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CAPOEIRA PERSPECTIVAS CONTEMPORÂNEAS Brasília, 2018 organização LUIZ RENATO VIEIRA Anderson de Freitas Silva | Antônio Carvalho Christian Muleka Mwewa | Fábio de Assis Gaspar Felipe do Couto Torres | Igor Fernandes da Cunha Luciana Maria Fernandes Silva | Manoj Geeverghese Mateus Schimith Batista | Reuel Pereira Marely CAPOEIRA PERSPECTIVAS CONTEMPORÂNEAS © 2018 by Luiz Renato Vieira ISBN 978-85-5325-029-5 Organizador: Luiz Renato Vieira Revisão: Guilherme Pamplona Projeto gráfico: Luciano Holanda (CUSTOMIZE) Foto da capa: Mariana Barroso Pereira Malta ________________________________________________________________________ C245 Capoeira: perspectivas contemporâneas / Organização Luiz Renato Vieira .---Brasília, DF : Trampolim, 2018. 314 p. : il. ; color. Vários autores. Inclui bibliografia. ISBN: 978-85-5325-029-5 1. Capoeira e Educação. 2. Capoeiragem. 3. Cultura popular. 4. Capoeira – Arte-luta. 5. Tradição cultural. I. Vieira, Luiz Renato (Org). CDU 793.31) ____________________________________________________________________________ Ficha catalográfica elaborada por Iza Antunes Araujo CRB1-079 Sumário Apresentação .................................................................................. 11 Prefácio ..............................................................................................27 PARTE 1 - CAPOEIRA E EDUCAÇÃO ...........................31 O VALOR EDUCATIVO DA CAPOEIRA: DISCUSSÕES E REFLEXÕES ACERCA DO PAPEL DA CAPOEIRA NO PROCESSO EDUCATIVO Manoj Geeverghese 1 - INTRODUÇÃO ................................................................................ 33 2 - CAPOEIRA E EDUCAÇÃO ........................................................ 34 3 - A CAPOEIRA E O PROCESSO EDUCATIVO ..................... 45 4 - CONCLUSÃO ................................................................................... 52 AS AULAS DE CAPOEIRA E A UTILIZAÇÃO DAS NOVAS TECNOLOGIAS DA INFORMAÇÃO E COMUNICAÇÃO - TIC Luciana Maria Fernandes Silva 1 - INTRODUÇÃO ................................................................................ 55 2 - METODOLOGIA ............................................................................. 57 3 - AS NOVAS TECNOLOGIAS DA INFORMAÇÃO E COMUNICAÇÃO E A CAPOEIRA .................................................. 58 4 - O USO DAS TIC NAS AULAS DE CAPOEIRA: POSSÍVEIS INTERVENÇÕES ......................................................... 62 5 - CONCLUSÃO ................................................................................... 66 PARTE 2 - CAPOEIRA, SOCIEDADE E AÇÕES GOVERNAMENTAIS ....................................................................71 REFLEXÕES SOBRE AS AÇÕES DO ESTADO BRASILEIRO PARA A CAPOEIRA (2003-2010) Fábio de Assis Gaspar 1 - INTRODUÇÃO ................................................................................ 73 2 - CAPOEIRA: EXPRESSÃO DOS DIREITOS SOCIAIS NO ÂMBITO DAS POLÍTICAS SOCIAIS ..................................... 75 3 - AS AÇÕES E SUAS IMPLICAÇÕES ....................................... 77 3.1 - Capoeira e capoeiras: portadores de direitos? ........................................................................................ 78 3.2 - Financiamento público da capoeira .......................... 93 3.3 - Sociedade civil capoeirana, controle social e as ações do MinC ............................................................................ 96 4 - CONCLUSÃO ................................................................................. 101 OS SEGMENTOS DA CAPOEIRA E SEUS DISCURSOS SOBRE OS DESDOBRAMENTOS DO REGISTRO COMO PATRIMÔMIO IMATERIAL Igor Márcio Corrêa Fernandes da Cunha 1 - INTRODUÇÃO ..............................................................................107 2 - OS DISCURSOS DOS CAPOEIRISTAS ...............................108 2.1 - O discurso purista e tradicionalista ......................... 116 2.2 - O discurso esportivo .........................................................122 2.3 - As vertentes federativas ................................................125 2.4 - A visão cultural................................................................... 131 3 - CONCLUSÃO .................................................................................139 TERRITORIALIDADE DAS RODAS DE CAPOEIRA EM BRASÍLIA (DISTRITO FEDERAL): ESPAÇO PÚBLICO, APROPRIAÇÃO E DIREITO AO USO Felipe do Couto Torres 1 - INTRODUÇÃO ..............................................................................145 2 - METODOLOGIA ...........................................................................150 3 - APORTE TEÓRICO .....................................................................153 4 - ESPAÇO PÚBLICO ......................................................................154 5 - TERRITÓRIO E TERRITORIALIDADE .............................157 6 - RODA DE CAPOEIRA ...............................................................160 7 - CIDADANIA ..................................................................................164 8 - CONSIDERAÇÕES DE CAMPO - AS APROPRIAÇÕES DAS RODAS DE CAPOEIRA NO ESPAÇO PÚBLICO..........165 9 - CONCLUSÃO ................................................................................170 PARTE 3 - CAPOEIRA E TEMAS CULTURAIS ......... 179 REVISTA PRATICANDO CAPOEIRA: UM DISPOSITIVO DE REGRAMENTO PARA O CAMPO CAPOEIRÍSTICO Anderson de Freitas Silva 1 - INTRODUÇÃO .............................................................................. 181 2 - A REVISTA PRATICANDO CAPOEIRA ............................183 3 - DISPOSITIVOS EDITORIAIS ..................................................186 4 - SEÇÕES E TEMÁTICAS ...........................................................188 5 - FOTOGRAFIAS E ILUSTRAÇÕES .......................................193 6 - PUBLICIDADE E PRODUTOS ...............................................197 7 - CONCLUSÃO ................................................................................ 200 ENSAIO SOBRE PSICANÁLISE E CAPOEIRA Antônio Carlos Nunes de Carvalho Júnior 1 - INTRODUÇÃO ............................................................................. 205 2 - O SENTIR E O MOVER-SE NO JOGO DA CAPOEIRA ................................................................................... 206 3 - AS CANTIGAS METAFORIZAM OS CAMINHOS E ORGANIZAM O “DESEJAR” NA CAPOEIRA. ................. 217 4 - SOBRE A GENEALOGIA E A TRADIÇÃO NA CAPOEIRA ........................................................................................... 222 5 - MESTRE BIMBA: UM TOTEM NA CAPOEIRA ............ 227 6 - ALGUMAS CONSIDERAÇÕES SOBRE O MESTRE NA CAPOEIRA ....................................................................................231 7 - CONCLUSÃO ................................................................................ 235 CAPOEIRA E EFICÁCIA SIMBÓLICA: APONTAMENTOS TEÓRICOS E APORTES EMPÍRICOS Reuel Marely 1 - INTRODUÇÃO ..............................................................................241 2 - O MESTRE DE CAPOEIRA E A EFICÁCIA SIMBÓLICA .....................................................................................247 3 - CONCLUSÃO ................................................................................ 265 APROXIMAÇÕES ENTRE CAPOEIRA E TEATRO NA POÉTICA DE UM ATOR Mateus Schimith 1 - INTRODUÇÃO ......................................................................... 271 2 - A CAPOEIRA E O TRABALHO DO ATOR .....................274 3 - CONCLUSÃO ............................................................................287 A CAPOEIRA PARA ALÉM DA INDÚSTRIA CULTURAL: ITINERÁRIOS POSSÍVEIS Christian Muleka Mwewa 1 - INTRODUÇÃO .............................................................................2912 - ITINERÁRIO PARA PENSAR A CAPOEIRA PARA ALÉM DA INDÚSTRIA CULTURAL .......................... 295 3 - A CAPOEIRA E SEUS MECANISMOS DE SUPERAÇÃO ................................................................................301 4 - CONCLUSÃO ................................................................................ 304 SOBRE OS AUTORES Anderson de Freitas Silva ........................................................ 311 Antônio Carlos Carvalho .......................................................... 311 Christian Muleka Mwewa ........................................................ 311 Fábio de Assis Gaspar ................................................................312 Felipe do Couto Torres ...............................................................312 Igor Fernandes da Cunha ........................................................312 Luciana Maria Fernandes Silva ............................................ 313 Luiz Renato Vieira (org.) .......................................................... 313 Manoj Geeverghese ..................................................................... 314 Mateus Schimith Batista .......................................................... 314 Reuel Pereira Marely ................................................................. 314 11 Apresentação IDENTIDADES EM MOVIMENTO E O UNIVERSO CULTURAL DA CAPOEIRAGEM Luiz Renato Vieira Os afro-brasileiros souberam transformar a violência em camaradagem, envolvendo dança, ritmo, canto, toque e improvisação. A capoeira é uma afirmação existencial do povo negro no contexto do escravagismo e do racismo de dominação presentes em momentos diversos da sociedade brasileira. No jogo de gingas e na mandala da roda da capoeira está a história do povo negro na diáspora. Gilberto Gil, ex-Ministro da Cultura. Discurso proferido em Genebra, em 19 de agosto de 2004. 12 Capoeira: Perspectivas Contemporâneas Em 1937, em seu livro intitulado Negros bantos, após tra- çar um belíssimo retrato da capoeira, Édison Carneiro escreveu: “o progresso dar-lhe-á, (...) mais cedo ou mais tarde, o tiro de misericórdia”. O grande folclorista baiano acreditava que a prática da capoeiragem estava fadada ao desaparecimento diante da ace- lerada modernização de sua época. E tal vaticínio não era sem motivo. Ao longo de uma vida de estudos, muitas foram as manifestações da cultura popular que ele viu serem extintas ou reduzidas a práticas de pequenos grupos. Felizmente, Édison Carneiro estava errado em relação à nossa arte-luta. A capoeira não desapareceu nem reduziu sua presença na sociedade brasileira. Ao contrário, em meio a mui- tas metamorfoses, a capoeira foi se amoldando e se adaptando aos novos tempos, assumindo variações estilísticas e se associan- do a novos discursos sociais e políticos. Para sobreviver, a capoeira mudou e se diversificou. Mas, isso a torna diferente das outras manifestações culturais? Se am- pliarmos o nosso campo de observação, veremos que processos semelhantes ocorreram com muitas outras manifestações cultu- ais, incluindo o samba, o chorinho, o frevo e religiões de matriz africana. Afinal, a produção de releituras diante dos desafios impostos pela mudança social é uma característica essencial das culturas. E, de resto, uma das principais características do cená- rio cultural contemporâneo. O fato é que, hoje, a capoeira está presente nos ambientes artísticos, culturais, esportivos e nas instituições educacionais formais e informais. Há muito, o temor do desaparecimento das tradições da antiga luta dos escravizados e de seus descen- dentes deu lugar a outras preocupações: não há mais o receio do desaparecimento, mas uma inquietação com os rumos im- 13 Capoeira: Perspectivas Contemporâneas postos pelo seu crescimento rápido, intenso e abrangente, que pode distanciá-la de suas raízes culturais. A arte-luta brasileira é uma modalidade única no conjun- to das manifestações culturais e das práticas corporais. Desta- ca-se, entre as demais, por aspectos como riqueza motriz, mu- sicalidade envolvente, exuberância de sua presença estética e a força dos seus rituais. Entre as características que lhe atribuem essa peculia- ridade está, também, o fato de que se desenvolveu, entre os capoeiristas, uma impressionante necessidade de acumular co- nhecimento histórico e teórico sobre sua prática, seja através do contato com os mestres mais experientes, seja por meio da leitura ou com o auxílio das novas tecnologias. Essa vontade de saber que se dissemina juntamente com a prática da capoeira tem feito com que ela seja, atualmente, uma das manifestações mais estudadas entre as que compõem o universo cultural brasileiro. Uma rápida consulta às listas de teses e dissertações dos programas de pós-graduação stricto sensu, defendidas nos últimos anos, nos permite verificar isso facilmente. A produção acadêmica sobre a capoeira tem crescido em um ritmo muito intenso, no Brasil e no exterior. Depois de uma explosão de estudos mais genéricos e abrangentes, nas diversas áreas de conhecimento, nas décadas de 1990 e 2000, temos visto, nos últimos anos, o surgimento de trabalhos com temas mais específicos no campo das ciências humanas. São pesqui- sas acadêmicas com objetos de estudos mais recortados, como aqueles sobre a vida de mestres que se destacaram ao longo da história; sobre segmentos específicos de praticantes da capoei- ra; a respeito de manifestações locais da arte-luta; tratando da capoeira na mídia, no ensino básico e superior; relacionando-a 14 Capoeira: Perspectivas Contemporâneas com a questão da qualidade de vida; inserindo-a no debate so- bre a questão racial e de gênero e muitos outros assuntos. Os temas relacionados às nossas tradições culturais conti- nuam despertando enormemente o interesse dos pesquisadores no exterior. Estudiosos vêm se dedicando com afinco ao estudo da capoeira em universidades estrangeiras e têm produzido ex- celentes trabalhos. Hoje, há uma quantidade muito significati- va de pesquisas sobre a expansão da capoeira por todo o mun- do. Muitos outros trabalhos podem ser citados como exemplos do interesse que a nossa capoeira tem despertado no exterior. Esse crescimento da pesquisa sobre a capoeira não está relacionado apenas ao processo de sua internacionalização. Re- flete, também, o despertar do Estado brasileiro acerca da rele- vância da capoeira como manifestação cultural e de suas res- ponsabilidades no que concerne à preservação de sua memória. Desde 2004, quando o Ministro Gilberto Gil proferiu o célebre discurso exaltando as qualidades da capoeira em Gene- bra, na ocasião da homenagem póstuma ao Embaixador Sér- gio Vieira de Mello, falecido no Iraque, o cenário da arte-luta tem passado por profundas modificações no Brasil. Seguiram-se importantes iniciativas, como a publicação dos editais Cultura Viva – Capoeira Viva (2005) e duas edições do Prêmio Capoei- ra Viva (2006 e 2007). O Governo Federal definia um novo lugar para a capoeira nas políticas públicas, gerando expectativas e se comprometen- do a lidar com o que podemos chamar de déficit histórico de cidadania. Afinal, até então, havia uma verdadeira invisibilida- de da capoeira diante das ações governamentais. Sob a direção do Instituto do Patrimônio Histórico e Ar- tístico Nacional (IPHAN), desenvolveram-se os trabalhos de pesquisa e mapeamento que resultaram no registro como Pa- 15 Capoeira: Perspectivas Contemporâneas trimônio Cultural Imaterial, no ano de 2008. Como se sabe, o registro ocorreu de duas formas: o Ofício dos Mestres de Capo- eira passou a integrar o Livro dos Saberes e a Roda de Capoeira, o das Formas de Expressão. A partir desse momento, iniciou-se um importante ciclo de ações governamentais com foco na capoeira. A Fundação Cultural Palmares, que foi protagonista de relevantes iniciativas em relação à capoeira, promoveu o Encontro de Mestres de Ca- poeira (2009), em Brasília. Em seguida,o IPHAN constituiu o Grupo de Trabalho (GTPC) – do qual tive a oportunidade de participar, como colaborador, a convite do então presidente do IPHAN – e promoveu várias iniciativas, entre as quais se desta- cam os editais do Programa Capoeira Viva (2010), os Encon- tros Pró-Capoeira (2010) e o Prêmio Viva Meu Mestre (2011). Nesse conjunto de medidas, podemos incluir, também, a proposta de registro da capoeira como Patrimônio Imaterial da Humanidade (2012). Ocorre que, em um determinado momento, o Ministério da Cultura teve reduzido seu protagonismo no campo das ações relacionadas à capoeira, que não chegaram a se tornar efetiva- mente políticas públicas, com orçamentos definidos e progra- mas estruturados e avaliados de maneira perene e sistêmica. Ao mesmo tempo, ganhavam espaço no âmbito governa- mental outras iniciativas, com foco voltado para o desenvolvi- mento esportivo da capoeira e sua organização institucional em confederações, federações e instituições congêneres. Acentua- va-se, então, uma divisão histórica no mundo da capoeiragem, amplamente discutida na literatura especializada: uma interpre- tação dicotômica sobre capoeira esporte e capoeira cultura. A novidade foi que essa tensão, que no campo da socie- dade civil remonta ao início do século XX, adentra o universo 16 Capoeira: Perspectivas Contemporâneas governamental e torna clara a falta de organicidade das medidas de incentivo à capoeira. Da mesma forma, fortaleceram-se as discussões em tor- no da chamada regulamentação da profissão de professor ou mestre de capoeira. Os debates sobre as proposições legisla- tivas em tramitação no Congresso Nacional passam a dividir a comunidade da capoeira entre aqueles que acreditavam na regulamentação profissional por meio de lei como forma de assegurar direitos e os que a viam como parte de um projeto corporativo com possíveis prejuízos à preservação da memória histórica da arte. O importante a destacar, no momento, é que o debate so- bre as politicas públicas relativas à capoeira demonstrou que o campo não tem posicionamento homogêneo em relação a vários temas, incluindo a relevância da ancestralidade negra na forma- ção da capoeira; o perfil profissional do professor ou mestre; a necessidade de valorização da pluralidade de manifestações que caracterizam a capoeiragem em todo o território nacional e até mesmo nas configurações que assume, atualmente, no exterior; e as linhas gerais das políticas públicas a serem implementadas para a promoção da capoeira. Hoje, nos deparamos com algumas questões muito com- plexas. Após o registro da capoeira como Patrimônio Imate- rial, o IPHAN deu início aos procedimentos para a adoção das chamadas medidas de salvaguarda. As principais direções já estavam indicadas no dossiê elaborado na ocasião do registro, e foram aprofundadas nos encontros Pró-Capoeira, realizados em todas as regiões do Brasil (2010). Entretanto, a partir do início do ano de 2011, houve uma retração nessas iniciativas, e a comunidade da capoeiragem se ressentiu, pois, até então, haviam sido muito significativos os 17 Capoeira: Perspectivas Contemporâneas avanços e as expectativas criadas nas gestões dos Ministros Gil- berto Gil e Juca Ferreira. Atualmente, como se sabe, essas ações são desenvolvidas pelo IPHAN em caráter descentralizado, a cargo de suas supe- rintendências regionais, que se esforçam para envolver os capo- eiristas no processo. No âmbito governamental, fortaleceram-se o discurso e as práticas voltadas para a esportivização da capoeira, tendo como protagonista o Ministério do Esporte. Iniciou-se uma intensa mobilização da confederação brasileira e das federações esta- duais, órgãos que, regra geral, possuem legitimidade limitada perante a maioria dos praticantes da capoeira. Além disso, es- sas entidades desenvolvem um discurso e uma prática que não abarcam o amplo leque de manifestações que compõem a di- versidade da nossa arte-luta, concentrando-se em seus aspectos esportivos. Contudo, o mais importante é registrar que há, em anda- mento, várias mobilizações de segmentos da capoeira. Como é frequente ocorrer com outras manifestações culturais e modali- dades esportivas, nessa busca por hegemonia, as representações de alguns segmentos procuram se apresentar como a expressão do universo global dos praticantes. Nesse quadro, muitos setores não se veem representados e ficam à mercê das escolhas daqueles que, por razões externas ao universo da capoeira, logram exercer protagonismo político e influência diante dos órgãos do Estado. Então, qualquer apoio governamental a entidades e a eventos relacionados à capoeira deve levar em conta o fato de que há uma série de questões em aberto, como as que foram apontadas no dossiê do IPHAN, de 2008. 18 Capoeira: Perspectivas Contemporâneas Nesse sentido, temos a esperança de que, no conjunto da nossa política cultural, haja espaço para que os diversos seg- mentos da capoeira sejam ouvidos, incluindo, também, outros atores relevantes, como pesquisadores, centros de investigação dedicados à capoeira no Brasil e no exterior, Velhos Mestres e lideranças vinculadas a formas da capoeira que exercem o direi- to de questionar os limites do modelo federativo e esportivo, como a tradicional Capoeira Angola. O desenvolvimento da capoeira no exterior tem apresen- tado, ao mesmo tempo, uma série de desafios teóricos para os pesquisadores e um conjunto de temas a serem debatidos pelos gestores da cultura e do esporte no Brasil. Surgida de folguedos de origem popular no Brasil, a ca- poeira traçou uma intensa e interessante trajetória ao longo do século XX. De prática proibida pela lei penal brasileira, foi elevada à condição de um dos mais importantes símbolos da cultura nacional no último quartel do século. Ao longo dessa trajetória, muitas foram as ressignificações do fenômeno cultu- ral complexo que ela representa. Da mesma forma, muitas foram suas apropriações por parte dos discursos políticos. As formulações variam de uma modalidade que se presta à disciplina e ao fortalecimento dos corpos e da valorização de uma cultura marcial a um fator de resistência cultural que prioriza a negaça e a malandragem, bus- cando as frestas e caminhos alternativos para a subversão da or- dem. Assim, a capoeira evidencia leituras diferenciadas, por ve- zes opostas, da modernidade e do processo de desenvolvimento identitário no Brasil. No campo da gestão das políticas públicas relacionadas à capoeira, principalmente nas áreas da cultura e do esporte, o processo de mundialização da arte-luta engendra uma série 19 Capoeira: Perspectivas Contemporâneas de desafios. Ao tempo em que se internacionaliza, a capoeira também se distancia dos elementos identitários que a vinculam com a formação da sociedade brasileira. Dessa forma, é nítida a percepção, de parte da comunidade de capoeiristas, que o Brasil corre o risco de perder a condição de centro de referência que sempre desempenhou em relação à capoeira. As redes sociais, com suas facilidades para a divulgação de vídeos e outros recur- sos tecnológicos, têm contribuido significativamente para isso. Como os órgãos de cultura têm lidado com essa questão? Como conciliar uma percepção flexível do fenômeno cultural representado pela capoeira em seu processo de expansão pelo mundo com a necessidade de aprofundar o conhecimento so- bre sua história e valorizar sua ancestralidade e suas matrizes no Brasil? Esse debate é muito presente no cotidiano dos capoei- ristas. O cenário atual caracteriza-se por uma multiplicidade de formas de organização e revisões da pedagogia tradicional que colocam em xeque alguns dos valores considerados es- sencialmente vinculados à ancestralidade. Fala-se, então, em “capoeira sem mestre” e muitos grupos passam a priorizar as formas horizontais de transmissão de saberes em um discurso que alerta: “a capoeira não tem dono”. Questionam-se, assim, alguns dos pilares da tradição daarte-luta. Para isso, contri- buem também os coletivos organizados em rede, desafiando os modelos tradicionais dos grupos de capoeira, geralmente estruturados de forma piramidal, com gestão personalista e centralizada. São muitos aspectos a considerar para desenvolver uma análise que contemple a realidade da capoeira nos dias de hoje. Entendemos que essas questões que ora levantamos podem ser importantes para a compreensão dos desafios globais, no con- 20 Capoeira: Perspectivas Contemporâneas texto de afirmação de referências culturais e das identidades em movimento. Movido por tais inquietações, é com enorme honra que apresento aos leitores este volume. Elaborado com muito em- penho e cuidado, ele resulta do esforço conjunto de acadêmicos que decidiram conectar suas áreas de formação com o mundo da arte-luta que praticam. Tanto entre pesquisadores quanto entre capoeiristas (e, muitas vezes, essas duas figuras se fundem nas mesmas pessoas), há uma crença generalizada a respeito da riqueza representada no universo cultural e gestual da capoeiragem. Dessa convic- ção, decorre uma busca impressionante de conhecimento nas mais diversas áreas, seja por meio de entrevistas com os Velhos Mestres, quanto em pesquisas mais convencionais, bibliográfi- cas, e por outros meios. Este livro tem, portanto, a intenção de oferecer ao mundo da pesquisa e aos praticantes da capoeira, uma visão panorâmi- ca sobre várias áreas em que a pesquisa da capoeira tem alcança- do resultados muito significativos. As primeiras ideias sobre a elaboração deste livro surgi- ram com a realização do Encontro de Pesquisa do Grupo de Capoeira Beribazu, realizado em Brasília, em agosto de 2014. Naquele evento, foi possível reunir dezenas de pessoas com- prometidas com pesquisa da capoeira e interessadas em colocar suas ideias e experiências em discussão. Contando com mais de uma centena de debatedores e assistentes, passamos o dia refle- tindo coletivamente sobre a capoeira nas mais diferentes óticas e experiências. Chamou-me a atenção o fato de que, entre as exposições realizadas, muitos temas apresentavam inúmeras interfaces. En- tretanto, os autores – que possuem fortes vínculos de amizade 21 Capoeira: Perspectivas Contemporâneas pessoal e convivência nas rodas de capoeira – não conheciam os trabalhos que cada um realizava em outros pontos do país ou até na mesma cidade. Havia a necessidade de construir pontes, colocar em con- tato esses jovens cientistas, inteligentes e motivados, para que a capoeira e toda a comunidade interessada se beneficiassem dos diálogos que viriam a estabelecer. Essa foi a missão que me propus realizar. Todos os participantes desse projeto são capoeiristas- -pesquisadores. Devem ser assim denominados, e não pes- quisadores-capoeiristas, porque todos já eram praticantes de capoeira antes de fazerem suas opções pela pesquisa acadê- mica. O interesse pela investigação científica surge, portanto, em um ambiente de busca de conhecimento que a capoeira, na atualidade, proporciona aos seus participantes, como de- monstramos anteriormente. Este livro, então, é composto por textos que condensam trabalhos de conclusão de cursos em pós-graduação stricto sensu (mestrado ou doutorado) nas áreas de educação física, serviço social, geografia, psicologia, pedagogia, ciências da informação e artes cênicas. Adotamos, como regra geral, o conceito de que o trabalho integrante do livro seria uma espécie de síntese da dissertação de mestrado ou tese de doutorado defendida pelo autor, reunindo as questões principais, os fundamentos teóricos, os métodos de trabalho e – como não poderia deixar de ser – as inquietações proporcionadas pelo trabalho investigativo. Dessa forma, por meio deste volume, o leitor consegue ter uma visão panorâmica dos debates atuais sobre a capoeira em diversas áreas do conhecimento acadêmico no campo das ciências humanas. 22 Capoeira: Perspectivas Contemporâneas O livro está estruturado em três partes, abarcando diver- sas áreas do conhecimento acadêmico no campo das ciências humanas. A Parte 1, que intitulamos Capoeira e Educação, reú- ne dois textos: O valor educativo da capoeira: discussões e reflexões acerca do papel da capoeira no processo educativo, de Manoj Ge- everghese, e As aulas de capoeira e a utilização das novas tecno- logias da informação e comunicação – TIC, de Luciana Maria Fernandes Silva. Os trabalhos que compõem essa parte se complementam: se Manoj Geeverghese desenvolve uma análise de cunho peda- gógico e filosófico, com recurso às falas dos capoeiristas acerca do processo de ensino, Luciana Maria Silva lida com o impor- tante tema do emprego das novas tecnologias no ambiente da capoeira. Na Parte 2, estão reunidos três capítulos sobre o tema Ca- poeira, Sociedade e Ações Governamentais. O texto de Fábio de Assis Gaspar, intitulado Reflexões sobre as ações do Estado bra- sileira para a capoeira (2003-2010), abre a seção. Em seguida, temos o texto Os segmentos da capoeira e seus discursos sobre os desdobramentos do registro como Patrimônio Imaterial, de Igor Márcio Corrêa Fernandes da Cunha, e Territorialidade das rodas de capoeira em Brasília (Distrito Federal): espaço público, apro- priação e direito ao uso, de Felipe do Couto Torres. Nessa parte do livro, agrupamos trabalhos que abordam as interfaces da capoeira com a ação estatal. As análises desen- volvidas por Fábio Gaspar e Igor Márcio da Cunha estão cen- tradas nos processos recentes de mobilização do Estado, nota- damente o Governo Federal, acerca da capoeira no Brasil. São dois olhares sobre as iniciativas governamentais decorrentes do registro da capoeira como patrimônio cultural imaterial. Fábio Gaspar examina as dinâmicas no âmbito do Estado, em uma 23 Capoeira: Perspectivas Contemporâneas análise rica e detalhada, identificando tensões e contradições. Já Igor Márcio da Cunha procura mapear os discursos construídos pelos capoeiristas a partir do impacto de tais iniciativas em um estudo inovador e instigante. O trabalho de Felipe do Couto Torres completa a seção com um interessante estudo sobre a relação entre o espaço público urbano e a capoeira. Sua pes- quisa teve como foco a análise a cidadania e a territorialidade. Nesse sentido, Felipe indaga: as rodas de rua da capoeira do DF podem ser consideradas parte de um projeto de resgate e forta- lecimento da cidadania? Seu estudo busca respostas a partir de um referencial teórico denso e crítico. A terceira e última parte do livro, denominada Capoeira e Temas Culturais, agrupa cinco trabalhos: Revista Praticando Capoeira: um dispositivo de regramento para o campo capoeirís- tico, de Anderson de Freitas Silva; Ensaio sobre psicanálise e capoeira, de Antônio Carlos Nunes de Carvalho Júnior; Ca- poeira e eficácia simbólica: apontamentos teóricos e aportes em- píricos, de Reuel Marely; Aproximações entre capoeira e teatro na poética de um ator, de Mateus Schimith; e A capoeira para além da indústria cultural: itinerários possíveis, de Christian Muleka Mwewa. Temos, aqui, a seção mais heterogênea do livro, com tra- balhos que optamos por reunir em torno da questão cultural. O estudo de Anderson Silva aborda uma das mais importantes publicações impressas da época do boom das revistas sobre ca- poeira nos anos 1990-2000. Por meio da análise do periódico escolhido, afirma o autor, é possível ler o momento vivido pela capoeira da época e identificar alguns dos principais atores e temas em discussão. Em seguida, temos o estudo de Antônio Carlos de Carvalho Júnior, que faz interessantíssimas conexões do universo cultural da capoeieragem com a psicanálise. 24 Capoeira: Perspectivas Contemporâneas Passa-se ao texto de Reuel Marely, que, buscando elemen- tos de análise na teoria antropológica, apresenta reflexões semi- nais sobre o tema da eficácia simbólica no âmbito da capoeira. Na sequência, o trabalho de Mateus Schimidt traz uma interes- sante reflexão sobrea contribuição da capoeira para a formação do ator. Ele aborda o tema desde um ponto de vista pessoal, existencial, e destaca as inúmeras possibilidades abertas pela prática da capoeira no campo da formação do ator. Encerrando o livro, temos o capítulo elaborado por Chris- tian Muleka Mwewa, que examina as complexas e interessantes relações do universo da capoeira com a indústria cultural. Para além das análises deterministas, que veem na sociedade admi- nistrada o fim da criatividade, Muleka Mwewa busca as con- tradições da modernidade e vê, na capoeira, uma possível fonte de contrapontos e de possibilidades de superação das cadeias da consciência. Gostaria de agradecer aos autores que abraçaram o pro- jeto e se dedicaram com afinco à preparação dos artigos. Ao Guilherme Pamplona, professor da Secretaria de Educação do DF e meu aluno de capoeira, meus agradecimentos pela cuida- dosa revisão. Mais uma vez, demonstra sua gentileza e dispo- sição para as iniciativas que valorizam a capoeira e a crítica da cultura. Meus agradecimentos, também, ao Luciano Holanda, também meu aluno e amigo, pelo belíssimo projeto gráfico. À Mariana Barroso Pereira Malta, agradeço a cessão da foto que utilizamos na capa. Finalmente, agradeço aos professores e mestres de capoei- ra José Luiz Falcão, Fábio Luiz Loureiro e Joergues Nery pelos textos que complementam e abrilhantam esse livro na quar- ta capa, no prefácio e nas orelhas. São profissionais de grande competência e amigos que, de maneira incansável, trabalham 25 Capoeira: Perspectivas Contemporâneas para que a capoeira seja, cada vez mais, um ambiente cultural- mente rico e de grande relevância pedagógica. Espero que a publicação desse volume estimule os debates sobre a nossa arte-luta que, neste ano de 2018, completa dez anos de seu registro como Patrimônio Cultural Imaterial. Se é preciso reconhecer as conquistas do passado, é necessário, tam- bém, ter consciência de que há muito por fazer. Desejo boa leitura a todos e todas! Brasília, novembro de 2018. 27 Prefácio Fabio Luiz Loureiro1 Temos que partir do fato da prioridade da pesquisa com a capoeira, prioridade em produzir conhecimento, sistema- tizado, com método e crítica, ou seja, garantir as finalidades proclamadas pelas necessidades atuais da capoeira nas diversas áreas do conhecimento às quais está se relacionando. Isso fica bem claro na intenção do presente livro, coerência e contun- dência afinadas no propósito de difundir com personalida- de científica um trabalho qualificado para a comunidade da capoeira e áreas afins. Ao estabelecer relação entre a prática da capoeira e a pro- dução científica, temos claros, nos escritos que seguem, os obje- tivos de discutir a formação integral da personalidade na prática da capoeira, o cuidado com a formação para o exercício da cida- dania e a qualificação para o trabalho com capoeira, novas for- mas, métodos e conteúdos como um saber necessário à prática docente na capoeira, o problema da incoerência e contradição 1 Professor da Universidade Federal do Espírito Santo – CEFD/DD, Mestre de Capoeira do Grupo Beribazu. 28 Capoeira: Perspectivas Contemporâneas entre o discurso e a prática estabelecida entre o poder governa- mental, a capoeira e a sociedade nas políticas públicas e, por fim, a capoeira no campo da cultura, tema vasto que possibilita amplo debate de como a capoeira pode produzir, conservar e progredir seus valores intelectuais, suas ideais, nas ciências e nas artes, dos valores criados pela sociedade brasileira em seu pro- cesso de práxis social e histórica. Na atualidade, em que a capoeira faz parte da dinâmica evolutiva da sociedade - em particular, área do conhecimento científico, chegando à sua inserção em editais de pesquisas cien- tíficas -, os praticantes de capoeira se transformam em sujeitos da produção cultural e intelectual, portanto, uma possibilidade de “resistência” ao confrontar e se afirmar nesse mundo que se moderniza. Julgo sua aproximação com a pesquisa inevitável, necessária e cuidadosa, longe da interpretação marcadamente nostálgica. Nesse cenário, discutir temas sobre a capoeira pode con- tribuir para sua afirmação imaterial, haja vista que discutir so- bre educação, cultura, sociedade e políticas públicas imbrica- dos com a capoeira fortalece a prática do ofício dos mestres e alimenta os debates sobre a roda de capoeira nos seus aspectos múltiplos. A capoeira como método de educação deve assegurar a formação e o desenvolvimento físico, intelectual e moral dos capoeiras. Temos que exercitar a crítica, mas fazemos pouco. A pergunta é: em qual realidade ensinamos a capoeira? No con- texto das relações sociais. Nesse caso, o ato de ensinar a capoeira é um ato político, e, para tal, é necessário discutir esse com- plexo que é a capoeira com as diversas áreas e temáticas para que possamos balizar um caminho crítico para intervenção na sociedade. 29 Capoeira: Perspectivas Contemporâneas Como conteúdo, a capoeira se apresenta complexa, com- posta pelos nexos internos: movimentos em vários planos / o canto, palmas e instrumentos (berimbau / atabaque / pandeiro / agogô / reco-reco / caxixi), com várias intensidades de ritmos / jogo de capoeira / ritual / roda de capoeira / a história / a cultura / o fato social e político que a gerou, no espaço-tempo. Esse complexo é proporcional à necessidade de organização. A pesquisa, nesses contrários de riqueza e complexidade, tem pa- pel fundamental em um debate que possa encaminhar ações práticas e teóricas contundentes. A capoeira já foi transmitida e preservada de várias for- mas. Pela oralidade, no “hálito”; pelas mãos, toque corporal na condução do gesto como um método; e, hoje, pelas presentes pesquisas, um saber necessário, denso, constituído e organiza- do com experiências científicas significativas, que se juntam às formas tradicionais para formação humana e difusão do conhecimento. Assim, precisamos atuar com o pensamento da capoeira, e não a capoeira em si, isolada dos estudos existentes, pois ela se insere em vários campos de atuação, e reduzi-la seria deixar sua prática estritamente motriz, desvinculada da história, cul- tura e política que a gerou, bem como sua vida cultural que ajudou o espírito de resistência e ardor no combate. Hoje a formação aprofundada é um dos caminhos para o professor / mestre ser valorizado, ser culto, mas insistimos em formar professores em curto espaço e tempo na capoeira, deixando para trás várias etapas de avanço da cultura durante a forma- ção – que tem a capoeira o compromisso com a identidade da cultura brasileira. Resultou, a presente obra, na criação de condições que permitam o aparecimento de novos conheci- mentos para a capoeira que, certamente, impulsionarão os 30 Capoeira: Perspectivas Contemporâneas vários campos de atuação. Fica claro como os intelectuais e praticantes de capoeira cumprem sua responsabilidade com ela: rigor teórico, relevância social, prática e a crítica. Uma organização ímpar e inédita. Boas reflexões! 31 PARTE 1 CAPOEIRA E EDUCAÇÃO 33 O VALOR EDUCATIVO DA CAPOEIRA: DISCUSSÕES E REFLEXÕES ACERCA DO PAPEL DA CAPOEIRA NO PROCESSO EDUCATIVO Manoj Geeverghese 1 INTRODUÇÃO A crise da educação formal brasileira está fortalecendo um debate que há muito vem sendo travado no meio acadêmico: a obsolescência da escola e a necessidade de sua reinvenção ou, até mesmo, na opinião dos mais radicais, o fim da instituição escolar. Diversos educadores e pesquisa- dores têm criticado a atuação da escola e revelado sua incapa- cidade de realmente educar seus alunos para a sociedade con- temporânea. Buscam, também, desmascarar a propaganda da escolarização, que atribui o sucesso da infância e da juventude à sua vida escolar. A sociedade escolarizada quer que todos pensem que o sucesso individual está unicamente vinculado à quantidade de anos passados em uma instituição formal de ensino. Quantomais tempo um indivíduo ficar na escola, maior será sua for- mação e, consequentemente, maior será seu sucesso. Por outro 34 Capoeira: Perspectivas Contemporâneas lado, quanto menos tempo esse mesmo indivíduo permanecer no ensino formal, menor será sua possibilidade de sucesso na vida em sociedade. Cabe aqui também uma reflexão sobre o fato de que a so- ciedade escolarizada tende a considerar como “sucesso” apenas a realização profissional, ou seja, um trabalho que confira status e que pague um bom salário. Existe um ranking social implícito que separa as profissões em classes, e da mesma forma coloca as pessoas nessas classes. A sociedade é ensinada a acreditar que al- guém que trabalhe como médico ou juiz é um indivíduo superior a outro que trabalhe com limpeza urbana ou como jardineiro. A capoeira, por outro lado, evidencia outra forma de or- ganização social e de lidar com os indivíduos e suas relações. Essa manifestação cultural brasileira, nos seus rituais, na sua tradição, na sua ação, possibilita o desenvolvimento de diversos valores que podem trazer um novo paradigma organizacional e relacional para a sociedade contemporânea, para a escola e para a educação formal e informal de um modo geral. Tendo em vista o valor educativo que a capoeira possui, e a discussão já levantada acerca dessa questão na dissertação de mestrado defendida em 2013 na Universidade de Brasília inti- tulada O valor educativo da capoeira, o presente artigo tem como objetivo retomar esse debate. 2 CAPOEIRA E EDUCAÇÃO O primeiro aspecto considerado essencial para se entender a capoeira e o seu valor é a sua diversidade. Existem tantas capo- eiras quanto praticantes, ou seja, cada um se desenvolve como capoeirista de uma maneira particular, e ao mesmo tempo sua capoeira se desenvolve conforme a sua individualidade. Consi- 35 Capoeira: Perspectivas Contemporâneas derando a roda como um espaço de encontro entre todas essas formas de capoeiragem, ela só se torna possível se houver um diálogo pautado no respeito às diferenças. Nesse aspecto, a ar- te-luta brasileira se aproxima da realidade da sociedade em que todos possuem sua individualidade, mas com uma diferença fundamental explicitada por Silva (2007, p.13): Na contemporânea realidade de instrumentalização ra- dical da vida e de redução das possibilidades de aconte- cimento da relação EU-TU, pela expansão de contextos institucionais que pretendem esconder a face humana por detrás de cargos, funções, status social, renda, entre outros atributos, aquelas instituições, que permitem o desnudamento da face, o encontro com a alteridade, podem ser consideradas de resistência. A capoeira, por suas características, pode, contemporaneamente, repre- sentar esse modo específico de resistência. Pode funcio- nar como uma ferramenta convivencial (Illich, 1981), permitindo não somente a manutenção dos patrimô- nios culturais e históricos que guarda, mas também a criação de manutenção de patrimônios relacionais, im- portantes para o exercício e o aprendizado ético. Na roda de capoeira, todos são identificados como capo- eiristas. Ao colocar o abadá, não existem mais doutores e anal- fabetos, pois todos são jogadores. Na hora do jogo, as diferenças são confrontadas e criam-se condições para o diálogo. Este é outro aspecto fundamental da capoeira: ela é uma linguagem e, “como linguagem, pode ser dialógica, e converter-se num diálo- go corpóreo, em que o corpo é, a um só tempo, boca e ouvidos, e o movimento é feito palavra” (SILVA, 2007, p.13). A organi- zação da roda possibilita e até incentiva a interação. Todos os participantes se voltam para o centro construindo o círculo, a arena com espaço limitado onde dois capoeiristas realizam suas 36 Capoeira: Perspectivas Contemporâneas evoluções. A roda de capoeira possibilita um diálogo corporal em que os dois jogadores buscam realizar suas movimentações como um jogo de perguntas e respostas. Uma conversa como essa pode se estabelecer de diversas formas diferentes. Ela pode ser uma discussão acalorada, ou uma conversa amena; da mes- ma forma, ambos podem estar em sintonia e o diálogo fluir muito bem, ou podem se desentender e a conversa sair trunca- da, e, inclusive, pode acontecer de cada um ir para o seu lado e o diálogo não acontecer. Para Silva (2007, p.15): a roda de capoeira é o local propício para o aconteci- mento do diálogo, mas isso irá depender das pessoas que a formam, do ambiente em que estão inseridas e, principalmente, de sua vontade de instaurar, no jogo de capoeira, uma realidade dialógica. Dentre as linguagens específicas da arte-luta brasileira, a mandinga é uma das mais características. Sendo uma disputa de perguntas e respostas, muitas vezes o jogo se desenrola de modo que cada jogador busca deixar seu companheiro sem respostas para as suas perguntas. “A mandinga, na capoeira, pode ser en- tendida como a maliciosa capacidade de dissimular, de esconder as verdadeiras intenções do jogador” (SILVA, 2007, p.14). O ca- poeirista mandingueiro é aquele que não se deixa encontrar no jogo, movimenta-se, finta, floreia, para na hora certa, sem que seu oponente perceba, desferir o golpe certeiro. Essa habilidade na capoeira é tão valorizada, que para muitos ela ganha ares mís- ticos. Os mais habilidosos, como Besouro Mangangá, tornam-se lendas, e suas histórias afirmam que ele era capaz de se transfor- mar em um besouro e voar para escapar de seus perseguidores. Essas habilidades valorizadas pelos capoeiristas são outros exemplos de valores que a capoeiragem traz. Segundo um dos mestres entrevistados, por ocasião da pesquisa, a capoeira “é como se fosse um resumo da cultura brasileira”. Portanto, cada 37 Capoeira: Perspectivas Contemporâneas um destes aspectos da arte-luta brasileira também reflete aspec- tos da própria cultura brasileira e o capoeirista é incentivado a adentrar nesse universo. Outros aspectos, presentes na atividade da capoeira, apon- tados por Silva (2007) são a liberdade e a responsabilidade. que serão aqui abordados em conjunto, visto que se complementam. “A liberdade do jogo da capoeira funda-se não no princípio da autonomia do sujeito, mas no da heteronomia da relação entre dois. É a liberdade difícil (BARTHOLO, 2003), isenta de arbi- trariedade e plena de responsabilidade” (SILVA, 2007, p.14). A autora a considera como difícil porque, para ser praticada, não basta que um indivíduo seja autônomo, mas deve se estabelecer uma relação entre dois sujeitos. Um deles, assumindo a responsa- bilidade da relação entre os dois, exerce sua liberdade respeitando e possibilitando que o outro também pratique a sua liberdade. A capoeira, de acordo com Silva (2007), ainda se manifes- ta como uma força de resistência. A autora aponta inclusive que esse discurso é um dos mais explorados ao se falar dela. A ca- poeira surgiu em um momento de marginalização de uma par- cela muito grande da população, quando boa parte dos negros eram escravos, e o restante, que havia conquistado sua liberda- de, continuava marginalizado e discriminado. A resistência da população negra contra o sistema deu-se de uma forma muito peculiar, através da negociação. “A mandinga, o pseudomorfis- mo, reflete esse modo de se relacionar com o mundo: ser, mas não ser; ser inimigo, mas amigo íntimo; sorrir, mas bater; servir, mas rebelar-se” (SILVA, 2007, p.16). Ou seja, o negro – tanto o escravo quanto o liberto – utilizava-se de métodos furtivos de resistência. O confronto direto não foi o centro da luta por afirmação da população marginalizada. O capoeira sabia muito bem esconder as suas intenções. Por detrás da aparente passi- vidade na negociação com seu senhor por melhores condições 38 Capoeira: Perspectivas Contemporâneas de trabalho e de vida, o escravo criava as condições necessárias para, segundo a autora, reduzir a força dos donos de escravos. Portanto, a capoeira surge em um contexto histórico de resistência, de luta do negrocontra a sua realidade escrava, em busca de melhores condições de vida. Naquela realidade social, assim como na atualidade, a capoeira também se apresenta como uma força de preservação da alteridade. “Por permitir a existên- cia como pessoas daqueles que eram vistos somente como força de trabalho, funcionava como espaço de sentido de suas vidas, sentido esse alheio ao degradante papel social que lhes cabia na sociedade brasileira” (SILVA, 2007, p.17). A capoeira é um es- paço diferenciado, já que, apesar de estar inserida na sociedade, suas normas de conduta e tradição são únicas. É um lugar onde o capoeirista pode se despir de todos os rótulos que lhe são im- postos e, em condição de igualdade com seus camaradas, praticar a capoeira. Silva (2007, p.19) finaliza seu texto afirmando que a capoeira “não é importante somente para ela mesma ou para a cultura brasileira; é importante para nossas vidas”. Tal impor- tância atribuída à capoeira, não só pela autora, mas por diversos capoeiristas mundo afora, denota o seu valor, que é percebido por cada indivíduo no dia a dia da prática dessa arte-luta brasileira. Buscando compreender melhor a capoeira busquei na sua história a construção dos valores atribuídos à sua prática. Essa história está muito bem documentada por diversos autores que se dispuseram a catalogar e ordenar os registros sobre a capoeira. O primeiro capítulo da minha dissertação de mestrado busca trazer de forma resumida essa história da capoeira, dialogan- do com autores como Antonio Liberac Cardoso Simões Pires (2001) e Carlos Eugênio Líbano Soares (1993, 1998). A partir desse resumo, foi feita uma análise de um aspecto pouco traba- lhado na historiografia da capoeira: como ela era transmitida, ensinada de mestre para discípulo em prol da perpetuação da ca- 39 Capoeira: Perspectivas Contemporâneas poeiragem. Um ponto levantado e que vejo como fundamental é o fato de que o termo “capoeira” na verdade não descrevia uma modalidade específica de prática cultural ou marcial. Era um nome genérico que descrevia quaisquer exercícios de agilidade e destreza corporal, com a utilização de pontapés e cabeçadas que, na grande maioria das vezes, estavam também ligados à perturbação da ordem social. Portanto, pode-se dizer que exis- tiam várias capoeiras, não havendo um jeito certo ou errado de jogar. Dessa forma os mais habilidosos, que se destacassem mais no jogo, acabavam por se tornar referências, inclusive sendo as- sediados por aqueles que gostariam de aprender suas mandingas. Mestre Canjiquinha, que foi aluno de Aberrê, conta como se iniciou na capoeira: Então eu ficava só olhando Aí ele disse assim: - Ô meu filho venha cá! Você quer aprender? Eu disse: - Quero. Ele mandou abaixar. Quando eu abaixei, aí eu vi o pé. Eu pulei, Aí ele disse: - Ô meu filho, a partir de hoje eu vou lhe ensinar (Depoimento de Mestre Canjiquinha apud ABIB, 2004, p. 122). Nesse depoimento, Mestre Canjiquinha revela como a capoeira era ensinada pelos mais antigos. Naquela época não havia método de ensino da capoeira, tampouco um espaço determinado para isso. O lugar da capoeiragem era a rua. O iniciante aprendia capoeira nas situações reais da “vadiagem”, sendo que a roda de capoeira era o principal desses espaços. 40 Capoeira: Perspectivas Contemporâneas Segundo Abib (2004), “a capoeira se aprendia de ‘oitiva’, ou seja, sem método ou pedagogia”. O aprendiz entrava na roda e vivenciava a capoeira, recebendo conselhos do seu mestre, as- sim como dos demais, observava como os outros jogavam e, dessa forma, ia moldando o seu próprio estilo de vadiar. Para iniciar seu discípulo, “o mestre geralmente pegava nas mãos do aluno para ‘dar uma volta’ com ele, dar os primeiros passos” (ABIB, 2004, p.123), ou seja, o professor entrava na roda junto com seu aprendiz e, no próprio jogo, o mestre dava os primei- ros ensinamentos ao seu discípulo. A partir daí, o novato era considerado um capoeirista, e deveria buscar se aperfeiçoar com as experiências que seu mestre lhe proporcionasse. Os Mestres Bimba e Pastinha, são conhecidos por trans- formar a prática da capoeira. A partir deles surgiu um novo espaço formal de ensino e aprendizagem da capoeira, a "acade- mia". Nesse novo espaço, o mestre se aproximava de seu discí- pulo e com seu toque, seu hálito, transmitia seus conhecimen- tos. Essa proximidade que leva o mestre a iniciar seu discípulo puxando-o pela mão é outro aspecto fundamental da forma como a capoeira era ensinada antigamente. Além da roda, nos espaços públicos, a capoeira também podia ser ensinada indi- vidualmente, em um espaço privado. Nesses locais o professor ensinava ao seu aluno os fundamentos da sua capoeira, mostra- va onde colocar o pé, como reagir em cada situação, quando lutar e quando fugir, suas crenças, valores e tradições. Abib (2004, p.124) cita o depoimento do Mestre Cobra Mansa, que trata especificamente dessa questão: O mais importante nessa tradição é o hálito, é o que você tá passando... a sua alma que você tá transmitin- do. Então você não está transmitindo somente a sua palavra, mas o hálito... a alma... então quando você re- 41 Capoeira: Perspectivas Contemporâneas cebe aquilo, você tá recebendo uma tradição de muitos e muitos antepassados. Ao transmitir o seu hálito para seu discípulo o mestre pas- sa muito mais que a movimentação da capoeira, ele transmite sua própria vida. Entre os dois se estabelece uma relação única e irrepetível, ambos são afetados imediatamente naquele instan- te em que o hálito do mestre é transmitido ao aprendiz. Esta relação que se estabelece entre os dois capoeiristas, acima de qualquer método, forma ou didática de ensino, é a verdadeira essência da transmissão e perpetuação da capoeira. Com a popularização da capoeira e o surgimento dos grandes grupos, em meados da década de 1960, se evidencia uma nova forma de transmissão da capoeira. Muitos passam a querer aprender a arte-luta brasileira e os treinos ficam cada vez mais lotados. Diante dessa nova realidade, muitos professores têm tan- tos alunos em seu treino, que sua voz não é capaz de alcançar a todos. Eles passam a se utilizar do microfone para que todos possam escutar o que está dizendo. Aparentemente, essa forma de ensinar é boa, pois alcança mais pessoas. Ao invés de poucos discípulos, o mestre pode ter dezenas deles, e a sua voz am- plificada chegará a todos eles. Essa é definitivamente uma das vantagens, mas também há outras questões. De fato, a palavra do professor chega a todos por meio das caixas de som, mas seu toque e seu “hálito” não conseguem chegar tão longe. Com a popularização do ensino da capoeira, a relação mestre-discípulo se modifica. O ensino deixa, de um modo geral, a proximidade do hálito e passa para a distância do mi- crofone. Mas, as formas de ensinar dos grandes mestres do pas- sado ainda persistem na realidade contemporânea. Os mestres, assim como os discípulos, se adaptam e estabelecem uma nova 42 Capoeira: Perspectivas Contemporâneas forma de se relacionar, não pior, nem melhor que a anterior, mas diferente. Quem é esse mestre? Quem é esse discípulo? E como acontece a relação entre eles? Essas são as questões que serão aprofundadas adiante. Respondendo a primeira pergunta citada, o título de mes- tre de capoeira não é dado a qualquer um, pois carrega consigo todo o peso da tradição da capoeiragem, e aquele que é cha- mado de mestre deve ser capaz de suportar o peso de ser um defensor e transmissor da arte da capoeira na sua comunidade. O mestre faz parte da história do seu grupo, aprende com outro mestre, convive com os outros capoeiras do grupo, faz amiza- des, troca experiências, vivencia, ou seja, ele vive a capoeira e se permite afetar e transformar profundamente por ela. Dessa forma, de tanto vivenciar a capoeira, o capoeirista passa a ser capaz de edificá-la. Tendo essa capacidade edificante percebida pela comunidade, ele é reconhecido como alguém que vaialém de jogar capoeira, cantar ou tocar instrumentos, sendo tam- bém alguém que faz a capoeira acontecer, não apenas como um momento de roda ou treino, mas como cultura, como vivência para todos os envolvidos. Esse reconhecimento leva natural- mente à consagração do capoeirista como mestre de capoeira. O novo mestre entra para um seleto grupo de indivídu- os, passando a ser visto por todos os outros como um sábio, alguém que conhece profundamente seu ofício. O mestre de capoeira é uma pessoa que inspira respeito e admiração da parte de seus alunos e de outros capoeiristas. Outro aspecto fundamental do mestre de capoeira é a li- derança que este exerce diante de todo o seu grupo. Ele é um líder, cujas palavras e ações têm relevância, tanto para seus alu- nos quanto para todos os capoeiristas de seu grupo. Tratando do papel do líder, Reis diz que “Em geral, líderes mantêm a coesão do grupo e trazem à tona regras especiais para engaja- 43 Capoeira: Perspectivas Contemporâneas mento e pertencimento, estabelecem rituais de iniciação para novos membros, entre outros”(2006, p.40). Em outro trecho, concordando com Ling, Reis (2006, p.40-41) estabelece quatro fatores para a liderança: moralidade pessoal, eficiência nas me- tas, competência interpessoal e versatilidade. O mestre de capoeira, enquanto líder, é o responsável pela unidade do grupo; sua percepção da capoeira, sua forma de entrar na roda, sua concepção do ritual e das tradições são absorvidas pelos demais capoeiristas e tomadas como regra de conduta. Sabendo disso, é necessário àquele que assume a fren- te do grupo uma postura ética, condizente com os valores que busca transmitir aos demais. O mestre de capoeira assume uma posição de destaque diante de todos. Suas ações estão sempre em evidência. Ele se torna uma pessoa pública, capaz de in- fluenciar os demais, seja para o bem, seja para o mal. Tudo isso passa pelo fator da moralidade pessoal. O líder também pre- cisa ser eficiente, saber estabelecer metas viáveis para o grupo e alcançá-las junto com os demais, com o mínimo de desvios possível. Ninguém irá querer seguir uma pessoa que não saiba aonde quer chegar, ou que mude de objetivos a cada semana sem nunca alcançar nenhum deles. Outro dos fatores, citado por Reis (2006), é a competência interpessoal. Nenhum dos fatores anteriores é aplicável ao grupo se o mestre não souber se relacionar com seus pares, sejam eles outros professores e mes- tres ou seus discípulos. Por fim, se espera naturalmente de um líder que ele tenha versatilidade de lidar com as possíveis adver- sidades que possam surgir na vivência comunitária. O mestre deve ser como um guia para os seus discípulos, aquela pessoa que conhece a comunidade, que conhece suas histórias, seus costumes e está disposta a ensinar a quem tiver interesse tudo aquilo que um dia aprendeu, sozinho ou com o auxílio do seu mestre. Para aquele que é considerado mestre de 44 Capoeira: Perspectivas Contemporâneas capoeira, não basta apenas possuir o conhecimento; ele precisa ter a vontade de transmitir o que sabe. Ao discípulo, cabe outro papel fundamental. Não é o mestre que vai atrás dos discípulos, e sim os discípulos que vão atrás do mestre. Não cabe ao mestre dizer qual o objetivo final – este deve partir da vontade do aluno. Deve partir do discípulo a necessidade de alcançar um objetivo, ele é quem decide que, se tiver alguém para orientá-lo, poderá alcançar seu objetivo mais facilmente. Então, procura um mestre para guiá-lo no caminho que escolheu trilhar. Sendo procurado, o mestre decide se quer e se está apto a orientar o candidato a discípulo. Se for da von- tade do mestre orientar o aluno, as duas vontades – do aluno de aprender e do mestre de ensinar – se encontram e, nesse encontro, se inicia a relação mestre-discípulo. O vocábulo “discípulo” traz na sua etimologia o papel de quem assume essa denominação. Há duas origens possíveis da palavra discípulo. A primeira vem “do latim hispânico ‘discipe- re’ com o significado de ‘aprender pela mente’” (MARTINS, 2005, p.34), e a segunda da palavra ‘discipulus’ “do verbo dís- cere, significando ‘aprender’ ou ‘receber o ensino de alguém’” (MARTINS, 2005, p.34). Já o vocábulo ‘aluno’ provém do la- tim “alumnus”. “Cunha (1982) dá a aluno a acepção de aquele que recebe instrução e/ou educação. Houaiss reconhece, tam- bém, que o vocábulo é originário do latim e significava ‘criança de peito, lactente... ’” (MARTINS, 2005, p.34). Considerando essas definições, o aluno ou discípulo é aquela pessoa que recebe de seu professor ou mestre um en- sinamento. Vejamos a criança de peito ‘alumnus’: ela tem ne- cessidade de se alimentar para se desenvolver, e nos primeiros meses de sua vida, a maior parte de sua alimentação provém do leite materno. Quando a criança está com fome, ela chora para 45 Capoeira: Perspectivas Contemporâneas chamar a atenção da mãe. Esta, por sua vez, querendo acalmar seu filho, busca descobrir o que há de errado; concluindo que o neném está com fome, oferece-lhe o peito. A criança então tem o trabalho de sugar o peito da mãe para fazer com que o leite saia. Não é uma tarefa fácil para uma criança que ain- da está descobrindo como utilizar seu corpo, mas a fome faz com que ela se esforce e consiga se alimentar. Por outro lado, se a criança não estiver com fome, mesmo que a mãe ofereça o peito, a criança não o sugará, não importando o esforço que esta faça para alimentar seu filho. Assim como acontece com a alimentação de uma criança de peito querendo se alimentar, também o aluno busca o conhecimento. Desde os primeiros anos de vida, a criança já busca aprender coisas novas que lhe pareçam necessárias. Primeiro ela quer andar para ter autono- mia de locomoção, poder ir onde seus pais estão indo, sem deles depender. Também na mesma época, ela quer aprender a falar, para poder se comunicar. Algum tempo depois, ela descobre as letras e quer aprendê-las para poder ler e escrever, compreender por si as histórias que seus pais liam enquanto lhe mostravam as figuras. Assim, as necessidades e as vontades vão surgindo e a criança procura um meio de aprender aquele conhecimento que ela deseja. 3 A CAPOEIRA E O PROCESSO EDUCATIVO Essa questão de ensino e aprendizagem é fundamental para que se compreenda a visão aqui retratada do processo educativo da capoeira. De fato, o espaço da capoeira é bastante diverso, abrigando práticas educativas das mais embrutecedoras às mais emancipadoras. Sendo assim, a visão de capoeira que aqui coloco retrata apenas um recorte da realidade. 46 Capoeira: Perspectivas Contemporâneas Na minha vivência de capoeira e na perspectiva dos mes- tres entrevistados para a pesquisa, pude perceber que aquele que busca aprender a capoeira deve se emancipar para se tornar verdadeiramente um capoeira. O treino, como se organiza, não permite que o mestre ensine tudo que a capoeira pode oferecer ao seu aluno. O professor deve deixar oportunidades para que ele corra atrás do conhecimento, não só no horário de treino, mas também fora dele. No horário da aula, o mestre guia a mo- vimentação, enquanto todos repetem o que ele está orientando. Cabe ao aluno repetir cada movimento e buscar entender no seu corpo como se executa tal movimento, que músculos de- vem ser acionados, qual a postura que deve manter para não desequilibrar, de onde deve sair a força da movimentação para que ela aconteça de forma mais orgânica. Nada disso o mestre consegue explicar. Ele pode orientar detalhes de movimenta- ção, como posição do pé, se deve ficar mais aberto ou mais fechado, se deve ser paralelo ou cruzado, posição da coluna, que deve seguir a linha da perna durante a ginga, braços sempre protegendo o rosto, entre outros detalhes visíveis que podem ser foco da orientação do professor. Mas ainda cabe apenas ao capoeirista analisar com a sua inteligência todas as orientações e adaptá-las à sua realidade corporal. Cada corpo é diferente– um é mais magro, outro é mais alto, um terceiro tem mais flexibilidade – logo não se pode esperar que todos executem a mesma movimentação da mesma forma. Não existe explicação do mestre que seja capaz de reduzir o esforço necessário do aluno para que compreenda e execute com fluidez qualquer movimento da capoeira. Segundo Rancière: As explicações, depois que se iniciou a era do progres- so, não cessam de se aperfeiçoar para melhor explicar, melhor fazer compreender, melhor ensinar a aprender, 47 Capoeira: Perspectivas Contemporâneas sem que jamais possa se verificar um aperfeiçoamento correspondente na dita compreensão(2010, p.23). O fracasso da evolução das explicações na melhoria da compreensão é uma prova irrefutável do fato de que o aprendiza- do do aluno não está única e diretamente relacionado ao ensino do professor. “O aluno deve ver tudo por ele mesmo, comparar incessantemente e sempre responder à tríplice questão: o que vês? O que pensas disso? O que fazes com isso?” (RANCIÈRE, 2010, p. 44). A primeira questão colocada pelo autor explicita o fato de que o aluno emancipado deve sempre estar atento ao que está à sua volta para que possa descrever tudo o que vê. Na segunda questão, tendo descrito tudo o quanto sua vista alcança, o aluno deve ser capaz de pensar a respeito, elaborar hipóteses, fazer as- sociações com o que já conhece, sem a obrigação de encontrar prontamente a verdade, mas simplesmente de pensar alguma coi- sa a respeito do que viu. Por fim, ele se pergunta: “O que faço com isso?” Nesse contexto, "isso" não é apenas o que ele tenha visto e analisado, mas também o próprio conhecimento que ad- quiriu a partir de todo seu pensamento. Tendo passado por essas três etapas, o aluno emancipado certamente chegará a um conhe- cimento novo. Segundo Rancière: Quem busca, sempre encontra. Não encontra necessa- riamente aquilo que buscava, menos ainda aquilo que é preciso encontrar. Mas encontra alguma coisa nova, a relacionar à coisa que já conhece. O essencial é essa contínua vigilância... (2010, p. 57). Tendo compreendido separadamente as figuras do mestre e do discípulo, é preciso entender como acontece a relação entre os dois, pois ambos não podem existir separadamente. Ou seja, não existe mestre sem discípulo, da mesma forma que não existe discípulo sem mestre. Ambos só podem existir em relação que, 48 Capoeira: Perspectivas Contemporâneas para Buber, se manifesta nas palavras princípio “EU-TU” e “EU- -ISSO”. “As palavras-princípio não expressam algo que pudesse existir fora delas, mas uma vez proferidas elas fundamentam uma existência” (BUBER, 2001, p.03). O autor coloca que não se pode separar os indivíduos que se encontram nas palavras-prin- cípio, pois elas não são a soma de um “EU” com um “ISSO” ou um “TU”, elas formam uma existência completa e indivisível no espaço da relação. Tanto o “EU” quanto o “TU”, ao formarem a palavra princípio “EU-TU”, estão abertos à atuação transfor- madora do outro. O verdadeiro mestre não ensina apenas, as- sim como o discípulo não aprende somente – ambos ensinam e aprendem um com o outro e se formam na relação. Ou seja, o discípulo não é tão inferior que não seja capaz de ensinar nada e o mestre não é tão superior que seja incapaz de aprender algo novo. A relação “EU-TU”, proposta por Buber (2001), deve ser horizontal. O mestre não deve ser superior a ninguém: ele é a referência de conhecimento em uma prática, alguém que é respeitado naquele meio, mas que não deve assumir um status divino por conta do seu saber. Uma música da capoeira retrata bem essa questão: “Sou discípulo que aprende, sou mestre que dou lição...”. Um capoeira é sempre capaz de ensinar algo, ao mesmo tempo em que nunca deixa de aprender. “A relação com o TU é imediata”(BUBER, 2001, p.13). Não há barreiras ou meios que separem o EU do TU, há apenas a relação. Não existem conceitos ou métodos que possam me- diar a ligação que acontece entre essas duas pessoas. Outro aspecto fundamental do EU-TU é a presença, ou seja, “o instante atual e plenamente presente” (BUBER, 2001, p. 20), instante esse que para a relação não passa, mas se pere- niza enquanto durar a relação. “Somente na medida em que o TU se torna presente a presença se instaura” (BUBER, 2001, 49 Capoeira: Perspectivas Contemporâneas p.20). Para aqueles que dizem a palavra princípio EU-TU, não existe passado ou futuro, apenas um presente que se atualiza a cada instante. Buber (2001) chama essa forma de relação de vínculo es- piritual e a compara com o que ele denomina vínculo natural puro, que é a vida pré-natal das crianças, o momento em que elas ainda estão no ventre materno. Para a criança, a vida in- trauterina é simbiose, pois ela não consegue se distinguir de sua mãe. Não se consegue determinar onde começa a vida de um e onde termina a vida do outro. De forma semelhante, a criança recém-nascida é arran- cada do seu vínculo natural e exposta a um universo estranho que com ela não possui qualquer relação. A partir desse mo- mento ela “tem um prazo para substituir a ligação natural, que a unia ao universo, por uma ligação espiritual, isto é, a rela- ção” (BUBER, 2001, p.29). Nesse sentido, se agregam todas as necessidades anteriormente colocadas para que se estabeleça a verdadeira relação EU-TU, que deve ser imediata, presente, recíproca, total e indivisível. O mestre de capoeira e o seu dis- cípulo também podem estabelecer uma relação que pode ser comparada com o que descreve a palavra-princípio “EU-TU”. Segundo mestre Moraes, em seu depoimento, o toque, na “pedagogia do africano”, é fundamental. “Ele toca o aluno para passar o sentimento... ele não toca unica- mente para consertar o movimento... ele passa muito mais a vontade de ver o aluno aprendendo, do que en- sinar o movimento correto”. Essa forma tradicional de ensinar passa pela proximidade que deve existir entre o mestre e o aprendiz. Uma proximidade corporal em que o afeto, a atenção e a disponibilidade do mestre se mostram integralmente (ABIB, 2004, p. 124). 50 Capoeira: Perspectivas Contemporâneas Mestre Moraes nos fala da “pedagogia do africano”, que se diferencia das formas ocidentais tradicionais de ensinar. O toque, como já vimos, é essencial, não apenas como forma de corrigir o movimento do discípulo, mas como meio de trans- missão de sentimento. O ato de tocar o aluno aproxima os dois de tal modo que, muito mais do que o conhecimento, o mestre passa afeto e a sua vontade de ver o aprendiz se desenvolvendo. Por outro lado, o toque não acontece de forma unilateral. Ao mesmo tempo em que é tocado, o discípulo toca o seu men- tor, não só recebendo os sentimentos dele, mas também trans- mitindo os seus próprios. Desse modo, o toque se estabelece como um canal aberto de relação, o espaço imediato e fecundo do EU-TU. A sociedade individualista na qual vivemos hoje dificil- mente cria possibilidades de relação verdadeira e profunda en- tre os indivíduos. A sociedade não enxerga a pessoa, apenas a função que ela exerce naquele determinado momento: vende- dor, consumidor, médico, paciente, advogado, cliente, profes- sor, aluno, patrão, empregado, entre várias outras. Contudo, há espaços dentro da sociedade onde ainda é possível vivenciar a palavra princípio EU-TU. A verdadeira re- lação mestre-discípulo é um destes espaços e a capoeira possui as condições de possibilidade para que ela se manifeste plenamente. Estes locais são o que Buber chama de comunidade, em oposição à sociedade. “A comunidade é a expressão e o desenvolvimen- to da vontade original, naturalmente homogênea, portadora de vínculo, representando a totalidade do homem [...]” (BUBER, 2008, p.50), enquanto que “[...] a sociedade é a expressão do desejo diferenciado em tirar vantagens, gerado por pensamento isolado da totalidade” (IDEM). A primeira é o lugar da relação, enquanto a segunda permite apenas a experiência. Na comunida- 51 Capoeira: Perspectivas Contemporâneasde, os indivíduos se constituem em vínculo interpessoal, forman- do um organismo que sobrevive de forma harmônica, onde todas as partes envolvidas têm a possibilidade de se beneficiar da vida comunitária e de colaborar com o grupo. De fato, a comunidade primitiva que existia antes de se tornar sociedade, se formou à medida que os homens, ainda sem consciência, de si, se juntaram em prol da sobrevivência do grupo. O homem percebe no grupo possibilidades de desenvolvimento que, sozinho, seria incapaz de alcançar. Ele assume a sua incapacidade e se submete voluntaria- mente à coletividade. Mas, com a evolução dos agrupamentos humanos, segundo Buber, “passamos pela era do individualismo, pela separação da pessoa de sua interdependência natural”. O ho- mem toma consciência da sua individualidade, percebe que não é mais um em meio a vários iguais, mas um ser único em meio a uma diversidade de seres. A partir daí, o indivíduo não mais se submete ao coletivo, mas espera que possa submetê-lo à sua von- tade – eis que surge a sociedade. O autor reconhece essa evolução da comunidade primitiva para a sociedade e afirma que “sem dú- vida, não podemos voltar a uma etapa anterior à sociedade meca- nizada, mas podemos ir além dela para uma nova organicidade” (BUBER, 2008, p. 52). A consciência da individualidade não permite ao in- divíduo abrir mão da sua vontade e retornar à organicidade original. A comunidade primitiva só poderia existir em um estágio anterior de desenvolvimento, no qual o homem ainda não percebia as suas próprias vontades como superiores à cole- tividade. A partir do momento em que o homem estabeleceu o direito à propriedade privada, se iniciou um caminho sem volta rumo à consolidação da sociedade. Buber (2008), no en- tanto, demonstra otimismo ao considerar a possibilidade de se alcançar uma nova comunidade, “preparar o caminho de uma nova organização social, em que o princípio a partir do qual 52 Capoeira: Perspectivas Contemporâneas tal crescimento surgiu retorna à atividade consciente” (p.52). A nova comunidade “não se baseia sobre um estar-com estático, mas dinâmico; não sobre homens semelhantes, feitos, formados e ordenados de modo semelhante, mas sim sobre pessoas que, formadas e ordenadas diferentemente, mantêm uma autêntica relação entre si” (BUBER, 2008, p.87). Para que essa nova organicidade possa surgir, é preciso também homens novos, que tenham consciência de si e do ou- tro, que sejam capazes de proferir o “EU-TU”. Estes indivíduos, capazes de viver em comunidade só podem surgir dentro dela. Segundo Buber (2008, p.90) “a educação para a comunidade só pode ocorrer através da comunidade”. Seguindo essa linha de raciocínio, o autor completa: “pode-se dizer que a comuni- dade educa na medida em que ela está presente. Pode-se tam- bém dizer: o indivíduo educa, na medida em que está presente” (IDEM). Sendo assim, a comunidade e a relação são fatores imprescindíveis para a educação. O professor só poderá verda- deiramente participar do desenvolvimento de seu aluno se for presença na sua vida, ou seja, se tornar um “TU” para ele. Eis aqui a importância fundamental da relação mestre-discípulo, não só na capoeira, mas em qualquer ambiente de aprendiza- gem. Não pode haver educação se, antes, os agentes envolvidos, não se permitirem encontrar no espaço fecundo do “EU-TU”, não se entregarem totalmente e imediatamente à relação dei- xando que ela os afete verdadeiramente. 4 CONCLUSÃO Essa discussão do papel desses dois agentes do processo educativo, mestre e discípulo, é de central importância para uma melhor compreensão de como deve se dar a transmissão 53 Capoeira: Perspectivas Contemporâneas do conhecimento e da tradição da capoeira do professor para o seu aluno. Como já dito anteriormente, não pode existir um mestre de capoeira que não tenha discípulos, que não seja visto como referência para os demais capoeiristas que compõem seu grupo, sua comunidade. O verdadeiro mestre é aquele que é conhecido por sua comunidade e nela é visto como o detentor do conhecimento e da tradição da capoeira, portanto aquele capaz de ser seu transmissor. Por outro lado, todos os que buscam se tornar capoeiristas e se aperfeiçoarem nessa arte-luta devem buscar, segundo seus valores e suas crenças, aquela pessoa que será a sua referência no universo da capoeiragem, aquele cujos ensinamentos buscará seguir – essa será o seu mestre. Ao se encontrarem, se estabe- lecerá a relação mestre-discípulo, única, imediata e irrepetível. Essa relação, segundo a visão explicitada na dissertação de mes- trado O valor educativo da capoeira, deve ser horizontal, de modo que ambas as partes se permitam vivenciar e transformar na relação “EU-TU”. Concluo afirmando que a relação interpessoal profunda “EU-TU”, que contribui para a formação do que Buber(2008) chama de comunidade verdadeira, deve ser a relação criada en- tre mestre e discípulo, assim como entre mestre e mestre e entre discípulo e discípulo. Essas relações e a formação da comunida- de capoeira são um importante espaço educativo que atua como força de resistência aos mecanismos que buscam transformar o ser humano em uma máquina de trabalho, em apenas mais uma engrenagem da grande máquina social, desprovida de alte- ridade e de relacionamentos reais. 54 Capoeira: Perspectivas Contemporâneas REFERÊNCIAS ABIB, Pedro Rodolpho Jungers. Capoeira Angola: cultura popular e o jogo dos saberes na roda. Unicamp, Campinas, SP, 2004. BUBER, Martin. EU e TU. São Paulo, SP: Centauro, 2001. _____________, Sobre comunidade. São Paulo, SP: Perspectiva, 2008. GEEVERGHESE, Manoj. O valor educativo da capoeira. UnB, Brasília, DF, 2013. MARTINS, Evandro Silva. A Etimologia de Alguns Vocábulos Referentes à Educação. Olhares e trilhas. AnoVI, n. 6, pp. 31-36, 2005. PIRES, Antonio Liberac Cardoso Simões. Movimentos da cultura brasi- leira: A formação histórica da capoeira contemporânea 1890-1950. Uni- camp, Campinas, SP, 2001. PRESTES, Zoia Ribeiro. Quando não é quase a mesma coisa – análise de traduções de Lev Semionovitch Vigotski no Brasil: Repercussões no campo educacional. UnB, Brasília, DF, 2010. RANCIÈRE, Jacques. O mestre ignorante: cinco lições sobre a emancipa- ção intelectual. Belo Horizonte, MG: Autêntica, 2010. REIS, André Luiz Teixeira. Capoeira: saúde e bem estar social. Brasília, DF: Thesaurus, 2006. SILVA, Gabriela Tunes da. Sobre possibilidades de exercício da ética in- ter-humana no jogo da capoeira. Revista virtual de gestão de iniciativas sociais, número 10. UFRJ, Rio de Janeiro, RJ, 2007. SOARES, Carlos Eugênio Líbano. A negregada instituição: Os capoeiras no Rio de Janeiro 1850-1890. Unicamp, Campinas, SP, 1993. ____________. A capoeira escrava no Rio de Janeiro 1808-1850. Uni- camp, Campinas, SP, 1998. 55 AS AULAS DE CAPOEIRA E A UTILIZAÇÃO DAS NOVAS TECNOLOGIAS DA INFORMAÇÃO E COMUNICAÇÃO - TIC Luciana Maria Fernandes Silva 1 INTRODUÇÃO De acordo com Kenski (2012), as novas Tecnologias da Informação e Comunicação (TIC) compreendem os processos de produção e utilização de tecnologias es- pecíficas da área da informação e comunicação, usufruindo da ligação entre as linguagens oral, escrita, do som, da imagem e do movimento. São empregadas para a produção e propagação de informações, bem como para a interação e a comunicação em tempo real, principalmente pelas redes digitais, através da internet. A autora ainda esclarece que as TIC, de maneira geral, vêm transformando não só a vida cotidiana do homem, como também as ações e as formas de pensar a realidade e, em espe- cial, as maneiras de trabalhar as formas de ensinar (KENSKI, 2012). Como tema da cultura corporal brasileira, fazendo parte de diferentes contextos educacionais, não seria possível à Capo- eira manter-se alheia a esta realidade. 56 Capoeira: Perspectivas Contemporâneas Inicialmente, é um pouco difícil imaginar de que ma- neira a capoeira pode utilizar as TIC. Entretanto,
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