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Maria Paula Miranda Chaim Virgínia Elizabeth Suassuna Martins Costa Criança Diagnosticada com Transtorno do Espectro Autista: Interface entre Floortime e Gestalt-terapia Copyright © 2015 by Maria Paula Miranda Chaim & Virgínia Elizabeth Suassuna Martins Costa Diagramação: Julienne Alves Projeto Gráfico e arte final da capa: Victor Donizete de Souza Mendonça Editor (e-book): Leonardo Guerra de Rezende Guedes, Dr. Editora (e-book): London 7 Ed., prefixo editorial nº 67929, www.london7.com.br Editora (impresso): Editora Kelps, e-mail: kelps@kelps.com, www.kelps.com.br ISBN: 978-85-67929-19-4 (e-book) / 978-85-400-157-8 (impresso) Coordenação Gráfica: Editora Kelps, e-mail: kelps@kelps.com, www.kelps.com.br CIP. Brasil. Catalogação-na-Fonte BIBLIOTECA PÚBLICA MUNICIPAL MARIETA TELLES MACHADO C348 Chaim, Maria Paula Miranda. Costa, Virgínia Elizabeth Suassuna Martins Criança Diagnosticada com Transtorno do Espectro Autista: Interface entre Floortime e Gestalt-terapia / Maria Paula Miranda Chaim. Virgínia Elizabeth Suassuna Martins Costa - Goiânia: kelps (impresso), 2015. 50 p. ISBN: 978-85-67929-19-4 (e-book) / 978-85-400-157-8 (impresso) I. Psicologia (159.9) 1.Transtorno do Espectro Autista. 2.Floortime. 3.Gestalt-terapia. 4.Família. CDU: 159.9 DIREITOS RESERVADOS - É proibida a reprodução total ou parcial da obra, de qualquer forma ou por qualquer meio, sem a autorização prévia e por escrito do autor. A violação dos Direitos Autorais (Lei nº 9610/98) é crime estabelecido pelo artigo 184 do Código Penal. Goiânia, 2016 Agradecimentos Agradecer! Virtude necessária, inusitada e pouco praticada nas relações humanas. Tive a oportunidade de aprender a importância da palavra gratidão e, inseri-la no meu cotidiano, mudou minhas relações e me torna cada dia mais grata pelos encontros relacionais que acontecem ao longo da minha vida. Agradeço imensamente a Deus, por seu meu fiel companheiro. Aos meus pais, Marcos e Sara, por serem meus alicerces, permitindo-me acreditar e realizar meus sonhos, abraçando os desafios da vida ao meu lado. Aos meus familiares, que comemoram minhas conquistas com muito entusiasmo e alegria. Aos meus amigos, pelo companheirismo e motivação. Ao meu namorado, Gustavo Caiado, por ser exemplo de força e dedicação, além de não medir esforços para me ajudar, me compreender e acreditar nas minhas potencialidades. À minha orientadora, Dra. Virgínia Suassuna, que com competência, dedicação e sabedoria transmite seus ensinamentos, alimenta esperança, reestabelece ânimo e fortifica sonhos no meu coração. Ao meu terapeuta, Ms. Danilo Suassuna, por perceber em mim virtudes que às vezes não enxergo, me incentivar a ir além e demostrar que continuaremos juntos nas relações profissionais. À Dra. Maria das Graças, pelo exemplo de humildade, profissionalismo e amor pelas crianças. A todos os professores e funcionários da Pontifícia Universidade Católica de Goiás, pela acolhida e pelo incentivo diário. Aos pacientes que me permitiram aprender a vivenciar o que é ser terapeuta e, em especial, a Conrado e toda sua família que se disponibilizaram, amando, cuidando e desenvolvendo comigo meu grande sonho: ser terapeuta de uma criança diagnosticada com Transtorno do Espectro Autista. Minha eterna gratidão e reconhecimento a todos vocês, com os quais vivenciei momentos únicos. Maria Paula Miranda Chaim Apresentação O Transtorno do Espectro Autista (TEA) refere-se a déficits clinicamente significativos e persistentes na comunicação e interação, bem como a padrões de comportamentos repetitivos e estereotipados. Independentemente do diagnóstico dentro do espectro, a criança é um ser relacional e seu desenvolvimento deve ser situado no seu contexto familiar. Este estudo, fundamentado na interface Floortime/Gestalt-terapia, objetivou atender uma criança diagnosticada com TEA e orientar a mãe com o intuito de ampliar a sua compreensão do transtorno e o elo criança-família, tornando-as parte ativa no processo. Observou-se, por meio da metodologia do Floortime e da Gestalt-terapia, o desenvolvimento do autossuporte, expresso na abertura de outras possibilidades de autorregulação, de contato e de escolhas, vivenciadas nas relações sociais, especificamente na esfera intrafamiliar. Palavras-chave : Transtorno do Espectro Autista; Floortime; Gestalt-terapia; Família. Índice I. Criança Diagnosticada com Transtorno do Espectro Autista: Interface entre Floortime e Gestalt- terapia II. Estudo de Caso III. Resultados e Discussão IV. Considerações Finais Referências Criança Diagnosticada com Transtorno do Espectro Autista: Interface entre Floortime e Gestalt-terapia “Eu queria pegar o trem e colocar no trilho e aqui eu (...) percebi que, às vezes, é preciso (...) voltar três estações para caminhar uma. Não tem problema”. (Bianca, mãe de uma criança autista) Historicamente, o Transtorno do Espectro Autista (TEA) esteve inserido no conceito de psicose infantil, afastando-se do estigma deste diagnóstico apenas no século XX, quando não mais passou a ser incluído entre os diagnósticos de demência e esquizofrenia infantil. No entanto, somente em 1943, foi legitimado como “Autismo Infantil Precoce” pelo psiquiatra infantil Leo Kanner, segundo o qual a criança autista apresentava características que a definiam como possuidora de uma síndrome específica, pois do diagnóstico extraíam-se as perturbações infantis historicamente a ela correlacionadas (Carmichael, 1975; Tuchman & Rapin, 2006). A partir de tal formulação teórica e tendo como marco inicial a primeira infância, as características que determinavam a síndrome do autismo puderam ser apresentadas (Ellis, 1996; Gadia, Tuchman, Rotta, 2004; Kanner, 1943; Tuchman & Rapin, 2006): profunda falta de contato emocional com outras pessoas; fala ausente ou idiossincraticamente desenvolvida; fascinação por objetos e destreza no seu manuseio; desejo obsessivo de preservar a imutabilidade do ambiente e/ou rotinas familiares; evidências de inteligência potencialmente boa segundo a aparência facial, os feitos de memória ou as habilidades de realizar tarefas envolvendo encaixes e montagens. Assim como Kanner (1943), outros autores foram fundamentais para a definição e classificação das características do autismo, entre eles, Ritvo (1976) que desvinculou o autismo da psicose, relacionando-o a déficits cognitivos e transtorno do desenvolvimento. Entretanto, mesmo com a mudança das definições, classificações e características, a etiologia desse transtorno não foi definida, sendo necessário, para uma compreensão mais ampla, considerar também fatores genéticos e ambientais (Assumpção & Kuczynski, 2011). A ausência de um único marcador biológico torna o diagnóstico diferencial do TEA, assim como ocorre com outros quadros psiquiátricos, dependente dos modelos categoriais classificatórios atualmente adotados, sobretudo a Classificação Internacional de Doenças 10° edição (CID-10) e o Manual de Classificação de Doenças Mentais da Associação Americana de Psiquiatria (DMS-5) (Assumpção & Kuczynski, 2011; DSM- 5, 2014; OMS,1993). Tendo como referência a CID-10, o autismo caracteriza-se por uma anormalidade do ´desenvolvimento que deve ser notada nos três primeiros anos de vida. Está também incluído na categoria de Transtorno Mental e do Comportamento, especificamente na subcategoria Transtorno Invasivo do Desenvolvimento, definido por alterações qualitativas das interações sociais recíprocas e da comunicação e por um repertório de interesses e atividades restrito, estereotipado e repetitivo (OMS,1993). Já o DSM-5 (2014) traz uma nova compreensão da temática do autismo, que se inicia pela mudança da própria nomenclatura para Transtorno do Espectro Autista (TEA), assim abrangendo as classificações dos seguintes transtornos: Autismo, Síndrome de Asperger, Transtorno Desintegrativo e Transtorno Global do Desenvolvimento. Essa diferenciação sugere que asperturbações não são melhor explicadas por deficiência intelectual ou atraso global do desenvolvimento, considerando-se, neste caso, os seguintes critérios diagnósticos: presença dos sintomas precoces no período do desenvolvimento; déficits persistentes na comunicação e interação social em múltiplos contextos; padrões restritos e repetitivos de comportamento, interesse ou atividade; prejuízo clinicamente significativo no funcionamento social, profissional ou em outras áreas importantes da vida da pessoa naquele momento. Apesar das diferenças conceituais e de nomenclatura observadas em ambos os modelos classificatórios, alguns princípios se mantiveram: sintomas mais marcantes das crianças portadoras do TEA, utilização dos manuais classificatórios para concluir o diagnóstico e a estagnação quanto à sua compreensão. O último tema apresenta maior importância, complexidade e interesse para a psicoterapia, pois não há uma aquiescência unificada, estando indiscutivelmente sujeito às influências do modismo (Consenza & Guerra, 2011; DSM-5, 2014; Gadia et al., 2004; OMS,1993). As duas estratégias terapêuticas mais utilizadas para o tratamento de crianças com TEA baseiam-se nos pressupostos/técnicas da área comportamental, sendo elas: ABA (Applied Behavior Analysis) e Teacch (Treatment and Education of Autistic and Communication Handcapped Children). Quando adotados os princípios do behaviorismo, técnicas específicas são utilizadas associando ambiente, comportamento humano e processo abrangente e estruturado de ensino-aprendizagem ou reaprendizagem, a fim de possibilitar à criança mudanças ou transformações construtivas em sua forma de se comportar (Gauderer, 1997; Leon & Osório, 2011; Moreira & Medeiros 2007). Entretanto, além das possibilidades de análise do comportamento, existem diversas abordagens, modelos, métodos e técnicas de intervenção potencialmente eficazes no tratamento dessas crianças. Nesse sentido, ressalta-se que a falta de compreensão diagnóstica gera um grande número de propostas de intervenções ou tratamentos psicoterapêuticos, o que impede a comprovação de uma técnica como sendo realmente eficaz para as crianças autistas. Contudo, afirma-se que a participação e a colaboração da família constituem fatores essenciais para o êxito de qualquer trabalho realizado, visto que a maioria busca organizar o contexto familiar, oferecendo respostas planejadas para minimizar a confusão da criança, assim facilitando e intensificando o desenvolvimento das funções adaptativas (Rivière, 1995; Aguiar, 2014). Uma das propostas que preconizam a inclusão familiar como parte fundamental do processo psicoterapêutico é o Modelo DIR (Developmental, Individual Difference Relationship- Based), que adota uma abordagem desenvolvimentista e considera a família como fator contribuinte para o sucesso e a manutenção das habilidades aprendidas e vividas pela criança (Trecker, 2001). Segundo esse modelo, a criança alcança a plenitude do desenvolvimento emocional e intelectual ao atingir seis marcos básicos: noção de regulação e interesse pelo mundo externo; engajamento e relacionamento; intencionalidade e comunicação em duas vias; solução de problemas, regulação do humor e formação de um sentido de self; aparecimento dos símbolos e do uso de palavras e ideias; capacidade de abstração visando ao pensamento lógico e sentido de realidade (Greenspan & Wieder, 2000; Lantz, 2001). Ao assinalarem a plenitude do desenvolvimento emocional e intelectual, Greenspan e Wieder (2006) pontuam que crianças autistas apresentam dificuldades em obtê-la, em decorrência de reações sensoriais exacerbadas ou diminuídas, e também do controle falho dos comandos físicos. Portanto, o Modelo DIR visa ampliar a consciência da criança autista como indivíduo intencional e interativo, além de possibilitar o desenvolvimento de capacidades linguísticas, sociais e de atenção compartilhada (Piacentini, Goldstein & Capelli, 2011). Para que os marcos básicos do desenvolvimento sejam contemplados, as intervenções iniciais devem propor o conhecimento dos prazeres da criança, para, posteriormente, desejar expandir os interesses pelo mundo ao seu redor. Vinculado ao modelo DIR, o método Floortime considera que o prazer primordial da criança, seja ela diagnosticada ou não com algum transtorno, é brincar. Logo, este método busca estabelecer relações adulto-criança por meio de brincadeiras no chão, a fim de apreender suas limitações, habilidades e, assim, trazê-la para o mundo compartilhado, demonstrando o envolvimento e a influência da família no processo terapêutico (Trecker, 2001). A busca pelo estabelecimento de relações faz com que as cinco etapas do Floortime sejam valorizadas, a saber: avaliar/observar a forma como a criança brinca e a fase do brincar; abrir círculos de comunicação; seguir a iniciativa da criança ao brincar, adentrando em seu mundo e atribuindo significados; expandir a brincadeira gradativamente, estimulando habilidades das menos complexas para as mais complexas; e fechar os ciclos de comunicação (Greenspan & Wieder, 2006). Ao seguir tais etapas, observa-se a importância de considerar e respeitar a vontade da criança, pois é por meio desse cuidado que se abrem possibilidades de rompimento das barreiras de acesso à vida emocional e intelectual, tornando possível ajudá-la a expressar suas ideias e estabelecer interações comunicativas, valorizando a comunicação recíproca e possibilitando-lhe a vivência de construir vínculos afetivos (Greenspan & Wieder, 2006). Paradoxalmente, por serem vivenciados na relação adulto-criança o respeito e a permissão para a criança ser quem ela é, os atrasos do desenvolvimento são observados simultaneamente às habilidades, o que permite reduzir os comportamentos repetitivos e favorecer a identificação, sistematização e integração das funções essenciais às capacidades de desenvolvimento. Além disso, nessas condições, facilita-se ainda a compreenstão dos familiares envolvidos em relação à criança com TEA (Greenspan & Wieder, 2006; Trecker, 2001). As estratégias de aplicação do método Floortime baseiam-se no desenvolvimento, na individualidade e na relação entre as díades (Greenspan & Wieder, 2006; Trecker, 2001). O respeito à singularidade de cada criança, vivenciado por meio da interação, encontra-se presente nos referenciais humanista, existencialista e fenomenológico que respaldam a Gestalt-terapia, abordagem psicoterapêutica que valoriza a intersubjetividade, confirmando que a capacidade de compreender e tratar o ser humano se dá a partir da totalidade existencial e se desenvolve por meio da relação (Forghieri, 2004; Holanda, 2014; Ribeiro, 2007). A perspectiva humanista ressalta a importância de considerar o homem como centro, valorizando aquilo que ele tem de belo e positivo. Ao compreendê-lo segundo esses parâmetros é possível observar sua individualidade, suas forças e potencialidades, vendo-o para além de um sintoma a ser tratado (Amatuzzi, 2012; Duarte, 2002; Mendonça, 2013; Holanda, 2014; Ribeiro, 1999; Rogers 1994;). A adoção de tal perspectiva permite que o ser humano seja visto como um ser integrado e em formação, o que remete ao pensar filosófico do existencialismo, cuja categoria central é a existência humana. Segundo Sartre (2012), um dos principais filósofos precursores desse referencial, “a existência precede a essência”, significando que o homem surge no mundo como um ser particular, sem possibilidades de definição prévia, podendo vir a ser, por meio das relações estabelecidas, um ser livre para fazer escolhas, consumando seu projeto de vida de ser- no-mundo (Ginger & Ginger, 1995; Ribeiro, 1985; Yontef, 1998). Ademais, é possível concebê-lo como ser dotado da capacidade de transcender e projetar a situação imediata, na medida em que é sujeito de sua história, com possibilidades de construir relações significativas com o mundo, com o outro e consigo mesmo. Pode ainda construir-se a partir da totalidade das relações estabelecidas enquanto um ser-no-mundo (Bisnwanger, 1967; Cardella,2002; Forghieri, 2004). Concebendo o homem como ser-no-mundo, o existencialismo dialógico enfatiza o inter- humano ao afirmar que todo viver autêntico constitui um encontro que se insere na esfera do “entre” e possibilita dois tipos de atitudes: Eu-Tu, implicando interesse genuíno pelo outro, valorizando a sua alteridade; e Eu-Isso, a coisificação do outro, utilizando-o como meio para um fim (Buber, 2009; Hycner, 1995). Com base nessa vertente e utilizando conceitos como inclusão, presença, confirmação, aceitação e encontro genuíno, a Gestalt-terapia constrói sua perspectiva metodológica dialógica, com ênfase na necessidade de disponibilidade por parte do terapeuta para adentrar na experiência subjetiva do cliente, aceitando-o em sua totalidade, singularidade e respondendo, a cada momento, às mudanças. Essa postura exige deste profissional um movimento de “ir e vir”: estar centrado na própria existência e ser capaz de ver o mundo, por alguns momentos, com os olhos do cliente (Buber, 2001; Hycner, 1995; Yontef, 1998). A aderência a tais posturas permite a construção de uma efetiva relação de confiança entre cliente e terapeuta, o que possibilita revisitar e re-significar, na sua totalidade, as diversas categorias de diálogo que incluem: relação, reciprocidade, subjetividade, responsabilidade, decisão-ação-liberdade no inter-humano (Buber, 2009; Hycner, 1995; Hycner & Jacobs, 1997). No entanto, para adotar a metodologia dialógica é necessário que se compreenda o referencial filosófico da fenomenologia. A fenomenologia é o estudo dos fenômenos que se manifestam por si mesmos, com vistas à sua compreensão, em oposição aos pressupostos da psicologia objetivista e experimental, que defendem a explicação de um fenômeno a partir de relações causais ou processos evolutivos, assim desconsiderando a subjetividade. A fenomenologia vai além de uma nova proposta metodológica, ressaltando que a consciência é intencional e, portanto, dirige-se a algo. Por sua inovadora forma de apreender o mundo, esse referencial fenomenológico teve amplas repercussões na filosofia, psiquiatria e psicologia (Forghieri, 2004; Holanda, 2014; Husserl, 2000). A psicologia, em especial, apropriou-se deste pensar na abordagem clínica Gestalt- terapia e, para empregá-la, a epoché ou redução fenomenológica é apresentada como um dos passos a serem seguidos, consistindo na suspensão de qualquer juízo existente a priori para que a realidade possa ser apreendida tal como ela é, em sua essência, possibilitando a descrição do fenômeno que emerge no contexto (Husserl, 2000; Ribeiro 1985; Yontef, 1998). Nessa perspectiva, caminhar segundo os pressupostos filosóficos da fenomenologia possibilita ao terapeuta uma ampliação da consciência, denominada awareness, que ocorre sempre no aqui-e-agora e é definida como a possibilidade de apreender o que se passa no mundo do cliente no momento atual, tanto a nível corporal quanto mental e emocional (Frazão, 1997; Yontef, 1998). A importância de situar o indivíduo no aqui-e-agora insere-se nas bases teóricas da Gestalt-terapia, a saber: psicologia da Gestalt, teoria de campo e teoria organísmica (Ginger & Ginger, 1995; Perls, 1988; Ribeiro, 1985). O aqui-e-agora é um dos princípios da psicologia da Gestalt e sugere a compreensão da realidade como um todo e a explicação no agora. A teoria em questão foi desenvolvida por Max Wertheimer, em parceria com Wolfgang Kohler e Kurt Koffka, em 1912, tendo como premissa o estudo da percepção e das relações do organismo com o seu meio (Ginger & Ginger, 1995; Ribeiro, 1985). Ademais, Perls (1977), corroborando tais princípios, enfatiza que a organização de fatos, percepções, comportamentos ou fenômenos é o que define e atribui significado específico e particular ao indivíduo. O autor desenvolve ainda os conceitos de figura e fundo, todo e parte, nos quais está contida a ideia de totalidade integrada, o que impossibilita um existir sem o outro. Sob tal concepção, não é possível a compreensão do homem como um ser fragmentado, pois, a todo momento, podem emergir novas figuras, abrindo espaço à totalidade (Ginger & Ginger, 1995; Ribeiro, 1985; Polster & Polster, 2001). Goldstein (1995), com base nas premissas da psicologia da Gestalt, desenvolveu a teoria organísmica, cuja proposta é compreender o ser humano por meio do método holístico, que considera a totalidade como elemento básico para o entendimento do funcionamento humano, do sintoma, da autorregulação e da modificação do organismo quando algo é alterado no campo das perspectivas (Cardella, 2002; D’ Acri, Lima, & Orgler, 2012; Lima, 2014; Ribeiro 1985). Sob essa ótica, é possível afirmar que o homem é um ser dinâmico que busca pela homeostase - um processo de manutenção do equilíbrio, mesmo quando a pessoa se encontra doente ou deficiente -, e apresenta sua figura fluida, de acordo com o campo em que está inserida (Cardella, 2002; Goldstein, 1995; Perls, 1988; Ribeiro 1985). O campo no qual o indivíduo está inserido traz, por sua vez, relações com a teoria de Lewin (1965), o qual refere: “a totalidade dos fatos coexistentes em dado momento é concebida em termos de mútua interdependência, cuja significação depende da percepção dessa correlação entre sujeito e objeto” (p.64). Com base nessa referência, observa-se que o homem, a todo momento, está se movimentando em um campo fenomênico total, e que não é somente o campo em si que irá influenciar no desenvolvimento de comportamentos saudáveis ou adoecidos, mas sim o modo como a pessoa entra em contato com este campo, sendo o adoecer o resultado de uma desarmonia na relação entre a pessoa e o ambiente (Koffka, 1982; Ribeiro, 1985; Ribeiro, 2007). O termo contato refere-se a todo o processo de reconhecer o self e o outro pela movimentação em direção a conectar-se/fluir-se e também por separação/afastamento. Trata-se de um processo que permite o fluir da relação, considerando que a experiência humana se da´ entre as vivências do indivíduo (Hycner, 1995; Ribeiro, 2007; Yontef, 1998). Segundo os pressupostos gestálticos, a diferença vivida entre si e o outro permite o encontro, sendo que a relação de aproximação e separação possibilita organizar e delimitar a fronteira, fato que favorece a preservação da própria identidade. A fronteira de contato e´ considerada, portanto, o espaço limítrofe subjetivo em que os eventos psicológicos acontecem. Além disso, nela se inserem os mecanismos considerados saudáveis e disfuncionais, a partir das relações estabelecidas, representadas pelo ciclo de contato (Ribeiro,2007). O ciclo de contato proposto por Ribeiro (2007) traz ajustamentos que correspondem a formas específicas do homem lidar com o mundo e consigo mesmo, bloqueando, amenizando ou dificultando a realização do contato pleno e genuíno. Essas formas se apresentam como fatores de cura: fluidez, sensação, consciência, mobilização, ação, interação, contato final, satisfação e retirada, e como fatores de evitação de contato: fixação, dessensibilização, deflexão, projeção, proflexão, retroflexão, egotismo e confluência (Aguiar, 2014; Cardella, 2002; Ginger & Ginger, 1995). Direcionando tais fatores para o universo infantil, o desenvolvimento da criança inevitavelmente perpassa os mecanismos de contato em suas várias formas. As estratégias mais comuns de evitação nesse período da vida incluem a introjeção (aceita opiniões arbitrárias, sem conseguir se defender, preferindo a rotina e as situações facilmente controláveis), confluência (dificuldade de discriminação entre si mesma e o outro), retroflexão (volta para si uma energia que deveria ser dirigida ao mundo), deflexão (evitação do contato) e projeção (sente-se ameaçada pelo mundo e identifica no outro algo de si que não consegue perceber em si mesma) (Antony, 2012; Aguiar, 2014; Perls, 1977; Ribeiro, 2007; Rodrigues, 2009). Correlacionando tais mecanismos à compreensão do TEA, este pode, baseado na Gestalt- terapia, ser considerado um problema de contato e fronteira, relacionado ao enrijecimento dos limites dasfronteiras de contato e à dificuldade de realizar introjeções daquilo que foi ensinado, levando a criança a bloquear a comunicação do organismo com o ambiente, isolando-se e diminuindo sua capacidade de estabelecer relações. Esses comportamentos decorrem da percepção da criança em considerar o ambiente nocivo e, portanto, julgar necessário encontrar meios para se defender (Guadalupe, 1997). Por ser tratar de uma criança com dificuldade de se relacionar, a família emerge em destaque, pois, segundo os conceitos da Gestalt-terapia, ela representa o principal campo no qual a criança está inserida e em permanente interação. Portanto, quando se apreendem a configuração e as funções familiares estabelecidas, torna-se possível definir o diagnóstico e estabelecer prioridades de intervenção (Aguiar, 2014; Frazão, 1997). Correlacionando tais mecanismos, e ainda reconhecendo o papel familiar no TEA, considera-se fundamental o convívio dos pais com toda a sintomatologia, assim como importante elaborarem o luto pela perda do filho ideal, construindo a possibilidade de perceber as reais capacidades e potencialidades da criança (Fávero & Santos, 2005). Nessas circunstâncias, por compreender a situação a partir da perspectiva relacional e de campo, para a qual o organismo não é autossuficiente, enfatiza-se a participação ativa da família, uma vez que favorece o desenvolvimento das habilidades da criança e simultaneamente permite a construção de relações satisfatórias entre pais e filhos, aspectos que justificam o interesse pela temática. A partir de tais pontuações e da discussão de diversos aspectos teóricos que sugerem a eficácia do tratamento diretamente relacionada à participação ativa da família, será descrito um estudo de caso que objetivou-se atender uma criança diagnosticada com TEA e, simultaneamente, orientar e os familiares, tendo como base os princípios do Floortime e da Gestalt-Terapia. Ademais, pretendeu-se: Investigar as possibilidades da utilização dos recursos do Floortime associados às ferramentas da metodologia da Gestalt-terapia; Identificar as etapas do desenvolvimento infantil nas quais as crianças se encontram particularmente interrompidas; Investigar como a família pode ser parte ativa no processo terapêutico, associando aprendizado e emoção; Desenvolver suporte emocional para possibilitar ao terapeuta aprendizados efetivos no âmbito do desenvolvimento infantil; Apresentar e discutir bases teóricas e práticas que fundamentam uma intervenção em Gestalt-terapia associada ao método Floortime para pessoas com desenvolvimento atípico; e Orientação familiar com intuito de ampliar a compreensão do transtorno e o elo criança-família. II Estudo de Caso Participantes: Bianca (nome fictício), 38 anos, sexo feminino, e seu filho Conrado (nome fictício), 4 anos, sexo masculino, estudante do maternal em escola regular. Bianca relata que no período de nascimento do Conrado vivenciou uma separação judicial que impede o seu relacionamento e do filho com o ex-marido. Conrado nasceu com malformação do lobo frontal e, no decorrer do desenvolvimento, demonstrou atraso físico, intelectual, social e emocional. No início de 2014, portanto aos 2 anos e 11 meses de idade, foi diagnosticado com Transtorno do Espectro Autista (TEA) e iniciou seus acompanhamentos terapêutico e fonoaudiológico em setembro de 2015. Conrado não faz uso de fármacos e apresenta atrasos na linguagem verbal e não verbal, padrões restritos, repetitivos e egoísticos de comportamentos e interesses, adesão inflexível a rotinas, desinteresse por crianças ou brincadeiras, hiperatividade a estímulos sensoriais tátil e auditivo, isolamento social, intolerância a frustração e lugares fechados ou com muitas pessoas, irritabilidade extrema, desobediência a ordens, dependência na execução das atividades básicas, posse e egoísmo com seus objetos, aversão ao vaso sanitário, dificuldade na retirada da fralda e pobre contato visual, motivos pelos quais foi conduzido à terapia. Materiais: Utilizou-se, durante todo o trabalho, um consultório, situado no Centro de Estudos e Pesquisa de Psicologia (CEPSI) da Pontifícia Universidade Católica de Goiás (PUC-GO). Instrumentos: Permanentes: Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE), Termo de Assentimento, questionário de informações sociodemográficas e clínicas, exemplar da questão norteadora da entrevista, gravador digital, ipad com câmera de vídeo e microfone, celular, microcomputador, impressora jato de tinta, pen drive, almofadas, tatame de borracha infantil, espelho, mesas e cadeiras. De consumo: jogos, carrinhos, bonecos, bola, balões, brinquedos de borracha, cesta de piquenique, louças e alimentos de plástico, piscina de plástico, bacia, feijões, fitas adesivas coloridas, tintas, pincéis, jogos eletrônicos no ipad, papel ofício branco, canetas e cartuchos de tinta preta e colorida para impressora. Procedimentos: Primeiramente, realizou-se contato com pessoas dos setores responsáveis pela aprovação do desenvolvimento da pesquisa e, mediante as aprovações em todas as instâncias, iniciou-se a seleção dos participantes com base nas análises dos prontuários do CEPSI. A ficha de Conrado foi escolhida entre as demais e, no primeiro contato com a mãe, a pesquisadora realizou um acolhimento inicial, informando-a sobre os objetivos do estudo. Ainda neste encontro, ocorreu a leitura detalhada do TCLE na presença da mãe, a qual também foi informada juntamente da criança sobre a necessidade do Termo de Assentimento, pelo estudo envolver uma criança. Após, ambos os documentos foram assinados, assim autorizando a gravação de áudios e vídeos, para fins estritamente acadêmicos e científicos. Em encontros posteriores, Bianca respondeu ao questionário de informações sociodemográficas e clínicas e, atendendo ao objetivo da pesquisa, participou do processo de orientação semanalmente. Foi também entrevistada pela terapeuta-estagiária após a 25° sessão, última considerada para efeito deste estudo, a fim de possibilitar a compreensão dos resultados que emergiram como interface, resultantes da utilização da metodologia Floortime/Gestalt-terapia no tratamento do seu filho. Já a criança fez acompanhamento psicoterapêutico duas vezes por semana e também teve acompanhamento escolar, estritamente observacional, uma vez na semana, ambos com vistas a alcançar o objetivo do estudo. Para fins deste trabalho, foram consideradas 25 sessões e 02 acompanhamentos escolares, os quais ocorreram de setembro a dezembro de 2015. Destaca-se que, em algumas sessões, houve a participação da coterapeuta, a fim de auxiliar no desenvolvimento do processo terapêutico. Optou-se por adotar, ao longo dos atendimentos e das orientações, a metodologia do Floortime e a metodologia dialógica e fenomenológica, assim possibilitando o desvelamento da interface supracitada. Para a análise dos dados procedentes das orientações e dos atendimentos, foram realizadas leituras descritivas e atentivas do que se mostrou nas gravações de áudio e nos vídeos das sessões selecionadas, seguidas das justificativas teóricas demonstrando a interface entre o Floortime e a Gestalt-terapia. Para análise da entrevista, utilizou-se o método de pesquisa fenomenológica proposto por Giorgi (1985). Seguindo os quatro passos preconizados pelo autor para essa análise, foram apreendidas unidades de significado que expressaram o conteúdo temático do depoimento. Para tanto, conduziu-se a entrevista pela seguinte questão norteadora: como você percebe o desenvolvimento do seu filho a partir dos nossos atendimentos? Adotou-se este modelo de entrevista por possibilitar, segundo Turato (2003), que tanto o entrevistador quanto o entrevistado direcionem e participem do processo da entrevista, o que viabiliza o emergir de várias facetas do fenômeno e abre perspectivas de acesso ao vivido. Ainda, essas características do instrumento favorecem a compilação e análise dos dados diante do objetivo proposto. III Resultados e Discussão Com base nas queixas apresentadaspela mãe da criança e necessidades de orientação familiar, serão apresentados fragmentos de falas oriundas de algumas sessões selecionadas para fins deste trabalho, com o intuito de evidenciar a interface entre o Floortime e a Gestalt-terapia. Relatórios escolares também farão parte das descrições, uma vez que complementam o processo de atendimento. Na primeira sessão, ainda na recepção, Conrado apresentou comportamentos de estereotipia, batendo os joelhos no chão e chorando. Também neste momento vomitou e se recusou a entrar na sessão sem a presença da mãe. Segundo a metodologia do Floortime, a participação dos pais é fundamental no tratamento de crianças com necessidades especiais (Piacentini, Goldstein & Capelli, 2011). Tal premissa se coaduna com a visão da Gestalt-terapia, para a qual a criança faz parte de uma totalidade maior, que, portanto, deve ser também considerada no contexto psicoterapêutico (Aguiar, 2014; Ribeiro, 2007). Assim, ao entrar no consultório para a primeira sessão com a mãe, Conrado retirou vários brinquedos do armário, no entanto sem brincar com qualquer um deles especificamente, situação que não permitiu o seu contato social com a terapeuta-estagiária ou com a mãe. Nesse momento, a terapeuta-estagiária buscou observar os comportamentos da criança no vivido, correlacionando-os às queixas apresentadas pela mãe. Percebe-se, portanto, a interface entre o Floortime e a Gestalt- terapia, pois, antes de tentar envolver a criança no processo terapêutico, a terapeuta-estagiária assumiu uma postura de observadora, o que propiciou à criança a oportunidade de liderar a brincadeira e expressar seus prazeres (Aguiar, 2014; Piacentini, Goldstein & Capelli, 2011). Ao assumir tal posição, a terapeuta-estagiária permitiu que a criança e sua mãe expressassem suas respectivas formas de se relacionar. Nesse sentido, observou que Bianca direcionava a brincadeira do filho, escolhendo por ele determinados brinquedos e chamando-o insistentemente pelo nome. Consequentemente, Conrado, sem seguir os direcionamentos, apresentou choro, irritabilidade, falta de habilidade para compreender regras, responder a estímulos auditivos e interagir socialmente nas brincadeiras. Houve, neste momento, a possibilidade de compreender os sintomas que se apresentam não como “defeitos”, mas como a forma de ajustamento adotada pela pessoa (Aguiar, 2014; Goldstein, 1995). Ao perceber que a mãe não estava permitindo que a criança utilizasse suas formas próprias de expressar, a terapeuta-estagiária interviu no sentido de respeitar a vontade da criança, valorizando-a na sua forma de comunicação. Este aspecto é também ressaltado pela vertente humanista, ao afirmar que todos os indivíduos são dotados de uma força inata que os conduz à autorrealização, característica usada de forma ativa em todas as suas habilidades na aplicação plena do seu potencial (Amatuzzi, 2012; Mendonça, 2013; Holanda, 2014). Após a intervenção, a mãe reconheceu que não estava estimulando habilidades interligadas à autonomia do filho, assim alcançando a awareness. Segundo Yontef (1998), awareness é o processo de entrar em contato com os eventos mais importantes do campo indivíduo/ambiente, compreendendo a responsabilidade pelas escolhas, o autoconhecimento, a autoaceitação e a capacidade de contato. Na segunda sessão, ainda com a presença da mãe, Conrado demonstrou outra forma de regulação e interesse diante daquilo que se mostrava por si mesmo, engajando-se no relacionamento com a terapeuta-estagiária, evidenciando a intencionalidade e a comunicação por meio do contato visual. Isso equivale a dizer que uma relação direta entre a experiência sentida e o afeto a ela vinculado possibilita que a criança apresente determinados comportamentos para atingir um fim. No caso específico da criança autista, embora ela não tenha esta capacidade, começa a perceber que as suas ações geram efeitos nos comportamentos das outras pessoas (Greenspan & Wieder, 2000). Observou-se o comportamento de Conrado durante a escolha dos brinquedos com os quais iria interagir com a terapeuta-estagiária. Como a opção foi brincar de carrinho de vai e vem, a terapeuta-estagiária aproveitou o próprio movimento do brinquedo para iniciar o processo de imitação. Em seguida, buscou ampliar a sua forma de brincar propondo uma troca de carrinhos. Esta postura coaduna-se com os princípios da interface entre o Floortime e a Gestalt-terapia, segundo os quais todas as intervenções devem ter como base o que a criança traz. No entanto, no momento em que o adulto entra no seu mundo, imitando o seu brincar, poderá expandir gradativamente a brincadeira, possibilitando a vinda da criança ao mundo compartilhado (Aguiar, 2014; Greenspan & Wieder, 2006). Ao final desta sessão, Conrado comunicou sua vontade de ir embora pegando a bolsa da mãe. A terapeuta-estagiária valorizou a comunicação da criança, permitindo o encerramento da sessão. Há de se considerar que, para os referenciais mencionados (Floortime e Gestalt-terapia), a confirmação e a valorização da singularidade são atitudes de respeito e reconhecimento. Na perspectiva de ambos, o cliente deve ser ouvido, respeitado e reconhecido por seu modo singular de ser (Feldman, 2004; Juliano, 1999; Lantz, 2001). A fim de auxiliar no desenvolvimento do processo terapêutico, uma coterapeuta participou da 3° e 4° sessões. Iniciou sua intervenção proporcionando autonomia para a criança eleger o que gostaria de fazer. Neste momento, Conrado escolheu os mesmos brinquedos da 2° sessão: os carrinhos, e demonstrou dificuldade em dividi-los. Por meio da sua escolha, observa-se um dos sintomas descritos nos manuais de classificação - padrão restrito e repetitivo de interesse (OMS,1993; DSM, 2014). Tendo como base a interface entre o Floortime/Gestalt-terapia, esta atitude deve ser compreendida para além de um sintoma a ser tratado, pois a criança necessita ser olhada como um todo e não como partes (Aguiar, 2014; Piacentini, Goldstein & Capelli, 2011; Ribeiro, 1985). Para a compreensão de Conrado segundo uma visão holística, trabalhou-se nas sessões a sua recusa para trocar os brinquedos, postura relatada pela mãe como frequente e também vivenciada nas práticas terapêuticas. Buber (2001) ressalta que o conteúdo vivido da experiência humana, em todas as suas manifestações, vale mais que qualquer sistematização conceitual. Assim, as terapeutas recolheram os carrinhos, deixando apenas um à disposição de Conrado. Imediatamente ele chorou, resmungou, bateu os joelhos no chão e tentou chutar. As terapeutas compreenderam e respeitaram o tempo de processamento da criança, oferecendo-lhe exemplos concretos, trocando carrinhos uma com a outra. Observa-se que as terapeutas seguiram os princípios da interface ao tentarem compreender a forma da criança se manifestar em sua singularidade (Kierkegaard, 2001; Piacentini, Goldstein & Capelli, 2011). Após esperar o tempo necessário, Conrado aceitou trocar os brinquedos, atitude que se manteve no decorrer dos atendimentos. Como propõe a interface supracitada, as terapeutas atuaram como mediadoras do processo gradual de passagem de apoio em suportes de outros para o reconhecimento e a criação de recursos próprios do indivíduo (Cardella, 2002; Piacentini, Goldstein & Capelli, 2011). Por meio da Gestalt-terapia, a pessoa desenvolve o autossuporte de forma contínua e em contato com o meio ambiente, ou seja, depende do apoio do ambiente (heterossuporte) para desenvolver o autoapoio (Andrade, 2014). Após a resolução do problema e o engajamento da criança na brincadeira, as terapeutas e a mãe a motivaram e valorizaram, postura recomendada pelo Floortime (Greenspan & Wieder, 2000), aplaudindo e elogiando, conseguindo cativar a criança, que sorria e se aplaudia ao brincar. No final dessas sessões e de todas as outras, a terapeuta-estagiária solicitou verbalmente, recorrendo também a gestos que simulavam a colocação dos objetos no armário, que Conrado guardasse os brinquedos, o que ele fez sem resistências, demonstrando capacidadede respeitar regras. Percebe-se, nesses momentos, que a condução da terapeuta-estagiária respeitou a interface entre Floortime/Gestalt-terapia. Baseado no Floortime, é preciso ensinar os caminhos para as crianças, oferecendo-lhes imediatamente a descrição da situação (Piacentini, Goldstein & Capelli, 2011; Lantz, 2001). Já o desvelamento do fenômeno que emerge no contexto, de acordo com a Gestalt-terapia, é possível por meio dos recursos básicos da fenomenologia, entre eles epoché e descrição fenomenológica, possibilitando ampliação da consciência, que acontece sempre no aqui-e-agora (Yontef, 1998). Na quinta sessão, Conrado seguiu os mesmos padrões nas escolhas dos brinquedos, entretanto aceitou trocá-los com mais flexibilidade. Notaram-se preservação da iniciativa da criança e repetição do suporte da terapeuta-estagiária. Entre as características do Floortime, a repetição torna a vida mais fácil, mais previsível, entretanto, não pode ser mantida fixamente, pois deverá ser descoberta e entendida nas experiências (Greenspan & Wieder, 2006; Lantz, 2001). Ainda no decorrer desse atendimento, Conrado demonstrou interesse em retirar diversos brinquedos do armário, tal como fez na primeira sessão. A conduta da terapeuta-estagiária diante desta situação foi observar por qual brinquedo havia se interessado e impor a condição de que poderia pegar apenas um por vez. O objetivo foi confirmar os sinais de intenção da criança no contexto da brincadeira, evidenciando o brinquedo como um importante recurso, uma vez que, por meio do lúdico, foi possível oferecer suporte para a criança e esta, por sua vez, pôde se expressar e mostrar sua maneira de ser e agir no mundo (Aguiar, 2014; Axline, 1984). Também nesta sessão, Conrado se comunicou com gestos, balbuciou sons, apresentou contatos visuais, abraçou e solicitou colo à terapeuta-estagiária, a qual confirmou e valorizou tais atitudes. Além disso, no mesmo dia, a mãe foi orientada a atentar para os potenciais de contato apresentados pelo seu filho. Segundo (Aguiar, 2014), o contato visual é um dos aspectos utilizados para a compreensão diagnóstica. Partindo da descrição da experiência tal qual ela é, pode-se clarificar a realidade, afinando a percepção do presente e aumentando a ampliação da consciência, pois o que será figura é o fenômeno que se revela (Holanda, 2014; Juliano, 1999). Já a valorização e a confirmação ao outro significam um esforço ativo de voltar-se para a outra pessoa e afirmar sua existência, sua singularidade e seu vínculo com os outros, sem julgamentos ou conceitos prévios (Hycner, & Jacobs, 1997; Perls, 1977). Este aspecto de estar atenta ao processo de desenvolvimento de Conrado foi relatado pela mãe como uma atitude já presente em seu cotidiano. Transcender o diagnóstico e olhar para além das queixas iniciais torna-se fundamental para a possibilidade de desvendar as qualidades veladas da criança (Antony, 2012). Após a 5° sessão, visitas foram realizadas à escola semanalmente, possibilitando à terapeuta-estagiária a compreensão do campo existencial do cliente. Percebeu-se que no ambiente escolar Conrado recebia tratamento diferenciado: não precisava respeitar regras, ganhava brinquedos em momentos inapropriados, permanecia de fralda, não era incentivado a utilizar o banheiro e não tinha autonomia para executar algumas atividades. Observar o contexto escolar para identificar elementos que possam estar contribuindo para o desenvolvimento de determinados comportamentos na criança constitui aspecto fundamental, também presente na interface entre Floortime/Gestalt-terapia (Aguiar, 2014; Piacentini, Goldstein & Capelli, 2011). Na perspectiva da Gestalt-terapia, ao compreender a escola como um elemento do campo, e os comportamentos como fruto das relações, o observável em dado momento não é necessariamente a estrutura, mas sim o resultado dela (D’Acri, Lima & Orgler, 2012; Yontef, 1998). Portanto, compreender o comportamento por intermédio de elementos isolados significa distorcer as características estruturais de um fenômeno (Ribeiro, 2007). De modo diverso, compreender a escola como parte do campo vital da criança permitiu observações que favoreceram o atendimento e as orientações terapêuticas. Na 6° e na 7° sessão, a terapeuta-estagiária e a mãe continuaram incentivando as atividades e condutas das sessões anteriores: trocas dos brinquedos e regras nas brincadeiras. Esta postura foi importante em virtude da dificuldade de Conrado seguir regras, visto que diante delas chorava, esperneava, jogava-se no chão e se isolava. Devido a esses comportamentos, a terapeuta-estagiária e a mãe optaram por esperar o tempo necessário para que ele fosse capaz de captar a instrução. Surpreendentemente, Conrado retornou para a brincadeira, seguiu as regras e interagiu socialmente com as pessoas presentes. Fixando-se nos olhos de sua mãe, ele disse: “mamãe”. Como assinalam Ayres (2005) e Axline (1984), a criança necessita de tempo para processar e organizar estímulos internos e externos. Esta organização é denominada integração sensorial, processo pelo qual o cérebro formula as respostas adequadas e organiza as sensações do próprio corpo de acordo com o ambiente. Em interface com a Gestalt-terapia, Lima (2014) refere que o homem possui um princípio natural que rege o funcionamento do organismo, a saber, autorregulação, que significa buscar o melhor equilíbrio possível em determinado campo (Goldstein, 1995; Perls, 1988; Yontef, 1998). A expressão de Conrado foi confirmada pela sua mãe, por meio de abraços e beijos, o que provocou sorrisos entre ambos. Nesse sentido, Aguiar (2014) e Frazão (1997) lembram que a confirmação é a função relacional mais significativa para o desenvolvimento da criança, sendo papel da família prover confirmações que irão ajudá-la a construir elevada autoestima, abrindo- lhe possibilidades para lidar com as necessidades próprias do meio. No decorrer das sessões, Bianca comentou a dificuldade de ensinar o filho a calçar os sapatos e sua hipersensibilidade ao toque. Consequentemente, a terapeuta-estagiária realizou um experimento sugerindo que ele tirasse os sapatos no setting terapêutico. Rodrigues (2009) conceitua experimento como um convite à pessoa para, trazendo um tema que deseja trabalhar psicoterapeuticamente, descrever tal situação, podendo reconstituí-la. Ribeiro (2007) também enfatiza a importância de trabalhar sempre no aqui-e-agora. De imediato, Conrado aceitou, assim demonstrando interesse pelo mundo e pela abertura de círculos de comunicação que, segundo Floortime, consiste na capacidade da criança dividir atenção, engajando-se e respondendo aos sinais e sensações do mundo. (Greenspan & Wieder, 2000). Bianca surpreendeu-se com a atitude do filho e disse: “para ele é inaceitável ficar descalço fora de casa”. Então, a terapeuta-estagiária buscou valorizar a atitude da criança, como recomendado pela teoria humanista. A postura humanista, segundo Ribeiro (1985), conduz à reflexão sobre o que há de positivo, criativo e potencializador no ser humano, mesmo diante de suas limitações, deficiências e impossibilidades. Após permanecer descalço por alguns minutos, Conrado entregou os sapatos para a terapeuta-estagiária que os calçou em seguida. Tanto para a Gestalt-terapia quanto para o Floortime, a comunicação precisa ser confirmada; a linguagem verbal constitui apenas uma forma de expressão, entre as várias possibilidades de contato entre o indivíduo e o meio, tais como movimento, postura, toque, visão, audição ou silêncio (Aguiar, 2014; Greenspan & Wieder, 2006; Polster & Polster, 2001). Ao longo dos atendimentos, Conrado ampliou os vínculos afetivos com a terapeuta- estagiária e, da 8° a 15° sessão, escolheu adentrar no setting terapêutico sozinho, a partir de então sem a presença da mãe, demonstrando que a postura da terapeuta-estagiária em reconhecê-lo na sua singularidade possibilitou a abertura para uma relação de confiança. De acordo com o Floortime, a criança precisa compreender o processo de se relacionare não ser forçado a executá-lo (Campos, 2007; Piacentini, Goldstein & Capelli, 2011). Esta afirmação se interliga à Gestalt-terapia, a qual acredita que o relevante no universo relacional de uma criança é a forma como as relações são estabelecidas e vêm sendo satisfatórias e facilitadoras para o desenvolvimento infantil (Aguiar, 2014; Antony 2012). Além de demonstrar mudanças na forma de se relacionar, Conrado também apresentou ampliações de seus interesses e maneiras de brincar ao fazer uma escolha variada de brinquedos e ser capaz de abrir e fechar círculos de comunicação com o suporte oferecido pela terapeuta- estagiária durante as brincadeiras. Observa-se, portanto, que a intervenção baseada na interface Floortime/Gestalt-terapia concebe a criança como um indivíduo intencional, interativo, com capacidades cognitivas, sociais e de linguagem próprias. Assim, torna-se capaz de se desenvolver em suas relações afetivas (Greenspan & Wieder, 2006; Oaklander, 1980). Ainda nestas sessões, Conrado demonstrou ter assimilado a regra de pegar apenas um brinquedo, pois, mesmo sem orientação da terapeuta-estagiária, passou a selecionar apenas um. Feldman (2004) define compreensão como a fase do entendimento em que o indivíduo busca dentro de si respostas e alternativas, estabelecendo ligações de causa e efeito entre os acontecimentos. O Floortime, por sua vez, considera compreensão como a capacidade de resolver problemas, levando a criança a executar gestos mais complexos e uma série de ações pertinentes à construção de ideias elaboradas e expressivas da presença de autocontrole no comportamento, fato que a ajuda a solucionar problemas (Greenspan & Wieder, 2006). Também nestas sessões, Conrado se interessou em estabelecer contato visual com a terapeuta-estagiária pelo espelho, comportamento que emergira também em outras sessões. Em especial a partir do 14°atendimento, desejou olhar-se no espelho, fazendo movimentos com a língua, mandar beijos e dizer: “nenê”, palavra utilizada por Bianca quando ele se olha no espelho. Nos momentos de orientações terapêuticas durante as sessões mencionadas, Bianca relatou, com entusiasmo, que ele havia pronunciado a palavra “avó”, e com os olhos cheios de lágrimas completou: “meu filho só está evoluindo (...)”. De acordo com a interface entre Floortime/Gestalt-terapia, o indivíduo não possui uma condição nata ou adquirida, mas sim conquistada, portanto, está em constante desenvolvimento, o que significa dizer que é um ser em permanente transformação, dotado de infinitas possibilidades (Holanda, 2014; Trecker, 2001). A partir da 16° sessão, a terapeuta-estagiária solicitou o retorno da mãe nos atendimentos, pois, de acordo com a interface, a família é o principal campo de inserção da criança e, portanto, é ela que poderá facilitar e intensificar seu desenvolvimento (Carmichael, 1975; Rivière, 1995; Aguiar, 2014; Frazão, 1997). Conrado, desta vez, aceitou que ela participasse, porém, ao longo da sessão, voltou a apresentar comportamentos de choros e estereotipias, os quais perduraram pelos três atendimentos subsequentes. Ainda nestas sessões foram incluídos alguns recursos do Floortime: mapeamento do consultório e planejamento das sessões, sem, entretanto, excluir o princípio básico de deixar a criança liderar. De acordo com o Floortime, esses recursos modificam o ambiente e podem fazer com que a criança se sinta bem e tenha condições de se manter na brincadeira, sem se desregular em função de fatores ambientais que possam estar interferindo (Piacentini, Goldstein & Capelli, 2011). Em interface com a Gestalt-terapia, Rogers (1994) assinala que o ser humano possui, em si mesmo, forças de autorrealização que o direcionam para um desenvolvimento criativo e saudável. Entretanto, como o homem se constitui nas suas relações interpessoais, suas forças inerentes podem ser impedidas de se desenvolverem por fatores externos (Amatuzzi, 2012; Ribeiro, 1985). Nesse aspecto, nos momentos em que a terapeuta-estagiária tentava estabelecer limites físicos, seguindo os mapeamentos, Conrado apresentava choros e estereotipias, o que a levou à decisão de não mais instruí-lo verbalmente e esperar para ver qual seria a sua reação. Imediatamente ele se organizou e voltou a respeitar os limites físicos do mapeamento. A terapeuta- estagiária descreveu para a mãe os comportamentos apresentados por Conrado diante das regras e também confirmou as potencialidades da criança, uma vez que ela aceitou e demonstrou compreender a função do mapeamento. De acordo com a interface, o comportamento deve ser compreendido como resultante de um conjunto de fatores presentes no campo, os quais envolvem o outro, a criança e o ambiente. Portanto, só pode ser compreendido e modificado com base nas relações estabelecidas, não podendo ser induzido (Lewin, 1965; Piacentini, Goldstein & Capelli, 2011; Ribeiro, 2007). Também nessas sessões, Conrado engajou-se em diversos círculos de comunicação, a saber: movimento de negação com a cabeça quando não queria fazer a atividade; condução da mãe até a porta para sair do consultório; independência para pegar água; utilização de gestos para chamar a terapeuta-estagiária e a mãe para brincar; e balbuciações. Simultaneamente, a terapeuta- estagiária e a mãe respondiam às comunicações, oferecendo suportes para que ele pudesse ampliá-las. Permitir que a criança seja quem ela é, valorizando suas potencialidades, é um princípio da interface Floortime/Gestalt-terapia. Para ambos os referenciais, o não direcionamento das ações, o estabelecimento de um sentimento de permissividade e a valorização das formas de comunicação constituem princípios primários da psicoterapia infantil para desenvolver uma sólida relação entre criança e terapeuta (Aguiar, 2014; Trecker, 2001). Ao longo dos atendimentos evidenciaram-se a irritabilidade de Conrado diante das regras, sua resistência ao toque e o baixo tônus muscular. Assim, a partir da 20° até a 25° sessão, foram incluídas algumas atividades sensoriais: equilíbrio sob a passarela e almofadas, pulos de lugares altos, brincadeiras de tintas e na bacia com feijão, interação com jogos eletrônicos no ipad e músicas para direcionar o fim da sessão. Piacentini, Goldstein & Capelli (2011) ressaltam que a terapia é um processo em constante evolução e, portanto, as intervenções devem ser constantemente revistas e adaptadas para atingir as necessidades e o nível de desenvolvimento da criança. As atividades sensoriais criam oportunidades para o enriquecimento da estimulação sensorial, auxiliando a regulação dos processos do desenvolvimento, base funcional do desempenho ocupacional de todo ser humano (Ayres, 2005; Momo & Silvestre, 2011). Nesta configuração, o objetivo da terapeuta-estagiária não era modificar o comportamento de Conrado, pois, como assinalam a teoria de Aguiar (2014) e a gestalt-terapeuta Antony (2012), as propostas terapêuticas transcendem o escopo de eliminar os sintomas, pois eles expressam a maneira da criança se equilibrar. Desse modo, torna-se necessário que ela mesma construa outras formas mais satisfatórias de se relacionar com o mundo para prescindir da forma sintomática. Nesse sentido, inicialmente Conrado apresentou resistência às novas atividades propostas, a exemplo do que ocorrera em sessões anteriores diante da inclusão de outras brincadeiras e do estabelecimento de regras. Porém, a partir do momento em que elas deixaram de ser uma novidade e que a terapeuta-estagiária as inseria com criatividade, ele aceitou, interagiu e ampliou sua forma de brincar. O desenvolvimento do ser humano é um processo contínuo de ajustamentos criativos, o que significa constantes transformações e possibilidades de novas reconfigurações (Aguiar, 2014; Baroncelli, 2012; Cardella, 2002; Tellegen, 1984). No Floortime, Lampreia (2007) lembra que as crianças necessitam de competências emocionais e cognitivas, pois a regulação dessas habilidades permite novos aprendizados. Na Gestalt-terapia, a regulação é o que rege o funcionamento do organismoe este deve ser compreendido em sua totalidade (Lima, 2014; Ribeiro, 1985). No decorrer das sessões, Conrado aceitou as regras, utilizou sua criatividade para brincar, demonstrou habilidades de compreensão e abriu e fechou círculos de comunicação, posturas vivenciadas em diversas situações após a inclusão da nova dinâmica. Em uma das situações, ele, que não se permitia permanecer descalço durante toda a sessão e não aceitava o toque, retirou espontaneamente seus sapatos e abraçou e beijou a terapeuta-estagiária, sem qualquer direcionamento para tanto. Em outro momento, solicitou ajuda com gestos e sons e, quando não queria permanecer na brincadeira proposta, gesticulava; por duas vezes, inclusive, disse “não”. Com base na interface, pode-se dizer que Conrado ampliou seu interesse pelo mundo e se ajustou criativamente, o que inclui regulação, abertura ao novo, contato vivo e vitalizante, em contraposição à dependência e ao comportamento estereotipado (Baroncelli, 2012; Greenspan & Wieder, 2000; Tellegen, 1984; Trecker, 2001). Ao longo das sessões, a mãe relatou que a metodologia utilizada estava possibilitando o melhor desenvolvimento do filho, pois ele já aceitava o toque e interagia, iniciando as brincadeiras. São suas as palavras: “essas conquistas são muito significativas para quem é mãe”. Observa-se, novamente, a capacidade da mãe reconhecer e valorizar as habilidades do filho, seguindo os princípios da interface (Duarte, 2002; Greenspan & Wieder, 2006; Mendonça, 2013). Após as intervenções e orientações terapêuticas, Conrado começou a se comportar de maneira diferente na escola: passou a participar da fila, se interessar pelos brinquedos do parque, cumprir normas, utilizar o vaso sanitário e executar as atividades pedagógicas. Sendo um ser de relações, o homem, de acordo com a Teoria Organísmica, deve ser compreendido como um organismo em sua totalidade. Sob tal ótica, qualquer alteração que ocorra no campo, atingirá o organismo e gerará mudanças na sua forma de ser (Lima, 2014; Perls, 1988). A respeito dessas alterações, Aguiar (2014) e Axline (1984) assinalam que o sintoma não pode ser visto de forma universal e classificatória, mas como um modo específico de determinada criança se autorregular no campo. Para fins de concluir este trabalho e identificar possível compreensão do efeito da interface Floortime/Gestalt-terapia realizou-se uma entrevista com a mãe mediante a proposição da seguinte questão: “Como você percebe o desenvolvimento do Conrado a partir dos nossos atendimentos? ” Sua resposta, abaixo, permite inferir que o objetivo do presente estudo foi alcançado, bem como pode ser validada a interface Floortime/Gestalt-terapia no processo terapêutico. Nas palavras de Bianca: “Só progresso (...) ele não usa mais fralda, na independência dele, né? Dele tomar atitude para fazer as coisas (...) tudo ele quer pegar, agora tudo ele leva o dedinho, aponta. (...) ele está olhando nos olhos e ele corria muito disso. (...) ficava só deitado, agora ele tem mais postura. (...) está imitando as pessoas (...). Eu percebo que no primeiro momento ele estranha, mas que eu posso insistir (...) eu não vou dizer que é só o progresso dele, é o meu também, porque eu aprendi a lidar com ele. (...). Eu acho que foi o principal, porque eu queria pegar o trem e colocar no trilho e aqui eu vi que se o trem quer seguir aqui, então vamos seguir. A gente tem que levar a estrada aonde ele quer ir. Se a gente quer trazer ele para cá, nós vamos até ele, construímos a estrada, fazemos a curva e trazemos ele (...) para onde a gente quer. Percebi que, às vezes, é preciso (...) voltar três estações para caminhar uma. Não tem problema”. O significativo relato de Bianca não diz respeito apenas à situação particular de Conrado. Ele nos mostra que quando os pais são parte ativa no processo terapêutico da criança, postura esta preconizada pelas perspectivas do Floortime e da Gestalt-terapia, amplia-se a possibilidade de aprender a valorizar as capacidades e respeitar as diferenças (Antony, 2012; Frazão, 1997; Piacentini, Goldstein & Capelli, 2011; Yontef, 1998). Para a terapeuta-estagiária, igualmente beneficiada pelo processo terapêutico, a leitura da fala de Bianca confirma que os princípios das metodologias supracitadas são pertinentes a situações vivenciadas no cotidiano terapêutico, com bons resultados no que se refere ao progresso do cliente. IV Considerações Finais Nesta experiência, pude vivenciar a dor e a alegria de confrontar-me com o paradoxo objetividade/subjetividade que me convidou a suspender as minhas próprias expectativas. Deparei-me, então, com o desafio de valorizar o que se mostrava por si mesmo no contexto vivido, neste caso os limites e as possibilidades do contexto terapêutico. Na perspectiva da objetividade, pensei, por inúmeras vezes, que minhas intervenções não seriam eficazes e nem mesmo valorizadas, uma vez que me autodesconfirmava, considerando mais pertinente, em algumas sessões, priorizar o desenvolvimento de padrões de comportamentos infantis adequados, relegando a espontaneidade e liderança da criança, atitude também assumida pela mãe e expressa na frase: “pegar o trem e colocar no trilho”. Apropriando-me da metáfora do trem, ao longo do trabalho comecei a me questionar: quem é o trem? De quem são os trilhos? Percebi que o trem era um ser humano e fui me humanizando a ponto de ser tocada na minha subjetividade. Mas o que fazer com ela? Como a subjetividade poderia, simultaneamente ao lado da objetividade, estar a serviço do processo terapêutico? Como respostas às minhas perguntas, me percebi, novamente, querendo “colocar o trem no trilho”, determinando a forma de dirigir, os trilhos a serem percorridos, as estações para permanecer/avançar, assim como o tempo que levaria para realizar tal trajeto. Neste contexto, tomei consciência de que o homem é sua própria medida e que eu encontraria no Floortime a objetividade pretendida e nos suportes da Gestalt-terapia, a subjetividade, podendo, com o auxílio de ambos, construir uma interface. Nesta constatação, me permiti embarcar no “trem-pessoa’ à minha frente, saindo da estação de onde conseguia perceber apenas os vagões dos sintomas, e embarquei na misteriosa viagem sem destino final. Nesta viagem, tive a oportunidade de circular pelo “trem-pessoa”, junto com a mãe e a criança, transcendendo meus conhecimentos sobre os vagões e conhecendo qualidades que estavam clamando por revelações e reconhecimentos. Durante o percurso, enfrentamos tempestades e sol, percorremos várias estações, conhecemos as ferragens, as rodas, o peso e as partes que precisavam ser compreendidas, mudamos nosso maquinista e, neste vínculo relacional com o “trem-pessoa”, novos trilhos foram descobertos e estradas pavimentadas. A construção dos trilhos foi um verdadeiro desafio. Precisei aceitar e permitir que o “trem-pessoa” fosse exatamente quem ele era diante das suas possibilidades e limitações. Nessa relação de confiança, aceitação e valorização, nasceram caminhos e outras formas de autorregulação da criança e da mãe relacionadas a comunicações verbais e não verbais e ao processo de escolhas vivenciadas por ambas. Não menos importante, observei também alterações na minha forma de autorregulação, uma vez que construí, simultaneamente, novos trilhos mesclados de objetividade teórica e da minha subjetividade, revendo meus próprios vagões e aprendendo que o maquinista do trem é o outro. Metaforicamente, o outro é elucidado neste caso com a “coroa”, significando a autonomia vivida pela criança, com a “permissão” terapêutica. De posse dessa humildade, os viajantes continuarão a percorrer paradoxalmente seus trilhos individuais na certeza de que, em algumas estações, voltarão a se encontrar. Fruto desses encontros, novos trilhos serão permanentemente construídos e reconstruídos, na certeza de que a viagem sempre prossegue... Referências Aguiar, L. (2014). Gestalt-Terapia com Crianças: Teoria e Prática. São Paulo. Summus. Amatuzzi,M. M. (2012). Rogers: Ética Humanista e Psicoterapia. Campinas: Alínea. American, P. A. (2014). Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais - DSM - (5ª). (M. I. C. Nascimento, trad.). Porto Alegre: Artmed. Andrade, C. C. (2014). Autossuporte e heterossuporte. Em L. M. Frazão & K.O. Fukumitsu (Orgs.), Gestalt-terapia: conceitos fundamentais (pp. 147-162). São Paulo: Summus. Antony, S. (2012). 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