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VI SEMINÁRIO DE HISTÓRIA DA CIDADE E DO URBANISMO UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GARNDE DO NORTE PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO A Modernização da Cidade Setecentista: O Contributo das Culturas Urbanísticas Francesa e Inglesa Ivone Salgado1 O padrão arquitetônico e urbanístico da cidade setecentista brasileira colonial sofrerá transformação substancial durante o oitocentos. Em paralelo a uma arquitetura que antes apresentava-se como predominantemente barroca, passando a incorporar princípios de composição neoclássicos; a cidade também se transforma no Império. Para esta nova configuração urbana irão contribuir duas culturas urbanísticas: a francesa e a inglesa. Estas contribuições todavia apresentam-se com caracteres bastante distintos. A cultura urbanística francesa seria veiculada na colônia através das relações institucionais com Portugal e as academias francesas onde um quadro de profissionais, engenheiros, arquitetos e médicos, seriam aos protagonistas principais destas relações. Quanto à cultura urbanística inglesa, que veicularia no Brasil durante o século XIX, assistimos a uma transmissão sobretudo através da própria colônia inglesa, comerciantes na sua maioria, que imigram para as principais cidades portuárias carregando consigo seus hábitos e costumes. Entre o final do século XVIII e início do XIX, as principais cidades brasileiras, Rio de Janeiro, Recife e Salvador, encontravam-se em condições sanitárias precárias. O debate ocorrido no seio da administração envolvendo médicos e engenheiros visava uma intervenção para alterar as condições de salubridade destas cidades e será marcado por forte intercâmbio cultural com a Europa. As teorias médicas e urbanísticas desenvolvidas especialmente na França serão uma referência para o debate que se instaura no Brasil tendo como principal fundamentação a teoria miasmática. Apesar das dificuldades de colocar em prática algumas das propostas veiculadas pelos médicos e engenheiros para a transformação da cidade, devido tanto a questões econômicas – algumas destas propostas implicavam investimentos vultuosos – como por questões culturais, como as alterações de hábito que modificariam sobretudo as cerimônias religiosas e todo o culto religioso do mundo católico, observamos que as cidades passariam por grandes transformações consolidando um novo padrão urbanístico. As relações culturais no seio das categorias profissionais em questão – médicos e engenheiros - estariam marcadas no período por um intercâmbio intenso com a França. A teoria miasmática fundamentava as propostas de intervenção na cidade. Um dos tratados, no campo da medicina, que muito marcou o debate sobre a referida teoria é o de Vicq d’Azir, , doutor em medicina, membro da Académie Francaise e da Academie de Sciences e secretário da Société Royale de Médicine. Em um tratado médico de grande amplitude, com mais de 20 volumes, estaria incluído o seu Essai sur les lieux et les dangers des sepultures, publicado em 1778 2. Defende em sua obra a necessidade de distanciar as sepulturas dos lugares habitados pelos homens baseado nos danos aos quais eles estariam expostos pelas emanações dos cadáveres. Vicq d’Azir procura demonstrar, pela convicção de provas físicas, os perigos das inumações nas igrejas e no interior das áreas amuralhadas da cidade, Maria Moura 1 Professora Dra. Faculdade de Arquitetura e Urbanismo / Pontifícia Universidade Católica de Campinas Maria Moura 2 VICQ D’AZIR, Essai sur les lieux et les dangers des sepultures , in: “Oevres de Vicq d’Azir”, Paris, L. Duprat-Duverger, 1805, tome sizième. Trata-se de um tratado de medicina com 6 volumes cujo exemplar consultado encontra-se no Real Gabinete Português de Leitura do Rio de Janeiro. 2 desenvolvendo os princípios da teoria miasmática que fundamentava as propostas sobre o lugar adequado na cidade para os edifícios que exalavam mal cheiro. Na teoria miasmática, segundo Vicq d’Azir, a fermentação era um movimento próprio às substâncias vegetais e animais, nas quais a experiência havia demonstrado que estas degenerariam cedo através da putrefação se uma força orgânica, cuja natureza era desconhecida, não interrompesse os efeitos dela. À medida que a fermentação avançava, o ar elementar se espalharia, sua livre comunicação com o ar da atmosfera lhe transmitiria todas as suas propriedades se dissolvendo e se tornando cada vez mais rarefeito, ele diminuiria a aderência das partes dos corpos nos quais se faria este trabalho; e, ao se desprender, ele levaria consigo as moléculas, as mais sutis, sejam oleosas, sejam inflamáveis, que ficariam em suspensão na atmosfera. O ar assim carregado de emanações pútridas, se tornaria necessariamente mortal, se as exalações diversas que emanam de certos corpos não corrigissem estes diferentes vícios, e se os ventos não dissipassem aos princípios de sua corrupção. Se o ar infectado ficasse parado e não se renovasse jamais e, principalmente, se ele fosse respirado por muito tempo, conseqüências danosas poderiam ser esperadas. Para Vicq d’Azir, se estivéssemos convencidos destes princípios, compreenderíamos facilmente porque todos os lugares subterrâneos, baixos, pantanosos e cercados de montanhas e densas florestas, seriam pouco salubres; porque as doenças seriam tão freqüentes e quase todas malignas nos lugares onde o ar estaria impregnado por partículas fétidas.3 Vicq d’Azir descreve vários casos de morte e de epidemias em situações onde o ar se encontrava fétido, como o resultado de gazes, devido a corpos em putrefação. Conclui que , por estes motivos, intencionava demonstrar a evidência da necessidade indispensável de localizar os cemitérios públicos fora das cidades. Estaria aqui a fundamentação para uma intervenção radical na cidade que, atribuindo lugares específicos para a instalação de edifícios que pudessem conter matéria orgânica em putrefação e condenando áreas úmidas e pantanosas, conduziriam a práticas de intervenção na cidade que alterariam o seu padrão urbanístico vigente no período. Vamos encontrar no mundo luso-brasileiro o debate sobre estas mesmas questões no período entre o final do século XVIII e todo o século XIX. A circulação da tratadística sobre a cidade, quer na literatura médica, quer na literatura do corpo de engenheiros, sobretudo quanto às medidas necessárias para a reformulação da cidade, serão marcadas também pelas teorias miasmáticas desenvolvidas nas academias francesas. A primeira obra sobre o assunto publicada em português de que temos notícia é atribuída ao Brasileiro Vicente Coelho de Seabra Silva Teles, tendo sido publicada em Lisboa em 1800, pela Officina da Casa Litteraria do Arco do Cego, trata-se da Memoria sobre os prejuisos causados pelas sepulturas dos cadaveres nos templos, e methodo de os prevenir. 4 Os objetivos expressos de Silva Telles com a sua publicação seriam o de concorrer para o bem público, procurando mostrar não só que a sepultura nos templos é nociva, mas ensinar os meios de remediar os seus maus efeitos observando que “seria desnecessária a presente Memória se as Luzes das Sciencias Naturaes estivessem assas espalhadas entre nós”.5 Depois de descrever sobre os efeitos físicos e químicos da putrefação dos cadáveres, Telles discorre sobre os meios de evitar, ou diminuir os maus efeitos das sepulturas fora e dentro dos templos e propõe quatro maneiras de tratar os cadáveres: I – destruindo-os imediatamente após a morte (esta proposta implicaria uma incineração e era a mais eficiente segundo o autor); II – sepultando-os de tal forma e em tal sítio que as suas Maria Moura 3 VICQ D’AZIR, op. cit., página 78. Maria Moura 4 TELLES, Vicente Coelho de Seabra Silva, “Memória sobre os prejuisos causados pelas sepulturas dos cadaveres nos templos, e methodo de os prevenir”, Lisboa, Officina da Casa Litteraria do Arco do Cego, 1800. Silva Telles era natural da Província de Minas Gerais, onde nascerano ano de 1764, em Congonhas do Campo, e fora abastado fazendeiro. Era formado em Filosofia pela Universidade de Coimbra. Indagando sem descanso tudo quanto de novo e adiantado havia na ciência, desenvolveu uma aplicação tal que ainda estudante escreveu um compêndio de química, cujo primeiro volume foi publicado antes de sua formatura e foi nesta ocasião que foi admitido como sócio na Academia Real das Sciencias de Lisboa. A seu turno, a universidade, conhecendo avaliando seu mérito, conferiu-lhe o lugar de lente substituto de zoologia, botânica, mineralogia e agricultura na Universidade de Coimbra. Maria Moura 5 TELLES, Vicente Coelho de Seabra Silva, op.cit. página 2. 3 emanações pútridas fossem logo diluídas pelos ventos e águas (esta é a proposta que mais nos interessa pois remete a uma localização diferenciada dos cemitérios na cidade, proposta esta também considerada válida pelo autor); III – extraindo as terras infeccionadas das sepulturas dentro dos templos e substituindo-lhes por outras sadias e puras (proposta esta considerada de remediação pelo autor, assim como a quarta proposta, mas que o mesmo se dispõe a desenvolver na medida em que os costumes dificultariam a implantação das propostas anteriores); IV – lançando nas novas sepulturas, ou nas renovadas, substâncias que neutralizassem ou destruíssem a má qualidade das emanações podres. Ao desenvolver a segunda proposta Telles sugere que se façam grandes e espaçosos cemitérios fora das povoações, em sítios que “possam ser bem lavados dos ventos, e humedecidos pelas chuvas, cujo terreno seja barrento, ou misturado com alguma arêa, ou terra calcarea e fazer as sepulturas fundas ao menos de 7 palmos... por este modo os corpos apodrecem logo, e as emanações nocivas se dissolvem e se diluem de tal sorte pelo ar, e água, que se tornão nullas”.6 Telles lembra que este era um meio já bem usado na Europa na época e pelo qual os maus efeitos das emanações dos cadáveres eram evitados. Já nas cidades coloniais brasileiras o enterro fora das igrejas, em campos de sepultamento ensolarados, era reservado aos escravos, acatólicos, protestantes judeus e muçulmanos. A publicação inaugural sobre o assunto no Brasil, de que temos conhecimento, é a obra de José Corrêa Picanço intitulada Ensaio sobre o perigo das sepulturas nas cidades e nos seus contornos,7 ela foi publicada pela Imprensa Régia em 1812, contendo 114 páginas. Esta sua obra seria uma tradução da já mencionada obra de Vicq d’Azir publicada em Paris. Esta por sua vez seria uma versão da publicação italiana de Scipião Piatolli de 1774 – Saggio in torno al luogo del seppellire.8 Embora a obra de Picanço não faça menção à obra de Telles, ambos se referem a Vicq d’Azir. No final de sua obra Telles comenta, a título de advertência, que após ter escrito a sua memória teve a satisfação de ler o Ensaio sobre os lugares, e os perigos das sepulturas, que teria sido traduzido do italiano por Vicq d’Azir em 1778. Observa que a referida obra descreve os problemas relativos ao sepultamento, como epidemias e outras desgraças; fatos históricos ocorridos em função de tais práticas; e, ainda, sábias leis e regulamentos, tanto civis como eclesiásticos, publicados na Alemanha, França e Itália, para prevenir tão grandes danos causados à humanidade. Vicq d’Azir, por sua vez, apesar de reconhecer o mérito da obra italiana que ele traduzira, observa que já se havia escrito na França sobre o assunto, antes da obra de Scipion Piatolli, alegando que esta contém trechos traduzidos das obras dos médicos franceses Haguenot e Maret. Segundo Vicq d’Azir, Haguenot, que foi doutor e professor em medicina da Universidade de Montpellier, onde formou-se Picanço, teria sido o primeiro entre os modernos que condenara o hábito do enterro nas igrejas; e Maret, também doutor em medicina e secretário da Academia de Dijon, desenvolvera na sequência a idéia dos perigos de tal prática. A obra de Maret foi publicada em Dijon em 1773 e intitulava-se Mémoire sur l’usage où l'on est d'enterrer les morts dans les églises et dans l’enceinte des villes.9 Seu discurso, impregnado de preocupações sobre a aeração das cidades é totalmente laico, insensível aos aspectos religiosos. Para Maret, não se poderiam localizar os cemitérios nas cidades sem expor seus habitantes ao perigo que representava respirar um ar carregado de vapores animais pútridos. Esse perigo deveria levar à proibição do uso do interior das igrejas para a realização dos enterros. Ele recomenda que se renuncie a este hábito e que se localizem os cemitérios fora da cidade, ao ar livre, em lugares que não Maria Moura 6 TELLES, Vicente Coelho de Seabra Silva, op.cit. página 24. Maria Moura 7 PICANÇO, José Corrêa , “Ensaio sobre o perigo das sepulturas nas cidades e nos seus contornos”, Rio de Janeiro, Imprensa Régia, 1812. Maria Moura 8 PIATOLLI, Scipião, “Saggio in torno al luogo del seppellire”, 1774. Maria Moura 9 MARET, “Mémoire sur l’usage où l'on est d'enterrer les morts dans les églises et dans l’enceinte des villes”, Dijon, 1773. 4 fossem nem muito úmidos, nem muito expostos ao vento, de tal forma que os vapores infectados não se propagassem na cidade. O debate presente no seio desta categoria profissional – médicos – também estará presente entre os arquitetos e engenheiros do século XVIII na França , pois cabia a eles pensar a intervenção na cidade. As propostas veiculadas para as cidades brasileiras estarão marcadas pelo mesmo discurso, quer junto aos médicos, quer junto aos engenheiros. Um dos tratados de arquitetura de maior repercussão na França na segunda metade do século XVIII foi a obra de Pierre Patte que sintetiza as reflexões do período e sistematiza, talvez pela primeira vez, as possíveis respostas aos problemas que a cidade insalubre do século XVIII coloca. Pierre Patte publica em 1765 Monuments érigés en France à la Gloire de Louis XV e em 1769 Mémoires sur les objets les plus importants de l’Architecture. 10 Trata-se de duas obras precursoras enquanto propostas de intervenção planejada na cidade, nas quais se destacam: a dimensão estética como fundamento para as novas remodelações e a dimensão técnica como princípio de intervenção. Patte se propõe em seu Mémoires a apresentar as medidas necessárias para dispor uma cidade, destacando quais os meios de operar sua salubridade; a distribuição adequada de suas ruas para evitar todo tipo de acidente; a maneira mais vantajosa de localizar seus esgotos e repartir suas águas; a melhor forma de construir casas visando protegê-las dos incêndios; bem como apresenta uma teoria sobre o transbordamento dos rios e propõe uma zonificação da cidade, excluindo para os fauxbourgs as atividades ruidosas, rudes e mal cheirosas (matadouros, triparias, cutelarias, curtumes, etc...) cujos edifícios eram focos de propagação de doenças. Esta preocupação revela a sintonia das propostas de Patte com a teoria médica do período – a teoria miasmática – na qual a purificação do ar é uma premissa. Neste contexto, Patte propôs ainda a eliminação da prática de enterramento nas igrejas e recomendou que os cemitérios e hospitais fossem construídos em áreas distantes da cidade. Suas propostas para a intervenção na cidade, assim como as encontradas em outros tratados de arquitetura e engenharia do século XVIII, são as mesmas preconizadas pelo corpo médico. Para Pierre Patte, a localização da cidade no território deveria se pautar em critérios de salubridade do lugar e acessibilidade em relação às rotas comerciais (fluviais, marítimas e terrestres). A proximidade de um rio permitiria uma melhor circulação do ar e da água na cidade. Preocupações como estas, que implicam na relação do sítio urbano com os recursos hídricos da região aliadas à recomendação de construção de canais para abastecimento de água da cidade, colocam Patte como precursor das teorias de planificação territorial do século XIX. Analisada no seu conjunto,a proposta de Patte apresenta princípios de um zoneamento urbano. A cidade já não seria mais cercada por muralhas e sim por grandes boulevards que separariam funções distintas entre a área interna aos boulevards e a área externa – os fauxbourgs – que deveriam abrigar todos os edifícios com funções insalubres e ruidosas. Segundo Patte, a cidade deveria ser cercada no seu entorno com quatro fileiras de árvores, formando um grande arruamento para os veículos e duas alamedas laterais para servirem de passeios. Do outro lado destas fileiras de árvores se formaria os fauxbourgs, para onde seriam deslocados todos os ofícios rudes e as construções que produzem mal cheiro e muito barulho, tais como os curtumes, as triparias, as cutelarias, as lavanderias, as estalagens onde se guardavam os veículos públicos. O matadouro dos açougueiros, assim como seus estábulos seriam também relegados a estes lugares a fim de que suas tropas de Maria Moura 10 PATTE, Pierre, “Mémoires sur les objets les plus importants de l’Architecture”, Genève, Minkoff Reprint, 1973. Pierre Patte escreve ainda duas obras, dentre outras, de caráter urbanístico: em 1766, “De la manière la plus avantageuse d’éclairer les rues d’une ville pendant la nuit, en combinant ensemble la clarté, l’économie et la facilité du service”; e, em 1799, “De la translation des cimitières hors de Paris”. 5 gado não fossem obrigadas a atravessar constantemente a cidade, o que ocasionaria transtorno. O aumento do adensamento da população urbana no século XVIII na Europa, sobretudo nas grandes cidades, exigiu uma luta contra a insalubridade das mesmas. O século cultiva um espírito higienista que considera a aeração como meio eficaz de expulsar das cidades os miasmas e doenças. Com o objetivo de prevenir as epidemias, tão temerosas como mortais, médicos e administradores denunciam a presença dos cemitérios no interior das cidades. Pierre Patte será um dos protagonistas deste debate com a teoria da localizaçào dos cemitérios fora da cidade: “para além dos fauxbourgs, seriam localizados os cemitérios e os hospitais em locais elevados e bem aerados, pois o que exala destes lugares infecta o ar e as águas. Embora esta infecção não seja perceptível num primeiro momento, ela não deixa de molestar a saúde levando nossos corpos a contrair pouco a pouco maus elementos, que atribuímos impropriamente a outras enfluências”.11 A transferência dos cemitérios para fora da cidade contribuiria para a salubridade do ar. Estes deveriam ser implantados a pelo menos um quarto de légua da sua extremidade. Deveriam ser escolhidos locais bem aerados e contornados por muralhas de cerca de vinte pés de altura; assim os vapores elevando-se à atmosfera, não poderiam causar nenhuma infecção ao ar. Sensíveis a estas idéias, as autoridades civis solicitam relatórios do corpo médico através de questionários que levantassem in loco as condições sanitárias. A reação do clero é imediata pois percebem as mudanças que tais atitudes poderiam ter sobre os tradicionais cultos dos mortos.12 Ao analisar a circulação das teorias miasmáticas no Brasil e, sobretudo, como foram as intervenções propostas para a cidade pelos médicos e engenheiros, encontramos José Corrêa Picanço e Manoel Vieira da Silva como os mais importante protagonistas no debate sobre as condições sanitárias das cidades. Em ato de 1765, o Governador da Capitania de Pernambuco, D. Antonio Francisco de Paula Manoel de Souza e Menezes, o Conde de Vila-Flor, nomeia José Corrêa Picanço13 Cirurgião-mór que aos 21 anos se tornará o responsável dos membros do Corpo Avulso de Oficiais de Ordenanças das Estradas e Reformados. Picanço segue para Lisboa onde se matricularia na Escola de Cirurgia do Hospital São José obtendo o título de licenciado em Cirurgia . Em seguida viaja para Paris onde obteve o título de Officier de Santé em 1768. Foi aluno dos notáveis mestres franceses Desault, Morand e Sabatier.14 Exerceu clínica na capital francesa e, em 1772, volta a Portugal, instalando consultório em Lisboa e sendo nomeado no mesmo ano, pelo Marquês de Pombal, para lecionar na Universidade de Coimbra. Apesar de dedicado ao ensino e à clínica, sentiu-se desprestigiado pelos colegas de congregação por não possuir o Gráu de Doutor em Medicina, pois os títulos adquiridos não lhe conferiam o alto grau de competência sanitária. Picanço volta à França e na Universidade de Montpellier realiza o Curso Médico e defende tese perante a Congregação da Faculdade de Medicina de Paris, obtendo o almejado título de Doutor. Reassumindo o ensino de anatomia em 1779, na Universidade de Coimbra inovou o ensino dessa matéria, pois era então de caráter eminentemente teórico e nas poucas aulas práticas ministradas eram utilizados carneiros ou animais semelhantes. Introduziu o ensino em anfiteatros e em cadáveres humanos, tornando-se um inovador do ensino médico em Portugal. Obteve vários títulos e honrarias, entre eles, o de membro da Academia das Maria Moura 11 PATTE, Pierre, “Mémoires....”, página 25. Maria Moura 12 SOLON, J – F. “Sources d’Histoire de la France Moderne”, Paris, 1972, p Maria Moura 13 Filho de cirurgião barbeiro Francisco Corrêa Picanço, nasceu no dia 10 de novembro de 1745, na Vila de Goiana, Província de Pernambuco, onde aprendeu as primeiras letras e concluiu o curso primário. Com a transferência do seu genitor para a cidade do Recife, já mostrando pendor para a profissão paterna, iniciou o aprendizado e logo em seguida veio a substituir o pai no exercício da cirurgia, clinicando na capital da Província . Maria Moura 14 FREITAS, Geraldo Gomes de, “Discurso do Professor Geraldo Gomes de Freitas de Posse na Academia Pernambucana de Medicina”, Recife, Academia Pernambucana de Medicina, 1983, página 9. Picanço cultivou grande amizade com Sebatier, casando-se com sua filha Catarina. 6 Ciências de Lisboa, jubilando-se em 1790, com todas as prerrogativas do cargo de lente catedrático da Universidade de Coimbra. Gozando de grande prestígio social e científico, Corrêa Picanço é nomeado para o cargo de Primeiro Cirurgião da Real Câmara e Posteriormente Cirurgião-Mór do Reino e com a Junta do Proto-Medicato, instituída por Dona Maria I, em 1782, passou a ter a função de deputado e membro nato da nova instituição, que cuidava dos interesses médicos do Reino e das Colônias. Quando as guerras napoleônicas ameaçaram o Reino de Portugal em 1807, e o então Regente D. João VI ao decidir transferir a corte para o Brasil, chegando na Bahia, em 24 de janeiro de 1808, José Corrêa Picanço, consegue homologar a criação do ensino médico no Brasil, através da Carta Régia, datada de 18 de fevereiro de 1808, pelo Príncipe Regente. Estava fundada a primeira escola de Medicina do Brasil, na Bahia de Todos os Santos, localizada no edifício do Colégio dos Jesuítas, no Terreiro de Jesus, sede do Hospital Militar. A Corte mudou-se para o Rio de Janeiro, e ali, o mesmo Corrêa Picanço propôs e foi aceita a criação de nova escola médica, a segunda do Brasil, na cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro, a 5 de novembro de 1808, localizada também num colégio Jesuíta, sede do Hospital Militar, no Morro do Castelo. No mesmo ano de 1808, D. João VI expediria alvarás restabelecendo no Brasil os cargos de Cirurgião-mór dos Exércitos e de Physico-mór do Reino, que eram as principais autoridades sanitárias da organização administrativa de Portugal antes de ser criada a Junta do Proto-Medicato por Dona Maria I. Para o cargo de Cirurgião-mór dos Exércitos do Reino foi nomeado José Corrêa Picanço; para o de Physico-mór do Reino, Domínios e Conquistas Ultramarinas foi nomeado o Dr. Manoel Vieira da Silva, também médico e primeiro Cirurgião da Real Câmara e depois Barão de Alvaezer. Estes dois cargos reunidos englobavam a principal estrutura médica do Reino. Ao Cirurgião-mór do Exércitos estavam subordinados os demais cirurgiões, juizes comissários, seus delegadosnas capitanias, que superintendiam no que era relativo ao ensino e exercício da cirurgia, aos sangradores, parteiras, dentistas, aos que se ocupavam de aplicar bichas e ventosas, aos que locavam ossos deslocados (algebristas), aos hospitais, médicos e serviços médicos. Ao Physico-mór do Reino e aos seus delegados nas capitanias competia tudo o que se referia ao ensino de medicina, às questões entre médicos e clientes, ao exercício da farmácia, a boticários, droguistas, curandeiros, a cirurgiões que tratassem de moléstias internas, à profilaxia das moléstias epidêmicas e ao saneamento da cidade. Pouco depois foram nomeados juizes comissários do Cirurgião-mór dos Exércitos na Bahia, em Sergipe, em Pernambuco, no Pará, no Rio Negro, em São Paulo, nas Alagoas, em Goyaz, no Maranhão , no Rio Grande do Sul, em Minas Geraes, no Espírito Santo, no Rio de Janeiro, na Ilha Grande, em Montevidéo; ao mesmo tempo foram criados os lugares de delegados do Physico-mór em Minas Geraes, com sede em Villa Rica, na Bahia, no Rio Grande do Sul, com sede em Porto Alegre, em São Paulo, etc... O Regimento do Cirurgião-mór dos Exércitos, de 12 de dezembro de 1631, então ainda em vigor, apesar de ser a Junta do Proto-Medicato a organização sanitária existente em Portugal, estabelecia que o Physico-mór tinha as mesmas regalias e privilégios que o Cirurgião-mór. O regimento pelo qual se regulava o exercício destes cargos, o de 25 de fevereiro de 1521, proibia terminantemente o exercício da arte de curar sem a investidura 7 legal, que era pelo menos uma provisão pela chancelaria do Physico-mór do Reino e Cirurgião-mór dos Exércitos. Restabelecidos no Brasil os cargos de Cirurgião-mór dos Exércitos e Physico-mór do Reino, o príncipe regente regulamentou o exercício deles por alvará de 23 de novembro de 1808. Em Portugal, por essa época vigorava ainda como organização sanitária administrativa a Junta de Proto-Medicato, criada por D.Maria I em 17 de junho de 1782, a qual se compunha de sete deputados amovíveis de 3 em 3 anos, com seus juizes corregedores. Esta junta, porém, foi extinta por alvará de 7 de janeiro de 1809, por influência de contestações suscitadas no Brasil. O príncipe regente expediria tal alvará com força de lei no qual justificava que “tendo nomeado Physico-mór e Cirurgião-mór dos Exércitos do Reino, Estados e Domínios Ultramarinos, por decreto de 7 de fevereiro de 1808, aos Doutores José Corrêa Picanço e Manoel Vieira da Silva ... não é coherente com esta nova creação a existência da Real Junta do Proto-Medicato, não só porque foi erigida para substituir os referidos empregos do Physico-mór e Cirurgião-mór dos Exércitos do Reino, como também porque erão estes deputados natos daquelle tribunal, cuja falta torna impraticável que elles prosigam em suas funções, sem detrimento do Meu Serviço”15 Pouco depois o Príncipe Regente, por Decreto de 28 de julho de1809, criou o lugar de Provedor-mór da Saúde da Côrte e do Estado do Brasil, encarregando o Physico-mór, Dr. Manoel Vieira da Silva, de fazer o regimento no qual deveria caber ao Provedor-mór cuidar da conservação da saúde pública fiscalizando o estado da saúde das equipagens das embarcações que vinham de diversos portos, e obrigando-se a dar fundo em mais distância as que haviam saído dos portos que eram suspeitos de peste ou moléstias contagiosas, e a demorar-se por algum tempo os que nelas haviam se transportado, e de se afastarem do uso e mercado comum os comestíveis e generos corrompidos ou com princípio de podridão. O Regimento organizado pelo Physico-mór Dr. Manoel Vieira da Silva foi aprovado em 22 de janeiro de 1810 e previa no seu primeiro item: “Estando proximamente abertos pelas minhas reaes ordens os portos deste Estado ao comercio das nações Estrangeiras, que estão em paz com a Portuguesa; para que se não communiquem enfermidades contagiosas das suas embarcações, equipagens e mercadorias, deverá construir-se um Lazareto, onde façam quarentena, quando houver suspeita, ou certeza de infecção. E enquanto se não edifica e estabelece com a regularidade e forma convem, far-se-ha a quarentena no sítio da Boa-Viagem, onde provisoriamente se farão as accomodações precisas, e ahi deverão ancorar as embarcações impedidas pelos officiaes da Saude”. 16 Como cabia ao Physico-mór cuidar do saneamento da cidade, o príncipe regente ordena a Manoel Vieira da Silva que investigue e escreva sobre as causas, próximas ou remotas, das doenças que acometiam os habitantes do Rio de janeiro e quais opiniões já haviam sido emitidas pelos médicos sobre o assunto, assim como de que maneira se poderia remediá-las, pois na época as moléstias eram funestas a muitos habitantes da cidade. O médico responderá através de um relatório. O mesmo seria publicado em 1808, pela Imprensa Régia, no Rio de Janeiro, o que seria o primeiro trabalho médico impresso no Brasil, Reflexões sobre alguns dos meios propostos por mais conducentes para melhorar o clima da cidade do Rio de Janeiro.17 Nesta obra aponta como uma das grandes causas da insalubridade do Rio de Janeiro era a estagnação das águas, pois a cidade estava cercada por todos os lados de lugares pantanosos, onde observa: “nós sabemos que ali estão em digestão e dissolução substâncias animaes e vegetaes, as quaes na presença dos grandes calores, entrando em putrefação, dão origem a pestíferos gazes, que devem levar a todos os Maria Moura 17 VIEIRA DA SILVA, Manoel, “Reflexões sobre alguns dos meios propostos por mais conducentes para melhorar o clima da cidade do Rio de Janeiro”, Rio de Janeiro, Imprensa Régia, 1808. Maria Moura 16 BARBOSA, Plácido e REZENDE, Cassio Barbosa, op.cit. página 7. Maria Moura 15 BARBOSA, Plácido e REZENDE, Cassio Barbosa, “Os Serviços de Saude Publica no Brasil – Especialmente na Cidade do Rio de Janeiro 1808-1907 (esboço Histórico e Legislação)”, Rio de Janeiro, Imprensa Nacional, 1909, página 6. 8 viventes os preliminares da morte, já pela sua acção immediata na periferia do corpo, e continuação das suas membranas, já pela entrada nos orgãos da respiração”.18 Mais uma vez, podemos observar a presença da teoria miasmática explicando a propagação das doenças, daí as propostas para combatê-las resultar na idéia de eliminação de tudo o que produzisse gazes mal cheirosos. Vieira da Silva propõe que se aterrassem todos os lugares pantanosos através da canalização das águas para valas, tantas quantas necessárias, sendo que este sistema deveria estar articulado com as marés. Esta canalização dizia respeito a uma drenagem superficial e não à utilização de canos subterrâneos. Argumenta ainda que o estado deveria determinar os lugares onde deveriam ser edificadas as casas, com respectivas alturas das suas portas de entrada, para que os particulares, junto com o Estado, pudessem participar do aterro das novas ruas. Dever-se-ia, ainda, demarcar a direção e a largura das ruas. Talvez este seja o primeiro tratado sobre urbanismo publicado no Brasil. Vieira da Silva condenará o enterro dentro das igrejas lembrando que esta prática merecia a reprovação de todas as sociedades illuminadas e que deveria ser especialmente observada no Rio de Janeiro em razão do calor athmosférico e da pouca largura das ruas. Criticava o fato de que o sepultamento no Cemitério da Misericórdia do Rio de Janeiro deixava quase expostos os corpos ao calor, donde se seguia a produção de gazes suffocadores da vida. Para Vieira da Silva não poderia haver dúvida que seria necessário estabelecer cemitérios nas extremidades da cidade. Como o Cemitério da Misericórdia já se encontrava nesta situação, propõe que o mesmo fosse aproveitado através de uma ampliação, pois dessa maneira se poderia economizar nos gastos que seguramente seriam menores do que o que se empregaria com a formação de um novo. Todavia, se o seu plano de reforma não fosse considerado e se resolvesse formar um outro cemitério nesta área da cidade, recomendavaque o Estado devesse corrigir as suas despesas, que seriam melhor empregadas na edificação de outros cemitérios nas demais extremidades da cidade, onde havia a falta de Polícia. Lembrando que os danos causados pelo Cemitério da Misericórdia eram bem conhecidos, propõe-lhe uma reforma que consistiria na ampliação do mesmo, pois argumentava que o seu defeito encontrava-se no fato do mesmo ser muito pequeno. “O meio de remediar este único defeito, he, o aproveitar-se da contiguidade do Cemitério à cerca do Hospital Militar, fazendo unir huma porção deste terreno àquelle, e duplicando deste modo, ou triplicando a sua extensão”.19 O aproveitamento do Cemitério da Misericórdia se justifica pela sua localização ideal, fora da cidade pois “todos sabem, que na proximidade d’hum Hospital deve haver hum Cemitério, não só para evitar as despesas no modo de enterrar os defuntos, mas até para livrar os habitantes da cidade dos incommodos, que deveriam resultar da continuada passagem de defuntos pelas ruas della”. 20 Vieira da Silva condenará também a falta de controle sobre os navios que chegavam nos portos, carregados de pretos, sugerindo que dali poderiam provir os germes de moléstias epidêmicas e sugere que se construa lazaretos onde se desembarque os pretos e fação quarentena. Outra preocupação da Vieira da Silva é a relativa ao trânsito de manadas na cidade que iam em direção aos matadouros ou que se alojavam em currais quando se tratava de gado utilizado para o auxílio no transporte de mercadorias. Propondo que, para recuperar suas forças, o gado fosse alojado em lugar próprio na vizinhança da cidade. Se preocupa Maria Moura 20 VIEIRA DA SILVA, Manoel, op. cit. , página 13. Maria Moura 19 VIEIRA DA SILVA, Manoel, op. cit. , página 14. Maria Moura 18 VIEIRA DA SILVA, Manoel, op. cit. , página 11. 9 ainda com o transporte de carnes na cidade e com a falta de asseio dos matadouros onde a demora dos excrementos, sangue, ourinas, e differentes partes dos animaes, produz a putrefação, e opõe-se diretamente à salubridade da atmosfera. Sugere que se mude a localização dos matadouros para a entrada da cidade de tal forma que se evite inundar a athmosfera dos péssimos gazes que se formão. Para os açougues sugere que sejam mudados para as extremidades da cidade também. Outra obra de caráter urbanístico geral é aquela publicada em 1815 por José Joaquim de Santa Ana, capitão do Real Corpo de Engenheiros e Architetos do Rio de Janeiro. Esta publicação, editada pela Imprensa Régia, seria uma segunda edição de similar publicada em 1811, e que se intitulava Memória sobre o enxugo geral desta cidade do Rio de Janeiro 21 , onde se propõe a fazer o enxugo geral da cidade para que se evitem prejuízos causados aos moradores com as inundações motivadas pelas grandes e freqüentes chuvas. No seu plano, Santa Anna defende a boa distribuição dos declives das calçadas, evitando a utilização das valas, pois estas seriam de pouco efeito na medida em que eram prejudiciais à saúde pública, por serem depósitos das mesmas águas, que com o efeito do sol acarretava “huma evaporação tão nociva á saúde publica, por engrossar a athmosfera com particulas humidas e de corrupção; além de que, nas occasiões das grandes chuvas ellas não dão o despejo, que he necessário”.22 Em substituição às valas, Santa Ana propõe que o enxugo se faça por cima das calçadas, cujas águas desembocariam na praia através das diferentes ruas. Para tal se rebaixariam um pouco as suas extremidades para aumentar-lhes o declive. Comenta que a cidade encontra-se em área rebaixada e que a solução por meio de aquedutos não seria adequada pois as suas bocas dariam nas praias tão baixas que logo seriam entupidas de areia. Lembra ainda que a cidade e seus subúrbios estava cercada de uma cadeia de montes que jogavam os seus despejos na planície. Como seria recomendável que cada uma das ruas principais possuíssem grandes aquedutos que receberiam as águas dos demais conclui que não se poderia dar maior declive aos aquedutos do que aquele que se conseguiria para as próprias ruas. Lembrando também das despesas que implicariam a construção de aquedutos, conclui que a melhor solução seria fazer escoar as águas pelas ruas, dando-lhes a necessária declividade. Dentre as vantagens que o enxugo proporcionaria à cidade, Santa Anna destaca: purificar-se o ar por meio das partículas salinas, que se evaporão no fluxo e refluxo das marés. Ainda sugere a construção de um canal que deveria cruzar a cidade desde a Ponte de pão, nas costas da cidade nova, até a praia fronteira à ilha das cobras, com uma largura aproximada de 40 palmos, devendo ser de “hum e outro lado guarnecido de huma arcada, a fim de haver hum passeio coberto de 12 a 15 palmos de largo, para beleza e serventia do dito canal, e pontes nos lugares que cruzam as ruas Direita, da Quitanda, e da valla, e outras que seguem esta mesma direção, na frente das quaes apenas he preciso que as casas que estivessem no lugar por onde passar o canal, se lhes roubem as lojas, conservando-se-lhes porém o resto sobre hum arco de largura do dito canal, e dous mais pequenos hum de cada lado para serventia dos passeios, e embarque dos gêneros, que se quizerem conduzir por elle”. 23 Santa Anna considera ainda que para que a cidade fosse mais saudável e fresca que não se deveria consentir que se abrissem ruas com larguras menores a 60 palmos, de tal forma que se pudessem entrar na cidade grandes colunas de ar. Maria Moura 23 SANTA ANA , Joaquim, op. cit. Página 21. Maria Moura 22 SANTA ANA , Joaquim, op. cit. Página 7. Maria Moura 21 SANTA ANA , Joaquim, “Memória sobre o enxugo geral desta cidade do Rio de Janeiro”, Rio de Janeiro, Imprensa Régia, 1811. 10 Na legislação do Império encontraremos a consolidação destas idéias sobre as intervenções de caráter sanitário nas cidades, idéias estas que estavam em curso no Brasil desde as últimas décadas do período colonial A estrutura relativa à prática da medicina no Brasil estabelecida quando da vinda da família real vigorou até 1827. Quando já independente o Brasil-Império, o deputado pela Província do Rio Grande do Sul e farmaceutico Xavier Ferreira propôs a extinção dos cargos de Physico-mór e de Cirurgião-mór do Império, alegando os abusos praticados ou consentidos por essas autoridades. A moção do deputado rio-grandense foi sancionada por decreto de 30 de agosto de 1828, determinando a abolição dos referidos cargos e atribuindo às câmaras municipais, através de seus regimentos, as respectivas funções. Em 1 de outubro de 1828 o Imperador sancionava e mandava executar o decreto legislativo em que se estabelecia a forma das eleições dos membros das câmaras municipais das cidades e vilas do Império e marcava as suas funções e a dos empregados respectivos. Nesta lei orgânica das câmaras municipais deveria estar incluído o primeiro Código de Posturas do período, cujas recomendações relativas ao assunto estariam incluídas nos artigos 66 a 73 da mesma lei e eram denominadas Posturas Policiais. Nestas estava estabelecido que as câmaras das cidades e vilas deveriam ter a seu cargo os seguintes objetos: “alinhamento, limpeza, illuminação, e desempachamento das ruas, cães, e praças, conservação e reparos de muralhas feitas para segurança dos edifícios, e prisões publicas, calçadas, pontes, aqueductos, chafarizes, poços, tanques, e quaesquer outras construções em benefício commum dos habitantes, ou para decoro, e ornamento das povoações”. A lei prescrevia ainda : “Sobre o estabelecimento de cemitérios fora do recinto dos templos, conferindo a esse fim com a principal autoridade ecclesiastica do lugar, sobre o esgotamento de pantamos, e quaesquer estagnação de agoas infectas; sobre a economia e asseio dos curraes, e matadouros publicos, sobre a collocação de cortumes, sobre o deposito de immundicias, e quanto possa alterar, e corromper a salubridade da atmosphera”. 24 Estas PosturasPoliciais deveriam ainda prescrever regulamentações a cerca do transito do gado de consumo diário na cidade e prover sobre os lugares onde o mesmo pudesse pastar e descansar quando o conselho não tivesse o seu próprio curral. Determinava ainda que só nos matadouros públicos ou nos particulares com licença das Câmaras as rezes poderiam ser matadas e esquartejadas. Em Salvador as Posturas Municipais foram organizadas pela Câmara Municipal e aprovadas pelo Conselho Geral da Província na sessão de 21 de julho de 1829. As posturas prescreviam: “He absolutamente prohibido o enterrarem-se corpos dentro das Igrejas, e nos seus adros...”. 25 Esta postura só deveria entrar em vigor, todavia, somente dois anos depois da sua publicação, quando as Confrarias e Parochos deveriam estabelecer seus Cemiterios em lugares aprovados pela Camara, fora da Cidade”. As Posturas prescreviam ainda que: “os hospitaes ou casa, em que se recebão doentes para serem tractados de suas enfermidades só poderão ser estabelecidos fora do recinto da Cidade” e que as “babricas de curtir coisas, salgal-as, e fazzer colla” não poderiam ser levantadas na cidade e povoados. O trânsito dos animais na cidade também será regulamentado pela legislação que recomendava que os mesmos descansassem na Campina da cidade destinada a este fim e que fossem conduzidos ao matadouro público somente no dia anterior da matança. Quando nos terrenos particulares da cidade e subúrbios atravessassem valas e riachos, caberia aos proprietários ou locatários mantê-las limpas e desimpedidas assim Maria Moura 25 “Posturas approvadas pelo Conselho Geral de Província em sessão de 21 de julho de 1829”(organizadas pela Camara Municipal de Salvador), Salvador, Livro de Posturas (119.5) 1829 – 1859, Arquivo Público Municipal, Fundação Gregório de Mattos. Maria Moura 24 Lei de 1 º de outubro de 1828, in “Collecção das Leis do Império do Brasil”, Rio de Janeiro, Thpographia Nacional, 1878. 11 como dessecar os terrenos com pântanos e águas estagnadas. Proibia-se ainda o despejo de imundícies das casas nas ruas obrigando-se a despeja-las no mar, à noite, em vasilhas cobertas. Para os lixos e entulhos das casas a Câmara deveria designar por editais os lugares em que se poderiam depositá-los. A mesma legislação estabelecerá parâmetros para as construções prescrevendo que as novas edificações deveriam respeitar o alinhamento que era determinado por prospecto, feito público por edital, para cada rua. Estas e as estradas que de novo se abrissem, e as existentes susceptíveis de amplo melhoramento teriam pelo menos seis braças de largura e os cais de desembarque oito. Ficariam proibidas por esta lei os balcões ou sacadas na frente das casas na cidade. No Rio de Janeiro as Posturas seriam organizadas pela Câmara Municipal da Côrte em 4 de outubro de 1830 e aprovadas por lei imperial em 28 de janeiro de 1832. No capítulo sobre a Saúde Pública a lei trata Sobre cemitérios e enterros prescrevendo: “Fica absolutamente prohibido enterrarem-se corpos dentro das Igrejas, ou sachristias, clautros dos Conventos, em quaesquer outros lugares nos recintos dos mesmos...”.26 Esta disposição também só deveria ter seu efeito depois de estabelecidos os cemitérios fora da cidade , ou de ter sido designado pela Câmara Municipal os lugares em que se fariam os enterros. A mesma lei trata do Esgotamento de pantanos, e aguas infectadas, e tapamentos de terrenos abertos determinando que “aquelle, que tiver algum terreno pantanoso, onde se estagnem aguas, será obrigado a aterral-o”. As prescrições relativas à Economia e asseio dos curraes, e matadouros, açougues publicos ou talhos, proibiam, entre outros, que se matasse ou esquartejasse rezes para consumo público sem ser nos matadouros públicos ou particulares que tivessem licença da Câmara; aquelas relativas aos hospitaes, e casas de saude, e molestias contagiosas estabeleciam que “os hospitaes publicos, ou de irmandades, que se acham actualmente nesta cidade, serão conservados, até que se possam ser transferidos para lugares mais apropriados. Nenhum particular, ou corporação poderá estabelecer em qualquer parte mais hospitaes, ou casas, em que se recebam doentes a tratar sem licença da Câmara”. A mesma legislação regulamenta, ainda, Sobre a collocação de cortumes, e sobre quaesquer estabelecimentos de fabricas, e manufacturas, que possam alterar, e corromper a salubridade da atmosphera, e sobre deposito de immundicies, proibindo o estabelecimento de curtumes na cidade e nos seus arrabaldes e vedando também dentro da cidade os fornos de cozer, ou torrar tabaco, “ou quaesquer outras fabricas de sebo e sabão, azeites, oleos, ou outras, em que se trabalhe com ingredientes, que exhalam vapores, que alteram e corrompem a salubridade da atmosphera, as quaes não se poderão estabelecer sem licença da Câmara”. Caberia à Câmara também determinar os lugares próprios para o depósito de “immundicies”. A lei prescreve também sobre differentes objetos, que corrompem a atmosphera, e prejudicam a saude publica como por exemplo a proibição de criação de porcos em quintais. As Posturas Policiais, contidas no corpo da referida lei, prescrevia, entre outras questões, Sobre o alinhamento de ruas, e edificação. Segunda ela a Câmara deveria levantar planos, segundo os quais seriam formadas as ruas, praças e edifícios na cidade e seu termo, e caberia aos arruadores alinhar e perfilar o edifício regulando sua frente conforme o plano adotado pela Câmara. Todas as ruas, estradas ou travessas que se abrissem na cidade e seu termo deveriam ter pelo menos 60 palmos de largura, devendo os rocios, praças e largos formarem quadrados perfeitos sempre que o terreno permitisse. Maria Moura 26 “Collecção das Leis do Império do Brasil”, Rio de Janeiro, Typographia Nacional, 1878. 12 Muitas das recomendações prescritas nas Posturas Policiais do final da década de trinta serão paulatinamente incorporadas nas práticas dos engenheiros responsáveis pelas intervenções nas cidades. Observaremos, por exemplo, que os sepultamentos deixariam de ser no chão e nos pátios das igrejas e passariam a realizar-se em áreas abertas, nos chamados campos santos ou cemitérios secularizados. O enterro fora das igrejas, em campos de sepultamento ensolarados, que antes eram reservados aos acatólicos, protestantes, judeus, muçulmanos, escravos e condenados, foram prescritos por lei, inspirada na correlação que se fez entre transmissão de doenças e miasmas concentrados nas naves e criptas. 27 As medidas adotadas referentes à prática do enterramento foram precedidas de debates e resistências, visto que eram consideradas práticas profanas. Uma das formas mais temidas da morte era aquela sem enterramento adequado, pois era indispensável repousar em solo sagrado e perto de casa. Para os luso-brasileiros, até pelo menos a metade do oitocentos, esse lugar ainda era a igreja. Esta representava uma espécie de portal do paraíso. Ao mesmo tempo era o lugar perfeito e desejável para se aguardar a ressureição no dia do Juízo Final, concepção amplamente difundida no mundo católico desde a Idade Média. Em 1764, em Salvador, os irmãos negros de Santa Ifigênia protestaram contra a maneira desrespeitosa como eram sepultados os cadáveres dos pretos pela Santa Casa de Misericórdia, pondo em perigo a imortalidade de suas almas e a futura ressurreição de seus corpos. A doutrina da imortalidade da alma no Inferno e a ressurreição do corpo penetrara o pensamento dos irmãos negros, associada à idéia de sepultura adequada.28 As mudanças de hábito talvez tenham sido facilitadas pela prática dos protestantes ingleses que dispunham de seus próprios cemitérios, em geral fora do perímetro urbano. As cidades do Rio de Janeiro, Recife e Salvador terão os seus cemitérios ingleses, sempre muito arborizados em áreas afastadas da cidade, bastante aeradas. Os cemitérios dos ingleses no Brasil foram certamente dosmais antigos que se construíram no sistema de inumação em terreno ensolarado. Foram eles instalados a partir do segundo quartel do século XIX, amparados por permissão de Carta Régia de D. João VI. No Rio de Janeiro trata-se do cemitério da Gamboa; no Recife, do Cemitério Anglicano de Santo Amaro, situado entre Recife e Olinda; e, em Salvador, do Cemitério dos Ingleses que se instalaria numa área de promontório, na encosta do mar. Em 29 de setembro de 1832, Maria Graham visitou o cemitério dos ingleses no Rio de Janeiro, localizado na Praia da Gamboa: “Fui hoje a cavalo ao cemitério dos ingleses, na Praia da Gamboa , que julgo um dos lugares mais deliciosos que jamais contemplei, dominando lindo panorama, em todas as direções”. 29 Maria Graham destaca ainda as árvores magníficas ali presentes expressando seu conforto em encontrar algo familiar no mundo dos trópicos: “Na minha doença, muitas vezes entristecia-me por não conhecer este cemitério. Estou agora satisfeita, se a fraqueza, que ainda me resta, atirar-me aqui, os muito poucos que vierem ver onde jaz a amiga não sentirão o aborrecimento da prisão”. Esta descrição contrasta com a narrativa lacônica que faria do cemitério da Santa Casa da Misericórdia: “é tão pequeno que chega a ser desagradável e, segundo creio, insalubre para a vizinhança”.30 Em Recife, após a abertura dos portos , nos primeiros anos marcados pelo início da imigração inglesa, não havia cemitérios públicos e os cadáveres eram inumados nas igrejas e conduzidos em procissões noturnas de um lúgubre aspecto. Esse uso era privativo dos católicos, de sorte que os protestantes, fora dessa comunhão, eram sepultados em lugares profanos, sem respeito tributado aos mortos. A pressão da colônia inglesa para que se Maria Moura 30 GRAHAM, Maria, op. cit. , página 366. Maria Moura 29 GRAHAM, Maria, “Diário de uma viagem ao Brasil, e de uma estada neste país durante parte dos anos 1821, 1822 e 1823”, São Paulo, Companhia Editora Nacional, 1956, página 347. Maria Moura 28 REIS, João José , O cotidiano da morte no Brasil oitocentista, in “História da vida privada no Brasil”, São Paulo, Companhia das Letras, 1997, v. 2, página 96 e 141. Maria Moura 27 VALLADARES, Clarival do Prado, “Arte e sociedade nos cemitérios brasileiros”, Rio de Janeiro/Brasília, Imprensa Nacional, 1972. 13 pudesse fazer o sepultamento adequado dos seus membros assim como para que se tivesse a liberdade de culto fez com que fosse estabelecido no “Tratado de Navegação e Commercio”, celebrado entre Portugal e Inglaterra, firmado em 19 de fevereiro de 1810, cláusulas relativas ao assunto. Assim, através do artigo 12 do tratado, o governo português permitiria enterrar os vassalos britânicos em lugares convenientes. Em virtude desta concessão, representou ao governo o embaixador inglês residente na côrte do Rio de Janeiro contra a “a pratica indecente que existia em Pernambuco de serem enterrados nas praias os vassalos britânicos de religião protestante que falleciam na capitania, e nos mesmos lugares em que eram sepultados os negros africanos não baptisados” , e requereu que se lhe destinasse um terreno para o estabelecimento do dito cemitério. O terreno escolhido seria o de Santo Amaro das Salinas, entre Recife e Olinda. No mesmo tratado se assegura aos súditos britânicos nas possessões portuguesas a liberdade de consciência e de religião “para assistirem e celebrarem o serviço divino... , quer seja dentro de suas casas particulares, quer nas suas particulares igrejas e capellas” lhes concedendo “a permissão de edificarem e manterem dentro dos seus domínios, contanto porem, que as sobreditas igrejas e capellas serão construidas de tal modo que externamente se assemelhem a casas de habitação; e tambem que o uso dos sinos lhe não seja permitido para o fim de annunciarem publicamente as horas do serviço divino”. Fica clara a preocupação por parte da coroa portuguesa com a possível propagação da igreja protestante no Brasil. Estes templos anglicanos seriam construídos com uma linguagem arquitetônica neoclássica e foram instalados em área abertas, geralmente praças, nos arredores das cidades, como é o caso do templo construído em Salvador. Segundo Sérgio Buarque de Holanda, o século XIX, sobretudo em sua primeira metade, foi, no Brasil, o século inglês por excelência, e tudo teria começado com a chegada da família real portuguesa, devendo-se aos ingleses “a introdução do gosto pela residência em casas isoladas, por jardins bem tratados, e longe do centro da cidade, freqüentemente em contato direto com a natureza agreste.31 Maria Graham ao comentar um período de tensão na cidade do Recife, em 1821, quando a população necessitou se prevenir de um possível ataque, descreve o hábito dos ingleses morarem em áreas afastadas do centro: “Muita gente, com suas mulheres e famílias, deixou as casas nos arredores da cidade e refugiou-se junto aos ingleses. Os últimos que, na maior parte, dormem pelo menos em casas de campo das vizinhanças, chamados sítios, abandonaram-na e concentraram-se nos escritórios junto ao porto”.32 Segundo Pereira da Costa, o viajante inglês, Henrique Koster, depois de dois anos de ausência, voltando a Pernambuco no início do século XIX, descreve o diferente aspecto da cidade, marcado pela presença destes ingleses: “as novas e elegantes construções urbanas, de par com as campestres com seus jardins e pomares, as carruagens substituindo os vetustos palanquins ou cadeirinhas”.33 Contudo será Gilberto Freire 34quem brilhantemente chamaria atenção para a introdução do gosto inglês nos novos hábitos de morar. O historiador observaria que das relações com o Oriente e a África desenvolvera-se entre nós a predominância dos estilos e modas asiáticas ou africanas, como, entre outros, o palanquim como meio de transportes; os móveis de estilo indiano em algumas casas mais fidalgas; a arquitetura das casas, cheia de reminiscências orientais ; os hábitos de higiene pública e doméstica. “E ingleses que se foram estabelecendo no Rio passaram a residir em casas em cuja arquitetura havia muita reminiscência do Oriente: de longe algumas deviam dar aos europeus já conhecedores da China a impressão de pagodes. As gelosias, arrancadas tão repentinamente e violentamente Maria Moura 34 FREYRE, Gilberto, “Ingleses no Brasil – aspectos da influência britânica sobre a vida, a paisagem e a cultura do Brasil”, Rio de Janeiro, Livraria José Olympio Editora/MEC, 2 ª edição, 1977. Maria Moura 33 PEREIRA DA COSTA, F. A, op. cit. , página 527. Maria Moura 32 GRAHAM, Maria, op. cit. , página 107. Maria Moura 31 HOLANDA, Sérgio Buarque de, “História geral da civilização brasileira”, Rio de Janeiro, Editora Bertrand Brasil, 1993, Tomo 2. 14 das melhores casas das principais cidades brasileiras, não eram, afinal, o único traço do Oriente na arquitetura ou na decoração doméstica no Brasil. Também o eram os azulejos, os leões ou dragões de louça nos umbrais dos portões, as telhas côncavas, os telhados acachapados, as esteiras, as colchas”. 35 Segundo Gilberto Freire os ingleses se tornariam no Rio de Janeiro, na Bahia e em Pernambuco dos princípios do século XIX os descobridores dos melhores e mais saudáveis recantos de residência. Sob a influência dos hábitos britânicos de conforto e de higiene doméstica, se alteraria no Brasil o gosto da casa burguesa, marcado pela preferência dos ingleses às casas isoladas e não aos sobrados um junto ao outro. As escolhas dos ingleses para local de moradia dariam origem aos novos bairros burgueses, nas áreas suburbanas das cidades antes ocupadas por chácaras e sítios. Ao escolherem estes locais para moradia, aliados à substituição do meio de transporte, do palanquim ou cadeirinhas, para a carruagem, também introduzidas pelos ingleses, assistiríamos a uma das principais transformações no padrão urbanístico das cidades do Império. Antes, no período colonial, a cidade configurava-se como uma área extremamenteadensada, onde as residências, coladas umas às outras formavam o panorama arquitetônico característico do período. As áreas próximas das cidades, não se configuravam como urbanas, eram ocupadas por sítios e chácaras. A partir das escolhas dos ingleses em transformar estas casas rurais em suas residências, lembrando que os ingleses eram essencialmente comerciantes e não sitiantes, possuindo sua loja de comércio na cidade e para lá afluindo diariamente, utilizando para tal suas carruagens como transporte, se formariam os subúrbios, que se constituiriam mais tarde, nos bairros burgueses das cidades. Os ingleses ao dar preferência às residências isoladas entre arvoredos no lugar dos sobrados foram dando origem a estes novos bairros burgueses: “como na Tijuca (Rio ) ou na Vitória (Bahia); perto dos rios como em Apipucos, no Monteiro, no Poço da Panela (Pernambuco); à beira-mar como em Botafogo e Olinda. Velhos casarões isolados, antigas chácaras e até casas-grandes de engenho, com puxadas ou telheiros semelhantes a pagodes chineses e onde se fazia farinha ou se abrigavam cavalos, foram por eles adaptados aos seus gostos e o mais possível incorporados ao espaço urbano das capitais. Um gosto bem diverso do luso-brasileiro, o britânico, quanto a lugar de residência burguesa. Entre os portugueses e seus descendentes brasileiros a moda era a gente das cidades morar em sobrados um junto do outro, sem árvores, por muito tempo sem vidraças – só com urupemas ou gelosias de sabor oriental; as alcovas no centro das casas. Apenas iam os grandes burgueses “passar as festas” em chácaras nos arredores das cidades. Os britânicos fizeram desses arredores pontos de residência e não de simples passamento de festas. Em 1821, Maria Graham informa que era em casas de sítio que seus compatriotas do Recife residiam ou pelo menos, passavam as noites, mantendo nas cidades, perto do porto, as “couting-houses”, isto é , as casas comerciais. Um ou outro residia nos próprios sobrados comerciais.”36 Para Giberto Freire, “esta foi sem dúvida uma das revoluções mais significativas causadas ou operadas pelos britânicos nos hábitos ainda coloniais e meio mouriscos, ou antes, orientais, do Brasil: o deslocamento – que se verificou lentamente – das residências mais nobres de habitantes das cidades, de sobrados situados no centro, para subúrbios que passaram a ser elegantes, tornando-se deselegante para o burguês fino e rico residir no centro comercial. Pois o exemplo inglês foi imitado por brasileiros e portugueses: os anúncios de jornais da época indicam a valorização das casas de sítio ou das chácaras para residências – e não apenas para passamento de festas”.37 Maria Moura 37 FREYRE, Gilberto, op. cit. , página 137. Maria Moura 36 FREYRE, Gilberto, op. cit. , página 136. Maria Moura 35 FREYRE, Gilberto, op. cit. , página 136. 15 Na cultura urbanística inglesa do século XVIII se estabelece uma relação com a natureza que marcará as novas tipologias urbanísticas. Além das novas concepções de moradia, com a residência isolada nos lotes nas áreas suburbanas e os cemitérios rurais protestantes em áreas arborizadas, os parques botânicos aliam o desejo do desenvolvimento científico à oportunidade de realização de grandes áreas verdes próximas ao tecido urbano. Com D. João VI, temos inclusive a criação do Jardim Botânico no Rio de Janeiro, além da introdução das primeiras medidas de caráter sanitário no Brasil. 1 Professora Dra. Faculdade de Arquitetura e Urbanismo / Pontifícia Universidade Católica de Campinas 2 VICQ D’AZIR, Essai sur les lieux et les dangers des sepultures , in: “Oevres de Vicq d’Azir”, Paris, L. Duprat-Duverger, 1805, tome sizième. Trata-se de um tratado de medicina com 6 volumes cujo exemplar consultado encontra-se no Real Gabinete Português de Leitura do Rio de Janeiro. 3 VICQ D’AZIR, op. cit., página 78. 4 TELLES, Vicente Coelho de Seabra Silva, “Memória sobre os prejuisos causados pelas sepulturas dos cadaveres nos templos, e methodo de os prevenir”, Lisboa, Officina da Casa Litteraria do Arco do Cego, 1800. Silva Telles era natural da Província de Minas Gerais, onde nascera no ano de 1764, em Congonhas do Campo, e fora abastado fazendeiro. Era formado em Filosofia pela Universidade de Coimbra. Indagando sem descanso tudo quanto de novo e adiantado havia na ciência, desenvolveu uma aplicação tal que ainda estudante escreveu um compêndio de química, cujo primeiro volume foi publicado antes de sua formatura e foi nesta ocasião que foi admitido como sócio na Academia Real das Sciencias de Lisboa. A seu turno, a universidade, conhecendo avaliando seu mérito, conferiu-lhe o lugar de lente substituto de zoologia, botânica, mineralogia e agricultura na Universidade de Coimbra. 5 TELLES, Vicente Coelho de Seabra Silva, op.cit. página 2. 6 TELLES, Vicente Coelho de Seabra Silva, op.cit. página 24. 7 PICANÇO, José Corrêa , “Ensaio sobre o perigo das sepulturas nas cidades e nos seus contornos”, Rio de Janeiro, Imprensa Régia, 1812. 8 PIATOLLI, Scipião, “Saggio in torno al luogo del seppellire”, 1774. 9 MARET, “Mémoire sur l’usage où l'on est d'enterrer les morts dans les églises et dans l’enceinte des villes”, Dijon, 1773. 10 PATTE, Pierre, “Mémoires sur les objets les plus importants de l’Architecture”, Genève, Minkoff Reprint, 1973. Pierre Patte escreve ainda duas obras, dentre outras, de caráter urbanístico: em 1766, “De la manière la plus avantageuse d’éclairer les rues d’une ville pendant la nuit, en combinant ensemble la clarté, l’économie et la facilité du service”; e, em 1799, “De la translation des cimitières hors de Paris”. 11 PATTE, Pierre, “Mémoires....”, página 25. 12 SOLON, J – F. “Sources d’Histoire de la France Moderne”, Paris, 1972, p 13 Filho de cirurgião barbeiro Francisco Corrêa Picanço, nasceu no dia 10 de novembro de 1745, na Vila de Goiana, Província de Pernambuco, onde aprendeu as primeiras letras e concluiu o curso primário. Com a transferência do seu genitor para a cidade do Recife, já mostrando pendor para a profissão paterna, iniciou o aprendizado e logo em seguida veio a substituir o pai no exercício da cirurgia, clinicando na capital da Província. 14 FREITAS, Geraldo Gomes de, “Discurso do Professor Geraldo Gomes de Freitas de Posse na Academia Pernambucana de Medicina”, Recife, Academia Pernambucana de Medicina, 1983, página 9. Picanço cultivou grande amizade com Sebatier, casando-se com sua filha Catarina. 15 BARBOSA, Plácido e REZENDE, Cassio Barbosa, “Os Serviços de Saude Publica no Brasil – Especialmente na Cidade do Rio de Janeiro 1808-1907 (esboço Histórico e Legislação)”, Rio de Janeiro, Imprensa Nacional, 1909, página 6. 16 BARBOSA, Plácido e REZENDE, Cassio Barbosa, op.cit. página 7. 17 VIEIRA DA SILVA, Manoel, “Reflexões sobre alguns dos meios propostos por mais conducentes para melhorar o clima da cidade do Rio de Janeiro”, Rio de Janeiro, Imprensa Régia, 1808. 18 VIEIRA DA SILVA, Manoel, op. cit. , página 11. 19 VIEIRA DA SILVA, Manoel, op. cit. , página 14. 20 VIEIRA DA SILVA, Manoel, op. cit. , página 13. 16 21 SANTA ANA , Joaquim, “Memória sobre o enxugo geral desta cidade do Rio de Janeiro”, Rio de Janeiro, Imprensa Régia, 1811. 22 SANTA ANA , Joaquim, op. cit. Página 7. 23 SANTA ANA , Joaquim, op. cit. Página 21. 24 Lei de 1 º de outubro de 1828, in “Collecção das Leis do Império do Brasil”, Rio de Janeiro, Thpographia Nacional, 1878. 25 “Posturas approvadas pelo Conselho Geral de Província em sessão de 21 de julho de 1829”(organizadas pela Camara Municipal de Salvador), Salvador, Livro de Posturas (119.5) 1829 – 1859, Arquivo Público Municipal, Fundação Gregório de Mattos. 26 “Collecção dasLeis do Império do Brasil”, Rio de Janeiro, Typographia Nacional, 1878. 27 VALLADARES, Clarival do Prado, “Arte e sociedade nos cemitérios brasileiros”, Rio de Janeiro/Brasília, Imprensa Nacional, 1972. 28 REIS, João José , O cotidiano da morte no Brasil oitocentista, in “História da vida privada no Brasil”, São Paulo, Companhia das Letras, 1997, v. 2, página 96 e 141. 29 GRAHAM, Maria, “Diário de uma viagem ao Brasil, e de uma estada neste país durante parte dos anos 1821, 1822 e 1823”, São Paulo, Companhia Editora Nacional, 1956, página 347. 30 GRAHAM, Maria, op. cit. , página 366. 31 HOLANDA, Sérgio Buarque de, “História geral da civilização brasileira”, Rio de Janeiro, Editora Bertrand Brasil, 1993, Tomo 2. 32 GRAHAM, Maria, op. cit. , página 107. 33 PEREIRA DA COSTA, F. A, op. cit. , página 527. 34 FREYRE, Gilberto, “Ingleses no Brasil – aspectos da influência britânica sobre a vida, a paisagem e a cultura do Brasil”, Rio de Janeiro, Livraria José Olympio Editora/MEC, 2 ª edição, 1977. 35 FREYRE, Gilberto, op. cit. , página 136. 36 FREYRE, Gilberto, op. cit. , página 136. 37 FREYRE, Gilberto, op. cit. , página 137. Pesquisar:
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