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ÓRGÃO OFICIAL PAN-AFRICANO DEDICADO AOS POVOS PRETOS DO MUNDO INTEIRO Ano I - Nº 02cccccccccccccccccccccccccccccccccccccccccccccccccccccccccccccccccccc ,, cccccccccccccccccccccccccc31 de julho de 2020 A Paz Quilombola e o Quilombismo R e f l e x õ e s n o S é c u l o X X I F á b i o M a n d i n g o A Paz Quilombola e o QuilombismoA Paz Quilombola e o Quilombismo R e f l e x õ e s n o S é c u l o X X IR e f l e x õ e s n o S é c u l o X X I Fábio MandingoFábio Mandingo Gênero como norteGênero como norte e Afrika como Sule Afrika como Sul Por: De Pé Raça Poderosa (p. 3-4)Por: De Pé Raça Poderosa (p. 3-4) Ainda existia vidaAinda existia vida para viverpara viver Por: Janete Marques (p. 6)Por: Janete Marques (p. 6) A maioria negra noA maioria negra no Brasil pode ser vistaBrasil pode ser vista Como uma vantagem?Como uma vantagem? Por: Jomo Akanni (p. 8-9)Por: Jomo Akanni (p. 8-9) Mulher Preta,Mulher Preta, Dialética AfricanaDialética Africana Por: Abibiman S. Touré (p. 9-10)Por: Abibiman S. Touré (p. 9-10) Fotografia de Maria Beatriz Nascimento [17 de julho de 1942 - 28 de janeiro de 1995] Página 2 – Editorial ,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,31 de julho de 2020 ,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,, ,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,, Yanda PanAfrikanu EDITORIAL O segundo número do Jornal Yanda Pan- Afrikanu sai às ruas no dia da mulher africana – 31 de julho. Essa data foi con- cebida no ano de 1962 após a Confe- rência das Mulheres Africanas, realizada em Dar-Es-Salaam (Tanzânia), uma das capitais internacionais do movimento Pan-Africanista no século 20. Nós, do Yanda PanAfrikanu, estamos cientes de que o Dia da Mulher Africana é simbólico, uma data importante para reflexão, mas que em hipótese alguma pode ser o úni- co dia do ano em que a mulher africana é celebrada, como se faz na cultura capita- lista com o dia das mães, dias das crian- ças, etc. Todos os dias são da mulher africana. Aproveitando-nos dessa data, indiscutivelmente relevante para a comu- nidade africana global, o Yanda PanAfri- kanu traz à tona a gênese da mulher africana no espírito da complementari- dade. Foi nessa evocação astral e política que conseguimos estampar uma capa com Maria Beatriz Nascimento (Brasil), o fio condutor de um ideário Quilombola pela paz; evocar a tempestade de lucidez do nosso sempre atual Marcus Garvey; desbancar a imposição do gênero sobre as demandas africanas; traduzir a Ku- jichagulia da renovação comunitária; admirar a “Mulher-Maranhão” no ápice redentor das Equilibristas; fustigar o ra- cismo para retomar a força da vida sobre a pandemia covidiana; questionar se há vantagens de ser quantidade e de inte- ragir com a nossa amada Senhora Amy Jaques Garvey. Avançamos sobre o que elas empreendem no jogo dos livros e voltamos a Tanzânia, onde celebrarmos a ancestralidade da Maat-Mulher na ca- beça de um homem que fez a passagem. O dia da mulher africana é o primeiro dia da humanidade em seu berço civilizacio- nal africano, na esfera do matriarcado. 31 de Julho é a data em que reafirma- mos a ordem sobre o caos. EXPLICANDO O CONCEITO DE YANDA YANDA quer dizer REDE em kimbundu, língua bantu concentrada no noroeste de Angola, nomeadamente nas províncias de Luanda, Bengo, Malanje e Kwanza Norte, e falada pelo povo Ambundu. A ideia para o nome YANDA PANAFRIKANU partiu de diferentes imagens de rede, tanto pela nossa missão de uma construção política em rede, entre filhos e filhas no continente africano e na sua diáspora, para fortalecermos diálogos e ações, como também na perspectiva de uma rede que é lançada ao mar, buscando a autonomia para pescarmos as nossas ideias, identidades, culturas e alimentos. YANDA é simultaneamente trabalho colectivo e traba- lho autônomo numa luta comum da negritude. Os sacrifícios que os Negros fizeram pelas outras raças, são agora necessários em nome de uma África que sangra¹ Marcus Mosiah Garvey* Companheiros da Raça Negra, saudação: Embora minha detenção me impeça de fazer muitas coisas para ajudar nos- sa causa, é meu dever enviar ocasio- nalmente palavras de encorajamento a meus irmãos em todo o mundo, que lu- tam pela sua humanidade e pelo direito à liberdade. Esta é a era das ações úteis, e cabe a todos os Negros ajudar seus irmãos a explorarem mais plenamente as opor- tunidades da vida. Agora é a hora de todos nós, companheiros, nos unirmos e ajudarmos na difusão das doutrinas da Associação Universal para o Pro- gresso Negro. Temos que utilizar toda energia que possuímos para resgatar os milhões de nossa raça que estão dis- persos. Não há tempo a perder com coisas tais como leste, oeste, norte ou sul. A questão do Negro deve ser a úni- ca questão para nós. Permanecemos divididos por tempo suficiente para percebermos que nossa fraqueza como raça é causada pela nossa desunião. Não podemos mais permitir que o ini- migo penetre em nossas fileiras. Preci- samos “cerrar fileiras” e assumirmos por todo o mundo que: ou teremos total liberdade e democracia, ou mor- reremos lutando para obtê-las. A salva- ção de nossa raça depende da ação da geração atual de nossos jovens. Nós, companheiros que poderíamos ter mor- rido aos milhões em batalhas em nome dos homens brancos, precisamos en- tender que temos apenas uma vida par- a usar, e uma vez que essa vida pode- ria ter sido usada na França, em Flan- dres, para a salvação de uma raça que não é a nossa, devemos ser sensatos o suficiente para perceber que, se é para haver um sacrifício da vida, primeiro daremos essa vida à nossa própria cau- sa. África, África que sangra, está pedindo o serviço de toda mulher e homem Ne- gro para resgatá-la da escravização pe- lo homem branco. Todo o sacrifício que precisa ser feito, portanto, será do Negro, pelo Negro e por mais nin- guém. Quer estejamos da América, Ca- nadá, Índias Ocidentais, América do Sul ou Central, ou mesmo na África, o chamado à ação é exclusivamente nos- so. As crianças dispersas da África não conhecem outro país, a não ser a sua querida Pátria e Terra-Mãe. Podemos progredir na América, nas Índias Oci- dentais e em outros países estrangei- ros, mas nunca haverá nenhum pro- gresso duradouro até que o Negro faça da África uma república forte e pode- rosa o bastante para proteger o sucesso que obtivermos em terras estrangeiras. O conflito de ideologias entre nações e raças está causando uma revolução en- tre os homens. As classes reais e privi- legiadas de ociosos que costumavam tiranizar e oprimir as hordas humildes da humanidade agora estão enfrentan- do dificuldades em manter seu contro- le sobre o sentimento do povo. As pró- prias pessoas mudaram em seus senti- mentos e perspectivas. Essa mudança é chamada de revolução, e que um dia entronizará o domínio das massas e destruirá o privilégio das classes. Na medida em que essa revolução estende seu escopo às várias raças, devo dizer que o Negro não pode se dar ao luxo de ficar em silêncio ou parado, ele também deve rebelar-se contra as ideias servis e subservientes do passa- do. A revolução sem sangue da socie- dade branca ensinou aos povos oprimi- dos do mundo como se organizar e co- mo agir. Não existe uma revolução tão bem-sucedida quanto a do triunfo do pensamento livre sobre as ideias escra- vas. O Negro tem sido escravo das ideias do homem branco há trezentos anos, e chegou a hora de imitar as massas da sociedade branca e execrar a realeza e os privilégios. Que todo Negro pense na revolução que um dia varrerá o continente Afri- cano. Vamos sonhar e também planejar este dia. Certamente chegará o tempo em que todos os homens cumprimenta- rão uns aos outros como irmãos, mas esse tempo significará a ascensão uni- versal do homem, quando homens pre- tos, amarelos e brancos, todos em seus respectivostermos, se gabarão de seu sucesso e de sua civilização. Nenhum homem branco respeitará e cuidará de um homem preto que não tem nada a mostrar sobre seu sucesso na vida, e o mesmo acontece com o homem amare- lo. Todos os homens devem emergir e, no sucesso geral, haverá uma aprecia- ção de todos. Todos os pretos devem, portanto, in- gressar na nova revolução que busca colocar a mente do homem no reino da elevação racial e destruir o monstro hediondo do pensamento escravo. Ser um revolucionário de sucesso não sig- nifica que você deve usar a espadas e a armas, mas usar as faculdades da in- vestidura de Deus e elevar-se ao mais alto patamar possível para o homem. Portanto, vamos unir nossas forças e fazer uma corrida desesperada pelo ob- jetivo do sucesso. E agora que come- çamos a progredir nos unindo, não poupemos esforços para seguir em frente. Tenho a honra de ser seu servo obe- diente, Marcus Garvey ¹ Editorial do The Negro World, periódico oficial da UNIA, do dia 04 de setembro de 1926. Edição: Vol. XXI Nº 04. Nova Iorque, sábado, 4 de setembro de 1926. * Marcus Garvey – Fundador e Presidente- Geral da Associação Universal para o Progresso do Negro. Yanda PanAfrikanu ,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,, ,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,31 de julho de 2020 ,,,,,,,,,,,,,,,,,, ,,,,,,,,,,,,Página 3 Gênero como norte e Afrika como Sul. Qual caminho trilhar para africanizar o nosso olhar em relação a nossa comunidade preta? Quando falamos em gênero, vem sem- pre a dicotomia de coisas para menina, coisas para menino, mas quem determi- nou coisas femininas e coisas masculi- nas? Qual é o papel das mulheres e ho- mens em cada função? Quem colocou nossos corpos somente nesta categoria? Quem nos nomeou como tal? A autonomeação na perspectiva africa- no-centrada é fundamental para nos lo- calizarmos enquanto agentes na nossa própria história. Esses questionamentos genéricos dentro da comunidade preta não fazem muito sentido. As nomeações do que podem meninas e meninos faze- rem geralmente não foram criadas pela nossa comunidade. A irmã, Caroline Amanda, através do Yoni das Pretas, nos aponta caminhos para algumas reflexões sobre a importância de entendermos a energia feminina e a energia masculina como ambas forças complementares na nossa existência. Sendo a feminina, fér- til, pronta para ser fecundada, para ges- tar vidas, projetos, ser criativa; e a mas- culina como a energia impulsionadora, que nos dá acesso para essa fecundação, realização e execução desses projetos- vidas. Logo, uma não exclui a outra pa- ra que existamos. O processo de se africanizar na diáspora necessita ser feito com autocrítica. Em relação a linguagem é necessário estar- mos sempre atentos as traduções de uma língua tradicional afrikana para a lin- guagem do colonizador, será que o que eu sei sobre um povo milenar, é o que eles realmente são, ou é simplesmente a adaptação do formato que mais agrada as linguagens e principalmente o modo de pensar brankkko? A língua dos povos Yorubás, por exemplo, quando traduzida para o português, passará por uma série de equívocos bem comuns no ocidente. Pensando nessa ideia, reflita: como o português, língua do colonizador euro- asiático, nos ensinou a perceber um po- vo não generificado? O brasil é a terra em que o terror antia- frikano moldou o nosso pensar dentro de um formato dicotômico e cartesiano, aqui, tudo é dividido em categorias ex- tremamente bem definidas, contudo, no sistema tradicional Yorubá, corpo, espí- rito e físico não estão dissociados. Em relação ao “gênero”, a honorável professora Nigeriana Oyèrónkẹ Oyěwù- mí fala que “o idioma iorubá é isento em relação ao gênero”, ou seja, muitas categorias relacionadas a gênero presen- tes e aceitas na linguagem colonial, den- tro da tradição Yorubá as mesmas não existem. A língua não é limitada e nem moldada num formato maniqueísta, não se encontra palavras que apresentam es- pecificidades de gênero apresentando filho, filha, irmão ou irmã. Os nomes io- rubás não possuem especificidade de gênero, a cultura Yorubá, ao contrário da ocidental, é uma cultura tradicional- mente baseada na senioridade, não há registros que divisões de gêneros exis- tem, homem e mulher, macho e fêmea, não são divisões que demarcam um lu- gar de prestígio social como estamos ha- bituados a encontrar num sistema de su- premacia brankkka. Em paralelo com a tradição Yorubá, pa- ra os Dagaara, em Burkina Faso, a sub- jetividade do indivíduo não está marca- da a partir de um ethos ocidental que o generifica, inferiorizando sua existência e função social de acordo com sua geni- tália ou manifestação da sua masculini- dade no ser macho e feminilidade no ser fêmea. Para os Dagaara, através da manifesta- ção do espírito, pode-se compreender a expressão de sua sexualidade, além das explicações espirituais, a contribuição social do indivíduo tem função estrutu- rante para o equilíbrio da comunidade que precede a autodefinição de sexuali- dade, deste modo, o papel social é deter- minante para o entendimento do indiví- duo, e não uma visão limitada sobre ge- nitálias, como demarcadoras de gênero e impositiva de modo como a sexualidade deve ser exprimida. Podemos perceber essa mesma perspec- tiva de viver um mundo complementar quando vemos os ensinamentos da cul- tura bantu-kongo tão bem escrita pelo Fu-kiau no texto Kindezi: A Arte Kôngo de Cuidar de Crianças. Na cultura ban- tu-kongo, essa função era almejada tan- to para homens quanto para mulheres, em outras palavras, não existe essa dis- tinção do que pode ou não cada pessoa fazer. Não são feitas escolhas a partir dos órgãos genitais de nascimento de cada pessoa. Ou seja, como relata no texto: “Um/a garoto/garota tem que cuidar de seus irmãos e irmãs mais jo- vens, enquanto um avô cuida de seu neto. Qualquer pessoa na comunidade – irmão, irmã, primo, avó, tia, tio, amigo, vizinho – pode cuidar de alguma crian- ça da comunidade para que, como diz o provérbio Kôngo, Mwâna mu ntünda, zitu kia müntu mosi; ku mbazi, wa ba- bônsono, que significa, ‘Uma criança no útero de sua mãe é responsabilidade de uma pessoa; uma vez que tenha nas- cido, ela pertence a todos (na comuni- dade)’”. Já na diáspora afrikana no bra- sil, encontramos continuidades desta mesma referência bantu-kongo. Apenas está reorganizada driblando a suprema- cia branca do século XXI nomeada de capitalismo. Muitas vezes crescemos com a experiência de vermos as mães pretas trabalharem fora, já os filhos mais velhos cuidarem da casa e dos irmãos mais novos. O papel do gênero enquanto estratificador das relações so- ciais cai por terra partindo dessas expe- riências tão imbricadas no nosso coti- diano. Isto nos chama a atenção para re- fletirmos como estamos vivendo a ques- tão de gênero; como definimos nós mes- mo o que é gênero; ou até quando pre- cisamos ter essa classificação no oci- dente como parâmetro de viver dentro da nossa comunidade preta. Sexualidade enquanto parte de um sistema espiritual Primeiramente é importante compreen- dermos que a demonização e criminali- zação de relações homoafetivas no cont- inente africano ocorreram através da co- lonização. Prova disso é que o pseudo- historiador europeu Edward Gibbon, em 1781, foi o primeiro a inventar que “não existia homossexualidade na África”, conforme livro History Of The Decline and Fall The Roman Empire. Países africanos, como por exemplo Su- dão e Uganda, só criaram os crimes de sodomia após a invasão dos yurugus (brancos) cristãos e muçulmanos. Isso posto, quem reproduz esse tipo de falácia está reproduzindo algo criado pelo colonizador para fragmentar a co- munidade preta. Porém, o estudo “Expanded Criminali- sation of Homossexuality” realizados por Ugandenses comprova que há regis- tros de relacionamentoshomoafetivos pré-coloniais no Congo, Camarões, Uganda, África do Sul, Angola, Benin, Nigéria, Sudão, Tanzânia, etc. Ressalta-se que a cultura do nosso povo é transmitida, sobretudo, pela oralidade, logo a ausência de documentos escritos em algumas comunidades não significa que todas as pessoas africanas se rela- cionavam apenas com o mesmo sexo. Malidoma Somé, no artigo Homosse- xuais: guardiões dos portões, reitera a importância comunitária de todos, sem discriminação, afirmando inclusive que os saberes ancestrais ligados à astrono- mia foram desenvolvidos primordial- mente pelos guardiões. A união do povo preto da diáspora bra- sileira é fundamental para o enfrenta- mento à branquitude que nos mata, con- trola, coloniza, rouba e castra nossos de- sejos há mais de quatrocentos e cin- quenta anos. Porém, para nos unirmos efetivamente e formarmos uma grande potência harmônica precisamos resolver nossos problemas internos que per- meiam nossas relações interpessoais planejados pela supremacia branca para nos autodestruir. Algumas das estratégias da branquitude implementadas em nosso meio a fim de nos enfraquecer como comunidade, ge- rar conflitos e também nos matar, são as discriminações de orientação sexual e de identidade de gênero. Tais preconceitos foram implantados em nossos povos após os derradeiros contatos dos euro- peus e árabes com nossos ancestrais, que até hoje são responsáveis pelo sofri- mento, abandono, rejeição e morte dessa potência intelectual, física, artística, cul- tural e espiritual que são os pretos e pretas homossexuais, lésbicas, bisse- xuais, transexuais, os nomeados como guardiões dentro da comunidade Daga- ra, descrito de forma brilhante por So- bonfu Somé no livro O Espírito da Inti- midade. É necessário autocrítica para revermos conceitos e adquirirmos autonomia a fim de nos autonomearmos através de nossos próprios nomes, estes que con- tribuirão para desenvolvermos uma co- munidade potente espiritual, físico e culturalmente. Do contrário, a suprema- cia branca seguirá o projeto de aniqui- lação do nosso povo e continuará nos utilizando como ferramenta dessa des- truição. Organização é um meio para termos condições de nos perceber indi- vidualmente como parte de uma comu- nidade, e assim, utilizar nossas peculia- ridades e características em prol do for- talecimento coletivo, como afirma John Henrik Clarke, “Pegue o que você faz de melhor e faça isso pelo seu povo”. Necessitamos ser críticos com o com- portamento ocidental e seus conceitos de divisão dentro de uma sociedade. Precisamos perceber que também é ge- nocídio quando utilizamos o conceito de gênero e seus discursos católicos para analisar as pessoas afrikanas. Página 4 ,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,31 de julho de 2020 ,,,, ,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,, ,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,, Yanda PanAfrikanu Embora perpetua-se até os dias atuais perspectivas socioculturais e análises ocidentais sob a nossa cultura, precisa- mos dar nome as coisas, porque isso é epistemicídio. A proposta é de resgate. E é nesse processo de nos afrikanizar que precisamos compreender com cautela toda história milenar que o nosso povo construiu antes das colonizações. Nós, enquanto comunidade preta, somos res- ponsáveis por cuidar e preservar o nosso povo, e tudo que provém de nossa an- cestralidade. É necessário dar continui- dade ao nosso legado reeducando-nos racialmente e colocando Áfrika no epi- centro da nossa caminhada. Ao olhar para o contexto histórico da Maafa (holocausto africano) e todo o processo de invisibilidade física, históri- ca e cultural que ela causa, percebere- mos os caminhos que percorremos num modelo de alienação e as inúmeras ve- zes que acabamos por nos minimizar para cabermos dentro do mesmo com- portamento praticado pelos nossos algo- zes. A sexualidade sem os dogmas oci- dentais é vista como fator de equilíbrio de várias culturas milenares, como as inúmeras presentes no continente afrika- no e também em territórios indígenas. A bíblia, com seu comportamento incivili- zado e fundamentado na cultura ociden- tal, tentou moldar o nosso comporta- mento enquanto um povo alcalino e parte da coletividade no que relaciona a essa questão. Tanto em África como nas Diásporas visualizamos o modo de ope- rar do ocidente definindo nossas identi- dades físicas, espirituais e culturais, to- do esse processo causado pela suprema- cia brankkka causam grande confusão, principalmente, pelo distanciamento dos nossos valores tradicionais relacionados ao modo de nos definirmos e enxergar- mos enquanto povo. Toda sexualidade tem como fundamento a espiritualidade. E se tirado de contex- to, torna-se algo controverso e passível de exploração. Uma comunidade que não valoriza os portões espirituais ou bloqueia essa conexão, está fadada ao fracasso. Na aldeia Dagara, de acordo com o livro O Espírito da Intimidade de Sobonfu Somé, essa conexão só é possível atra- vés dos guardiões, pessoas que seriam rotuladas aqui no ocidente como homos- sexuais. Os guardiões possuem ligação com o mundo físico e os portões espiri- tuais da comunidade. Vivem no “limite” dos dois mundos e tem o poder de trazer a paz com a espada da verdade e inte- gridade. Justamente por estar entre os dois sexos. Todo homossexual é um guardião? Não. Ser guardião não é definido pela orien- tação sexual, mas anunciado antes mes- mo do nascimento da pessoa, por fazer parte do seu propósito de vida. Se estiver no Odu (destino) da pessoa ser um guardião, mesmo diante da con- firmação, existe o processo de iniciação rigorosa. É necessário assegurar que o poder que lhe é garantido, não seja mal empregado. Afinal, um guardião toma conta de toda uma aldeia, tribo, comuni- dade, etc. E mesmo os anciãos e conselheiros, que possuem um papel fundamental no equi- líbrio da comunidade, solicitam a ajuda espiritual dos guardiões para acessar os portões e apoio em seus rituais. Não existe segregação homossexual em uma comunidade. E diferente do oci- dente, o termo “gay” ou “lésbica” não existem. Além de não serem rotulados negativa- mente, também não são vistos como di- ferentes. Pois em comunidade, não se define as pessoas por orientação sexual. O importante é o seu papel dentro dela. *Organização comunitária e pan-africa- nista – De Pé Raça Poderosa. Organiza- ção fundada em Janeiro de 2018, na ci- dade de Belo Horizonte/MG. Kujichagulia na construção do seu propósito Matheus Omowale* A autodeterminação é vital para toda criação humana. Não podemos partir de uma condição sujeitada pelo racismo, dentro do neocolonialismo, que limita o nosso processo criativo, a nossa existência e o nosso propósito. Sim, nós temos escolhas e arcaremos com os custos delas, gostemos ou não! “Para controlar um povo, você deve primeiro controlar o que ele pensa sobre si mesmo e como ele considera sua história e sua cultura. E quando o colonizador fizer você se sentir envergonhado de sua cultura e sua história, ele não precisará de paredes de prisão, nem correntes, para segurá-lo.” [John Henrik Clarke] Na medida que identificamos posturas disfuncionais dentro da nossa comunidade, geralmente ligadas ao embranquecimento, podemos identificar a visão distor- cida que temos de nós mesmos. Essa visão, perspectiva e inconsciente coletivo é construído através da absor- ção de conteúdos audiovisuais, violência, assédio, ex- ploração dentro de conceitos estabelecidos que nos sub- valorizam enquanto pretos, ao passo que hipervalori- zam o branco, seja estética, ética, espiritual e filosofica- mente falando. Isso pode ser ilustrado inclusive naqueles exemplos que são vendidos pelos canais de mídia branca, como os nossos irmãos de mais valor, as “quebras de paradig- ma” (só que não né!?),valor esse que é medido pela quantidade de embranquecimento que esse preto possa performar. Seja na forma material escolhendo a misci- genação, seja de uma forma subjetiva, na medida que uma pessoa preta consegue fazer se parecer branca na sua linguagem, no comportamento, na postura, na cul- tura com a qual ele se identifica e gasta seus recursos, seja tempo, energia ou dinheiro. Não coincidentemente a maioria dos pretos que estão envolvidos com gente branca e em locais brancos conseguem valer por 10 brancos quando estão fazendo militância esquerdista, liberal, feminista, flertes absurdos com a meritocracia e o positivismo pelo público que eles pretendem atingir com suas metas, vendendo o ouro após o arco-íris em relação ao ingresso à universidade e o estado, algo que é, de forma geral, inacessível para a maioria de nós, foi desenhado para ser assim. E quando vemos uma pessoa preta lutar pela ressignificação de conceitos brancos estabelecidos, por um quartinho na casa-grande, isso já deveria ser interpretado como um atestado do embran- quecimento, atestado da mucamagem, eles são escra- vos da casa gourmet. Afinal, acham mesmo que estaria dentro da casa-grande senão fosse o mais assimilado? Não existe essa de “a casa grande surta quando a sen- zala aprender a ler!”. Primeiro porque senzala tá den- tro da jurisdição da casa-grande, o combate a casa- grande se dá nos quilombos! O quilombo é a alternativa autodeterminada de existência. A casa-grande só vai surtar mesmo se a senzala botar fogo, o diálogo se dá pela destruição e só. Porém, quantos de nós querem queimar a casa-grande? E quantos de nós não quererem aprender a ler para pode servir a eles? Como uma pessoa preta consegue enxergar possibilida- des primeiramente a partir da bandeira brasileira senão pelo embranquecimento subjetivo, pela desvalorização da sua própria cultura e história? Estadunidense? Fran- cesa? Inglesa? Belga? Portuguesa? Sem ao menos se inteirar do que se trata a bandeira da unidade africana. Como podemos nos orgulhar de fazer parte da cons- trução de identidade dessas nações sendo que elas são antíteses da nossa existência do começo ao fim? Por que alguns de nós tem mais disposição para reivindicar negritude dentro de espaços brancos ao em vez de pri- meiramente se alocar em seus espaços pretos? Como funciona essa lógica de se descobrir preto dentro da universidade branca e não conseguir dialogar com or- ganização preta autônoma? Como funciona dialogar com a igreja e não com a capoeira? Por que acham cult os progressistas e ficam tratando de forma pejorativa e pelos cantos os pretos radicais? A ideologia, o com- portamento que você leva a frente, tem apoio do bran- co, do judeu, do árabe, do chinês, do nipônico, etc., e isso não te revela nenhum sinal a que caminho você está seguindo? Se você se descobriu preto a partir da antítese do que é ser branco. Tudo o que fizer partindo dessa premissa será embranquecido e em grande medi- da os seus problemas, suas soluções, suas ambições, seus desejos, seus impulsos e seus discursos, vão partir deles e daquilo que em alguma medida dialogue com eles. A forma como nos definimos está intimamente ligada a forma como nos portamos nesse mundo. E a (re)cons- trução da nossa visão de mundo a partir da nossa cul- tura e experiência histórica é inegociável, nosso direito de estar exclusivamente entre nós, a partir de algo nos- so, sobre nossos termos e condições, e com a arbitra- riedade de fazer política ao que seja interessante so- mente a nós mesmos. Não há mais tempo e energia para se gastar com a in- tegração, não há mais pontos a se considerar. Temos também que responsabilizar e repelir essas narrativas derrotistas, mendicantes da nossa comunidade, porque em grande medida, isso não vai ajudar na nossa ima- gem. Afinal, quem nunca ouviu dessas pessoas a ex- pressão “África mítica”, quando falamos sobre pan- africanismo, nacionalismo preto, afrocentricidade, gar- veyismo e mulherismo africana? Precisamos concentrar nossa energia, tempo e dinheiro no quilombo, na capoeira, no candomblé, no samba… Recuperar o que é nosso vai depender de desaprender o branco e (re)aprender o preto. Ao nível de não pre- cisarmos colocar “preto” depois de nenhum conceito para poderem saber que é nosso. Já estará explícito e implícito que ali vai dar ruim se alguém chegar atraves- sado. Não queremos dólares pretos. Não queremos francos pretos. Não queremos ser afro-brasileiros, não quero uma esquerda preta, não quero um capital representa- tivo. Queremos Ujamaa! Queremos Umoja! Qual a pra- ticidade de se reivindicar uma Barbie preta? Se as for- mas que se representava a estética entre nós era dife- rente? Alguém aí realmente quer emular uma feminili- dade branca? A sua masculinidade tá baseada no cris- tianismo? Sério que ainda queremos servir aos exér- citos deles? Representatividade negra na marinha ame- ricana? Mulher negra na aeronáutica americana? O tiro dela será diferente nas nossas comunidades? Vamos co- memorar os pretos na CIA espionando os nossos tra- balhos e defendendo a harmonia do ocidente? Até quando uma pessoa preta valerá mais pelo que ela tem de branco à disposição? E não pelo compromisso que ela tem por estar envolvida em iniciativas pretas autô- nomas de viver? Kujichagulia é um dos valores mais importantes que temos como base e podemos ter certeza que qualquer coisa autodeterminada é melhor que toda quantia de dinheiro ou condecoração deles. A ruptura com esse ti- po de postura embranquecida é necessária para ontem. Você não precisa saber de qual etnia você era origi- nalmente em 1500 para saber que carregar um nome persa e hebreu é um prejuízo. Mude já a sua postura, arque com os custos! Assuma as responsabilidades, se organize coletivamente e tenha um propósito, um programa político autodeterminado para levar a frente e saberá que nunca esteve tão certo na vida. Ainda que não colha os frutos de seu trabalhão nessa vida. *Matheus Omowale, bartender e cozinheiro autônomo. Yanda PanAfrikanu ,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,, ,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,31 de julho de 2020,,,,, ,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,Página 5 Uma maranhense Diop Kemet Menelik* Nasceu em São Luís, Maranhão 1823, pros lados da são pantaleão Mulher, preta, destinada a grandeza Que só a história com fortaleza alimenta Sua mãe alforriada, seu pai livre também era então Estamos revivendo, o tempo, diante da escravidão Aos 7 anos, mudasse pra Guimarães, na baixada E é naquelas terras que escreverá sua saga Leitora voraz, competente, esforçada Aos 24 anos em concurso público se destaca Torna-se a primeira professora daquela cidade Já escrevias uns verso, poetisa de habilidade Pouco tempo depois, 1959 O livro Úrsula é publicado e a todos comove Mostrando seu posicionamento idealista Contra o sistema escravocrata uma abolicionista Engrandece na sua obra a alma da pessoa preta Revive em memória, uma África cheia de belezas Enquanto isso no seu dia a dia, assume seu posto Mulher intelectual, matriarca de seu povo Achou muito? Tem mais! Vou te falando Maria Firmina, dessas nossas heroínas, passa um pano 1860, é notória sua presença Na imprensa, seu nome aparece com insistência Sua poesia, reconhecida por seus contemporâneos Enquanto isso ia adotando, crianças que na sua porta ia chegando Órfãos, filhos de mulheres escravizadas Seus filhos do coração, como ela mesma falava Continua a produzir, as letras paixão e arma Ia vencendo os preconceitos por ser mulher letrada Com posição e opinião, lançou seu livro de poesia Contos a beira mar, mais uma conquista Olhando a baia de Cumã, aonde morreu Gonçalves Dias Ponto de encanto aonde cantava seus versos Maria Firmina Via a mansidão do mar, a claridade daquele luar E os pretos na senzala, canção chorosa, triste penar Sofria, o peso da sociedade escravista Dizia,o quanto o mundo hostil a oprimia Chorava, a sua e a dor do próximo E então, quer fez das lágrimas sacerdócio Sua participação na sociedade é constante Na comunidade seu nome é importante Certo dia, mulheres cativas Perguntaram se um auto de boi ela escrevia? De pronto, foi feito, cantando, encenado Mesmo sendo prisioneiras o boi foi brincado Em 1880, se aposenta do ensino público oficial Mas continua educando, sabia, educação é fundamental Funda sua escola, briga, pra seja mista Educando igualmente meninos e meninas Uma revolução social pela educação Pioneirismo subversivo, seu legado e contribuição 1887, escreve o romancete A Escrava De ponto de vista abolicionista cartilha engajada Viveu pra ver o fim da escravidão E pra ocasião, compôs o Hino da Abolição Ela era o movimento negro, a força da mulher negra na vida Um abraço de mãe, um prato de comida Ao seu redor, juntava o povo pra externar seu pesar Mostrar seu sorrir, seu dançar seu cantar Como não há verdade que fique pra sempre escondida É resgatado seu legado sua obra sua vida E hoje pras crianças nós ensina Que ela morreu, em Guimarães, com mais de 90 admirada e querida. *Diop Kemet Menelik, escritor, poeta e pan-africanista. Equilibristas Mutuh Nyaneka É mãe é filha É tia é sobrinha É negócio de família Ganha pão da minha vizinha É choro é gritaria É chão é correria Música e melodia Nós ouvidos de quem caminha Dos becos as ruas A realidade é crua A vida é dura Faz dessa alma pura Todo sofrimento atura Como soldados para concluir a formatura É longa a caminhada Pelas ruas de Luanda Quilometragem incalculável, ao longo dessa estrada São guerras travadas Batalhas enfrentadas Derrotas apagadas Vitórias são guardadas, revividas, lembradas e fixadas Na galeria das suas almas De onde vem a força Esforço e reforço Não apenas do músculo, mas também dos ossos Que garante a janta, matabicho e almoço Com firmeza no tronco e habilidades do pescoço Ao longo das vielas, verdadeiras andarilhas Sua auréola é a rodilha Em bando ou em aiz Encaram lobos em matilhas Mas para frente, caminha Como sempre, caminha O kandengue nas costas É o seu fardo mais leve Educação é a proposta Suposta, que ela nunca teve Seu governo só gera a revolta Nunca cumpre o que deve E quando ganha a sua aposta Kassumbulam o que obteve … É mãe é filha É tia é sobrinha É negócio de família Ganha pão da minha vizinha É choro é gritaria É chão é correria Música e melodia Nós ouvidos de quem caminha O aparelho do estado Multiplica os gatunos Prendendo zungueiras Que alimentam alunos Produzem esfomeados Que dá luz à noturnos Que saem babados A serviço no seu turno Que acabam no quadrado É mãe em desespero Na cabeça só transtorno O kabomba quer dinheiro A mãe almeja do filho que a casa faça o seu retorno Sem dinheiro só com pero É o cúmulo do suborno O que digo não é exagero É só amostra do filme porno Essa cena¹ me esquenta Mais que pão no forno E a minha gera² se contenta Com a frase vamos fazer mais como?³ Não é nada bonito Não tem nada artístico ou plástico Do sofrimento fazer musiquinhas De um destino trágico Há muitos engraçadinhos Dançando com som desse choro O grito delas sustenta vidas Mas há espertinho a que os torna em couro Da parteira da vida Tiram-lhe a alegria Botam-na avenida A extrema agonia Só tem na voz ouvida Uma luz que alumia E o fim da lágrima vertida Vem com nascer do novo dia Glossário: Matabicho: Café da manhã. Aiz: Sozinho. Kassumbulam: Recebem. Zungueiras: Mulheres ambulantes. Kabomba: policial. Pero: sexo, nesse caso específico, um abuso sexual. Porno: diminutivo de pornografia. ¹Cena: diminutivo de cenário ou situação. ²Gera: diminutivo de geração. ³Com a frase vamos fazer mais como?³: frase que denota conformismo. Mutuh Nyaneka – Pan-Africanista e membro do Colectivo Muxima na Diáspora e da UCPA. O racismo lá e cáO racismo lá e cá Prof.ª Dra. Vitória Régia Izaú* O racismo apaga a luz da vida. Destrói sonhos, impede oportunidades, interdita violentamente a liberdade de ser, de re- conhecer o belo no espelho. O racismo em palavras virulentas, espalha dor, so- frimento e trauma. Por trás de cada pele preta, há tecidos de história e resistên- cia. Por trás de cada sorriso, silenciosas e graves dores históricas de exclusão. Sou uma mulher forjada no fogo ances- tral que me concedeu a autoridade de dizer quem sou. Sou aquela que o siste- ma não exterminou. Sou descendente de um povo que mesmo sofrendo, dança, canta, expõe nas diversas artes suas vi- vências e andanças diaspóricas. Sou aquela que a sociedade acostumada a nos subestimar é obrigada a ver em es- paços sociais e acadêmicos. Eu aprendi a me aquilombar, e ver nas diversas do- res negras, o gigantesco potencial de vi- da. A me redescobrir, a me reinventar. Cercada de palavas, uno corpo e voz. No corpo carrego a força dos ancestrais que sobreviveram aos navios negreiros e vejo com horror a performance escrava- gista que encontrou na omissão das au- toridades, solo fértil para derramar san- gue de inúmeras pessoas negras ao redor do mundo. George Floyd (nos EUA), Candé (Portugal), João Pedro Mattos (Brasil). Escrevo este texto convicta de que não calarão nossa capacidade de dizer em nossa própria narrativa: PA- REM DE NOS MATAR. Que o racismo seja considerado crime contra toda a hu- manidade. *Vitória Régia Izaú: Doutora e mestre em Edu- cação pela fae/UFMG, professora efetiva da Fa- culdade de Educação da UEMG. Coordenadora do Núcleo de Estudos e pesquisas sobre Educa- ção e Relações Étnicos-Raciais(NEPER/UEMG/ CNPQ). Página 6 ,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,31 de julho de 2020 ,,,, ,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,, ,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,, Yanda PanAfrikanu Ainda existia vida para viver Janete Marques* Olá! Sou Janete Marques, mulher negra latina americana, diaspórica, contadora de histórias e escritora (faz pouco tempo que assumi a coragem de me apresentar como escritora). Eu amo contar histó- rias. Ao sentar em roda para uma narra- tiva, sinto que estou conectada com mi- nha ancestralidade. Sou mãe de duas meninas. Ao ver a relação das minhas fi- lhas com o mundo da leitura, imaginei que elas poderiam ser personagens de uma história. E foram. Foram às perso- nagens do meu primeiro livro infantil: Um livro pra Nini… Um livro pra Nana… (2019). Neste ano fui selecio- nada pela Festa Literária das Periferias (FLUP 2020) para compor um grupo de 210 mulheres negras. Estamos escreven- do um livro em formato diário, de forma coletiva e colaborativa, a partir da relei- tura da obra de Carolina Maria de Jesus, O Quarto de Despejo. Mas hoje, quero compartilhar com vo- cês, Oito dias, a história do número de dias que fiquei internada no hospital me tratando da infecção por Covid-19. Uma escrita para ecoar às dores e silêncios que me habitam, para curar e (re)existir. OITO DIAS Dias depois minha irmã me contaria que naquela semana leu no horóscopo que o signo de Câncer passaria por um proces- so de reclusão, tendo que se afastar de todos por um tempo para estar consigo mesmo e que teria grandes aprendiza- gens. E assim foi. Oito dias dentro de um hospital. Seis dias na UTI. Sim, sou mais uma pessoa nesse mundão de meu Deus que teve COVID-19 e que ainda está por aqui para poder contar essa his- tória. Não pretendo romantizar esse mo- mento. Longe de mim. Mas preciso es- crever para completar meu processo de cura. Sempre gostei de me ver como uma mu- lher destemida. Ao enfrentar meus me- dos gostava de imaginar a emoção de uma montanha russa: o frio na barriga no começo, o prazer durante o percurso e no final aquela satisfação. Mas dessa vez foi muito diferente, não tinha a no- ção real para onde estava indo e o que encontraria. Adentrar aquela UTI foi aterrador. Estava consciente, poderia en- trar caminhando se quisesse, mas des- confio que se tentasse não conseguiria. Vi a face detodos os meus maiores me- dos de perto, com direito a lente de au- mento e tudo. E não foi nada legal. Quis chorar e não foram poucas as vezes. Mas tinha a convicção de que se a pri- meira lágrima rolasse não conseguiria mais parar. Então, não me permiti o pranto. Logo no primeiro dia percebi que se quisesse sobreviver psicologicamente àquela experiência teria que bloquear lembranças e a saudade que sentia dos meus familiares e amigos. Foi o que fiz. Como não podia viver as minhas me- mórias, a contadora de história que habi- ta em mim pôs-se a imaginar as narrati- vas dos pacientes que me cercavam. Pensar naqueles personagens: quem eram, quem esperava por eles, eram mães, pais, tios, padrinhos, filhos, ami- gas, o que viveram até ali, o que ainda viveriam. Do meu leito tinha a visão de três pa- cientes. Não sei porque vi meu pai na- quele vovozinho. Pensar no meu pai foi bom, uma lembrança liberada. O vovo- zinho recebeu alta e meu coração ficou em alegria. Depois veio D. Júlia, com dificuldade para respirar e carregando uma tristeza inestimável no olhar. Ao longo dos dias a falta de ar foi embora, mas a melancolia não. Por aqueles cor- redores vi uma menina de uns quinze anos voltando a caminhar. Foi um susto ver alguém tão novo ali, mas depois fi- quei sabendo que ela não era a única. Nossos olhares se encontraram rapida- mente e aconteceu algo, tinha uma men- sagem que ficou no ar. Numa manhã S. José que permanecia vivo com o auxílio do respirador, abriu os olhos, mas a al- ma ficou em algum lugar. De vez em quando vinha um médico e o chamava. Eu do meu canto vibrava para que ele voltasse. Ainda existia vida para viver. Porém, a alma ainda vagava. Para outros era o fim mesmo. Uma história sem um desfecho. Imaginava a dor daqueles fa- miliares sem nem poder velar seus mor- tos. No dia mais difícil pra mim, psico- logicamente falando, conheci uma se- nhora cheia de vida que me encheu de esperança. Olhos grandes transbordando alegria e muito amor pelas suas netas e filhos. Sabe aquela pessoa que te con- vida para um abraço? No dia da minha alta trocamos um “boa sorte”. Teve uma tarde que o ambiente foi in- vadido por música. Perto do hospital tinha festa. Naquele momento não exis- tia gosto musical, era música que expul- sava aquele zunido angustiante do moni- tor cardíaco. Foi um alívio! Mas fiquei ali matutando sobre a contradição em tudo aquilo, as pessoas estavam que- brando o isolamento, fazendo festa ao lado de um hospital de campanha. A Co- vid é a doença da coletividade, afeta o coletivo, precisa de ações do coletivo, mas quando ela nos alcança só fica a solidão. Mas as pessoas que dançavam, bebiam, curtiam a vida do lado de fora seguiam festejando alheios a toda aquela realidade. Essa experiência só veio reforçar minha crença no ser humano. Além de todas as vibrações positivas que recebi de fami- liares, amigos próximos e nem tão pró- ximos assim, que fizeram toda a diferen- ça na minha recuperação, teve o apoio que recebi de pessoas desconhecidas. Nesses oito dias vi empatia, sensibili- dade, afetividade em doses cavalares. Se tem gente boa no mundo? Nunca tive dúvida. E digo mais, é a maioria. Nunca tive muita paciência pra gente que não gosta de gente, que desiste do outro e por consequência de si mesmo. O que aquelas pessoas fizeram por mim não tem preço e vai muito além do profis- sional. Além dos medicamentos, foram palavras, gestos, atenção, um celular pa- ra uma videochamada com a família e tudo isso fez com que a solidão não pe- sasse tanto. Sou toda gratidão. Agora, é preciso devolver ao universo todo ca- rinho recebido. Sinto urgência em fazer o bem e em continuar tentando ser a me- lhor versão de mim mesma. Foram oito longos e dolorosos dias, que, com certeza, não serão esquecidos tão cedo. Quero ficar com a imagem da ja- nela da enfermaria, daquele jardim que me encheu de esperança por dias melho- res. Virar a página e viver, viver plena- mente. No dia de voltar para casa o céu era azul, as nuvens convidavam à imagi- nação e eu só queria a poesia que pudes- se descrever a beleza que é a luz do sol tocando a verde folha. *Janete Marques é mulher negra latina america- na, mãe, escritora, contadora de histórias, educa- dora infantil, graduada em licenciatura em his- tória pela Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB), que é considerada a univer- sidade mais negra do Brasil. Retidas pela Covid-19 e consumidas pelas necessidades no Brasil Maria Fernanda* Artigo 22º Da Constituição de Angola. (Princípio da universalidade) 2. Os cidadãos angolanos que residam ou se encontrem no estrangeiro gozam dos direitos, liberdades e garantias e da proteção do Estado e estão sujeitos aos deveres consagrados na Constituição e na Lei. No corrente mês um grupo de cidadãos Angolanos, ma- joritariamente composto por mulheres, foram ao consu- lado protestar sobre a falta de voo e, consequentemen- te, de recursos para se manterem no território Brasi- leiro. Foi possível constatar que os motivos que levaram esses imigrantes ao território Brasileiro são diversos, alguns vieram a turismo, tratamento, formação e a pro- cura de melhores condições de vida. As demandas que nossos compatriotas apresentaram convergem, a falta de recurso conecta todos. Com o avanço da pandemia, muitos países decidiram fechar suas fronteiras; entretanto, com o Brasil e Ango- la foi diferente. Angola durante o estado de emergência e calamidade conseguiu enviar voo para alguns países, tais como Portugal, que recebeu dois voos da compa- nhia aérea Taag. Foi nítido perceber, no discurso das pessoas, o descontentamento quanto a essa situação, tendo em vista que muitas mulheres possuíam filhos pequenos e também havia pessoas doentes, que vieram a tratamento. As pessoas pediam que a ministra da saú- de e o Presidente da República olhassem para elas. Independente do avanço da Covid-19, o governo Ango- lano possui responsabilidades quanto a permanência das pessoas em território estrangeiro. O artigo 22 da Constituição Angolana, garante que é de responsabili- dade do Estado à garantia de proteção e os mesmos gozam dos direitos consagrados na constituição. Na falta de comprimento desta lei, estamos perante a grave violação de direitos no que concerne a Constituição e também a Declaração Universal dos Direitos Humanos. Dias depois, graves informações sobre a vinda do voo para o Brasil e o número de pessoas que se encon- travam no Brasil eram 250 pessoas, que não conse- guiam viajar para Angola. Entretanto, o consulado do Rio de janeiro, no dia 15, anunciou que as pessoas que se encontrava naquele estado estavam embarcando ru- mo a São Paulo para embarcarem no voo que sairia meia-noite do dia 16 de julho deste ano. Pelo que parece, depois de muito desgaste físico e psicológico, teve um final, esperou-se mais de três meses, de muito sofrimento e humilhação que essas pessoas passaram. Esperamos que o governo resolva também a situação das pessoas que não estão a conseguir se manter no Brasil, tendo em vista que houve um aumento signifi- cativo do desemprego causado pela pandemia. *Maria Fernanda Psicóloga, membro fundadora do Coletivo Diásporas Africanas, atua na área clínica com atendimento psicológico para crianças e adultos. O coletivo Diásporas Africanas tem como foco o atendimen- to a população imigrante e refugiada no Estado de São Pau- lo. O coletivo trabalha com os seguintes eixos: Saúde; Edu- cação; Cultura. Temos constatado que muitos refugiados e imigrantes tem apresentado dificuldades no acesso destes equipamentos, muitos imigrantes não falam o idioma local, no caso o por- tuguês. Yanda PanAfrikanu ,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,, ,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,31 de julho de 2020 ,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,Página 7 A Paz Quilombola e o Quilombismo R e f l e x õ e s n o S é c u l o X X I F á b i o M a n d i n g o * Maria Beatriz Nascimento, Abdias do Nascimento e Lélia González A Paz Quilombola e o Quilombismo O conhecimento de sua própria cultura, e o controle sobre os processos de ma- nutenção e transmissão intergeracional de sua própria cultura – e de sua cultura de luta – tem sido instrumento de funda- mental importância histórica para a so- brevivência e continuidade autônoma dos povos, principalmente dos povos que vivenciaram longos períodos de opressão direta ou indireta conduzida por outros povos. A ruptura dos laços culturais e a inter- rupção sistemática da sua transmissão intergeracional, no caso dos africanos no Brasil e seus descendentes, parece ter sido um instrumento importante e estra- tégico para o controle do governo portu- guês, e posteriormente do Estado Brasi- leiro, sobre esse território. Isso pode ser testemunhado desde o momento primei- ro de chegada dos africanos no Brasil, com a ritualização da “troca de nome” simultânea à negação espiritual através do batismo católico. Como resultado desse processo sistemá- tico e continuado observamos como sin- toma, a cansativa necessidade enfrenta- da por cada geração de africanos no Brasil, de praticamente ter que reinven- tar a roda a cada 30 anos, reconstruir fundamentos e horizontes sem ter como base nem a milenar cultura afrikana, nem acesso à nossa história recente, às vezes de 10, 20 anos atrás. Podemos destacar entre as gloriosas ex- ceções as trajetórias dos Terreiros de Candomblé e dos grupos de Capoeira, que têm sido espaços de preservação, continuidade e transmissão da cultura africana nesse território, por vezes atra- vés de séculos ininterruptos. No que diz respeito ao Brasil Republi- cano onde a perseguição, repressão e apagamento da história e da cultura afri- cana alcançaram novos níveis de refina- mento institucional, a ruptura na trans- missão intergeracional pode ser também violentamente percebida, principalmen- te no que diz respeito ao que se cons- truiu enquanto organização política e in- telectual do povo negro, seja através de ditaduras e interrupções diretas, seja através do apagamento e veto das pro- duções intelectuais negras que represen- tassem afronta ou discordância aos mo- delos culturais vigentes ou hegemôni- cos. De fato, existem entre a “Geração Fren- te Negra”, a “Geração Teatro Experi- mental do Negro”, e a “Geração MNU”, hiatos que não puderam ser superados nem mesmo com a ligação de excelên- cia de um Mestre como Abdias do Nas- cimento, e restou a cada uma dessas ge- rações reinventar a roda, começar tudo de novo, tomar decisões e construir ca- minhos a partir das novas novidades e demandas e pautas do momento, con- tando com um acesso muito pequeno ao que foi produzido e feito pelas gerações anteriores, e continuidade patrimonial nenhuma. Entramos então na terceira década do século XXI, nos deparando novamente com a gravidade dessa recorrente ruptu- ra intergeracional, na missão fanoniana que às vezes mais parece um looping maldito e infrutífero que a todos nós empurra ao cansaço e à frustração. Mas há mudanças no horizonte! E é nesse sentido que se faz necessário apontar o incipiente movimento das edi- toras pretas que vêm lançando impor- tantes obras de autores negros nacionais e de demais territórios afro-diaspóricos. Incipiente, autônomo e independente, o pequeno movimento conduzido por es- sas editoras, tem sido capaz de lançar calçamento por cima do hiato intergera- cional, não de forma definitiva, mas de forma inicial potente. Posso destacar de imediato a editora da UCPA, com as Obras Completas de Beatriz Nascimento e Lélia González. A editora Medu Neter, com as obras con- tendo escritos e discursos de Marcus Garvey, Carter G. Woodson e Kwame Toure. A editora da Reaja, com as obras de Assata Shakur e Patrice Lumumba. A editora Ciclo Contínuo, com o lança- mento de obras consagradas e inéditas de autores como Oswaldo de Camargo, Abelardo Rodrigues e Carolina Maria de Jesus, entre outros. E outras dessas editoras como a Oguns Toques, a Edito- ra Poder Afrikano e a Segundo Selo já estão preparando novos lançamentos, cada um uma nova rocha que nos apro- xima das produções intelectuais das ge- rações negras anteriores. Página 8 ,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,31 de julho de 2020 ,,,, ,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,, ,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,, Yanda PanAfrikanu Toda essa longa introdução é fundamen- tal porque foi justamente o esforço empreendido pela UCPA ao lançar as Obras Completas de Beatriz Nascimen- to, que me permitiu ter contato aos 43 anos de idade, e 24 anos após a morte da autora, com o conceito de “Paz Qui- lombola”, e que me motivou a buscar compreender um diálogo possível entre a “Paz Quilombola” e o conceito do “Quilombismo”, do mestre Abdias do Nascimento, que inclusive teve relança- da recentemente pelo IPEAFRO, a obra em que estabelece e consolida o concei- to. O diálogo proposto se insere na pers- pectiva da necessidade visualizada por Lélia González de dar as “nossas contribuições específicas ao mundo pan-africano”,[1] e como vem junto com a perspectiva de troca de ideia com o irmão-malungo Allan da Rosa em suas percepções, provavelmente vai ser um pouco mais breve que a própria introdu- ção. Paz na Guerra, o desafio quilombola Estamos no desafio de pensar a nossa história numa perspectiva de longo pra- zo. Muito longo prazo. O mais longo prazo. Que se inicia nas primeiras mi- grações humanas desde o centro-sul do Continente Africano ao Vale do Nilo, até os dias de hoje. Olhando assim, os quase 500 anos em que resistimos con- tra as tentativas de supremacismo bran- co nesse território, são parte integrante de um processo histórico de agressões e resistências que se iniciam com a inva- são dos hicsos no território Egípcio (penso que podemos incluir a invasão de Creta (por volta de 1400 a.C.) pelos aqueus, considerando Creta como uma civilização diretamente afrikana), por volta de 1600 a.C., tendo como marcos principais o domínio árabe sobre o norte do continente a partir do século VII, a colonização da América pelos Europeus a partir do século XV (e a Diáspora de- corrente), a invasão holandesa no sul da África no século XVII, e o Colonialis- mo posterior à Conferência de Berlim, em 1885. Nesse sentido, os Quilombos, Cumbes, Palenques e Maroons, são a expressão maior da saúde histórica das populações afrikanas contra o escravismo nas três “Américas”, são experiências constantes e muitas vezes prolongadas, de autono- mia contra a desumanização imposta no contexto das colônias americanas. A ação Quilombola é possivelmente a face mais constante da história colonial das Américas, desde que os primeiros afri- kanos foram trazidos pra esse continen- te até os dias de hoje. É por entender dessa maneira, que o pensador militante Abdias do Nasci- mento vai propor o Quilombismo en- quanto perspectiva de centralidade afri- kana a partir da experiência afro-brasi- leira: “Condenada a sobreviver rodeada ou permeada de hostilidade, a sociedade afro-brasileira tem persistido nesses quase quinhentos anos sob o signo de permanente tensão. Tensão essa que consubstancia a essência e o processo do Quilombismo”.[2] Essa perspectiva não é portanto contem- plação estática ou teorização idealista da realidade. É pulsão de sobrevivência em luta e atenção permanente contra o sis- tema escravocrata de supremacismo branco. Entretanto, como Abdias não deixa de apontar, o Quilombo é antes de tudo uma perspectiva civilizacional: “Como sistema econômico o quilombis- mo tem sido a adequação ao meio bra- sileiro do comunitarismoe do uja- maaismo da tradição afrikana”.[3] O que nos leva à premissa de Chancelor Williams, que nos diz que, apesar de o enorme esforço dispendido por árabes e europeus para destruir a Civilização Africana, bastam cinco minutos de paz e meia dúzia de pedras pra que os afri- kanos reiniciem a construção de seus Impérios Fundadores.[4] Abdias refor- ça, “Quilombo não significa escravo fugido. Quilombo quer dizer reunião fraterna e livre, solidariedade, convivência, comu- nhão existencial. Repetimos que a socie- dade Quilombola representa uma etapa no progresso humano e sóciopolítico em termos de igualitarismo econômico”.[5] E é nesse contexto civilizacional do Quilombo enquanto experiência históri- ca prolongada – não sendo difícil en- contrar quilombos no Brasil que exis- tiram por mais ou menos um século – que a historiadora Beatriz Nascimento encontra espaço pra indagar sobre a Paz Quilombola. Olha aí a ginga ligeira Allan… “Entre um ataque e outro da repressão oficial ele [Quilombo] se mantém, ora retroagindo, ora se reproduzindo. Este momento chamaremos de ‘Paz Quilom- bola’, pelo caráter produtivo que o Qui- lombo assume como núcleo de homens livres, embora passíveis de escravidão”. [6] Com uma percepção fantástica em que alia a imensa competência enquanto his- toriadora e uma intuição pessoal afiada, Beatriz Nascimento aponta pra o que se configura como um dos grandes vazios da historiografia sobre as populações afrikanas no Brasil, sem deixar de ana- lisar os motivos pra que essa lacuna se estabeleça, “…o Quilombo é um momento histórico brasileiro de longa duração e isto gra- ças a esse espaço de tempo que chama- mos de ‘paz’, embora muitas vezes ela não surja na literatura existente. Creio que se o escravo negro brasileiro tivesse podido deixar um relato escrito, com certeza, teríamos mais fontes da ‘paz’ quilombola do que de guerra”.[7] Beatriz estabelece a sua pesquisa sobre as experiências quilombolas no Brasil e suas ligações com as origens angolanas, tendo inclusive ido a Angola na busca de aprofundar essa pesquisa estabele- cendo relações com a historiografia lo- cal e também fazendo investigações in loco, embora o momento político do país tenha dificultado o seu trabalho. Uma mulher preta em processo. Uma historiadora em processo. Uma pesqui- sadora em pleno processo, Beatriz não deixa de determinar, “A análise dos ‘Quilombos’ não pode obedecer a linha de interpretação utili- zada para os movimentos designados modernos, aqueles que ocorreram na Europa Ocidental desde o século XVIII, que são encaixados dentro do quadro socialista. Menos ainda aos movimentos operários e socialistas desse século. […] Logo, uma interpretação vinculada às teorias de mudança social, notada- mente a marxista, soa em relação a eles de modo exótico”.[8] Junto com Abdias e Clóvis Moura (olha aí o jogo Allan), Beatriz instaura o Qui- lombo como experiência sobre a qual se pode construir uma perspectiva de mun- do afrikana no Brasil, indicando mesmo a necessidade de uma metodologia espe- cífica para que essa perspectiva possa ser conduzida como prática de pesquisa. Em jogo com o Quilombismo, a Paz Quilombola parece estabelecer um equilíbrio dinâmico entre a contingência bélica da luta contra a escravidão, e a contingência humana do humano afrika- no que nunca aceitou se tornar objeto reativo dessa mesma contingência béli- ca. A Paz Quilombola me faz pensar imediatamente no Maestro KL Jay fa- lando no disco do DMN, “aê rapa, aqui, é um dos poucos lugares onde a gente se sente livre… aqui a gente se sente livre, mas lá fora não é tão bem assim…”, ou Matheuzza falando no iní- cio de um evento na Winnie Mandela, “Boa noite a todos, aqui estamos em território afrikano”, ou Rosemeire di- zendo no Quilombo Rio dos Macacos, num daqueles dias em que a Marinha esquece de massacrar a comunidade, “fiquem à vontade meus irmãos, aqui é nossa terra”. Prontos pra a Guerra, em paz entre os nossos. Fazendo do tempo vivido, o tempo da liberdade possível, construindo um por- vir ampliado, sem perder de vista com o Mestre Abdias do Nascimento, que Qui- lombo e Quilombismo são termos de guerra e de disputa, “Há de se consolidar uma teoria cientí- fica inextrincavelmente fundida à nossa prática histórica que efetivamente con- tribua à salvação da comunidade negra, a qual vem sendo inexoravelmente ex- terminada seja pela matança direta da fome, seja pela miscigenação compulsó- ria, seja pela assimilação do negro aos padrões e ideais ilusórios do lucro oci- dental. Não permitamos que a derroca- da desse mundo racista, individualista e inimigo da felicidade humana afete a existência futura daqueles que efetiva- mente e plenamente nunca a ele perten- ceram: nós, negro-africanos e afro-bra- sileiros”.[9] Iê!sse é o início do jogo… solta a man- dinga aê mano Allan da Rosa! Mandingo, 21 de julho de 2020 REFERÊNCIAS (simplificadas e por ordem no texto): GONZÁLEZ, Lélia. Primavera para as rosas negras. Diáspora Africana: Editora Filhos da África, 2018. [1] Pág. 331. NASCIMENTO, Beatriz. Intelectual e Quilombola: Possibilidade nos dias da destruição. Diáspora Africana: Editora Filhos da África, 2018. [6] pág. 76; [7] pág. 76; [8] pág. 216-217. NASCIMENTO. Abdias do. O Quilombismo. Rio de Janeiro: Ed. IPEAFRO, 2019. [2] Pág. 228; [3] pág. 290; [9] pág. 290-291. WILLIAMS, Chancelor. The Destruction of Black Civilization. Ed. do Autor, 1987. [4] Pág. 160. *Fábio Oliveira Nascimento – Mandingo Professor – SMED-Salvador Historiador (UcSal-Ba) Especialista em História Social e Cultura Afro-Brasileira (ACEB-Fetrab) Mestre em Educação (Universidade do Estado da Bahia) A MAIORIA NEGRA NO BRASIL PODE SER VISTA COMO UMA VANTAGEM? Jomo Akanni* No fim do século XIX na Europa, a partir de um tra- dicional e histórico sentimento xenofóbico, os brancos desenvolveram uma teoria, conhecida por Eugenia, com o objetivo de ressaltar uma dita superioridade racial e classificar todos os demais povos como inferiores. Muito intelectuais brasileiros adotaram as teses da eugenia e a partir delas desenvolveram uma outra dentro do contexto das Américas, a Tese do Branqueamento. A tese do branqueamento se baseava na ideia de que o “sangue branco” predominaria sobre todos os outros, dessa forma os descendentes de negros e brancos ou índios e brancos, ficariam gradativamente mais claros, até se tornarem brancos. Em 1911 o Congresso Universal das Raças em Paris, com foco no racialismo e sua relação com o desen- volvimento das nações, recebeu o médico João Baptista de Lacerda, que, ao representar o Brasil, apresentou um artigo que fazia uma previsão que dentro de um século haveria um considerável progresso para o país com a sobreposição dos traços negros a partir da miscige- nação… “A população mista do Brasil deverá ter pois, no intervalo de um século, um aspecto bem diferente do atual. As correntes de imigração europeia, aumentando a cada dia mais o elemento branco desta população, acabarão, depois de certo tempo, por sufocar os ele- mentos nos quais poderia persistir ainda alguns traços do negro”. As ideias eugenistas e suas variações se perpetuaram por mais três décadas no Brasil, fazendo parte inclu- sive da política oficial do país, e após muitos prejuízos foram sendo abolidas após o fim da Segunda Guerra Mundial. O Brasil seguiu com o ideal de se tornar uma nação mais branca, porém com base em outros mecanismos, ora pela exclusão social e econômica dos não brancos, ora pela violência do estado e pelo apagamento das produções intelectuais dos pretos. Yanda PanAfrikanu ,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,31 de julho de 2020 ,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,, ,,,,,,,,Página 9 No entanto, no anode 2010, pouco antes do término da previsão de Lacerda, pela primeira vez na história a população branca deixava de ser maioria no país. Se- gundo os dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE, os negros correspondiam a 50% do contingente nacional. O Movimento Negro adotou estratégias de denúncias, com a argumentação de que mesmo sendo maioria no país os negros permanecem excluídos de todas as áreas centrais de poder e ocupam os piores indicativos so- ciais. Mas ainda assim, poderia haver algum tipo de situação confortável diante dessa superioridade numérica dos negros? A classificação NEGROS– engloba dois grupos dentro dos critérios de cor e raça, e segundo definição do Es- tatuto da Igualdade Racial: “é o conjunto de pessoas que se autodeclaram pretas e pardas, conforme o que- sito cor ou raça usado pela Fundação Instituto Brasi- leiro de Geografia e Estatística (IBGE), ou que adotam autodefinição análoga”. O quesito Cor/Raça – PRETOS – pode ser identificado pelas pessoas com fenótipos relacionados a ascendên- cia africana como a pele escura. No entanto, no quesito Cor/Raça – PARDOS – se en- quadram todos aqueles que são frutos das variadas formas de miscigenação; entre povos nativos e bran- cos, povos nativos e pretos, entre pretos e brancos, en- tre brancos e amarelos, etc. Com isso, nem todas as pessoas do quesito PARDOS possuem ancestralidade africana. E mesmo os PAR- DOS que a possuem, tem sido o resultado de suces- sivas miscigenações com pessoas brancas ou mais pró- ximas do ideal de branquitude almejado, já que os fe- nótipos dos pretos seguem sendo odiados e persegui- dos. Na verdade, a miscigenação no Brasil pode ser vista como o próprio branqueamento do povo preto. Para além dos efeitos do branqueamento físico, os descendentes de africanos de pele mais clara poderiam se autodenominar como PRETOS, a partir dos critérios de autodeclaração do IBGE, se estivessem envolvidos num processo de reconhecimento e orgulho às suas raízes africanas. No entanto, ao se denominarem – PARDOS – buscam relativizar sua pretitude com ar- gumentos de que são o resultado de uma mistura racial que ocorre no Brasil, desconsiderando a violência his- tórica e o racismo que permeia todas as relações inter- raciais. Logo essa vantagem em termos percentuais no número de PARDOS possivelmente não traduz numa maioria que esteja disposta a construir uma frente de resistência e luta contra nosso genocídio. A Redenção de Cam, pintura de Modesto Brocos, 1895. Em 1911 quando Lacerda apresentou suas teses, exibiu uma cópia do quadro “A Redenção de Cam” que traz a imagem de uma família composta por uma avó preta, um casal inter-racial e uma criança de colo branca: à es- querda, a senhora negra olha para os céus em gesto de agradecimento, provavelmente pelo fato de ter uma neta branca – neta essa que é segurada por sua mãe uma mestiça; e à direita, um homem branco pai da criança que observa a cena com certo distanciamento. A imagem do quadro transmite categoricamente a tese do branqueamento através das gerações. O livro sagrado para os cristãos, a Bíblia, traz a história de Cam, filho de Nóe, amaldiçoado pelo pai. A história de Cam, foi in- terpretada no contexto do século XIX, que o “escu- recimento” dos descendentes de Cam teria resultado nos pretos africanos, e que poderia ser recuperado por meio da mistura com a raça branca. Quando observamos as fotos das famílias pretas em tor- no dos anos de 1950, com as características atuais de seus netos e bisnetos percebemos que muitos deles se tornaram tão claros que sequer poderiam ser identifica- dos como descendentes de africanos. Se a demonização da cultura e das religiões africanas se fizer presente nessa análise estamos muito próximos da ideia da Re- denção de Cam. No fim do século XVIII, os pretos representavam 50,5% da população, esse percentual foi reduzido para 34,5% em 1850 e 19,7% em 1872. Distribuição percentual da população, segundo cores selecionadas, no Brasil - 1872-2010 Cores 1872 1890 1920(1) 194 0 1950 1960 1970(1) 198 0 1991 2000 2010 Parda 38,1 44,0 … 63,5 61,7 61,0 … 54,2 51,6 53,7 41,6 Parda 42,9 41,4 … 21,2 26,5 29,5 … 38,8 42,6 38,9 41,6 Preta 19,7 14,5 … 14,6 11,0 8,7 … 5,9 5,0 6,2 8,2 Fonte: Carmargo (2010). IBGE (2010); Wood; Carvalho; Horta (2010). (1) Quesito não pesquisado. Fatores como a proibição e a dificuldade do ingresso de novos africanos para o Brasil assim como vinda de muitos europeus, beneficiados com terras oferecidas pelo estado, foram responsáveis pela queda desses nú- meros. Com o fim da escravidão, foi o racismo e as políticas de estado que se encarregaram de reduzir o número de pretos no Brasil. Independente das pautas e posicionamentos políticos, indivíduos e organizações pretas, que se propõe a tra- var uma luta de resistência, deveriam pensar em for- mas para possibilitar a continuidade do Povo Preto, identificando na miscigenação seu propósito histórico de aniquilação. Certamente essa proposição resulta em extrema complexidade, principalmente por todas as outras questões que já nos assolam, porém, ações que estariam ao nosso alcance, podem se efetivar não só com a geração de descendentes, mas com a adoção, tu- tela e acompanhamento de crianças pretas, se respon- sabilizando pela construção de núcleos familiares nos moldes africanos. Lacerda foi criticado por suas previsões serem muito imediatas, considerando o curto espaço de 100 anos, no entanto outros intelectuais racistas estimaram que esse branqueamento se daria em um tempo maior, em torno de 200 anos. De qualquer maneira esse processo segue em ritmo acelerado, pela perpetuação do racismo, pela continui- dade das políticas de extermínio do estado e pela nossa ausência em construir estratégias diante dessa outra si- tuação de genocídio. *Ativista pan-africanista e integrante da UCPA (União dos Co- letivos Pan-Africanistas). Mulher Preta, Dialética Africana… Abibiman Shaka Touré* Amy Jacques Garvey dizia que seu ho- mem gostava muito de um certo autor – Terentius Afer; ou simplesmente Terên- cio, o Afro. Não só pelo epíteto – cha- mando a atenção para uma característica fenotípica – nos chama a atenção uma frase do dramaturgo, nascido numa Car- tago em rápida dissolução, que costu- mava dizer: “Eu sou um homem: nada do que é humano me é estranho”. Tenha essa adágio em mente. O homem vivia dizendo isso. Seus opo- sitores diziam que qualquer tentativa de definir o homem – dentro aqui das nos- sas intenções, a mulher preta – passa por sua desumanização… o que dizer, então, dos que negam a raça como fator?! Como povos colonizados, é necessário nomear – e sendo até redundante, se au- tonomear, definir a si mesmo: a mulher preta não é recorte da história Africana, como o povo preto não é aparte da histó- ria branca. De fato, se não há capitalis- mo sem tráfico escravista, também não existe história Africana sem o protago- nismo preponderante do nosso “mulhe- rio”, como diria Lélia Gonzalez… Isso ficou mais bem registrado na história Kemética. Não existiria Akhenaten ou Tutankhamen sem a Rainha Mãe Tiye, por exemplo. Definitivamente, o conti- nente não seria o mesmo sem a sua ge- neral, Dahia al-Kahina… Enquanto você tinha, em África, mulhe- res em posições de autoridade, no co- mando, governando nações, como che- fes de Estado, as mulheres macedônicas, gregas ou romanas etc., elas não tiveram a mesma sorte – não a mulher branca. Com esse respaldo histórico, deduzimos que devia ser uma vergonha para o ho- mem branco, e uma ameaça à sua “mas- culinidade”, sua mulher ser reconhecida como sua igual; veja bem, não estamos nem falando de uma concepção de opos- tos-complementares, talvez esta seria uma noção sofisticada demais para o cé- rebro do homem branco operar… O contexto Africano é diferente. Na dia- lética Africana dos opostos-complemen- tares, o homem e a mulher Africana cumprem um mesmo propósito, umade- terminação em comum: a construção da Família Africana. É uma questão de ló- gica. John Henrik Clarke baseia seu conceito de Pan-Africanismo numa dialética pa- recida: se, por um lado (como antítese ao eurocentrismo), o ataque e a destrui- ção da estrutura familiar Africana gera- ram a necessidade do Pan-Africanismo, por outro (como uma tese em si), o Pan- Africanismo surge com a união dos po- vos e nações Africanas, em última aná- lise, das famílias (não família nuclear, mas estendida, ampliada, alargada; por- que Africana…), e isso está historica- mente documentado pela Paleta de Nar- mer, em sendo o Vale do Nilo “uma ro- dovia cultural”, um entreposto civiliza- tório, um celeiro de diversas culturas, o ideal manifesto de unidade na diversi- dade – atualizando para os dias de hoje, um traço característico de egoísmo es- sencial para a sobrevivência… Em se tratando da primeira hipótese, te- mos que o homem Africano é negado, e a mulher afirmada – mas sempre para fins de estupro, físico, material, psíqui- co… sempre como sujeito, sujeita: seu homem deve ser morto, senão preso. Mas isso é, antes, consciência historica- mente determinada do que produto das modernas estruturas sociais. É tão antigo quanto o tempo, Carlos Moore dirá. Ra- cismo como estrutura de pensamento, linguagem, cognição. Racismo por ódio, na última das hipóteses, racismo por me- do da aniquilação genética, como um mecanismo de defesa “em si e para si”. O que seria um “acidente histórico”, Amanirenas? Afirmada enquanto heroí- na, pouco se lembra que – do outro lado do front, quando da passagem relatada por Calístenes, Estrabão… Passou bati- do, mas não despercebido, aos olhos atentos de John Henrik Clarke: Clitus Niger, um homem, Africano, era o gene- ral das tropas de Alexandre Magno! Onde não impera amnésia, reina distor- ção histórica, e o que pode ter sido um acordo de paz entre o homem e a mulher Africana, é reduzido ao recuo de Ale- xandre, “o Grande”… antes fosse ape- nas isso! Na real, esta é nossa agenda histórica sequestrada, ou seja, refletida pelos modos, gestos e valores projetados da história branca, suas fraquezas e con- tradições internas, que não podem ser solucionadas em suas próprias casas, pois isso implicaria em sua auto-conde- nação – o que, graças à Camus e Sartre (apud Stokely Carmichael), sabemos que não é possível. Tendo sido consumada a morte do rei da Báctria (por motivo torpe, diga-se, pelo próprio Alexandre, que chorou quando viu que não tinha mais ninguém pra ma- tar… pouco importa se ele se suicidou ou foi suicidado!) antes do famoso ocor- rido, então estamos errados. Caso con- trário, trata-se de mais um caso de “es- tudiosos” que negam a raça como fator determinante, e nesse caso pode ter sido a pele bem preta do rei-guerreiro refleti- da na pele cor de ébano da Candace… Neste ponto, os extremos se tocam. Página 10 ,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,31 de julho de 2020 ,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,, Yanda PanAfrikanu É muito importante entender, e sempre bom frisar, que não podemos perder certas coisas de vista… sobretudo por se tratar do nosso matrimônio – sim, ma- trimônio, e não “patrimônio”. Parafra- seando o Dr. Clarke: se J.A. Rogers nos ensinou a olhar a questão do sexo (e do sexo, não reduzidas a binarismos de gênero) – Cheikh Anta Diop ensina que viemos de um berço matriarcal, falando em termos de “Mátria”: a Unidade Cul- tural da África Preta; e visitamos tempos históricos onde o regime de sucessão matrilinear é regra… Onde África é, a um só tempo, Continente Mãe e Berço, da Humanidade e Civilização. Definindo por nós mesmos: falemos em matriotis- mo – matripotência – Maat-ria! Essa reflexão sobre Mãe África e o matriarcado é proposital – o Mulherismo Africana (Coleção Pensamento Preto: Epistemologias do Renascimento Afri- cano, Vol. III, Págs. 157-173, 301-315, Editora Filhos da África, 2019) aborda justamente o papel da mulher Africana, sua função social de participação ativa, como sujeito, agente e protagonista no ordenamento das sociedades tradicionais Africana; além de apontar uma solução, na prática, pros problemas que enfrenta- mos, como e enquanto povo. Pois a mu- lher Africana jamais foi presa em cintos de castidade, ou deixada de lado, posta à margem, em lugar de submissão, que é, repetimos, a posição vergonhosa – pro homem branco – ocupada pela sua mu- lher. A mulher Africana, não: ela teve poder de fato, decidiu soberana em todas instâncias, sem com isso abalar seu ho- mem. A Família Garvey, o Clã Shakur – os estudos de John Henrik Clarke e Cheikh Anta Diop estão aí e não nos deixa mentir! E se as mulheres são a van- guarda, os homens são a retaguarda… de Amanirenas à Clitus Niger, de al- Kahina à Kuseila… Nossas mulheres estão à frente dos ter- reiro. São nossas mulheres, administran- do bibliotecas comunitárias. Duas mu- lheres traduziram o livro de Amos Wil- son, que será publicado pela Editora Po- der Afrikano. “Às Irmãs” é o título do livro do nosso irmão Abiṣogun, e agora lembramos as palavras do mais velho Hamilton naquele seu texto: a Reaja é menina pai… A Yanda é uma rede, também a UCPA é ela… Essa é a dialética – a lógica – a Maat- emática é essa! Particularmente, meu primeiro “filho”, é uma menina… minha mãe, duas irmãs, minha mulher e minha filha, Tiye… talvez porque eu vejo essas mulheres Africanas na prática, o Mulherismo Africana na vanguarda da nossa luta teórica, e isso não afeta a minha con- dição de homem… a mulher preta, Afri- cana, igual aquela que me permitiu re- tornar do Orun… O homem deve se submeter, não por coerção, mas porque é cultural. Pois mãe é uma só! Como dizia o Honorável Ala- ru: “Salve a Sagrada, Amada e Gloriosa Mãe África!”. *Historiador Autodidata, fundador do Grupo de Estudos Kwame Ture, administrador da página Povo Preto, Pan-Africanismo & Poder Preto. Introdução: Uma breve apresentação Meu nome é Denise Aires, tenho 37 anos e sou mãe do Lukeny Zola que acabou de completar 2 anos. Me formei em Artes Cênicas e a maternidade me fez ter interesse em educação na primeira infância, então, atualmente estudo Pedagogia. Participo de projetos como atriz e como Contadora de Histórias, antes da pandemia estava ensaiando um espetáculo que teve sua estreia adiada para 2021 chamado “Mancala ou as sementes de Akin” e me apresentando com narração de histórias e mediação de leituras pelas cias. Oya ô e Passarinho Contou. YP: O que é a Fulelê Livros e Jogos Educativos? D.A: A Fulelê nasceu há quase dois anos quando eu decidi que queria viver a maternidade mais ativamente então abri mão do meu emprego fixo (trabalhava há 4 anos como educadora em um ong) para tentar viver com freelas. Com o dinheiro do FGTS comprei uma máquina de costura na intenção de costurar e vender roupas (o que ainda não aconteceu) e abrir um brechó (que durou 2 meses). Queria poder estar mais perto e ver os primeiros passos do meu filho, a primeira palavra, etc e me doía pensar em não estar com ele todos os dias; Arrisquei e quando o dinheiro do seguro foi chegando ao fim os trabalhos começaram a aparecer e consegui me organizar como freela, abrir MEI e essas coisas. Fiz essa passagem para contar como surgiu a Fulelê, ela era meu brechó virtual, que não existe mais… A primeira vez que vi os livros em feltro há quase dois anos me interessei muito, sempre gostei de trabalhos artesanais, inclusive confecciono brincos também, mas o retorno nunca foi alto o suficiente para pagar as contas de casa. Comprei alguns materiais para confeccionar os livros e já estava com a ideia de fazer o Quiet Book (que é o nome desses livros sensoriais) com o tema afro, mas ainda não fazia ideia de como produzir e o volume de
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