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EFEITOS TERAPÊUTICOS RÁPIDOS EM PSICANÁLISE Conversação dínica com jacques-Alain Miller em Barcelona ~Escola Brasi leira "'~ de Psicanálise editores Sérgio de castro Oscar Reymundo capa, projeto gráfico e diagramaçao Fernanda Moraes imagem da capa O raio (2006) - Cássio Giovanni revisão Luciana Lobato produção Silvano Moreira Uvrarla e Editora Scriptum Rua Femandes Tourinho, 99 Savassi I Belo Horizonte I MG 13113223-1789 E-mail: scriptum@scliptum.com.bl' Ml LLER, Jaoques-Alain. Efeitos terapêuticos rápidos em Psicanálise : ~ clínica oom Jaoques-Alain Mtler em Battelona. - Belo Horizoote: Escola Brasieíra de Psicanálise - Scriptum Uvros, 2008. 160p. I. Psicanálise I. irtulo ISBN: 973-85-89044-22-6 COO: 150.195 CDU: 159.964.2 SUMÁRIO Prefácio - Miquel Bassols Prefácio à Edição Francesa - Judith Miller Mino a Abertura - Horacio Casté, Elvira Guilaiía O fio da vida - Araceli Fuentes Conversação: O real é sem lei Marta Um tratamento em três sessões - Antorú Vicens Conversação: O casamento triangular Andrea Em direção às Belas Artes - Carmen Garrido Conversação: A teoria dos ciclos Pedro Terapias breves verms efeitos terapêuticos rápidos - Lucía D'Angelo Conversação: A abertura de um novo ciclo Pepe Uma pequena invenção psicótica - Félix Rueda Conversação: A ausência de uma fobia Alonso 07 11 15 18 25 47 51 67 73 87 96 107 116 O cavaleiro errante da armadura enferrujada - Amanda Goya 125 Conversação: O homem psicótico 137 Nota à edição brasileira - Sérgio de Castro 159 Prefácio A Conversação Clínica do Campo Freudiano reúne, todos os anos, em Barcelona, docentes e participantes das atividades do Instituto em toda a Espanha. Nós avaliamos o alcance de nossa prática e deduzimos daí o modo de levar adi- ante uma política do sintoma conseqüente com os princípios da orientação lacaniana. Ano após ano, esse encontro que Jacques-Alain Miller, diretor do Instituto, sustenta com a constância de sua presença e participação, transforma-se em um grande mo- mento de investigação clínica. Nós procedemos à exposição e ao comentário de cada caso, seguidos da crítica aos prindpios de nossa prática e da conversação sobre a particularidade de cada tratamento. Os ~feitos se fazem sentir na Espanha e, cada vez mais, além de suas fron~ciras. A Conversação Clínica de 12 e 13 de fevereiro de 2005 foi inicialmente marcada pela qúalidade e pertinência de cada apresentação, como também pela precisão e envergadu- ra dos comentários. Mas uma segunda razão acentua também o caráter particular dessa conversação: a conjuntura em que se encontra a psicanálise. Ela se encontra, com efeito, confrontada às ava- liações do mundo psi, que visam à sua prática e a seu discur- so, a seus efeitos terapêuticos e aos resultados de sua expe- riência. Tal conjuntura é especialmente sensível na França, onde se pretende fazer passar por científico o uso grosseiro de cifras e de estatísticas com fins puramente ideológicos de controle autoritário, tanto do saber quanto do mal-estar do 07 Conversaçao c l 1nica com J acqu es-A lain Hi lle r em Barc e lona sujeito1• Mas se trata de uma conjuntura que se esfende por toda a Europa: o utilitarismo e o pragmatismo mais ferozes do Evidence Based Medidne, que inspiram uma grande parte das políticas de saúde, sob influência dos anglo-saxões e dos canadenses francófll.os. Esta Conversação de Barcelona se realizou entre dois "Fóruns Psi", organizados por Jacques-Alain Miller em Paris, para levar adiante a batalha contra as práticas de modifi- cação comportamental que se proclamam falaciosamente "tera- pias". A 5 de fevereiro, uma semana antes da Conversação, aconteceu o Fórum em que o ministro francês da Saúde, Philippe Douste-Blazy, evocou uma outra política de saúde, ao afirmar: "O sofrimento psíquico não é nem avaliável nem mensurável" . Um pouco depois, em 19 de março, o Fórum sobre "O ato político" demonstrou a necessidade do retorno do sujeito, jamais anônimo, do desejo e da palavra na ação política. Entre esses dois eventos, no dia 27 de fevereiro, a criação da Associação pela Fundação Lacan foi anunciada por Jacques-Ala.in Miller, que deu, assim, uma tradução institu- cional da crucial articulação entre clínica e política. Nesse contexto, a Conversação de Barcelona, funda- da no caso a caso do método psicanalítico, restabelece para nós, analistas, a articulação das dimensões clínica e política do sintoma, tais como podemos deduzi-las da orientação laca- niana. O leitor poderá verificar como uma política do sin- toma se deduz do traço mais particular do caso clínico. E é a1 que se afirma o valor terapêutico da psicanálise. Aqui, nada de falsos protocolos elaborados a partir de questionários anôni- mos, nem de gestão do mal-estar do sujeito, reduzindo-o a uma variável numérica do mercado de saúde. E muito menos a pre- ' Certamente podemos situar na mesma tendência as tentativas do Estado brasileiro de regulamentar a prática da psicanálise (N. do E.). 08 vinic Realce vinic Realce Efeitos te ra péuticos r ~pi dos em psicaná l i se tensão de equivaler o sofrimento do sujeito a uma conduta ou a uma resposta inadaptadas. Este volume objeta radicalmente esse tipo de formulação. Ele enfatiza o mais particular do sin- toma do sujeito, que só será analisável a partir do detalhe clíni- co e jamais quantificável: apenas uma bússola própria a orien- tar o tratamento, segundo uma ética e com eficácia. Finalmente, esta Conversação teve o privilégio de trazer à luz uma primeira reflexão relativa às instituições cria- das pelas Escolas de orientação lacaniana: O Cmtro Psicanalítico de Consultas e Tratamento (CPC1) de Barcelona, homólogo ao CPCT de Paris; mas também às outras instituições que se re- ferem ao ensino de Lacan e que trouxeram sua experiência e seu saber (a clínica do Campo Freudiano de La Corufia, ou a Rede de Assistência de Madrid recentemente criada e que leva o mesmo nome da primogênita de Buenos Aires). A criação da RIPA (Rede Internacional de Psicanálise Aplicada) coordenará e dinamizará as experiências desse tipo no mundo inteiro, a partir da orientação lacaniana. A amplifi- cação de uma experiência fecunda como essa do RI permitirá talvez de criar outros lugares como o Lc Courtil, na Bélgica, onde se formam praticantes de diversos países. Em cada uma dessas experiências, trata-se de privile- giar a particularidade do caso para as novas aplicações da psi- canálise. Miquel Bassols 09 vinic Realce Prefácio à edição francesa É por esse termo que me foi proposto me manifes- tar na abertura deste volume e na condição de primeira leito- ra. Eu aceitei, sob os auspícios do "nariz" de Cyrano, ultrapas- sar o efeito de encantamento que esta conversação me pro- duziu. Ao privilégio de ser a primeira leitora respondo então com o primeiro esforço para sair do mutismo que tal encanta- mento e admiração produzem. Como não ficar fascinada pelos seis casos aqui apre- sentados, um a um, e pela série que eles fundam? Retomando um termo de Jacques AJain-Miller, a primeira tríade é paradig- mática. Os três primeiros casos são exemplares em três senti- dos: ÚJÚcos, pois não parecem com nenhum outro; modelos, pois esclarecem todos os outros; elementos de uma série, cada um responde como os outros as exigências da mesma função. Os outros três casos são convocados a se tornarem clássicos, o que quer dizer a serem tomados como objeto de estudo para que fundem suas classes. E sabe-se que um psicanalista não seria mais um se ele parasse de fazer as suas. Todavia, leitores e leitoras, guardemos a fascinação que cega e coloquemos-nos a trabalho, tomando estes casos como, sem exceção, fazem os participantes desta Conversação. Sigamos seus passos: esta Conversação, ela também é paradig- mática e clássica. Paradigmática porque não há nenhuma outra pareci- da. Ela resulta, como todas as Conversações, da disciplinae dos desejos de cada um. Disciplina: envio e recepção de um material escolhido; reflexão pessoal aprofundada sobre esse 11 vinic Realce Conversaçao clfnlca =om Jacq oes - Ala i n Ml l ler em Barce lona material, suas conseqüências, suas implicações, suas questões; divisão, troca, confronto das cogitações de cada um; aparecem no momento de concluir de um novo paradigma. Pois é bem isso o que nós compartilhamos em ·nossa leitura: a elaboração de um novo conceito, segundo a respiração do tempo lógico. Eu deixo os leitores descobrirem e aprimorarem por conta própria tanto nesta como nas outras Conversações essa invenção surpreendente. É para mim uma alegria que seja uma elaboração vinda mais-além dos Pirineus que venha acender as luzes do lado de çá. Eu vejo aí a constatação de que nossa apli- cação da psicanálise não se sustenta através de meios bons ou ruins, mas em uma ética. Eu vejo a prova da existência da existência .da Europa do Campo freudiano. Os mesmos para- digmas, conceito tão diferente da noção de standard, operam aí e as mesmas classes aí são percorridas (sem standard, pre- cisamente) pelos os que decidem tomar o caminho aberto pelo "te é permitido saber11 de Lacan. É por esse 11te é permi- tido" que é necessário nosso combate hoje. Esta Conversação nos dá um suplemento de decisão: ela nos ensina que nós temos, sem que o soubéssemos, mais armas que do que nós pensávamos. Sem standard, mas não sem princípios, isto é o que inventa a prática de orientação lacarúana no combate onde ela está engajada. 12 ]11dith Miller 10 de Abril de 2005. vinic Realce 1. Minna Abertura Horado Casti, Elvira Guilana Horacio Castl: Novamente, está aqui conosco Jacques-Alain Miller para comentar os casos reunidos nesta Reunião do Instituto do Campo Freudiano, em Barcelona. Também contamos, nesta ocasião, com a companhia do pre- sidente da EEP, Pierre-Gilles Guéguen, que, como vocês sabem, esteve esta manhã na VII Reunião da ELP e a quem agradecemos pela presença. Temos três casos para começar a trabalhar esta tarde e mais três que discutiremos amanhã, pela manhã. São casos atendidos em instituições vinculadas à Escola ou ao Instituto do Campo Freudiano, em diferentes localidades da Espanha. Por suas diversas peculiaridades, pensamos que eles formam um conjunto suficientemente interei)-.:.nte para ser tomado como eixo a partir do qual pensar como tratar o tema dos efeitos terapêuticos rápidos da psicanálise aplicada em instituições vinculadas à prática lacaniana. Creio que é um ponto de particular interesse, neste momento, na nossa comu- rúdade. A Elvira, que coordenará a conversação desta tarde, dou a palavra. 15 Coover~açao c11 oica com Jacques-Ala i o Hil ler em Ba rce l ona Elvira Guilaiia: O caso apresentado por Araceli Fuentes foi atendido na Rede Assistencial da ELP, em Madri. Esse é um dispositivo que se criou em decorrência dos fatos de 11 de março, com a finalidade de atender aos afetados pelos atentados. O tratamento ofertado foi gratuito e com uma limitação de tempo de seis meses. O caso apresentado por Antoni Vicens foi atendido no Centre Psicoanalítico de Consultes i Tractament (CPCI), da ELP, em Barcelona. Esse CPCf foi inaugurado em outubro de 2004, como vocês sabem, e se inscreveu no caminho aberto pelo CPCT de Paris, criado em abril de 2003. Portanto, as coordenadas são de gra- tuidade e limite de tempo de quatro meses, podendo ser esten- dido até oito meses. O caso apresentado por Carmen Garrido ~ que trabalharemos em último lugar - foi atendido na Clínica do Campo Freudiano de La Corufia, fundada em 1997. Vemos que cada um desses casos foi. atendido a partir de um dispositivo com uma série de parâmetros. Os da Rede Assis- tencial, como disse, são a gratuidade e o tempo limitado. O do CPCT também, mas, no caso da Clínica de La Coruiia, os parâmetros são: tarifa determinada e tempo ilimitado. Através de cada caso escolhido para esta conver- sação, transmite-se, em particular, àqueles que pertencem à nossa comunidade analítica este novo momento que estamos vivendo, na tentativa também de buscar as maneiras de trans- miti-lo ao Outro social. É o que podemos denominar, a partir de um texto de 1998, de Jacques-Allain Miller: "Indicações e contra-indicações ao tratamento analítico", texto que abriu um campo de trabalho, "uma clínica de encontros". O encon- tro com um analista produz efeitos. E esses efeitos - me parece que isso é o importante - podem ser transmitidos. Podem ser medidos de alguma maneira para poder ser trans- mitidos não apenas para nossa comunidade, mas também para fora dela. Nos casos de hoje, os dispositivos se orientam no sentido de facilitar o encontro com um analista, que. sem tais 16 Efeitos terapeuticos r ápidos em psicanáli se dispositivos, não seria possível neste momento, ou seria muito difícil. Ao mesmo tempo, vemos que, nos seis casos que vamos trabalhar, há uma particularidade que o analista deve perceber para isolá-la. Então, temos uma clínica de encontros e vemos que nos seis casos podemos cifrar os efeitos terapêu- ticos rápidos. Mas, para falar de efeitos terapêuticos rápidos, precisamos falar também, de alguma maneira, do número de sessões. É uma colocação que podemos fazer. Um caso com 20 seções, outro caso, como o do CPCT, com três seções, e outro caso cujas sessões vão de outubro à primavera. Iniciaremos então com o caso apresentado por Araceli Fuentes. Trata-se de uma mulher que foi atendida na Rede Assistencial para a qual o apris coup do traumatismo dá lugar ao abatimento e ao sentimento de culpa. Araceli apre- senta uma hipótese que poderia se levar em conta para abrir o debate. Ela propõe que a restituição da trama de sentido e a inscrição do trauma na particularidade inconsciente do sujeito é curativa. Tradução: Oscar Reymundo Revisão da tradução: Jorge Pimenta 17 Convers açao clínica com Ja cques-Ala in Mil ler em Ba rcelona O fio da vida Efeitos terapêuticos rápidos· em um caso atendido na Rede Assistencial ELP- Madri Araceli F uentes Minna, assim a chamarei, foi a primeira das pessoas afetadas pelos atentados terroristas, ocorridos em 11 de março, em Madri, que se dirigiu à Rede Assistencial . .Minna é uma imigrante romena de 38 anos que está na Espanha há um ano e meio. Em 11 de março, havia combinado com suas ami- gas de tomar um café na estação de Atocha, antes de ir para o trabalho. Por esse motivo, não estava em um dos trens em que as bombas explodiram. A explosão a surpreendeu quando estava na cafeteria com suas amigas. Escutaram a primeira explosão na estação e em seguida a segunda. Ela pensou ime- diatamente em uma bomba e, tomada de terror, saiu correodo dali sem esperar por ninguém, fugindo apavorada entre os feridos e os mortos. Em sua fuga, cruzou com o olhar de um homem estirado no solo com o rosto ensangüentado, "como um Cristo estirado". A imagem do "Cristo estirado'' continua a olhá-la a cada noite nos pesadelos que se repetem desde então. Na primeira entrevista, ela está tomada pela angústia, há dias que um estado de agitação não a deixa descansar. Percorreu os serviços de urgência, recusando-se a tomar tran- qüilizantes, manteve duas entrevistas com uma psicóloga da Prefeitura e tentou reunir-se com outros romenos para colo- car-se sob a proteção de sua Embaixada, mas nada disso Jhe permitiu encontrar um lugar onde se deter. Minna não fala bem o espanhol, entre lágrimas, tenta fazer-se entender. Sente-se culpada por ter saído correndo da estação, por não ter ficado e ajudado os feridos, por não estar à altura do ideal transmitido por seu pai, um pai todo amor, 18 [feitos t e rapé ut1 cos rápi dos em ps ica nál1se muito religioso, pertencente à Igreja dos Adventistas do Sétimo Dia. Esse pai pobre, que era capaz de transformar um pedaço de pão em um presente, havia-lhe ensinado que, frente à agressão do outro, devia-se responder como Cristo, ofere- cendoa outra face. Ela havia faltado ao dever de socorrer os feridos, e o Cristo estirado a lembra disso a cada nohe em um pesadelo que se repete. Frente ao real do trauma, o recurso ao pai que seria todo amor não obtém resposta. Conti~ua angustiada, sua ten- tativa de suplência pela via do sentido religioso fracassa. Eu a acolho sem desculpabilizá-la, fico em silêncio. A culpa logo desliza e recai sobre o outro: a culpa é do outro - ·"os marroquinos, os terroristas". A culpa deixa seu lugar ao ódio, um ódio desconhecido por ela até então. O acontecimento traumático levou-a a confrontar-se subitamente com seu ódio. Deduzo disso a lógica de minha posição, que é contrária a uma posição idealizante. Escutá-la falar desse ódio e manter aberta a via par-a que um dia pudesse subjetivar algo de seu ser, essa foi a orientação que segui durante as 20 entrevistas de duração desse tratamento. Minna começa a relatar sua lústória e a tranqüilizar- se pouco a pouco. Filha de uma família tão pobre quanto reli- giosa, cedo deixa os estudos e se casa. "Eu preferi o amor aos estudos", dirá. Tem um único ftlho, de 19 anos, que ficou na Romênia para ir à Uruversidade, o que parece responder mais a um desejo dela do que do filho. Um filho ao qual sempre mimou, para quem reservava um lugar especial na geladeira. Seu marido também emigrou para a Espanha alguns meses depois dela. Estão separados porque ele trabalha em outra cidade, mas ele vem visitá-la nos fins de semana. Um dia, chega novamente muito angustiada ao .inteirar-se de que os terroristas t.inham tentado lançar pelos ares a linha do trem, E/ Ave. Subitamente, o mundo de todos os dias tinha-se tornado desconhecido, e ela se pergunta: 19 Conve rsaçao cl1n ica com Jacques-Alain ~ i ll er em Barcelona "Que faço aqui?" Algumas de suas amigas decidiram voltar para a Romênia, e ela fica com vontade de regressar também, sente falta de seu filho. Ela veio para ttaballiar e ter uma vida melhor, mas esse país, em que se sentiu muito bem acolhida, do qual gostava tanto, agora lhe parece estranho. A abertura do inconsciente se produz rapidamente. Na entrevista seguinte, traz o dicionário que eu havia pedido e um sonho de transferência: Vou por um caminho macabro, sem vida, sem luz, estranho. Vou com duas amigas., entramos em uma estação abandonada, muito velha. D e repente, entre minhas amigas c eu, cai o braço de uma enor- me grua, com forma de garra, com tr.ês pontas. Eu fiquei separada de minhas amigas, para poder che- gar até elas teria de dar uma volta enorme. Ao meu lado havia muita gente que me olhava tranqüila- mente, uma mulher me fala e me diz que ficasse com eles, pois que eram muitos. O estabelecimento da transferência permite que ela se detenha. A partir desse momento, abre-se a v\a do incons- ciente, e uma série de sonhos irá surgindo em sucessivas entre- vistas. Esses sonhos têm a particularidade de ser resolutivos. A restituição da trama do sentido e a inscrição do trauma na particularidade inconsciente do sujeito são curativas. Eu os apresento de forma cronológica. Os sonhos O primeiro sonho é o pesadelo pós-traumattco, pesadelo recorrente do homem-Crista estirado que a olha e recorda-lhe a cada noite que ela faltou ao dever de socorrer os feridos. Esse pesadelo desaparece em pouco tempo. O segundo sonho é o sonho de transferência no qual também está presente o olhar: "Havia muita gente que me 20 Efeito s terapêuticos rdpido~ em ps icanál ise olhava tranqüilamente". Depois, uma mulher fala com ela e convida-lhe a ficar. Minna é uma mulher que sabe fazer-se acolher. Nas casas onde trabalha foi muito bem tratada, até o ponto de sen- tir que são sua família em Madd. Quando lhe pecgunto se não preferiria mudar-se para a cidade onde vive seu marido, res- ponde que não: "Isso seria como começar de novo". Não obstante, nos fins de semana, quando o marido vem, ela se sente mais tranqüila. Terceiro sonho. Encontra uma saída e sai. "Estou nos subterrâneos de Bucareste. Ali vive gente muito pobre, crianças que se drogam com cola. Tenho que sair dali, há wna mulher cigana atrás de mim. No fim do túnel, há uma luz, essa luz é muito importante para mim. Ao sair não vejo a cigana". É wn sonho no qual o sujeito consegue sair dos esgotos de Bucareste, onde se encontra gente mais pobre, as crianças que se drogam com cola e uma cigana, metáfora dos excluídos da sociedade, dos restos. Seguindo a luz, ela encon- tra a saída. Esse sonho vem também desmentir as palavras de sua mãe, ~ue dizia: "As ciganas dão má sorte": Outra frase da mãe era: "Se você sonhar e ao despertar olhar para a luz, o sonho é esquecido". Minna acrescenta: "No sonho a cigana vinha atrás, mas eu saio sozinha, eu sou forte, ao despertar olhei a luz que entrava pela janela e não esqueci o sonho". Ao mesmo tempo, Minna sente falta de seu filho, falou com ele por telefone. Ele contou-lhe que houve uma pane no carro, e os avós não quiseram ajudá-lo por ser sába- do, o dia de descanso prescrito pela religião deles. Durante esse dia, não se pode fazer nada. Ela fica furiosa coro seus pais por anteporem seus preceitos religiosos à ajuda pedida por seu fJ.l.ho. "Eu não escolhi isso", dirá com raiva. Minna passa todo dia pela estação de Atocha para ir ao trabalho; às vezes detém-se a ler os nomes dos mortos. Diz: "Leio os nomes dos mortos, mas não conheço ninguém". 21 Co nve r sa çao c l fnlca com J acqu es-Ala ln Mi l le r em Ba rcelona Passaram-se quatro meses. Minna está bem melhor. Conta que, no final de semana, irá visitar o monumentO aos mortos da guerra civil espanhola ' 'A Cruz dos Caídos". Chama minha atenção essa escolha, pelo retorno do significante Cn~~ que remete ao homem , "Cristo estirado", .que a olliava em seus pesadelos. Quarto sonho: "O fio da vida" . No final de uma sessão, relata um sonho, sobre o qual, antes de começar a con- tar, afirma que é uma bobagem: "Sonhei com um parafuso, eu dava voltas com um fio ao redor do parafuso, fazia e desfazia. Mais fazia que desfazia" . Pergunto: Como se diz paraji1so em romeno? Ela pronuncia parafuso em romeno e acrescen ta: "Soa muito parecido com serpente, a serpente que tenta Eva ... depois vem a expulsão do paraíso onde existia a felicidade completa". E acrescenta, associando: "Em romeno existe a expres- são o fio da vida ... Em espanhol existe a mesma expressão?" Quinto sonho. Relata um sonho que a faz rir: "Há um crocodilo que morde todo mundo, menos a mim. Eu o agarro pelo rabo e o sustento no ar com a boca para baixo". Nesse sonho ela tem o falo e sabe o que fazer com ele. Depois, vem um sexto sonho, ao qual me referirei posteriormente. Sétimo e último sonho: ' 'Acordava e aos pés da cama havia um homem sem rosto. A sensação que sentia era de tranqüilidade". Entre o primeiro pesadelo, no qual o olhar supe- regóico do "Cristo estirado" a ato rmentava ao ponto de des- pertá-la, e esse último sonho, no qual um homem sem rosto lhe passa a sensação de tranqüilidade, transcorreram vários meses. Uma vez que a angústia cessou, pode rir e retomar o fio da vida. O efeito tranqüilizador que tem, nesse sonho, ser despertada por um homeni sem rosto, remete à ausência do olhar e da boca, que são tanto a da morte quanto a da recriminação. 22 Efeitos terapêuticos ráp idos em p~ican~líse O quisto Nas últimas entrevistas, Minna está contente: final- mente seu filho decidiu deixar os estudos na Romênia e vir viver e trabalhar na Espanha. Ele vai trabalhar com o pai. Ele confessou a ela que sentia vergonha de ficar na Romênia estu- dando enquanto os pais estavam aqui trabalhando. Agora ela se ocupa em arranjar-lhe os papéis. Está bem e o limite de tem- po de tratamento previsto na Rede, seis meses, se aproxima. No entanto, em uma das últimas sessões, para minha surpresa, conta-me que tem um quisto no útero, que sabe disso há vários meses, mas não havia ido ao médico senão há alguns dias atrás. Evidentemente,tratava-se de algo do qual ela não quis nada saber durante todo esse tempo. A presença dessa ameaça em seu corpo, da qual portanto demorou a falar, é anterior às explosões do "11 de março", e, por fim, agora decide se ocupar dessa questão. Espera por uma intervenção cirúrgica para que o extirpem e analisem e, ainda que diga estar menos angustiada do que com os atentados, conta que sonhou com Carmina Ordóiie<{ - é o sexto sonho - uma mulher jovem que acabava de falecer naquele momento, em uma morte com ares de suicídio. Car-mina é ela mesma, é a emergência da ameaça de sua própria morte que esse sonho coloca em cena_ Por sorte, para ela, a operação se efetua pouco depois, e o quisto era benigno. Combinamos uma última entrevista e, apesar de ainda lhe restar um pouco de tempo em relação ao limite esta- belecido para o tratamento na Rede, ela se sente bem, conta o sonho do homem sem rosto, e essa será a última sessão. Despedimo-nos cordialmente. l Famosa, de família de toureiros, o uso de soníferos e seus freqüentes casamentos lhe valeram manchetes de jornais. (N1) 23 l : <>uv .,r· ~ d ç ~o c l l n í ç<l c om J acQues - Al al n Mi l l e r em Barcelo na Os dois reais Os efeitos terapêuticos obtidos durante essas 20 entrevistas são incontestáveis: desapareceu a sintomatologia pós-traumática e o sujeito retomou o fio da vida. Mas o maior efeito terapêutico obtido por esse sujeito foi ocupar-se desse Outro real, desse quisto do qual havia tentado não saber, que ameaçava seu corpo e sua vida e podia levá-la a terminar como o Cristo estirado de seus pesadelos. Os efeitos terapêuticos, neste caso, devem-se a uma desidealização que se produz rapidamente e à colocação em marcha do inconsciente como um dispositivo que produz um sentido libidinal. O s sonhos ocupam nele um lugar central. O primeiro, o pesadelo com o homem Cristo estirado, e o penúl- timo, o da morte de Carmina Ordóii~ têm um lugar especial. Em ambos, o real d~ morte está presente como ameaça que muda de lugar, passando da contingência do acontecimento real traumático, que se impõe ao sujeito vindo de fora, à pre- sença no corpo de um quisto que, durante meses, havia con- sentido em deixar crescer. A emergência do primeiro real é a oportunidade para poder tratar o segundo real .. A outra série de sonhos são soluções propostas pelo inconsciente: encontra a saída, retoma o fio da vida, agarra o crocodilo pelo rabo. Nessa série, o último sonho coloca um ponto final: o homem sem rosto que está aos pés de sua cama lhe restitui a tranqüilidade. É o próprio inconsciente que coloca um ponto de basta nesse tratamento. Essa é sua particulari- dade. Tr2dução: Márcia Mezêncio Revisio da tradução: Marcela Antdo 24 Efei tos terijpéut lco s r~pídos em ps icdn áli se Conversação O real é sem lei Pie"e-Gilles Guéguen: Eu destacaria a rapidez na qual se apresenta, nas entrevistas, a figura de um Cristo estendido que olha a paciente em seus pesadelos traumáticos. Parece-me que, neste caso, estamos imediatamente no plano da fantasia. Em seguida, os sonhos vêm matizar ou velar, ou colocar outra perspectiva sobre esse olhar que está como que desvelado a principio. Passamos dessa figura do Cristo imóvel em sua tumba com um olhar que atemoriza, que dá medo, finalmente a uma figura pacificadora, a um homem sem o olhar, sem rosto, sem uma expressão no rosto. Talvez você pudesse dizer- nos algo mais sobre o que você entende por "restituição do sentido" ou "o trauma se inscreve na particularidade do sujeito". O fato de se tratar de uma mulher tem uma relevân- cia na aparição da fantasia do homem sepultado? Seria uma versão da fantasia do homem morto atrás do véu, de que Lacan fala no texto "Diretrizes para um Congresso sobre a sexualidade feminina'12? A raceli Fuentes: Sim, quando me refiro à trama do sentido, esse segundo aspecto que você comenta efetivamente está aí, mas não houve oportunidade de tratá-lo. O que tem a ver com sua posição feminina e tudo o que disse Lacan no texto "Diretrizes para um Congresso sobre a sexualidade fe- minina'' - o íncubd, a relação da mulher com o íncubo, o gozo feminino - tudo isso, não houve oportunidade de tratá- ~ N. T.: J. Lacan. Esmios. Rio de Janeiro: J. Zahar, 1998. ' N. T.: íncubo: lenda medieval na qual o demônio assumia a forma masculina e mantinha relações sexuais com as mulheres, enquanto elas dormiam. 25 Con versa çao c11 níca com Jacques-Aldin Mi l ler em Ba rce l ona lo, ainda que parecesse estar aí também. Então, quando falo do que foi curativo, refiro-me, por um lado, à colocação em marcha do mecanismo inconsciente. Quando falo do sentido, refiro-me ao sentido inconsciente e também à existência de uma revitalização libidinal que se produz a partir desse ponto. O que me chamou a atenção, neste caso, é o fato de que, quan- do se abre o inconsciente, quando o mecanismo inconsciente se abre, essa abertura pode durar muito tempo. De fato, as análises são assim, não? Porque o inconsciente se abre e não deixa de produzir. Talvez, neste caso, o mais característico seja que os sonhos parecem permitir-lhe resolver bem as coisas. São sonhos resolutivos, não são sonhos que abririam uma via que duraria anos, mas se trata de como o inconsciente encon- tra uma maneira de resolver certas questões atuais do sujeito. Pierre-Gilles Gueguén: Vemos que é um sujeito, t,lffia mullier, que está decidida, porque, quando outros psiquiatras, ou não sei quem, lhe ·propõem tomar medicamento!':, ela não quer. Araceli Fumtes: Não, da não aceita os remédios. Pierre-Gilks Gueguén: Ela não aceita tomá-los, e, todavia, trata-se de alguém que não tinha vínculos anteriores com a psicanálise. Araceli F11entes: No entanto, quando ela começa a contar os sonhos, eu lhe pergunto se conhece Freud, se ouviu falar de Freud. Diz que sim, que alguma vez ouviu falar dele, mas o que aparece, além disso, é que esses sonhos vêm demonstrar como sua mãe estava equivocada com relação à idéia de que, quando alguém desperta e olha a luz, depois de· sonhar, se esquece do sonho. Ou quando a mãe dizia que so- nhar com uma cigana traz azar. No entanto ela é wna imi- 26 Efeit os t era pêut icos r6 pido s em psicanál ise grame romena de uma procedência muito pobre, histérica. Ela foi a primeira paciente que nos chegou dos afetados•, algo também surpreendente para alguém que está há tão pouco tempo no país. Chegou através de um câmera de televisão que é estudante no NUCEP, no Instituto. Antoni Vicen.r. Há um detalhe que é impressionante, a passagem do amor ao ódio e em seguida a recuperação do amor. Há como três passos dialéticos. Em primeiro lugar, o pai que seria todo amor, que é a definição de Deus, não responde. R a isso o que se responde é a aparição dessa trans- formação da culpa em ódio, aos marroquinos, aos terroristas, coloquemos aos ciganos também, etc. Mas logo aparece no texto o aJ:not aos estudos. Há uma frase muito interessante, no inicio do caso, que ela diz: "Filha de uma familia tão pobre quanto religiosa, eu preferi o amor aos estudos". Araceli Fuente.r. Como? Antoni Vicen.r. Sim, ao final da primeira página: «Filha de uma família tão pobre quanto religiosa logo deixa os estu- dos e se casa, 'eu preferi o amor aos estudos,.. Quer dizer que deixou os estudos por amor.. Mas o amor ao saber está inscrito ai, como uma demanda a partir dessa renúncia aos estudos. Creio que isso é o CJUe permite chamar esses sonhos de "so- nhos de transferência". Há uma mulher que lhe fala, lhe con- vida a ficar, lhe convida a saber, de algum modo. Convida-lhe a ficar no dispositivo de saber. Então, há três passos: primeiro, o amor desse pai todo-amor que não responde. Segundo passo, a aparição do ódio. Terceiro, a aparição de um novo amor que é esse amor em relação ao saber. 4 N. T Refere-se às pessoas afetadas pelos atentados terroristas ocorridos em Madrid. 27 Con ve r saça o clf nica com JacQues- Ala i nHl l l er em Ba r celon a Miq11el Bassols: Queria perguntar-lhe sobre um ele- mento que vem depois dessa distinção entre amor e estudos, é sobre o filho que tem essa mullier, filho que tem 19 anos e que ficou na Romênia por desejo dela, precisamente para estu- dar. Há uma frase que fica enigmática. para mim e cujo senti- do quero compreender: "Um filho ao qual sempre mimou, para quem reservava um lugar na geladeira" (ri.ro.r). Qual é esse lugar e qual é a geladeira em questão? Julio Gonzák<:(; Minha pergunta é sobre o destino do ódio, na medida em que se assinala que é algo novo que aparece nela. O que aconteceu afmal com esse ódio? Rosa Calvet. O que é seguro é que, para esse filho, a terapia da mãe teve efeitos terapêuticos, porque algo mudou, e o filho, que estava como refém em seu país, pôde deixar esse lugar e vir para cá. Mas me perguntava pela relação que pode haver entre esse "ftlho na geladeira" e os pesadelos. Araceli Fuentes: Esse "ft.lho na geladeira" é um efeito surpresa para mim mesma. Na realidade, essa mulher guarda- va separadamente a comida do ftlho na geladeira. Ela tentava preservar o filho da vida, de suas dificuldades, ela quer ... Horacio Caslé: ... guardá-lo na geladeira. Araceli Fuentes: Exato. É assim que posso tirar par- tido desse "lapso escriturai" porque, como assinalava Rosa Calvet, o filho na Romênia é como tê-lo na geladeira. Eles estão trabalhando para ele com todo o esforço na Espanha, e com tudo o que aconteceu dos atentados, ela pretendia que seu filho continuasse como se nada houvera, na Romênia. E, por sorte, esse fúho se rebela contra isso, se apóia no pai, que também está trabalhando na Espanha, e decide vir trabalhar. 28 Efeitos terapêu ticos rápidos em psi canáli se O "fJ.lho na geladeira" pode entender-se assim, ainda que eu não tenha me dado conta ao escrevê-lo. Com respeito ao comentário de Antoni, parece-me que haveria que incluir na série do amor e do ódio a culpabi- lidade que está em relação com esse pai-todo-amor que ela apresenta. Esse pai era tão amoroso que, quando voltava para casa, como não podia trazer presentes, trazia pão; era um pai que não existe, capaz de transformar a necessidade em um presente. Dava o que não tinha. Porém, o outro lado desse pai são todos os mandatos religiosos que transmitiu a sua filha, como o de dar a outra face para bater. Há uma tentativa nela de dar sentido ao trauma pela via religiosa, tentativa que fra- cassa. E é isso que tem a ver com a culpabilidade, também em relação com o pesadelo que se repete no principio, desse Cristo estendido em sua tumba que a olha e não a deixa des- cansar nem de noite. Depois, a culpabilidade vai mudar para o ódio. Aproveito também para responder à pergunta de Julio sobre o destino do ódio. É um movimento que passa da culpa por não haver socorrido os feridos a outro, o de colocá- la nos terroristas assassinos. Para ela, é uma surpresa sentir ódio, parece que nunca havia sentido. Deixo que o diga, porém não deixo que se consolide esse ódio como .racismo. O que permite esse ódio é uma rápida desidealização que se verá mais adiante, quando ela se irrita com os pais que pertencem à Igreja dos "Adventistas do Sétimo Dia", aos quais é proibido ter tarefas nos sábados, e por isso não socorrem o ftlho que havia tido um problema com o carro. O ódio llie permite se separar desses ideais religiosos dos pais e poder dizer: "Eu não escolhi isso". Essa é a minha hipótese. Rúard Arranz: Duas questões. Com respeito ao ódio, o caso me fez recordar o "Homem dos Ratos", quando Freud fala de um gozo desconhecido para ele mesmo, quando o 29 Conver saçao c llnlca com J acques-Al a l n Ml l l er e• Ba r cel ona sujeito fala do tormento dos ratos. O encontro dessa mulher com o ódio pode ser visto como o encontro com um gozo ignorado por ela mesma. A segunda questão é sobre a demanda que você lhe faz para que traga um dicionário. De que se trata? Sem dúvi- da, não se trata do fato de que, quando alguém não fala a lín- gua do analista, há que pedir um dicionário, mas muito mais de um manejo da transferência. Ma11uel Í'trt1á11dez-Bianco: Queria perguntar-lhe sobre os pesadelos de repetição porque ilustram bastante o que é a clínica do trauma. Essa mulher não sonha repetidamente com a bomba. O que se repete é a imagem do Cristo estendido que não deixa de olhá-la a cada noite. O àutenticamente .inassimilável pelàS redes do significante, pelo trabalho do sonho, é isso. Há que pensar que o que aparece aqui é um ponto de gozo êxtimo, auten- . ricamente inassimilável para o sujeito. Talvez possa ter sua chave em que, sob esse pai-todo-amor, do ideal do amor, o que apa- rece é o gozo do pai do sacrificio do f.ilho. Porque o ideal do pai é, como Cristo, dar a outl.'a face frente à agressão do Outro, quer dizer, oferecer-se ao sacrificio. O que cruza todo .o caso é sacri- ficar um filho, como fez o Pai com o Cristo ensangüentado. Enric Beren!Jier: Na direção do que comentava agora Manuel e também em relação com o que Araceli dizia da se- paração, trata-se de um caso no qual se propõe a imigração como uma separação falida. E, precisamente, é a partir da experiência traumática que a verdadeira separação, que não se consegue com a inúgraçâo, começa a ser elaborada. O Cristo jacente a recrimina de entrada por ter-se separado desse tipo de objeto que são os feridos e convoca-lhe a permanecer com eles. Após, há um segundo sonho no qual uma mulher lhe convida a permanecer. São dois sonhos em que ela é convidada a ficar. E no terceiro sonho há urna mudança, porque ela se separa dos 30 Efeitos terapêuticos rápidos em p si can~ l ise marginalizados, decide separar-se. Essa temática da separação também aparece no quarto sonho com a idéia da expulsão do paraíso. Parece que esse sujeito se interroga sobre seu ato de imigração que não conseguiu separá-la do lugar ao qual a con- vocava o desejo enigmático desse pai, com sua carga, aliás, mortífera. Há duas operações. Primeiro, separar-se desse signi- ficante ideal com um sentido superegóico, porém também, se- parar-se desse objeto caído que são os "marginalizados". Arace/i rllentes: Pareceram-me muito importantes as contribuições. Com respeito ao dicionário, não creio que seja uma regra pedir ao sujeito que traga o dicionário. Eu queria saber se era culpa ou vergonha o que sentia o sujeüo. Ela. não falava tanto a língua para poder esclarecer quando se referia a uma coisa ou a outra. De fato, o dicionário só se utilizou uma vez e ao final o levou. Foi algo pontual para aclarar uma questão concreta. Com respeito ao comentário de Manuel Fernández- Blanco e sua hipótese de "sacrificar um filho", o pai levava seus ideai~ religiosos com muito rigor. Por sua parte, ela deixa seu filho na Romênia. No fim, nas últimas sessões, encontro- me com a surpresa de que tinha um tumor vaginal do qual não se havia ocupado durante meses, e esse tumor havia sido descoberto antes dos atentados. De modo que esse tumor estava se desenvolvendo havia muito tempo. Por isso, antes que me contasse que já havia ido ver o médico, houve algo que me chamou a atenção, e foi a excursão que realiza ao Valle de los Caídos, onde volta a aparecer o significante "Cristo jacente". Efetivamente, o maior efeito terapêutico para essa mulher não foi somente o desaparecimento da síntomatologia do stre.u pós- traumático, da angústia e da hiperatividade que não a deixava manter-se quieta em nenhuma parte, mas também poder se ocupar de seu próprio corpo, para não terminar efetivamente como o Cristo estendido em sua tumba. 31 Conver saçao cl 1n i ca com Jacques- Ala i n Mi ller em B~ r ce lona É uma mulher emigrante e se não fosse esse buraco que se produziu pelo acontecimento traumático, talvez ela jamais se interrogasse por isso. E tudo indica que .foi esse real que lhe tornou possíveis as separações que ela não poderia realizar ... X: Também há a separação do tumor ...Araceli Fuentes: Exato, também a separação do twnor, que é algo fundamental, já que enquanto a melhora terapêuti- ca ia in crescendo) cada dia se encontrava melhor, acontece que esse tumor continuava aí e ela havia deixado que fosse cres- cendo. Era um tumor que poderia ter acabado com ela. Lucfa D'Angelu: Gostaria de abordar o caso por outra vertente, a do lugar do analista na direção desse tratamento. Chamou-me muito a atenção, e é algo que faz a particularidade do caso, a proliferação de sonhos, de formações do jnconsciente. Estou de acordo com Pierre-Gilles Guéguen em que a entrada no dispositivo é uma entrada fantasmática e não pelo lado sin- tomático. Creio que você trata muito bem quando emprega o termo sonhos resolutivos, afluindo assim em uma tese de anos de Jacques-Alain Miller, a do inconsciente intérprete, em que sempre cabe a pergunta, frente ao engenho do inconsciente para produzir sua interpretação, pelo lugar que resta então ao analista. Eu pude notar que praticamente não houve interpretações do lado do analista. E isso, acredito, se produz por essa formação fantasmática. O que me faz pensar que, da mesma maneira que o analista deve causar o sintoma para lhe dar sua forma analíti- ca, ele deve também cumprir uma função que está aqui muito bem descrita: causar o relançamento significante das formações do inconsciente. Perguntava-me, então, se não há interpretações, ou se as interpretações do inconsciente foram suficientes, que lugar tem essa posiç.ão que você descreve no início do caso 32 Efe itos te r apêuticos r ápidos e~ ps icanálise como a de "não desculpabilizar". Em segundo lugar, quero per- guntar-llie se a saída do caso como efeito terapêutico, mais além das questões descritas por você, é que essa paciente saiu com a culpa inscrita subjetivamente, dado que a primeira passagem que realiza é não socorrer, sair correndo e não atender à multiplici- dade de "cristos mutilados" que h avia entre os feridos pelos atentados. Pergunto-me se é por esse lado que você tomou a direção da cura em relação com a culpabilidade. Vicente Palomera: Há muitas coisas que já foram men- cionadas, porém, lembraria dois aspectos. O primciro, tal como assinalou Araceli Fuentes, é que o paradoxo ou o mais carac- terístico deste caso é o encontro dessa mulher com esse ódio completamente desconhecido para ela. Pareceu-me muito rele- vante o que mencionou Ricard Arranz quando se lembrou do Homem doi Ratos no encontro com seu gozo ignorado. É ver- dade - e isso é paradigmático -que aqueles sujeitos que, ante uma situação traumática, mais desconhecem as pulsões que os habitam, o mais obscuro de suas pulsões, são os mais inclina- dos, os mais lábeis ao afeto traumático, mais que os sujeitos que têm um certo saber sobre esse gozo que os habita. De maneira que isso mostra uma vez mais que essa mulher se encontra com algo desconhecido para ela até esse momento. Sem dúvida, nós temos que evocar o "fator deslocamento". Isto é, que na ima- gem do Cristo há algo que retorna sob a forma alucinatória, essa figura retoma sob a espécie não do deslocamento ou do recalque, senão sob a forma do percebido, isso retorna sempre no momento posterior ao trauma. É por isso que é necessário um terceiro tempo, que é o dos sonhos. para elaborar essa imagem que retoma como alucinação. Não sei se é da ordem da fantasia, como assinalava Pierre-Gilles Guéguen, ou se será enfim aquilo que Freud denomina o retorno do traumatismo sob a forma de um pesadelo, tal e como ele propõe em seu texto Além do principio do pra!?Jr. 33 Conver saça o cl fn i ca com J~coues -A i ai n Mi l l er em Barcel ona Eu estou de acordo que se.trata de uma mulher cujo problema já estava presente antes do atentado: ela não podia se separar de um olhar> o olhar de seu fi . .Lho. É assim que o olhar desse Cristo vem ocupar esse lugar. O que me ensinou esse caso é, sobretudo, que sempre, quando se trata da cünica do traumatismo, há dois momentos claramente diferenciais. O primeiro momento é o relato que o sujeito faz sobre o encon- tro com o real do trauma. E o segundo momento é o fato de que sempre há uma implicação subjetiva, ou uma internaliza- ção do trauma. Ou seja, se não há uma participação subjetiva não se produz ou não há incidência do acontecimento traumático. Neste caso, o elemento que faz a mediação, que faz com que exista uma participação subjetiva com esse aconteci- mento traumático, é justamente ·que, durante a fuga, ela se encontra com alguém ferido que lhe recorda a imagem de uin Cristo. Isso poderia ter-se produzido o u não, porém é verdade que isso a leva a todo esse trabalho de elaboração que realiza, não por meio das interpretações senão por meio dos sonhos que são em si mesmos uma maneira de deslocar o percebido, de metonimizá-lo, poderíamos dizer. de inscrevê-lo em outra cadeia de representações distintas do acontecimento traumáti- co. O que nos proporciona outro ensino: que, em certa medi- da, o tratamento de um caso de traumatismo consistiria em se deslocar o sem-sentido do traumático para outra cadeia que o isole como sem-sentido. Isto é, o sem-sentido do trauma se deslo- ca como sem-sentido em outra cadeia. Um dos méritos deste caso é ter demonstrado como se produz esse deslocamento pela via de uma elaboração sucessiva de vários sonhos que lhe permite isolar ou metabolizar um pouco esse encontro traumático com o acontecido. A meu entender> nisso, este caso é paradígmático da clínica do trauma. 34 Efe itos terapêutico & rápidos em p s ican~li se ]uar1 Carks Tazedjian: Eu vou continuar na mesma via aberta por Lucia D' Angelo, o sujeito da culpa. Se existe um primeiro momento de implicação subjetiva via culpa, há tám- bém um segundo em que se diz que é o ódio, mas também, talvez, a vergonha. Seria preciso pensar qual é a diferença entre os dois. Eu não consegui entender bem o que aconteceu com essa culpa que era algo assim como o testemunho de sua divisão subjetiva no momento da demanda_ Araceli ruenter. Com respeito à posição do analista, junto com as observações que realiza Lucia D'Angelo, o que posso dizer é que, durante todo o tempo, tratei de que o sen- tido não viesse tamponar a produção, quer fosse o sentido pelo lado religioso, quer fosse o sentido do lado do ódio. Todo o tempo, tratei de que houvesse um lugar vazio. E aí acres- centarei algo mais que não está escrito no caso e que talvez aclare um pouco as <:oisas, já que penso que descreve qual foi minha posição neste trabalho. Houve um momento em que essa mulher, antes dos sonhos, teve um ato falho: em lugar de dirigir-se para a Rede de atenção, toma um ônibus em direção contrária. Ou seja, que em certo sentido faz o mesmo que fez quando houve as explosões, sair correndo em sentido con- trário ao lugar onde estouraram as bombas, posto que ela tomou o primeiro ônibus que encontrou sem ter nenhuma idéia de para onde ia. E, em uma das primeiras entrevistas, em vez de vir para a Rede de atenção, toma um ônibus por equívoco, em sentido completamente oposto, e tem de me chamar por telefone para me dizer que se equivocou, que se confundiu de ônibus, e que foi para outro lado. Não incluí esse ato falho no relato do caso, porém insisto em que eu sem- pre tratei de que o sentido não viesse tamponar esse buraco que se abriu na vida dessa mulher. E efetivamente não há ne- nhuma interpretação, as interpretações que existem são pela via do inconsciente. E como disse Vicente Palomera, há essa 35 Convers açao c lt ni ca com J acqu es - Al a ln Mil le r em Ba rcP.l ona implicação subjetiva no trauma através da figura do Cristo muti- lado, e, ftn.almente, o que há é - tal como o sublinha Pierre- Gilles Guéguen - um velamemo, já que o homem do último sonho- e sonho com o qual se conclLÜ o tratamento- é um homem sem rosto, cujo efeito sobre ela é de tranqüilizá-la. Frm;cisco &co: Queria fazer uma pergunta muito concreta: o que sabia essa mulher da personagem de CaroúnaOrdofiez? Pergunto isso em referência ao sexto sonho que aparece narrado no caso, fora de toda série dos sonhos e dire- tamente vinculado ao fato de que ela se encarrega do seu próprio corpo. Não sei se isso é uma mera anedota ou se o sonho coincide com a morte dessa mulher, ou se, pelo con- ttà.tio, essa mulher vem representar um ideal de mulher para ela. Arauli Fuentes: Com efeito, Carmina Ordófiez havia morrido naqueles dias. É uma personagem das revistas do coração, da imprensa rosa, uma mulher que deveria ter mais ou menos a idade da minha paciente e cujo nome inclui o dela, "Car-mina". Como todos sabem, essa mulher foi ftlha, esposa e mãe de toureiros, esteve muitos anos em todas as revistas e finalmente acabou mal, já que foi encontrada morta em uma banheira e não se sabe se foi suicídio ou não, já que fazia, ao que parece, consumo de dro~s. Esse comentário sobre Carmina Ordóiiez, ela o traz no dia em que me conta do tumor, do qual não se havia ocupado durante meses... E me diz: "Que curioso que me tenham afetado tanto os atentados e isso que está acontecendo com meu próprio corpo não chame a minha atenção ... ". Entretanto, um pouco depois, me conta o sonho da morte de Carmina Ordófiez. 36 Efei t os t e ra pêu t ic os rdp 1dos em ps l cao6l fse ]acq11es-Aiain Miller: Não quero ser demasiado cínico, somente um pouquinho, porém agora que estamos um pouco longe dos atentados de Madri, podemos dizer, entre aspas, entre nós, que foi um espetáculo, um espetáculo mundial, como assinala muito bem essa senhora, que é mai~ importante que o pequeno quisto escondido em seu corpo; é mais impor- tante para ela a superprodução islâmica que se produziu em Madri. Vinha lendo no avião um artigo sobre o senhor Boris Groys, um professor alemão que vem dar uma conferência em Barcelona sobre um livro que trata sobre o novo. Em seu livro, que ainda não chegou às livrarias de Barcelona, vem pro- por que finalmente Osama Bin Laden é um empresário, um produtor de vídeo-espetáculo para o mundo. Começou em Manhattan, continuou em Madri, énfim, esse professor propõe tal conclusão cínica. Porém, há que dizer que a paciente também vem dizer algo desse estilo. De tal maneira que podemos aprender algo do que é o trauma através do caso. Porque o interessante não é verificar o que já sabemos, senão o que cada caso nos ensina como algo novo. Nunca consideramos os casos a partir da rapidez dos efeitos terapêu- ticos, nunca foi um interrogante nosso, provém de nosso trau- matismo do ano passado, de nosso traumatismo francês de encontrar-nos com o senhor Accoyer, e com um informe supostamente científico do Instituto de Saúde da França, no qual se avalia a eficácia dos tratamentos, e r(""·,Jta que a psi- canálise é o pior aluno da classe, e que a terapia cognitivo- comportamental - cujos profissionais são habitualmente considerados como uns miseráveis - se alça com o prêmio e as felicitações do júri. Isso proporcionou à psicanálise uma inveja e um trauma terrível e explica que agora -. - que se inverteu a questão, e ao final as coisas voltaram a ser colocadas em seus lugares - nós primeiro e os outros ... Anue/i F11entes: ... os outros para a fila. .. 37 Conver saçao cl l nica com J acq ues- Alafn Hi l ler em Barce lo na Jacques-Aiain Millet: ... Sim, bom, não terminou a . história, porém nós estamos nos recuperando do trauma- tismo. Pois ocorre que agora são os outros que estão trauma- tizados, e por isso desde segunda-feira passada gritam cada dia em todos os jornais franceses, é muito divertido. Então, por causa desse traumatismo de que temos padecido, tratamos de colocar a pergunta: quem cura melhor? O hipnotizador? O neo-hipnotizador pavloviano modificado do século XXl? Essa é wna velha personagem, a conhecemos bem, tinha uma péssima reputação em meados do século XX - e há que ver por que ela tinha tão má reputação antes e a tem melhor agora -tinha má reputação e a tem melhor agora e tem sido sem- pre como wna cruz do Leste e do Oeste. Pavlov era o úrúco soviético que era apreciado nos Estados Urúdos porque era fast, rápido, havia como um ponto de convergência entre o comunismo e o capitalismo nesse tema de ir rápido. Stalin dizia que para algumas coisas havia que unir. o melhor do espírito norte-americano com o melhor do espírito eslavo. A hipnose, o behavorismo, o pavloviarúsmo são da mesma fanúlia. Todas essas terapias cornportamentais tratam pela sugestão e se propõem a curar sugerindo ao paciente que recupere a confiança em si mesmo. Esses professores de con- fiança escrevem livros sobre o tema: "A felicidade, através da confiança em si mesmo". Há dois dias, o Le Monde publicou a opinião de alguém que se apresenta como médico e que censura o ministro da saúde francês por haver feito uma ofensa ao Instituto Francês da Saúde e ao seu informe sobre as psicoterapias, dizendo que nunca se viu um ministro, um poütico, censurar a ciência. E quem é esse senhor? Uma busca rápida oo Google nos informou que é um autor de livros de auto-ajuda, escreveu livros sobre grandes depressões e pequenos males e tem um escritório de conselhos para as empresas que se chama Stimulus. E, para com- pletar, ele escreveu wn livro em companhia de dez univer- 38 Ef e itos terapêuti cos rá pi dos em psican~l ise sit:á.rios, e vocês sabem de qual país? Do Canadá, de Québec. É assim que esse senhor se apresenta em um jornal francês, nes- sas circunstâncias de inversão da relação de forças, e defende a ciência contra a política. Devo dizer que esse "Senhor Sti.mulus" é para nós um presente do céu. Essa gente estava até agora na sombra e, agora que sai, nós vamos ver o que fazer. Bem, estas são terapias que pretendem curar com a con.fiança em si mesmo. As afirmações que fazem são: podemos curar, podemos curar rapidamente, podemos avaliar quantas sessões são necessárias a partir de um sofrimento dado para retirar o sujeito de seu mal. Sem dúvida, a psicanálise está em déficit a respeito dessas terapias porque não é nosso estilo, não somos vendedores de felicidade nem de confiança em si mesmo. Pensamos o contrário, tuna análise necessita que o sujeito perca sua confiança em si mesmo, e que não a recupere demasiado rápido, de tal maneira que possa ficar aberto o bura- co para que siga trabalhando. E, se há efeitos terapêuticos, são indiretos. As terapias breves são bons exemplos de foror sanandi, desse desejo de curar contra o qual F reud nos advertiu. Evidentemente, a natureza do tratamento analítico faz com que seja de longa duração. Uma análise é wn trata- mento de longa duração, enquanto que as terapias cognitivo- comportamentais se apresentam como breves. E são breves porque o sujeito não poderia suportar o tipo de pressão que lhe faz o terapeuta por longo tempo (risos). ~"hmete o paci- ente a tal p ressão moral e. eventualmente, flsica, que a tortura não se pode prolongar. É o que se vê muito bem no ft.lme Laranja n;ecânica, que é realmente uma obra-prima inesquecível. Nós sabemos que, em pouco tempo, logo após o iní- cio da análise, e às vezes quase simultaneamente a esse início, temos uma melhora do sujeito. É algo que pode durar até um ano. Foi o que os norte-americanos chamaram a homymoon, a lua-de-mel da psicanálise. Precisamos estudar mais precisa- mente esse momento para responder à forte propaganda - 39 Co~versacao clin ica com J acques-Al a l n Hi l l er em Bar celona forte porque . tem confiança em si mesma - dos senhores StimJIItts (risos). Por que não há ainda. uma elaboração sobre esse ponto no CPCT de Paris, tampouco no CPCT de Barcelona, mais jovem, é verdade? Sem dúvida que nós sabemos que a cura analítica longa tem efeitos rápidos. Pergunta: Pode-se definir em psicanálise uma cura rápida? Entenda-se a dife- rença, não ~ o mesmo que a cura longa com efeitos rápidos. O interessante de começar com o caso de Araceli Fuentes é que, dos três primeiros casos, é o mais rápido: 20 sessões. Ah, não!Antoni Vincens é o vencedor, com três sessões! Segunda Araceli Vincens, com 201... (risos). Vamos fazer um concurso com isso; depois virá um com uma sessão, é conhecido porque se fez o método de uma sessão. E o cúmulo, é a cura de zero sessões (risos); alguém que, escutan- do coisas em uma conferência, se sente curado. No caso "O traumatismo de Minna", a paciente sofreu um traumatismo, e isso passou com 20 sessões. Hoje em dia, quando as pessoas têm um traumatismo por situações de perigo ou de atentados, os terapeutas se precipitam para oferecer seus serviços. Fazem-no os outros, e tratamos nós de fazê-lo para ver o que acontece, para estar a par. Uma pergun- ta é se é realmente necessário intervir; se não se curariam por si mesmos, com zero sessões, como as fobias, como Lacan dizia do pequeno Hans, fobias que mobilizam o pai, a mãe, a Freud e a toda a comunidade analítica que lê o caso Hans. A maioria das fobias infantis se cura naturalmente. Não há que fazer toda uma história, é muito importante pelo que nos ensi- na a fobia do pequeno Hans, porém, como fenômeno, há que suportá-lo um tempo. Há que distinguir entre os ttauma- tismos, porém eu proponho o método de zero sessões. Pode estar nisso a contribuição específica da psicanálise, dizer que a indicação para a cura é de zero sessões, The zero sessions treat- tnent (risos), que é de uma grande economia, é o tratamento 40 Efei tos terapêut icos r4pi dos em psican ~lls e mais eficaz, mais rápido, mais barato, porém é muito difícil, há que pagar ao analista que aconselha as zero sessões (risos) . "O traumatismo de Minna"; não digo que cada trau- matismo seja assim. Em todos os casos nos quais há trauma, há que se perguntar o porquê. Nos atentados de Madri, houve traumatizados e não traumatizados. Não são suficientes o fogo, as mortes, os incêndios ... É um espetáculo magnífico de sangue e violência, além do mais, as pessoas vão vê-lo no cine- ma por prazer. E o perigo em si mesmo não é trawnatizante. As pessoas se põem em perigo por prazer, por exemplo, quan- do fazem saltos de cima das pontes. Há muitos esportes que são perigosos, eu considero todos os esportes como perigosos (risos). Está-se mais seguro em sua mesa trabalhando Lacan que fazendo esporte (ritot). Por que, neste caso, houve um traumatismo? Este caso me fez pensar em um princípio: que se produz um trnu- matismo quando um fato entra em oposição com um dito, com um dito essencial da vida do paciente, quando há uma contradição entre o fato e o dito. Neste caso, o dito é o famoso pai-todo-amor. Minna viveu, desde pequena, em um mundo cuidado por um pai- todo-amor, um mundo ordenado por um pelo todo-amor, pelo Cristianismo verdadeiro, em que se deve oferecer a outra face- se ainda a tem (risos). O que trnumatiza Minna é que não há mais outra face a se oferecer. No mundo do pai todo- amor, isso é um fato totalmente incompreensível. Se houvesse sido criada em um mundo em que o pai dissesse que os demais são uns bestas, que as pessoas se devem defender, que sempre há que matar primeiro antes de ser morto, aí seria outro relato. Em um mundo assim, os atentados viriam con- firmar a lição do pai, porém, para ela, eles fazem desaparecer um pilar de seu mundo. Para fazer uma comparação, há que pensar na famosa catástrofe de 1751 - se me lembro bem, digo-o de 41 Conv e rs açao c lin ic a com Ja cqu es - Al a in Hill er em Barce lona memória - de Usboa, quando se produziu o tsunami de U sboa. Era um tsunami, apesar de não o chamarem assim naquela época, mas era o tsuna!1IÍ do século XVIII, quando o pobre Leibniz explicava a todo o mundo que Deus calculava que o mundo era o melhor dos mundos possíveis e que o mal era um componente necessádo. Se se acreditava que, nesse cáJculo de Deus, entrava esse tSimami que faz desaparecer em três minutos uma das capitais da Europa, deveria haver então algum transtorno no computado r divino. Voltaire debochou de Leibniz, fazendo um famoso poema sobre o desastre de Lisboa. Esse é um momento crucial da história das idéias européias. Assim como houve o tsJmami de Lisboa e que colo- cou a visão de Leibniz em questão, os atentados de Madri e os atentados de Manhattan não são mais traumatizantes para nossa concepção do mundo como no século XVIII. É inegá- vel, porém, que os recentes atentados deram lugar a impor- tantes interrogações intelectuais: O que são as civilizações? Há civilizações não civilizadas sobre alguns pontos? Ou não é bem assim? Para essa mulher, o traumatismo me parece ser a conseqüência de um hiato, de uma incompatibilidade entre um mundo que tem wna lei, aquela do pai-todo-amor, e a emergência do real sem lei. "O real é sem lei", é uma expres- são enigmática de Lacan no Seminário O sinthoma, que vai ser lançado em francês no próximo mês. O mundo de Mínna é com lei, o todo-amor preside o mundo. Há wna contradição entre esse mundo e a emergên- cia de algo sem lei, ou a emergência do ódio que descobre em si mesma também. Converte-se em wn mundo ilegível. Isso é algo muito bonito neste caso: vemos que se engancha na transferência e que finalmente consegue dormir de novo. Havia visto a verdade horrível que é o real sem lei . .É somente por utn. acaso que wn tmnami não vem do mar até aqui e destrói nossos conceitos. Pode vir em qualquer 42 Efeltos terapêuti cos rápidos em ps i canáli se momento, e não sei para que lado iríamos. O tsunami de Barcelona. Parece que foi há pouco quando houve um avião da Air France, seqüesttado por rebeldes da Argélia, que queria voar e fazer o mesmo, antes de Manhatun, com a Torre Eiffel. Pode ser em qualquer lugar. É muito bonito ver como, finalmente, através dos sonhos, precisamente, o sujeito consegue recuperar o sonho comum aos humanos. Heráclito dizia que, quando um homem sonha, ele está só em seu mWldo e que, somente desperto; ele compartilha o mesmo mundo com os outros. A verdade é que, despertos, compartilhamos todos o mesmo sonho. E, para essa senhora, o que chamamos traumatismo é sair do . sonho comum, do sonho de que tudo vai terminar bem, ou mais ou menos, que a vida continua. A cura, chamemos assim, é voltar a dormir, voltar a recuperar o sonho comum. É o que Araceti expressa muito bem, falando da restituição da trama do senti- do. Se alguém quer um exemplo pat·a mostrar que o incons- ciente é o discurso do Outro, há que tomar isso. Poder-se-ia escrever uma obra de teatro a partir de cada sonho. Por exemplo, a partir do pesadelo pós-traumáti- co: o homem-Cristo sepultado e o olhar. Ele se lembra dela. É o homem divino ferido, exemplo de um Deus que a abando- nou, de um pai que a abandonou. Ela se encarna no corpo do Cristo enterrado. Outro ponto: quando então se inicia a transferência? Em minha opinião, ela começa quando Aracd.i lhe demanda um dicionário. De romeno, eu suponho? Araceli l:'uentes: .Sim, sim. Jacques-Alain Miller. Ela lhe demonstra um interesse pelo pai, pelo pais de sua infância. E imediatamente ela vem com um sonho de transferência. Isto é, desde que você lhe pede a chave da lingua, as mensagens chegam. Araceli: "Peço- 43 Conversaçao clfnica com Jacques-A l ain Hi l l er eM Barcelona lhe o código, - Minna: ' 'Eu te dou as mensagens". Pode-se expressar bem a lógica perfeita disso. Em meio ao caos dos atentados, dos pesadelos, da síntomatologia pós-traumática, uma lógica impecável é aberta. Depois, vem o segundo sonho: "Muita gente a olha- va. Ela se sentia tranqüila. Uma mulher a convida a ficar.". É a encarnação da situação analítica. No terceiro sonho, ela está nos esgotos de Bucareste com uma cigana e, bem, há a luz na saida do túnel. Enfim, é um discurso constante: pode-se sair, está bem, estou bem com essa mulher, pode-se sair, a cigana vai-me deixar ir. Vem assim desmentir as palavras da mãe. E, ao mesmo tempo, já sente que uma solução é desprender-se do dito religioso. Como se lê ao final do comentário de Araceli sobre o terceiro sonho- "Está furiosa com seus pais por preferirem seus preceitos reli- giosos a ajudar seu fllh\)". O que se revela traumatizante está ai, no dito. Em seguida, vai ver a Cruz dos Caidos. Se me recor- do bem, pois só a vi em fotos, é uma cruz enorme, é realmente a simbolização do vivido no imaginário. Nós temos em segui- da a emergência da palavra "parafuso", que é uma palavra muito semelhante à serpente em romeno, e que realmente é a encarnação das parcas. E diz: "Em seguida, vem a expulsão do paraiso onde existia a felicidade completa" . O sonho repre- senta o traumatismo. Ela vivia na felicidade do pai-todo-amor e é o que se destruiu com os atentados. O que se feriu nos atentados foi o pa.i-todo~or, e se desnuda, vamos dizer, o fio da vida que estava recoberto pela fantasia do pai-todo- amor. Quinto sonho: "Há um crocodilo que morde a todo mundo menos a mim". Aqui, é magnífico. Ela se escapa. Não é: "Todo o mundo está bem menos eu, que sou a traumatiza- da". É ao contrário: "m~nos a mim", "e o agarro pelo rabo e o sustento no ar com a boca para baixo". Admirável. E o · 44 Efe i tos t erapêut i cos r~p l dos em psican~lise comentário impecável de Araceli sobre esse sonho: "Ela tem o falo e sabe o que fazer com ele". Não há mais surpresas. Passemos ao sexto sonho. Pelo que entendi, Carmina Ordóõez, símbolo da imprensa do coração, é uma mulher-todo-amor, todo-amores (riros). Uma mulher de todos- amores que vai com o pai-todo-amor. E o sétimo sonho: "Havia um homem sem rosto". Quando Lacan comenta a obra de teatro de Wedekind, O des- pertar da prirnavera, há um rei de duas cabeças, enfim, uma per- sonagem com duas cabeças. E Lacan diz que talvez seja porque há uma personagem sem rosto. Encontramo-lo aqui, encontramos a liberação, finalmente, que não há sujeito que saiba, que o real é sem lei, vamos dizer o legal é sem m~ já não há mais o .rei do mundo. E não é a castração, não é somente a castração do homem de que se trata aqui. É o ponto em que se torna possível para o sujeito desembaraçar-se de todas as idealizações que produzem os trawnatismos. Se não há idea- lização, não há traumatismo. E sse era o ideal dos sábios antigos: não acreditar nos deuses, não acreditar em sua benevolência, de tal maneira que as coisas que ocorrem se;am tomadas como simples fatos sem sentido. Tudo faz pensar que a história de Minna foi perfeita. Essa história, pelo menos como conta Araceli, tem a sua com- pletude. Como se diz: ''Não poderia ser melh<'.:-1" Não se tem o sentimento de que há wn além. Para esse sujeito, para o mal de que sofreu, para a enfermidade que teve, essa história é como perfeita. É um exemplo, me parece, de cura rápida analí- tica. Podemos dizer: ''Nós sabemos fazer isso!" Nós sabemos fazê-lo, quando o hipnotizador, o pavloviano, não sabem. Para curar esse traumatismo, eles vão "contra-traumatizar'' a paci- ente com sua terapia, ou seja, produzir um segundo trauma. Eu estou por promover essa cura, não como um ideal senão como um exemplo do que sabemos fazer com 20 45 Conversaça o cl lni ca com Ja cques - Alain Mil le r em Barcelona sessões. Mas nós temos agora uma de três sessões para discu- tir. O que mostra a rapidez com que avançamos (risos). Traduçio: Vanessa Nahas e Marise Pinto Revisão da tradução: Sérgio de Campos 46 2. Marta Um tratamento em ttês sessões Antoni Vians Marta vem ao CPCf em busca de uma saída para um ponto de angústia que a bloqueia. Tem 30 anos, é casada e tem três filhas, de oito, seis e dois anos de idade. Ela, seu marido e suas filhas vieram da Argentina e chegaram à Espanha quan- do sua ftlha menor tinha acabado de nascer. Seu marido já havia estado na Espanha há algum tempo, quando era solteiro, regressou à AI:genrina e, dessa vez, voltava à Espanha com sua família à procw-a de trabalho. Ao terminar o Ensino Médio, Ma.rta começou a fazer os estudos universitários, mas logo os deixou. Não tra- balhava, foi-se envolvendo com drogas, e sua vida foi-se apro- ximando de uma situação de marginalidade. ~vi então que conheceu o seu atual marido; casou-se e, até uns meses atrás, viveu em função dele, de suas fllhas e de uma personagem inquietante: a mãe do marido. Partimos, então, destas três escansões na vida de Marta: 1) momento do abandono dos estudos e da entrada na dependência química; 2) casamento e inicio da sua dependência em relação ao marido; e 3) uma mudança de posição recente, que exige uma explicação. Vou-me referir às três sessões que tive com ela. 47 Conver s aç ao clini ca com Ja cqu es -Al a in Hill et em Ba rc elona Na primeira sessão, conta-me, angustiada e entre lágrimas, a conjuntura na qual se encontra. Faz alguns meses, "despertou" e se deu conta de que estava vivendo algo insu- portável. O marido a maltrata sem parar, não fisicamente, mas com palavras. Não pode continuar vivendo com um homem que lhe recorda o tempo todo que a tirou da lama, que ela não serve para nada, que é uma merda, etc. Quer separar-se, mas se encont~ sozinha, pois não trabalha, e o marido lhe diz que tudo está bem e que ela está louca por querer se separar. Esse marido está dominado por sua mãe, uma mu- lher que se faz onipresente. E la ,.;aja com freqüência da Argentina para estar com eles durante meses. Ele não faz nada sem antes consultar a sua mãe e sem que ela saiba de tudo; e a mãe lhe diz tudo o que tem de fazer. Quando estão longe, mãe e fllho se telefonam constantemente. O despertar do qual fala Marta refere-se ao momento em que lhe apareceu, de maneira clara, o inaceitável da coação constante que essa pre- sença exerce em relação ao seu desejo, e o intolerável papel de terceiro que essa mulher desempenha para o casal. Entretanto, nas entrelinhas deste relato, no qual o marido é o torturador e ela é a vítima, corre um fio no senti- do contrário: enquanto o marido não se tem ocupado em re- gularizar sua situação legal na Espanha, ou seja, está sem a documentação, Marta tem o processo de concessão de nacio- nalidade bastante avançado. Ela demonstrou que é neta de espanhóis, pelo lado materno e paterno. Desse modo, a res- peito disso, é o marido quem aparece em falta. A angústia se mostra muito pura, como um nó que obstrui e que, ao mesmo tempo, assinala o caminho do desejo. Para dar um eco a essa atualidade que bloqueia o dis- curso, pergunto a Marta se alguma outra vez na sua vida já lhe tinha ocorrido algo semelhante. Ela me conta, então, que, quando tinha 21 anos, morreu sua avó materna, galegd, que a tinha criado e que tinha sido sempre um pilar para ela. Nessa 48 Efei t os te r apêut icos r~p i dos em psícan4 1ise ocasião, sentiu-se muito mal. Iniciou uma terapia, separou-se de um companheiro, começou a usar cocaína, deixou os estu- dos e foi então quando encontrou o seu atual marido. Mostro-lhe a repetição: nessa ocasião, já alcançara sua maioridade (na época, na Argentina, essa condição se adquiria aos 21 anos) e era a sua vez de dar conta de si. A assunção de sua maioridade tinha ficado em suspenso com a morte da avó e agora ressurge de algum modo nessa nova situ- ação. Também lhe assinalo que essa angústia da qual deu testemunho é sua digrudade. A segunda sessão, ela comparece vestida com uma camiseta na qual se lê: No strm, e traz o relato de uma segôn- da repetição. Na idade exata que Marta tem agora, aquela avó galega - a chamaremos de Pilar - tinha ficado viúva e com três fllhos. E Pilar tinha então, na Argentina, o mesmo que ela tem agora na Espanha: a condição de ser uma imigrante. E la me fala de suas três filhas. A primeira foi dese- jada, a segunda e a terceira, não. E la me conta sobre seus sentimentos de culpa pelo nascimento das duas filhas menores, principalmente, da do meio. Os médicos haviam anunciado complicações no pacto. O marido estava em outro lugar e, além disso, lhe era infiel. E Marta esperava esse nascimento, problemático em vários sentidos, colocando-se aos cuidados da mãe do marido.Seu sentimento de culpa provém do fato de ter deixado que as coisas acontecessem desse modo. Ela sabe que deve tomar uma decisão, somente lhe falta se sentir mais forte e também dar algum passo em direção à independência econômica. Sabe também que essa decisão implica a sua familia, pois as f.tl.has fazem perguntas, e ela teme marcá-las com uma separação. E la se dá conta de que I Pessoa natu.r21 de GaUcia, região situada ao noroeste da Espanh~. 49 Conversaçao clinica com Jacques-Alain Miller em Barcelona se encontra ante uma escolha forçada e que para as meninas haveria algo pior do que a separação de seus pais. Na terceira sessão, Marta me conta algo mais sobre a avó Pilar: quando morreu, ela foi a única da família que cuidou de seu túmulo. Faz alguns dias, quando contou a uma amiga que esteve chorando, essa lhe replicou que, até então, nunca a tinha visto chorar. Marta não se havia dado conta disso; ela se lembra de que, com certeza, quando morreu sua avó, não chorou e não voltou a fazê-lo nunca mais até esse momento. Parece, pois, um luto não realizado, deixado em suspenso durante todo esse período. Também me disse que é possível que lhe ofereçam um trabalho. A última coisa que me contou foi uma pequena história que contém um enigma sobre o pai. No verão passa- do, seus pais vieram à Espanha para estar com ela e, também, para visitar seus lugares de origem. Primeiro, foram à Galicia para conhecer a fam.ilia materna; viram o povoado, conhece- ram a casa, reencontraram vários parentes - sem problemas. Seguiram depois seu caminho em direção a um vilarejo andaluz do qual o pai é oriundo. Mas, no caminho, pouco antes de chegar, o pai teve um ataque, subitamente ficou furioso e começou a insultar Marta. Ela nunca o tinha visto assim, achou que ele tinha ficado louco. O resultado foi que a viagem foi interrompida e tiveram que voltar sem ter chegado ao povoado do qual o pai procede. Antes da quarta sessão, Marta ligou para o Centro para dizer que, de fato, llie tinham oferecido trabalho e que havia aceitado e que, por isso, não poderia vir. Foi oferecida a ela a possibilidade de voltar, e ela respondeu que daria um jeito de vir outra vez. Disse que viria, mas até agora algo a tem impedido. Tradução: Osçar Reymundo Revisão da tradução: Jorge Pimenta 50 Efeitos terapeuticos r~pidos em psicandlise Conversação O casamento triangular Elllira Gt1ilaiia: Vamos começar a segunda parte com o caso que Antoni Vicens preparou; é o primeiro caso de um CPCT jovem que iniciou sua experiência em outubro último. Quando indagamos se podíamos apresentar alguma questão, Antoni pensou que essas três sessões marcavam muito bem um ponto que ele destaca como um dos efeitos terapêuticos, e o consentimento subjetivo dessa mulher para aceitar um tra- balho, considerando sua história pessoal, em tudo o que ela pôde elaborar nessas três sessões. Antoní esclarece que se trata de uma mulher de 30 anos, casada, com três filhas, e assi- nala, nessas três sessões, uma primeira e uma segunda repetição. Pierre-Guilles Guéguen: Se tomamos para esse caso breve o método before an actor, temos como ponto de partida uma mulher que chega totalmente angustiada, vivendo mal seu casamento, e que, depois de três sessões, consegue separar-se de seu marido, ou, ao menos, consegue tomar algwna clistân- cia, encontra um trabalho e poderá ocupar-se de suas filhas. Elvit"O Guilaiia: Pôde aceitar o trabalho, esse é o ponto. Pierre-Gilles Guéguen: Pôde aceitar o trabalho, e o que acontece nas três sessões? Antoni acolhe a angústia, autentifi- cando-a, o que permite fixar um ponto de real no simbólico, e daí a transferência vai-se desenvolver. Isso permite que a paciente descubra duas coisas. A primeira é que seu mundo mudou, como dizia Jacques-Alain a propósito do caso ante- rior, a partir do traumatismo causado pela morte de sua avó que era o pilar de sua vida, de sua família. A segunda é que ela 51 Conve r saçao cllnlca com J acques - Al aln Hi l l er e~ Ba rce l ona pode analisar sua situação em relação ao marido e aos ho- mens em geral e sua tendência em marginafuar-se e em se fazer de vítima, como ela efetivamente fez, depois da mu- dança de seu mundo. E, ao fun de três sessões, ela se dá conta de qual era sua posição em relação ao seu pai, que a maltrata- va. Parece-me que, ao fmal, ela encontra uma nova identifi- cação, uma identificação ao pilar, à avó morta, e com isso pode retomar sua vida, em outro âmbito, de outra maneira. Elvira G11ilaiió: Podemos destacar também a pontu- ação que marca Antoni Vicens em relação à angústia que assi- nala o caminho ao desejo. E ele faz essa pontuação à paciente, · dizendo-lhe que "essa angústia da qual ela dá testemunho é sua dignidade". Parece-me que vale a pena destacar esse ponto no caso, para abrir o debate. Mario Iz&ovich: Eu me pergunto se essa mulher já fez uma análise, e se é essa angústia o que a levou à consulta. Antoni Vicens: Pierre-Gilles Guéguen resumiu sucin- tamente os pontos de inflexão do caso. Um ponto essencial é o da angústia, tomar a angústia, você dizia como o real no sim- bólico, ou seja, o que ocupa no simbólico o lugar de das Ding. É por isso que lhe fiz esta interpretação: nessa angústia está sua dignidade. Não foi preciso nenhuma outra explicação, o sujeito compreendeu perfeitamente do que se tratava, já que era muito claro que a angústia apontava exatamente para o caminho de seu desejo. Faltava talvez a palavra de outro que lhe dissesse: "Sim, é aí". ]a&ques-Aiain Miller: O que a despertou? Antoni Vicen.r. O que a despertou foi uma coincidên- cia temporal. 52 Efei t os t erapêuti cos ráp i do s em psicaná l i se ]acqges-Aiain Miller. Você disse: "O despertar de que fala Marta se refere ao momento em que lhe apareceu de maneira clara o inaceitável da coação constante que esta pre- sença - da mãe do marido - exerce com respeito ao seu desejo". Houve algo de especial? Atltoni Vicens: Há uma escansão temporal, agora não sei se a mencionei, porém há uma escansão temporal que já se percebe na primeira sessão. ]açq11es-Afait1 Miller. Algo ligado à nacionalidade? Eu faço essa pergunta porque ela tem a nacionalidade espanhola, e seu marido, não. Não se compreende muito bem de qual acontecimento se trata quando você diz: "É o momento em que ela me conta a conjuntura em que se encontrava há alguns meses, que ela se desperta e se dá conta de que estava viven- do algo insuportável". Minha pergunta é somente se um acon- tecimento preciso a despertou. Antoni Vicens: Há um, mas eu não me lembro exata- mente qual ]atques-Aiain Miller. É a sua idade, alguma cifra? Antoni Vicens: É relacionado com a morte de sua avó. ]acqus-Aiain Miller. Ela se aproxima da idade na qual a avó morreu. Antoni Vicem: Não, da idade em que a sua avó ficou viúva. Eu indiquei: ''A paciente tem hoje a mesma idade que tinha sua avó, quando a mesma ficou viúva e então se erigiu em pilar''. 53 Conve r saçao c11 n ic~ com J acq ues-Al ai n Mi l ler em Barce lona JacqJier-Aiain Miller. É translúcido. Antoni Vicms: É transparente. Jacques-Aiaifl Miller. Translúcido não se diz? A11toni Vicms: Translúcido é um pouco opaco e um pouco transparente, talvez sim, é melhor, é como uma tela na qual se desenha. Jacques-A iain Mil/er. Gosto mais disso. Antoni Vicms: Como os copos das velhas gravuras a ácido na entrada de Freud em Berggasse, onde se viam as ima- gens daguerreotipadas, como a tela da fantasia. Esse é o acon- tecimento que põe .em marcha, que desperta um luto que havia começado, porém não se havia feito. O luto da morte da avó. Perguntavam se havia feito algum tratamento anterior. Sim, havia feito uma terapia nesse momento, quando morreu a avó, seu mundo ficou descomposto, já que, como ela disse, fo i essa avó quem lhe criou. Jacques-Aiain Miller. E ntende-se que essa avó assuma muitos papéis, um papel simbólico; um papel imaginário; e um
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