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DIREITO CONSTITUCIONAL III

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DIREITO CONSTITUCIONAL III
TEORIA DOS DIREITOS SOCIAIS
1. DIREITOS SOCIAIS E O CONSTITUCIONALISMO SOCIAL
1.1. Contexto histórico
É possível traçar um marco de viragem histórica no constitucionalismo liberal, que redundou na sua crise e na sua posterior refundação, o desenvolvimento urbano-industrial no séc. XIX. 
O constitucionalismo liberal está profundamente ligado em sua gênese a um mundo majoritariamente rural e, inicialmente, em muito alheio às profundas transformações desencadeadas pelas revoluções burguesas. A fisionomia das sociedades ocidentais centrais muda de figura com a industrialização e, com efeito, com a mudança de eixo econômico-social que ela proporcionou. As cidades começam a crescer. O êxodo rural se avoluma. Mais e mais homens e mulheres chegam do campo para trabalhar nas fábricas que se aglomeram nos subúrbios das velhas cidades burguesas, que se expandem para bem além dos muros medievais. Nos mercados, cada vez mais produtos são oferecidos para o consumo da população. Com isso, uma nova gama de atores sociais foi introduzida no centro da cena política: operários, profissionais liberais, pequenos mercadores, estudantes. Os instrumentos franqueados constitucionalismo liberal se provaram insuficientes para tutelar adequadamente os novos conflitos e crises que passaram a pressionar a ordem política do Estado; a degradação das condições de trabalho, a crescente violência urbana, o desemprego, as crises inflacionárias, as novas relações de consumo, a complexificação das atribuições da Administração.
A partir do início do séc. XX o constitucionalismo passou a incorporar um novo campo de direitos a serem tutelados (com o processo de industrialização e urbanização das sociedades, pois as sociedades mudam). Bobbio os designou como direitos de 2ª geração. Sua principal característica é a natureza transindividual do seu escopo protetivo. São direitos que pretendem proteger grupos e interesses de natureza social, que reclamavam uma atuação mais ativa do Estado, em contraste com os direitos de 1ª geração, que geralmente exigiam uma abstenção do Estado. Surgiu assim o constitucionalismo social, e, com ele, uma nova categoria de direitos amparados na Constituição: os direitos sociais. Houve um reforço de novas categorias sociais, até então só visavam os interesses da burguesia. 
A Constituição se torna mais que uma Carta de não intervenção do Estado, havia a necessidade de ampliação, reforma, visando atender as novas categorias sociais. Há a criação de Direitos Sociais (instrumentos promotores do desenvolvimento do País), estes exigem que o Estado atue. 
- Desde a Constituição de 34 há a previsão de tais direitos.
Constitucionalismo Liberal: Evita o arbítrio, ou seja, que o Estado que pudesse violar direitos que à época entendiam-se inatos, naturais, individuais, que instituíam uma esfera sobre a qual o Estado não poderia intervir. Focado na preservação de liberdades individuais.
2. OS DIREITOS SOCIAIS ENQUANTO DIREITOS FUNDAMENTAIS
2.1. Introdução
A Constituição de 1988 contém uma verdadeira cláusula geral dos direitos sociais. Nesse dispositivo, de forma exemplificativa, estão arrolados os principais direitos sociais a que incumbe o Estado brasileiro prover a seus cidadãos. Exigem do Estado soluções para os problemas sociais.
Art. 6º, CRFB/88. São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o transporte, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição. (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 90, de 2015)
A primeira pergunta a ser feita quanto aos direitos sociais é: eles são direitos fundamentais?
Tradicionalmente, na história do constitucionalismo moderno, a ideia de direitos fundamentais (um conjunto de regras e princípios inseridos na Constituição com fim de assegurar ao indivíduo liberdades individuais, substantivas e procedimentais) sempre se associou a concepção de direitos individuais. De tal forma que, ainda de modo recorrente, a expressão “direitos fundamentais” é havida como sinônima de “direitos individuais”. 
De fato, essa concepção individualista de direitos fundamentais se reporta à própria gênese do constitucionalismo moderno. O constitucionalismo moderno tem como um dos seus principais escopos proteger o indivíduo em face a eventuais violações a que possa dar causa o Estado. 
É possível hoje afirmar que doutrina e jurisprudência majoritárias convergem no sentido de que os direitos sociais são direitos fundamentais.
O argumento constitucional mais eloquente em favor desse entendimento é topográfico. Isto porque o próprio Poder Constituinte Originário inseriu o art. 6º da Constituição no Título II – Dos Direitos e Garantias Fundamentais. Portanto, os direitos sociais são havidos como direitos fundamentais e, com efeito, atraem para si toda a morfologia conceitual dada a essa categoria pela doutrina.
- Em suma, Direitos Sociais são Direitos Fundamentais
Ainda recentemente, o STF teve oportunidade de reafirmar esse entendimento.
Ementa: DIREITOS SOCIAIS. REFORMA TRABALHISTA. PROTEÇÃO CONSTITUCIONAL À MATERNIDADE. PROTEÇÃO DO MERCADO DE TRABALHO DA MULHER. DIREITO À SEGURANÇA NO EMPREGO. DIREITO À VIDA E À SAÚDE DA CRIANÇA. GARANTIA CONTRA A EXPOSIÇÃO DE GESTANTES E LACTANTES A ATIVIDADES INSALUBRES. 1. O conjunto dos Direitos sociais foi consagrado constitucionalmente como uma das espécies de direitos fundamentais, caracterizando-se como verdadeiras liberdades positivas, de observância obrigatória em um Estado Social de Direito, tendo por finalidade a melhoria das condições de vida aos hipossuficientes, visando à concretização da igualdade social, e são consagrados como fundamentos do Estado Democrático, pelo art. 1º, IV, da Constituição Federal. 2. A Constituição Federal proclama importantes direitos em seu artigo 6º, entre eles a proteção à maternidade, que é a ratio para inúmeros outros direitos sociais instrumentais, tais como a licença-gestante e o direito à segurança no emprego, a proteção do mercado de trabalho da mulher, mediante incentivos específicos, nos termos da lei, e redução dos riscos inerentes ao trabalho, por meio de normas de saúde, higiene e segurança. 3. A proteção contra a exposição da gestante e lactante a atividades insalubres caracteriza-se como importante direito social instrumental protetivo tanto da mulher quanto da criança, tratando-se de normas de salvaguarda dos direitos sociais da mulher e de efetivação de integral proteção ao recém-nascido, possibilitando seu pleno desenvolvimento, de maneira harmônica, segura e sem riscos decorrentes da exposição a ambiente insalubre (CF, art. 227). 4. A proteção à maternidade e a integral proteção à criança são direitos irrenunciáveis e não podem ser afastados pelo desconhecimento, impossibilidade ou a própria negligência da gestante ou lactante em apresentar um atestado médico, sob pena de prejudicá-la e prejudicar o recém-nascido. 5. Ação Direta julgada procedente[footnoteRef:1]. ADI 5938, Relator(a): ALEXANDRE DE MORAES, Tribunal Pleno, julgado em 29/05/2019, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-205 DIVULG 20-09-2019 PUBLIC 23-09-2019 [1: ] 
É necessário, porém, avaliar quais as consequências de se reconhecer a qualidade de direitos fundamentais aos direitos sociais. Como se verá adiante, ainda que sejam direitos fundamentais, o modo de aplicação dos direitos sociais se difere de forma significativa dos direitos individuais.
2.2. Modo de aplicação e âmbito de proteção
Em relação aos direitos individuais, pode-se afirmar que o seu modo de aplicação está ligado a uma concepção restritiva: quer-se assegurar que o Estado não intervenha de forma ilegítima sobre esferas de liberdade reservadas aos indivíduos. Um direito individual, em regra,requer uma atuação negativa do Estado em relação ao seu exercício pelo titular de tal direito. Verdadeira “proibição de intervenção”.
Um direito social, todavia, requer um outro modo de aplicação, a fim de alcançar o fim prestigiado pela Constituição. O conceito-chave na interpretação dos direitos sociais é o de proteção. Proteger, todavia, reclama do Estado outro modo de se conduzir na realização de tais direitos. Atuação positiva
Uma vez violado um Direito Social, o Poder Judiciário não se subsistir à administração para entregar esse direito, ou seja, quando chamado a se pronunciar ele deverá observar se dentro das possibilidades do Estado aquele direito esta sendo adequadamente prestado. 
Nesse sentido, convém citar Virgílio Afonso da Silva, que bem define o que significa “proteger” enquanto modo de aplicação dos direitos sociais.
“Se proteger direitos sociais implica uma exigência de ações estatais, a resposta à pergunta ‘o que faz parte do âmbito de proteção desses direitos?’ tem que, necessariamente, incluir ações. Proteger direitos, nesse âmbito, significa realizar direitos. Por isso, pode-se dizer que o âmbito de proteção de um direito social é composto pelas ações estatais que fomentem a realização desse direito”[footnoteRef:2]. [2: ] 
Desse modo, diferentemente dos direitos individuais, os direitos sociais requerem em face do Estado prestações positivas, que consigam prover à coletividade o acesso aos meios que assegurem a fruição de tais direitos. Exemplo: o direito fundamental social à saúde pode requerer do Estado que este disponibilize uma rede médico-hospitalar pública, por ele próprio gerida. 
De forma que o âmbito de proteção dos direitos sociais impõe uma proibição de proteção insuficiente. 
Direitos Sociais: São aqueles em que prepondera o dever de o Estado atuar, mediante prestações positivas, para a sua respectiva concretização. Justiça Distributiva. O controle do Judiciário tem que ser feito à luz das possibilidades de recursos que são postas ao Estado. 
Direitos Individuais: Não correspondem aos Direitos Sociais quanto a sua natureza. Cada Direito reclama um tipo de Justiça, através de uma Justiça Comutativo. O Pode Judiciário pode subsistir livremente. 
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2.3. Os direitos fundamentais sociais como direitos a uma prestação
Uma vez que reclamam uma atuação positiva do Estado, os direitos sociais são classificados como direitos a uma prestação. No entanto, a própria doutrina constitucional compreende que os direitos a uma prestação podem se subdividir em duas categorias: a) direitos a uma prestação material; b) direitos a uma prestação normativa. 
Ambos reclamam uma atuação do Estado, mas essa atuação se concretiza de modos distintos. É importante, assim, destacar como os direitos sociais interagem com essas duas categorias.
· Direitos a uma prestação material (direitos a uma prestação stricto sensu): tradicionalmente, quando se alude aos direitos sociais, é de comum intuição pensar nas prestações materiais. Ou seja, o Estado atua mediante a colocação de utilidades públicas, de forma direta ou indireta, à coletividade. Hospitais, escolas, postos de saúde, programas de assistência social, seguro-desemprego... Notem que são bens dispostos à utilização da sociedade como meio de consecução desses direitos sociais. 
· Direitos a uma prestação normativa:os direitos a uma prestação normativa correspondem a um dever constitucional exigível em face do Estado de que este regulamente os procedimentos necessários à fruição de direitos fundamentais. Também são conhecidos como direitos à organização ou ao procedimento. A rigor, esses direitos não se confundem propriamente com os direitos sociais, que, de regra, asseguram prestações materiais. Contudo, é possível deduzir que certos direitos sociais dependem de prestações normativas para a sua efetivação. Exemplo: a lei 8.080/1990 regulamenta o Sistema Único de Saúde. É possível, com efeito, inserir no âmbito de proteção do direito fundamental à saúde a sua respectiva regulamentação normativa, como condição necessária para a adequada fruição de tal direito.
2.4. Reserva do possível e mínimo existencial: limite e base de proteção dos direitos sociais
A concretização dos direitos fundamentais – sejam eles individuais ou sociais – não depende exclusivamente da vontade política do Poder Constituinte a fim de que sejam plenamente realizados. Conforme demonstrado por CassSunstein e Stephen Holmes[footnoteRef:3], todos os direitos – individuais ou sociais – impõem custos públicos, que são arcados, fundamentalmente, pelos recursos orçamentários disponíveis. [3: ] 
Há, portanto, um inevitável liame entre efetivação de direitos fundamentais e disposição econômica. Dependência esta que se torna significativamente mais clara quando temos em consideração os direitos sociais. A colocação das referidas utilidades públicas à sociedade impõe ao Estado gastos muito significativos, que, não raro, extrapolam a própria capacidade orçamentária.
A escassez, portanto, é o paradigma com o qual a efetivação dos direitos sociais tem de lidar. Podemos resumir o dilema da seguinte forma: direitos sociais potencialmente infinitos x recursos econômicos efetivamente finitos. O entrecruzamento dessas duas variáveis impõe ao Estado escolhas alocativas, de modo melhor distribuir os recursos limitados às exigências que se lhe impõem os direitos sociais.
A par do cenário ora descrito, é importante
· 1º entendimento - direitos sociais como normas programáticas: essa relação de dependência econômica atrelada à concretização dos direitos sociais levou a parcela da doutrina a considerar que esses direitos são veiculados em normas programáticas. Normas programáticas são conceituadas como aquelas que fixam finalidades constitucionais a serem efetivadas no futuro. Pautam a atuação do Poder Legislativo, mas não teriam o condão de assegurar prestações imediatamente exigíveis em favor dos cidadãos. Tampouco se admitiria que o Poder Judiciário pudesse intervir para a concretização de tais direitos, sob pena de violação ao princípio da separação dos poderes. 
· 2º entendimento – direitos sociais como direitos fundamentais de exigibilidade condicionada: para essa segunda corrente, o fato de os direitos sociais estarem tão intimamente vinculados a seu substrato econômico não lhes retiraria a sua imediata eficácia. Ao menos, eles revestiriam de um grau mínimo de eficácia, dentro do qual se equacionaria em que medida esses direitos sociais seriam exigíveis à luz das disponibilidades econômicas concretas. Trata-se, portanto, de uma exigibilidade condicionada a parâmetros reais de execução. Com efeito, seria assim admissível que o Poder Judiciário possa intervir na concretização de tais direitos, desde que observe esses parâmetros.
Pode-se afirmar que a prática predominante no Brasil pende francamente em favor do segundo entendimento. Ou seja, pode o Poder Judiciário exercer o controle sobre as políticas públicas destinadas à concretização dos direitos sociais, desde que atendidos os referidos parâmetros, a par dos quais se possa determinar qual é a prestaçãopossível que o Estado pode entregar ao cidadão.
Graças, sobretudo, à influência do professor Ricardo Lobo Torres, a doutrina brasileira tem lidado com os seguintes parâmetros para a definição do que é devido em face ao que é possível exigir do Estado para a concretização dos direitos sociais. 
· Parâmetro máximo – reserva do possível: na sua formulação original, a reserva do possível postula que os direitos sociais apenas podem vir a ser executados caso haja disponibilidade orçamentária para tanto. Não se pode exigir do Estado que ele proveja bens e utilidades sociais que estejam além da sua capacidade de despesa. Mais recentemente, alude-se, igualmente, à reserva do possível técnica, isto é, não se pode exigir do Estado que ele proveja bens e utilidades que extrapolam sua capacidadetécnica. 
	
· Parâmetro mínimo – mínimo existencial: existe, todavia, um patamar o qual o Estado está obrigatoriamente vinculado a prestar. Do contrário, ele incorre em violação à própria Constituição. Embora haja vivas controvérsias quanto à extensão do que seria esse “mínimo”, é possível destacar que ele assegura aos cidadãos um direito subjetivo positivo em face ao Estado de assegurar a sua própria existência.
Contudo, nem mesmo a aplicação desses parâmetros fornece um critério seguro para dar uma definição da medida “abstrata” da extensão dos direitos sociais. Em todas as controvérsias que envolvam a concretização de tais direitos é necessário um cotejo concreto entre o dever constitucional de proteger tais direitos e as possibilidades econômicas, técnicas e orçamentárias de executá-los. 
Coloca-se assim uma permanente tensão entre o que a Constituição exige e o que o Estado pode dar. Em um cenário de crise econômica tal como o Brasil está imerso, essas tensões se agigantam, pois, de um lado, as privações sociais se agravam e, de outro, a capacidade de o Estado dar respostas a elas se reduz.
Posto esse cenário, o mínimo existencial e a reserva do possível funcionam como verdadeiras “balizas”, que tencionam, respectivamente, a assegurar um mínimo de eficácia aos direitos sociais, sem que isso implique ultrapassar as forças econômicas do Estado para prestá-los. Não há resposta pronta de antemão quando se fala em concretização dos direitos fundamentais sociais.
 
 DIREITO À SAÚDE
1. A Seguridade Social e a proteção à saúde
1.1. Introdução à Seguridade Social
A proteção à saúde corresponde a uma das finalidades sociais contempladas pelo sistema constitucional da Seguridade Social.
Art. 194. A seguridade social compreende um conjunto integrado de ações de iniciativa dos Poderes Públicos e da sociedade, destinadas a assegurar os direitos relativos à saúde, à previdência e à assistência social.
Portanto, é necessário ter em mente que a proteção à saúde está inserida dentro de um sistema mais amplo de proteção social arquitetado pela Constituição. Em outras palavras, a tutela do direito fundamental social à saúde está compreendida no próprio sistema da Seguridade Social.
Mas o que é seguridade social?
Este termo, derivou de uma tradução pouco ortodoxa do termo em espanhol seguridad social, entretanto, a palavra em português para seguridad é segurança. Sendo assim, a seguridade social significa segurança social.
A segurança é um valor fundamental em um Estado de Direito, haja vista o próprio Estado estar vinculado ao direito, isto é, nada mais, nada menos do que segurança. Entretanto, a expressão “segurança” é permeável a múltiplos significados. 
Em uma primeira aproximação, a palavra segurança se remete imediatamente à “segurança jurídica”, princípio angular do Estado de Direito. Tradicionalmente, a segurança jurídica tem por horizonte de aplicação a ideia de um regime jurídico previsível e calculável, o qual possa ser razoavelmente antecipado por seus destinatários. Por exemplo, quando uma sociedade empresária atua no mercado no desempenho de suas atividades, em favor dela surge a legítima expectativa de que em relação a tais atividades seja aplicável um regime jurídico-tributário previamente delimitado em lei. Do contrário, a própria atividade empresarial se tornaria inviabilizada ou especialmente prejudicada. 
No entanto, a ideia de “segurança” subjacente à seguridade social não diz tanto – ainda que, indiretamente, também o inclua – à uma garantia de previsibilidade e calculabilidade relativa a um regime jurídico. A segurança aqui referida se queda melhor como uma garantia quanto à um estado ideal de coisas. Uma segurança de fato. Em outras palavras, a ideia de seguridade social está atrelada à proteção de uma situação fática em favor dos cidadãos ante o risco de eventual risco à sua preservação social.
Segurança, aqui, portanto, diz respeito a uma expectativa de proteção em face a certas vulnerabilidades, que podem vir a fragilizar o bem-estar, a incolumidade física e psicológica dos indivíduos. Para atingir aquele “estado de ideal de coisas”, é necessário criar um sistema que o proteja diante de eventuais riscos. Na Constituição de 1988, esse sistema de proteção de riscos sociais foi estruturado pela Seguridade Social.
1.2. Os âmbitos de atuação da Seguridade Social – Previdência Social, Assistência Social e Saúde
A par dessa tarefa, o Poder Constituinte identificou três situações fáticas em que há um acréscimo de risco indesejado a esse bem-estar social, e, respectivamente, estabeleceu três sistemas de proteção social, encartados no regime da Seguridade Social.
1. Risco decorrente da incapacitação laboral → Previdência Social: a subsistência dos cidadãos depende diretamente da capacidade de se colocar no mercado de trabalho. Qualquer condição que prive – permanente ou temporariamente – a atuação do cidadão no mercado de trabalho pode-lhe privar de sua renda, e, com efeito, prejudicar sua capacidade de subsistência. A Constituição estabeleceu ante a tal risco a Previdência Social, que compreende um conjunto de benefícios, cujo escopo é assegurar a proteção social do trabalhador privado, de forma temporária ou permanente, de sua plena capacidade laboral. Suas finalidades são discernidas no art. 201, da Constituição[footnoteRef:4]. [4: ] 
· Risco decorrente da vulnerabilidade econômica e social → Assistência Social: a Constituição de 1988 não ignorou a situação de significativa vulnerabilidade econômica e social em que vivem parcelas significativas dos brasileiros. Não por acaso o art. 3º, III da Constituição elege a erradicação da pobreza e a redução das desigualdades regionais como um dos objetivos fundamentais da República. Todavia, o caráter programático de tais objetivos não eximiu o Poder Constituinte de eleger a insegurança econômica e social como risco a ser mitigado pelo sistema de Seguridade Social. Serão, portanto, prestados àqueles que necessitam os benefícios de assistência social, na forma do art. 203 e ss., da Constituição[footnoteRef:5]. [5: ] 
· Risco decorrente de moléstias → Saúde: a incolumidade física talvez seja a mais essencial das garantias sociais necessárias ao pleno desenvolvimento das liberdades públicas. Não há como se inserir no amplo complexo de relações sociais inerentes à vida em comum sem que o cidadão goze de condições mínimas de saúde. A ausência de acesso a um sistema de saúde pode prejudicar o desenvolvimento educacional dos mais jovens, impor aos mais pobres custos incompatíveis com a sua renda e expor os cidadãos ao risco de morte prematura e evitável. Para proteger os cidadãos contra tais riscos foi que a Constituição inseriu no sistema de proteção à Seguridade Social o direito à saúde.
Em resumo, o direito fundamental social à saúde está inserido dentro do sistema de Seguridade Social. E, portanto, assim como a assistência social e a previdência social, ele tem como finalidade preservar o bem estar dos indivíduos em face a eventuais riscos que podem prejudicar o pleno exercício de suas liberdades públicas. 
2. Análise da estrutura constitucional do direito fundamental à saúde – o art. 196, da Constituição
A cláusula fundamental que introduz o direito fundamental à saúde na Constituição é veiculada pelo art. 196, que assim dispõe.
Art. 196. A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação.
Dada a sua importância, convém analisar ponto a ponto a dicção constitucional do art. 196.
· “é direito de todos”: todo brasileiro, independentemente da sua renda, tem direito de acesso ao Sistema Público de Saúde. Mesmo que o indivíduo contrate um plano de saúde particular, não há qualquer óbice a que ele utilize o sistema público. O direito à saúde abrange tanto um direito subjetivo individual à saúde quanto um direito subjetivo coletivo à saúde. De modo que aAdministração pública pode vir a ser reclamada em juízo tanto quanto a prestações destinadas a um único indivíduo quanto a prestações gerais vinculadas à própria estrutura do Sistema Público de Saúde.
· “dever do Estado”: todos os entes federativos são chamados a assegurar e participar do Sistema Público de Saúde. União, Estados e Municípios, portanto, têm o dever de coordenar esforços para prover o pleno acesso aos equipamentos e medicamentos inerentes à tutela da saúde. Trata-se de um dever respaldado pela competência administrativa comum atribuída aos entes federativos pela Constituição para a prestação dos serviços de saúde (art. 23, II)[footnoteRef:6]. A tutela do direito fundamental à saúde, portanto, se encarta na lógica do federalismo cooperativo. Lógica esta que tem sido evocada para justificar a responsabilidade solidária dos entes federativos em matéria de saúde. [6: ] 
· “garantido mediante políticas sociais e econômicas”: o STF tem o entendimento consolidado que o direito fundamental à saúde gera em favor dos indivíduos direitos subjetivos (AgRE 271.286-8). Como tais, esses direitos subjetivos são aptos a deflagrarem uma relação jurídica obrigacional entre o Estado e o cidadão. Entretanto, esse direito subjetivo público é concretizado através de políticas públicas. Portanto, não há um direito absoluto a qualquer procedimento ou terapia em favor dos cidadãos. O direito subjetivo à saúde, portanto, é assegurado nos limites em que preexista política pública específica que a promova. O próprio STF, em recente decisão, consolidou o entendimento de que o Estado não pode ser obrigado a fornecer medicamento experimental ou sem registro na Anvisa (RE 657.718/MG). A escassez impõe escolhas alocativas. Escolhas que se exprimem em políticas públicas. Daí a impossibilidade de exigir prestações de saúde que não estejam situadas em tais políticas públicas.
“políticas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos”: o art. 196, da Constituição, assegura um regime de proteção em sentido amplo à saúde. Portanto, não apenas ações de caráter terapêutico estão abrangidas por tal direito fundamental. Igualmente, assegura-se à promoção às ações preventivas, indicadas como prioritárias pelo art. 198, da Constituição[footnoteRef:7]. [7: ] 
· Exemplo: ações sociais destinadas à educação sanitária, isto é, bons hábitos para evitar a proliferação de moléstias.
· “políticas que visem ao acesso universal igualitário”: dois elementos estruturantes se põem à luz de tais referências: a) universalidade; b) igualdade nas condições de acesso. Em relação à universalidade, como já foi dito, corresponde ao amplo acesso a todo e qualquer cidadão ao Sistema Público de Saúde. A igualdade nas condições de acesso, por sua vez, corresponde a uma diretriz na implementação das políticas públicas, que permita esse pleno acesso sem qualquer tipo de discriminação. A igualdade nas condições de acesso decorre da própria noção de universalidade, na medida em que assegura na prática o que a universalidade assegura em tese.
· “ações e serviços para promoção, proteção e recuperação da saúde”: de nada adiantaria prever a saúde como direito fundamental se não lhe fossem dados meios para a sua plena concretização. Note-se aqui o art. 196 não se refere apenas aos meios materiais – hospitais, postos de saúde, campanhas de vacinação –, mas, igualmente, aos meios jurídicos para tanto, como as normas necessárias de organização e procedimento para a prestação adequada dos serviços de saúde.
3. O Sistema Único de Saúde
3.1. Estrutura
A Constituição de 1988 incorporou ao regime jurídico-constitucional brasileiro a instituição de um sistema único de proteção à saúde. Ou seja, a despeito da atuação dos mais diversos entes federativos, o sistema brasileiro de saúde pública é único. Isso significa que a sua gestão e financiamento se dará de forma conjunta entre os entes responsáveis, cada qual, todavia, nos limites de suas atribuições.
Art. 198. As ações e serviços públicos de saúde integram uma rede regionalizada e hierarquizada e constituem um sistema único, organizado de acordo com as seguintes diretrizes:
I - descentralização, com direção única em cada esfera de governo;
II - atendimento integral, com prioridade para as atividades preventivas, sem prejuízo dos serviços assistenciais;
III - participação da comunidade.
A unicidade do sistema de saúde, portanto, não significa, todavia, superposição de atribuições. Como dispõe o art. 198, o sistema único será organizado de forma regionalizada e hierarquizada: cada ente federativo é ocupado com parcela das ações que estejam inseridas no seu âmbito de atuação. Ou seja, ações nacionais reclamam a
atuação da União, ações regionais, atuação dos Estados e, por fim, ações locais, atuação dos Municípios. É assim concretizado o princípio da subsidiariedade, no qual se atribui ao ente a competência mais a fim de sua vocação.
O SUS se encontra hoje regulamentado pela lei 8.080/1990. Dentre as dispões contidas nesta lei, vale destacar os seus princípios e diretrizes, arrolados no art. 7º, a cuja leitura se remete.
3.2. Financiamento
O financiamento do SUS tem regra orientadora fundamental o art. 198, § 1 º/CF.
Art. 198, § 1º. O sistema único de saúde será financiado, nos termos do art. 195, com recursos do orçamento da seguridade social, da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, além de outras fontes. (Parágrafo único renumerado para § 1º pela Emenda Constitucional nº 29, de 2000)
O SUS vive, desde a sua origem, o drama do seu sub-financiamento. Não por outra razão foram inseridas na Constituição outras disposições visavam assegurar a disposição de recursos para a mantença dos serviços de saúde. 
· Emenda Constitucional nº 29/2000: essa emenda passou a prever dentre as hipóteses de intervenção federal aplicação em percentual inferior ao mínimo pelos estados nas ações e serviços públicos de saúde (art. 34, VIII). Inseriu previsão análoga na intervenção estadual (art. 35, III). Estabeleceu ainda que o financiamento se daria por cada ente federativo à razão de um percentual, a ser fixado por lei complementar.
· Emenda Constitucional nº 86/2015: estabeleceu que o percentual devido pela União no financiamento das ações em saúde não poderia ser inferior a 15% da receita corrente líquida do respectivo exercício financeiro.
Os percentuais apenas vieram a ser estabelecidos pela Lei Complementar nº 141/2012, bem como os demais critérios para o rateio dos recursos entre os entes federativos.
3.3. Parcerias com o setor privado
A Constituição de 1988 comporta uma permissão para que os serviços de saúde também sejam prestados pela iniciativa privada, em regime de concorrência ou em caráter beneficente. São serviços privados de interesse público, cujo exercício depende de prévia autorização do Estado e está sujeita à regulação especial da União.
No entanto, as instituições privadas de saúde também poderão participar da estrutura do SUS, atendidos os requisitos estabelecidos pelo art. 199, §§ 1º e 2º, bem como os demais que a lei do SUS vier a estabelecer.
Art. 199. A assistência à saúde é livre à iniciativa privada.
§ 1º. As instituições privadas poderão participar de forma complementar do sistema único de saúde, segundo diretrizes deste, mediante contrato de direito público ou convênio, tendo preferência as entidades filantrópicas e as sem fins lucrativos.
§ 2º. É vedada a destinação de recursos públicos para auxílios ou subvenções às instituições privadas com fins lucrativos.
Portanto, a Constituição admite, em caráter complementar, a participação de instituições privadas no SUS, desde que estas não tenham finalidade lucrativa, isto é, não atuem no mercado em regime de concorrência. Nesse tocante, tem-se destacado a importância das Organizações Sociais (OS – lei 9.637/1998), das Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público (OSCIP – lei 9.790/1999) e das Organizações da Sociedade Civil (OSC – lei 13.019/2016), instituições sem fins lucrativos, que firmam parcerias com a Administração Públicapara a prestação de serviços complementares em saúde.
4. A Judicialização do direito à saúde
É de conhecimento notório que o SUS nem sempre assegura o adequado atendimento às demandas de saúde de boa parte da população. As demandas na área de saúde, por tal razão, acabam costumeiramente sendo levadas ao Poder Judiciário, a fim de que esse decida sobre procedimentos e condições de acesso aos equipamentos terapêuticos, bem como assegure o fornecimento de medicamentos. 
Se, por um lado, pode-se afirmar que o Poder Judiciário assegura àqueles que dele se socorrem meios para garantir o pleno acesso ao direito fundamental à saúde, por outro lado é igualmente sabido que a intervenção do Judiciário sobre as políticas públicas de saúde têm limites, e, com efeito, podem extravasar os limites válidos de sua atuação. Em última análise, é uma crise que extrema os próprios limites da Separação entre os Poderes.
O que é de consenso praticamente comum, mesmo no seio do Poder Judiciário, é de que a judicialização da saúde não confere resposta definitiva aos problemas estruturais do SUS. De todo modo, são arroladas algumas críticas à judicialização da política.
· 1ª crítica – não observância dos critérios metodológicos adotados pelo SUS: as políticas públicas adotadas pelo SUS geralmente são orientadas pela adoção de metodologias, que contemplam previamente questões de índole técnica e orçamentária. Não raro essas escolhas simplesmente são desconsideradas na resolução da controvérsia jurisdicional sobre saúde. Caso emblemático é o do fornecimento de medicamentos experimentais ou não registrados na Anvisa. O SUS pauta suas escolhas na disponibilização de fármacos no método baseado em evidência, o que exclui o fornecimento de medicamentos cuja eficácia não tenha sido demonstrada. Recentemente, com a decisão proferida pelo STF no RE 657.718/MG, consolida-se uma tendência jurisprudencial mais sensível às escolhas técnicas do SUS.
· 2ª crítica – fragmentação da tutela em saúde em demandas individuais: outro problema recorrente na judicialização da saúde é a dispersão das demandas em milhares de ações individuais. Os problemas são inúmeros: a) excesso de volume de ações, que acarreta lentidão e baixa qualidade na prestação jurisdicional; b) incapacidade de uma apreciação adequada da política pública de saúde como um todo, uma vez que a ação individual se circunscreve apenas ao problema daquele cidadão; c) violação indireta ao princípio da igualdade nas condições de acesso, uma vez que os cidadãos que não recorrem à via judicial acabam por se encontrar em uma situação menos favorável do que aqueles que dela se valeram. A doutrina tem cada vez mais atentado quanto à necessidade de tutela coletiva das demandas em saúde, uma vez que estas podem obter resultados favoráveis à toda coletividade e melhor orientar a execução das políticas públicas de saúde como um todo.
· 3ª crítica – impacto sobre o orçamento dos entes federativos: toda decisão judicial desfavorável ao cidadão contra a Fazenda Pública implica em custos. Uma internação compulsória, o fornecimento de medicamentos, a submissão a uma nova terapia... todas essas medidas oneram o Erário Público. Na prática, a judicialização da saúde não apenas transfere para o Poder Judiciário a prerrogativa de dirigir certos aspectos das políticas públicas em saúde, mas, igualmente, como dispor sobre o orçamento público, atribuição reservada pela Constituição ao Poder Executivo. Esse problema é especialmente sentido nos pequenos municípios, que veem parte significativa de seu orçamento sendo destinada ao cumprimento de decisões judiciais em saúde. Trata-se de situação que cria uma evidente tensão à separação harmônica entre os Poderes da República (art. 2º/CF).

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