sabe quando a gente vai ter necessidade da palavra 
de Deus, Hulga", disse. Antes de começarem a subir no barranco, por 
um momento ela duvidou que aquilo estivesse acontecendo mesmo. 
Depois desceram pelo pasto na direção da mata. Os passos do rapaz ao 
seu lado eram desenvoltos e leves. Hoje a mala, que ele até sacudia um 
pouco, não parecia mais tão pesada. Sem dizer nada, os dois andaram até 
o meio do pasto, quando ele então perguntou delicadamente, pondo-
-lhe a mão despreocupada na altura dos rins: "Onde é que engata a tua 
perna de pau?" 
Ela corou, fitando-o de cara feia. Ele, por um instante, deu a impres-
são de envergonhar-se. "Eu não quis te ofender", disse o rapaz. "Sei que 
coragem você tem, e tudo o mais. Sei muito bem que Deus te guarda." 
164 
F'LANNERY O'CoNNOR 
"Nada disso", disse ela, olhando para a frente e andando apressada, 
"eu nem acredito em Deus." 
---~o ouvir isso, ele parou, assoviou e exclamou apenas um "Não!", 
-:J:--'- %' " 
o,. como se estivesse por demais espantado para dizer outra coisa. 
Ela continuou caminhando. E num segundo ele já estava novamente 
ao seu lado, lépido, a se abanar com o chapéu. Olhando-a pelo canto do 
olho, fez então um comentário: "Isso é muito incomum numa garota." 
Na beirada da mata, quando ali tinham chegado, ele voltou a passar-lhe 
a mão nas costas, puxou-a bem para si e, sem dizer qualquer palavra, 
beijou-a com toda a força. 
O beijo, que trazia por trás mais tensão que sentimento, produziu 
na garota aquela dose adicional de adrenalina que capacita uma pessoa 
a fugir d,a casa em chamas carregando tudo o que pode. Mas a energia, 
no seu caso, foi direto para o cérebro.Antes mesmo de ele a deixar livre 
outra vez, sua mente, clara, desprendida, e ainda por cima irônica,já o 
olhava de uma grande distância, com um ligeiro prazer, por certo, mas 
também com piedade. Ela, que nunca tinha sido beijada, alegrou-se ao 
descobrir que a experiência nada tinha de extraordinário, sendo passí-
vel de submeter-se ao controle da mente. Certas pessoas só poderiam 
apreciar a água encanada se lhes viesse por acaso 'a ser dito que se tra-
tava de vodca. Quando o rapaz, na expectativa e ao mesmo tempo na 
incerteza, afastou-a delicadamente de si, ela apenas se virou e voltou 
a andar como antes, sem dizer nada, como se aquele negócio, para ela, 
fosse mais do que comum. 
Ele foi atrás, ofegante, procurando ajudá-la quando via uma raiz, 
na qual ela pudesse tropeçar. Se houvesse à frente trepadeiras com 
espinhos, pegava e suspendia suas ramas extensas, até que ela tivesse 
passado. Seguia-a de perto, com a respiração muito pesada, pois era ela 
que ia abrindo caminho.Além de uma encosta ensolarada a que depois 
chegaram, a qual se estendia em declive suave para fundir-se a outra 
mais baixa, puderam avistar o derruído telhado do celeiro velho, onde 
o feno excedente era guardado. 
Flores silvestres, miúdas e cor-de-rosa, se espalhavam pela colina. 
Ele parou de repente e perguntou: "Pra você então não tem salvação?" 
165 
UM HO;\·lL\.l BOM DlfÍC.IL DE EhlCONTRA.l:L, 
A moça sorriu, sorrindo-lhe assim pela primeira vez. "No meu sis-
tema", disse ela," eu já estou salva e o perdido é você, mas já lhe disse 
que não creio em Deus." 
Nada aparentemente desfez o olhar de admiração do rapaz. Ele 
agora a fitava como se o fantástico animal do zoológico tivesse posto 
a patinha pelas grades para o cutucar com ternura. Ela, julgando pela 
sua expressão que ele queria beijá-la novamente, retomou a caminhada 
antes de lhe dar essa chance. 
"Por aí não tem. um lugar pra gente ficar um tempo sentado?", sus-
surrou ele, amaciando bem a voz nas últimas palavras da frase. 
"Tem o celeiro", ela disse. 
Foram às pressas para lá, como se o grande celeiro de dois andares, 
frio e escuro por dentro, fosse capaz de se afastar como um trem em 
rn.ovimento. O rapaz apontou a escada que levava à parte de cima e-
disse: "Pena é a gente não poder subir por aqui." 
"Por que não?", ela perguntou. 
"Tua perna", ele disse respeitosamente. ,,;, 
A moça o olhou com desdém. Apoiou-se com as mãos na escada f! 
de imediato subiu. Ele, mostrando-se amedrontado, ainda ficara embai-
xo. Ela se enfiou pela entrada, como se já tivesse prática, e de lá gritou 
para ele: "Corno é que é, vem ou não vem?"Todo desajeitado, porque 
ia arrastando a mala consigo, ele então subiu também. 
"Nós não vamos precisar da Bíblia", ela observou. 
"Nunca se sabe", disse ele. Estava tão ofegante que, ao chegar ao fim 
da escalada, precisou de alguns segundos para tomar fôlego. Já sentada 
sobre um monte de palha, onde uma nesga de sol cheia de grãos de po-
eira vinha larnber-lhe o corpo, ela estava recostada num fardo e, de rosto 
todo voltado para fora, olhava pela abertura por onde o feno trazido por 
carroças era jogado no alto do celeiro.As duas encostas salpicadas de rosa 
contrapunham-se a unia elevação escura da mata. Não havia nuvens no 
céu azul e frio. O rapaz jogou-se ao lado e, passando um braço por bai-
xo e outro por cima dela, metodicamente foi logo lhe dando beijos no 
rosto. Fazia uns barulhinhos de peixe e não tirou o chapéu, que apenas, 
para não atrapalhar, tinha sido en1purrado para trás. Quando os óculos 
dela se interpuseram, ele mesmo os tirou e pôs no bolso. 
166 
FLANNERY O'CoNNOR 
A garota, se a princípio não retribuiu nenhum beijo, sem demora 
porém já começava a fazê-lo, beijando-o seguidas vezes no rosto. De-
--Rois alcançou-lhe a boca e não mais largou de seus lábios, dando-lhe 
"~~eijo atrás do outro como se estivesse disposta a dele extrair por 
sucção o próprio ar inalado. Puro e doce era o hálito do rapaz, corno 
o de uma criança, e os beijos que dava, tal e qual os de criança, eram 
pegajosos. Ele sussurrou que a amava, que sabia ter tido amor por ela 
desde que a viu pela primeira vez, mas seus sussurros eram também 
infantis, corno os protestos da criança que está caindo de sono e a mãe 
põe na cama.Ao longo de tudo isso, nunca ela parou de pensar, nem se 
perdeu, por um segundo que fosse, nas suas próprias sensações. "Você 
nem disse que me ama", ele por fim suspirou, desencostando-se dela. 
"Você tem de dizer." 
Ela olhou para fora, para não encará-lo, e viu o céu todo igual. De-
pois, baixando a vista pouco a pouco, viu uma serra negra e, mais longe 
ainda, o que talvez fossem dois lagos verdes e fundos. Nem sequer se 
dava conta de que ele tinha tirado seus óculos, mas a paisagem para ela 
nada poderia ter de incomum, pois era raro que prestasse muita atenção 
no que estava à sua volta. 
"Você tem de dizer", ele insistiu. "Tem de diz~r que me ama." 
Quanto a comprometer-se com algo, ela era sempre cautelosa. "De 
certo modo", disse portanto, "se considerannos a palavra em seu sentido 
mais amplo, podemos até dizer que sim. Não é porém uma palavra que 
eu use, porque não tenho ilusões. Sou urna dessas pessoas que,

Outros materiais