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Lugares de memória ou a prática de preservar o invisível através do concreto1 Marcia Conceição da Massena Arévalo2 Universidade Federal de Ouro Preto RESUMO Este trabalho apresenta as noções que unem a idéia de patrimônio, como preservador de uma memória, e do espaço, como veiculador da mesma, o que gera o uso da categoria "lugares de memória" que observa o espaço físico (material) como suporte para a formação de uma memória coletiva (imaterial). Utilizaremos para tanto da análise de Nora sobre esta categoria, e exemplificaremos este uso na política preservacionista brasileira com o estudo da primeira ação do IPHAN no qual se utiliza a noção de espaço como portador de um bem imaterial: a preservação do terreiro Casa Branca em Salvador no ano de 1984. ABSTRACT This article presents the Idea of “Memory Place” and how this idea is appropiates by the politics of patrimony preservation. Memory Place is a category that observes the fisical space (material) as support to build a colective memory (imaterial). That idea is studied through Pierre Nora analyse. We argue that one can find that category in the preservation of Terreiro Casa Branca, in the city of Salvador. This preservation deals with space as depository of imaterial patrimony. Palavras-chaves: memória, patrimônio, políticas públicas. I. Introdução Para começar a falar do famoso conceito de "Lugares de Memória" que é observado neste trabalho como categoria apropriada pela política de preservação na década de 1980, teremos primeiro que fazer uma breve discussão do que vem a ser, no trabalho de Pierre Nora, as noções de memória e história. A inserção desta categoria na política de preservação será aqui exemplificada através da análise de um dos casos mais comentados e discutidos de preservação: o Terreiro Casa Branca em Salvador. Nesta análise pretende-se observar a necessidade da ritualização de uma memória e como este processo necessita de um espaço físico como âncora na formação de um tipo de memória exigida na sociedade contemporânea: a coletiva, ainda que não universal, mas que permite ao individuo ter acesso a um processo de identificação. Observaremos o uso que a sociedade faz dos chamados lugares de memória em um contexto no qual o passado sempre é evocado. Este trabalho tentará traçar, por fim, o debate maior no qual está inserido: a preservação de um patrimônio que se diz imaterial. II. Memória como vida e História como fim Jorge Luis Borges, nas suas Histórias da Noite, nos descreve os pensamentos de um dos seus personagens a respeito da vida: "Sabia que o presente não passa de uma partícula fugaz do passado e que estamos feitos de esquecimentos, sabedoria tão inútil como os corolários de Spinoza ou as magias do medo".3 A citação acima exemplifica bem a idéia que Pierre Nora desenvolve no seu já clássico texto Entre memória e história – a problemática dos lugares: a afirmativa de que não existe mais memória, que esta só é revivida e ritualizada numa tentativa de identificação por parte dos indivíduos e que a sociedade utiliza-se hoje da história para lhe conferir lugares onde pode pensar que não somos feitos de esquecimentos, mas, de lembranças: "Os lugares de memória são, antes de tudo, restos. A forma extrema onde subsiste uma consciência comemorativa numa história que a chama, porque ela a ignora".4 Nora está escrevendo sobre memória e história inserido dentro de um novo contexto. Um momento de revisão da prática historiográfica que lhe apresentou o desafio de solucionar o problema de que não há possibilidades para construção de uma história total e que o modelo de uma ciência histórica, aos moldes da ciência social, se revelou falho. A década de 1970 foi marcada pelo descontentamento geral com o mundo pós- industrializado e uma crise que refletia a necessidade da reelaboração da sociedade moderna altamente historicizada, dando origem à chamada "crítica da modernidade". Na modernidade surge a autoconsciência de que o passado não é um livro de exemplos, de que o tempo que se vive é o reino do novo.5 A dinâmica da sociedade de massas parece estar sempre em ruptura com o passado. Para Nora, no entanto, a necessidade de passado se mostra latente através da busca pela memória. Para Nora, na sociedade contemporânea, pós-industrial, dominada pelos mass- media, não há possibilidade de uma história-memória. Esse tipo de história-memória, que predominou no século XIX, dá lugar a uma narrativa que unifica o tempo e lhe proporciona sentido, tratando o passado como processo. Por isso, o passado está perto, porque ele não está morto: "A verdadeira percepção do passado consistia em considerar que ele não era verdadeiramente passado".6 A separação entre memória e história na sociedade contemporânea produz significados bem definidos para o autor. A memória é tida como tradição definidora, portadora de uma herança que dá sentido e forma, é viva e dinâmica. Nora chega a afirmar que ela é "ditatorial e inconsciente de si mesma, organizadora e toda-poderosa, espontaneamente atualizadora, uma memória sem passado que reconduz eternamente a herança, conduzindo o antigamente dos ancestrais ao tempo indiferenciado dos heróis, das origens e dos mitos", é como se ela, enquanto narrativa, tendesse a cumprir o papel que o mito tem nas sociedades tradicionais, ou seja, fundamentar e organizar.7 A história é o correlato opositor, como narrativa unificadora ela separa e seleciona os fatos. Petrifica, congela e, sobretudo, mata os momentos de memória, pois coloca o passado como algo distante e misterioso, portador de uma aura que deve ser sempre analisada, criticada e revista. A história cria uma identidade universal que precisa ser absorvida em contraposto às várias identidades fragmentadas, cada qual com sua memória específica. Nora dirá então que "a memória se enraíza no concreto, no espaço, no gesto, na imagem, no objeto. A história só se liga a continuidades temporais, às evoluções, e às relações das coisas. A memória é o absoluto e a história o relativo".8 Com a observação desses dois conceitos, Nora faz o que parece ser a sua grande denúncia: vivemos o momento em que as sociedades modernas, no limite de sua transformação da memória em história, a eliminou já quase por completo. Para esse autor o presente "é o momento preciso onde desaparece um imenso capital que nós vivíamos na intimidade de uma memória, para só viver sob o olhar de uma história reconstituída".9 III. O momento dos Lugares de Memória. A memória existente é então história, "tudo o que é chamado de clarão de memória é a finalização de seu desaparecimento no fogo da história. A necessidade de memória é uma necessidade da história".10 O apelo que nossa sociedade faz de preservação de sua memória é, em ultima instância, a necessidade de reconstituição de si mesma, encarada como algo formado do passado para o presente, por isso, preservar vestígios, trilhas, fósseis, etc. 11 A sociedade precisa da história como instrumento para encontrar um significado que não lhe é mais inteligível. Foucault apontava que, a história contínua é o correlato indispensável à função fundadora do sujeito: a garantia de que tudo que lhe escapou poderá ser devolvido; a certeza de que o tempo nada dispensará sem reconstituí-lo em uma unidade recomposta; a promessa de que o sujeito poderá, um dia – sob a forma da consciência histórica -, se apropriar, novamente, de todas essas coisas mantidas a distância pela diferença, restaurar o seu domínio sobre elas e encontrar o que se pode chamar sua morada.12 Sendo assim, Nora apresenta sua categoria de "Lugares de Memória" como resposta a essa necessidade de identificação do indivíduo contemporâneo. São nos grupos “regionais”, ou seja, sexuais, étnicos, comportamentais, de gerações, de gêneros entre outros, que seprocura ter acesso a uma memória viva e presente no dia-a-dia. Nora conceituará os lugares de memória como, antes de tudo, um misto de história e memória, momentos híbridos, pois não há mais como se ter somente memória, há a necessidade de identificar uma origem, um nascimento, algo que relegue a memória ao passado, fossilizando-a de novo: “O passado nos é dado como radicalmente outro, ele é esse mundo do qual estamos desligados para sempre. É colocando em evidência toda a extensão que dele nos separa que nossa memória confessa sua verdade como operação que, de um golpe a suprime.13 O autor, na sua busca para uma solução possível ao problema de "não se ter memória", pontua que se não há uma memória espontânea e verdadeira, há, no entanto, a possibilidade de se acessar a uma memória reconstituída que nos dê o sentido necessário de identidade. Para Nora: "Os lugares de memória nascem e vivem do sentimento que não há memória espontânea, que é preciso criar arquivos, organizar celebrações, manter aniversários, pronunciar elogios fúnebres, notariar atas, porque estas operações não são naturais".14 Isso faz parte de sua idéia de que os lugares de memória se configuram essencialmente ao serem espaço onde a ritualização de uma memória-história pode ressuscitar a lembrança, tradicional meio de acesso a esta. Os lugares de memória estão, portanto, definidos por este critério: "só é lugar de memória se a imaginação o investe de uma aura simbólica [...] só entra na categoria se for objeto de um ritual".15 Toda essa atenção de Nora à necessidade de ritualização da memória pede que pensemos na função que o ritual exerce nas sociedades. O ritual, segundo a enciclopédia britânica, é definido como "uma forma de se definir ou descrever os homens, sendo assim, pode ser visto como um sistema de atos simbólicos baseados em regras arbitrárias".16 Isso implica em dizer que o rito, ou a ritualização de algo, está intrinsecamente ligado à ação de formar. Um dicionário de antropologia apresenta os ritos como "representantes do modo tradicional de comportamento em que se refletem, ao mesmo tempo, crenças idéias, atitudes e sentimento implícitos e explícitos".17 Portanto, os ritos seriam a reprodução de uma essência expressa através da cultura, aqui entendida como comportamento, pois é a forma com que os homens se relacionam com a natureza. Na enciclopédia de ciências sociais, encontramos a seguinte definição: Ritual é uma forma de descrever e elaborar comportamentos e acontecimentos ambos como invenção espontânea do individuo, especialmente da compulsão neurótica e como traço cultural. O simbolismo empregado como base do ritual ilumina, por um lado, a psicologia do paciente e, por outro, os padrões de comportamento cultural.18 Tal definição nos permite explorar ainda outro sentido para o ritual, este carrega em sua configuração regras sociais e é realizado para lembrar ao grupo de seu elemento fundamentador. Essa idéia pode ser complementada com a observação que faz Marcel Detiénne de que o ritual se repete instintivamente, "como se só as práticas de culto pudessem garantir a coesão e estabilidade do grupo".19 Já a definição de Lévi-Strauss traz um elemento importante a ser destacado. Esse autor sublinha em um dos seus estudos que, o rito distingue até o infinito, atribui valores discriminativos aos menores elementos, mas também se abandona a uma orgia de repetições. Através das palavras proferidas, gestos cumpridos, objetos manipulados, o ritual tanto introduz diferenças no seio de operações que poderiam parecer idênticos, como reproduz interminavelmente o mesmo enunciado, mostrando assim estar estranhamente habitado por uma obsessão: refazer o contínuo a partir do descontínuo, evitar toda interrupção na continuidade do vivido [...].20 Portanto, o ritual teria, nessa definição, o papel narrativo de consolidação e totalização, é através de sua prática que se reúnem elementos característicos de um grupo, conferindo-lhe sentido, unificando-o. Podemos construir algumas hipóteses com essa pequena pesquisa sobre o significado do ritual. O ritual tradicionalmente pode ser tido como função social ao lembrar aos membros de um grupo seus princípios, pode ser ferramenta de construção de uma totalidade para o grupo, e também tem como características formar os indivíduos envolvidos no grupo. Então, concluímos que Nora utiliza-se enfaticamente da ritualização de uma memória-história em um determinado espaço denominado Lugares de Memória na esperança de que essa possa reunificar o individuo fragmentado com o qual lidamos na sociedade contemporânea. O autor, assim como tantos outros, na sua desilusão com a modernidade e o desejo de explicar a sociedade contemporânea, está tentando encontrar meios de adaptar essa sociedade do "pós", de entendê-la, estuda-la. Podemos observar como esse discurso sobre os lugares de memória como único meio de acesso da sociedade a sua memória formadora, organizadora e portadora de sentidos encaixa-se dentro da crise pela qual passa as formas de conhecimento na década de 1970. Não há mais chances de totalização de uma sociedade completamente fragmentada, o que torna impossível uma grande teoria, mas, para Nora, a ritualização traria o elemento ausente, ela totalizaria. Ainda que o ritual não sirva mais como formador de identidade, tem a função de coesão e assim, através dos lugares de memória, onde os indivíduos podem se reconhecer como sujeitos, reuniria aquilo que o fim da história- memória provocou: "a multiplicação de memórias particulares, que reclamam sua própria história". Para Nora, os lugares de memória são espaços criados pelo individuo contemporâneo diante da crise dos paradigmas modernos, e que com esses espaços se identificam, se unificam e se reconhecem agentes de seu tempo, isto é, a tão desejada volta dos sujeitos: "a atomização de uma memória geral em memória privada dá à lei da lembrança um intenso poder de coerção interior. Ela obriga cada um a se relembrar e a reencontrar o pertencimento, princípio e segredo da identidade. Esse pertencimento, em troca, o engaja inteiramente".21 O interessante é observar como Nora utiliza ainda de categorias da modernidade para explicação da sociedade que ele diz surgir com sua ruptura, afinal, o desejo de resgatar uma memória que autolegitima uma ação no presente evidencia a concepção da história como processo que encadeia passado, presente e futuro. Isso fica evidente no trabalho de Nora em passagens nas quais percebemos a nítida ligação entre lugares de memória e redes sociais. A memória é por ele despercebidamente observada como campo de conflito para o reconhecimento de diferentes grupos sociais numa entidade maior: "Há uma rede articulada dessas identidades diferentes, uma organização inconsciente da memória coletiva que nos cabe tornar consciente de si mesma. Os lugares de memória são nosso momento de história nacional".22 IV. A preservação do Terreiro Casa Branca: o espaço como Lugar de memória. A política de preservação do chamado patrimônio Imaterial, inaugurada com a legislação do decreto 3551/2000, tem como suporte metodológico a abertura de livros temáticos, onde acoplados por sua característica principal serão registrados os bens culturais. Um destes livros tem como nome “Livro de registro dos lugares” no qual, segundo o texto do decreto, estarão inscritos "mercados, feiras, santuários, praças e demais espaços onde se concentram e reproduzem práticas culturais coletivas", o decreto ainda observa a finalidade desta inscrição: "A inscrição num dos livros de registro terá sempre como referência a continuidade histórica do bem e sua relevância nacional para a memória, a identidade e a formação da sociedade brasileira".23 Francisco Weffort, então Ministro da Cultura quando da legislação do decreto, em carta ao Presidenteda República expondo os motivos de sua criação e do registro de um patrimônio imaterial, afirma que uma das utilidades do registro, como nova ferramenta de proteção legal do patrimônio, seria a de "instituir obrigação pública e governamental, sobretudo de inventariar, documentar, acompanhar e apoiar a dinâmica das manifestações culturais, mecanismo fundamental para a preservação de sua memória".24 A idéia exposta no livro de registro dos lugares é essencialmente aquela aqui já apresentada, que o espaço pode e traz uma memória coletiva, fundamentada pela realização nele de práticas culturais e que, por isso, deve ser preservado. A política de preservação, no entanto, ainda observa a categoria nação. O espaço que tem uma memória coletiva que deve ser preservada é aquele que identifica um grupo social importante na construção de uma identidade maior: a da nação brasileira. A política de preservação iniciada em 2000 traz elementos que desde a década de 1980 já estavam sendo discutidos e apropriados, especialmente após a gestão de Aloísio Magalhães no IPHAN, que teve papel fundamental na reorientação pela qual passou a política de preservação federal nos fins da década de 1970. 25 Um destes elementos presentes já na política do IPHAN durante a década de 1980 é exatamente a noção que Nora expõem: a de Lugares de Memória. O exemplo que podemos observar claramente é o da preservação do terreiro Casa Branca em Salvador. A polêmica gerada a partir da preservação deste bem nos mostra como estava em jogo uma visão de patrimônio diferente daquela desenvolvida desde 1937.26 O terreiro Casa Branca, segundo seus integrantes, foi fundado no começo do século XIX, inicialmente atrás da Igreja da Barroquinha, no centro de Salvador, posteriormente (na metade do mesmo século) foi transferido para a periferia de Salvador onde se encontra até hoje. Considerado o terreiro mais antigo do país, teria sido fundado por um grupo de sacerdotisas da nação Nagô que o teriam consagrado a Xangô (senhor do raio e do trovão). Isto indica que o terreiro seria a primeira casa onde se celebrava as tradições da mitologia Iorubá.27 Na década de 1980 a região onde se encontra o terreiro começou a passar por uma revalorização imobiliária, o terreno do terreiro não pertencia à comunidade religiosa e o dono estava querendo reaver o conjunto para vendê-lo. Isto mobilizou a comunidade religiosa deste terreiro para que o espaço fosse considerado patrimônio cultural da nação, pois nele se tinha a prática simbólica coletiva de um grupo social importante, e não poderia ter outro uso que o da prática do sagrado. A polêmica teve adeptos intelectuais na luta do terreiro para seu reconhecimento como monumento nacional, o que gerou um debate que envolvia antes de tudo uma discussão sobre o conceito que se tinha de patrimônio cultural. José Reginaldo Gonçalves nos ilustra a polêmica: Considerado o primeiro terreiro de candomblé instalado no Brasil, veio a ser reconhecido como elemento crucial na preservação da identidade religiosa de determinados segmentos sociais no Brasil, especialmente negros. Identificado à tradição nagô, o terreiro Casa Branca é considerado por muitos como exemplo de "pureza" desta tradição. Antropólogos foram chamados a dar pareceres sobre a importância histórica e sociocultural do Casa Branca e recomendaram enfaticamente o seu tombamento em virtude de estar associado à memória cultural dos negros e dos brasileiros em geral.28 Aqui podemos observar a questão que Nora denomina de apropriação de Lugares de Memória pela sociedade para a construção de sua identidade e acesso a um lugar compartilhado. O terreiro é considerado, na sua preservação, como espaço onde um grupo social ritualiza sua memória e se identifica, no caso, o grupo social seria o dos negros.29 Observemos, no entanto, que Gonçalves evita expor o candomblé como uma religião étnica, quando diz: "determinados segmentos sociais, especialmente os negros", ao contrário da política de preservação que enfatiza a religião como elemento na construção de uma identidade especificamente negra. Prova disto é que a preservação do terreiro está inserida dentro do projeto desenvolvido pela Fundação Nacional Pro- memória de Mapeamento dos sítios e Monumentos religiosos Negros da Bahia/Mamnba.30 Além disto, um dos argumentos centrais dos defensores do tombamento do Casa Branca girava em torno a uma questão maior: a visão de cultura popular inserida na política de preservação por Aloísio Magalhães. Levar em conta a cultura popular significava, para seus seguidores, envolver grupos sociais até então menosprezados e não tidos como produtores de manifestações culturais importantes na delimitação da identidade nacional. Era essa mesma a visão de Magalhães, que afirmava: [...] existe vasta gama de bens – procedentes, sobretudo do fazer popular – que por estarem inseridos numa dinâmica viva do cotidiano não são considerados como bens culturais nem utilizados na formulação das políticas econômicas e tecnológicas. No entanto, é a partir deles que se afere o potencial, se reconhece a vocação e se descobrem os valores mais autênticos de uma nacionalidade.31 No entanto, “os valores mais autênticos de uma nacionalidade” não são vistos na preservação do Casa Branca como os valores religiosos de uma nação, mesmo porque a nação é, nesse discurso, plural e não poderia privilegiar a religião de um grupo específico, o foco é dado, nesta preservação, ao grupo social que envolve a religião. O grupo social em questão aqui é o dos negros, tidos, como seria depois colocado na constituição federal de 1988, como um dos "grupos participantes do processo civilizatório nacional".32 A nação, no discurso da política de preservação, é tida como múltipla, diversa. A constituição de 1988 tem no seu artigo 215 a função de assegurar essa premissa. Mas, olhando para a preservação do Casa Branca, observamos que esta política esconde o fato de que ela está formando a nação através de memórias fragmentadas, configurando-a assim em espaço de luta de grupos sociais para o reconhecimento de suas memórias especificas como portadoras de algo que forma ou formou a nação.33 Tal processo se dá pela crise em que se encontra o Estado-nação, que suprimia as diferenças em prol da "comunidade".34 Gonçalves, na sua análise dos discursos do patrimônio cultural, expõe esta questão aproximando-se de Nora ao dizer: Tal realidade [a nação Brasil], no entanto, é uma promessa, uma realização sempre adiada, o objeto de um desejo permanentemente insatisfeito. Ela é produzida por meio de elementos que compõem o patrimônio cultural e que são, ao mesmo tempo, fragmentárias e parte de uma totalidade perdida.35 Nessa política de preservação, o terreiro cumpre a função de lugar de memória ao confirmamos que o Casa Branca contém o critério colocado por Nora como principal: é portador de uma aura simbólica, objeto de um ritual. O terreiro é um conjunto formado por um poste central, "este poste assinala o centro simbólico e ritual, não só do barracão onde se ergue, mas de todo o espaço do terreiro". O espaço físico aparece aqui como portador de elementos simbólicos indispensáveis na ritualização da prática cultural em jogo. No terreiro Casa Branca ainda encontra-se um machado duplo no telhado, representando o símbolo de Xangô e uma coroa, insígnia da realeza desse orixá, patrono do terreiro.36 Mas estas questões só foram consideradas na argumentação da preservação do terreiro porque mostrava como a perda do espaço físico acarretaria a fragmentação do simbolismo do ritual ali praticado, não podendo então, ser mais lugar de reunião de elementos formadores de uma identidade. Reiterava-se o terreiro como lugar de memória, dando acesso, pelo ritual, a essa memória-história perdida. Observemos que a preservação do Casa Branca se deu exclusivamentepela ação da comunidade religiosa envolvida. Isto nos mostra que, mais do que a necessidade de manutenção de um local sagrado, a mobilização em torno do terreiro está diretamente ligado ao que Nora colocou como apropriação dos lugares de memória pelos grupos sociais em sua constante busca de autolegitimação para a ação política. Michel Argier, antropólogo, estudioso de Candomblés, em trabalho acerca da cultura presente nos terreiros, afirma que neles [...] encontram-se significados trazidos pelas diversas redes sociais atuando no mundo do candomblé, e simultaneamente, interpretando-o. Consensuais ou conflituais, essas redes e essas interpretações orientam as identificações individuais e coletivas formadas no espaço social dos terreiros.37 As redes, para este estudioso, estariam configuradas quase que inteiramente pelas famílias e os laços que esta produz. No entanto, a partir da década de 1950 isso parece mudar. O autor observa a politização dos terreiros. Membros dos terreiros engajados em movimentos sociais e políticos provocaram uma mudança de eixos, as redes estariam hoje articuladas em torno da consolidação e expansão do candomblé baiano como máxima cultural dos negros. Assim, Argier observa o tombamento do Casa Branca neste movimento: Uma das questões em jogo na organização coletiva e na politização do candomblé baiano é a da sua territorialização, i. é., o tombamento dos locais de culto pelos poderes públicos e seu uso exclusivamente sagrado, sob o controle das sociedades beneficentes. O Casa Branca – foi o primeiro terreiro a lançar este movimento político de consolidação, do mesmo modo em que esteve na origem da criação da federação baiana do culto afro- brasileiro em 1946.38 Sendo assim, concluímos aquilo que já havíamos aqui trabalhado: o Casa Branca se configura como Lugar de Memória para a política de preservação e também para o grupo social em questão, uma vez que tem no simbolismo atribuído ao conjunto do terreiro a concepção de que este é um espaço que guarda uma memória (coletiva) que precisa deste suporte exterior para sua ritualização e, portanto, a contínua renovação de um sentimento que identifica a comunidade como afro-descendentes com um passado comum que se ancora na sua religião.39 A preservação do Casa Branca estaria afirmando assim a grande máxima de Nora, que não há memória na sociedade contemporânea, o que há são tentativas de se acessar a essa memória, tentativa esta que se dá, no nosso caso, através de um movimento social em função de uma demanda política. É o que Nora diz: "Menos a memória é vivida do interior, mais ela tem necessidade de suportes exteriores e de referências tangíveis de uma existência que só vive através delas".40 Contudo, concluímos que, pelo modelo proposto por Nora, a preservação do Casa Branca seria legítima se observada dentro do contexto político em que aparece, pois traz a constatação de que a sociedade busca os lugares de memória como ferramenta para tornar-se agente de seu tempo. O movimento negro, expresso através do candomblé, seria a forma de exemplificar o que Nora pensa ser a volta dos sujeitos. O que parece haver, no entanto, é uma outra leitura desta categoria pela política de preservação. Esta a utiliza percebendo o espaço como parte importante na criação de uma memória coletiva que identifica grupos sociais importantes e atuantes na formação de uma identidade maior, a da nação. No entanto, para Nora, os lugares de memória são essencialmente meios, meio de acesso a uma memória, que não é memória, é história, porque esta reconstituída através de vestígios e, mais importante, uma memória que é reivindicada e não espontânea, como queria Hallbwachs.41 Essa memória não é mais construída no grupo, mas para o grupo pela história, para que este possa nela encontrar elementos que legitimem sua ação política no presente.42 Borges diria que o presente não passa de uma partícula fugaz do passado e Nora sobre a memória concluiria o mesmo: "O que nós chamamos de memória, é de fato, a constituição gigantesca e vertiginosa do estoque material daquilo que nos é impossível lembrar, repertório insondável daquilo que poderíamos ter necessidade de lembrar". 43 1 Texto inicialmente apresentado no I Encontro Memorial do Instituto de Ciências humanas e Sociais – Mariana / MG, 9-12 de novembro de 2004. 2 Graduanda de história do Instituto de Ciências Humanas e Sociais da Universidade Federal de Ouro Preto. Este trabalho faz parte da pesquisa intitulada "Patrimônio Imaterial: os debates, os critérios e o histórico de uma política cultural", financiada pelo PIBIC/ CNPq. Esta tem como objetivo traçar a trajetória da política de preservação do chamado Patrimônio Imaterial. Conto nesta pesquisa com a orientação dos professores Dr. Valdei Lopes de Araujo (UFOP) e Dr. Tiago de Melo Gomes (UNILESTE), aos quais deixo aqui meus agradecimentos pela ajuda com observações e revisões deste texto. 3 BORGES, Jorge Luis. História das Noites In: Obras completas. Buenos Aires: EMECE, 1990. 4 NORA, Pierre.Entre memória e história: a problemática dos lugares. Projeto História. São Paulo: PUC-SP. N° 10, p. 12. 1993. 5 KOSELLECK, Reinhart. Crítica e Crise. Uma contribuição à patogênese do mundo burguês, p 111. 6 NORA, op cit, p. 18. 7 Ibidem, p. 8. O mito é visto aqui como expresso por Marcel Detiénne: "Contam-se os mitos para justificar, reforçar, codificar as práticas e as crenças postas em prática na organização social, totalmente investida pelo discurso ritual". DETIÈNNE, Marcel. Mito-rito. In: Enciclopédia Einaudi. Vol. 5. Lisboa: Imprensa Oficial/ Casa da Moeda, 1989, p.58. 8 NORA, op cit, p. 9. 9 Ibidem, p. 12. 10 Ibidem, p. 14. 11 Alguns teóricos pós-modernos observam o "desejo de passado" da sociedade contemporânea como o abandono da necessidade latente do "novo", que consideram uma característica moderna. Como exemplo, ver GUMBRECHT, Hans Ulrich. Modernização dos sentidos. São Paulo: Editora 34,1998. No entanto, Nora acredita que a sociedade contemporânea não abandona a questão, somente a reformula, e o faz através das novas tecnologias e dos meios de comunicação em massa. NORA, Pierre. O retorno do fato. In LE GOFF, J. & NORA, P. (org). História: novos problemas. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1988, pp. 179-193. 12 FOUCAULT, Michel. Arqueologia do Saber. Trad. Luiz Baeta Neves. 5a edição. Rio de Janeiro: Forense Universitária, p. 15. 13 NORA, op cit, p. 19. 14 Ibidem, p. 13. 15 Ibidem, p. 21. 16 Tradução Livre de " It is thus posible to view ritual as a way of defining or describing man. Ritual may be viewed as a system of simbolic acts that is based upon arbitrary rules." Enciclopédia Britânica, London. 1953, p.778. 17 Guia Prático de Antropologia. Trad. Octavio Mendes Cajado. São Paulo: Cultrix. 1971, p.171. 18 Tradução livre de " Ritual is a form of prescribed and elaborated behavior and occurs both as spontaneous invention of the individual, especially of the compulsion neurotic and as culture trait. [...] the simbolism employed as the basis of the ritual throws light in the one case of the psychology of the patient and inthe other on the behavior patterns of the culture." Enciclopedia of the social sciences, p. 396. 19 DETIÉNNE, Marcel. Op cit, p. 58. 20 LEVI-STRAUSS apud DETIÈNNE, Op cit, p. 72. 21 NORA. Op cit, pp. 17-18. 22 Ibidem, p. 18. 23 DECRETO 3551/2000. Artigo 1, 2º parágrafo. 24 WEFFORT, Francisco. Carta de exposição de motivos ao Presidente. O Registro do Patrimônio Imaterial: dossiê final das atividades da comissão e do grupo de trabalho Patrimônio Imaterial Brasília: Minc/IPHAN, 2003, p. 26. 25 FONSECA, Maria Cecília Londres. Patrimônio em processo: trajetóriada política federal de preservação do Brasil. Rio de Janeiro: Editora da UFRJ/ IPHAN, 1997. 26 Quando da criação do SPHAN (Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional) tal visão refletia uma preocupação maior com o patrimônio arquitetônico de origem luso-brasileira, especialmente os bens culturais barrocos. 27 CAPINAM, Maria Bernadete & RIBEIRO, Orlando. A coroa de xangô no terreiro da Casa Grande. Revista do patrimônio histórico e artístico nacional. Brasília: SPHAN, N° 22. 1987, p. 165. Meus agradecimentos a esclarecimentos dados por Marcia Valadares, moradora de Ouro Preto e frequentadora do Candomblé. 28 GONÇALVES, José Reginaldo. A retórica da perda. Os discursos do patrimônio. Rio de Janeiro: Ed. UFRJ/IPHAN. 1996, p. 76. 29 NORA. Op cit, p. 27. 30 A preservação do terreiro Casa Branca se dá oficialmente em 1986, em 1984 ocorre sua elevação como monumento nacional, que lhe confere o status de propriedade da União, não podendo portanto ser vendido. 31 MAGALHÃES, Aloísio. E Triunfo?. A questão dos bens culturais no Brasil. 2a edição. Rio de Janeiro: Nova Fronteira. 1997, p. 60. Grifo nosso. 32 2º parágrafo do Artigo 215 da Constituição Federal de 1988. 33 Observar sobre esta questão: NASCIMENTO, Rodrigo Modesto. "Poder público e política cultural".In: XVII Encontro Regional de História - O lugar da História, 2004, Campinas. Anais - XVII Encontro Regional de História - O lugar da História, 2004. [ mídia eletrônica – ISBN : 8598711012. 34 ANDERSON, Benedict. Nação e Consciência Nacional. São Paulo: Ed. Ática, 1989. 35 GONÇALVES. Op cit, p. 128. 36 CAPINAM & RIBEIRO. Op cit, p. 165. 37 ARGIER, Michel A cultura dos terreiros. Revista de Antropologia. São Paulo: Ed. USP. Vol. 39, n° 2. 1996, p. 225. 38 Ibidem, p. 242. 39 Para maiores informações sobre o assunto ver: Michel Argier. "Etnopolítica - a dinâmica do espaço afro-baiano. Revista dos Estudos Afro-asiáticos. Rio de Janeiro: Cadernos Candido Mendes. N° 22, 1992. 40 NORA. Op cit, p. 14. 41 SORGENTINI, Hernán. Reflexión sobre la memória y autorreflexión de la história. Revista Brasileira de História. V. 23, N° 45. São Paulo: Ed. USP, 2003, pp. 103-128. 42 NORA, Op cit, p. 11. 43Ibidem, p. 15.
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