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Revista Signum, 2017, vol. 18, n. 2. 
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Dossiê: 500 anos do Auto da Barca do Inferno de Gil Vicente 
 Como já nos ensinou Ítalo Calvino, clássico é um livro que nunca terminou de dizer aquilo que tinha para dizer 1. Por isso, novos leitores e leituras de um 
texto dito clássico estão sempre em demanda daquilo que ainda não foi dito, numa 
busca intensa e renovada por atualizações e ressignificações. Como comprova este 
Dossiê, o Auto da Barca do Inferno, de Gil Vicente, é uma obra clássica da 
dramaturgia em língua portuguesa, e, somando-se ao que já foi dito por sua longa 
fortuna crítica, vários foram os colegas que aceitaram nosso chamado em demanda 
do ainda não dito ou de renovação do já dito sobre Inferno. Alinhado à tradição do 
teatro produzido na Idade Média europeia, constituindo-se como Moralidade, 
gênero dos mais frutíferos da dramaturgia medieval, renovando e ressignificando a 
representação do momento de passagem da vida para a morte, a partir da 
cristianização do tema proveniente da Antiguidade da travessia do Lette, rio do 
Esquecimento, e encenando um assunto caro a sua época, o julgamento final a que 
toda alma terrestre deve se submeter no pós-morte, Inferno é um clássico 
extremamente atual. As inquietações que movem suas personagens são ainda 
nossas, pois como nos lembram, ao final do auto, os Cavaleiros de Cristo, na vida perdida/ se perde a barca da vida . 
 Em 2017, comemoramos os 500 anos da representação do Auto da Barca do 
Inferno, encenado por primeira vez de câmara, pera consolação da muito católica 
e santa rainha dona Maria, estando enferma do mal de que faleceu, na era do Senhor de , como informa a rubrica do auto publicado na Copilaçam de 
todalas obras de Gil Vicente, de 1562. O êxito da encenação e sua imediata 
repercussão para fora dos ambientes da Corte portuguesa de D. Manuel I podem ser atestados por uma edição em folha volante do auto, bem como por uma 
tradução para o castelhano, ambas da primeira metade do séc. XVI. Além disso, a 
escolha acertada do modelo processional adotado na construção do auto e a boa 
recepção do espetáculo de Inferno em 1517 deram motivo a que mais duas outras 
 
1 CALVINO, Ítalo. Por que ler os clássicos. Em: _____. Por que ler os clássicos. São Paulo: Cia das Letras, 
1993, p. 9-16. Trecho citado encontra-se na p. 10. 
Revista Signum, 2017, vol. 18, n. 2. 
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Barcas fossem produzidas e representadas pelo próprio Gil Vicente: o Auto do 
Purgatório, de 1518, e o Auto da Barca da Glória, de 1519. Após isso, a fortuna 
sorriu largamente para Inferno e é possível arrolar diversas edições do auto ao longo dos séculos XVII, XVIII e XIX, resultando em sua canonização didático-
educacional no séc. XX-XXI, com a publicação de dezenas de edições paradidáticas 
do auto tanto em Portugal quanto no Brasil. Contemporaneamente, encontramos 
excertos de Inferno em quase todos os livros didáticos produzidos no Brasil para o 
primeiro ano do Ensino Médio; já foram produzidas versões para HQs ou Banda 
Desenhada, como nomeiam os portugueses, no Brasil e em Portugal2, assim como 
Inferno segue sendo o auto de Gil Vicente mais frequentemente levado ao palco 
teatral. 
Este Dossiê dedicado a comemorar os 500 anos da apresentação desse 
clássico da dramaturgia em língua portuguesa é resultado da colaboração da 
Cátedra Fidelino de Figueiredo de Literatura Portuguesa (UNEB/Instituto 
Camões), do Programa de Pós-Graduação em Letras e Linguística (PPGELL/UNEB), 
do Programa de Pós-Graduação em Literatura e Cultura (PPgLitCult/UFBA) e do 
Gabinete Português de Leitura de Salvador que, juntos, promoveram, entre 08 e 09 de novembro de , o Colóquio Internacional Inferno anos , congregando 
estudiosos de Portugal e do Brasil, com a finalidade de comemorar, rever e 
atualizar a leitura do Auto da Barca do Inferno, de Gil Vicente. Em sua maioria, o 
conjunto de textos de que se compõe o presente Dossiê teve sua primeira 
apresentação oral no referido Colóquio. Alguns outros textos se somaram àqueles, 
com a intenção de contribuir para a atualização das leituras do Inferno vicentino. 
Cientes ainda de outra lição de Ítalo Calvino, de que clássicos são aqueles 
livros que chegam até nós trazendo consigo as marcas das leituras que precederam 
a nossa e atrás de si os traços que deixaram na cultura ou nas culturas que 
atravessaram (ou mais simplesmente na linguagem ou nos costumes 3, 
propusemos aos colegas um Dossiê que alargasse e cruzasse ao máximo o estudo 
 
2 VICENTE, Gil. Os Autos das Barcas. Versão em Banda Desenhada por José Ruy. Lisboa: Editorial 
Notícias, 1986; VICENTE, Gil. Auto da Barca do Inferno. Versão em HQ por Laudo Ferreira. Cores de 
Omar Viñole. São Paulo: Peirópolis, 2011 (Clássicos em HQ). 
3 CALVINO, op. cit., p. 12. 
Revista Signum, 2017, vol. 18, n. 2. 
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de Inferno com as marcas de [suas] leituras ao longo desses anos. Por isso, o 
leitor encontrará aqui textos dedicados especificamente à interpretação de Inferno, 
como os de Adriano Portela dos Santos, Flávio Antônio Fernandes Reis, Geraldo 
Augusto Fernandes, José Camões e Márcio Muniz; outros, abordando questões 
pertinentes a seu autor e ao sistema literário no qual se incluía, como os de 
Francisco Maciel da Silveira, Maria do Amparo Tavares Maleval, Renata Brito dos 
Reis, Sheila Moura Hue, e Verônica Cruz Cerqueira; e, por fim, outros que investigaram traços deixados por Inferno na cultura ou nas culturas que atravess[ou] , como os de Flávia Maria Corradim, Marcia Arruda Franco, Paulo 
César Ribeiro Filho e Renata Soares Junqueira. 
Com o conjunto de estudos presentes neste Dossiê, contamos contribuir 
para a renovação e ampliação da leitura do Auto da Barca do Inferno, desejando 
que o leitor sinta-se estimulado a retornar ao texto vicentino, confirmando que 
este clássico tem muito a nos dizer ainda. 
 
José Camões e Márcio Muniz 
Organizadores do dossiê

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