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Yanda Pan-Afrikanu - Ano I - Nº 2-1

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ÓRGÃO OFICIAL PAN-AFRICANO DEDICADO AOS POVOS PRETOS DO MUNDO INTEIRO
Ano I - Nº 02cccccccccccccccccccccccccccccccccccccccccccccccccccccccccccccccccccc ,, cccccccccccccccccccccccccc31 de julho de 2020
A Paz Quilombola e o Quilombismo
R e f l e x õ e s n o S é c u l o X X I
F á b i o M a n d i n g o
A Paz Quilombola e o QuilombismoA Paz Quilombola e o Quilombismo
R e f l e x õ e s n o S é c u l o X X IR e f l e x õ e s n o S é c u l o X X I
Fábio MandingoFábio Mandingo
Gênero como norteGênero como norte
e Afrika como Sule Afrika como Sul
Por: De Pé Raça Poderosa (p. 3-4)Por: De Pé Raça Poderosa (p. 3-4)
Ainda existia vidaAinda existia vida
para viverpara viver
Por: Janete Marques (p. 6)Por: Janete Marques (p. 6)
A maioria negra noA maioria negra no
Brasil pode ser vistaBrasil pode ser vista
Como uma vantagem?Como uma vantagem?
Por: Jomo Akanni (p. 8-9)Por: Jomo Akanni (p. 8-9)
Mulher Preta,Mulher Preta,
Dialética AfricanaDialética Africana
Por: Abibiman S. Touré (p. 9-10)Por: Abibiman S. Touré (p. 9-10)
 Fotografia de Maria Beatriz Nascimento 
 [17 de julho de 1942 - 28 de janeiro de 1995] 
Página 2 – Editorial ,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,31 de julho de 2020 ,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,, ,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,, Yanda PanAfrikanu
EDITORIAL 
O segundo número do Jornal Yanda Pan-
Afrikanu sai às ruas no dia da mulher
africana – 31 de julho. Essa data foi con-
cebida no ano de 1962 após a Confe-
rência das Mulheres Africanas, realizada
em Dar-Es-Salaam (Tanzânia), uma das
capitais internacionais do movimento
Pan-Africanista no século 20. Nós, do
Yanda PanAfrikanu, estamos cientes de
que o Dia da Mulher Africana é simbólico,
uma data importante para reflexão, mas
que em hipótese alguma pode ser o úni-
co dia do ano em que a mulher africana é
celebrada, como se faz na cultura capita-
lista com o dia das mães, dias das crian-
ças, etc. Todos os dias são da mulher
africana. Aproveitando-nos dessa data,
indiscutivelmente relevante para a comu-
nidade africana global, o Yanda PanAfri-
kanu traz à tona a gênese da mulher
africana no espírito da complementari-
dade. Foi nessa evocação astral e política
que conseguimos estampar uma capa
com Maria Beatriz Nascimento (Brasil), o
fio condutor de um ideário Quilombola
pela paz; evocar a tempestade de lucidez
do nosso sempre atual Marcus Garvey;
desbancar a imposição do gênero sobre
as demandas africanas; traduzir a Ku-
jichagulia da renovação comunitária;
admirar a “Mulher-Maranhão” no ápice
redentor das Equilibristas; fustigar o ra-
cismo para retomar a força da vida sobre
a pandemia covidiana; questionar se há
vantagens de ser quantidade e de inte-
ragir com a nossa amada Senhora Amy
Jaques Garvey. Avançamos sobre o que
elas empreendem no jogo dos livros e
voltamos a Tanzânia, onde celebrarmos
a ancestralidade da Maat-Mulher na ca-
beça de um homem que fez a passagem.
O dia da mulher africana é o primeiro dia
da humanidade em seu berço civilizacio-
nal africano, na esfera do matriarcado.
31 de Julho é a data em que reafirma-
mos a ordem sobre o caos.
 
 EXPLICANDO O CONCEITO DE YANDA
YANDA quer dizer REDE em kimbundu,
língua bantu concentrada no noroeste de
Angola, nomeadamente nas províncias de
Luanda, Bengo, Malanje e Kwanza Norte, e
falada pelo povo Ambundu. A ideia para o
nome YANDA PANAFRIKANU partiu de
diferentes imagens de rede, tanto pela nossa
missão de uma construção política em rede,
entre filhos e filhas no continente africano e
na sua diáspora, para fortalecermos diálogos
e ações, como também na perspectiva de
uma rede que é lançada ao mar, buscando a
autonomia para pescarmos as nossas ideias,
identidades, culturas e alimentos. YANDA é
simultaneamente trabalho colectivo e traba-
lho autônomo numa luta comum da negritude.
Os sacrifícios que os Negros fizeram pelas outras raças, são agora necessários em
nome de uma África que sangra¹
Marcus Mosiah Garvey*
Companheiros da Raça Negra,
saudação:
Embora minha detenção me impeça
de fazer muitas coisas para ajudar nos-
sa causa, é meu dever enviar ocasio-
nalmente palavras de encorajamento a
meus irmãos em todo o mundo, que lu-
tam pela sua humanidade e pelo direito
à liberdade.
Esta é a era das ações úteis, e cabe a
todos os Negros ajudar seus irmãos a
explorarem mais plenamente as opor-
tunidades da vida. Agora é a hora de
todos nós, companheiros, nos unirmos
e ajudarmos na difusão das doutrinas
da Associação Universal para o Pro-
gresso Negro. Temos que utilizar toda
energia que possuímos para resgatar os
milhões de nossa raça que estão dis-
persos. Não há tempo a perder com
coisas tais como leste, oeste, norte ou
sul. A questão do Negro deve ser a úni-
ca questão para nós. Permanecemos
divididos por tempo suficiente para
percebermos que nossa fraqueza como
raça é causada pela nossa desunião.
Não podemos mais permitir que o ini-
migo penetre em nossas fileiras. Preci-
samos “cerrar fileiras” e assumirmos
por todo o mundo que: ou teremos
total liberdade e democracia, ou mor-
reremos lutando para obtê-las. A salva-
ção de nossa raça depende da ação da
geração atual de nossos jovens. Nós,
companheiros que poderíamos ter mor-
rido aos milhões em batalhas em nome
dos homens brancos, precisamos en-
tender que temos apenas uma vida par-
a usar, e uma vez que essa vida pode-
ria ter sido usada na França, em Flan-
dres, para a salvação de uma raça que
não é a nossa, devemos ser sensatos o
suficiente para perceber que, se é para
haver um sacrifício da vida, primeiro
daremos essa vida à nossa própria cau-
sa.
África, África que sangra, está pedindo
o serviço de toda mulher e homem Ne-
gro para resgatá-la da escravização pe-
lo homem branco. Todo o sacrifício
que precisa ser feito, portanto, será do
Negro, pelo Negro e por mais nin-
guém. Quer estejamos da América, Ca-
nadá, Índias Ocidentais, América do
Sul ou Central, ou mesmo na África, o
chamado à ação é exclusivamente nos-
so. As crianças dispersas da África não
conhecem outro país, a não ser a sua
querida Pátria e Terra-Mãe. Podemos
progredir na América, nas Índias Oci-
dentais e em outros países estrangei-
ros, mas nunca haverá nenhum pro-
gresso duradouro até que o Negro faça
da África uma república forte e pode-
rosa o bastante para proteger o sucesso
que obtivermos em terras estrangeiras.
O conflito de ideologias entre nações e
raças está causando uma revolução en-
tre os homens. As classes reais e privi-
legiadas de ociosos que costumavam
tiranizar e oprimir as hordas humildes
da humanidade agora estão enfrentan-
do dificuldades em manter seu contro-
le sobre o sentimento do povo. As pró-
prias pessoas mudaram em seus senti-
mentos e perspectivas. Essa mudança é
chamada de revolução, e que um dia
entronizará o domínio das massas e
destruirá o privilégio das classes. Na
medida em que essa revolução estende
seu escopo às várias raças, devo dizer
que o Negro não pode se dar ao luxo
de ficar em silêncio ou parado, ele
também deve rebelar-se contra as
ideias servis e subservientes do passa-
do. A revolução sem sangue da socie-
dade branca ensinou aos povos oprimi-
dos do mundo como se organizar e co-
mo agir. Não existe uma revolução tão
bem-sucedida quanto a do triunfo do
pensamento livre sobre as ideias escra-
vas. O Negro tem sido escravo das
ideias do homem branco há trezentos
anos, e chegou a hora de imitar as
massas da sociedade branca e execrar
a realeza e os privilégios.
Que todo Negro pense na revolução
que um dia varrerá o continente Afri-
cano. Vamos sonhar e também planejar
este dia. Certamente chegará o tempo
em que todos os homens cumprimenta-
rão uns aos outros como irmãos, mas
esse tempo significará a ascensão uni-
versal do homem, quando homens pre-
tos, amarelos e brancos, todos em seus
respectivostermos, se gabarão de seu
sucesso e de sua civilização. Nenhum
homem branco respeitará e cuidará de
um homem preto que não tem nada a
mostrar sobre seu sucesso na vida, e o
mesmo acontece com o homem amare-
lo. Todos os homens devem emergir e,
no sucesso geral, haverá uma aprecia-
ção de todos.
Todos os pretos devem, portanto, in-
gressar na nova revolução que busca
colocar a mente do homem no reino da
elevação racial e destruir o monstro
hediondo do pensamento escravo. Ser
um revolucionário de sucesso não sig-
nifica que você deve usar a espadas e a
armas, mas usar as faculdades da in-
vestidura de Deus e elevar-se ao mais
alto patamar possível para o homem.
Portanto, vamos unir nossas forças e
fazer uma corrida desesperada pelo ob-
jetivo do sucesso. E agora que come-
çamos a progredir nos unindo, não
poupemos esforços para seguir em
frente.
Tenho a honra de ser seu servo obe-
diente,
Marcus Garvey
¹ Editorial do The Negro World, periódico
oficial da UNIA, do dia 04 de setembro de
1926. Edição: Vol. XXI Nº 04. Nova Iorque,
sábado, 4 de setembro de 1926.
* Marcus Garvey – Fundador e Presidente-
Geral da Associação Universal para o
Progresso do Negro.
Yanda PanAfrikanu ,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,, ,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,31 de julho de 2020 ,,,,,,,,,,,,,,,,,, ,,,,,,,,,,,,Página 3
Gênero como norte e
Afrika como Sul. Qual
caminho trilhar para
africanizar o nosso
olhar em relação a
nossa comunidade
preta?
Quando falamos em gênero, vem sem-
pre a dicotomia de coisas para menina,
coisas para menino, mas quem determi-
nou coisas femininas e coisas masculi-
nas? Qual é o papel das mulheres e ho-
mens em cada função? Quem colocou
nossos corpos somente nesta categoria?
Quem nos nomeou como tal?
A autonomeação na perspectiva africa-
no-centrada é fundamental para nos lo-
calizarmos enquanto agentes na nossa
própria história. Esses questionamentos
genéricos dentro da comunidade preta
não fazem muito sentido. As nomeações
do que podem meninas e meninos faze-
rem geralmente não foram criadas pela
nossa comunidade. A irmã, Caroline
Amanda, através do Yoni das Pretas, nos
aponta caminhos para algumas reflexões
sobre a importância de entendermos a
energia feminina e a energia masculina
como ambas forças complementares na
nossa existência. Sendo a feminina, fér-
til, pronta para ser fecundada, para ges-
tar vidas, projetos, ser criativa; e a mas-
culina como a energia impulsionadora,
que nos dá acesso para essa fecundação,
realização e execução desses projetos-
vidas. Logo, uma não exclui a outra pa-
ra que existamos.
O processo de se africanizar na diáspora
necessita ser feito com autocrítica. Em
relação a linguagem é necessário estar-
mos sempre atentos as traduções de uma
língua tradicional afrikana para a lin-
guagem do colonizador, será que o que
eu sei sobre um povo milenar, é o que
eles realmente são, ou é simplesmente a
adaptação do formato que mais agrada
as linguagens e principalmente o modo
de pensar brankkko? A língua dos povos
Yorubás, por exemplo, quando traduzida
para o português, passará por uma série
de equívocos bem comuns no ocidente.
Pensando nessa ideia, reflita: como o
português, língua do colonizador euro-
asiático, nos ensinou a perceber um po-
vo não generificado?
O brasil é a terra em que o terror antia-
frikano moldou o nosso pensar dentro
de um formato dicotômico e cartesiano,
aqui, tudo é dividido em categorias ex-
tremamente bem definidas, contudo, no
sistema tradicional Yorubá, corpo, espí-
rito e físico não estão dissociados.
Em relação ao “gênero”, a honorável
professora Nigeriana Oyèrónkẹ Oyěwù-
mí fala que “o idioma iorubá é isento
em relação ao gênero”, ou seja, muitas
categorias relacionadas a gênero presen-
tes e aceitas na linguagem colonial, den-
tro da tradição Yorubá as mesmas não
existem. A língua não é limitada e nem
moldada num formato maniqueísta, não
se encontra palavras que apresentam es-
pecificidades de gênero apresentando
filho, filha, irmão ou irmã. Os nomes io-
rubás não possuem especificidade de
gênero, a cultura Yorubá, ao contrário
da ocidental, é uma cultura tradicional-
mente baseada na senioridade, não há
registros que divisões de gêneros exis-
tem, homem e mulher, macho e fêmea,
não são divisões que demarcam um lu-
gar de prestígio social como estamos ha-
bituados a encontrar num sistema de su-
premacia brankkka.
Em paralelo com a tradição Yorubá, pa-
ra os Dagaara, em Burkina Faso, a sub-
jetividade do indivíduo não está marca-
da a partir de um ethos ocidental que o
generifica, inferiorizando sua existência
e função social de acordo com sua geni-
tália ou manifestação da sua masculini-
dade no ser macho e feminilidade no ser
fêmea.
Para os Dagaara, através da manifesta-
ção do espírito, pode-se compreender a
expressão de sua sexualidade, além das
explicações espirituais, a contribuição
social do indivíduo tem função estrutu-
rante para o equilíbrio da comunidade
que precede a autodefinição de sexuali-
dade, deste modo, o papel social é deter-
minante para o entendimento do indiví-
duo, e não uma visão limitada sobre ge-
nitálias, como demarcadoras de gênero e
impositiva de modo como a sexualidade
deve ser exprimida.
Podemos perceber essa mesma perspec-
tiva de viver um mundo complementar
quando vemos os ensinamentos da cul-
tura bantu-kongo tão bem escrita pelo
Fu-kiau no texto Kindezi: A Arte Kôngo
de Cuidar de Crianças. Na cultura ban-
tu-kongo, essa função era almejada tan-
to para homens quanto para mulheres,
em outras palavras, não existe essa dis-
tinção do que pode ou não cada pessoa
fazer. Não são feitas escolhas a partir
dos órgãos genitais de nascimento de
cada pessoa. Ou seja, como relata no
texto: “Um/a garoto/garota tem que
cuidar de seus irmãos e irmãs mais jo-
vens, enquanto um avô cuida de seu
neto. Qualquer pessoa na comunidade –
irmão, irmã, primo, avó, tia, tio, amigo,
vizinho – pode cuidar de alguma crian-
ça da comunidade para que, como diz o
provérbio Kôngo, Mwâna mu ntünda,
zitu kia müntu mosi; ku mbazi, wa ba-
bônsono, que significa, ‘Uma criança
no útero de sua mãe é responsabilidade
de uma pessoa; uma vez que tenha nas-
cido, ela pertence a todos (na comuni-
dade)’”. Já na diáspora afrikana no bra-
sil, encontramos continuidades desta
mesma referência bantu-kongo. Apenas
está reorganizada driblando a suprema-
cia branca do século XXI nomeada de
capitalismo. Muitas vezes crescemos
com a experiência de vermos as mães
pretas trabalharem fora, já os filhos
mais velhos cuidarem da casa e dos
irmãos mais novos. O papel do gênero
enquanto estratificador das relações so-
ciais cai por terra partindo dessas expe-
riências tão imbricadas no nosso coti-
diano. Isto nos chama a atenção para re-
fletirmos como estamos vivendo a ques-
tão de gênero; como definimos nós mes-
mo o que é gênero; ou até quando pre-
cisamos ter essa classificação no oci-
dente como parâmetro de viver dentro
da nossa comunidade preta.
Sexualidade enquanto parte de um
sistema espiritual
Primeiramente é importante compreen-
dermos que a demonização e criminali-
zação de relações homoafetivas no cont-
inente africano ocorreram através da co-
lonização. Prova disso é que o pseudo-
historiador europeu Edward Gibbon, em
1781, foi o primeiro a inventar que “não
existia homossexualidade na África”,
conforme livro History Of The Decline
and Fall The Roman Empire.
Países africanos, como por exemplo Su-
dão e Uganda, só criaram os crimes de
sodomia após a invasão dos yurugus
(brancos) cristãos e muçulmanos.
Isso posto, quem reproduz esse tipo de
falácia está reproduzindo algo criado
pelo colonizador para fragmentar a co-
munidade preta.
Porém, o estudo “Expanded Criminali-
sation of Homossexuality” realizados
por Ugandenses comprova que há regis-
tros de relacionamentoshomoafetivos
pré-coloniais no Congo, Camarões,
Uganda, África do Sul, Angola, Benin,
Nigéria, Sudão, Tanzânia, etc. 
Ressalta-se que a cultura do nosso povo
é transmitida, sobretudo, pela oralidade,
logo a ausência de documentos escritos
em algumas comunidades não significa
que todas as pessoas africanas se rela-
cionavam apenas com o mesmo sexo.
Malidoma Somé, no artigo Homosse-
xuais: guardiões dos portões, reitera a
importância comunitária de todos, sem
discriminação, afirmando inclusive que
os saberes ancestrais ligados à astrono-
mia foram desenvolvidos primordial-
mente pelos guardiões.
A união do povo preto da diáspora bra-
sileira é fundamental para o enfrenta-
mento à branquitude que nos mata, con-
trola, coloniza, rouba e castra nossos de-
sejos há mais de quatrocentos e cin-
quenta anos. Porém, para nos unirmos
efetivamente e formarmos uma grande
potência harmônica precisamos resolver
nossos problemas internos que per-
meiam nossas relações interpessoais
planejados pela supremacia branca para
nos autodestruir.
Algumas das estratégias da branquitude
implementadas em nosso meio a fim de
nos enfraquecer como comunidade, ge-
rar conflitos e também nos matar, são as
discriminações de orientação sexual e de
identidade de gênero. Tais preconceitos
foram implantados em nossos povos
após os derradeiros contatos dos euro-
peus e árabes com nossos ancestrais,
que até hoje são responsáveis pelo sofri-
mento, abandono, rejeição e morte dessa
potência intelectual, física, artística, cul-
tural e espiritual que são os pretos e
pretas homossexuais, lésbicas, bisse-
xuais, transexuais, os nomeados como
guardiões dentro da comunidade Daga-
ra, descrito de forma brilhante por So-
bonfu Somé no livro O Espírito da Inti-
midade.
É necessário autocrítica para revermos
conceitos e adquirirmos autonomia a
fim de nos autonomearmos através de
nossos próprios nomes, estes que con-
tribuirão para desenvolvermos uma co-
munidade potente espiritual, físico e
culturalmente. Do contrário, a suprema-
cia branca seguirá o projeto de aniqui-
lação do nosso povo e continuará nos
utilizando como ferramenta dessa des-
truição. Organização é um meio para
termos condições de nos perceber indi-
vidualmente como parte de uma comu-
nidade, e assim, utilizar nossas peculia-
ridades e características em prol do for-
talecimento coletivo, como afirma John
Henrik Clarke, “Pegue o que você faz
de melhor e faça isso pelo seu povo”.
Necessitamos ser críticos com o com-
portamento ocidental e seus conceitos
de divisão dentro de uma sociedade.
Precisamos perceber que também é ge-
nocídio quando utilizamos o conceito de
gênero e seus discursos católicos para
analisar as pessoas afrikanas.
Página 4 ,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,31 de julho de 2020 ,,,, ,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,, ,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,, Yanda PanAfrikanu
Embora perpetua-se até os dias atuais
perspectivas socioculturais e análises
ocidentais sob a nossa cultura, precisa-
mos dar nome as coisas, porque isso é
epistemicídio. A proposta é de resgate. E
é nesse processo de nos afrikanizar que
precisamos compreender com cautela
toda história milenar que o nosso povo
construiu antes das colonizações. Nós,
enquanto comunidade preta, somos res-
ponsáveis por cuidar e preservar o nosso
povo, e tudo que provém de nossa an-
cestralidade. É necessário dar continui-
dade ao nosso legado reeducando-nos
racialmente e colocando Áfrika no epi-
centro da nossa caminhada.
Ao olhar para o contexto histórico da
Maafa (holocausto africano) e todo o
processo de invisibilidade física, históri-
ca e cultural que ela causa, percebere-
mos os caminhos que percorremos num
modelo de alienação e as inúmeras ve-
zes que acabamos por nos minimizar
para cabermos dentro do mesmo com-
portamento praticado pelos nossos algo-
zes. A sexualidade sem os dogmas oci-
dentais é vista como fator de equilíbrio
de várias culturas milenares, como as
inúmeras presentes no continente afrika-
no e também em territórios indígenas. A
bíblia, com seu comportamento incivili-
zado e fundamentado na cultura ociden-
tal, tentou moldar o nosso comporta-
mento enquanto um povo alcalino e
parte da coletividade no que relaciona a
essa questão. Tanto em África como nas
Diásporas visualizamos o modo de ope-
rar do ocidente definindo nossas identi-
dades físicas, espirituais e culturais, to-
do esse processo causado pela suprema-
cia brankkka causam grande confusão,
principalmente, pelo distanciamento dos
nossos valores tradicionais relacionados
ao modo de nos definirmos e enxergar-
mos enquanto povo.
Toda sexualidade tem como fundamento
a espiritualidade. E se tirado de contex-
to, torna-se algo controverso e passível
de exploração. Uma comunidade que
não valoriza os portões espirituais ou
bloqueia essa conexão, está fadada ao
fracasso.
Na aldeia Dagara, de acordo com o livro
O Espírito da Intimidade de Sobonfu
Somé, essa conexão só é possível atra-
vés dos guardiões, pessoas que seriam
rotuladas aqui no ocidente como homos-
sexuais. Os guardiões possuem ligação
com o mundo físico e os portões espiri-
tuais da comunidade. Vivem no “limite”
dos dois mundos e tem o poder de trazer
a paz com a espada da verdade e inte-
gridade. Justamente por estar entre os
dois sexos.
Todo homossexual é um guardião? Não.
Ser guardião não é definido pela orien-
tação sexual, mas anunciado antes mes-
mo do nascimento da pessoa, por fazer
parte do seu propósito de vida.
Se estiver no Odu (destino) da pessoa
ser um guardião, mesmo diante da con-
firmação, existe o processo de iniciação
rigorosa. É necessário assegurar que o
poder que lhe é garantido, não seja mal
empregado. Afinal, um guardião toma
conta de toda uma aldeia, tribo, comuni-
dade, etc.
E mesmo os anciãos e conselheiros, que
possuem um papel fundamental no equi-
líbrio da comunidade, solicitam a ajuda
espiritual dos guardiões para acessar os
portões e apoio em seus rituais.
Não existe segregação homossexual em
uma comunidade. E diferente do oci-
dente, o termo “gay” ou “lésbica” não
existem.
Além de não serem rotulados negativa-
mente, também não são vistos como di-
ferentes.
Pois em comunidade, não se define as
pessoas por orientação sexual. O
importante é o seu papel dentro dela.
*Organização comunitária e pan-africa-
nista – De Pé Raça Poderosa. Organiza-
ção fundada em Janeiro de 2018, na ci-
dade de Belo Horizonte/MG.
 Kujichagulia na construção do seu propósito 
Matheus Omowale*
A autodeterminação é vital para
toda criação humana. Não
podemos partir de uma condição
sujeitada pelo racismo, dentro do
neocolonialismo, que limita o
nosso processo criativo, a nossa
existência e o nosso propósito.
Sim, nós temos escolhas e
arcaremos com os custos delas,
gostemos ou não!
“Para controlar um povo, você deve primeiro
controlar o que ele pensa sobre si mesmo e como
ele considera sua história e sua cultura. E quando
o colonizador fizer você se sentir envergonhado de
sua cultura e sua história, ele não precisará de
paredes de prisão, nem correntes, para segurá-lo.”
[John Henrik Clarke]
Na medida que identificamos posturas disfuncionais
dentro da nossa comunidade, geralmente ligadas ao
embranquecimento, podemos identificar a visão distor-
cida que temos de nós mesmos. Essa visão, perspectiva
e inconsciente coletivo é construído através da absor-
ção de conteúdos audiovisuais, violência, assédio, ex-
ploração dentro de conceitos estabelecidos que nos sub-
valorizam enquanto pretos, ao passo que hipervalori-
zam o branco, seja estética, ética, espiritual e filosofica-
mente falando.
Isso pode ser ilustrado inclusive naqueles exemplos que
são vendidos pelos canais de mídia branca, como os
nossos irmãos de mais valor, as “quebras de paradig-
ma” (só que não né!?),valor esse que é medido pela
quantidade de embranquecimento que esse preto possa
performar. Seja na forma material escolhendo a misci-
genação, seja de uma forma subjetiva, na medida que
uma pessoa preta consegue fazer se parecer branca na
sua linguagem, no comportamento, na postura, na cul-
tura com a qual ele se identifica e gasta seus recursos,
seja tempo, energia ou dinheiro. Não coincidentemente
a maioria dos pretos que estão envolvidos com gente
branca e em locais brancos conseguem valer por 10
brancos quando estão fazendo militância esquerdista,
liberal, feminista, flertes absurdos com a meritocracia e
o positivismo pelo público que eles pretendem atingir
com suas metas, vendendo o ouro após o arco-íris em
relação ao ingresso à universidade e o estado, algo que
é, de forma geral, inacessível para a maioria de nós, foi
desenhado para ser assim. E quando vemos uma pessoa
preta lutar pela ressignificação de conceitos brancos
estabelecidos, por um quartinho na casa-grande, isso já
deveria ser interpretado como um atestado do embran-
quecimento, atestado da mucamagem, eles são escra-
vos da casa gourmet. Afinal, acham mesmo que estaria
dentro da casa-grande senão fosse o mais assimilado?
Não existe essa de “a casa grande surta quando a sen-
zala aprender a ler!”. Primeiro porque senzala tá den-
tro da jurisdição da casa-grande, o combate a casa-
grande se dá nos quilombos! O quilombo é a alternativa
autodeterminada de existência. A casa-grande só vai
surtar mesmo se a senzala botar fogo, o diálogo se dá
pela destruição e só. Porém, quantos de nós querem
queimar a casa-grande? E quantos de nós não quererem
aprender a ler para pode servir a eles?
Como uma pessoa preta consegue enxergar possibilida-
des primeiramente a partir da bandeira brasileira senão
pelo embranquecimento subjetivo, pela desvalorização
da sua própria cultura e história? Estadunidense? Fran-
cesa? Inglesa? Belga? Portuguesa? Sem ao menos se
inteirar do que se trata a bandeira da unidade africana.
Como podemos nos orgulhar de fazer parte da cons-
trução de identidade dessas nações sendo que elas são
antíteses da nossa existência do começo ao fim? Por
que alguns de nós tem mais disposição para reivindicar
negritude dentro de espaços brancos ao em vez de pri-
meiramente se alocar em seus espaços pretos? Como
funciona essa lógica de se descobrir preto dentro da
universidade branca e não conseguir dialogar com or-
ganização preta autônoma? Como funciona dialogar
com a igreja e não com a capoeira? Por que acham cult
os progressistas e ficam tratando de forma pejorativa e
pelos cantos os pretos radicais? A ideologia, o com-
portamento que você leva a frente, tem apoio do bran-
co, do judeu, do árabe, do chinês, do nipônico, etc., e
isso não te revela nenhum sinal a que caminho você
está seguindo? Se você se descobriu preto a partir da
antítese do que é ser branco. Tudo o que fizer partindo
dessa premissa será embranquecido e em grande medi-
da os seus problemas, suas soluções, suas ambições,
seus desejos, seus impulsos e seus discursos, vão partir
deles e daquilo que em alguma medida dialogue com
eles.
A forma como nos definimos está intimamente ligada a
forma como nos portamos nesse mundo. E a (re)cons-
trução da nossa visão de mundo a partir da nossa cul-
tura e experiência histórica é inegociável, nosso direito
de estar exclusivamente entre nós, a partir de algo nos-
so, sobre nossos termos e condições, e com a arbitra-
riedade de fazer política ao que seja interessante so-
mente a nós mesmos.
Não há mais tempo e energia para se gastar com a in-
tegração, não há mais pontos a se considerar. Temos
também que responsabilizar e repelir essas narrativas
derrotistas, mendicantes da nossa comunidade, porque
em grande medida, isso não vai ajudar na nossa ima-
gem. Afinal, quem nunca ouviu dessas pessoas a ex-
pressão “África mítica”, quando falamos sobre pan-
africanismo, nacionalismo preto, afrocentricidade, gar-
veyismo e mulherismo africana?
Precisamos concentrar nossa energia, tempo e dinheiro
no quilombo, na capoeira, no candomblé, no samba…
Recuperar o que é nosso vai depender de desaprender o
branco e (re)aprender o preto. Ao nível de não pre-
cisarmos colocar “preto” depois de nenhum conceito
para poderem saber que é nosso. Já estará explícito e
implícito que ali vai dar ruim se alguém chegar atraves-
sado.
Não queremos dólares pretos. Não queremos francos
pretos. Não queremos ser afro-brasileiros, não quero
uma esquerda preta, não quero um capital representa-
tivo. Queremos Ujamaa! Queremos Umoja! Qual a pra-
ticidade de se reivindicar uma Barbie preta? Se as for-
mas que se representava a estética entre nós era dife-
rente? Alguém aí realmente quer emular uma feminili-
dade branca? A sua masculinidade tá baseada no cris-
tianismo? Sério que ainda queremos servir aos exér-
citos deles? Representatividade negra na marinha ame-
ricana? Mulher negra na aeronáutica americana? O tiro
dela será diferente nas nossas comunidades? Vamos co-
memorar os pretos na CIA espionando os nossos tra-
balhos e defendendo a harmonia do ocidente? Até
quando uma pessoa preta valerá mais pelo que ela tem
de branco à disposição? E não pelo compromisso que
ela tem por estar envolvida em iniciativas pretas autô-
nomas de viver?
Kujichagulia é um dos valores mais importantes que
temos como base e podemos ter certeza que qualquer
coisa autodeterminada é melhor que toda quantia de
dinheiro ou condecoração deles. A ruptura com esse ti-
po de postura embranquecida é necessária para ontem.
Você não precisa saber de qual etnia você era origi-
nalmente em 1500 para saber que carregar um nome
persa e hebreu é um prejuízo. 
Mude já a sua postura, arque com os custos! Assuma as
responsabilidades, se organize coletivamente e tenha
um propósito, um programa político autodeterminado
para levar a frente e saberá que nunca esteve tão certo
na vida. Ainda que não colha os frutos de seu trabalhão
nessa vida.
*Matheus Omowale, bartender e cozinheiro autônomo.
Yanda PanAfrikanu ,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,, ,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,31 de julho de 2020,,,,, ,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,Página 5
Uma maranhense
Diop Kemet Menelik*
Nasceu em São Luís, Maranhão
1823, pros lados da são pantaleão
Mulher, preta, destinada a grandeza
Que só a história com fortaleza alimenta
Sua mãe alforriada, seu pai livre também era então
Estamos revivendo, o tempo, diante da escravidão
Aos 7 anos, mudasse pra Guimarães, na baixada
E é naquelas terras que escreverá sua saga
Leitora voraz, competente, esforçada
Aos 24 anos em concurso público se destaca
Torna-se a primeira professora daquela cidade
Já escrevias uns verso, poetisa de habilidade
Pouco tempo depois, 1959
O livro Úrsula é publicado e a todos comove
Mostrando seu posicionamento idealista
Contra o sistema escravocrata uma abolicionista
Engrandece na sua obra a alma da pessoa preta
Revive em memória, uma África cheia de belezas
Enquanto isso no seu dia a dia, assume seu posto
Mulher intelectual, matriarca de seu povo
Achou muito? Tem mais! Vou te falando
Maria Firmina, dessas nossas heroínas, passa um pano
1860, é notória sua presença
Na imprensa, seu nome aparece com insistência
Sua poesia, reconhecida por seus contemporâneos
Enquanto isso ia adotando, crianças que na sua porta ia 
chegando
Órfãos, filhos de mulheres escravizadas
Seus filhos do coração, como ela mesma falava
Continua a produzir, as letras paixão e arma
Ia vencendo os preconceitos por ser mulher letrada
Com posição e opinião, lançou seu livro de poesia
Contos a beira mar, mais uma conquista
Olhando a baia de Cumã, aonde morreu Gonçalves 
Dias
Ponto de encanto aonde cantava seus versos Maria 
Firmina
Via a mansidão do mar, a claridade daquele luar
E os pretos na senzala, canção chorosa, triste penar
Sofria, o peso da sociedade escravista
Dizia,o quanto o mundo hostil a oprimia
Chorava, a sua e a dor do próximo
E então, quer fez das lágrimas sacerdócio
Sua participação na sociedade é constante
Na comunidade seu nome é importante
Certo dia, mulheres cativas
Perguntaram se um auto de boi ela escrevia?
De pronto, foi feito, cantando, encenado
Mesmo sendo prisioneiras o boi foi brincado
Em 1880, se aposenta do ensino público oficial
Mas continua educando, sabia, educação é fundamental
Funda sua escola, briga, pra seja mista
Educando igualmente meninos e meninas
Uma revolução social pela educação
Pioneirismo subversivo, seu legado e contribuição
1887, escreve o romancete A Escrava
De ponto de vista abolicionista cartilha engajada
Viveu pra ver o fim da escravidão
E pra ocasião, compôs o Hino da Abolição
Ela era o movimento negro, a força da mulher negra na 
vida
Um abraço de mãe, um prato de comida
Ao seu redor, juntava o povo pra externar seu pesar
Mostrar seu sorrir, seu dançar seu cantar
Como não há verdade que fique pra sempre escondida
É resgatado seu legado sua obra sua vida
E hoje pras crianças nós ensina
Que ela morreu, em Guimarães, com mais de 90 
admirada e querida.
*Diop Kemet Menelik, escritor, poeta e pan-africanista.
Equilibristas
Mutuh Nyaneka
É mãe é filha 
É tia é sobrinha
É negócio de família
Ganha pão da minha vizinha
É choro é gritaria
É chão é correria 
Música e melodia
Nós ouvidos de quem caminha
Dos becos as ruas
A realidade é crua 
A vida é dura 
Faz dessa alma pura
Todo sofrimento atura 
Como soldados para
concluir a formatura
É longa a caminhada
Pelas ruas de Luanda
Quilometragem incalculável,
ao longo dessa estrada
São guerras travadas
Batalhas enfrentadas 
Derrotas apagadas 
Vitórias são guardadas,
revividas, lembradas e fixadas 
Na galeria das suas almas
De onde vem a força
Esforço e reforço
Não apenas do músculo,
mas também dos ossos
Que garante a janta,
matabicho e almoço
Com firmeza no tronco
e habilidades do pescoço
Ao longo das vielas,
verdadeiras andarilhas 
Sua auréola é a rodilha
Em bando ou em aiz
Encaram lobos em matilhas 
Mas para frente, caminha 
Como sempre, caminha
O kandengue nas costas 
É o seu fardo mais leve
Educação é a proposta 
Suposta, que ela nunca teve
Seu governo só gera a revolta
Nunca cumpre o que deve
E quando ganha a sua aposta
Kassumbulam o que obteve
…
É mãe é filha 
É tia é sobrinha
É negócio de família
Ganha pão da minha vizinha
É choro é gritaria
É chão é correria 
Música e melodia
Nós ouvidos de quem caminha
O aparelho do estado
Multiplica os gatunos
Prendendo zungueiras
Que alimentam alunos 
Produzem esfomeados
Que dá luz à noturnos
Que saem babados
A serviço no seu turno
Que acabam no quadrado
É mãe em desespero
Na cabeça só transtorno
O kabomba quer dinheiro
A mãe almeja do filho que
a casa faça o seu retorno
Sem dinheiro só com pero
É o cúmulo do suborno
O que digo não é exagero
É só amostra do filme porno
Essa cena¹ me esquenta
Mais que pão no forno
E a minha gera² se contenta
Com a frase vamos fazer mais como?³
Não é nada bonito
Não tem nada artístico ou plástico
Do sofrimento fazer musiquinhas
De um destino trágico
Há muitos engraçadinhos 
Dançando com som desse choro
O grito delas sustenta vidas
Mas há espertinho a que os torna em couro 
Da parteira da vida
Tiram-lhe a alegria 
Botam-na avenida 
A extrema agonia
Só tem na voz ouvida 
Uma luz que alumia 
E o fim da lágrima vertida 
Vem com nascer do novo dia
Glossário: 
Matabicho: Café da manhã.
Aiz: Sozinho.
Kassumbulam: Recebem.
Zungueiras: Mulheres ambulantes.
Kabomba: policial.
Pero: sexo, nesse caso específico, um abuso
sexual.
Porno: diminutivo de pornografia.
¹Cena: diminutivo de cenário ou situação.
²Gera: diminutivo de geração.
³Com a frase vamos fazer mais como?³:
frase que denota conformismo.
Mutuh Nyaneka – Pan-Africanista e 
membro do Colectivo Muxima na
Diáspora e da UCPA.
O racismo lá e cáO racismo lá e cá
Prof.ª Dra. Vitória Régia Izaú*
O racismo apaga a luz da vida. Destrói
sonhos, impede oportunidades, interdita
violentamente a liberdade de ser, de re-
conhecer o belo no espelho. O racismo
em palavras virulentas, espalha dor, so-
frimento e trauma. Por trás de cada pele
preta, há tecidos de história e resistên-
cia. Por trás de cada sorriso, silenciosas
e graves dores históricas de exclusão. 
Sou uma mulher forjada no fogo ances-
tral que me concedeu a autoridade de
dizer quem sou. Sou aquela que o siste-
ma não exterminou. Sou descendente de
um povo que mesmo sofrendo, dança,
canta, expõe nas diversas artes suas vi-
vências e andanças diaspóricas. Sou
aquela que a sociedade acostumada a
nos subestimar é obrigada a ver em es-
paços sociais e acadêmicos. Eu aprendi
a me aquilombar, e ver nas diversas do-
res negras, o gigantesco potencial de vi-
da. A me redescobrir, a me reinventar.
Cercada de palavas, uno corpo e voz.
No corpo carrego a força dos ancestrais
que sobreviveram aos navios negreiros e
vejo com horror a performance escrava-
gista que encontrou na omissão das au-
toridades, solo fértil para derramar san-
gue de inúmeras pessoas negras ao redor
do mundo. George Floyd (nos EUA),
Candé (Portugal), João Pedro Mattos
(Brasil). Escrevo este texto convicta de
que não calarão nossa capacidade de
dizer em nossa própria narrativa: PA-
REM DE NOS MATAR. Que o racismo
seja considerado crime contra toda a hu-
manidade.
*Vitória Régia Izaú: Doutora e mestre em Edu-
cação pela fae/UFMG, professora efetiva da Fa-
culdade de Educação da UEMG. Coordenadora
do Núcleo de Estudos e pesquisas sobre Educa-
ção e Relações Étnicos-Raciais(NEPER/UEMG/
CNPQ).
Página 6 ,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,31 de julho de 2020 ,,,, ,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,, ,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,, Yanda PanAfrikanu
Ainda existia vida para viver
Janete Marques*
Olá! Sou Janete Marques, mulher negra
latina americana, diaspórica, contadora
de histórias e escritora (faz pouco tempo
que assumi a coragem de me apresentar
como escritora). Eu amo contar histó-
rias. Ao sentar em roda para uma narra-
tiva, sinto que estou conectada com mi-
nha ancestralidade. Sou mãe de duas
meninas. Ao ver a relação das minhas fi-
lhas com o mundo da leitura, imaginei
que elas poderiam ser personagens de
uma história. E foram. Foram às perso-
nagens do meu primeiro livro infantil:
Um livro pra Nini… Um livro pra
Nana… (2019). Neste ano fui selecio-
nada pela Festa Literária das Periferias
(FLUP 2020) para compor um grupo de
210 mulheres negras. Estamos escreven-
do um livro em formato diário, de forma
coletiva e colaborativa, a partir da relei-
tura da obra de Carolina Maria de Jesus,
O Quarto de Despejo.
Mas hoje, quero compartilhar com vo-
cês, Oito dias, a história do número de
dias que fiquei internada no hospital me
tratando da infecção por Covid-19. Uma
escrita para ecoar às dores e silêncios
que me habitam, para curar e (re)existir.
OITO DIAS
Dias depois minha irmã me contaria que
naquela semana leu no horóscopo que o
signo de Câncer passaria por um proces-
so de reclusão, tendo que se afastar de
todos por um tempo para estar consigo
mesmo e que teria grandes aprendiza-
gens. E assim foi. Oito dias dentro de
um hospital. Seis dias na UTI. Sim, sou
mais uma pessoa nesse mundão de meu
Deus que teve COVID-19 e que ainda
está por aqui para poder contar essa his-
tória. Não pretendo romantizar esse mo-
mento. Longe de mim. Mas preciso es-
crever para completar meu processo de
cura.
Sempre gostei de me ver como uma mu-
lher destemida. Ao enfrentar meus me-
dos gostava de imaginar a emoção de
uma montanha russa: o frio na barriga
no começo, o prazer durante o percurso
e no final aquela satisfação. Mas dessa
vez foi muito diferente, não tinha a no-
ção real para onde estava indo e o que
encontraria. Adentrar aquela UTI foi
aterrador. Estava consciente, poderia en-
trar caminhando se quisesse, mas des-
confio que se tentasse não conseguiria.
Vi a face detodos os meus maiores me-
dos de perto, com direito a lente de au-
mento e tudo. E não foi nada legal. Quis
chorar e não foram poucas as vezes.
Mas tinha a convicção de que se a pri-
meira lágrima rolasse não conseguiria
mais parar. Então, não me permiti o
pranto.
Logo no primeiro dia percebi que se
quisesse sobreviver psicologicamente
àquela experiência teria que bloquear
lembranças e a saudade que sentia dos
meus familiares e amigos. Foi o que fiz.
Como não podia viver as minhas me-
mórias, a contadora de história que habi-
ta em mim pôs-se a imaginar as narrati-
vas dos pacientes que me cercavam.
Pensar naqueles personagens: quem
eram, quem esperava por eles, eram
mães, pais, tios, padrinhos, filhos, ami-
gas, o que viveram até ali, o que ainda
viveriam.
Do meu leito tinha a visão de três pa-
cientes. Não sei porque vi meu pai na-
quele vovozinho. Pensar no meu pai foi
bom, uma lembrança liberada. O vovo-
zinho recebeu alta e meu coração ficou
em alegria. Depois veio D. Júlia, com
dificuldade para respirar e carregando
uma tristeza inestimável no olhar. Ao
longo dos dias a falta de ar foi embora,
mas a melancolia não. Por aqueles cor-
redores vi uma menina de uns quinze
anos voltando a caminhar. Foi um susto
ver alguém tão novo ali, mas depois fi-
quei sabendo que ela não era a única.
Nossos olhares se encontraram rapida-
mente e aconteceu algo, tinha uma men-
sagem que ficou no ar. Numa manhã S.
José que permanecia vivo com o auxílio
do respirador, abriu os olhos, mas a al-
ma ficou em algum lugar. De vez em
quando vinha um médico e o chamava.
Eu do meu canto vibrava para que ele
voltasse. Ainda existia vida para viver.
Porém, a alma ainda vagava. Para outros
era o fim mesmo. Uma história sem um
desfecho. Imaginava a dor daqueles fa-
miliares sem nem poder velar seus mor-
tos. No dia mais difícil pra mim, psico-
logicamente falando, conheci uma se-
nhora cheia de vida que me encheu de
esperança. Olhos grandes transbordando
alegria e muito amor pelas suas netas e
filhos. Sabe aquela pessoa que te con-
vida para um abraço? No dia da minha
alta trocamos um “boa sorte”.
Teve uma tarde que o ambiente foi in-
vadido por música. Perto do hospital
tinha festa. Naquele momento não exis-
tia gosto musical, era música que expul-
sava aquele zunido angustiante do moni-
tor cardíaco. Foi um alívio! Mas fiquei
ali matutando sobre a contradição em
tudo aquilo, as pessoas estavam que-
brando o isolamento, fazendo festa ao
lado de um hospital de campanha. A Co-
vid é a doença da coletividade, afeta o
coletivo, precisa de ações do coletivo,
mas quando ela nos alcança só fica a
solidão. Mas as pessoas que dançavam,
bebiam, curtiam a vida do lado de fora
seguiam festejando alheios a toda aquela
realidade.
Essa experiência só veio reforçar minha
crença no ser humano. Além de todas as
vibrações positivas que recebi de fami-
liares, amigos próximos e nem tão pró-
ximos assim, que fizeram toda a diferen-
ça na minha recuperação, teve o apoio
que recebi de pessoas desconhecidas.
Nesses oito dias vi empatia, sensibili-
dade, afetividade em doses cavalares. Se
tem gente boa no mundo? Nunca tive
dúvida. E digo mais, é a maioria. Nunca
tive muita paciência pra gente que não
gosta de gente, que desiste do outro e
por consequência de si mesmo. O que
aquelas pessoas fizeram por mim não
tem preço e vai muito além do profis-
sional. Além dos medicamentos, foram
palavras, gestos, atenção, um celular pa-
ra uma videochamada com a família e
tudo isso fez com que a solidão não pe-
sasse tanto. Sou toda gratidão. Agora, é
preciso devolver ao universo todo ca-
rinho recebido. Sinto urgência em fazer
o bem e em continuar tentando ser a me-
lhor versão de mim mesma.
Foram oito longos e dolorosos dias, que,
com certeza, não serão esquecidos tão
cedo. Quero ficar com a imagem da ja-
nela da enfermaria, daquele jardim que
me encheu de esperança por dias melho-
res. Virar a página e viver, viver plena-
mente. No dia de voltar para casa o céu
era azul, as nuvens convidavam à imagi-
nação e eu só queria a poesia que pudes-
se descrever a beleza que é a luz do sol
tocando a verde folha.
*Janete Marques é mulher negra latina america-
na, mãe, escritora, contadora de histórias, educa-
dora infantil, graduada em licenciatura em his-
tória pela Universidade Federal do Recôncavo
da Bahia (UFRB), que é considerada a univer-
sidade mais negra do Brasil.
Retidas pela Covid-19
e consumidas pelas
necessidades no Brasil
Maria Fernanda*
Artigo 22º Da Constituição de Angola.
 (Princípio da universalidade)
2. Os cidadãos angolanos que residam ou se encontrem no
estrangeiro gozam dos direitos, liberdades e garantias e da
proteção do Estado e estão sujeitos aos deveres
consagrados na Constituição e na Lei.
No corrente mês um grupo de cidadãos Angolanos, ma-
joritariamente composto por mulheres, foram ao consu-
lado protestar sobre a falta de voo e, consequentemen-
te, de recursos para se manterem no território Brasi-
leiro.
Foi possível constatar que os motivos que levaram
esses imigrantes ao território Brasileiro são diversos,
alguns vieram a turismo, tratamento, formação e a pro-
cura de melhores condições de vida. As demandas que
nossos compatriotas apresentaram convergem, a falta
de recurso conecta todos.
Com o avanço da pandemia, muitos países decidiram
fechar suas fronteiras; entretanto, com o Brasil e Ango-
la foi diferente. Angola durante o estado de emergência
e calamidade conseguiu enviar voo para alguns países,
tais como Portugal, que recebeu dois voos da compa-
nhia aérea Taag. Foi nítido perceber, no discurso das
pessoas, o descontentamento quanto a essa situação,
tendo em vista que muitas mulheres possuíam filhos
pequenos e também havia pessoas doentes, que vieram
a tratamento. As pessoas pediam que a ministra da saú-
de e o Presidente da República olhassem para elas. 
Independente do avanço da Covid-19, o governo Ango-
lano possui responsabilidades quanto a permanência
das pessoas em território estrangeiro. O artigo 22 da
Constituição Angolana, garante que é de responsabili-
dade do Estado à garantia de proteção e os mesmos
gozam dos direitos consagrados na constituição. Na
falta de comprimento desta lei, estamos perante a grave
violação de direitos no que concerne a Constituição e
também a Declaração Universal dos Direitos Humanos.
Dias depois, graves informações sobre a vinda do voo
para o Brasil e o número de pessoas que se encon-
travam no Brasil eram 250 pessoas, que não conse-
guiam viajar para Angola. Entretanto, o consulado do
Rio de janeiro, no dia 15, anunciou que as pessoas que
se encontrava naquele estado estavam embarcando ru-
mo a São Paulo para embarcarem no voo que sairia
meia-noite do dia 16 de julho deste ano. Pelo que
parece, depois de muito desgaste físico e psicológico,
teve um final, esperou-se mais de três meses, de muito
sofrimento e humilhação que essas pessoas passaram.
Esperamos que o governo resolva também a situação
das pessoas que não estão a conseguir se manter no
Brasil, tendo em vista que houve um aumento signifi-
cativo do desemprego causado pela pandemia.
*Maria Fernanda Psicóloga, membro fundadora do Coletivo
Diásporas Africanas, atua na área clínica com atendimento
psicológico para crianças e adultos.
O coletivo Diásporas Africanas tem como foco o atendimen-
to a população imigrante e refugiada no Estado de São Pau-
lo. O coletivo trabalha com os seguintes eixos: Saúde; Edu-
cação; Cultura.
Temos constatado que muitos refugiados e imigrantes tem
apresentado dificuldades no acesso destes equipamentos,
muitos imigrantes não falam o idioma local, no caso o por-
tuguês.
Yanda PanAfrikanu ,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,, ,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,31 de julho de 2020 ,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,Página 7
A Paz Quilombola e o Quilombismo
R e f l e x õ e s n o S é c u l o X X I
 F á b i o M a n d i n g o * 
Maria Beatriz Nascimento, Abdias do Nascimento e Lélia González
A Paz Quilombola e o Quilombismo
O conhecimento de sua própria cultura,
e o controle sobre os processos de ma-
nutenção e transmissão intergeracional
de sua própria cultura – e de sua cultura
de luta – tem sido instrumento de funda-
mental importância histórica para a so-
brevivência e continuidade autônoma
dos povos, principalmente dos povos
que vivenciaram longos períodos de
opressão direta ou indireta conduzida
por outros povos.
A ruptura dos laços culturais e a inter-
rupção sistemática da sua transmissão
intergeracional, no caso dos africanos
no Brasil e seus descendentes, parece ter
sido um instrumento importante e estra-
tégico para o controle do governo portu-
guês, e posteriormente do Estado Brasi-
leiro, sobre esse território. Isso pode ser
testemunhado desde o momento primei-
ro de chegada dos africanos no Brasil,
com a ritualização da “troca de nome”
simultânea à negação espiritual através
do batismo católico.
Como resultado desse processo sistemá-
tico e continuado observamos como sin-
toma, a cansativa necessidade enfrenta-
da por cada geração de africanos no
Brasil, de praticamente ter que reinven-
tar a roda a cada 30 anos, reconstruir
fundamentos e horizontes sem ter como
base nem a milenar cultura afrikana,
nem acesso à nossa história recente, às
vezes de 10, 20 anos atrás. 
Podemos destacar entre as gloriosas ex-
ceções as trajetórias dos Terreiros de
Candomblé e dos grupos de Capoeira,
que têm sido espaços de preservação,
continuidade e transmissão da cultura
africana nesse território, por vezes atra-
vés de séculos ininterruptos.
No que diz respeito ao Brasil Republi-
cano onde a perseguição, repressão e
apagamento da história e da cultura afri-
cana alcançaram novos níveis de refina-
mento institucional, a ruptura na trans-
missão intergeracional pode ser também
violentamente percebida, principalmen-
te no que diz respeito ao que se cons-
truiu enquanto organização política e in-
telectual do povo negro, seja através de
ditaduras e interrupções diretas, seja
através do apagamento e veto das pro-
duções intelectuais negras que represen-
tassem afronta ou discordância aos mo-
delos culturais vigentes ou hegemôni-
cos.
De fato, existem entre a “Geração Fren-
te Negra”, a “Geração Teatro Experi-
mental do Negro”, e a “Geração MNU”,
hiatos que não puderam ser superados
nem mesmo com a ligação de excelên-
cia de um Mestre como Abdias do Nas-
cimento, e restou a cada uma dessas ge-
rações reinventar a roda, começar tudo
de novo, tomar decisões e construir ca-
minhos a partir das novas novidades e
demandas e pautas do momento, con-
tando com um acesso muito pequeno ao
que foi produzido e feito pelas gerações
anteriores, e continuidade patrimonial
nenhuma.
Entramos então na terceira década do
século XXI, nos deparando novamente
com a gravidade dessa recorrente ruptu-
ra intergeracional, na missão fanoniana
que às vezes mais parece um looping
maldito e infrutífero que a todos nós
empurra ao cansaço e à frustração.
Mas há mudanças no horizonte! E é
nesse sentido que se faz necessário
apontar o incipiente movimento das edi-
toras pretas que vêm lançando impor-
tantes obras de autores negros nacionais
e de demais territórios afro-diaspóricos.
Incipiente, autônomo e independente, o
pequeno movimento conduzido por es-
sas editoras, tem sido capaz de lançar
calçamento por cima do hiato intergera-
cional, não de forma definitiva, mas de
forma inicial potente. 
Posso destacar de imediato a editora da
UCPA, com as Obras Completas de
Beatriz Nascimento e Lélia González. A
editora Medu Neter, com as obras con-
tendo escritos e discursos de Marcus
Garvey, Carter G. Woodson e Kwame
Toure. A editora da Reaja, com as obras
de Assata Shakur e Patrice Lumumba. A
editora Ciclo Contínuo, com o lança-
mento de obras consagradas e inéditas
de autores como Oswaldo de Camargo,
Abelardo Rodrigues e Carolina Maria
de Jesus, entre outros. E outras dessas
editoras como a Oguns Toques, a Edito-
ra Poder Afrikano e a Segundo Selo já
estão preparando novos lançamentos,
cada um uma nova rocha que nos apro-
xima das produções intelectuais das ge-
rações negras anteriores.
Página 8 ,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,31 de julho de 2020 ,,,, ,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,, ,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,, Yanda PanAfrikanu
Toda essa longa introdução é fundamen-
tal porque foi justamente o esforço
empreendido pela UCPA ao lançar as
Obras Completas de Beatriz Nascimen-
to, que me permitiu ter contato aos 43
anos de idade, e 24 anos após a morte
da autora, com o conceito de “Paz Qui-
lombola”, e que me motivou a buscar
compreender um diálogo possível entre
a “Paz Quilombola” e o conceito do
“Quilombismo”, do mestre Abdias do
Nascimento, que inclusive teve relança-
da recentemente pelo IPEAFRO, a obra
em que estabelece e consolida o concei-
to.
O diálogo proposto se insere na pers-
pectiva da necessidade visualizada por
Lélia González de dar as “nossas
contribuições específicas ao mundo
pan-africano”,[1] e como vem junto
com a perspectiva de troca de ideia com
o irmão-malungo Allan da Rosa em suas
percepções, provavelmente vai ser um
pouco mais breve que a própria introdu-
ção.
Paz na Guerra, o desafio quilombola
Estamos no desafio de pensar a nossa
história numa perspectiva de longo pra-
zo. Muito longo prazo. O mais longo
prazo. Que se inicia nas primeiras mi-
grações humanas desde o centro-sul do
Continente Africano ao Vale do Nilo,
até os dias de hoje. Olhando assim, os
quase 500 anos em que resistimos con-
tra as tentativas de supremacismo bran-
co nesse território, são parte integrante
de um processo histórico de agressões e
resistências que se iniciam com a inva-
são dos hicsos no território Egípcio
(penso que podemos incluir a invasão
de Creta (por volta de 1400 a.C.) pelos
aqueus, considerando Creta como uma
civilização diretamente afrikana), por
volta de 1600 a.C., tendo como marcos
principais o domínio árabe sobre o norte
do continente a partir do século VII, a
colonização da América pelos Europeus
a partir do século XV (e a Diáspora de-
corrente), a invasão holandesa no sul da
África no século XVII, e o Colonialis-
mo posterior à Conferência de Berlim,
em 1885.
Nesse sentido, os Quilombos, Cumbes,
Palenques e Maroons, são a expressão
maior da saúde histórica das populações
afrikanas contra o escravismo nas três
“Américas”, são experiências constantes
e muitas vezes prolongadas, de autono-
mia contra a desumanização imposta no
contexto das colônias americanas. A
ação Quilombola é possivelmente a face
mais constante da história colonial das
Américas, desde que os primeiros afri-
kanos foram trazidos pra esse continen-
te até os dias de hoje.
É por entender dessa maneira, que o
pensador militante Abdias do Nasci-
mento vai propor o Quilombismo en-
quanto perspectiva de centralidade afri-
kana a partir da experiência afro-brasi-
leira:
“Condenada a sobreviver rodeada ou
permeada de hostilidade, a sociedade
afro-brasileira tem persistido nesses
quase quinhentos anos sob o signo de
permanente tensão. Tensão essa que
consubstancia a essência e o processo
do Quilombismo”.[2]
Essa perspectiva não é portanto contem-
plação estática ou teorização idealista da
realidade. É pulsão de sobrevivência em
luta e atenção permanente contra o sis-
tema escravocrata de supremacismo
branco. Entretanto, como Abdias não
deixa de apontar, o Quilombo é antes de
tudo uma perspectiva civilizacional:
“Como sistema econômico o quilombis-
mo tem sido a adequação ao meio bra-
sileiro do comunitarismoe do uja-
maaismo da tradição afrikana”.[3] O
que nos leva à premissa de Chancelor
Williams, que nos diz que, apesar de o
enorme esforço dispendido por árabes e
europeus para destruir a Civilização
Africana, bastam cinco minutos de paz
e meia dúzia de pedras pra que os afri-
kanos reiniciem a construção de seus
Impérios Fundadores.[4] Abdias refor-
ça,
 
“Quilombo não significa escravo fugido.
Quilombo quer dizer reunião fraterna e
livre, solidariedade, convivência, comu-
nhão existencial. Repetimos que a socie-
dade Quilombola representa uma etapa
no progresso humano e sóciopolítico em
termos de igualitarismo econômico”.[5]
E é nesse contexto civilizacional do
Quilombo enquanto experiência históri-
ca prolongada – não sendo difícil en-
contrar quilombos no Brasil que exis-
tiram por mais ou menos um século –
que a historiadora Beatriz Nascimento
encontra espaço pra indagar sobre a Paz
Quilombola. Olha aí a ginga ligeira
Allan…
“Entre um ataque e outro da repressão
oficial ele [Quilombo] se mantém, ora
retroagindo, ora se reproduzindo. Este
momento chamaremos de ‘Paz Quilom-
bola’, pelo caráter produtivo que o Qui-
lombo assume como núcleo de homens
livres, embora passíveis de escravidão”.
[6]
Com uma percepção fantástica em que
alia a imensa competência enquanto his-
toriadora e uma intuição pessoal afiada,
Beatriz Nascimento aponta pra o que se
configura como um dos grandes vazios
da historiografia sobre as populações
afrikanas no Brasil, sem deixar de ana-
lisar os motivos pra que essa lacuna se
estabeleça,
“…o Quilombo é um momento histórico
brasileiro de longa duração e isto gra-
ças a esse espaço de tempo que chama-
mos de ‘paz’, embora muitas vezes ela
não surja na literatura existente. Creio
que se o escravo negro brasileiro tivesse
podido deixar um relato escrito, com
certeza, teríamos mais fontes da ‘paz’
quilombola do que de guerra”.[7]
Beatriz estabelece a sua pesquisa sobre
as experiências quilombolas no Brasil e
suas ligações com as origens angolanas,
tendo inclusive ido a Angola na busca
de aprofundar essa pesquisa estabele-
cendo relações com a historiografia lo-
cal e também fazendo investigações in
loco, embora o momento político do
país tenha dificultado o seu trabalho.
Uma mulher preta em processo. Uma
historiadora em processo. Uma pesqui-
sadora em pleno processo, Beatriz não
deixa de determinar,
“A análise dos ‘Quilombos’ não pode
obedecer a linha de interpretação utili-
zada para os movimentos designados
modernos, aqueles que ocorreram na
Europa Ocidental desde o século XVIII,
que são encaixados dentro do quadro
socialista. Menos ainda aos movimentos
operários e socialistas desse século.
[…] Logo, uma interpretação vinculada
às teorias de mudança social, notada-
mente a marxista, soa em relação a eles
de modo exótico”.[8]
 
Junto com Abdias e Clóvis Moura (olha
aí o jogo Allan), Beatriz instaura o Qui-
lombo como experiência sobre a qual se
pode construir uma perspectiva de mun-
do afrikana no Brasil, indicando mesmo
a necessidade de uma metodologia espe-
cífica para que essa perspectiva possa
ser conduzida como prática de pesquisa.
Em jogo com o Quilombismo, a Paz
Quilombola parece estabelecer um
equilíbrio dinâmico entre a contingência
bélica da luta contra a escravidão, e a
contingência humana do humano afrika-
no que nunca aceitou se tornar objeto
reativo dessa mesma contingência béli-
ca. A Paz Quilombola me faz pensar
imediatamente no Maestro KL Jay fa-
lando no disco do DMN, “aê rapa,
aqui, é um dos poucos lugares onde a
gente se sente livre… aqui a gente se
sente livre, mas lá fora não é tão bem
assim…”, ou Matheuzza falando no iní-
cio de um evento na Winnie Mandela,
“Boa noite a todos, aqui estamos em
território afrikano”, ou Rosemeire di-
zendo no Quilombo Rio dos Macacos,
num daqueles dias em que a Marinha
esquece de massacrar a comunidade,
“fiquem à vontade meus irmãos, aqui é
nossa terra”.
Prontos pra a Guerra, em paz entre os
nossos.
Fazendo do tempo vivido, o tempo da
liberdade possível, construindo um por-
vir ampliado, sem perder de vista com o
Mestre Abdias do Nascimento, que Qui-
lombo e Quilombismo são termos de
guerra e de disputa,
“Há de se consolidar uma teoria cientí-
fica inextrincavelmente fundida à nossa
prática histórica que efetivamente con-
tribua à salvação da comunidade negra,
a qual vem sendo inexoravelmente ex-
terminada seja pela matança direta da
fome, seja pela miscigenação compulsó-
ria, seja pela assimilação do negro aos
padrões e ideais ilusórios do lucro oci-
dental. Não permitamos que a derroca-
da desse mundo racista, individualista e
inimigo da felicidade humana afete a
existência futura daqueles que efetiva-
mente e plenamente nunca a ele perten-
ceram: nós, negro-africanos e afro-bra-
sileiros”.[9]
Iê!sse é o início do jogo… solta a man-
dinga aê mano Allan da Rosa!
Mandingo, 21 de julho de 2020
REFERÊNCIAS (simplificadas e por ordem no
texto):
GONZÁLEZ, Lélia. Primavera para as rosas
negras. Diáspora Africana: Editora Filhos da
África, 2018. [1] Pág. 331.
NASCIMENTO, Beatriz. Intelectual e
Quilombola: Possibilidade nos dias da
destruição. Diáspora Africana: Editora Filhos da
África, 2018. [6] pág. 76; [7] pág. 76; [8] pág.
216-217.
NASCIMENTO. Abdias do. O Quilombismo.
Rio de Janeiro: Ed. IPEAFRO, 2019. [2] Pág.
228; [3] pág. 290; [9] pág. 290-291.
WILLIAMS, Chancelor. The Destruction of
Black Civilization. Ed. do Autor, 1987. [4] Pág.
160.
*Fábio Oliveira Nascimento – Mandingo
Professor – SMED-Salvador
Historiador (UcSal-Ba)
Especialista em História Social e Cultura
Afro-Brasileira (ACEB-Fetrab)
Mestre em Educação (Universidade do
Estado da Bahia)
 A MAIORIA NEGRA NO BRASIL PODE SER VISTA COMO UMA VANTAGEM? 
Jomo Akanni*
No fim do século XIX na Europa, a partir de um tra-
dicional e histórico sentimento xenofóbico, os brancos
desenvolveram uma teoria, conhecida por Eugenia,
com o objetivo de ressaltar uma dita superioridade
racial e classificar todos os demais povos como
inferiores. Muito intelectuais brasileiros adotaram as
teses da eugenia e a partir delas desenvolveram uma
outra dentro do contexto das Américas, a Tese do
Branqueamento. 
A tese do branqueamento se baseava na ideia de que o
“sangue branco” predominaria sobre todos os outros,
dessa forma os descendentes de negros e brancos ou
índios e brancos, ficariam gradativamente mais claros, 
até se tornarem brancos.
Em 1911 o Congresso Universal das Raças em Paris,
com foco no racialismo e sua relação com o desen-
volvimento das nações, recebeu o médico João Baptista
de Lacerda, que, ao representar o Brasil, apresentou um
artigo que fazia uma previsão que dentro de um século
haveria um considerável progresso para o país com a
sobreposição dos traços negros a partir da miscige-
nação… “A população mista do Brasil deverá ter pois,
no intervalo de um século, um aspecto bem diferente do
atual. As correntes de imigração europeia, aumentando
a cada dia mais o elemento branco desta população,
acabarão, depois de certo tempo, por sufocar os ele-
mentos nos quais poderia persistir ainda alguns traços
do negro”.
As ideias eugenistas e suas variações se perpetuaram
por mais três décadas no Brasil, fazendo parte inclu-
sive da política oficial do país, e após muitos prejuízos
foram sendo abolidas após o fim da Segunda Guerra
Mundial.
O Brasil seguiu com o ideal de se tornar uma nação
mais branca, porém com base em outros mecanismos,
ora pela exclusão social e econômica dos não brancos,
ora pela violência do estado e pelo apagamento das
produções intelectuais dos pretos.
Yanda PanAfrikanu ,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,31 de julho de 2020 ,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,, ,,,,,,,,Página 9
No entanto, no anode 2010, pouco antes do término da
previsão de Lacerda, pela primeira vez na história a
população branca deixava de ser maioria no país. Se-
gundo os dados do Instituto Brasileiro de Geografia e
Estatística – IBGE, os negros correspondiam a 50% do
contingente nacional.
O Movimento Negro adotou estratégias de denúncias,
com a argumentação de que mesmo sendo maioria no
país os negros permanecem excluídos de todas as áreas
centrais de poder e ocupam os piores indicativos so-
ciais.
Mas ainda assim, poderia haver algum tipo de situação
confortável diante dessa superioridade numérica dos
negros?
A classificação NEGROS– engloba dois grupos dentro
dos critérios de cor e raça, e segundo definição do Es-
tatuto da Igualdade Racial: “é o conjunto de pessoas
que se autodeclaram pretas e pardas, conforme o que-
sito cor ou raça usado pela Fundação Instituto Brasi-
leiro de Geografia e Estatística (IBGE), ou que adotam
autodefinição análoga”. 
O quesito Cor/Raça – PRETOS – pode ser identificado
pelas pessoas com fenótipos relacionados a ascendên-
cia africana como a pele escura.
No entanto, no quesito Cor/Raça – PARDOS – se en-
quadram todos aqueles que são frutos das variadas
formas de miscigenação; entre povos nativos e bran-
cos, povos nativos e pretos, entre pretos e brancos, en-
tre brancos e amarelos, etc. 
Com isso, nem todas as pessoas do quesito PARDOS
possuem ancestralidade africana. E mesmo os PAR-
DOS que a possuem, tem sido o resultado de suces-
sivas miscigenações com pessoas brancas ou mais pró-
ximas do ideal de branquitude almejado, já que os fe-
nótipos dos pretos seguem sendo odiados e persegui-
dos. Na verdade, a miscigenação no Brasil pode ser
vista como o próprio branqueamento do povo preto.
Para além dos efeitos do branqueamento físico, os
descendentes de africanos de pele mais clara poderiam
se autodenominar como PRETOS, a partir dos critérios
de autodeclaração do IBGE, se estivessem envolvidos
num processo de reconhecimento e orgulho às suas
raízes africanas. No entanto, ao se denominarem –
PARDOS – buscam relativizar sua pretitude com ar-
gumentos de que são o resultado de uma mistura racial
que ocorre no Brasil, desconsiderando a violência his-
tórica e o racismo que permeia todas as relações inter-
raciais. Logo essa vantagem em termos percentuais no
número de PARDOS possivelmente não traduz numa
maioria que esteja disposta a construir uma frente de
resistência e luta contra nosso genocídio.
A Redenção de Cam, pintura de Modesto Brocos, 1895.
Em 1911 quando Lacerda apresentou suas teses, exibiu
uma cópia do quadro “A Redenção de Cam” que traz a
imagem de uma família composta por uma avó preta,
um casal inter-racial e uma criança de colo branca: à es-
querda, a senhora negra olha para os céus em gesto de
agradecimento, provavelmente pelo fato de ter uma neta
branca – neta essa que é segurada por sua mãe uma
mestiça; e à direita, um homem branco pai da criança
que observa a cena com certo distanciamento.
A imagem do quadro transmite categoricamente a tese
do branqueamento através das gerações. O livro sagrado
para os cristãos, a Bíblia, traz a história de Cam, filho
de Nóe, amaldiçoado pelo pai. A história de Cam, foi in-
terpretada no contexto do século XIX, que o “escu-
recimento” dos descendentes de Cam teria resultado nos
pretos africanos, e que poderia ser recuperado por meio
da mistura com a raça branca.
Quando observamos as fotos das famílias pretas em tor-
no dos anos de 1950, com as características atuais de
seus netos e bisnetos percebemos que muitos deles se
tornaram tão claros que sequer poderiam ser identifica-
dos como descendentes de africanos. Se a demonização
da cultura e das religiões africanas se fizer presente
nessa análise estamos muito próximos da ideia da Re-
denção de Cam.
No fim do século XVIII, os pretos representavam
50,5% da população, esse percentual foi reduzido para
34,5% em 1850 e 19,7% em 1872.
Distribuição percentual da população, segundo cores selecionadas, no
Brasil - 1872-2010
Cores 1872 1890 1920(1) 194
0
1950 1960 1970(1) 198
0
1991 2000 2010
Parda 38,1 44,0 … 63,5 61,7 61,0 … 54,2 51,6 53,7 41,6
Parda 42,9 41,4 … 21,2 26,5 29,5 … 38,8 42,6 38,9 41,6
Preta 19,7 14,5 … 14,6 11,0 8,7 … 5,9 5,0 6,2 8,2
Fonte: Carmargo (2010). IBGE (2010); Wood; Carvalho; Horta (2010). (1) Quesito 
não pesquisado.
Fatores como a proibição e a dificuldade do ingresso
de novos africanos para o Brasil assim como vinda de
muitos europeus, beneficiados com terras oferecidas
pelo estado, foram responsáveis pela queda desses nú-
meros.
Com o fim da escravidão, foi o racismo e as políticas
de estado que se encarregaram de reduzir o número de
pretos no Brasil.
Independente das pautas e posicionamentos políticos,
indivíduos e organizações pretas, que se propõe a tra-
var uma luta de resistência, deveriam pensar em for-
mas para possibilitar a continuidade do Povo Preto,
identificando na miscigenação seu propósito histórico
de aniquilação. Certamente essa proposição resulta em
extrema complexidade, principalmente por todas as
outras questões que já nos assolam, porém, ações que
estariam ao nosso alcance, podem se efetivar não só
com a geração de descendentes, mas com a adoção, tu-
tela e acompanhamento de crianças pretas, se respon-
sabilizando pela construção de núcleos familiares nos
moldes africanos.
Lacerda foi criticado por suas previsões serem muito
imediatas, considerando o curto espaço de 100 anos,
no entanto outros intelectuais racistas estimaram que
esse branqueamento se daria em um tempo maior, em
torno de 200 anos.
De qualquer maneira esse processo segue em ritmo
acelerado, pela perpetuação do racismo, pela continui-
dade das políticas de extermínio do estado e pela nossa
ausência em construir estratégias diante dessa outra si-
tuação de genocídio.
*Ativista pan-africanista e integrante da UCPA (União dos Co-
letivos Pan-Africanistas).
Mulher Preta, Dialética Africana…
Abibiman Shaka Touré*
Amy Jacques Garvey dizia que seu ho-
mem gostava muito de um certo autor –
Terentius Afer; ou simplesmente Terên-
cio, o Afro. Não só pelo epíteto – cha-
mando a atenção para uma característica
fenotípica – nos chama a atenção uma
frase do dramaturgo, nascido numa Car-
tago em rápida dissolução, que costu-
mava dizer: “Eu sou um homem: nada
do que é humano me é estranho”. Tenha
essa adágio em mente.
O homem vivia dizendo isso. Seus opo-
sitores diziam que qualquer tentativa de
definir o homem – dentro aqui das nos-
sas intenções, a mulher preta – passa por
sua desumanização… o que dizer, então,
dos que negam a raça como fator?!
Como povos colonizados, é necessário
nomear – e sendo até redundante, se au-
tonomear, definir a si mesmo: a mulher
preta não é recorte da história Africana,
como o povo preto não é aparte da histó-
ria branca. De fato, se não há capitalis-
mo sem tráfico escravista, também não
existe história Africana sem o protago-
nismo preponderante do nosso “mulhe-
rio”, como diria Lélia Gonzalez… Isso
ficou mais bem registrado na história
Kemética. Não existiria Akhenaten ou
Tutankhamen sem a Rainha Mãe Tiye,
por exemplo. Definitivamente, o conti-
nente não seria o mesmo sem a sua ge-
neral, Dahia al-Kahina…
Enquanto você tinha, em África, mulhe-
res em posições de autoridade, no co-
mando, governando nações, como che-
fes de Estado, as mulheres macedônicas,
gregas ou romanas etc., elas não tiveram
a mesma sorte – não a mulher branca.
Com esse respaldo histórico, deduzimos
que devia ser uma vergonha para o ho-
mem branco, e uma ameaça à sua “mas-
culinidade”, sua mulher ser reconhecida
como sua igual; veja bem, não estamos
nem falando de uma concepção de opos-
tos-complementares, talvez esta seria
uma noção sofisticada demais para o cé-
rebro do homem branco operar…
O contexto Africano é diferente. Na dia-
lética Africana dos opostos-complemen-
tares, o homem e a mulher Africana
cumprem um mesmo propósito, umade-
terminação em comum: a construção da
Família Africana. É uma questão de ló-
gica.
John Henrik Clarke baseia seu conceito
de Pan-Africanismo numa dialética pa-
recida: se, por um lado (como antítese
ao eurocentrismo), o ataque e a destrui-
ção da estrutura familiar Africana gera-
ram a necessidade do Pan-Africanismo,
por outro (como uma tese em si), o Pan-
Africanismo surge com a união dos po-
vos e nações Africanas, em última aná-
lise, das famílias (não família nuclear,
mas estendida, ampliada, alargada; por-
que Africana…), e isso está historica-
mente documentado pela Paleta de Nar-
mer, em sendo o Vale do Nilo “uma ro-
dovia cultural”, um entreposto civiliza-
tório, um celeiro de diversas culturas, o
ideal manifesto de unidade na diversi-
dade – atualizando para os dias de hoje,
um traço característico de egoísmo es-
sencial para a sobrevivência…
Em se tratando da primeira hipótese, te-
mos que o homem Africano é negado, e
a mulher afirmada – mas sempre para
fins de estupro, físico, material, psíqui-
co… sempre como sujeito, sujeita: seu
homem deve ser morto, senão preso.
Mas isso é, antes, consciência historica-
mente determinada do que produto das
modernas estruturas sociais. É tão antigo
quanto o tempo, Carlos Moore dirá. Ra-
cismo como estrutura de pensamento,
linguagem, cognição. Racismo por ódio,
na última das hipóteses, racismo por me-
do da aniquilação genética, como um
mecanismo de defesa “em si e para si”.
O que seria um “acidente histórico”,
Amanirenas? Afirmada enquanto heroí-
na, pouco se lembra que – do outro lado
do front, quando da passagem relatada
por Calístenes, Estrabão… Passou bati-
do, mas não despercebido, aos olhos
atentos de John Henrik Clarke: Clitus
Niger, um homem, Africano, era o gene-
ral das tropas de Alexandre Magno!
Onde não impera amnésia, reina distor-
ção histórica, e o que pode ter sido um
acordo de paz entre o homem e a mulher
Africana, é reduzido ao recuo de Ale-
xandre, “o Grande”… antes fosse ape-
nas isso! Na real, esta é nossa agenda
histórica sequestrada, ou seja, refletida
pelos modos, gestos e valores projetados
da história branca, suas fraquezas e con-
tradições internas, que não podem ser
solucionadas em suas próprias casas,
pois isso implicaria em sua auto-conde-
nação – o que, graças à Camus e Sartre
(apud Stokely Carmichael), sabemos
que não é possível.
Tendo sido consumada a morte do rei da
Báctria (por motivo torpe, diga-se, pelo
próprio Alexandre, que chorou quando
viu que não tinha mais ninguém pra ma-
tar… pouco importa se ele se suicidou
ou foi suicidado!) antes do famoso ocor-
rido, então estamos errados. Caso con-
trário, trata-se de mais um caso de “es-
tudiosos” que negam a raça como fator
determinante, e nesse caso pode ter sido
a pele bem preta do rei-guerreiro refleti-
da na pele cor de ébano da Candace…
Neste ponto, os extremos se tocam.
Página 10 ,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,31 de julho de 2020 ,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,, Yanda PanAfrikanu
É muito importante entender, e sempre
bom frisar, que não podemos perder
certas coisas de vista… sobretudo por se
tratar do nosso matrimônio – sim, ma-
trimônio, e não “patrimônio”. Parafra-
seando o Dr. Clarke: se J.A. Rogers nos
ensinou a olhar a questão do sexo (e do
sexo, não reduzidas a binarismos de
gênero) – Cheikh Anta Diop ensina que
viemos de um berço matriarcal, falando
em termos de “Mátria”: a Unidade Cul-
tural da África Preta; e visitamos tempos
históricos onde o regime de sucessão
matrilinear é regra… Onde África é, a
um só tempo, Continente Mãe e Berço,
da Humanidade e Civilização. Definindo
por nós mesmos: falemos em matriotis-
mo – matripotência – Maat-ria!
Essa reflexão sobre Mãe África e o
matriarcado é proposital – o Mulherismo
Africana (Coleção Pensamento Preto:
Epistemologias do Renascimento Afri-
cano, Vol. III, Págs. 157-173, 301-315,
Editora Filhos da África, 2019) aborda
justamente o papel da mulher Africana,
sua função social de participação ativa,
como sujeito, agente e protagonista no
ordenamento das sociedades tradicionais
Africana; além de apontar uma solução,
na prática, pros problemas que enfrenta-
mos, como e enquanto povo. Pois a mu-
lher Africana jamais foi presa em cintos
de castidade, ou deixada de lado, posta à
margem, em lugar de submissão, que é,
repetimos, a posição vergonhosa – pro
homem branco – ocupada pela sua mu-
lher. A mulher Africana, não: ela teve
poder de fato, decidiu soberana em todas
instâncias, sem com isso abalar seu ho-
mem.
A Família Garvey, o Clã Shakur – os
estudos de John Henrik Clarke e Cheikh
Anta Diop estão aí e não nos deixa
mentir! E se as mulheres são a van-
guarda, os homens são a retaguarda…
de Amanirenas à Clitus Niger, de al-
Kahina à Kuseila…
Nossas mulheres estão à frente dos ter-
reiro. São nossas mulheres, administran-
do bibliotecas comunitárias. Duas mu-
lheres traduziram o livro de Amos Wil-
son, que será publicado pela Editora Po-
der Afrikano. “Às Irmãs” é o título do
livro do nosso irmão Abiṣogun, e agora
lembramos as palavras do mais velho
Hamilton naquele seu texto: a Reaja é
menina pai…
A Yanda é uma rede, também a UCPA é
ela…
Essa é a dialética – a lógica – a Maat-
emática é essa!
Particularmente, meu primeiro “filho”, é
uma menina… minha mãe, duas irmãs,
minha mulher e minha filha, Tiye…
talvez porque eu vejo essas mulheres
Africanas na prática, o Mulherismo
Africana na vanguarda da nossa luta
teórica, e isso não afeta a minha con-
dição de homem… a mulher preta, Afri-
cana, igual aquela que me permitiu re-
tornar do Orun…
O homem deve se submeter, não por
coerção, mas porque é cultural. Pois mãe
é uma só! Como dizia o Honorável Ala-
ru:
“Salve a Sagrada, Amada e Gloriosa
Mãe África!”.
*Historiador Autodidata, fundador do Grupo
de Estudos Kwame Ture, administrador da
página Povo Preto, Pan-Africanismo &
Poder Preto.
Introdução: Uma breve 
apresentação
Meu nome é Denise Aires, tenho 
37 anos e sou mãe do Lukeny 
Zola que acabou de completar 2 
anos. Me formei em Artes Cênicas
e a maternidade me fez ter 
interesse em educação na 
primeira infância, então, 
atualmente estudo Pedagogia. 
Participo de projetos como atriz e
como Contadora de Histórias, 
antes da pandemia estava 
ensaiando um espetáculo que teve
sua estreia adiada para 2021 
chamado “Mancala ou as 
sementes de Akin” e me 
apresentando com narração de 
histórias e mediação de leituras 
pelas cias. Oya ô e Passarinho 
Contou.
YP: O que é a Fulelê Livros e Jogos 
Educativos?
D.A: A Fulelê nasceu há quase dois 
anos quando eu decidi que queria viver
a maternidade mais ativamente então 
abri mão do meu emprego fixo 
(trabalhava há 4 anos como educadora 
em um ong) para tentar viver com 
freelas. Com o dinheiro do FGTS 
comprei uma máquina de costura na 
intenção de costurar e vender roupas (o
que ainda não aconteceu) e abrir um 
brechó (que durou 2 meses).
Queria poder estar mais perto e ver os 
primeiros passos do meu filho, a 
primeira palavra, etc e me doía pensar 
em não estar com ele todos os dias; 
Arrisquei e quando o dinheiro do 
seguro foi chegando ao fim os 
trabalhos começaram a aparecer e 
consegui me organizar como freela, 
abrir MEI e essas coisas.
Fiz essa passagem para contar como 
surgiu a Fulelê, ela era meu brechó 
virtual, que não existe mais…
A primeira vez que vi os livros em feltro há quase dois anos me interessei muito, sempre gostei de trabalhos artesanais, 
inclusive confecciono brincos também, mas o retorno nunca foi alto o suficiente para pagar as contas de casa. Comprei 
alguns materiais para confeccionar os livros e já estava com a ideia de fazer o Quiet Book (que é o nome desses livros 
sensoriais) com o tema afro, mas ainda não fazia ideia de como produzir e o volume de

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