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Anotações ao livro Estatismo e 
anarquia de Bakunin1
(extrato)
Karl Marx
Já expressamos nossa profunda discordância com a teoria de Lassalle 
e Marx, que recomenda aos trabalhadores, senão como último ideal, 
pelo menos como intenção central, a fundação de um estado popular, o 
qual, segundo sua expressão, não será outra coisa senão “o proletariado 
[organi zado enquanto classe dominante ]”. Resta saber: se o proletariado 
vier a ser a classe dominante, sobre quem irá dominar? Isto significa que 
remanescerá ainda um outro proletariado, que estará submetido a esta 
nova dominação, a este novo estado.
Isto significa que, enquanto outras classes, especialmente a classe 
capitalista, ainda existirem, enquanto o proletariado lutar com elas 
(posto que com seu poder de governar não desaparecem seus ini-
migos, e nem tampouco a velha organização da sociedade), ele terá 
de lançar mão de recursos violentos, ou seja, recursos de governo; 
mesmo o proletariado ainda é classe, e as condições econômicas so-
bre as quais repousa a luta de classes e a existência das classes não 
desapareceram ainda, e necessitam ser violentamente rechaçadas ou 
1 Marx elaborou as anotações ao livro de Bakunin intimamente relacionadas à luta ideológico-
-política que ele, junto com Engels e seus seguidores, dirigiu contra o anarquismo, luta que 
continuou viva mesmo depois da desestruturação ideológica e organizatória dos bakuninianos no 
congresso de Haag. As anotações constituem uma obra polêmica e crítica de tipo bem peculiar, 
na qual a divulgação do ponto de vista de Bakunin, o ideólogo do anarquismo e inimigo principal 
do marxismo à época, é associada a uma crítica profunda das doutrinas anarquistas e ao desen-
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transformadas – seu processo de transformação tem de ser violenta-
mente apressado.
Por exemplo, a simples massa camponesa, a plebe do campo que, como 
se sabe, não goza da benevolência dos marxistas, e que se encontra no 
mais baixo nível de cultura, será provavelmente governada pelo proleta-
riado urbano e fabril.
Isto quer dizer, onde o camponês existe em grande quantidade 
como proprietário privado, onde ele até forma uma maioria mais 
ou menos importante, como em todos os Estados ocidentais do 
continente europeu, onde ele não desapareceu e tomou o lugar 
dos tra balhadores diaristas da agricultura (Agrikultur-Taglöhner), 
como na Inglaterra, tem-se os seguintes efeitos: ou ele impede, faz 
fracassar toda a revolução dos trabalhadores, como o fez até agora 
na França; ou o proletariado (pois o camponês proprietário de terra 
não pertence ao proletariado, e ali onde ele, mediante sua própria 
situação, pertence, acredita não tomar parte dessa classe) tem de 
tomar, na condição de governo, medidas regulares através das quais 
o camponês encontre imediatamente a melhora de sua situação, e 
conseqüentemente trazê-lo para a revolução; medidas que trazem 
em germe e suavizam, porém, a transição da propriedade privada 
do solo para a propriedade coletiva, de modo que o camponês 
por si mesmo chegue economicamente até ela com essa finalidade; 
mas não se deve escandalizar o camponês proclamando ao mesmo 
volvimento das teses mais importantes do comunismo científico: sobre o Estado, a ditadura do 
proletariado e a aliança com os trabalhadores rurais. Essas teses foram formuladas por Marx 
sob a forma de uma série de inserções. Marx passou a trabalhar nessas anotações logo após 
a publicação do livro de Bakunin, editado em Genebra no ano de 1873 e assumido pelos 
círculos bakuninianos como obra programática. As anotações ao livro de Bakunin constituem 
uma parte de um caderno manuscrito bem maior de Marx, que leva o título de russica II, 
1875, e contém anotações a uma série de trabalhos de autores russos. O manuscrito das 
presentes “anotações” tem 24 páginas em formato grande. Marx oferece o conteúdo do livro 
de Bakunin ora sob a forma de citações russas, ora sob a forma de exposições resumidas na 
língua alemã. Esse modo de reproduzir o conteúdo é interrompido por Marx de trechos em 
trechos, através de observações curtas ou até mesmo intervenções longas. (N.E. alemão.) 
“Konspekt von Bakunins Buch Staatlichkeit und anarchie”. In: Werke, 18, Berlim, Dietz Verlag, 
1962, p. 630-7. Texto redigido entre 1874 e 1875, e publicado pela primeira vez em 1926 no 
número 11 da revista létopisi Marksizma. Traduzido do original alemão por Márcio Bilharinho 
Naves e Jesus Ranieri. 
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tempo, por exemplo, a abolição do direito de herança (Erbrecht) 
ou a anulação de sua propriedade; esta última apenas é possível ali 
onde o arrendatário capitalista expulsou o camponês, e o efetivo 
trabalhador da terra (Landbebauer) é tão proletário, tão trabalhador 
assalariado quanto o trabalhador da cidade, tendo, portanto, ime-
diatamente, ao invés de mediatamente, os mesmos interesses deste 
último; dessa forma, deve ser fortalecida menos ainda a propriedade 
parcelar, que aumenta os lotes mediante a simples anexação de gran-
des propriedades (Güter) junto aos camponeses, como na campanha 
revolucionária bakuniniana.
Ou, se consideramos esta questão do ponto de vista nacional, supomos 
então, pelo mesmo motivo, que para os alemães os eslavos encontram-
-se, no que diz respeito a um proletariado alemão vitorioso, na mesma 
sujeição servil na qual este último se encontra em relação à sua bur-
guesia (p. 278).
Que asneira de escolar! Uma revolução social radical está vinculada 
a determinadas condições históricas do desenvolvimento econômico; 
estas últimas são o seu pressuposto. Ela apenas é possível, portanto, 
ali onde o proletariado industrial, com a produção capitalista, con-
quiste pelo menos um lugar importante no interior da massa popular. 
E para que o proletariado tenha alguma chance de triunfo tem de ser 
capaz, ao menos, de fazer imediatamente pelos camponeses, mutatis 
mutantis, tanto quanto a burguesia francesa fez, em sua revolução, 
pelos camponeses franceses de então. Bela idéia a de que a domina-
ção do trabalho traz em si a supressão do trabalho rural! Mas aqui é o 
lugar no qual se revela o âmago do pensamento do senhor Bakunin. 
Ele não entende absolutamente nada de revolução social, somente 
de sua fraseologia política; as condições econômicas dessa revolução 
não existem para ele. Como até agora todas as formas econômicas, 
desenvolvidas ou não desenvolvidas, encerram em si a servidão 
(Knechtschaft) do trabalhador (apareça ela na forma de trabalhador 
assalariado, camponês etc.), ele crê que em todas elas é igualmente 
possível uma revolução radical. E ainda mais: quer que a revolução 
social européia, fundada sobre a base econômica da produção capi-
talista, se efetue sobre o nível dos povos russos ou eslavos dedicados 
à agricultura e ao pastoreio, e não sobrepuje esse nível, ainda que 
reconheça que a navegação marítima (Meerschiffahrt) cria uma dis-
tinção entre os povos irmãos, mas somente a navegação em alto-mar 
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(Seeschiffahrt) 2, posto que esta diferença é bem conhecida por todos 
os políticos! A vontade é o fundamento de sua revolução social, e não 
as condições econômicas.
Se o estado existe, a dominação é, pois, inevitável, e, por conseguinte, 
também a escravidão; dominação sem escravidão, oculta ou manifesta, é 
inconcebível – por essa razão somos inimigos do estado (p.278).
O que significa o proletariado (organizado em classe dominante)?
Isso significa que o proletariado, em lugar de lutar isoladamente 
contra as classes economicamente privilegiadas, conseguiu forças e 
organização suficientes para empregar, em combate contra elas, meios 
universais de constrangimento (Zwang); mas somente pode empregar 
medidas econômicasque suprimam (aufheben) seu próprio caráter 
de assalariado, portanto que o suprimam enquanto classe; com o seu 
completo triunfo desaparece também sua dominação como finalidade, 
porque desaparece seu caráter de classe.
Colocar-se-á, porventura, todo o proletariado à testa do governo?
No caso de um sindicato (Trade-Union), por exemplo, constitui seu 
comitê executivo o sindicato inteiro? Findará, no interior da fábrica, 
toda divisão do trabalho e as diferentes funções que dela derivam? E, 
segundo a concepção bakuniniana [de baixo para cima] todos estarão 
[em cima]? Então, não haverá ninguém [embaixo]? Todos os membros 
de uma municipalidade administrarão igualmente os interesses mútuos 
da [região]? Portanto, não haverá diferença alguma entre municipali-
dade e [região].
Os alemães totalizam aproximadamente 40 milhões. Farão parte do go-
verno, por acaso, todos estes 40 milhões de habitantes?
Certainly!3 Uma vez que a coisa começa com a auto-administração 
da municipalidade.
2 Nesta passagem, o comentário irônico dirigido por Marx a Bakunin se deve ao fato de este 
último não somente acreditar, mas insistir que a navegação marítima aparece como fator não 
apenas determinante, mas praticamente unitário, de progresso entre os povos, chegando a 
afirmar que a maior parte do progresso na história é devido a esta característica geográfica, que 
garantia vantagens de comunicação às populações costeiras. (N.T.)
3 Em inglês no original. “Certamente”. (N.T.)
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Se todo o povo governar, não haverá governados.
Quando um homem domina a si mesmo, ele não se domina de 
acordo com esse princípio; pois ele ainda é ele próprio e não outro.
Então, não haverá governo algum, nem Estado, mas se existir Estado 
haverá também governantes e escravos (p. 279).
Isso significa apenas: quando a dominação de classe desaparecer 
e não houver mais Estado no atual sentido político.
Este dilema na teoria dos marxistas resolve-se facilmente. Por governo 
popular, eles (isto é, Bakunin) entendem o governo popular intermediado 
por um pequeno número de chefes, eleitos pelo povo.
Asine!4 Isso é uma tagarelice democrática, um disparate político! 
A eleição é uma forma política existente na menor comuna russa e 
no artel.5 O caráter da eleição não depende desse nome, mas sim da 
base econômica, das relações econômicas entre os eleitores; e, assim 
que as funções deixam de ser políticas, 1. não existe qualquer fun-
ção de governo; 2. a distribuição das funções gerais torna-se função 
administrativa (Geschäftssache) que não implica domínio algum; 3. a 
eleição não terá o caráter político atual. A eleição por todo o povo, 
através do sufrágio universal – essa coisa de todo o povo, em seu 
sentido atual, é uma fantasia – 
dos representantes do povo e dos [dirigentes do Estado] – que é a última 
palavra dos marxistas, assim como da escola democrática – é uma mentira 
atrás da qual se oculta o despotismo da minoria governante, mais perigo-
so tanto quanto aparece como expressão da chamada vontade popular.
Com a propriedade coletiva desaparece a chamada vontade popu-
lar, abrindo caminho para a efetiva vontade cooperativa. Então, como 
resultado: o governo de uma minoria privilegiada sobre a grande maioria 
do povo (Volksmasse). Mas, essa minoria, dizem os marxistas, onde? será 
composta por trabalhadores. Sim, com permissão: trabalhadores não ativos 
que, no entanto, assim que se tornam representantes ou governantes do 
povo, deixam de ser trabalhadores – tanto quanto hoje um industrial 
deixa de ser capitalista se ele vier a se tornar vereador (Gemeinderat) – 
4 Em latim no original! O editor traduz como “Asno” (asinus). (N.T.)
5 Comunidades de produção russas. (N.T.)
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e olharão para todo o mundo vulgar dos trabalhadores do alto do [esta-
tismo]; não mais representarão o povo, mas somente a si mesmos e suas 
[pretensões] de governar o povo. Quem duvidar disso nada sabe sobre a 
natureza humana (p. 279).
Caso o senhor Bakunin conhecesse ao menos a posição de um 
administrador numa cooperativa industrial de operários, todas as 
suas fantasias sobre a dominação iriam para o diabo. Deveríamos 
perguntar-lhe: que formas podem assumir as funções administrativas 
sobre a base desse Estado operário – se ele quiser chamá-lo assim? 
“Mas esses eleitos serão socialistas fervorosamente convictos e, 
portanto, socialistas ilustrados. As expressões ‘socialismo ilustrado’” 
– nunca utilizada –, “socialismo científico” (p. 279) – utilizada apenas 
em contraposição ao socialismo utópico, que quer dar ao povo novas 
fantasias, em vez de limitar seu saber (Wissenschaft) ao conhecimento 
(Erkenntnis) do movimento social engendrado pelo próprio povo 
(vide o meu texto contra Proudhon) –
as quais são constantemente encontradas nas obras e discursos dos lassa-
lianos e marxistas, mostram por si mesmas que o chamado Estado popular 
não será outra coisa senão o governo muito despótico da multidão, por 
intermédio de uma nova e muito reduzida aristocracia de sábios reais ou 
supostos. O povo não é científico, o que significa que ele será comple-
tamente dispensado das responsabilidades de governo; ele será totalmente 
encerrado num estábulo governado. Bela libertação! (p. 279-80).
Os marxistas sentem essa (!) contradição e, sabendo que o governo dos 
sábios (quelle rêverie!)6 seria o mais opressivo, odioso e desprezível do 
mundo, que seria uma verdadeira ditadura, a despeito de todas as suas 
formas democráticas, consolam-se com a idéia de que esta ditadura será 
apenas temporária e breve.
Non, mon cher!7 A dominação de classe dos trabalhadores sobre as 
camadas do velho mundo que persistem na luta deve durar enquanto 
a base econômica da existência das classes não for aniquilada.
Eles dizem que sua única preocupação e seu único objetivo é educar e 
elevar o povo (politiqueiros de botequim!) tanto política como economi-
6 Intervenção, dessa vez no corpo da citação, de Marx. Francês no original. “Que fantasia!” (N.T.)
7 Outra vez em francês no original; e a intenção irônica é fortíssima. “Não, meu querido!” (N.T.)
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camente, a tal ponto que nenhum governo será necessário e o Estado 
perderá todo o seu caráter político, isto é, o seu caráter [de dominação], 
transformando-se por si mesmo em uma livre organização de interesses 
econômicos e de comunas. Há aqui uma clara contradição. Se o seu Estado 
vier a ser realmente popular, para que destruí-lo? E se a sua destruição 
é necessária para a efetiva libertação do povo, por que ousam chamá-lo 
de popular? (p. 280).
Deixando de lado a insistência no Estado popular de Liebknecht, 
que é uma bobagem dirigida contra o Manifesto comunista etc., isso 
só significa que, como o proletariado, durante o período de luta para 
revolucionar a velha sociedade, ainda atua sobre a base dessa velha 
sociedade e, portanto, ainda se move dentro de formas políticas que 
pertenceram, mais ou menos, a ela, durante esse período de luta ele 
ainda não adquiriu a sua constituição definitiva e utiliza meios para 
a sua libertação que, depois que esta ocorrer, serão abandonados; de 
onde o senhor Bakunin conclui que não se deve fazer absolutamente 
nada... a não ser esperar pelo dia da liquidação geral – do juízo final.
“Mediante nossa polêmica” (naturalmente, antes que o meu texto contra 
Proudhon e o Manifesto comunista tivessem sido publicados e antes 
mesmo de Saint-Simon) “contra eles” (bela confusão entre causa e con-
seqüência) “nós os obrigamos à confissão de que a liberdade ou a anar-
quia” (o senhor Bakunin tão-somente traduz para o árido idioma tártaro 
a anarquia proudhoniana e stirneriana), “isto é, a livre organização das 
massas trabalhadoras de baixo para cima” (estupidez!) “é o fim último 
do desenvolvimento social e que qualquer [Estado], inclusive o Estado 
popular, é um jugo, que engendra, por um lado, despotismo e,por outro, 
escravatura” (p. 280).
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