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livro capoeira

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CAPOEIRA
PERSPECTIVAS CONTEMPORÂNEAS
Brasília, 2018
organização 
LUIZ RENATO VIEIRA
Anderson de Freitas Silva | Antônio Carvalho
Christian Muleka Mwewa | Fábio de Assis Gaspar
Felipe do Couto Torres | Igor Fernandes da Cunha 
Luciana Maria Fernandes Silva | Manoj Geeverghese
Mateus Schimith Batista | Reuel Pereira Marely
CAPOEIRA
PERSPECTIVAS CONTEMPORÂNEAS
© 2018 by Luiz Renato Vieira
ISBN 978-85-5325-029-5
Organizador: Luiz Renato Vieira
Revisão: Guilherme Pamplona
Projeto gráfico: Luciano Holanda (CUSTOMIZE)
Foto da capa: Mariana Barroso Pereira Malta
________________________________________________________________________
C245 Capoeira: perspectivas contemporâneas / Organização Luiz Renato Vieira
 .---Brasília, DF : Trampolim, 2018.
 314 p. : il. ; color.
 
 Vários autores.
 Inclui bibliografia. 
 ISBN: 978-85-5325-029-5
 
1. Capoeira e Educação. 2. Capoeiragem. 3. Cultura popular. 4. Capoeira – 
Arte-luta. 5. Tradição cultural. I. Vieira, Luiz Renato (Org). 
 
 CDU 793.31)
____________________________________________________________________________
Ficha catalográfica elaborada por Iza Antunes Araujo CRB1-079
Sumário
Apresentação .................................................................................. 11
Prefácio ..............................................................................................27
PARTE 1 - CAPOEIRA E EDUCAÇÃO ...........................31
O VALOR EDUCATIVO DA CAPOEIRA: 
DISCUSSÕES E REFLEXÕES ACERCA DO PAPEL 
DA CAPOEIRA NO PROCESSO EDUCATIVO
Manoj Geeverghese
1 - INTRODUÇÃO ................................................................................ 33
2 - CAPOEIRA E EDUCAÇÃO ........................................................ 34
3 - A CAPOEIRA E O PROCESSO EDUCATIVO ..................... 45
4 - CONCLUSÃO ................................................................................... 52
AS AULAS DE CAPOEIRA E A UTILIZAÇÃO 
DAS NOVAS TECNOLOGIAS DA INFORMAÇÃO 
E COMUNICAÇÃO - TIC 
Luciana Maria Fernandes Silva
1 - INTRODUÇÃO ................................................................................ 55
2 - METODOLOGIA ............................................................................. 57
3 - AS NOVAS TECNOLOGIAS DA INFORMAÇÃO E 
COMUNICAÇÃO E A CAPOEIRA .................................................. 58
4 - O USO DAS TIC NAS AULAS DE CAPOEIRA: 
POSSÍVEIS INTERVENÇÕES ......................................................... 62
5 - CONCLUSÃO ................................................................................... 66
PARTE 2 - CAPOEIRA, SOCIEDADE E AÇÕES 
GOVERNAMENTAIS ....................................................................71
REFLEXÕES SOBRE AS AÇÕES DO ESTADO 
BRASILEIRO PARA A CAPOEIRA (2003-2010) 
Fábio de Assis Gaspar
1 - INTRODUÇÃO ................................................................................ 73
2 - CAPOEIRA: EXPRESSÃO DOS DIREITOS SOCIAIS 
NO ÂMBITO DAS POLÍTICAS SOCIAIS ..................................... 75
3 - AS AÇÕES E SUAS IMPLICAÇÕES ....................................... 77
3.1 - Capoeira e capoeiras: portadores 
de direitos? ........................................................................................ 78
3.2 - Financiamento público da capoeira .......................... 93
3.3 - Sociedade civil capoeirana, controle social e 
as ações do MinC ............................................................................ 96
4 - CONCLUSÃO ................................................................................. 101
OS SEGMENTOS DA CAPOEIRA E SEUS DISCURSOS 
SOBRE OS DESDOBRAMENTOS DO REGISTRO 
COMO PATRIMÔMIO IMATERIAL 
Igor Márcio Corrêa Fernandes da Cunha
1 - INTRODUÇÃO ..............................................................................107
2 - OS DISCURSOS DOS CAPOEIRISTAS ...............................108
2.1 - O discurso purista e tradicionalista ......................... 116
2.2 - O discurso esportivo .........................................................122
2.3 - As vertentes federativas ................................................125
2.4 - A visão cultural................................................................... 131
3 - CONCLUSÃO .................................................................................139
TERRITORIALIDADE DAS RODAS DE CAPOEIRA EM 
BRASÍLIA (DISTRITO FEDERAL): ESPAÇO PÚBLICO, 
APROPRIAÇÃO E DIREITO AO USO 
Felipe do Couto Torres
1 - INTRODUÇÃO ..............................................................................145
2 - METODOLOGIA ...........................................................................150
3 - APORTE TEÓRICO .....................................................................153
4 - ESPAÇO PÚBLICO ......................................................................154
5 - TERRITÓRIO E TERRITORIALIDADE .............................157
6 - RODA DE CAPOEIRA ...............................................................160
7 - CIDADANIA ..................................................................................164
8 - CONSIDERAÇÕES DE CAMPO - AS APROPRIAÇÕES 
DAS RODAS DE CAPOEIRA NO ESPAÇO PÚBLICO..........165
9 - CONCLUSÃO ................................................................................170
PARTE 3 - CAPOEIRA E TEMAS CULTURAIS ......... 179
REVISTA PRATICANDO CAPOEIRA: UM DISPOSITIVO 
DE REGRAMENTO PARA O CAMPO CAPOEIRÍSTICO 
Anderson de Freitas Silva
1 - INTRODUÇÃO .............................................................................. 181
2 - A REVISTA PRATICANDO CAPOEIRA ............................183
3 - DISPOSITIVOS EDITORIAIS ..................................................186
4 - SEÇÕES E TEMÁTICAS ...........................................................188
5 - FOTOGRAFIAS E ILUSTRAÇÕES .......................................193
6 - PUBLICIDADE E PRODUTOS ...............................................197
7 - CONCLUSÃO ................................................................................ 200
ENSAIO SOBRE PSICANÁLISE E CAPOEIRA 
Antônio Carlos Nunes de Carvalho Júnior
1 - INTRODUÇÃO ............................................................................. 205
2 - O SENTIR E O MOVER-SE NO JOGO 
DA CAPOEIRA ................................................................................... 206
3 - AS CANTIGAS METAFORIZAM OS CAMINHOS 
E ORGANIZAM O “DESEJAR” NA CAPOEIRA. ................. 217
4 - SOBRE A GENEALOGIA E A TRADIÇÃO NA 
CAPOEIRA ........................................................................................... 222
5 - MESTRE BIMBA: UM TOTEM NA CAPOEIRA ............ 227
6 - ALGUMAS CONSIDERAÇÕES SOBRE O MESTRE 
NA CAPOEIRA ....................................................................................231
7 - CONCLUSÃO ................................................................................ 235
CAPOEIRA E EFICÁCIA SIMBÓLICA: 
APONTAMENTOS TEÓRICOS E 
APORTES EMPÍRICOS 
Reuel Marely
1 - INTRODUÇÃO ..............................................................................241
2 - O MESTRE DE CAPOEIRA E A EFICÁCIA 
SIMBÓLICA .....................................................................................247
3 - CONCLUSÃO ................................................................................ 265
APROXIMAÇÕES ENTRE CAPOEIRA 
E TEATRO NA POÉTICA DE UM ATOR 
Mateus Schimith
1 - INTRODUÇÃO ......................................................................... 271
2 - A CAPOEIRA E O TRABALHO DO ATOR .....................274
3 - CONCLUSÃO ............................................................................287
A CAPOEIRA PARA ALÉM DA INDÚSTRIA 
CULTURAL: ITINERÁRIOS POSSÍVEIS
Christian Muleka Mwewa
1 - INTRODUÇÃO .............................................................................2912 - ITINERÁRIO PARA PENSAR A CAPOEIRA 
PARA ALÉM DA INDÚSTRIA CULTURAL .......................... 295
3 - A CAPOEIRA E SEUS MECANISMOS 
DE SUPERAÇÃO ................................................................................301
4 - CONCLUSÃO ................................................................................ 304
SOBRE OS AUTORES
Anderson de Freitas Silva ........................................................ 311
Antônio Carlos Carvalho .......................................................... 311
Christian Muleka Mwewa ........................................................ 311
Fábio de Assis Gaspar ................................................................312
Felipe do Couto Torres ...............................................................312
Igor Fernandes da Cunha ........................................................312
Luciana Maria Fernandes Silva ............................................ 313
Luiz Renato Vieira (org.) .......................................................... 313
Manoj Geeverghese ..................................................................... 314
Mateus Schimith Batista .......................................................... 314
Reuel Pereira Marely ................................................................. 314
11
 
Apresentação
IDENTIDADES EM MOVIMENTO 
E O UNIVERSO CULTURAL DA 
CAPOEIRAGEM 
Luiz Renato Vieira
Os afro-brasileiros souberam transformar a violência em 
camaradagem, envolvendo dança, ritmo, canto, toque e 
improvisação. A capoeira é uma afirmação existencial do 
povo negro no contexto do escravagismo e do racismo de 
dominação presentes em momentos diversos da sociedade 
brasileira. No jogo de gingas e na mandala da roda da 
capoeira está a história do povo negro na diáspora.
Gilberto Gil, ex-Ministro da Cultura. 
Discurso proferido em Genebra, em 19 de agosto de 2004.
12
Capoeira: Perspectivas Contemporâneas
Em 1937, em seu livro intitulado Negros bantos, após tra-
çar um belíssimo retrato da capoeira, Édison Carneiro escreveu: 
“o progresso dar-lhe-á, (...) mais cedo ou mais tarde, o tiro de 
misericórdia”. 
O grande folclorista baiano acreditava que a prática da 
capoeiragem estava fadada ao desaparecimento diante da ace-
lerada modernização de sua época. E tal vaticínio não era sem 
motivo. Ao longo de uma vida de estudos, muitas foram as 
manifestações da cultura popular que ele viu serem extintas ou 
reduzidas a práticas de pequenos grupos.
Felizmente, Édison Carneiro estava errado em relação à 
nossa arte-luta. A capoeira não desapareceu nem reduziu sua 
presença na sociedade brasileira. Ao contrário, em meio a mui-
tas metamorfoses, a capoeira foi se amoldando e se adaptando 
aos novos tempos, assumindo variações estilísticas e se associan-
do a novos discursos sociais e políticos.
Para sobreviver, a capoeira mudou e se diversificou. Mas, 
isso a torna diferente das outras manifestações culturais? Se am-
pliarmos o nosso campo de observação, veremos que processos 
semelhantes ocorreram com muitas outras manifestações cultu-
ais, incluindo o samba, o chorinho, o frevo e religiões de matriz 
africana. Afinal, a produção de releituras diante dos desafios 
impostos pela mudança social é uma característica essencial das 
culturas. E, de resto, uma das principais características do cená-
rio cultural contemporâneo.
O fato é que, hoje, a capoeira está presente nos ambientes 
artísticos, culturais, esportivos e nas instituições educacionais 
formais e informais. Há muito, o temor do desaparecimento 
das tradições da antiga luta dos escravizados e de seus descen-
dentes deu lugar a outras preocupações: não há mais o receio 
do desaparecimento, mas uma inquietação com os rumos im-
13
Capoeira: Perspectivas Contemporâneas
postos pelo seu crescimento rápido, intenso e abrangente, que 
pode distanciá-la de suas raízes culturais.
A arte-luta brasileira é uma modalidade única no conjun-
to das manifestações culturais e das práticas corporais. Desta-
ca-se, entre as demais, por aspectos como riqueza motriz, mu-
sicalidade envolvente, exuberância de sua presença estética e a 
força dos seus rituais.
Entre as características que lhe atribuem essa peculia-
ridade está, também, o fato de que se desenvolveu, entre os 
capoeiristas, uma impressionante necessidade de acumular co-
nhecimento histórico e teórico sobre sua prática, seja através 
do contato com os mestres mais experientes, seja por meio da 
leitura ou com o auxílio das novas tecnologias.
Essa vontade de saber que se dissemina juntamente com 
a prática da capoeira tem feito com que ela seja, atualmente, 
uma das manifestações mais estudadas entre as que compõem 
o universo cultural brasileiro. Uma rápida consulta às listas 
de teses e dissertações dos programas de pós-graduação stricto 
sensu, defendidas nos últimos anos, nos permite verificar isso 
facilmente.
A produção acadêmica sobre a capoeira tem crescido em 
um ritmo muito intenso, no Brasil e no exterior. Depois de uma 
explosão de estudos mais genéricos e abrangentes, nas diversas 
áreas de conhecimento, nas décadas de 1990 e 2000, temos 
visto, nos últimos anos, o surgimento de trabalhos com temas 
mais específicos no campo das ciências humanas. São pesqui-
sas acadêmicas com objetos de estudos mais recortados, como 
aqueles sobre a vida de mestres que se destacaram ao longo da 
história; sobre segmentos específicos de praticantes da capoei-
ra; a respeito de manifestações locais da arte-luta; tratando da 
capoeira na mídia, no ensino básico e superior; relacionando-a 
14
Capoeira: Perspectivas Contemporâneas
com a questão da qualidade de vida; inserindo-a no debate so-
bre a questão racial e de gênero e muitos outros assuntos. 
Os temas relacionados às nossas tradições culturais conti-
nuam despertando enormemente o interesse dos pesquisadores 
no exterior. Estudiosos vêm se dedicando com afinco ao estudo 
da capoeira em universidades estrangeiras e têm produzido ex-
celentes trabalhos. Hoje, há uma quantidade muito significati-
va de pesquisas sobre a expansão da capoeira por todo o mun-
do. Muitos outros trabalhos podem ser citados como exemplos 
do interesse que a nossa capoeira tem despertado no exterior.
Esse crescimento da pesquisa sobre a capoeira não está 
relacionado apenas ao processo de sua internacionalização. Re-
flete, também, o despertar do Estado brasileiro acerca da rele-
vância da capoeira como manifestação cultural e de suas res-
ponsabilidades no que concerne à preservação de sua memória.
Desde 2004, quando o Ministro Gilberto Gil proferiu o 
célebre discurso exaltando as qualidades da capoeira em Gene-
bra, na ocasião da homenagem póstuma ao Embaixador Sér-
gio Vieira de Mello, falecido no Iraque, o cenário da arte-luta 
tem passado por profundas modificações no Brasil. Seguiram-se 
importantes iniciativas, como a publicação dos editais Cultura 
Viva – Capoeira Viva (2005) e duas edições do Prêmio Capoei-
ra Viva (2006 e 2007). 
O Governo Federal definia um novo lugar para a capoeira 
nas políticas públicas, gerando expectativas e se comprometen-
do a lidar com o que podemos chamar de déficit histórico de 
cidadania. Afinal, até então, havia uma verdadeira invisibilida-
de da capoeira diante das ações governamentais.
Sob a direção do Instituto do Patrimônio Histórico e Ar-
tístico Nacional (IPHAN), desenvolveram-se os trabalhos de 
pesquisa e mapeamento que resultaram no registro como Pa-
15
Capoeira: Perspectivas Contemporâneas
trimônio Cultural Imaterial, no ano de 2008. Como se sabe, o 
registro ocorreu de duas formas: o Ofício dos Mestres de Capo-
eira passou a integrar o Livro dos Saberes e a Roda de Capoeira, 
o das Formas de Expressão.
A partir desse momento, iniciou-se um importante ciclo 
de ações governamentais com foco na capoeira. A Fundação 
Cultural Palmares, que foi protagonista de relevantes iniciativas 
em relação à capoeira, promoveu o Encontro de Mestres de Ca-
poeira (2009), em Brasília. Em seguida,o IPHAN constituiu o 
Grupo de Trabalho (GTPC) – do qual tive a oportunidade de 
participar, como colaborador, a convite do então presidente do 
IPHAN – e promoveu várias iniciativas, entre as quais se desta-
cam os editais do Programa Capoeira Viva (2010), os Encon-
tros Pró-Capoeira (2010) e o Prêmio Viva Meu Mestre (2011). 
Nesse conjunto de medidas, podemos incluir, também, a 
proposta de registro da capoeira como Patrimônio Imaterial da 
Humanidade (2012).
Ocorre que, em um determinado momento, o Ministério 
da Cultura teve reduzido seu protagonismo no campo das ações 
relacionadas à capoeira, que não chegaram a se tornar efetiva-
mente políticas públicas, com orçamentos definidos e progra-
mas estruturados e avaliados de maneira perene e sistêmica.
Ao mesmo tempo, ganhavam espaço no âmbito governa-
mental outras iniciativas, com foco voltado para o desenvolvi-
mento esportivo da capoeira e sua organização institucional em 
confederações, federações e instituições congêneres. Acentua-
va-se, então, uma divisão histórica no mundo da capoeiragem, 
amplamente discutida na literatura especializada: uma interpre-
tação dicotômica sobre capoeira esporte e capoeira cultura.
A novidade foi que essa tensão, que no campo da socie-
dade civil remonta ao início do século XX, adentra o universo 
16
Capoeira: Perspectivas Contemporâneas
governamental e torna clara a falta de organicidade das medidas 
de incentivo à capoeira.
Da mesma forma, fortaleceram-se as discussões em tor-
no da chamada regulamentação da profissão de professor ou 
mestre de capoeira. Os debates sobre as proposições legisla-
tivas em tramitação no Congresso Nacional passam a dividir 
a comunidade da capoeira entre aqueles que acreditavam na 
regulamentação profissional por meio de lei como forma de 
assegurar direitos e os que a viam como parte de um projeto 
corporativo com possíveis prejuízos à preservação da memória 
histórica da arte.
O importante a destacar, no momento, é que o debate so-
bre as politicas públicas relativas à capoeira demonstrou que o 
campo não tem posicionamento homogêneo em relação a vários 
temas, incluindo a relevância da ancestralidade negra na forma-
ção da capoeira; o perfil profissional do professor ou mestre; a 
necessidade de valorização da pluralidade de manifestações que 
caracterizam a capoeiragem em todo o território nacional e até 
mesmo nas configurações que assume, atualmente, no exterior; 
e as linhas gerais das políticas públicas a serem implementadas 
para a promoção da capoeira.
Hoje, nos deparamos com algumas questões muito com-
plexas. Após o registro da capoeira como Patrimônio Imate-
rial, o IPHAN deu início aos procedimentos para a adoção das 
chamadas medidas de salvaguarda. As principais direções já 
estavam indicadas no dossiê elaborado na ocasião do registro, 
e foram aprofundadas nos encontros Pró-Capoeira, realizados 
em todas as regiões do Brasil (2010). 
Entretanto, a partir do início do ano de 2011, houve uma 
retração nessas iniciativas, e a comunidade da capoeiragem se 
ressentiu, pois, até então, haviam sido muito significativos os 
17
Capoeira: Perspectivas Contemporâneas
avanços e as expectativas criadas nas gestões dos Ministros Gil-
berto Gil e Juca Ferreira.
Atualmente, como se sabe, essas ações são desenvolvidas 
pelo IPHAN em caráter descentralizado, a cargo de suas supe-
rintendências regionais, que se esforçam para envolver os capo-
eiristas no processo.
No âmbito governamental, fortaleceram-se o discurso e as 
práticas voltadas para a esportivização da capoeira, tendo como 
protagonista o Ministério do Esporte. Iniciou-se uma intensa 
mobilização da confederação brasileira e das federações esta-
duais, órgãos que, regra geral, possuem legitimidade limitada 
perante a maioria dos praticantes da capoeira. Além disso, es-
sas entidades desenvolvem um discurso e uma prática que não 
abarcam o amplo leque de manifestações que compõem a di-
versidade da nossa arte-luta, concentrando-se em seus aspectos 
esportivos.
Contudo, o mais importante é registrar que há, em anda-
mento, várias mobilizações de segmentos da capoeira. Como é 
frequente ocorrer com outras manifestações culturais e modali-
dades esportivas, nessa busca por hegemonia, as representações 
de alguns segmentos procuram se apresentar como a expressão 
do universo global dos praticantes.
Nesse quadro, muitos setores não se veem representados 
e ficam à mercê das escolhas daqueles que, por razões externas 
ao universo da capoeira, logram exercer protagonismo político 
e influência diante dos órgãos do Estado.
Então, qualquer apoio governamental a entidades e a 
eventos relacionados à capoeira deve levar em conta o fato de 
que há uma série de questões em aberto, como as que foram 
apontadas no dossiê do IPHAN, de 2008. 
18
Capoeira: Perspectivas Contemporâneas
Nesse sentido, temos a esperança de que, no conjunto da 
nossa política cultural, haja espaço para que os diversos seg-
mentos da capoeira sejam ouvidos, incluindo, também, outros 
atores relevantes, como pesquisadores, centros de investigação 
dedicados à capoeira no Brasil e no exterior, Velhos Mestres e 
lideranças vinculadas a formas da capoeira que exercem o direi-
to de questionar os limites do modelo federativo e esportivo, 
como a tradicional Capoeira Angola.
O desenvolvimento da capoeira no exterior tem apresen-
tado, ao mesmo tempo, uma série de desafios teóricos para os 
pesquisadores e um conjunto de temas a serem debatidos pelos 
gestores da cultura e do esporte no Brasil.
Surgida de folguedos de origem popular no Brasil, a ca-
poeira traçou uma intensa e interessante trajetória ao longo 
do século XX. De prática proibida pela lei penal brasileira, foi 
elevada à condição de um dos mais importantes símbolos da 
cultura nacional no último quartel do século. Ao longo dessa 
trajetória, muitas foram as ressignificações do fenômeno cultu-
ral complexo que ela representa.
Da mesma forma, muitas foram suas apropriações por 
parte dos discursos políticos. As formulações variam de uma 
modalidade que se presta à disciplina e ao fortalecimento dos 
corpos e da valorização de uma cultura marcial a um fator de 
resistência cultural que prioriza a negaça e a malandragem, bus-
cando as frestas e caminhos alternativos para a subversão da or-
dem. Assim, a capoeira evidencia leituras diferenciadas, por ve-
zes opostas, da modernidade e do processo de desenvolvimento 
identitário no Brasil.
No campo da gestão das políticas públicas relacionadas 
à capoeira, principalmente nas áreas da cultura e do esporte, 
o processo de mundialização da arte-luta engendra uma série 
19
Capoeira: Perspectivas Contemporâneas
de desafios. Ao tempo em que se internacionaliza, a capoeira 
também se distancia dos elementos identitários que a vinculam 
com a formação da sociedade brasileira. Dessa forma, é nítida a 
percepção, de parte da comunidade de capoeiristas, que o Brasil 
corre o risco de perder a condição de centro de referência que 
sempre desempenhou em relação à capoeira. As redes sociais, 
com suas facilidades para a divulgação de vídeos e outros recur-
sos tecnológicos, têm contribuido significativamente para isso.
Como os órgãos de cultura têm lidado com essa questão? 
Como conciliar uma percepção flexível do fenômeno cultural 
representado pela capoeira em seu processo de expansão pelo 
mundo com a necessidade de aprofundar o conhecimento so-
bre sua história e valorizar sua ancestralidade e suas matrizes 
no Brasil? 
Esse debate é muito presente no cotidiano dos capoei-
ristas. O cenário atual caracteriza-se por uma multiplicidade 
de formas de organização e revisões da pedagogia tradicional 
que colocam em xeque alguns dos valores considerados es-
sencialmente vinculados à ancestralidade. Fala-se, então, em 
“capoeira sem mestre” e muitos grupos passam a priorizar as 
formas horizontais de transmissão de saberes em um discurso 
que alerta: “a capoeira não tem dono”. Questionam-se, assim, 
alguns dos pilares da tradição daarte-luta. Para isso, contri-
buem também os coletivos organizados em rede, desafiando 
os modelos tradicionais dos grupos de capoeira, geralmente 
estruturados de forma piramidal, com gestão personalista e 
centralizada.
São muitos aspectos a considerar para desenvolver uma 
análise que contemple a realidade da capoeira nos dias de hoje. 
Entendemos que essas questões que ora levantamos podem ser 
importantes para a compreensão dos desafios globais, no con-
20
Capoeira: Perspectivas Contemporâneas
texto de afirmação de referências culturais e das identidades em 
movimento.
Movido por tais inquietações, é com enorme honra que 
apresento aos leitores este volume. Elaborado com muito em-
penho e cuidado, ele resulta do esforço conjunto de acadêmicos 
que decidiram conectar suas áreas de formação com o mundo 
da arte-luta que praticam. 
Tanto entre pesquisadores quanto entre capoeiristas (e, 
muitas vezes, essas duas figuras se fundem nas mesmas pessoas), 
há uma crença generalizada a respeito da riqueza representada 
no universo cultural e gestual da capoeiragem. Dessa convic-
ção, decorre uma busca impressionante de conhecimento nas 
mais diversas áreas, seja por meio de entrevistas com os Velhos 
Mestres, quanto em pesquisas mais convencionais, bibliográfi-
cas, e por outros meios.
Este livro tem, portanto, a intenção de oferecer ao mundo 
da pesquisa e aos praticantes da capoeira, uma visão panorâmi-
ca sobre várias áreas em que a pesquisa da capoeira tem alcança-
do resultados muito significativos.
As primeiras ideias sobre a elaboração deste livro surgi-
ram com a realização do Encontro de Pesquisa do Grupo de 
Capoeira Beribazu, realizado em Brasília, em agosto de 2014. 
Naquele evento, foi possível reunir dezenas de pessoas com-
prometidas com pesquisa da capoeira e interessadas em colocar 
suas ideias e experiências em discussão. Contando com mais de 
uma centena de debatedores e assistentes, passamos o dia refle-
tindo coletivamente sobre a capoeira nas mais diferentes óticas 
e experiências.
Chamou-me a atenção o fato de que, entre as exposições 
realizadas, muitos temas apresentavam inúmeras interfaces. En-
tretanto, os autores – que possuem fortes vínculos de amizade 
21
Capoeira: Perspectivas Contemporâneas
pessoal e convivência nas rodas de capoeira – não conheciam os 
trabalhos que cada um realizava em outros pontos do país ou 
até na mesma cidade. 
Havia a necessidade de construir pontes, colocar em con-
tato esses jovens cientistas, inteligentes e motivados, para que 
a capoeira e toda a comunidade interessada se beneficiassem 
dos diálogos que viriam a estabelecer. Essa foi a missão que me 
propus realizar.
Todos os participantes desse projeto são capoeiristas-
-pesquisadores. Devem ser assim denominados, e não pes-
quisadores-capoeiristas, porque todos já eram praticantes de 
capoeira antes de fazerem suas opções pela pesquisa acadê-
mica. O interesse pela investigação científica surge, portanto, 
em um ambiente de busca de conhecimento que a capoeira, 
na atualidade, proporciona aos seus participantes, como de-
monstramos anteriormente.
Este livro, então, é composto por textos que condensam 
trabalhos de conclusão de cursos em pós-graduação stricto sensu 
(mestrado ou doutorado) nas áreas de educação física, serviço 
social, geografia, psicologia, pedagogia, ciências da informação 
e artes cênicas.
Adotamos, como regra geral, o conceito de que o trabalho 
integrante do livro seria uma espécie de síntese da dissertação de 
mestrado ou tese de doutorado defendida pelo autor, reunindo 
as questões principais, os fundamentos teóricos, os métodos de 
trabalho e – como não poderia deixar de ser – as inquietações 
proporcionadas pelo trabalho investigativo. 
Dessa forma, por meio deste volume, o leitor consegue 
ter uma visão panorâmica dos debates atuais sobre a capoeira 
em diversas áreas do conhecimento acadêmico no campo das 
ciências humanas.
22
Capoeira: Perspectivas Contemporâneas
O livro está estruturado em três partes, abarcando diver-
sas áreas do conhecimento acadêmico no campo das ciências 
humanas. A Parte 1, que intitulamos Capoeira e Educação, reú-
ne dois textos: O valor educativo da capoeira: discussões e reflexões 
acerca do papel da capoeira no processo educativo, de Manoj Ge-
everghese, e As aulas de capoeira e a utilização das novas tecno-
logias da informação e comunicação – TIC, de Luciana Maria 
Fernandes Silva.
Os trabalhos que compõem essa parte se complementam: 
se Manoj Geeverghese desenvolve uma análise de cunho peda-
gógico e filosófico, com recurso às falas dos capoeiristas acerca 
do processo de ensino, Luciana Maria Silva lida com o impor-
tante tema do emprego das novas tecnologias no ambiente da 
capoeira.
Na Parte 2, estão reunidos três capítulos sobre o tema Ca-
poeira, Sociedade e Ações Governamentais. O texto de Fábio de 
Assis Gaspar, intitulado Reflexões sobre as ações do Estado bra-
sileira para a capoeira (2003-2010), abre a seção. Em seguida, 
temos o texto Os segmentos da capoeira e seus discursos sobre os 
desdobramentos do registro como Patrimônio Imaterial, de Igor 
Márcio Corrêa Fernandes da Cunha, e Territorialidade das rodas 
de capoeira em Brasília (Distrito Federal): espaço público, apro-
priação e direito ao uso, de Felipe do Couto Torres. 
Nessa parte do livro, agrupamos trabalhos que abordam 
as interfaces da capoeira com a ação estatal. As análises desen-
volvidas por Fábio Gaspar e Igor Márcio da Cunha estão cen-
tradas nos processos recentes de mobilização do Estado, nota-
damente o Governo Federal, acerca da capoeira no Brasil. São 
dois olhares sobre as iniciativas governamentais decorrentes do 
registro da capoeira como patrimônio cultural imaterial. Fábio 
Gaspar examina as dinâmicas no âmbito do Estado, em uma 
23
Capoeira: Perspectivas Contemporâneas
análise rica e detalhada, identificando tensões e contradições. Já 
Igor Márcio da Cunha procura mapear os discursos construídos 
pelos capoeiristas a partir do impacto de tais iniciativas em um 
estudo inovador e instigante. O trabalho de Felipe do Couto 
Torres completa a seção com um interessante estudo sobre a 
relação entre o espaço público urbano e a capoeira. Sua pes-
quisa teve como foco a análise a cidadania e a territorialidade. 
Nesse sentido, Felipe indaga: as rodas de rua da capoeira do DF 
podem ser consideradas parte de um projeto de resgate e forta-
lecimento da cidadania? Seu estudo busca respostas a partir de 
um referencial teórico denso e crítico.
A terceira e última parte do livro, denominada Capoeira 
e Temas Culturais, agrupa cinco trabalhos: Revista Praticando 
Capoeira: um dispositivo de regramento para o campo capoeirís-
tico, de Anderson de Freitas Silva; Ensaio sobre psicanálise e 
capoeira, de Antônio Carlos Nunes de Carvalho Júnior; Ca-
poeira e eficácia simbólica: apontamentos teóricos e aportes em-
píricos, de Reuel Marely; Aproximações entre capoeira e teatro 
na poética de um ator, de Mateus Schimith; e A capoeira para 
além da indústria cultural: itinerários possíveis, de Christian 
Muleka Mwewa.
Temos, aqui, a seção mais heterogênea do livro, com tra-
balhos que optamos por reunir em torno da questão cultural. 
O estudo de Anderson Silva aborda uma das mais importantes 
publicações impressas da época do boom das revistas sobre ca-
poeira nos anos 1990-2000. Por meio da análise do periódico 
escolhido, afirma o autor, é possível ler o momento vivido pela 
capoeira da época e identificar alguns dos principais atores e 
temas em discussão. Em seguida, temos o estudo de Antônio 
Carlos de Carvalho Júnior, que faz interessantíssimas conexões 
do universo cultural da capoeieragem com a psicanálise. 
24
Capoeira: Perspectivas Contemporâneas
Passa-se ao texto de Reuel Marely, que, buscando elemen-
tos de análise na teoria antropológica, apresenta reflexões semi-
nais sobre o tema da eficácia simbólica no âmbito da capoeira. 
Na sequência, o trabalho de Mateus Schimidt traz uma interes-
sante reflexão sobrea contribuição da capoeira para a formação 
do ator. Ele aborda o tema desde um ponto de vista pessoal, 
existencial, e destaca as inúmeras possibilidades abertas pela 
prática da capoeira no campo da formação do ator. 
Encerrando o livro, temos o capítulo elaborado por Chris-
tian Muleka Mwewa, que examina as complexas e interessantes 
relações do universo da capoeira com a indústria cultural. Para 
além das análises deterministas, que veem na sociedade admi-
nistrada o fim da criatividade, Muleka Mwewa busca as con-
tradições da modernidade e vê, na capoeira, uma possível fonte 
de contrapontos e de possibilidades de superação das cadeias da 
consciência.
Gostaria de agradecer aos autores que abraçaram o pro-
jeto e se dedicaram com afinco à preparação dos artigos. Ao 
Guilherme Pamplona, professor da Secretaria de Educação do 
DF e meu aluno de capoeira, meus agradecimentos pela cuida-
dosa revisão. Mais uma vez, demonstra sua gentileza e dispo-
sição para as iniciativas que valorizam a capoeira e a crítica da 
cultura. Meus agradecimentos, também, ao Luciano Holanda, 
também meu aluno e amigo, pelo belíssimo projeto gráfico. À 
Mariana Barroso Pereira Malta, agradeço a cessão da foto que 
utilizamos na capa.
Finalmente, agradeço aos professores e mestres de capoei-
ra José Luiz Falcão, Fábio Luiz Loureiro e Joergues Nery pelos 
textos que complementam e abrilhantam esse livro na quar-
ta capa, no prefácio e nas orelhas. São profissionais de grande 
competência e amigos que, de maneira incansável, trabalham 
25
Capoeira: Perspectivas Contemporâneas
para que a capoeira seja, cada vez mais, um ambiente cultural-
mente rico e de grande relevância pedagógica. 
Espero que a publicação desse volume estimule os debates 
sobre a nossa arte-luta que, neste ano de 2018, completa dez 
anos de seu registro como Patrimônio Cultural Imaterial. Se é 
preciso reconhecer as conquistas do passado, é necessário, tam-
bém, ter consciência de que há muito por fazer.
Desejo boa leitura a todos e todas!
Brasília, novembro de 2018.
27
 
Prefácio
Fabio Luiz Loureiro1
Temos que partir do fato da prioridade da pesquisa com 
a capoeira, prioridade em produzir conhecimento, sistema-
tizado, com método e crítica, ou seja, garantir as finalidades 
proclamadas pelas necessidades atuais da capoeira nas diversas 
áreas do conhecimento às quais está se relacionando. Isso fica 
bem claro na intenção do presente livro, coerência e contun-
dência afinadas no propósito de difundir com personalida-
de científica um trabalho qualificado para a comunidade da 
 capoeira e áreas afins. 
Ao estabelecer relação entre a prática da capoeira e a pro-
dução científica, temos claros, nos escritos que seguem, os obje-
tivos de discutir a formação integral da personalidade na prática 
da capoeira, o cuidado com a formação para o exercício da cida-
dania e a qualificação para o trabalho com capoeira, novas for-
mas, métodos e conteúdos como um saber necessário à prática 
docente na capoeira, o problema da incoerência e contradição 
1 Professor da Universidade Federal do Espírito Santo – CEFD/DD, 
Mestre de Capoeira do Grupo Beribazu.
28
Capoeira: Perspectivas Contemporâneas
entre o discurso e a prática estabelecida entre o poder governa-
mental, a capoeira e a sociedade nas políticas públicas e, por 
fim, a capoeira no campo da cultura, tema vasto que possibilita 
amplo debate de como a capoeira pode produzir, conservar e 
progredir seus valores intelectuais, suas ideais, nas ciências e nas 
artes, dos valores criados pela sociedade brasileira em seu pro-
cesso de práxis social e histórica.
Na atualidade, em que a capoeira faz parte da dinâmica 
evolutiva da sociedade - em particular, área do conhecimento 
científico, chegando à sua inserção em editais de pesquisas cien-
tíficas -, os praticantes de capoeira se transformam em sujeitos 
da produção cultural e intelectual, portanto, uma possibilidade 
de “resistência” ao confrontar e se afirmar nesse mundo que se 
moderniza. Julgo sua aproximação com a pesquisa inevitável, 
necessária e cuidadosa, longe da interpretação marcadamente 
nostálgica.
Nesse cenário, discutir temas sobre a capoeira pode con-
tribuir para sua afirmação imaterial, haja vista que discutir so-
bre educação, cultura, sociedade e políticas públicas imbrica-
dos com a capoeira fortalece a prática do ofício dos mestres e 
alimenta os debates sobre a roda de capoeira nos seus aspectos 
múltiplos.
A capoeira como método de educação deve assegurar a 
formação e o desenvolvimento físico, intelectual e moral dos 
capoeiras. Temos que exercitar a crítica, mas fazemos pouco. A 
pergunta é: em qual realidade ensinamos a capoeira? No con-
texto das relações sociais. Nesse caso, o ato de ensinar a capoeira 
é um ato político, e, para tal, é necessário discutir esse com-
plexo que é a capoeira com as diversas áreas e temáticas para 
que possamos balizar um caminho crítico para intervenção na 
sociedade.
29
Capoeira: Perspectivas Contemporâneas
Como conteúdo, a capoeira se apresenta complexa, com-
posta pelos nexos internos: movimentos em vários planos / o 
canto, palmas e instrumentos (berimbau / atabaque / pandeiro 
/ agogô / reco-reco / caxixi), com várias intensidades de ritmos 
/ jogo de capoeira / ritual / roda de capoeira / a história / a 
cultura / o fato social e político que a gerou, no espaço-tempo. 
Esse complexo é proporcional à necessidade de organização. A 
pesquisa, nesses contrários de riqueza e complexidade, tem pa-
pel fundamental em um debate que possa encaminhar ações 
práticas e teóricas contundentes.
A capoeira já foi transmitida e preservada de várias for-
mas. Pela oralidade, no “hálito”; pelas mãos, toque corporal na 
condução do gesto como um método; e, hoje, pelas presentes 
pesquisas, um saber necessário, denso, constituído e organiza-
do com experiências científicas significativas, que se juntam 
às formas tradicionais para formação humana e difusão do 
 conhecimento.
Assim, precisamos atuar com o pensamento da capoeira, 
e não a capoeira em si, isolada dos estudos existentes, pois ela 
se insere em vários campos de atuação, e reduzi-la seria deixar 
sua prática estritamente motriz, desvinculada da história, cul-
tura e política que a gerou, bem como sua vida cultural que 
ajudou o espírito de resistência e ardor no combate. Hoje a 
formação aprofundada é um dos caminhos para o professor 
/ mestre ser valorizado, ser culto, mas insistimos em formar 
professores em curto espaço e tempo na capoeira, deixando 
para trás várias etapas de avanço da cultura durante a forma-
ção – que tem a capoeira o compromisso com a identidade 
da cultura brasileira. Resultou, a presente obra, na criação de 
condições que permitam o aparecimento de novos conheci-
mentos para a capoeira que, certamente, impulsionarão os 
30
Capoeira: Perspectivas Contemporâneas
vários campos de atuação. Fica claro como os intelectuais e 
praticantes de capoeira cumprem sua responsabilidade com 
ela: rigor teórico, relevância social, prática e a crítica. Uma 
organização ímpar e inédita. Boas reflexões!
31
 
PARTE 1
CAPOEIRA E EDUCAÇÃO
33
 
O VALOR EDUCATIVO DA CAPOEIRA: 
DISCUSSÕES E REFLEXÕES 
ACERCA DO PAPEL DA CAPOEIRA 
NO PROCESSO EDUCATIVO
Manoj Geeverghese
1 INTRODUÇÃO
A crise da educação formal brasileira está fortalecendo um debate que há muito vem sendo travado no meio acadêmico: a obsolescência da escola e a necessidade 
de sua reinvenção ou, até mesmo, na opinião dos mais radicais, 
o fim da instituição escolar. Diversos educadores e pesquisa-
dores têm criticado a atuação da escola e revelado sua incapa-
cidade de realmente educar seus alunos para a sociedade con-
temporânea. Buscam, também, desmascarar a propaganda da 
escolarização, que atribui o sucesso da infância e da juventude 
à sua vida escolar. 
A sociedade escolarizada quer que todos pensem que o 
sucesso individual está unicamente vinculado à quantidade de 
anos passados em uma instituição formal de ensino. Quantomais tempo um indivíduo ficar na escola, maior será sua for-
mação e, consequentemente, maior será seu sucesso. Por outro 
34
Capoeira: Perspectivas Contemporâneas
lado, quanto menos tempo esse mesmo indivíduo permanecer 
no ensino formal, menor será sua possibilidade de sucesso na 
vida em sociedade.
Cabe aqui também uma reflexão sobre o fato de que a so-
ciedade escolarizada tende a considerar como “sucesso” apenas a 
realização profissional, ou seja, um trabalho que confira status e 
que pague um bom salário. Existe um ranking social implícito 
que separa as profissões em classes, e da mesma forma coloca as 
pessoas nessas classes. A sociedade é ensinada a acreditar que al-
guém que trabalhe como médico ou juiz é um indivíduo superior 
a outro que trabalhe com limpeza urbana ou como jardineiro.
A capoeira, por outro lado, evidencia outra forma de or-
ganização social e de lidar com os indivíduos e suas relações. 
Essa manifestação cultural brasileira, nos seus rituais, na sua 
tradição, na sua ação, possibilita o desenvolvimento de diversos 
valores que podem trazer um novo paradigma organizacional e 
relacional para a sociedade contemporânea, para a escola e para 
a educação formal e informal de um modo geral.
Tendo em vista o valor educativo que a capoeira possui, e 
a discussão já levantada acerca dessa questão na dissertação de 
mestrado defendida em 2013 na Universidade de Brasília inti-
tulada O valor educativo da capoeira, o presente artigo tem 
como objetivo retomar esse debate.
2 CAPOEIRA E EDUCAÇÃO
O primeiro aspecto considerado essencial para se entender 
a capoeira e o seu valor é a sua diversidade. Existem tantas capo-
eiras quanto praticantes, ou seja, cada um se desenvolve como 
capoeirista de uma maneira particular, e ao mesmo tempo sua 
capoeira se desenvolve conforme a sua individualidade. Consi-
35
Capoeira: Perspectivas Contemporâneas
derando a roda como um espaço de encontro entre todas essas 
formas de capoeiragem, ela só se torna possível se houver um 
diálogo pautado no respeito às diferenças. Nesse aspecto, a ar-
te-luta brasileira se aproxima da realidade da sociedade em que 
todos possuem sua individualidade, mas com uma diferença 
fundamental explicitada por Silva (2007, p.13):
Na contemporânea realidade de instrumentalização ra-
dical da vida e de redução das possibilidades de aconte-
cimento da relação EU-TU, pela expansão de contextos 
institucionais que pretendem esconder a face humana 
por detrás de cargos, funções, status social, renda, entre 
outros atributos, aquelas instituições, que permitem o 
desnudamento da face, o encontro com a alteridade, 
podem ser consideradas de resistência. A capoeira, por 
suas características, pode, contemporaneamente, repre-
sentar esse modo específico de resistência. Pode funcio-
nar como uma ferramenta convivencial (Illich, 1981), 
permitindo não somente a manutenção dos patrimô-
nios culturais e históricos que guarda, mas também a 
criação de manutenção de patrimônios relacionais, im-
portantes para o exercício e o aprendizado ético.
Na roda de capoeira, todos são identificados como capo-
eiristas. Ao colocar o abadá, não existem mais doutores e anal-
fabetos, pois todos são jogadores. Na hora do jogo, as diferenças 
são confrontadas e criam-se condições para o diálogo. Este é 
outro aspecto fundamental da capoeira: ela é uma linguagem e, 
“como linguagem, pode ser dialógica, e converter-se num diálo-
go corpóreo, em que o corpo é, a um só tempo, boca e ouvidos, 
e o movimento é feito palavra” (SILVA, 2007, p.13). A organi-
zação da roda possibilita e até incentiva a interação. Todos os 
participantes se voltam para o centro construindo o círculo, a 
arena com espaço limitado onde dois capoeiristas realizam suas 
36
Capoeira: Perspectivas Contemporâneas
evoluções. A roda de capoeira possibilita um diálogo corporal 
em que os dois jogadores buscam realizar suas movimentações 
como um jogo de perguntas e respostas. Uma conversa como 
essa pode se estabelecer de diversas formas diferentes. Ela pode 
ser uma discussão acalorada, ou uma conversa amena; da mes-
ma forma, ambos podem estar em sintonia e o diálogo fluir 
muito bem, ou podem se desentender e a conversa sair trunca-
da, e, inclusive, pode acontecer de cada um ir para o seu lado e 
o diálogo não acontecer. Para Silva (2007, p.15): 
a roda de capoeira é o local propício para o aconteci-
mento do diálogo, mas isso irá depender das pessoas 
que a formam, do ambiente em que estão inseridas e, 
principalmente, de sua vontade de instaurar, no jogo 
de capoeira, uma realidade dialógica.
Dentre as linguagens específicas da arte-luta brasileira, a 
mandinga é uma das mais características. Sendo uma disputa de 
perguntas e respostas, muitas vezes o jogo se desenrola de modo 
que cada jogador busca deixar seu companheiro sem respostas 
para as suas perguntas. “A mandinga, na capoeira, pode ser en-
tendida como a maliciosa capacidade de dissimular, de esconder 
as verdadeiras intenções do jogador” (SILVA, 2007, p.14). O ca-
poeirista mandingueiro é aquele que não se deixa encontrar no 
jogo, movimenta-se, finta, floreia, para na hora certa, sem que 
seu oponente perceba, desferir o golpe certeiro. Essa habilidade 
na capoeira é tão valorizada, que para muitos ela ganha ares mís-
ticos. Os mais habilidosos, como Besouro Mangangá, tornam-se 
lendas, e suas histórias afirmam que ele era capaz de se transfor-
mar em um besouro e voar para escapar de seus perseguidores.
Essas habilidades valorizadas pelos capoeiristas são outros 
exemplos de valores que a capoeiragem traz. Segundo um dos 
mestres entrevistados, por ocasião da pesquisa, a capoeira “é 
como se fosse um resumo da cultura brasileira”. Portanto, cada 
37
Capoeira: Perspectivas Contemporâneas
um destes aspectos da arte-luta brasileira também reflete aspec-
tos da própria cultura brasileira e o capoeirista é incentivado a 
adentrar nesse universo.
Outros aspectos, presentes na atividade da capoeira, apon-
tados por Silva (2007) são a liberdade e a responsabilidade. que 
serão aqui abordados em conjunto, visto que se complementam. 
“A liberdade do jogo da capoeira funda-se não no princípio da 
autonomia do sujeito, mas no da heteronomia da relação entre 
dois. É a liberdade difícil (BARTHOLO, 2003), isenta de arbi-
trariedade e plena de responsabilidade” (SILVA, 2007, p.14). A 
autora a considera como difícil porque, para ser praticada, não 
basta que um indivíduo seja autônomo, mas deve se estabelecer 
uma relação entre dois sujeitos. Um deles, assumindo a responsa-
bilidade da relação entre os dois, exerce sua liberdade respeitando 
e possibilitando que o outro também pratique a sua liberdade.
A capoeira, de acordo com Silva (2007), ainda se manifes-
ta como uma força de resistência. A autora aponta inclusive que 
esse discurso é um dos mais explorados ao se falar dela. A ca-
poeira surgiu em um momento de marginalização de uma par-
cela muito grande da população, quando boa parte dos negros 
eram escravos, e o restante, que havia conquistado sua liberda-
de, continuava marginalizado e discriminado. A resistência da 
população negra contra o sistema deu-se de uma forma muito 
peculiar, através da negociação. “A mandinga, o pseudomorfis-
mo, reflete esse modo de se relacionar com o mundo: ser, mas 
não ser; ser inimigo, mas amigo íntimo; sorrir, mas bater; servir, 
mas rebelar-se” (SILVA, 2007, p.16). Ou seja, o negro – tanto 
o escravo quanto o liberto – utilizava-se de métodos furtivos 
de resistência. O confronto direto não foi o centro da luta por 
afirmação da população marginalizada. O capoeira sabia muito 
bem esconder as suas intenções. Por detrás da aparente passi-
vidade na negociação com seu senhor por melhores condições 
38
Capoeira: Perspectivas Contemporâneas
de trabalho e de vida, o escravo criava as condições necessárias 
para, segundo a autora, reduzir a força dos donos de escravos.
Portanto, a capoeira surge em um contexto histórico de 
resistência, de luta do negrocontra a sua realidade escrava, em 
busca de melhores condições de vida. Naquela realidade social, 
assim como na atualidade, a capoeira também se apresenta como 
uma força de preservação da alteridade. “Por permitir a existên-
cia como pessoas daqueles que eram vistos somente como força 
de trabalho, funcionava como espaço de sentido de suas vidas, 
sentido esse alheio ao degradante papel social que lhes cabia na 
sociedade brasileira” (SILVA, 2007, p.17). A capoeira é um es-
paço diferenciado, já que, apesar de estar inserida na sociedade, 
suas normas de conduta e tradição são únicas. É um lugar onde 
o capoeirista pode se despir de todos os rótulos que lhe são im-
postos e, em condição de igualdade com seus camaradas, praticar 
a capoeira. Silva (2007, p.19) finaliza seu texto afirmando que 
a capoeira “não é importante somente para ela mesma ou para 
a cultura brasileira; é importante para nossas vidas”. Tal impor-
tância atribuída à capoeira, não só pela autora, mas por diversos 
capoeiristas mundo afora, denota o seu valor, que é percebido por 
cada indivíduo no dia a dia da prática dessa arte-luta brasileira.
Buscando compreender melhor a capoeira busquei na sua 
história a construção dos valores atribuídos à sua prática. Essa 
história está muito bem documentada por diversos autores que 
se dispuseram a catalogar e ordenar os registros sobre a capoeira. 
O primeiro capítulo da minha dissertação de mestrado busca 
trazer de forma resumida essa história da capoeira, dialogan-
do com autores como Antonio Liberac Cardoso Simões Pires 
(2001) e Carlos Eugênio Líbano Soares (1993, 1998). A partir 
desse resumo, foi feita uma análise de um aspecto pouco traba-
lhado na historiografia da capoeira: como ela era transmitida, 
ensinada de mestre para discípulo em prol da perpetuação da ca-
39
Capoeira: Perspectivas Contemporâneas
poeiragem. Um ponto levantado e que vejo como fundamental 
é o fato de que o termo “capoeira” na verdade não descrevia uma 
modalidade específica de prática cultural ou marcial. Era um 
nome genérico que descrevia quaisquer exercícios de agilidade 
e destreza corporal, com a utilização de pontapés e cabeçadas 
que, na grande maioria das vezes, estavam também ligados à 
perturbação da ordem social. Portanto, pode-se dizer que exis-
tiam várias capoeiras, não havendo um jeito certo ou errado de 
jogar. Dessa forma os mais habilidosos, que se destacassem mais 
no jogo, acabavam por se tornar referências, inclusive sendo as-
sediados por aqueles que gostariam de aprender suas mandingas. 
Mestre Canjiquinha, que foi aluno de Aberrê, conta como 
se iniciou na capoeira:
Então eu ficava só olhando
Aí ele disse assim:
- Ô meu filho venha cá! Você quer aprender?
Eu disse:
- Quero.
Ele mandou abaixar. Quando eu abaixei, aí eu vi o pé.
Eu pulei,
Aí ele disse:
- Ô meu filho, a partir de hoje eu vou lhe ensinar 
 (Depoimento de Mestre Canjiquinha apud ABIB, 
2004, p. 122). 
Nesse depoimento, Mestre Canjiquinha revela como a 
capoeira era ensinada pelos mais antigos. Naquela época não 
 havia método de ensino da capoeira, tampouco um espaço 
determinado para isso. O lugar da capoeiragem era a rua. O 
iniciante aprendia capoeira nas situações reais da “vadiagem”, 
sendo que a roda de capoeira era o principal desses espaços. 
40
Capoeira: Perspectivas Contemporâneas
Segundo Abib (2004), “a capoeira se aprendia de ‘oitiva’, 
ou seja, sem método ou pedagogia”. O aprendiz entrava na roda 
e vivenciava a capoeira, recebendo conselhos do seu mestre, as-
sim como dos demais, observava como os outros jogavam e, 
dessa forma, ia moldando o seu próprio estilo de vadiar. Para 
iniciar seu discípulo, “o mestre geralmente pegava nas mãos do 
aluno para ‘dar uma volta’ com ele, dar os primeiros passos” 
(ABIB, 2004, p.123), ou seja, o professor entrava na roda junto 
com seu aprendiz e, no próprio jogo, o mestre dava os primei-
ros ensinamentos ao seu discípulo. A partir daí, o novato era 
considerado um capoeirista, e deveria buscar se aperfeiçoar com 
as experiências que seu mestre lhe proporcionasse.
Os Mestres Bimba e Pastinha, são conhecidos por trans-
formar a prática da capoeira. A partir deles surgiu um novo 
espaço formal de ensino e aprendizagem da capoeira, a "acade-
mia". Nesse novo espaço, o mestre se aproximava de seu discí-
pulo e com seu toque, seu hálito, transmitia seus conhecimen-
tos. Essa proximidade que leva o mestre a iniciar seu discípulo 
puxando-o pela mão é outro aspecto fundamental da forma 
como a capoeira era ensinada antigamente. Além da roda, nos 
espaços públicos, a capoeira também podia ser ensinada indi-
vidualmente, em um espaço privado. Nesses locais o professor 
ensinava ao seu aluno os fundamentos da sua capoeira, mostra-
va onde colocar o pé, como reagir em cada situação, quando 
lutar e quando fugir, suas crenças, valores e tradições.
Abib (2004, p.124) cita o depoimento do Mestre Cobra 
Mansa, que trata especificamente dessa questão: 
O mais importante nessa tradição é o hálito, é o que 
você tá passando... a sua alma que você tá transmitin-
do. Então você não está transmitindo somente a sua 
palavra, mas o hálito... a alma... então quando você re-
41
Capoeira: Perspectivas Contemporâneas
cebe aquilo, você tá recebendo uma tradição de muitos 
e muitos antepassados.
Ao transmitir o seu hálito para seu discípulo o mestre pas-
sa muito mais que a movimentação da capoeira, ele transmite 
sua própria vida. Entre os dois se estabelece uma relação única 
e irrepetível, ambos são afetados imediatamente naquele instan-
te em que o hálito do mestre é transmitido ao aprendiz. Esta 
relação que se estabelece entre os dois capoeiristas, acima de 
qualquer método, forma ou didática de ensino, é a verdadeira 
essência da transmissão e perpetuação da capoeira.
Com a popularização da capoeira e o surgimento dos 
grandes grupos, em meados da década de 1960, se evidencia 
uma nova forma de transmissão da capoeira. Muitos passam a 
querer aprender a arte-luta brasileira e os treinos ficam cada vez 
mais lotados. 
Diante dessa nova realidade, muitos professores têm tan-
tos alunos em seu treino, que sua voz não é capaz de alcançar 
a todos. Eles passam a se utilizar do microfone para que todos 
possam escutar o que está dizendo. Aparentemente, essa forma 
de ensinar é boa, pois alcança mais pessoas. Ao invés de poucos 
discípulos, o mestre pode ter dezenas deles, e a sua voz am-
plificada chegará a todos eles. Essa é definitivamente uma das 
vantagens, mas também há outras questões. De fato, a palavra 
do professor chega a todos por meio das caixas de som, mas seu 
toque e seu “hálito” não conseguem chegar tão longe.
Com a popularização do ensino da capoeira, a relação 
mestre-discípulo se modifica. O ensino deixa, de um modo 
 geral, a proximidade do hálito e passa para a distância do mi-
crofone. Mas, as formas de ensinar dos grandes mestres do pas-
sado ainda persistem na realidade contemporânea. Os mestres, 
assim como os discípulos, se adaptam e estabelecem uma nova 
42
Capoeira: Perspectivas Contemporâneas
forma de se relacionar, não pior, nem melhor que a anterior, 
mas diferente. Quem é esse mestre? Quem é esse discípulo? E 
como acontece a relação entre eles? Essas são as questões que 
serão aprofundadas adiante.
Respondendo a primeira pergunta citada, o título de mes-
tre de capoeira não é dado a qualquer um, pois carrega consigo 
todo o peso da tradição da capoeiragem, e aquele que é cha-
mado de mestre deve ser capaz de suportar o peso de ser um 
defensor e transmissor da arte da capoeira na sua comunidade. 
O mestre faz parte da história do seu grupo, aprende com outro 
mestre, convive com os outros capoeiras do grupo, faz amiza-
des, troca experiências, vivencia, ou seja, ele vive a capoeira e 
se permite afetar e transformar profundamente por ela. Dessa 
forma, de tanto vivenciar a capoeira, o capoeirista passa a ser 
capaz de edificá-la. Tendo essa capacidade edificante percebida 
pela comunidade, ele é reconhecido como alguém que vaialém 
de jogar capoeira, cantar ou tocar instrumentos, sendo tam-
bém alguém que faz a capoeira acontecer, não apenas como um 
momento de roda ou treino, mas como cultura, como vivência 
para todos os envolvidos. Esse reconhecimento leva natural-
mente à consagração do capoeirista como mestre de capoeira. 
O novo mestre entra para um seleto grupo de indivídu-
os, passando a ser visto por todos os outros como um sábio, 
alguém que conhece profundamente seu ofício. O mestre de 
capoeira é uma pessoa que inspira respeito e admiração da parte 
de seus alunos e de outros capoeiristas.
Outro aspecto fundamental do mestre de capoeira é a li-
derança que este exerce diante de todo o seu grupo. Ele é um 
líder, cujas palavras e ações têm relevância, tanto para seus alu-
nos quanto para todos os capoeiristas de seu grupo. Tratando 
do papel do líder, Reis diz que “Em geral, líderes mantêm a 
coesão do grupo e trazem à tona regras especiais para engaja-
43
Capoeira: Perspectivas Contemporâneas
mento e pertencimento, estabelecem rituais de iniciação para 
novos membros, entre outros”(2006, p.40). Em outro trecho, 
concordando com Ling, Reis (2006, p.40-41) estabelece quatro 
fatores para a liderança: moralidade pessoal, eficiência nas me-
tas, competência interpessoal e versatilidade.
O mestre de capoeira, enquanto líder, é o responsável 
pela unidade do grupo; sua percepção da capoeira, sua forma 
de entrar na roda, sua concepção do ritual e das tradições são 
absorvidas pelos demais capoeiristas e tomadas como regra de 
conduta. Sabendo disso, é necessário àquele que assume a fren-
te do grupo uma postura ética, condizente com os valores que 
busca transmitir aos demais. O mestre de capoeira assume uma 
posição de destaque diante de todos. Suas ações estão sempre 
em evidência. Ele se torna uma pessoa pública, capaz de in-
fluenciar os demais, seja para o bem, seja para o mal. Tudo isso 
passa pelo fator da moralidade pessoal. O líder também pre-
cisa ser eficiente, saber estabelecer metas viáveis para o grupo 
e alcançá-las junto com os demais, com o mínimo de desvios 
possível. Ninguém irá querer seguir uma pessoa que não saiba 
aonde quer chegar, ou que mude de objetivos a cada semana 
sem nunca alcançar nenhum deles. Outro dos fatores, citado 
por Reis (2006), é a competência interpessoal. Nenhum dos 
fatores anteriores é aplicável ao grupo se o mestre não souber se 
relacionar com seus pares, sejam eles outros professores e mes-
tres ou seus discípulos. Por fim, se espera naturalmente de um 
líder que ele tenha versatilidade de lidar com as possíveis adver-
sidades que possam surgir na vivência comunitária.
O mestre deve ser como um guia para os seus discípulos, 
aquela pessoa que conhece a comunidade, que conhece suas 
histórias, seus costumes e está disposta a ensinar a quem tiver 
interesse tudo aquilo que um dia aprendeu, sozinho ou com o 
auxílio do seu mestre. Para aquele que é considerado mestre de 
44
Capoeira: Perspectivas Contemporâneas
capoeira, não basta apenas possuir o conhecimento; ele precisa 
ter a vontade de transmitir o que sabe.
Ao discípulo, cabe outro papel fundamental. Não é o 
mestre que vai atrás dos discípulos, e sim os discípulos que vão 
atrás do mestre. Não cabe ao mestre dizer qual o objetivo final – 
este deve partir da vontade do aluno. Deve partir do discípulo a 
necessidade de alcançar um objetivo, ele é quem decide que, se 
tiver alguém para orientá-lo, poderá alcançar seu objetivo mais 
facilmente. Então, procura um mestre para guiá-lo no caminho 
que escolheu trilhar. Sendo procurado, o mestre decide se quer 
e se está apto a orientar o candidato a discípulo. Se for da von-
tade do mestre orientar o aluno, as duas vontades – do aluno 
de aprender e do mestre de ensinar – se encontram e, nesse 
encontro, se inicia a relação mestre-discípulo.
O vocábulo “discípulo” traz na sua etimologia o papel de 
quem assume essa denominação. Há duas origens possíveis da 
palavra discípulo. A primeira vem “do latim hispânico ‘discipe-
re’ com o significado de ‘aprender pela mente’” (MARTINS, 
2005, p.34), e a segunda da palavra ‘discipulus’ “do verbo dís-
cere, significando ‘aprender’ ou ‘receber o ensino de alguém’” 
(MARTINS, 2005, p.34). Já o vocábulo ‘aluno’ provém do la-
tim “alumnus”. “Cunha (1982) dá a aluno a acepção de aquele 
que recebe instrução e/ou educação. Houaiss reconhece, tam-
bém, que o vocábulo é originário do latim e significava ‘criança 
de peito, lactente... ’” (MARTINS, 2005, p.34).
Considerando essas definições, o aluno ou discípulo é 
aquela pessoa que recebe de seu professor ou mestre um en-
sinamento. Vejamos a criança de peito ‘alumnus’: ela tem ne-
cessidade de se alimentar para se desenvolver, e nos primeiros 
meses de sua vida, a maior parte de sua alimentação provém do 
leite materno. Quando a criança está com fome, ela chora para 
45
Capoeira: Perspectivas Contemporâneas
chamar a atenção da mãe. Esta, por sua vez, querendo acalmar 
seu filho, busca descobrir o que há de errado; concluindo que 
o neném está com fome, oferece-lhe o peito. A criança então 
tem o trabalho de sugar o peito da mãe para fazer com que 
o leite saia. Não é uma tarefa fácil para uma criança que ain-
da está descobrindo como utilizar seu corpo, mas a fome faz 
com que ela se esforce e consiga se alimentar. Por outro lado, 
se a criança não estiver com fome, mesmo que a mãe ofereça 
o peito, a criança não o sugará, não importando o esforço que 
esta faça para alimentar seu filho. Assim como acontece com 
a alimentação de uma criança de peito querendo se alimentar, 
também o aluno busca o conhecimento. Desde os primeiros 
anos de vida, a criança já busca aprender coisas novas que lhe 
pareçam necessárias. Primeiro ela quer andar para ter autono-
mia de locomoção, poder ir onde seus pais estão indo, sem deles 
depender. Também na mesma época, ela quer aprender a falar, 
para poder se comunicar. Algum tempo depois, ela descobre as 
letras e quer aprendê-las para poder ler e escrever, compreender 
por si as histórias que seus pais liam enquanto lhe mostravam 
as figuras. Assim, as necessidades e as vontades vão surgindo e 
a criança procura um meio de aprender aquele conhecimento 
que ela deseja.
3 A CAPOEIRA E O PROCESSO EDUCATIVO
Essa questão de ensino e aprendizagem é fundamental 
para que se compreenda a visão aqui retratada do processo 
 educativo da capoeira. De fato, o espaço da capoeira é bastante 
diverso, abrigando práticas educativas das mais embrutecedoras 
às mais emancipadoras. Sendo assim, a visão de capoeira que 
aqui coloco retrata apenas um recorte da realidade. 
46
Capoeira: Perspectivas Contemporâneas
Na minha vivência de capoeira e na perspectiva dos mes-
tres entrevistados para a pesquisa, pude perceber que aquele 
que busca aprender a capoeira deve se emancipar para se tornar 
verdadeiramente um capoeira. O treino, como se organiza, não 
permite que o mestre ensine tudo que a capoeira pode oferecer 
ao seu aluno. O professor deve deixar oportunidades para que 
ele corra atrás do conhecimento, não só no horário de treino, 
mas também fora dele. No horário da aula, o mestre guia a mo-
vimentação, enquanto todos repetem o que ele está orientando. 
Cabe ao aluno repetir cada movimento e buscar entender no 
seu corpo como se executa tal movimento, que músculos de-
vem ser acionados, qual a postura que deve manter para não 
desequilibrar, de onde deve sair a força da movimentação para 
que ela aconteça de forma mais orgânica. Nada disso o mestre 
consegue explicar. Ele pode orientar detalhes de movimenta-
ção, como posição do pé, se deve ficar mais aberto ou mais 
fechado, se deve ser paralelo ou cruzado, posição da coluna, 
que deve seguir a linha da perna durante a ginga, braços sempre 
protegendo o rosto, entre outros detalhes visíveis que podem 
ser foco da orientação do professor. Mas ainda cabe apenas ao 
capoeirista analisar com a sua inteligência todas as orientações 
e adaptá-las à sua realidade corporal. Cada corpo é diferente– um é mais magro, outro é mais alto, um terceiro tem mais 
flexibilidade – logo não se pode esperar que todos executem a 
mesma movimentação da mesma forma.
Não existe explicação do mestre que seja capaz de reduzir o 
esforço necessário do aluno para que compreenda e execute com 
fluidez qualquer movimento da capoeira. Segundo Rancière: 
As explicações, depois que se iniciou a era do progres-
so, não cessam de se aperfeiçoar para melhor explicar, 
melhor fazer compreender, melhor ensinar a aprender, 
47
Capoeira: Perspectivas Contemporâneas
sem que jamais possa se verificar um aperfeiçoamento 
correspondente na dita compreensão(2010, p.23).
O fracasso da evolução das explicações na melhoria da 
compreensão é uma prova irrefutável do fato de que o aprendiza-
do do aluno não está única e diretamente relacionado ao ensino 
do professor. “O aluno deve ver tudo por ele mesmo, comparar 
incessantemente e sempre responder à tríplice questão: o que vês? 
O que pensas disso? O que fazes com isso?” (RANCIÈRE, 2010, 
p. 44). A primeira questão colocada pelo autor explicita o fato 
de que o aluno emancipado deve sempre estar atento ao que está 
à sua volta para que possa descrever tudo o que vê. Na segunda 
questão, tendo descrito tudo o quanto sua vista alcança, o aluno 
deve ser capaz de pensar a respeito, elaborar hipóteses, fazer as-
sociações com o que já conhece, sem a obrigação de encontrar 
prontamente a verdade, mas simplesmente de pensar alguma coi-
sa a respeito do que viu. Por fim, ele se pergunta: “O que faço 
com isso?” Nesse contexto, "isso" não é apenas o que ele tenha 
visto e analisado, mas também o próprio conhecimento que ad-
quiriu a partir de todo seu pensamento. Tendo passado por essas 
três etapas, o aluno emancipado certamente chegará a um conhe-
cimento novo. Segundo Rancière: 
Quem busca, sempre encontra. Não encontra necessa-
riamente aquilo que buscava, menos ainda aquilo que 
é preciso encontrar. Mas encontra alguma coisa nova, 
a relacionar à coisa que já conhece. O essencial é essa 
contínua vigilância... (2010, p. 57). 
Tendo compreendido separadamente as figuras do mestre 
e do discípulo, é preciso entender como acontece a relação entre 
os dois, pois ambos não podem existir separadamente. Ou seja, 
não existe mestre sem discípulo, da mesma forma que não existe 
discípulo sem mestre. Ambos só podem existir em relação que, 
48
Capoeira: Perspectivas Contemporâneas
para Buber, se manifesta nas palavras princípio “EU-TU” e “EU-
-ISSO”. “As palavras-princípio não expressam algo que pudesse 
existir fora delas, mas uma vez proferidas elas fundamentam uma 
existência” (BUBER, 2001, p.03). O autor coloca que não se 
pode separar os indivíduos que se encontram nas palavras-prin-
cípio, pois elas não são a soma de um “EU” com um “ISSO” ou 
um “TU”, elas formam uma existência completa e indivisível no 
espaço da relação. Tanto o “EU” quanto o “TU”, ao formarem 
a palavra princípio “EU-TU”, estão abertos à atuação transfor-
madora do outro. O verdadeiro mestre não ensina apenas, as-
sim como o discípulo não aprende somente – ambos ensinam e 
aprendem um com o outro e se formam na relação. Ou seja, o 
discípulo não é tão inferior que não seja capaz de ensinar nada e o 
mestre não é tão superior que seja incapaz de aprender algo novo.
A relação “EU-TU”, proposta por Buber (2001), deve ser 
horizontal. O mestre não deve ser superior a ninguém: ele é 
a referência de conhecimento em uma prática, alguém que é 
respeitado naquele meio, mas que não deve assumir um status 
divino por conta do seu saber. Uma música da capoeira retrata 
bem essa questão: “Sou discípulo que aprende, sou mestre que 
dou lição...”. Um capoeira é sempre capaz de ensinar algo, ao 
mesmo tempo em que nunca deixa de aprender.
“A relação com o TU é imediata”(BUBER, 2001, p.13). 
Não há barreiras ou meios que separem o EU do TU, há apenas 
a relação. Não existem conceitos ou métodos que possam me-
diar a ligação que acontece entre essas duas pessoas.
Outro aspecto fundamental do EU-TU é a presença, ou 
seja, “o instante atual e plenamente presente” (BUBER, 2001, 
p. 20), instante esse que para a relação não passa, mas se pere-
niza enquanto durar a relação. “Somente na medida em que o 
TU se torna presente a presença se instaura” (BUBER, 2001, 
49
Capoeira: Perspectivas Contemporâneas
p.20). Para aqueles que dizem a palavra princípio EU-TU, não 
existe passado ou futuro, apenas um presente que se atualiza a 
cada instante.
Buber (2001) chama essa forma de relação de vínculo es-
piritual e a compara com o que ele denomina vínculo natural 
puro, que é a vida pré-natal das crianças, o momento em que 
elas ainda estão no ventre materno. Para a criança, a vida in-
trauterina é simbiose, pois ela não consegue se distinguir de sua 
mãe. Não se consegue determinar onde começa a vida de um e 
onde termina a vida do outro.
De forma semelhante, a criança recém-nascida é arran-
cada do seu vínculo natural e exposta a um universo estranho 
que com ela não possui qualquer relação. A partir desse mo-
mento ela “tem um prazo para substituir a ligação natural, que 
a unia ao universo, por uma ligação espiritual, isto é, a rela-
ção” (BUBER, 2001, p.29). Nesse sentido, se agregam todas 
as necessidades anteriormente colocadas para que se estabeleça 
a verdadeira relação EU-TU, que deve ser imediata, presente, 
recíproca, total e indivisível. O mestre de capoeira e o seu dis-
cípulo também podem estabelecer uma relação que pode ser 
comparada com o que descreve a palavra-princípio “EU-TU”.
Segundo mestre Moraes, em seu depoimento, o toque, 
na “pedagogia do africano”, é fundamental. “Ele toca 
o aluno para passar o sentimento... ele não toca unica-
mente para consertar o movimento... ele passa muito 
mais a vontade de ver o aluno aprendendo, do que en-
sinar o movimento correto”. Essa forma tradicional de 
ensinar passa pela proximidade que deve existir entre 
o mestre e o aprendiz. Uma proximidade corporal em 
que o afeto, a atenção e a disponibilidade do mestre se 
mostram integralmente (ABIB, 2004, p. 124). 
50
Capoeira: Perspectivas Contemporâneas
Mestre Moraes nos fala da “pedagogia do africano”, que 
se diferencia das formas ocidentais tradicionais de ensinar. O 
toque, como já vimos, é essencial, não apenas como forma de 
corrigir o movimento do discípulo, mas como meio de trans-
missão de sentimento. O ato de tocar o aluno aproxima os dois 
de tal modo que, muito mais do que o conhecimento, o mestre 
passa afeto e a sua vontade de ver o aprendiz se desenvolvendo.
Por outro lado, o toque não acontece de forma unilateral. 
Ao mesmo tempo em que é tocado, o discípulo toca o seu men-
tor, não só recebendo os sentimentos dele, mas também trans-
mitindo os seus próprios. Desse modo, o toque se estabelece 
como um canal aberto de relação, o espaço imediato e fecundo 
do EU-TU.
A sociedade individualista na qual vivemos hoje dificil-
mente cria possibilidades de relação verdadeira e profunda en-
tre os indivíduos. A sociedade não enxerga a pessoa, apenas a 
função que ela exerce naquele determinado momento: vende-
dor, consumidor, médico, paciente, advogado, cliente, profes-
sor, aluno, patrão, empregado, entre várias outras.
Contudo, há espaços dentro da sociedade onde ainda é 
possível vivenciar a palavra princípio EU-TU. A verdadeira re-
lação mestre-discípulo é um destes espaços e a capoeira possui as 
condições de possibilidade para que ela se manifeste plenamente. 
Estes locais são o que Buber chama de comunidade, em oposição 
à sociedade. “A comunidade é a expressão e o desenvolvimen-
to da vontade original, naturalmente homogênea, portadora de 
vínculo, representando a totalidade do homem [...]” (BUBER, 
2008, p.50), enquanto que “[...] a sociedade é a expressão do 
desejo diferenciado em tirar vantagens, gerado por pensamento 
isolado da totalidade” (IDEM). A primeira é o lugar da relação, 
enquanto a segunda permite apenas a experiência. Na comunida-
51
Capoeira: Perspectivas Contemporâneasde, os indivíduos se constituem em vínculo interpessoal, forman-
do um organismo que sobrevive de forma harmônica, onde todas 
as partes envolvidas têm a possibilidade de se beneficiar da vida 
comunitária e de colaborar com o grupo. De fato, a comunidade 
primitiva que existia antes de se tornar sociedade, se formou à 
medida que os homens, ainda sem consciência, de si, se juntaram 
em prol da sobrevivência do grupo. O homem percebe no grupo 
possibilidades de desenvolvimento que, sozinho, seria incapaz de 
alcançar. Ele assume a sua incapacidade e se submete voluntaria-
mente à coletividade. Mas, com a evolução dos agrupamentos 
humanos, segundo Buber, “passamos pela era do individualismo, 
pela separação da pessoa de sua interdependência natural”. O ho-
mem toma consciência da sua individualidade, percebe que não 
é mais um em meio a vários iguais, mas um ser único em meio 
a uma diversidade de seres. A partir daí, o indivíduo não mais se 
submete ao coletivo, mas espera que possa submetê-lo à sua von-
tade – eis que surge a sociedade. O autor reconhece essa evolução 
da comunidade primitiva para a sociedade e afirma que “sem dú-
vida, não podemos voltar a uma etapa anterior à sociedade meca-
nizada, mas podemos ir além dela para uma nova organicidade” 
(BUBER, 2008, p. 52). 
A consciência da individualidade não permite ao in-
divíduo abrir mão da sua vontade e retornar à organicidade 
 original. A comunidade primitiva só poderia existir em um 
estágio anterior de desenvolvimento, no qual o homem ainda 
não percebia as suas próprias vontades como superiores à cole-
tividade. A partir do momento em que o homem estabeleceu 
o direito à propriedade privada, se iniciou um caminho sem 
volta rumo à consolidação da sociedade. Buber (2008), no en-
tanto, demonstra otimismo ao considerar a possibilidade de se 
alcançar uma nova comunidade, “preparar o caminho de uma 
nova organização social, em que o princípio a partir do qual 
52
Capoeira: Perspectivas Contemporâneas
tal crescimento surgiu retorna à atividade consciente” (p.52). A 
nova comunidade “não se baseia sobre um estar-com estático, 
mas dinâmico; não sobre homens semelhantes, feitos, formados 
e ordenados de modo semelhante, mas sim sobre pessoas que, 
formadas e ordenadas diferentemente, mantêm uma autêntica 
relação entre si” (BUBER, 2008, p.87).
Para que essa nova organicidade possa surgir, é preciso 
também homens novos, que tenham consciência de si e do ou-
tro, que sejam capazes de proferir o “EU-TU”. Estes indivíduos, 
capazes de viver em comunidade só podem surgir dentro dela. 
Segundo Buber (2008, p.90) “a educação para a comunidade 
só pode ocorrer através da comunidade”. Seguindo essa linha 
de raciocínio, o autor completa: “pode-se dizer que a comuni-
dade educa na medida em que ela está presente. Pode-se tam-
bém dizer: o indivíduo educa, na medida em que está presente” 
(IDEM). Sendo assim, a comunidade e a relação são fatores 
imprescindíveis para a educação. O professor só poderá verda-
deiramente participar do desenvolvimento de seu aluno se for 
presença na sua vida, ou seja, se tornar um “TU” para ele. Eis 
aqui a importância fundamental da relação mestre-discípulo, 
não só na capoeira, mas em qualquer ambiente de aprendiza-
gem. Não pode haver educação se, antes, os agentes envolvidos, 
não se permitirem encontrar no espaço fecundo do “EU-TU”, 
não se entregarem totalmente e imediatamente à relação dei-
xando que ela os afete verdadeiramente.
4 CONCLUSÃO
Essa discussão do papel desses dois agentes do processo 
educativo, mestre e discípulo, é de central importância para 
uma melhor compreensão de como deve se dar a transmissão 
53
Capoeira: Perspectivas Contemporâneas
do conhecimento e da tradição da capoeira do professor para 
o seu aluno. Como já dito anteriormente, não pode existir um 
mestre de capoeira que não tenha discípulos, que não seja visto 
como referência para os demais capoeiristas que compõem seu 
grupo, sua comunidade. O verdadeiro mestre é aquele que é 
conhecido por sua comunidade e nela é visto como o detentor 
do conhecimento e da tradição da capoeira, portanto aquele 
capaz de ser seu transmissor.
 Por outro lado, todos os que buscam se tornar capoeiristas 
e se aperfeiçoarem nessa arte-luta devem buscar, segundo seus 
valores e suas crenças, aquela pessoa que será a sua referência no 
universo da capoeiragem, aquele cujos ensinamentos buscará 
seguir – essa será o seu mestre. Ao se encontrarem, se estabe-
lecerá a relação mestre-discípulo, única, imediata e irrepetível. 
Essa relação, segundo a visão explicitada na dissertação de mes-
trado O valor educativo da capoeira, deve ser horizontal, de 
modo que ambas as partes se permitam vivenciar e transformar 
na relação “EU-TU”.
Concluo afirmando que a relação interpessoal profunda 
“EU-TU”, que contribui para a formação do que Buber(2008) 
chama de comunidade verdadeira, deve ser a relação criada en-
tre mestre e discípulo, assim como entre mestre e mestre e entre 
discípulo e discípulo. Essas relações e a formação da comunida-
de capoeira são um importante espaço educativo que atua como 
força de resistência aos mecanismos que buscam transformar 
o ser humano em uma máquina de trabalho, em apenas mais 
uma engrenagem da grande máquina social, desprovida de alte-
ridade e de relacionamentos reais.
54
Capoeira: Perspectivas Contemporâneas
REFERÊNCIAS
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dos saberes na roda. Unicamp, Campinas, SP, 2004. 
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DF, 2013. 
MARTINS, Evandro Silva. A Etimologia de Alguns Vocábulos Referentes à 
Educação. Olhares e trilhas. AnoVI, n. 6, pp. 31-36, 2005.
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PRESTES, Zoia Ribeiro. Quando não é quase a mesma coisa – análise de 
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REIS, André Luiz Teixeira. Capoeira: saúde e bem estar social. Brasília, DF: 
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SILVA, Gabriela Tunes da. Sobre possibilidades de exercício da ética in-
ter-humana no jogo da capoeira. Revista virtual de gestão de iniciativas 
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SOARES, Carlos Eugênio Líbano. A negregada instituição: Os capoeiras 
no Rio de Janeiro 1850-1890. Unicamp, Campinas, SP, 1993.
____________. A capoeira escrava no Rio de Janeiro 1808-1850. Uni-
camp, Campinas, SP, 1998.
55
 
AS AULAS DE CAPOEIRA E A 
UTILIZAÇÃO DAS NOVAS TECNOLOGIAS 
DA INFORMAÇÃO E COMUNICAÇÃO - TIC 
Luciana Maria Fernandes Silva
1 INTRODUÇÃO
De acordo com Kenski (2012), as novas Tecnologias da Informação e Comunicação (TIC) compreendem os processos de produção e utilização de tecnologias es-
pecíficas da área da informação e comunicação, usufruindo da 
ligação entre as linguagens oral, escrita, do som, da imagem e 
do movimento. São empregadas para a produção e propagação 
de informações, bem como para a interação e a comunicação 
em tempo real, principalmente pelas redes digitais, através da 
internet.
A autora ainda esclarece que as TIC, de maneira geral, 
vêm transformando não só a vida cotidiana do homem, como 
também as ações e as formas de pensar a realidade e, em espe-
cial, as maneiras de trabalhar as formas de ensinar (KENSKI, 
2012). Como tema da cultura corporal brasileira, fazendo parte 
de diferentes contextos educacionais, não seria possível à Capo-
eira manter-se alheia a esta realidade. 
56
Capoeira: Perspectivas Contemporâneas
Inicialmente, é um pouco difícil imaginar de que ma-
neira a capoeira pode utilizar as TIC. Entretanto,

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