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COLEÇAO ' CLASSICOS DE OURO TRADUÇÃO E PREFÁCIO LEONARDO FRÓES -EDITORA NOVA FRONTEIRA UM HOiVlE;vr BOl'vl l:~ DIFÍCIL DE ENCON"TRAJ.-l,,. Universidade Estadual da Georgia, Flannery O'Connor viveu com todo o conforto e pôde se envolver com a criação de aves exóticas - entre as quais seus adorados pavões, a cujas deleitosas plumagens, iridescentes e expressionistas pela explosão de cores, as páginas angustiantes deste livro fazem alusões bem frequentes. Leonardo Fróes 10 ÜM HOMEM BOM É DIFÍCIL DE ENCONTRAR A avó não queria ir para a Flórida. Queria visitar uns parentes no leste do Tennessee e aproveitava todas as oportunidades para induzir Bailey a mudar de ideia. Bailey, o filho com o qual ela morava, seu único filho homem, sentado à mesa na beira da cadeira, dobrava-se sobre o alaranjado da página de esportes do Journal. "Olhe só isso aqui, Bailey, olhe só, leia isso aqui", disse ela em pé a seu lado, com uma das mãos no quadril magro e a outra esfregando outra folha de jornal na careca do filho. "Esse tal cara que fugiu da penitenciária federal, o Desajustado, como e~e mesmo se chama, e que foi justamente em direção à Flórida ... Leia só o que diz aqui, veja o que ele fez com as pessoas. Vale a pena você ler. Eu é que não levaria os meus filhos, fosse lá para onde fosse, com um bandido desses assim à solta na área. Não ficaria em paz com a minha consciência." Bailey não olhou para cima, não parou de ler o que lia, e ela então deu uma volta. Foi ficar cara a cara com a mãe das crianças, mulher nova, numa calça folgada, cujo rosto era tão largo e inocente quanto um repolho, estando envolto num lenço verde de cabeça amarrado com duas pontas no alto, como as orelhas de um coelho. Ela, sentada no sofá para alimentar o bebê, dava-lhe geleia de damasco que tirava do vidro. "À Flórida as crianças já foram", disse a velha senhora. "Deveriam levá- -las a algum outro lugar, para variar, para que vejam diferentes partes do mundo e possam ter perspectivas mais amplas.Ao leste do Tennessee elas nunca foram." A mãe das crianças nem pareceu escutar, mas o garoto de oito anos, John Wesley, parrudinho e de óculos, disse: "Se a senhora não quer ir para a Flórida, por que é que não fica em casa?" Ele e a menina, June Star, estavam lendo histórias em quadrinhos no chão. "Em casa? Duvido. Por nada desse mundo ela fica", disse June Star sem levantar a cabeça. "Ah, é? E o que fariam vocês, se esse camarada, o Desajustado, pe- gasse vocês?" DE ENCO>JTR.AR .. quebrava a cara dele" ,John Wesley disse. por um milhão de dólares ela ficava em casa", June Star ''Tem medo de estar perdendo coisas. Tem de ir pra toda parte a gente." bem, mocinha", disse a avó. "Da próxima vez que me pedir cachear seu cabelo, você vai ver uma coisa." Star disse que seu cabelo já era naturalmente cacheado. Na manhã seguinte a avó foi a primeira a entrar no carro, pronta partir. Tinha posto num canto sua enorme malinha preta, que pa- recia uma cabeça de hipopótamo, por baixo da qual ela escondia numa cesta o gato, Pitty Sing. Não quis deixar o gato em casa sozinho, por três dias, porque ele sentiria muito a sua falta e ela tinha medo de que acidentalmente se asfixiasse ao se esfregar num bico de gás. Mas o filho dela, Bailey, não gostava de chegar a um motel com um gato. A avó ia no banco de trás, no meio, com um neto de cada lado, John Wesley e June Star. Bailey e a mãe das crianças com o bebê iam na frente e eles saíram às oito e quarenta e cinco de Atlanta com o painel indicando 89.944 quilômetros rodados.A avó anotou o número por achar que seria interessante saber quantos quilômetros eles teriam feito, quando voltassem para casa. Levaram vinte minutos para atingir a periferia da cidade. A velha senhora se instalou à vontade, tirando as luvas brancas de algodão e pondo-as junto com a bolsa no espaço por trás do banco. A mãe das crianças continuava com a mesma calça folgada, e com o mesmo lenço verde amarrado na cabeça, mas a avó estava usando um de palha azul-marinho, cmn um buquê de violetas brancas na e um vestido tarnbém azul-marinho de bolinhas brancas. A gola organdi branco, com debruns de renda, e um ra- violetas de pano, que era um sachê, estava pendurado um que a visse morta na estrada, em caso de tratar-se de uma senhora distinta. a seu ver, era bom para viajar, nem muito quente e lembrou ::i Bailey que o limite de velocidade hora, e que os guardas rodoviários, es- an1ontoados de árvores, logo saíam em FLANNERY O'CoNNOR disparada atrás, sem nem dar chance de reduzir. E apontou interessantes detalhes dos panoramas: Stone Mountain; o granito azulado que nalguns ~ ~~ aflorava de ambos os lados da rodovia; os barrancos brilhantes, ";ie bar~o vermelho rajado ligeiramente de roxo; e as diversas planta- ções enfileiradas como rendilhados verdes na terra. As árvores estavam cheias de uma luz solar prateada, e até mesmo as mais insignificantes brilhavam. As crianças iam lendo suas histórias em quadrinhos e a mãe tinha voltado a dormir. "Vamos passar pela Geórgia bem rápido para não ter de olhar muita coisa" ,John Wesley disse. "Eu, se eu fosse um menino'', disse a avó, "eu não falaria assim desse jeito do meu estado natal. O Tennessee tem montanhas, a Geórgia tem suas colinas ... " "O Ten'nessee não passa de um lixão, é uma terra de arigós", John Wesley disse, "e a Geórgia também é uma porcaria de estado." "É isso mesmo", disse June Star. "No meu tempo", a avó disse, cruzando os dedos de veias finas, "as crianças tinham mais respeito pela terra natal, pelos pais e por tudo o mais. Procedia-se bem, naquela época. Oh, mas vejam só o pretinho, que graça!", disse e apontou para um menino negro, em pé na porta de um barraco. "Não daria um quadro?", perguntou, e todos se viraram, olhando o menino negro pelo vidro de trás. Ele deu adeus. "Ele estava sem calça", disse June Star. "Talvez nem tenha", a avó explicou. "Os negrinhos da roça não são assim como nós, não têm coisas." E acrescentou: "Ah, se eu soubesse pintar, bem que faria esse quadro!" As crianças trocaram de revista. A avó se ofereceu para segurar o bebê, que a mãe das crianças lhe passou por cima do banco. Tendo-o posto nos joelhos, ela agora o puxava para cima e lhe falava das coisas pelas quais estavam passan- do. Revirava os olhos, fazia bico com a boca, colava a cara magra e dura no rosto, lisinho e fofo, da criança, que de vez em quando lhe dava algum sorriso distante. Passaram por uma grande plantação de algodão com um cercado com cinco ou seis túmulos no meio, como uma ilhota. 13 HOMEM BOM DIFÍCIL DE El"'CO'.'JTRAR ... "Olhem lá o cemitério!", disse a avó, apontando. "O antigo campo- -santo da fanúlia. Pertencia à fazenda." "E onde está a fazenda?" ,John Wesley perguntou. "E o vento levou ... ", disse a avó. "Ha, ha." As crianças, quando acabaram todas as revistas levadas, abriram e comeram seus lanches. A avó comeu um sanduíche de pasta de amen- doim e uma azeitona e não deixou as crianças jogarem pela janela os guardanapos e sacos de papel. Quando não tinham mais o que fazer, brincaram de escolher uma nuvem para os outros adivinharem a forma que ela sugeria.John Wesley escolheu uma nuvem que tinha forma de vaca,June Star falou vaca e ele disse que não, que era carro, ·e June Star disse que John Wesley estava jogando sujo e logo estavam os dois, por cima da avó, aos tapas. A avó disse que contaria uma história se eles ficassem quietos. E ela, quando contava uma história, revirava os olhos e agitava a cabeça e era toda dramática. Contou então que nos seus tempos de moça tinha sido cortejada por um rapaz de Jasper, na Geórgia, chamado Charles Otoline Miles Erlanger Robertson. Um rapaz muito atraente, um cavalheiro, segundo a avó, que todo sábado à tarde, quando a visitava, levava-lhe uma melancia com suas iniciaisgravadas: c.o.M.E.R. Num desses sábados, como ela disse, Robertson chegou com a melancia e não havia ninguém em casa e ele a deixou na varanda e voltou para Jasper na charrete, mas essa melancia ela nunca viu, porque um negrinho a devorou, como ela disse, quando leu as iniciais c.o.M.E.R. A historinha agradou em cheio a John Wesley, que estourou numa gargalhada e se retorcia de rir, mas June Star não achou graça nenhuma. Disse que jamais se casaria com um homem_ que se limitasse a levar-lhe uma melancia no sábado.Já a avó disse que para ela teria sido um.a beleza se casar com Robertson, porque ele era um. hom.en1 nmito distinto e comprou ações da Coca-Cola logo que foram lançadas e só tinha morrido há poucos anos, riquíssimo. Pararam para comer uns sanduíches grelhados num lugar chamado The Tower. Era um misto de salão de festas e posto de gasolina, parte em inadeira, parte em estuque, instalado numa clareira nos arredores de Timothy. O dono era um_ gordo, Red Sammy Butts, e havia placas penduradas ali por toda parte, e por quilômetros na rodovia, dizendo: 14 FLANNERY O'CoNNOR EXPERIMENTE O AFAMADO GRELHADO DE RED SAMMY. NENHUM SE COMPA- RA AO DELE! RED SAM, O GORDINHO DA RISADA FELIZ! UM VETERANO! RED S~)'., O HOMEM CERTO! ~~do no chão, do lado de fora do The Tower, estava o próprio Red Sammy. Tinha a cabeça enfiada embaixo de um caminhão, enquanto um mico cinzento de seus trinta centímetros, amarrado pela corrente a um pé de saboeiro, fazia papagueatas por perto. Bastou ver as crianças saltarem do carro e correrem na sua direção para o mico pular de volta na árvore e subir ao galho mais alto. Por dentro, The Tower era um salão comprido e escuro, com um balcão de um lado, mesas do outro, e um espaço para dançar no meio. Sentaram-se a uma mesa de tábuas, ao lado da vitrola automática, e a mulher de Red Sam, alta, queimada, de cabelo e olhos mais claros do que sua pele morena, veio atendê-los. A mãe das crianças pôs uma moeda na máquina e escolheu "A valsa do Tennessee". A avó disse que sempre sentia vontade de dançar com essa música e perguntou a Bailey se ele dançaria com ela, mas ele apenas a olhou de banda. Não tinha a disposição dela, assim toda animada, e as viagens o deixavam nervoso. Os olhos da avó, olhos castanhos, brilhavam muito. Sentada, ela fazia de conta que dançava, jogando a cabeça, na cadeira, para os dois lados. June Star pediu para tocar uma música que desse para, sapatear e assim a mãe das crianças pôs uma outra moedinha e escolheu algo mais rápido. June Star pulou na pista e, como era de seu hábito, sapateou. "Que gracinha!", disse a mulher de Red Sam, debruçada no balcão. "Você quer vir morar comigo? Quer ser a minha filhinha?" "Nem por sombra" ,June Star disse, "nem por um milhão de dólares eu moraria num lugar tão caído assim!", e voltou correndo para a mesa. "Mas não é mesmo uma gracinha?", repetia a mulher, esticando polidamente os beiços. A avó ralhou: "Não tem vergonha não?" Red Sam entrou e disse à esposa para correr com o pedido dos fregueses, em vez de ficar ali no balcão fazendo hora. Sua calça cáqui vinha arriada até quase as coxas, sob o peso da barriga que despencava como um saco de farinha trepidando por baixo da camisa.Aproximou- -se, sentou-se perto e deixou escapar algo impreciso, combinação de 15 HOfdE,Vl BOAI DIFÍCIL D.E EI\.íCO:--.JTRAR ... suspiro e cantoria. "Não dá pra levar", dizia." Assim não dá pra levar!", e com mn lenço acinzentado enxugava o suor do rosto vermelho. "Hoje em dia não se pode confiar em ninguém", disse depois. "Não é verdade?" "As pessoas certamente não são mais tão gentis corno já foram", disse a avó. "Semana passada", disse Red Sammy, "vieram aqui dois camaradas, num~ Chrysler. Um carro velho, muito rodado, mas bom, e os rapazes me pareciam gente direita. Disseram que trabalhavam no moinho, e não é que eu vendi gasolina fiado para eles? Por que fui fazer isso?" "Porque o senhor é um homem bom", a avó disse. "É, dona, acho que sim~", disse Red Sam, como se ficasse, ele mesmo, espantado com a resposta. Sua mulher chegou com os pedidos, carregando os cinco pratos, sem bandeja, de uma só vez: dois em cada mão e mais um equilibrado no braço. "Não há alma que seja neste mundo de Deus", disse ela," em quem se possa confiar. E eu não excluo ninguém, ninguém mesmo", repetiu, olhando para Red Sammy. "Vocês leram alguma coisa sobre aquele bandido, o Desajustado, que fugiu da cadeia?", a avó perguntou. "Eu não ficaria nem mTl pouco surpresa se agora mesmo ele atacasse esse lugar aqui", disse a mulher. "Se ele souber que nós estamos aqui, e se me aparecer pela frente, não ficarei nada surpresa. Se souber que na caixa registradora tem algum dinheiro, não ficarei nada surpresa se ele ... " "Chega!", Red Sam disse. "Traz logo as Cocas dos fregueses", e a mulher lá se foi a completar o pedido. "Um homem bom é dificil de encontrar", disse Red Sammy. "Tudo está ficando um horror. Lembro do tempo em que se podia sair tran- quilam~ente de casa e deixar a porta aberta. Agora não mais." Ele e a avó se distraíram conversando sobre tempos melhores. A culpada era a Europa, na opinião da velha senhora, se as coisas andavam assim~ agora. Pela atitude da Europa, segundo ela, até se poderia pensar que os americanos eram feitos de dinheiro, e Red Sam disse que nem adiantava falar daquilo, que ela estava coberta de razão.As crianças cor- reram para fora, para a claridade do sol, e foram ver o macaquinho no 16 FLANNERY O'CoNNOR saboeiro rendado. O mico estava entretido, catando pulgas que comia, como guloseimas, com um demorado estalar de dentes. . ~~is, pela ~arde quente, a família prosseguiu em viagem. A avó 1.Íflvaº umas cochiladas e de quando em quando era despertada pelos seus próprios roncos. Nos arredores de Toombsboro, ao acordar de vez, lembrou-se de uma velha fazenda que ela havia visitado por ali, na região, quando moça. Disse que a casa tinha seis colunas brancas na frente, uma fileira de carvalhos conduzindo à entrada e dois pequenos caramanchões de madeira, bem na frente, um de cada lado, onde as moças sentavam-se com os pretendentes, depois de algumas voltas no jardim. A estrada que era preciso pegar para chegar até lá veio-lhe com precisão à memória. Ela sabia que Bailey não concordaria em perder tempo só para ir ver uma casa velha, mas quanto mais falava nisso, mais ela queria r~vê-la, querendo saber se os caramanchões geminados ainda estavam de pé. "Havia nessa casa uma passagem secreta", disse pois com astúcia, sem contar uma verdade, mas desejando que assim fosse, "e di- ziam que a prataria da família foi toda escondida lá, quando Sherman passou por aqui, e nunca pôde ser encontrada ... " "Oba, então vamos lá!", John Wesley disse. "Vamos descobrir essa prata! É só abrir o madeirame, é só ir tirando as tábuas, que a gente acha. Quem mora lá? Onde é que se pega o caminho? Ei, pai, não dá para dobrar por ali?" "Nunca vimos uma casa com~ passagem~ secreta", berrou June Star. "Vamos ver a casa com passagem secreta! Oba! Papai, temos de ir ver a casa com passagem secreta!" "Eu sei que não fica longe daqui", disse a avó. "Nem bem uns vinte minutos." Bailey olhava reto em frente, com o queixo tão rígido quanto uma ferradura. "Não", ele disse. A gritaria das crianças, querendo ver a casa com passagem secre- ta, não fez senão aumentar. John Wesley chutava as costas do banco dianteiro, e June Star se pendurou no ombro da mãe, em cujo ouvido choramíngou desesperada que era sempre assim mesmo, que nem nas férias eles se divertiam, que eles nunca podiam fazer o que ELES 17 BOív! DTFÍClL DE E'.'ICONTRAR ... MESMOS queriam. O bebê já estava berrando. E os chutes de John Wesley no assento se tornavam tão fortes que o pai já sentia os golpes nos nns. "Tá legal!", o pai gritou, e parou o carro no acostamento. "Masvocês querem calar a boca? Querem calar a boca um minuto? Se não se calaren1, não vamos a lugar nenhum!" "Mas seria muito instrutivo para eles", murmurou a avó. "Está bem", Bailey disse, "mas anotem: é a única vez em que nós vamos parar por uma coisa dessas. É a primeira e última vez." "A estrada de terra que você tem de pegar já ficou lá para trás, a uns dois quilômetros", a avó orientou. "Eu a notei quando passamos." "Estrada de terra ... ", resmungou Bailey. Quando já iam, depois de terem feito um retorno, em direção à tal estrada, a avó rememorou outros detalhes da casa, como o belo vitral sobre a entrada e o candelabro do salão.John Wesley disse que a passa- gem secreta provavelmente ficava na lareira. "Não se pode entrar na casa", Bailey disse. "Nem sabemos quem inora lá." "Posso ir por trás, enquanto vocês conversam com as pessoas na frente, e entrar por uma janela" ,John Wesley sugeriu. "Não", disse a inãe, "vamos ficar todos no carro." O carro, sacolejando muito, entrou pela estradinha de barro num turbilhão de poeira cor-de-rosa. A avó se lembrou dos tempos em que não havia estradas asfaltadas e se levava um dia inteiro para andar cinquenta quilômetros. A estradinha era acidentada e íngreme, com inesperadas crateras de atoleiros e curvas muito fechadas em perigosos barrancos. Ora eles estavam bem no alto de um morro, vendo as copas azuladas das árvores que se estendiam lá embaixo, por quilômetros em torno, ora, logo a seguir, já estavam numa depressão de terra vermelha, com árvores empoeiradas por cima. "É melhor esse lugar aparecer logo", Bailey disse, "porque senão eu vou voltar." Dava a impressão de que ninguém, há meses, passava naquela estrada. "Não está muito longe", disse a avó, e justamente quando o disse ela teve urn pensamento horroroso. Um pensamento tão embaraçoso que 18 FLANNERY O'CoNNOR seu rosto corou, seus olhos se dilataram e os pés se mexeram muito no chão, atingindo e deslocando a maletinha no canto. No mesmo instante e~~ valise se moveu, a folha de jornal que ela usava como tampa • ---· w, ' â':a césta· que estava embaixo se levantou com um miado e voou no ombro de Bailey. As crianças foram jogadas no chão. A mãe, agarrada ao bebê, foi jogada porta afora, na estrada. A velha senhora jogada para o banco da frente. O carro deu uma capotada e voltou à posição normal, mas fora da estrada, e numa vala. Bailey permanecia no lugar do motorista com o gato - listrado de cinza, cara branca achatada e focinho cor de laranja - agarrado como lagarta em seu pescoço. As crianças, assim que conseguiram mexer braços e pernas, saíram se espremendo do carro, e gritavam: "Tivemos um ACIDENTE!" Já a avó se encolheu 'sob o painel, com a esperança de estar ferida para que a ira de Bailey não se abatesse implacável sobre ela. O pensamento horroroso que havia tido, pouco antes do acidente, foi que a casa da qual ela se lembrava tão bem não ficava na Geórgia, mas sim no Tennessee. Bailey tirou o gato do pescoço, com ambas as mãos, e o arremessou contra o tronco de um pinheiro, pela janela. Depois, saindo do carro, foi procurar a mãe das crianças. Essa, que estava ao lado da valeta estripada, e ali sentada segurava o bebê aos berros, tinha ela mesma apenas uma fratura no ombro e um corte feio no rosto. "Tivemos um ACIDENTE!", gritavam as crianças numa alegria frenética. "Mas não morreu ninguém", disse, desapontada,June Star, quando a avó desceu mancando do carro com o chapéu ainda preso na cabeça, malgrado a aba desabada na frente, que ela tentava recolocar numa po- sição elegante, e o buquê de violetas caído ao lado. Sentaram-se todos na valeta, menos as crianças, todos tremendo muito, para se refazerem do susto. "Talvez venha um carro por aí", disse a mãe das crianças com a voz embargada. "Acho que algum órgão meu foi afetado", disse a avó, apalpando- -se de um lado do corpo, mas ninguém ligou para ela. Os dentes de Bailey batiam sem parar.Vestido numa camisa esporte amarela, na qual brilhavam, estampadas, umas araras-azuis, ele estava com o rosto da 19 U::v1 HOI\-IE.l\'1 DOM :é DIFÍCIL DE SNCONTRAR ... mesma cor da camisa. A avó achou melhor não dizer que a tal da casa era no Tennessee. A estrada se encontrava cerca de três metros acima, e eles podiam ver apenas, do outro lado, o topo das árvores. Por trás da vala na qual estavam sentados se estendia a mata cerrada, escura e alta. Em poucos minutos avistaram um carro, não muito longe, no cocuruto de um morro, que vinha bem devagar, como se seus ocupantes os observassem. A avó, para lhes chamar a atenção, levantou-se em espalhafatosos acenos, agitando os dois braços. O carro, que continuava a se aproximar lentamente, desapareceu numa curva e ressurgiu adiante ainda mais devagar, já no cume do morro por que eles tinham passado. Era um grande automóvel preto e velho, em péssimo estado, que mais parecia um carro fúnebre. Levava três homens dentro. Parou bem por cima deles e, por alguns minutos, o motorista ficou olhando para baixo, lá para onde eles estavam, de um modo fixo, porém sem expressão, e não disse nada. Depois, virando a cabeça, sussurrou algo aos outros dois, que desceram. Um, o gordo, de calça preta, que usava uma camiseta vermelha adornada no peito por um garanhão prateado, passou por eles e foi plantar-se à direita, do outro lado, de onde concentradamente os olhava, com uma espécie de riso frouxo na boca aberta pelo meio. O outro, de calça cáqui e paletó listrado de azul, com um chapéu cinza tão enterrado na testa que lhe ocultava a maior parte do rosto, lentamente se aproximou pela esquerda. Nenhum dos dois falava nada. O motorista saltou, mas continuou ao lado do carro, de pé, olhando para eles lá embaixo. Era mais velho do que os outros dois homens. Seu cabelo já estava meio grisalho, e os óculos de aros prateados davam-lhe um ar estudioso. Tinha o rosto enrugado e o peito nu, sem camisa nem camiseta. Sua calça blue jeans estava muito apertada e ele empunhava um revólver, tendo na outra mão seu chapéu preto. Os dois rapazes também estavam armados. "Sofremos um ACIDENTE", as crianças gritavam. A avó teve a nítida impressão de que já conhecia aquele homem de óculos. Seu rosto lhe era bem familiar, como se o tivesse conhecido a vida toda, e ela no entanto não conseguia se lembrar quem era. Ele se 20 FLANNERY O'CoNNOR afastou do carro e começou a descer pelo barranco, firmando os pés com atenção, para não escorregar. Usava sapatos de duas cores, marrom ,e~ sem meias, e linha os tornozelos muito vermelhos e finos. '~oa' tarde", ele disse. "Tiveram um probleminha, né?" "Capotamos duas vezes!", disse a avó. "Uma", ele corrigiu. "Nós vimos quando aconteceu. Ligue lá o carro deles, Hiram, pra ver se pega", disse calmamente para o rapaz de chapéu cinza. "Pra que essa arma?", perguntou John Wesley. "Vai fazer o que com essa arma, hem?" "Minha senhora", disse o homem para a mãe das crianças, "man- de essas crianças sentarem-se aí ao seu lado, sim? Crianças me põem nervoso. Quero todos vocês sentados juntos aí, aí mesmo onde estão." "Por que é que você está dando ordens pra gente?", ]une Star perguntou. A mata se abria, por trás deles, como uma boca escura. "Venham pra cá", disse a mãe. "Olha aqui", disse Bailey bruscamente, "nós estamos numa enras- cada! Estamos nu ... " A avó deu um grito. Ficou em pé, encarou o ho~em e disse: "O senhor é o Desajustado! Eu logo vi!" "É, dona, sou sim", disse o homem, com um ligeiro sorriso, como que satisfeito de sua fama, apesar dos pesares, "mas seria muito melhor para todos se a senhora não tivesse me reconhecido." Bailey se virou abruptamente e disse para a sua mãe qualquer coisa que deixou até mesmo as crianças chocadas.A velha senhora começou a chorar, e o Desajustado corou. "Minha senhora", ele disse, "não fique triste. Às vezes um homem dizcoisas sem querer. A intenção dele, penso eu, não era falar assim com a senhora." "O senhor não atiraria em mulher, não é?", disse a avó, tirando do punho do vestido um lencinho limpo para enxugar os olhos. O Desajustado enfiou o bico de seu sapato na terra e fez um bu- raquinho que depois tampou. "Eu detestaria ter de fazer isso", disse. 2I HOJ\IEi\I DO.lvl DIFICIL DE "Escute aqui", disse a avó quase gritando," eu sei que o senhor é um homem bom. Não aparenta nem um pouco ser pessoa comum. Sei que deve ser de boa família!" "Ah, isso sim", disse ele, "da melhor do mundo." Deixava à mostra, quando ria, seus dentes brancos e fortes. ''Deus nunca fez mulher mais perfeita do que a minha mãe, e o coração do meu pai era ouro puro", ele disse. O rapaz de camiseta vermelha deu a volta e, com sua arma apoiada na cintura, ficou en1 pé por trás deles. O Desajustado se aga- chou. "Olho nessas crianças, Bobby Lee", disse ele. "Você sabe que elas n1e deixam nervoso." Olhava para o grupo dos seis amontoados ali na sua frente e parecia confuso, como se não achasse o que di2er. "Nem uma nuvem no céu, não é?", observou, olhando para as alturas. "Não se vê o sol, mas também não se vê nuvem." "Pois é, está um dia lindo!", disse a avó. "Mas ouça", acrescentou," o senhor não deveria se chamar de Desajustado, porque eu sei que é um homem de bom coração. Basta olhar a sua pessoa, que eu logo vejo." "Silêncio!", gritou Bailey. "Boca calada todo mundo! Deixem co- migo que eu resolvo a parada." Ele estava a postos, na posição de um corredor na largada, mas não se moveu. "Obrigado por suas boas palavras, minha senhora", disse o Desajus- tado, traçando com o cabo da arma uma rodinha no chão. "Levaria uma rneia hora para ajeitar esse carro", gritou Hiram, olhando por cima do capô aberto. "Tudo bem, mas primeiro você e o Bobby Lee levem o cara e o garotinho para dar uma andada", disse o Desajustado, apontando Bailey e John Wesley. "Os rapazes querem te perguntar uma coisa", disse ele para Bailey. "Pode dar uma chegadinha ali na mata com eles?" "Escute aqui", começou Bailey, "nós estamos numa enrascada terrí- vel! Será que ninguém percebe?", mas sua voz sumiu, e ele permaneceu completamente parado, com os olhos de um azul tão intenso quanto as araras da camisa que usava. A avó se esticou para ajeitar a beirada do chapéu, como se tivesse de ir para a mata também, mas o chapéu acabou caindo na sua mão. Ela o olhou por algum tempo e depois o deixou cair no chão. Hiram puxou Bailey pelo braço, con10 se estivesse ajudando a um velho.John Wesley 22 FLANNERY O'CoNNOR se agarrou na mão do pai, e Bobby Lee os seguiu. Foram lá para a mata, e quando estavam chegando à orla escura Bailey se virou e, apoiado no ~nu e acinzentado de um pinheiro, gritou: "Eu volto logo, -~., .. m:~ãil:, rrie espere aí!" "Volte já! Agora mesmo!", gritou a mãe, mas todos tinham desapa- recido na mata. "Bailey, meu filho!", chamou a avó numa voz trágica, mas deu-se conta de que tinha pela frente, agachado no chão, o Desajustado, para o qual aliás estava olhando. "Sei que o senhor é um homem bom", disse, desesperada. "Não é uma pessoa qualquer!" "Não, dona, não sou bom não", o Desajustado disse um segundo de- pois, como se houvesse refletido sobre o que ela tinha dito, "mas também não sou o pior do mundo. Meu pai dizia que eu era de outra raça, diferente dos meus irmãbs e irmãs. Dizia que há pessoas capazes de passar a vida toda sem perguntar por quê, mas que outras têm de saber o porquê das coisas, e que eu era desse tipo e ia me meter em tudo." Pôs o chapéu preto, olhou bruscamente para cima e logo desviou o olhar lá para a mata, como se es- tivesse novamente sem jeito. "Desculpem eu estar sem camisa assim diante das senhoras", disse, encolhendo ligeiramente os ombros. "Nós enterramos nossas roupas depois da fuga, e temos nos safado com ess~s até achar coisa melhor. Essas nós pegamos com um pessoal que encontramos", explicou. "Mas então está tudo bem", disse a avó. "Bailey deve ter uma camisa extra na mala." "Ah, eu vou dar uma olhada", disse o Desajustado, "Para onde estão levando eles?", berrou a mãe das crianças. "O meu velho era um colosso, Ninguém passava a perna nele. Nunca se meteu numa encrenca, sabia como lidar com autoridades." "O senhor também, se quisesse tentar, poderia ser honesto", disse a avó. "Já pensou que maravilha seria fixar-se numa vida tranquila, sem ter de pensar se há alguém a persegui-lo o tempo todo?" O Desajustado pareceu refletir. Continuava rabiscando no chão, com o cabo da arma, e disse: "Tem sempre alguém atrás da gente." A avó pôde notar que os ombros dele eram estreitos demais, logo abaixo do chapéu, porque, estando em pé, ela o via de cima. "Costuma rezar?", perguntou, 23 BOM D[FICJL DE E:-JC:ONTRAR ... Ele meneou a cabeça. Ela só viu o chapéu preto balançando em seus ombros. E ele disse: "Não." A um tiro de pistola na mata seguiu-se logo mais um. Depois, silên- cio. A cabeça da avó rodopiou. Ela ouviu o vento passando pelo alto das árvores como um.a tomada de ar longa e satisfatória. "Bailey, meu filhol", gritou. "Por uns tempos, fui cantor gospel", disse o Desajustado. "Já fiz um pouco de tudo. Fiz meu serviço militar, em terra e no mar, no país e lá fora,já me casei duas vezes,já fui agente funerário,já fui ferroviário e já lavrei a mãe terra, estive en1 um tornado, certa vez vi um homem queimado vivo ... " e olhou para a rnãe das crianças e a garota, que es- tavam sentadas bem juntinhas, com o rosto pálido e os olhares vidrados. "Vi até uma mulher ser chicoteada", acrescentou. "Reze", interveio a avó. "Reze ... " "Não me lembro de ter sido um mau menino", o Desajustado disse, numa voz como que em devaneio, "mas o fato é que lá pelas tantas fiz al- guma coisa de errado e fui para a cadeia. Enterrado vivo, na penitenciária", e olhou para cima, prendendo-lhe a atenção com um olhar persistente. "Era então que devia ter começado a rezar", ela disse. "O que foi que fez para ser mandado para a penitenciária dessa primeira vez?" "Do lado direito uma parede", disse o Desajustado, "do lado es- querdo outra. Se eu me virasse para cima, via o teto; para baixo, o chão. Esqueci o que eu fiz, minha senhora. Sentava lá e ficava tentando lembrar o que eu tinha feito e até hoje não lembro. De vez em quando parecia que ia vir, que eu ia me lembrar, mas não vinha." "Talvez o tenham prendido por engano", disse vagamente a velha senhora. "Não", ele disse. "Não houve erro. Sabiam tudo a meu respeito." "Teria roubado alguma coisa, por acaso?", ela disse. O Desajustado, zombando um pouco, riu. "Ninguém tinha nada que eu quisesse", disse. "Um. médico lá da penitenciária, um médico de cabeça, sabe, cismou que eu mesmo tinha matado meu pai. Inven- ção dele, é claro. Meu pai morreu na epidemia de gripe de 1919, e eu nunca tive nada com isso. Foi enterrado no cemitério da igreja batista de Mount Hopewell. Se quiser, pode ir lá ver." 24 FLANNERY O'CoNNOR "Jesus lhe ajudaria", disse a velha senhora, "se o senhor rezasse." "Isso é verdade", disse o Desajustado. , ~então por que não reza?", perguntou ela, trêmula, num re- pootiho deleite. "Não quero ajuda", disse ele. Tenho me dado bem sozinho." Bobby Lee e Hiram voltaram da mata a passos lentos. O primeiro arrastando uma camisa amarela com araras-azuis muito brilhantes. "Jogue essa camisa pra mim", disse o Desajustado. E a camisa veio voando, pousou em seu ombro e ele a vestiu.A avó não conseguia saber o que é que a camisa lhe trazia à lembrança. "Não, dona", disse o De- sajustado, enquanto a abotoava," eu descobri que o crime não importa. Você pode fazer isso ou aquilo, matar um homem ou roubar um pneu do carro dele, porque mais cedo ou mais tarde você se esquecerá do que fez e seri punido justamente por isso." A mãe das crianças começou a dar uns gemidos,como se não pu- desse respirar muito bem. "Dona", ele pediu, "pode dar uma chegada com Bobby Lee e Hiram até ali, com a garotinha, para juntar-se ao seu marido?" "Sim, obrigada", disse, enfraquecida, a mulher. Seu braço esquerdo pendia bambo, e com o outro ela amparava o bebê, que agora estava dormindo. "Ajude a moça, Hiram", disse o Desajustado, quando ela já se esforçava para sair da valeta, "enquanto o Bobby Lee pega a garota pela mão." "Não quero que ele me pegue pela mão'', disse June Star. "Parece um porco." O gordo corou e riu e a pegou pelo braço e foi levando para a mata atrás de Hiram e da mãe. Sozinha com o Desajustado, a avó constatou ter perdido a voz. Não havia uma só nuvem, nem sol, no céu. Nada em torno dela, a não ser a mata. Ela queria dizer que ele devia rezar. Abriu e fechou diversas vezes a boca, mas a frase não saía. Finalmente deu consigo dizendo: 'Jesus, Jesus", querendo dizer Jesus vai lhe ajudar, embora mais parecesse estar xingando, pelo modo como falou. "É, dona", disse o Desajustado, como se concordasse. "Jesus desequi- librou as coisas. O mesmo caso, o dele e o meu, só que ele não praticou 25 HOMEiVl BOM DJFÍC[L DE ENCONTRAR ... nenhum crime, e o meu eles puderam provar, porque tinham tudo anotado na minha ficha. É claro", disse ele, "que nunca me mostraram a ficha. Por isso agora assino tudo. Há muito que eu digo, o negócio é caprichar na assinatura, assinar tudo que fizer e guardar cópia.Você assim poderá saber o que fez, podendo comparar o crime ao castigo, para ver se correspondem, e por fim terá alguma coisa para provar, se não for tratado direito. Se eu rne chamo Desajustado", disse ele, "é porque não faço esse ajuste, não consigo encaixar as coisas para que tudo que eu fiz de errado corresponda a tudo que sofri de castigo." Veio da mata UlTl grito lancinante, logo seguido por um tiro de pistola. "A senhora acha justo que um receba punição rigorosa e outro nem sequer seja punido?" "Jesus!", gritou a velha. "O senhor tem sangue bom. Tenho certeza de que não atiraria numa mulher. Sei que vem de boa família ... Jesus, reze! Numa senhora o senhor não deve atirar. Eu lhe dou todo o di- nheiro que eu tenho!" "Minha senhora", disse o Desajustado, olhando bem além dela, para a mata, "cadáver não dá gorjeta para quem faz o serviço." Houve mais dois tiros de pistola e a avó ergueu a cabeça, como uma perua sedenta pedindo água para se refrescar, e gritou: "Bailey, meu filho! Bailey, meu filho!'', como se o seu coração fosse explodir. "Jesus foi o único a ressuscitar os mortos'', prosseguiu o Desajustado, "e ele não devia ter feito isso. Desequilibrou tudo. Se ele fazia o que dizia, não temos outra coisa a fazer a não ser renunciar a tudo e segui-lo. Mas, se não fazia, então o que nos cabe é desfrutar dos poucos minutos que nos restarn da n1elhor maneira possível - matando alguém ou queimando a casa de alguém ou lhe fazendo alguma outra maldade. Sem maldade não há prazer", disse ele, e sua voz era quase um rosnado. "Vai ver que ele não ressuscitou os mortos", 1Tlurmurou a velha senhora,já sem saber o que dizia e se sentindo tão tonta que arriou na vala, à medida que suas pernas foran1 se retorcendo. "Se fez ou não fez, não sei, porque eu não estava lá", disse o Desa- justado. "E bem que eu gostaria de ter estado", acrescentou, dando um soco no chão. "Não é justo ser assin1, porque, se eu tivesse estado lá, eu saberia. Sabe de uma coisa, niadame", disse em voz alta: "Se eu tivesse 26 FtANNERY O'CoNNOR estado lá, eu saberia, e não seria como sou agora." Sua voz parecia a ponto de rachar, e a cabeça da avó clareou por um instante. Ela viu o ro.st~mem contorcendo-se próximo ao dela, como se ele fosse eh~ bálbuciou:"Mas você é uma das minhas crianças, um dos meus filhinhos!'', esticando o braço para tocá-lo no ombro. O Desajustado deu um pulo para trás, como se uma cobra o picasse, e atirou três vezes nela, todas no peito. Depois botou a arma no chão, tirou os óculos e começou a limpá-los. Hiram e Bobby Lee voltaram da mata e pararam na beirada da vala, de onde olhavam para a avó lá embaixo, meio sentada, meio deitada numa poça de sangue, com as pernas cruzadas sob o corpo, como pernas de criança, e o rosto rindo para o alto, para o céu sem nuvens. Os olhos do Desajustado, sem os óculos, eram lívidos, orlados de vermelho e indefesos. "Levem ela daqui e joguem lá onde jogaram os outros", disse ele, apanhando o gato, que se esfregava em sua perna. "Ela falava demais, né?", disse em voz cantante Bobby Lee, ao es- corregar vala adentro. "Seria até boa mulher", o Desajustado disse, "se a cada instante de sua vida houvesse alguém nas cercanias para lhe dar um tiro." "Teria sido gozado!", disse Bobby Lee. "Cala essa boca, Bobby Lee! ", disse o Desajustado. "É, na vida não há prazer verdadeiro." GENTE BOA DA ROÇA Além da expressão neutra, em ponto morto, que assumia quando estava sozinha, Mrs. Freeman tinha outras duas, para a frente e em marcha a ré, das quais sempre se servia nas suas relações com os outros.A expressão para a frente era firme e impetuosa como o avanço de um caminhão pesado. Seus olhos, sem nunca se desviarem para a direita ou para a esquerda, curvavam-se apenas às voltas do relato, como se seguissem uma faixa amarela para chegar-lhe ao centro. Raramente ela usava a outra expressão, porque nem sempre julgava necessário retratar-se numa afirmativa. Mas, quando o fazia, com o rosto enfim estacionado, havia em seus olhos negros um movimento quase imperceptível, durante o qual eles pareciam retroceder, e o observador veria então que Mrs. Freeman, embora estando ali presente, tão real quanto vários sacos de cereais empilhados, ali já não se achava em espírito. Mrs. Hopewell há muito desistira de tentar convencê-la do que quer que fosse, toda vez que isso ocorria. Por mais que falasse, era totalmente incapaz de levar Mrs. Freeman a admitir-se errada sobre qualquer questão. Se acaso conseguisse lhe arrancar uma frase, com ela plantada à sua frente, seria algo mais ou menos assim: "Bem, eu não digo que foi nem que não foi." Ou Mrs. Freeman poderia dizer, correndo os olhos pela prateleira mais alta da cozinha, onde havia um completo sortimento de vidros empoeirados: "Parece que a senhora não comeu quase nada da compota de figos que fez no verão passado." Era na cozinha, na hora do café da manhã, que elas tratavam de seus assuntos mais importantes. Mrs. Hopewell se levantava às sete horas, todos os dias, e ia acender seu aquecedor a gás e o de Allegra. Loura e corpulenta, mas com uma perna de pau, a moça era sua filha. Mrs. Hopewell a considerava uma criança ainda, embora ela estivesse com trinta e dois anos e fosse muito instruída. Levantando-se em geral en- quanto a mãe estava à mesa, Allegra se arrastava até o banheiro e batia a porta com força, pouco antes de Mrs. Freeman chegar à porta dos fundos. De lá, Allegra ouvia sua mãe dizer "Pode entrar", mas a rápida LTI\,I 1-IOIVlEiVl DOI\.l DIFÍCIL DE E~CO~TRAR .. conversa em voz baixa que as duas então travavam era indistinguível no banheiro. Quando Allegra aparecia, normalmente elas já haviam terminado as previsões do tempo e falavam de uma das filhas de Mrs. Freeman, Glynese ou Carramae, que Allegra só chamava de Glicerina e Caramela.A primeira, ruiva, tinha dezoito anos e muitos admiradores; a seaunda loura tinha s01nente quinze, mas J. á estava casada e grávida. b ' , Como não conseguia reter nada no estômago, todas as manhãs Mrs. Freeman comunicava a Mrs. Hopewell quantas vezes ela havia vomitado de novo desde o último informe. Mrs. Hopewell dizia de bom grado aos outros que Glynese e Car- ramae eram duas das melhores moças que já conhecera, que Mrs. Freeman era uma dama e que ela jamais se envergonhava de levá-la em sua companhia aonde quer que fosse ou de apresentá-la a qualquerum que por acaso encontrassem. Contaria então de que maneira lhe·~ ocorrera contratar aquela família, como os Free1nans eram para ela uma dádiva do céu e como os tinha consigo há quatro anos. A razão para:~ mantê-los assim por tanto tempo era que, embora fossem pobres, não~ pertenciam à ralé, eram gente boa da roça. Quando ela telefonou para• o homem. cujo norn.e lhe deram como referência, ele disse que Mr. Freeman era um bom lavrador, mas ressalvou que a esposa dele era a mulher mais enxerida que já havia aparecido sobre a face da Terra. "Ela se mete em tudo", disse o homem." Se não entrar em cena antes de a poeira baixar, pode apostar que já está morta.Vai querer saber dos seus negócios todos. Com ele não há problema", o homem tinha insistido, "1nas nem eu nem minha esposa aguentaríamos aquela mulher mais um minuto aqui." E foi isso que fez Mrs. Hopewell adiar sua decisão por uns dias. Afinal ela só os contratara por não haver outros interessados na vaga, porérn sabendo de anternão como iria exatamente lidar com a tal mulher. Já que ela era do tipo que se intrometia em tudo, Mrs. Ho- pewell decidiu que não só lhe permitiria intrometer-se mesmo, como também. tomaria providências para deixá-la bem por dentro - torná-la- -ia responsável por tudo, instalando-a no comando. Se não dispunha de más qualidades próprias, Mrs. Hopewell tinha porém habilidade bastante para se valer das alheias de urn modo tão construtivo que 150 FLANNERY O'CoNNOR nunca sentia essa carência. Contratara pois os Freemans, conservando- -os por quatro anos. ~ ~a é perfeito. Esse era um dos ditos favoritos de Mrs. Hopewell, 'i}uê a frês por dois também dizia: assim é a vida. A mais importante de suas frases era contudo esta: cada um tem o seu modo de ver. Era em geral à mesa que faria tais declarações, num tom de delicada insistên- cia, como se somente ela mesma as sustentasse, e a gordota e pesadona Allegra, cuja constante afronta já lhe apagara do rosto toda e qualquer expressão, apenas dirigiria os olhos azuis e gélidos para um ponto in- certo ao seu lado, com a aparência de alguém que por ato de vontade própria conquistasse a cegueira e se aferrasse a mantê-la. Quando Mrs. Hopewell garantia a Mrs. Freeman que a vida era as- sim, a empregada dizia: "Eu sempre me digo isso." Ninguém chegava a nada a que 'ela própria não tivesse chegado antes, sendo, como era, mais rápida de cabeça do que seu marido. No dia em que Mrs. Hopewell piscou um olho e lhe disse, depois de eles já trabalharem para ela há al- gum tempo:"É você que faz a roda girar",Mrs. Freeman replicou:"Ah, eu sei. Fui sempre rápida sim, e alguns são mais espertos que os outros." "Cada um é de um jeito'', disse Mrs. Hopewell. "É, a maioria é mesmo", Mrs. Freeman disse. "Tem de ter gente de todo tipo no mundo." "Eu sempre me digo isso." A moça já se acostumara aos diálogos dessa espécie no café da manhã, a seus prolongamentos no almoço e às vezes também até no próprio jantar. Se não houvesse visitas, elas faziam suas refeições na cozinha, porque era mais prático. Mrs. Freeman sempre dava um jeito de chegar quando ainda estavam à mesa para esperar que acabassem. Ou bem se plantava à porta, no verão, ou bem, se fosse inverno, punha-se em pé com um cotovelo apoiado em cima da geladeira para dali observá- -las, quando não ia ficar perto do aquecedor a gás, onde suspendia um pouquinho sua saia por trás. Vez por outra se encostava à parede e meneava seguidamente a cabeça. Para retirar-se, nunca, em nenhuma circunstância, ela se apressava. Tudo isso era muito desagradável para Mrs. Hopewell, mulher no entanto de suma paciência, capaz de com- preender que nada é perfeito e que tinha os Freemans em conta de 151 LT;\{ !-IOiV!EM BOM DIFÍCIL DE E>JCONTRAR .. gente boa da roça, gente da qual, àquela altura da vida, era melhor não abrir mão quando se conseguia. Com gente da arraia-miúda, já havia tido experiências de sobra, pois dera emprego a uma familia de ajudantes por ano, em média, antes de estar com os Freemans. As mulheres desses lavradores não eram do tipo de pessoa que se queria ter por muito tempo por perto. E Mrs. Hopewell, divorciada do marido há bastante tempo, necessitava de al- guém que lhe fizesse companhia ao percorrer sua propriedade; quando instava comAllegra para se incumbir da missão, as observações da moça eram geralmente tão mal-humoradas, e as caras que ela fazia tão feias, que Mrs. Hopewell não hesitava em dizer: "Se você lião consegue vir com prazer, é melhor nem vir comigo", ao que Allegra retrucava, aprumando-se angulosa, de pescoço espichado e os ombros rígidos:"Se a senhora me quiser, aqui estou - con10 eu sou." Mrs. Hopewell desculpava a atitude devido à perna da filha (atingida por um tiro, num acidente de caça, quando Allegra tinha dez anos). Para ela não era nada fácil compreender que a menina estava agora com trin-.- ta e dois anos e há m.ais de vinte tinha uma perna apenas. Considerava-a"" ainda uma criança por sentir seu coração dilacerar-se ao pensar que a pobre moça, cheia de viço e já com aquela idade, nunca sequer dera um só passo de dança ou tivera bons momentos de maneira normal. O nome dela, de fato, era Allegra mesmo. Porém, assim que saiu de casa, ao completar vinte e um anos, ela o mudou legalmente. Mrs. Hopewell estava certa de que pensara e repensara muito até chegar ao nome mais horroroso existente em qualquer língua. Bastou-lhe estar fora de casa para trocar um nome tão bonito como Allegra, sem nada dizer à mãe senão depois de o ter feito. Para efeitos legais, seu nome agora era I--Iulga. Quando Mrs. Hopewell pensava nesse nome, Hulga, o que lhe vi- nha à cabeça era o casco largo e cor de pulga de um navio de guerra. Recusava-se a usá-lo. Continuava a chamar a filha de Allegra, mas a moça só respondia de um modo totalmente automático. Hulga se habituara a suportar Mrs. Freeman, que a poupava de fazer caminhadas com sua mãe. Até mesmo Glynese e Carramae lhe eram úteis, por ocuparem a atenção que em circunstâncias diversas se concentraria só nela. De início tinha pensado que não aguentaria Mrs. 152 FLANNERY O'CoNNOR Freeman, por constatar que era impossível ser grosseira com ela. Mrs. Freeman era dada aos mais inesperados ressentimentos, ficando então , ~~ada por ~ários dias seguidos, mas a fonte de suas contrariedades ~.sempre se mantmha obscura. Jamais ela seria atingida por um ataque direto, um explícito olhar de banda ou um desaforo na cara. Um belo dia, tinha passado a chamá-la de Hulga - sem nenhum aviso prévio. Não a chamava assim na frente de Mrs. Hopewell, que se exaspe- raria com isso. Mas quando ela e a moça, por acaso, se encontravam fora de casa, ao dizer-lhe qualquer coisa acrescentava o nome Hulga ao final de cada frase, e Allegra-Hulga, por trás de seus grandes óculos, franzia o cenho e corava como se tivesse tido sua privacidade invadida. O novo nome era considerado por ela uma questão pessoal. Chegara a ele, a princípio, apenas levando em conta a fealdade do som, mas depois veio a notar todo o espírito de sua adequação. Tinha tido a inspiração desse nome ao trabalhar como o feio e suarento Vulcano, que se man- tinha à forja e que supostamente a Deusa iria visitar quando invocada, tomando-o mesmo pelo nome de seu ato criador mais excelso. Um de seus grandes triunfos era o fato de sua mãe não ter sido capaz de transformar seu próprio pó em Allegra, se bem que o maior de todos fosse ela mesma ter podido transformá-lo em Hulga. O modo como Mrs. Freeman se deleitava ao empregar o nome só lhe causava entre- tanto irritação. Era como se os olhinhos redondos e acerados da caseira penetrassem muito a fundo em seu corpo, varando-a bem além do rosto para atingir algum secreto fato.Algo nela parecia fascinar Mrs. Freeman, e Hulga então se deu conta, certo dia, de que era a perna artificial. Mrs. Freemantinha particular atração pelos detalhes das infecções misterio- sas, das deformidades veladas, dos estupros de crianças. Entre as doenças, preferia as incuráveis ou crônicas. Hulga entreouviu sua mãe contar- -lhe o acidente de caça em pormenores, dizendo-lhe que a perna fora literalmente esfacelada e que ela não perdera os sentidos. A qualquer hora Mrs. Freeman se dispunha a escutar tudo de novo, como se aquilo tivesse acontecido uma hora atrás. Quando entrava de manhã na cozinha, pisando duro (era capaz de andar sem tanto estrépito, mas ela fazia assim de propósito - Mrs. Hopewell estava certa - porque o barulho era bem desagradável), 153 UM HO.LVJEM DOIVl É DIFÍC1L DE ENCONTRAR., Hulga olhava de raspão para as duas e não dizia palavra. Mrs. Hopewell estaria com seu quimono vermelho e o cabelo preso por algum len- ço em farrapos. Mantinha-se ainda à mesa, já no final da refeição, e à mesa era vista por Mrs. Freeman, mantida pelo cotovelo e atenta junto à geladeira. Hulga sern.pre punha dois ovos para cozinhar, pondo-se por sobre eles, de braços cruzados diante do fogão, e Mrs. Hopewell a observava - com uma espécie de olhar indireto, dividido entre a filha e a empregada -, pensando que ela até que não seria tão feia, se pelo rnenos se cuidasse um pouco. Nada havia de tão errado em seu rosto que uma expressão rn.ais amena não ajudasse a melhorar. Mrs. Hopewell costumava dizer que quem via as coisas pelo lado bom ·sempre ficava mais bonito, mesm.o que não o fosse. Toda vez que ela considerava Allegra por esse ponto de vista, não podia senão ser induzida a crer que se a menina não tivesse se douto-=- rado teria sido melhor. O título, por certo, não lhe deu relevo algu~'· e agora que o possuía ela não tinha mais desculpas para voltar à escola: Mrs. Hopewell achava bom que moças fossem para a faculdade par~ viver bons momentos, mas Allegra havia "sofrido muito". De qualquer' modo, nem mais forças teria para enfrentar aquilo outra vez. Só cercada de cuidados, pelo que os médicos lhe tinham dito, sua filha poderia viver até os quarenta e cinco anos. Fraca de coração como era,Allegra já deixara bem claro que a essa altura estaria longe, se não fosse esse problerna, da gente boa da roça e seus morrinhas vermelhos. Estaria numa universidade, dando aulas a pessoas capazes de entender do que ela estava falando. Quando a imaginava por lá, o que se achava a seu alcance, Mrs. Hopewell a veria tão só como um espantalho ensinando a outros de igual feitio. Em casa, Allegra passava o dia todo com a mesma saia batida, que já tinha há seis anos, e uma camiseta amarela cuja estampa desbotada era um caubói a cavalo. Ela achava aquela roupa engraçada; Mrs. Hopewell, tomando-a por patetice, tomava-a por mero indício do infantilismo da filha, que era uma pessoa brilhante, mas sem um pingo de bom senso. A impressãó de Mrs. Hopewell era que de ano para ano ela ficava mais diferente dos outros e mais igual a si mesma - balofa e grosseira e vesga. Além do m.ais, dizia coisas tão estranhas! À própria mãe havia dito - sem pretexto nem preparo, de boca cheia e rosto 154 FLANNERY O'CoNNOR afogueado: "Já olhou bem em seu íntimo, já? Meu Deus! Quando é que vai olhar para dentro, mulher, e ver o que você não é?" Dissera isso , ~~tos e, afundando na cadeira de novo e fixando o olhar em seu ":pra:to, acrescentara: "Malebranche estava certo: não somos nós a nossa luz, não somos não." Até hoje Mrs. Hopewell não sabia o que a levara à explosão, pois apenas observara, na esperança de que Allegra a apoiasse, que um sorriso não fazia mal a ninguém. A menina doutorou-se em filosofia e isso deixara Mrs. Hopewell no mais completo embaraço. Qualquer um bem que podia dizer "Minha filha é enfermeira", ou "Minha filha é professora do ensino básico", ou até mesmo "Minha filha é engenheira química". Mas quem diria "Mi- nha filha é filósofa", se isso era coisa morta e acabada desde os romanos e os gregos? Allegra passava os dias lendo, afundada numa poltrona. De vez em quando ela saía para dar uma volta, mas não gostava de cachorros, gatos, passarinhos, flores, nem da natureza nem de rapazes bonitos. Nos rapazes bonitos, se os olhasse farejava tão só a ignorância que tinham. Um dia Mrs. Hopewell pegou um dos livros que a menina acabara de largar e, abrindo-o casualmente, leu: À ciência, por outro lado, cabe de novo sustentar sua sçriedade e sobriedade, afirmando que é somente o que existe que lhe concerne. Que pode ser para a ciência o nada - senão algo que horripila e um fantasma? Se a ciência estiver certa, há uma coisa que então se consolida: conhecer o nada do nada é o que a ciência pretende. Essa é afinal a abordagem estritamente cientifica do nada. Nós a conhecemos ao pretender conhecer o nada do nada. O trecho, que havia sido sublinhado a lápis azul, surtiu o mesmo efeito do palavrório de um bruxedo maligno sobre Mrs. Hopewell, que fechou rapidamente o livro e saiu do quarto como se estivesse sentindo um calafrio. Nessa manhã, quando a menina chegou, Mrs. Freeman falava sobre Carramae. "Depois do jantar ela vomitou quatro vezes'', informou, "e de noite se levantou duas vezes depois das três da manhã. Ontem não fez nada de nada, a não ser remexer no armário procurando comida. Só ficou por ali, vendo o que era que podia apanhar." 155 LrM HC.L\lEi'ví BOM DIFÍCIL DE E;-.;coNTRAR ... "Ela tem de comer bem", murmurou Mrs. Hopewell, que tomava seu café enquanto olhava para as costas de Allegra ao fogão. Perguntan- do-se o que teria dito sua filha ao vendedor de Bíblias, não conseguia imaginar que tipo de conversa ela poderia ter mantido com ele. Ele era um rapaz magro e alto que não usava chapéu e batera à porta na véspera para lhes vender uma Bíblia.A malona preta que trazia parecia estar tão pesada e o fazia arriar tanto de um lado que ele teve de se apoiar no portal para aprumar-se. Malgrado a impressão que dava, de estar prestes a despencar ali mesmo, disse em tom jovial: "Bom dia, Mrs. Cedars! ", e logo em cima do capacho deixou a mala ficar. Não era de todo feio, embora seu terno azul fosse brilhante· demais e suas meias amarelas estivessem bem desbeiçadas. Tinha os ossos do rosto em acentuado relevo e um cacho gosmento de cabelo castanho a lhe cair pela testa. "Eu me chamo Hopewell", ela disse. "'· "Oh!", disse de, afetando estar confuso, mas com um brilho intensO' ~ nos olhos. "Como eu vi 'The Cedars' escrito na caixa de correio, pens~ que fosse o seu nome", e em risos se deleitou. Pegou então a malona e'7 sob o disfarce de uns arquejas, foi penetrando aos arrancas pela entrada da casa, como se o peso que levava se deslocasse primeiro e o arrastasse a reboque. "Mrs. Hopewell!", ele disse, e agarrou-lhe a mão. "Que belo nome! Quer dizer boa esperança, não é?", e riu de novo, até seu rosto assumir bruscamente uma feição muito sóbria. Fez uma pausa e depois disse, lançando-lhe um olhar compenetrado e reto: "Minha senhora, vim lhe falar de coisas sérias." "Pois bem, entre", ela murmurou meio contrariada, porque o almo- ço já estava quase pronto. O rapaz, chegando à sala de visitas, sentou-se na beirada de uma cadeira de espaldar, pôs a mala entre os pés e deu umas olhadas em volta, como se pelas condições do ambiente ele ava- liasse a freguesa. Nos dois aparadores suas pratarias brilhavam; e ela pôde concluir que ele nunca havia estado numa sala tão chique. "Mrs. Hopewell'', começou ele, pronunciando seu nome de modo a denotar certa intimidade, "sei que a senhora acredita no trabalho cristão." "Sim, sim", ela sussurrou. FLANNERY O'CoNNOR "Sei que a senhora", ele disse, e interrompeu-se, com a cabeça posta um pouco de lado e ar de estar bem-informado, "é uma boa pessoa. A~s já me disseram." ·.~~·cc' .:.,.. 'Mrs. Hopewell não gostava de ser feita de boba. "O que é que está vendendo?'', ela perguntou. "Bíblias",disse o rapaz, que percorreu com os olhos todo o espaço ao redor e só depois disse ainda: "Pelo que vejo, a senhora não tem em sua sala uma Bíblia para famílias; é o que está faltando aqui." Como Mrs. Hopewell não podia dizer: "Minha filha, que não crê em Deus, não me deixaria ter uma Bíblia na sala", ela se enrijeceu um pouco e disse: "Minha Bíblia fica na minha cabeceira." Mas não era verdade: o livro andava lá pelo sótão. "É na ~ala", disse ele," que a palavra de Deus deve ficar." "Isso pra mim é uma questão de gosto", ela foi dizendo. "A meu ver. .. " Ele porém a interrompeu: "Para um cristão, a palavra de Deus, que ele já traz no coração, deve também estar em todos os cômodos da casa. E eu sei que a senhora é uma boa cristã, porque está escrito em seu rosto." Ela se levantou e disse: "Não me leve a mal, mas não quero com- prar a sua Bíblia; e o meu almoço, pelo cheiro que' sinto, já deve estar queimando no fogo." Ele continuou sentado. Passou a esfregar as mãos, das quais não tirava os olhos, e disse tranquilamente: "Pouca gente hoje, pra falar a verdade, quer comprar uma Bíblia - e além do mais, minha senhora, sei que eu sou muito humilde, que sou um rapaz da roça. Nem as coisas que tenho de dizer eu sei falar muito bem." A essa altura ergueu os olhos e, num relance, fitou-lhe a face inamistosa. "Pessoas assim como a senhora não podem mesmo perder tempo com uns roceiros que nem eu!" "Nada disso!", ela exclamou. "A gente boa da roça é o sal da terra! Além do mais, cada um de nós age a seu modo e, para que tudo fun- cione, tem de ter gente de todo tipo no mundo. Assim é a vida!" "A senhora disse uma grande verdade", ele apoiou. E ela animou-se toda: "Aliás eu acho que o que está faltando no mundo é mais gente boa da roça. Por isso é que ele anda tão mal!" 157 O rosto do rapaz se acendeu. eu que nem me apresentei", ele dis- se. "Eu me chamo Manley Pointer, e venho lá de um fim de mundo, de um lugar que ninguém sabe que existe, mas fica perto de Willohobie." "Espere um pouco", ela disse. "Tenho de ir dar uma olhadinha no almoço." Quando entrou na cozinha, encontrou Allegra em pé perto da porta, de onde ela escutava a conversa. "Livre-se do sal da terra", disse a filha," e vamos comer." Mrs. Hopewell, dando-lhe um olhar de desgosto, foi abaixar o fogo dos legumes. "Eu não sei ser grosseira com ninguém", disse em voz baixa, e voltou para a sala. O rapaz tinha aberto a mala e estava com duas Bíblias no colo. "Pode guardar seus livros", ela disse. "Eu não quero mesmo não." "Obrigado pela sinceridade", disse ele. "Já não se vê mais ninguém·~ que seja realmente sincero, a não ser aqui no interior." "É, eu sei", ela disse, "por aqui ainda há gente autêntica." Pela fresta da porta, um suspiro impaciente lhe chegou aos ouvidos. ~ "Muitos rapazes devem vir procurá-la dizendo que trabalham para""' pagar seus estudos", disse ele, "mas não vou dar essa desculpa à senhora. Aliás, eu nem pretendo estudar. Quero dedicar minha vida ao trabalho cristão. É que eu, sabe ... ", e nesse ponto ele abaixou o tom de voz, " ... tenho um problema de coração. Parece que não vou viver muito. Quando a pessoa sabe que tem saúde fraca e talvez não dure tanto, bem, aí, nesse caso ... "Fez uma pausa e, de boca aberta, ficou olhando para ela. Ele e Allegra então tinham o mesmo problema! Percebendo que seus olhos se enchiam de lágrimas, ela porém se controlou rapidamente e sussurrou: "Não quer ficar para almoçar? Para nós seria um grande prazer!", e arrependeu-se tão logo se ouviu dizendo isso. "Sim senhora", disse ele meio encabulado. "O prazer é todo meu!" Allegra lhe deu uma espiada, ao lhe ser apresentada, mas ao longo de toda a refeição não voltou a olhar para o rapaz, fingindo nem mesmo ouvir as várias observações que ele lhe endereçava. Mrs. Hopewell era incapaz de entender a indelicadeza premeditada, embora convivesse com isso, e sempre se sentia na obrigação de ser transbordantemente hospitaleira para compensar a falta de educação de Allegra. Pediu-lhe FLANNERY o·coNNOR que falasse de si, e ele não se fez de rogado. Contou que era o sétimo de doze filhos e que seu pai fora esmagado por uma árvore quando ele . ~~oito anos. Esmagado mesmo, quase, de fato, partido ao meio, a ~ pcint6 de ficar praticamente irreconhecível. Sua mãe se ajeitou da me- lhor maneira que pôde, trabalhando além da conta, e sempre fez questão de que os filhos frequentassem a escola dominical e nunca deixassem de ler a Bíblia de noite. Ele agora estava com dezenove anos e há quatro meses vendia Bíblias.Já vendera setenta e sete nesse período, e tinha mais duas promessas de compra. Queria ser missionário, porque a seu ver era desse modo que se podia fazer mais pelos outros. "Quem perde a vida há de encontrá-la", disse, no auge da simplicidade, mostrando-se tão sério, tão sincero e tão puro que por nada desse mundo Mrs. Hopewell teria dado um sorriso. Para que seus grãos de ervilha não rolassem para a mesa, ele os retinha com um pedaço de pão, do qual depois se serviu para limpar o prato. E ela pôde notar que Allegra o observava de través para ver como o rapaz usava o garfo e a faca, notando também que vez por outra ele lançava à moça um olhar apreciativo e forte, como se quisesse atrair sua atenção. Findo o almoço, Allegra tirou a mesa e sumiu, deixando Mrs. Ho- pewell a conversar com o rapaz, que voltou a lhe fala,r de sua infância, do acidente com seu pai e de uma porção de coisas por que havia passado. De cinco em cinco minutos, mais ou menos, ela reprimia um bocejo. Duas horas depois ele· continuava sentado, mas finalmente ela lhe disse que precisava sair, pois tinha um compromisso na cidade. O vendedor pôs suas Bíblias na mala, agradeceu-lhe, preparou-se para retirar-se. Já na porta, ao lhe apertar a mão, ele ainda se deteve no entanto para dizer que nas suas andanças nunca tinha conhecido uma senhora assim tão gentil, e perguntou se poderia aparecer outras vezes. Ela disse que revê-lo seria sempre um prazer. Allegra, que se achava perto da estrada, aparentemente olhava para uma coisa ao longe quando ele desceu a escadinha e foi em sua direção, arqueado pela mala pesada, para se pôr bem diante dela. Mrs. Hopewell não pôde ouvir o que ele disse e tremia só de pensar no que lhe diria Allegra. Mas viu que sua filha tinha dito uma frase e que o rapaz logo voltou a falar, fazendo com a mão livre um gesto bem desenvolto. Um r59 UM HOlvIENI DOJ\-1 É DIFÍCIL DE ENCONTRAR ... minuto depois Allegra disse outra coisa a que o rapaz mais uma vez deu resposta. E então, para seu grande espanto, Mrs. Hopewell viu que os dois saíram juntos em direção à porteira. Até lá, por todo o caminho, Allegra andou ao lado dele. Mrs. Hopewell nem conseguia supor que conversa poderiam ter tido, mas também não ousara perguntar. Mrs. Freeman, insistindo em lhe chamar a atenção, passou de junto da geladeira para perto do aquecedor, forçando Mrs. Hopewell a se virar de rosto para ela, a fim de parecer que a ouvia com real interesse. "Glynese estava com terçol, mas ontem de noite saiu com Harvey Hill outra vez", ela informou. "Hill", disse Mrs. Hopewell, absorta," é o que trabalha na oficina?" "Não, não, o que estuda quiroprática", respondeu Mrs. Freeman. "Pois então, ela já tinha esse terçol há dois dias. Mas me contou que, quando vieram tarde pra casa, ele falou pra ela que podia dar um jeitt'l naquilo. Ela quis saber como, e ele mandou ela deitar no banco do carr€{' que ele ia logo mostrar. Vai daí que ela deitou espichada e ele aperto\i.~ ela toda. Apertou tanto, mas tanto, que o pescoço dela estalou e e~ pediu pra parar. Quando foi hoje cedo", disse Mrs. Freeman, "imagi~ só: ela não tinha nem sinal de terçol. Sumiu tudinho." "Nunca ouvi falar disso antes", disse Mrs. Hopewell. "Ele pediu pra ela ir no juiz casar com ele", prosseguiu Mrs. Free-man, "e ela disse que não, que não ia casar num gabinete." "Glynese é uma garota e tanto", Mrs. Hopewell disse. "Aliás, todas as duas, Glynese e Carramae, são meninas ótimas." "Carramae disse que quando ela e o Lyman se casaram o Lyman disse que pra ele aquilo sim é que era coisa sagrada. Ela disse que ele disse que nem por quinhentos dólares ia aceitar ser casado por pastor." "Quanto é mesmo que ele ia querer?", perguntou Allegra ao fogão. "Ele disse que não aceitava nem quinhentos dólares", repetiu Mrs. Freeman. "Bem, nós temos muito o que fazer agora", Mrs. Hopewell disse. "Lyman disse que pra ele parecia até mais sagrado", insistiu porém Mrs. Freeman. "Ah, e o médico mandou Carramae comer ameixa, em vez de tomar remédio. Diz ele que as cólicas são da pressão. Quer saber onde é que eu acho que é?" IÓO FLANNERY O'CoNNOR "Dentro de mais umas semanas ela já vai estar melhor", Mrs. Ho- pewell disse. . -~as trompas", concluiu Mrs. Freeman. "Senão ela não ia passar ~im 'tão mal." Hulga, após quebrar num pires seus dois ovos, agora os levava para a mesa,junto com uma xícara de café que tinha enchido demais. Sentou- -se e começou a comer atentamente, pronta a fazer qualquer pergunta que servisse para reter Mrs. Freeman caso ela demonstrasse que por alguma razão ia sair. Percebendo que a mãe não tirava os olhos dela, sabia que a primeira indireta seria sobre o vendedor de Bíblias, assunto que não desejava trazer à baila. Por isso perguntou: "E como foi que ele fez o pescoço dela estalar?" Mrs. Freeman não só lhe deu a descrição detalhada dos estalos que o pes'Coço da filha dera nas mãos do quiroprático, como também acrescentou que ele tinha um Mercury 55, mas Glynese dizia preferir um homem que, mesmo tendo apenas um Plymouth 36, concordasse em ser casado por pastor.A moça quis saber como seria se o Plymouth do pretendente fosse 32, e Mrs. Freeman falou que Glynese tinha dito que era um 36. Mrs. Hopewell disse que eram poucas as garotas a,ssim como Glynese, com tanto bom senso, dizendo ser justamente isso o que mais admirava nela e na irmã. Disse também que por falar em bom senso se lembrava da agradável visita de um jovem vendedor de Bíblias na véspera: "Ele quase me matava de tédio, meu Deus, mas era tão sincero e puro que eu não podia ser grosseira com ele. Gente boa mesmo, sabe, gente boa da roça - sal da terra." "Eu vi quando ele chegou", disse Mrs. Freeman, "e depois ... quan- do foi embora", e no tom por ela empregado Hulga pôde sentir uma mudança sutil, a ligeira insinuação de que o moço, ao partir, já não estava sozinho - não foi? Se nenhuma expressão lhe veio à face, ao pescoço porém subiu-lhe o sangue, que ela teve de engolir com uma nova colherada de ovo. Mrs. Freeman ficara a contemplá-la como se as duas partilhassem de um segredo em comum. "Pois é, é preciso gente de todo tipo para fazer o mundo andar", disse Mrs. Hopewell. "É muito bom não sermos todos iguais." IÓI Uivi Hüi'dE~'<1 BOM É DIFÍCIL DE ENCONTRAR ... "Tem uns que são mais iguais que outros", Mrs. Freeman disse. Hulga se levantou e, pisando duro como nunca, com o dobro do barulho necessário, foi para o seu quarto e trancou a porta. Tinha en- contro marcado na porteira às dez horas com o vendedor de Bíblias. Pensara nisso quase metade da noite, tomando tudo a princípio por uma grande piada e depois passando a ver as enormes implicações que nisso havia. Espichada na cama, imaginava diálogos entre os dois que, apesar de loucos na superficie, desciam contudo a profundidades que jamais poderiam ser atingidas por qualquer vendedor de Bíblias. Sua conversa no dia anterior havia sido dessa espécie. Ele, ao parar diante dela, simplesmente ficara ali plantado. Seu rosto ossudo, suarento, brilhoso, com um narizinho afilado bem no meio, tinha uma expressão diferente da que à mesa do almoço se mostrara. Olhava-a então com fascínio, com indisfarçada curiosidade, como uma criança que vê no zoológico um novo animal fantástico, e respirava como se tivess~·'· corrido por uma grande distância para alcançá-la.A ela, seu olhar frx~~ parecia familiar de algum modo, embora ela não conseguisse saber ondi é que antes fora olhada assim. Por quase um minuto ele não disse nad;f. Depois no entanto sussurrou, corno se estivesse tomando fôlego: "Você já comeu algum pintinho nascido há apenas dois dias?" A moça o olhou petrificada. Bem que ele poderia ter colocado essa questão para análise nalgum simpósio de uma organização filosófica. Mas daí a pouco ela respondeu, como se a tivesse considerado por todos os ângulos possíveis: "Já sim." "Devia ser pequeno à beça!'', disse ele em triunfo, sacudindo-se de alto a baixo com urnas risadinhas nervosas, corando muito no rosto e por fim se aplacando em seu olhar de admiração categórica, enquanto a expressão da rn_oça permanecia exata1nente a mesma. "Quantos anos você tem?", ele perguntou então com meiguice. Ela esperou um pouco antes de responder. E aí, sem nenhum relevo na voz, disse o que quis: "Dezessete." O rapaz se desmanchou em sorrisos que ondulavam em sucessão como a água na superficie de um lago. "Já vi que você tem uma perna de pau", disse ele. "E que é muito decidida, não é? Pois pra mim você é urna gostosura." 162 FLANNERY O'CoNNOR Confusa, a moça ficou calada e séria. "Vem comigo até a porteira", ele disse. "Você é uma coisinha gostosa, . ~dida, e eu simpatizei com você desde que te vi entrar pela porta." -~ ~ Hulga deu uns primeiros passos em frente. "Como é que você se chama?", ele perguntou. Seu sorriso, vindo de cima, atingiu-a no alto da cabeça. "Hulga", ela disse. "Hulga", ele repetiu. "Hulga, Hulga. Nunca conheci ninguém com esse nome.Você é tímida, não é, Hulga?" Ela fez que sim com a cabeça, reparando em sua mãozona vermelha na alça da mala enorme. "Gosto de meninas de óculos", ele disse. "E eu penso muito. Não sou que nem essas pessoas que nunca se abrem para um pensamento mais sério. Isso é porque eu posso morrer ... " "Eu também posso morrer", disse ela de súbito, olhando bem para ele, cujos olhos castanhos, muito miúdos, faiscavam febrilmente. "Você não acha", disse ele," que certas pessoas já estão destinadas a se encontrar na vida, por causa de tudo o que elas têm em comum? Como se todas duas gostassem de pensar coisas sérias?" Trocando a mala de mão, para que a outra, a que estava mais perto dela, ficasse livre, ele a pegou então pelo braço, com uma leve pressão. "No sábado eu não trabalho", disse. "Gosto de andar pela mata e de ver corno se veste a mãe natureza. Morro acima e bem longe. Com um piquenique e coisa e tal. Não dá pra gente fazer uma caminhada assim amanhã? Ah, Hulga, diz que sim", e lançou-lhe um olhar agonizante, como se se sentisse a ponto de ser eviscerado ali mesmo. Pareceu até, pois balançou um pouco, que ia acabar tombando sobre ela. Durante a noite ela havia imaginado que o seduzia. Imaginou-os a andar pela fazenda até alcançarem o celeiro por trás das duas lavouras mais ao fundo, e que lá, na sua fantasia, as coisas chegaram a tal ponto que lhe foi muito fácil enfeitiçá-lo, para depois, é claro, ela ter de levar em conta o remorso dele. Até mesmo em mente inferior um verdadeiro gênio é capaz de incutir determinada ideia. Mas ela também imaginou que tornava nas próprias mãos o seu remorso e o transformava numa IÓJ l)lVJ flOME;\J BOM DIFÍCIL DE ENCONTRAR .. compreensão mais aprofundada da vida. Despia-o de toda vergonha, tornando-a assim em coisa útil. Exatamente às dez horas ela se dirigiu à porteira, escapulindo sem atrair a atenção da mãe. Nada levava de comer, esquecida de que um piquenique na mata pressupõe em geral haver comida. Usava uma calça larga e uma camisa branca surrada, em cuja gola, como lembrança de última hora, pusera um pouco de aerossol,já que perfume ela não tinha nenhum. Quando chegou à porteira,não havia ninguém à sua espera. Olhando para a estrada de lado a lado deserta, Hulga, furiosa, achou que havia sido enganada, que o rapaz só queria, com todo o plano concebido por ele, fazê-la andar até ali. Mas de repente eí-lo que surge, vindo de trás de um arbusto no barranco do outro lado, de corpo inteiro e muito alto. Sorrindo, tirou para cumprimentá-la um chapéu novo e de aba larga. Como ele não o usava na véspera, perguntou-se se ele <J teria comprado para a ocasião. Era um chapéu cor de torrada, com um;?· fita vermelha e branca em volta e um pouco grande para ele, que sai~~ de trás do arbusto ainda carregando sua mala preta. Continuava co~ o mesmo terno e as mesmas meias amarelas, que, de tanto andar,já st enfiavam pelos sapatos adentro. O rapaz atravessou a estrada e disse:"Eu sabia que você vinha!" Como ele podia saber?, perguntou-se a moça, azeda. Ela apontou para a valise e perguntou: "Por que você trouxe as Bíblias?" Sempre a sorrir acima dela, como se não pudesse parar, ele a pegou pelo braço. "Nunca se sabe quando a gente vai ter necessidade da palavra de Deus, Hulga", disse. Antes de começarem a subir no barranco, por um momento ela duvidou que aquilo estivesse acontecendo mesmo. Depois desceram pelo pasto na direção da mata. Os passos do rapaz ao seu lado eram desenvoltos e leves. Hoje a mala, que ele até sacudia um pouco, não parecia mais tão pesada. Sem dizer nada, os dois andaram até o meio do pasto, quando ele então perguntou delicadamente, pondo- -lhe a mão despreocupada na altura dos rins: "Onde é que engata a tua perna de pau?" Ela corou, fitando-o de cara feia. Ele, por um instante, deu a impres- são de envergonhar-se. "Eu não quis te ofender", disse o rapaz. "Sei que coragem você tem, e tudo o mais. Sei muito bem que Deus te guarda." 164 F'LANNERY O'CoNNOR "Nada disso", disse ela, olhando para a frente e andando apressada, "eu nem acredito em Deus." ---~o ouvir isso, ele parou, assoviou e exclamou apenas um "Não!", -:J:--'- %' " o,. como se estivesse por demais espantado para dizer outra coisa. Ela continuou caminhando. E num segundo ele já estava novamente ao seu lado, lépido, a se abanar com o chapéu. Olhando-a pelo canto do olho, fez então um comentário: "Isso é muito incomum numa garota." Na beirada da mata, quando ali tinham chegado, ele voltou a passar-lhe a mão nas costas, puxou-a bem para si e, sem dizer qualquer palavra, beijou-a com toda a força. O beijo, que trazia por trás mais tensão que sentimento, produziu na garota aquela dose adicional de adrenalina que capacita uma pessoa a fugir d,a casa em chamas carregando tudo o que pode. Mas a energia, no seu caso, foi direto para o cérebro.Antes mesmo de ele a deixar livre outra vez, sua mente, clara, desprendida, e ainda por cima irônica,já o olhava de uma grande distância, com um ligeiro prazer, por certo, mas também com piedade. Ela, que nunca tinha sido beijada, alegrou-se ao descobrir que a experiência nada tinha de extraordinário, sendo passí- vel de submeter-se ao controle da mente. Certas pessoas só poderiam apreciar a água encanada se lhes viesse por acaso 'a ser dito que se tra- tava de vodca. Quando o rapaz, na expectativa e ao mesmo tempo na incerteza, afastou-a delicadamente de si, ela apenas se virou e voltou a andar como antes, sem dizer nada, como se aquele negócio, para ela, fosse mais do que comum. Ele foi atrás, ofegante, procurando ajudá-la quando via uma raiz, na qual ela pudesse tropeçar. Se houvesse à frente trepadeiras com espinhos, pegava e suspendia suas ramas extensas, até que ela tivesse passado. Seguia-a de perto, com a respiração muito pesada, pois era ela que ia abrindo caminho.Além de uma encosta ensolarada a que depois chegaram, a qual se estendia em declive suave para fundir-se a outra mais baixa, puderam avistar o derruído telhado do celeiro velho, onde o feno excedente era guardado. Flores silvestres, miúdas e cor-de-rosa, se espalhavam pela colina. Ele parou de repente e perguntou: "Pra você então não tem salvação?" 165 UM HO;\·lL\.l BOM DlfÍC.IL DE EhlCONTRA.l:L, A moça sorriu, sorrindo-lhe assim pela primeira vez. "No meu sis- tema", disse ela," eu já estou salva e o perdido é você, mas já lhe disse que não creio em Deus." Nada aparentemente desfez o olhar de admiração do rapaz. Ele agora a fitava como se o fantástico animal do zoológico tivesse posto a patinha pelas grades para o cutucar com ternura. Ela, julgando pela sua expressão que ele queria beijá-la novamente, retomou a caminhada antes de lhe dar essa chance. "Por aí não tem. um lugar pra gente ficar um tempo sentado?", sus- surrou ele, amaciando bem a voz nas últimas palavras da frase. "Tem o celeiro", ela disse. Foram às pressas para lá, como se o grande celeiro de dois andares, frio e escuro por dentro, fosse capaz de se afastar como um trem em rn.ovimento. O rapaz apontou a escada que levava à parte de cima e- disse: "Pena é a gente não poder subir por aqui." "Por que não?", ela perguntou. "Tua perna", ele disse respeitosamente. ,,;, A moça o olhou com desdém. Apoiou-se com as mãos na escada f! de imediato subiu. Ele, mostrando-se amedrontado, ainda ficara embai- xo. Ela se enfiou pela entrada, como se já tivesse prática, e de lá gritou para ele: "Corno é que é, vem ou não vem?"Todo desajeitado, porque ia arrastando a mala consigo, ele então subiu também. "Nós não vamos precisar da Bíblia", ela observou. "Nunca se sabe", disse ele. Estava tão ofegante que, ao chegar ao fim da escalada, precisou de alguns segundos para tomar fôlego. Já sentada sobre um monte de palha, onde uma nesga de sol cheia de grãos de po- eira vinha larnber-lhe o corpo, ela estava recostada num fardo e, de rosto todo voltado para fora, olhava pela abertura por onde o feno trazido por carroças era jogado no alto do celeiro.As duas encostas salpicadas de rosa contrapunham-se a unia elevação escura da mata. Não havia nuvens no céu azul e frio. O rapaz jogou-se ao lado e, passando um braço por bai- xo e outro por cima dela, metodicamente foi logo lhe dando beijos no rosto. Fazia uns barulhinhos de peixe e não tirou o chapéu, que apenas, para não atrapalhar, tinha sido en1purrado para trás. Quando os óculos dela se interpuseram, ele mesmo os tirou e pôs no bolso. 166 FLANNERY O'CoNNOR A garota, se a princípio não retribuiu nenhum beijo, sem demora porém já começava a fazê-lo, beijando-o seguidas vezes no rosto. De- --Rois alcançou-lhe a boca e não mais largou de seus lábios, dando-lhe "~~eijo atrás do outro como se estivesse disposta a dele extrair por sucção o próprio ar inalado. Puro e doce era o hálito do rapaz, corno o de uma criança, e os beijos que dava, tal e qual os de criança, eram pegajosos. Ele sussurrou que a amava, que sabia ter tido amor por ela desde que a viu pela primeira vez, mas seus sussurros eram também infantis, corno os protestos da criança que está caindo de sono e a mãe põe na cama.Ao longo de tudo isso, nunca ela parou de pensar, nem se perdeu, por um segundo que fosse, nas suas próprias sensações. "Você nem disse que me ama", ele por fim suspirou, desencostando-se dela. "Você tem de dizer." Ela olhou para fora, para não encará-lo, e viu o céu todo igual. De- pois, baixando a vista pouco a pouco, viu uma serra negra e, mais longe ainda, o que talvez fossem dois lagos verdes e fundos. Nem sequer se dava conta de que ele tinha tirado seus óculos, mas a paisagem para ela nada poderia ter de incomum, pois era raro que prestasse muita atenção no que estava à sua volta. "Você tem de dizer", ele insistiu. "Tem de diz~r que me ama." Quanto a comprometer-se com algo, ela era sempre cautelosa. "De certo modo", disse portanto, "se considerannos a palavra em seu sentido mais amplo, podemos até dizer que sim. Não é porém uma palavra que eu use, porque não tenho ilusões. Sou urna dessas pessoas que,
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