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ARTIGO - A Modernização da Cidade Setecentista - O Contributo das Culturas Urbanísticas Francesa e Inglesa

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VI SEMINÁRIO DE HISTÓRIA DA CIDADE E DO URBANISMO 
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GARNDE DO NORTE 
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO 
 
 
A Modernização da Cidade Setecentista: O Contributo das Culturas Urbanísticas 
Francesa e Inglesa 
Ivone Salgado1 
 
 
 O padrão arquitetônico e urbanístico da cidade setecentista brasileira colonial 
sofrerá transformação substancial durante o oitocentos. Em paralelo a uma arquitetura que 
antes apresentava-se como predominantemente barroca, passando a incorporar princípios 
de composição neoclássicos; a cidade também se transforma no Império. Para esta nova 
configuração urbana irão contribuir duas culturas urbanísticas: a francesa e a inglesa. Estas 
contribuições todavia apresentam-se com caracteres bastante distintos. A cultura 
urbanística francesa seria veiculada na colônia através das relações institucionais com 
Portugal e as academias francesas onde um quadro de profissionais, engenheiros, arquitetos 
e médicos, seriam aos protagonistas principais destas relações. Quanto à cultura urbanística 
inglesa, que veicularia no Brasil durante o século XIX, assistimos a uma transmissão 
sobretudo através da própria colônia inglesa, comerciantes na sua maioria, que imigram 
para as principais cidades portuárias carregando consigo seus hábitos e costumes. 
 Entre o final do século XVIII e início do XIX, as principais cidades brasileiras, Rio 
de Janeiro, Recife e Salvador, encontravam-se em condições sanitárias precárias. O debate 
ocorrido no seio da administração envolvendo médicos e engenheiros visava uma 
intervenção para alterar as condições de salubridade destas cidades e será marcado por forte 
intercâmbio cultural com a Europa. As teorias médicas e urbanísticas desenvolvidas 
especialmente na França serão uma referência para o debate que se instaura no Brasil tendo 
como principal fundamentação a teoria miasmática. Apesar das dificuldades de colocar em 
prática algumas das propostas veiculadas pelos médicos e engenheiros para a transformação 
da cidade, devido tanto a questões econômicas – algumas destas propostas implicavam 
investimentos vultuosos – como por questões culturais, como as alterações de hábito que 
modificariam sobretudo as cerimônias religiosas e todo o culto religioso do mundo católico, 
observamos que as cidades passariam por grandes transformações consolidando um novo 
padrão urbanístico. 
 As relações culturais no seio das categorias profissionais em questão – médicos e 
engenheiros - estariam marcadas no período por um intercâmbio intenso com a França. A 
teoria miasmática fundamentava as propostas de intervenção na cidade. Um dos tratados, 
no campo da medicina, que muito marcou o debate sobre a referida teoria é o de Vicq 
d’Azir, , doutor em medicina, membro da Académie Francaise e da Academie de Sciences e 
secretário da Société Royale de Médicine. Em um tratado médico de grande amplitude, com 
mais de 20 volumes, estaria incluído o seu Essai sur les lieux et les dangers des sepultures, 
publicado em 1778 2. Defende em sua obra a necessidade de distanciar as sepulturas dos 
lugares habitados pelos homens baseado nos danos aos quais eles estariam expostos pelas 
emanações dos cadáveres. Vicq d’Azir procura demonstrar, pela convicção de provas 
físicas, os perigos das inumações nas igrejas e no interior das áreas amuralhadas da cidade, 
Maria Moura
1 Professora Dra. Faculdade de Arquitetura e Urbanismo / Pontifícia Universidade Católica de Campinas
Maria Moura
2 VICQ D’AZIR, Essai sur les lieux et les dangers des sepultures , in: “Oevres de Vicq d’Azir”, Paris, L.
Duprat-Duverger, 1805, tome sizième. Trata-se de um tratado de medicina com 6 volumes cujo exemplar
consultado encontra-se no Real Gabinete Português de Leitura do Rio de Janeiro.
 2
desenvolvendo os princípios da teoria miasmática que fundamentava as propostas sobre o 
lugar adequado na cidade para os edifícios que exalavam mal cheiro. Na teoria miasmática, 
segundo Vicq d’Azir, a fermentação era um movimento próprio às substâncias vegetais e 
animais, nas quais a experiência havia demonstrado que estas degenerariam cedo através da 
putrefação se uma força orgânica, cuja natureza era desconhecida, não interrompesse os 
efeitos dela. À medida que a fermentação avançava, o ar elementar se espalharia, sua livre 
comunicação com o ar da atmosfera lhe transmitiria todas as suas propriedades se 
dissolvendo e se tornando cada vez mais rarefeito, ele diminuiria a aderência das partes dos 
corpos nos quais se faria este trabalho; e, ao se desprender, ele levaria consigo as 
moléculas, as mais sutis, sejam oleosas, sejam inflamáveis, que ficariam em suspensão na 
atmosfera. O ar assim carregado de emanações pútridas, se tornaria necessariamente mortal, 
se as exalações diversas que emanam de certos corpos não corrigissem estes diferentes 
vícios, e se os ventos não dissipassem aos princípios de sua corrupção. Se o ar infectado 
ficasse parado e não se renovasse jamais e, principalmente, se ele fosse respirado por muito 
tempo, conseqüências danosas poderiam ser esperadas. Para Vicq d’Azir, se estivéssemos 
convencidos destes princípios, compreenderíamos facilmente porque todos os lugares 
subterrâneos, baixos, pantanosos e cercados de montanhas e densas florestas, seriam pouco 
salubres; porque as doenças seriam tão freqüentes e quase todas malignas nos lugares onde 
o ar estaria impregnado por partículas fétidas.3 
Vicq d’Azir descreve vários casos de morte e de epidemias em situações onde o ar 
se encontrava fétido, como o resultado de gazes, devido a corpos em putrefação. Conclui 
que , por estes motivos, intencionava demonstrar a evidência da necessidade indispensável 
de localizar os cemitérios públicos fora das cidades. Estaria aqui a fundamentação para uma 
intervenção radical na cidade que, atribuindo lugares específicos para a instalação de 
edifícios que pudessem conter matéria orgânica em putrefação e condenando áreas úmidas 
e pantanosas, conduziriam a práticas de intervenção na cidade que alterariam o seu padrão 
urbanístico vigente no período. 
Vamos encontrar no mundo luso-brasileiro o debate sobre estas mesmas questões no 
período entre o final do século XVIII e todo o século XIX. A circulação da tratadística 
sobre a cidade, quer na literatura médica, quer na literatura do corpo de engenheiros, 
sobretudo quanto às medidas necessárias para a reformulação da cidade, serão marcadas 
também pelas teorias miasmáticas desenvolvidas nas academias francesas. 
A primeira obra sobre o assunto publicada em português de que temos notícia é 
atribuída ao Brasileiro Vicente Coelho de Seabra Silva Teles, tendo sido publicada em 
Lisboa em 1800, pela Officina da Casa Litteraria do Arco do Cego, trata-se da Memoria 
sobre os prejuisos causados pelas sepulturas dos cadaveres nos templos, e methodo de os 
prevenir. 4 
Os objetivos expressos de Silva Telles com a sua publicação seriam o de concorrer 
para o bem público, procurando mostrar não só que a sepultura nos templos é nociva, mas 
ensinar os meios de remediar os seus maus efeitos observando que “seria desnecessária a 
presente Memória se as Luzes das Sciencias Naturaes estivessem assas espalhadas entre 
nós”.5 
Depois de descrever sobre os efeitos físicos e químicos da putrefação dos cadáveres, 
Telles discorre sobre os meios de evitar, ou diminuir os maus efeitos das sepulturas fora e 
dentro dos templos e propõe quatro maneiras de tratar os cadáveres: I – destruindo-os 
imediatamente após a morte (esta proposta implicaria uma incineração e era a mais 
eficiente segundo o autor); II – sepultando-os de tal forma e em tal sítio que as suas 
Maria Moura
3 VICQ D’AZIR, op. cit., página 78.
Maria Moura
4 TELLES, Vicente Coelho de Seabra Silva, “Memória sobre os prejuisos causados pelas sepulturas dos
cadaveres nos templos, e methodo de os prevenir”, Lisboa, Officina da Casa Litteraria do Arco do Cego,
1800. Silva Telles era natural da Província de Minas Gerais, onde nascerano ano de 1764, em Congonhas do
Campo, e fora abastado fazendeiro. Era formado em Filosofia pela Universidade de Coimbra. Indagando sem
descanso tudo quanto de novo e adiantado havia na ciência, desenvolveu uma aplicação tal que ainda
estudante escreveu um compêndio de química, cujo primeiro volume foi publicado antes de sua formatura e
foi nesta ocasião que foi admitido como sócio na Academia Real das Sciencias de Lisboa. A seu turno, a
universidade, conhecendo avaliando seu mérito, conferiu-lhe o lugar de lente substituto de zoologia, botânica,
mineralogia e agricultura na Universidade de Coimbra.
Maria Moura
5 TELLES, Vicente Coelho de Seabra Silva, op.cit. página 2.
 3
emanações pútridas fossem logo diluídas pelos ventos e águas (esta é a proposta que mais 
nos interessa pois remete a uma localização diferenciada dos cemitérios na cidade, proposta 
esta também considerada válida pelo autor); III – extraindo as terras infeccionadas das 
sepulturas dentro dos templos e substituindo-lhes por outras sadias e puras (proposta esta 
considerada de remediação pelo autor, assim como a quarta proposta, mas que o mesmo se 
dispõe a desenvolver na medida em que os costumes dificultariam a implantação das 
propostas anteriores); IV – lançando nas novas sepulturas, ou nas renovadas, substâncias 
que neutralizassem ou destruíssem a má qualidade das emanações podres. 
Ao desenvolver a segunda proposta Telles sugere que se façam grandes e espaçosos 
cemitérios fora das povoações, em sítios que “possam ser bem lavados dos ventos, e 
humedecidos pelas chuvas, cujo terreno seja barrento, ou misturado com alguma arêa, ou 
terra calcarea e fazer as sepulturas fundas ao menos de 7 palmos... por este modo os corpos 
apodrecem logo, e as emanações nocivas se dissolvem e se diluem de tal sorte pelo ar, e 
água, que se tornão nullas”.6 
 Telles lembra que este era um meio já bem usado na Europa na época e pelo qual os 
maus efeitos das emanações dos cadáveres eram evitados. Já nas cidades coloniais 
brasileiras o enterro fora das igrejas, em campos de sepultamento ensolarados, era 
reservado aos escravos, acatólicos, protestantes judeus e muçulmanos. 
A publicação inaugural sobre o assunto no Brasil, de que temos conhecimento, é a 
obra de José Corrêa Picanço intitulada Ensaio sobre o perigo das sepulturas nas cidades e 
nos seus contornos,7 ela foi publicada pela Imprensa Régia em 1812, contendo 114 páginas. 
Esta sua obra seria uma tradução da já mencionada obra de Vicq d’Azir publicada em Paris. 
Esta por sua vez seria uma versão da publicação italiana de Scipião Piatolli de 1774 – 
Saggio in torno al luogo del seppellire.8 
 Embora a obra de Picanço não faça menção à obra de Telles, ambos se referem a 
Vicq d’Azir. No final de sua obra Telles comenta, a título de advertência, que após ter 
escrito a sua memória teve a satisfação de ler o Ensaio sobre os lugares, e os perigos das 
sepulturas, que teria sido traduzido do italiano por Vicq d’Azir em 1778. Observa que a 
referida obra descreve os problemas relativos ao sepultamento, como epidemias e outras 
desgraças; fatos históricos ocorridos em função de tais práticas; e, ainda, sábias leis e 
regulamentos, tanto civis como eclesiásticos, publicados na Alemanha, França e Itália, para 
prevenir tão grandes danos causados à humanidade. 
 Vicq d’Azir, por sua vez, apesar de reconhecer o mérito da obra italiana que ele 
traduzira, observa que já se havia escrito na França sobre o assunto, antes da obra de 
Scipion Piatolli, alegando que esta contém trechos traduzidos das obras dos médicos 
franceses Haguenot e Maret. Segundo Vicq d’Azir, Haguenot, que foi doutor e professor 
em medicina da Universidade de Montpellier, onde formou-se Picanço, teria sido o 
primeiro entre os modernos que condenara o hábito do enterro nas igrejas; e Maret, também 
doutor em medicina e secretário da Academia de Dijon, desenvolvera na sequência a idéia 
dos perigos de tal prática. A obra de Maret foi publicada em Dijon em 1773 e intitulava-se 
Mémoire sur l’usage où l'on est d'enterrer les morts dans les églises et dans l’enceinte des 
villes.9 Seu discurso, impregnado de preocupações sobre a aeração das cidades é totalmente 
laico, insensível aos aspectos religiosos. Para Maret, não se poderiam localizar os 
cemitérios nas cidades sem expor seus habitantes ao perigo que representava respirar um ar 
carregado de vapores animais pútridos. Esse perigo deveria levar à proibição do uso do 
interior das igrejas para a realização dos enterros. Ele recomenda que se renuncie a este 
hábito e que se localizem os cemitérios fora da cidade, ao ar livre, em lugares que não 
Maria Moura
6 TELLES, Vicente Coelho de Seabra Silva, op.cit. página 24.
Maria Moura
7 PICANÇO, José Corrêa , “Ensaio sobre o perigo das sepulturas nas cidades e nos seus contornos”, Rio de
Janeiro, Imprensa Régia, 1812.
Maria Moura
8 PIATOLLI, Scipião, “Saggio in torno al luogo del seppellire”, 1774.
Maria Moura
9 MARET, “Mémoire sur l’usage où l'on est d'enterrer les morts dans les églises et dans l’enceinte des villes”,
Dijon, 1773.
 4
fossem nem muito úmidos, nem muito expostos ao vento, de tal forma que os vapores 
infectados não se propagassem na cidade. 
O debate presente no seio desta categoria profissional – médicos – também estará 
presente entre os arquitetos e engenheiros do século XVIII na França , pois cabia a eles 
pensar a intervenção na cidade. As propostas veiculadas para as cidades brasileiras estarão 
marcadas pelo mesmo discurso, quer junto aos médicos, quer junto aos engenheiros. 
Um dos tratados de arquitetura de maior repercussão na França na segunda metade 
do século XVIII foi a obra de Pierre Patte que sintetiza as reflexões do período e 
sistematiza, talvez pela primeira vez, as possíveis respostas aos problemas que a cidade 
insalubre do século XVIII coloca. Pierre Patte publica em 1765 Monuments érigés en 
France à la Gloire de Louis XV e em 1769 Mémoires sur les objets les plus importants de 
l’Architecture. 10 Trata-se de duas obras precursoras enquanto propostas de intervenção 
planejada na cidade, nas quais se destacam: a dimensão estética como fundamento para as 
novas remodelações e a dimensão técnica como princípio de intervenção. Patte se propõe 
em seu Mémoires a apresentar as medidas necessárias para dispor uma cidade, destacando 
quais os meios de operar sua salubridade; a distribuição adequada de suas ruas para evitar 
todo tipo de acidente; a maneira mais vantajosa de localizar seus esgotos e repartir suas 
águas; a melhor forma de construir casas visando protegê-las dos incêndios; bem como 
apresenta uma teoria sobre o transbordamento dos rios e propõe uma zonificação da cidade, 
excluindo para os fauxbourgs as atividades ruidosas, rudes e mal cheirosas (matadouros, 
triparias, cutelarias, curtumes, etc...) cujos edifícios eram focos de propagação de doenças. 
Esta preocupação revela a sintonia das propostas de Patte com a teoria médica do período – 
a teoria miasmática – na qual a purificação do ar é uma premissa. Neste contexto, Patte 
propôs ainda a eliminação da prática de enterramento nas igrejas e recomendou que os 
cemitérios e hospitais fossem construídos em áreas distantes da cidade. Suas propostas para 
a intervenção na cidade, assim como as encontradas em outros tratados de arquitetura e 
engenharia do século XVIII, são as mesmas preconizadas pelo corpo médico. 
 Para Pierre Patte, a localização da cidade no território deveria se pautar em critérios 
de salubridade do lugar e acessibilidade em relação às rotas comerciais (fluviais, marítimas 
e terrestres). A proximidade de um rio permitiria uma melhor circulação do ar e da água na 
cidade. Preocupações como estas, que implicam na relação do sítio urbano com os recursos 
hídricos da região aliadas à recomendação de construção de canais para abastecimento de 
água da cidade, colocam Patte como precursor das teorias de planificação territorial do 
século XIX. 
 Analisada no seu conjunto,a proposta de Patte apresenta princípios de um 
zoneamento urbano. A cidade já não seria mais cercada por muralhas e sim por grandes 
boulevards que separariam funções distintas entre a área interna aos boulevards e a área 
externa – os fauxbourgs – que deveriam abrigar todos os edifícios com funções insalubres e 
ruidosas. 
 Segundo Patte, a cidade deveria ser cercada no seu entorno com quatro fileiras de 
árvores, formando um grande arruamento para os veículos e duas alamedas laterais para 
servirem de passeios. Do outro lado destas fileiras de árvores se formaria os fauxbourgs, 
para onde seriam deslocados todos os ofícios rudes e as construções que produzem mal 
cheiro e muito barulho, tais como os curtumes, as triparias, as cutelarias, as lavanderias, as 
estalagens onde se guardavam os veículos públicos. O matadouro dos açougueiros, assim 
como seus estábulos seriam também relegados a estes lugares a fim de que suas tropas de 
Maria Moura
10 PATTE, Pierre, “Mémoires sur les objets les plus importants de l’Architecture”, Genève, Minkoff Reprint,
1973. Pierre Patte escreve ainda duas obras, dentre outras, de caráter urbanístico: em 1766, “De la manière la
plus avantageuse d’éclairer les rues d’une ville pendant la nuit, en combinant ensemble la clarté, l’économie
et la facilité du service”; e, em 1799, “De la translation des cimitières hors de Paris”.
 5
gado não fossem obrigadas a atravessar constantemente a cidade, o que ocasionaria 
transtorno. 
 O aumento do adensamento da população urbana no século XVIII na Europa, 
sobretudo nas grandes cidades, exigiu uma luta contra a insalubridade das mesmas. O 
século cultiva um espírito higienista que considera a aeração como meio eficaz de expulsar 
das cidades os miasmas e doenças. Com o objetivo de prevenir as epidemias, tão temerosas 
como mortais, médicos e administradores denunciam a presença dos cemitérios no interior 
das cidades. Pierre Patte será um dos protagonistas deste debate com a teoria da localizaçào 
dos cemitérios fora da cidade: “para além dos fauxbourgs, seriam localizados os cemitérios 
e os hospitais em locais elevados e bem aerados, pois o que exala destes lugares infecta o ar 
e as águas. Embora esta infecção não seja perceptível num primeiro momento, ela não 
deixa de molestar a saúde levando nossos corpos a contrair pouco a pouco maus elementos, 
que atribuímos impropriamente a outras enfluências”.11 
 A transferência dos cemitérios para fora da cidade contribuiria para a salubridade do 
ar. Estes deveriam ser implantados a pelo menos um quarto de légua da sua extremidade. 
Deveriam ser escolhidos locais bem aerados e contornados por muralhas de cerca de vinte 
pés de altura; assim os vapores elevando-se à atmosfera, não poderiam causar nenhuma 
infecção ao ar. 
 Sensíveis a estas idéias, as autoridades civis solicitam relatórios do corpo médico 
através de questionários que levantassem in loco as condições sanitárias. A reação do clero 
é imediata pois percebem as mudanças que tais atitudes poderiam ter sobre os tradicionais 
cultos dos mortos.12 
 Ao analisar a circulação das teorias miasmáticas no Brasil e, sobretudo, como foram 
as intervenções propostas para a cidade pelos médicos e engenheiros, encontramos José 
Corrêa Picanço e Manoel Vieira da Silva como os mais importante protagonistas no debate 
sobre as condições sanitárias das cidades. 
 Em ato de 1765, o Governador da Capitania de Pernambuco, D. Antonio Francisco 
de Paula Manoel de Souza e Menezes, o Conde de Vila-Flor, nomeia José Corrêa Picanço13 
Cirurgião-mór que aos 21 anos se tornará o responsável dos membros do Corpo Avulso de 
Oficiais de Ordenanças das Estradas e Reformados. Picanço segue para Lisboa onde se 
matricularia na Escola de Cirurgia do Hospital São José obtendo o título de licenciado em 
Cirurgia . Em seguida viaja para Paris onde obteve o título de Officier de Santé em 1768. 
Foi aluno dos notáveis mestres franceses Desault, Morand e Sabatier.14 Exerceu clínica na 
capital francesa e, em 1772, volta a Portugal, instalando consultório em Lisboa e sendo 
nomeado no mesmo ano, pelo Marquês de Pombal, para lecionar na Universidade de 
Coimbra. 
 Apesar de dedicado ao ensino e à clínica, sentiu-se desprestigiado pelos colegas de 
congregação por não possuir o Gráu de Doutor em Medicina, pois os títulos adquiridos não 
lhe conferiam o alto grau de competência sanitária. 
 Picanço volta à França e na Universidade de Montpellier realiza o Curso Médico e 
defende tese perante a Congregação da Faculdade de Medicina de Paris, obtendo o 
almejado título de Doutor. 
 Reassumindo o ensino de anatomia em 1779, na Universidade de Coimbra inovou o 
ensino dessa matéria, pois era então de caráter eminentemente teórico e nas poucas aulas 
práticas ministradas eram utilizados carneiros ou animais semelhantes. Introduziu o ensino 
em anfiteatros e em cadáveres humanos, tornando-se um inovador do ensino médico em 
Portugal. Obteve vários títulos e honrarias, entre eles, o de membro da Academia das 
Maria Moura
11 PATTE, Pierre, “Mémoires....”, página 25.
Maria Moura
12 SOLON, J – F. “Sources d’Histoire de la France Moderne”, Paris, 1972, p
Maria Moura
13 Filho de cirurgião barbeiro Francisco Corrêa Picanço, nasceu no dia 10 de novembro de 1745, na Vila de
Goiana, Província de Pernambuco, onde aprendeu as primeiras letras e concluiu o curso primário. Com a
transferência do seu genitor para a cidade do Recife, já mostrando pendor para a profissão paterna, iniciou o
aprendizado e logo em seguida veio a substituir o pai no exercício da cirurgia, clinicando na capital da
Província .
Maria Moura
 14 FREITAS, Geraldo Gomes de, “Discurso do Professor Geraldo Gomes de Freitas de Posse na Academia
Pernambucana de Medicina”, Recife, Academia Pernambucana de Medicina, 1983, página 9. Picanço
cultivou grande amizade com Sebatier, casando-se com sua filha Catarina.
 6
Ciências de Lisboa, jubilando-se em 1790, com todas as prerrogativas do cargo de lente 
catedrático da Universidade de Coimbra. 
 Gozando de grande prestígio social e científico, Corrêa Picanço é nomeado para o 
cargo de Primeiro Cirurgião da Real Câmara e Posteriormente Cirurgião-Mór do Reino e 
com a Junta do Proto-Medicato, instituída por Dona Maria I, em 1782, passou a ter a 
função de deputado e membro nato da nova instituição, que cuidava dos interesses médicos 
do Reino e das Colônias. 
 Quando as guerras napoleônicas ameaçaram o Reino de Portugal em 1807, e o então 
Regente D. João VI ao decidir transferir a corte para o Brasil, chegando na Bahia, em 24 
de janeiro de 1808, José Corrêa Picanço, consegue homologar a criação do ensino médico 
no Brasil, através da Carta Régia, datada de 18 de fevereiro de 1808, pelo Príncipe Regente. 
Estava fundada a primeira escola de Medicina do Brasil, na Bahia de Todos os Santos, 
localizada no edifício do Colégio dos Jesuítas, no Terreiro de Jesus, sede do Hospital 
Militar. 
 A Corte mudou-se para o Rio de Janeiro, e ali, o mesmo Corrêa Picanço propôs e 
foi aceita a criação de nova escola médica, a segunda do Brasil, na cidade de São Sebastião 
do Rio de Janeiro, a 5 de novembro de 1808, localizada também num colégio Jesuíta, sede 
do Hospital Militar, no Morro do Castelo. 
No mesmo ano de 1808, D. João VI expediria alvarás restabelecendo no Brasil os 
cargos de Cirurgião-mór dos Exércitos e de Physico-mór do Reino, que eram as principais 
autoridades sanitárias da organização administrativa de Portugal antes de ser criada a Junta 
do Proto-Medicato por Dona Maria I. 
 Para o cargo de Cirurgião-mór dos Exércitos do Reino foi nomeado José Corrêa 
Picanço; para o de Physico-mór do Reino, Domínios e Conquistas Ultramarinas foi 
nomeado o Dr. Manoel Vieira da Silva, também médico e primeiro Cirurgião da Real 
Câmara e depois Barão de Alvaezer. Estes dois cargos reunidos englobavam a principal 
estrutura médica do Reino. 
 Ao Cirurgião-mór do Exércitos estavam subordinados os demais cirurgiões, juizes 
comissários, seus delegadosnas capitanias, que superintendiam no que era relativo ao 
ensino e exercício da cirurgia, aos sangradores, parteiras, dentistas, aos que se ocupavam de 
aplicar bichas e ventosas, aos que locavam ossos deslocados (algebristas), aos hospitais, 
médicos e serviços médicos. 
 Ao Physico-mór do Reino e aos seus delegados nas capitanias competia tudo o que 
se referia ao ensino de medicina, às questões entre médicos e clientes, ao exercício da 
farmácia, a boticários, droguistas, curandeiros, a cirurgiões que tratassem de moléstias 
internas, à profilaxia das moléstias epidêmicas e ao saneamento da cidade. 
 Pouco depois foram nomeados juizes comissários do Cirurgião-mór dos Exércitos 
na Bahia, em Sergipe, em Pernambuco, no Pará, no Rio Negro, em São Paulo, nas Alagoas, 
em Goyaz, no Maranhão , no Rio Grande do Sul, em Minas Geraes, no Espírito Santo, no 
Rio de Janeiro, na Ilha Grande, em Montevidéo; ao mesmo tempo foram criados os lugares 
de delegados do Physico-mór em Minas Geraes, com sede em Villa Rica, na Bahia, no Rio 
Grande do Sul, com sede em Porto Alegre, em São Paulo, etc... 
 O Regimento do Cirurgião-mór dos Exércitos, de 12 de dezembro de 1631, então 
ainda em vigor, apesar de ser a Junta do Proto-Medicato a organização sanitária existente 
em Portugal, estabelecia que o Physico-mór tinha as mesmas regalias e privilégios que o 
Cirurgião-mór. O regimento pelo qual se regulava o exercício destes cargos, o de 25 de 
fevereiro de 1521, proibia terminantemente o exercício da arte de curar sem a investidura 
 7
legal, que era pelo menos uma provisão pela chancelaria do Physico-mór do Reino e 
Cirurgião-mór dos Exércitos. 
 Restabelecidos no Brasil os cargos de Cirurgião-mór dos Exércitos e Physico-mór 
do Reino, o príncipe regente regulamentou o exercício deles por alvará de 23 de novembro 
de 1808. 
 Em Portugal, por essa época vigorava ainda como organização sanitária 
administrativa a Junta de Proto-Medicato, criada por D.Maria I em 17 de junho de 1782, a 
qual se compunha de sete deputados amovíveis de 3 em 3 anos, com seus juizes 
corregedores. Esta junta, porém, foi extinta por alvará de 7 de janeiro de 1809, por 
influência de contestações suscitadas no Brasil. O príncipe regente expediria tal alvará com 
força de lei no qual justificava que “tendo nomeado Physico-mór e Cirurgião-mór dos 
Exércitos do Reino, Estados e Domínios Ultramarinos, por decreto de 7 de fevereiro de 
1808, aos Doutores José Corrêa Picanço e Manoel Vieira da Silva ... não é coherente com 
esta nova creação a existência da Real Junta do Proto-Medicato, não só porque foi erigida 
para substituir os referidos empregos do Physico-mór e Cirurgião-mór dos Exércitos do 
Reino, como também porque erão estes deputados natos daquelle tribunal, cuja falta torna 
impraticável que elles prosigam em suas funções, sem detrimento do Meu Serviço”15 
 Pouco depois o Príncipe Regente, por Decreto de 28 de julho de1809, criou o lugar 
de Provedor-mór da Saúde da Côrte e do Estado do Brasil, encarregando o Physico-mór, 
Dr. Manoel Vieira da Silva, de fazer o regimento no qual deveria caber ao Provedor-mór 
cuidar da conservação da saúde pública fiscalizando o estado da saúde das equipagens das 
embarcações que vinham de diversos portos, e obrigando-se a dar fundo em mais distância 
as que haviam saído dos portos que eram suspeitos de peste ou moléstias contagiosas, e a 
demorar-se por algum tempo os que nelas haviam se transportado, e de se afastarem do uso 
e mercado comum os comestíveis e generos corrompidos ou com princípio de podridão. 
 O Regimento organizado pelo Physico-mór Dr. Manoel Vieira da Silva foi aprovado 
em 22 de janeiro de 1810 e previa no seu primeiro item: “Estando proximamente abertos 
pelas minhas reaes ordens os portos deste Estado ao comercio das nações Estrangeiras, que 
estão em paz com a Portuguesa; para que se não communiquem enfermidades contagiosas 
das suas embarcações, equipagens e mercadorias, deverá construir-se um Lazareto, onde 
façam quarentena, quando houver suspeita, ou certeza de infecção. E enquanto se não 
edifica e estabelece com a regularidade e forma convem, far-se-ha a quarentena no sítio da 
Boa-Viagem, onde provisoriamente se farão as accomodações precisas, e ahi deverão 
ancorar as embarcações impedidas pelos officiaes da Saude”. 16 
 Como cabia ao Physico-mór cuidar do saneamento da cidade, o príncipe regente 
ordena a Manoel Vieira da Silva que investigue e escreva sobre as causas, próximas ou 
remotas, das doenças que acometiam os habitantes do Rio de janeiro e quais opiniões já 
haviam sido emitidas pelos médicos sobre o assunto, assim como de que maneira se poderia 
remediá-las, pois na época as moléstias eram funestas a muitos habitantes da cidade. O 
médico responderá através de um relatório. O mesmo seria publicado em 1808, pela 
Imprensa Régia, no Rio de Janeiro, o que seria o primeiro trabalho médico impresso no 
Brasil, Reflexões sobre alguns dos meios propostos por mais conducentes para melhorar o 
clima da cidade do Rio de Janeiro.17 Nesta obra aponta como uma das grandes causas da 
insalubridade do Rio de Janeiro era a estagnação das águas, pois a cidade estava cercada 
por todos os lados de lugares pantanosos, onde observa: “nós sabemos que ali estão em 
digestão e dissolução substâncias animaes e vegetaes, as quaes na presença dos grandes 
calores, entrando em putrefação, dão origem a pestíferos gazes, que devem levar a todos os 
Maria Moura
17 VIEIRA DA SILVA, Manoel, “Reflexões sobre alguns dos meios propostos por mais conducentes para
melhorar o clima da cidade do Rio de Janeiro”, Rio de Janeiro, Imprensa Régia, 1808.
Maria Moura
16 BARBOSA, Plácido e REZENDE, Cassio Barbosa, op.cit. página 7.
Maria Moura
15 BARBOSA, Plácido e REZENDE, Cassio Barbosa, “Os Serviços de Saude Publica no Brasil –
Especialmente na Cidade do Rio de Janeiro 1808-1907 (esboço Histórico e Legislação)”, Rio de Janeiro,
Imprensa Nacional, 1909, página 6.
 8
viventes os preliminares da morte, já pela sua acção immediata na periferia do corpo, e 
continuação das suas membranas, já pela entrada nos orgãos da respiração”.18 
 Mais uma vez, podemos observar a presença da teoria miasmática explicando a 
propagação das doenças, daí as propostas para combatê-las resultar na idéia de eliminação 
de tudo o que produzisse gazes mal cheirosos. 
 Vieira da Silva propõe que se aterrassem todos os lugares pantanosos através da 
canalização das águas para valas, tantas quantas necessárias, sendo que este sistema deveria 
estar articulado com as marés. Esta canalização dizia respeito a uma drenagem superficial 
e não à utilização de canos subterrâneos. Argumenta ainda que o estado deveria determinar 
os lugares onde deveriam ser edificadas as casas, com respectivas alturas das suas portas de 
entrada, para que os particulares, junto com o Estado, pudessem participar do aterro das 
novas ruas. Dever-se-ia, ainda, demarcar a direção e a largura das ruas. Talvez este seja o 
primeiro tratado sobre urbanismo publicado no Brasil. 
 Vieira da Silva condenará o enterro dentro das igrejas lembrando que esta prática 
merecia a reprovação de todas as sociedades illuminadas e que deveria ser especialmente 
observada no Rio de Janeiro em razão do calor athmosférico e da pouca largura das ruas. 
Criticava o fato de que o sepultamento no Cemitério da Misericórdia do Rio de Janeiro 
deixava quase expostos os corpos ao calor, donde se seguia a produção de gazes 
suffocadores da vida. 
 Para Vieira da Silva não poderia haver dúvida que seria necessário estabelecer 
cemitérios nas extremidades da cidade. Como o Cemitério da Misericórdia já se encontrava 
nesta situação, propõe que o mesmo fosse aproveitado através de uma ampliação, pois 
dessa maneira se poderia economizar nos gastos que seguramente seriam menores do que o 
que se empregaria com a formação de um novo. Todavia, se o seu plano de reforma não 
fosse considerado e se resolvesse formar um outro cemitério nesta área da cidade, 
recomendavaque o Estado devesse corrigir as suas despesas, que seriam melhor 
empregadas na edificação de outros cemitérios nas demais extremidades da cidade, onde 
havia a falta de Polícia. 
 Lembrando que os danos causados pelo Cemitério da Misericórdia eram bem 
conhecidos, propõe-lhe uma reforma que consistiria na ampliação do mesmo, pois 
argumentava que o seu defeito encontrava-se no fato do mesmo ser muito pequeno. “O 
meio de remediar este único defeito, he, o aproveitar-se da contiguidade do Cemitério à 
cerca do Hospital Militar, fazendo unir huma porção deste terreno àquelle, e duplicando 
deste modo, ou triplicando a sua extensão”.19 O aproveitamento do Cemitério da 
Misericórdia se justifica pela sua localização ideal, fora da cidade pois “todos sabem, que 
na proximidade d’hum Hospital deve haver hum Cemitério, não só para evitar as despesas 
no modo de enterrar os defuntos, mas até para livrar os habitantes da cidade dos 
incommodos, que deveriam resultar da continuada passagem de defuntos pelas ruas della”. 
20 
 Vieira da Silva condenará também a falta de controle sobre os navios que chegavam 
nos portos, carregados de pretos, sugerindo que dali poderiam provir os germes de 
moléstias epidêmicas e sugere que se construa lazaretos onde se desembarque os pretos e 
fação quarentena. 
 Outra preocupação da Vieira da Silva é a relativa ao trânsito de manadas na cidade 
que iam em direção aos matadouros ou que se alojavam em currais quando se tratava de 
gado utilizado para o auxílio no transporte de mercadorias. Propondo que, para recuperar 
suas forças, o gado fosse alojado em lugar próprio na vizinhança da cidade. Se preocupa 
Maria Moura
20 VIEIRA DA SILVA, Manoel, op. cit. , página 13.
Maria Moura
19 VIEIRA DA SILVA, Manoel, op. cit. , página 14.
Maria Moura
18 VIEIRA DA SILVA, Manoel, op. cit. , página 11.
 9
ainda com o transporte de carnes na cidade e com a falta de asseio dos matadouros onde a 
demora dos excrementos, sangue, ourinas, e differentes partes dos animaes, produz a 
putrefação, e opõe-se diretamente à salubridade da atmosfera. Sugere que se mude a 
localização dos matadouros para a entrada da cidade de tal forma que se evite inundar a 
athmosfera dos péssimos gazes que se formão. Para os açougues sugere que sejam mudados 
para as extremidades da cidade também. 
 Outra obra de caráter urbanístico geral é aquela publicada em 1815 por José 
Joaquim de Santa Ana, capitão do Real Corpo de Engenheiros e Architetos do Rio de 
Janeiro. Esta publicação, editada pela Imprensa Régia, seria uma segunda edição de similar 
publicada em 1811, e que se intitulava Memória sobre o enxugo geral desta cidade do Rio 
de Janeiro 21 , onde se propõe a fazer o enxugo geral da cidade para que se evitem 
prejuízos causados aos moradores com as inundações motivadas pelas grandes e freqüentes 
chuvas. No seu plano, Santa Anna defende a boa distribuição dos declives das calçadas, 
evitando a utilização das valas, pois estas seriam de pouco efeito na medida em que eram 
prejudiciais à saúde pública, por serem depósitos das mesmas águas, que com o efeito do 
sol acarretava “huma evaporação tão nociva á saúde publica, por engrossar a athmosfera 
com particulas humidas e de corrupção; além de que, nas occasiões das grandes chuvas 
ellas não dão o despejo, que he necessário”.22 
 Em substituição às valas, Santa Ana propõe que o enxugo se faça por cima das 
calçadas, cujas águas desembocariam na praia através das diferentes ruas. Para tal se 
rebaixariam um pouco as suas extremidades para aumentar-lhes o declive. Comenta que a 
cidade encontra-se em área rebaixada e que a solução por meio de aquedutos não seria 
adequada pois as suas bocas dariam nas praias tão baixas que logo seriam entupidas de 
areia. Lembra ainda que a cidade e seus subúrbios estava cercada de uma cadeia de montes 
que jogavam os seus despejos na planície. Como seria recomendável que cada uma das ruas 
principais possuíssem grandes aquedutos que receberiam as águas dos demais conclui que 
não se poderia dar maior declive aos aquedutos do que aquele que se conseguiria para as 
próprias ruas. Lembrando também das despesas que implicariam a construção de 
aquedutos, conclui que a melhor solução seria fazer escoar as águas pelas ruas, dando-lhes 
a necessária declividade. 
 Dentre as vantagens que o enxugo proporcionaria à cidade, Santa Anna destaca: 
purificar-se o ar por meio das partículas salinas, que se evaporão no fluxo e refluxo das 
marés. Ainda sugere a construção de um canal que deveria cruzar a cidade desde a Ponte 
de pão, nas costas da cidade nova, até a praia fronteira à ilha das cobras, com uma largura 
aproximada de 40 palmos, devendo ser de “hum e outro lado guarnecido de huma arcada, a 
fim de haver hum passeio coberto de 12 a 15 palmos de largo, para beleza e serventia do 
dito canal, e pontes nos lugares que cruzam as ruas Direita, da Quitanda, e da valla, e outras 
que seguem esta mesma direção, na frente das quaes apenas he preciso que as casas que 
estivessem no lugar por onde passar o canal, se lhes roubem as lojas, conservando-se-lhes 
porém o resto sobre hum arco de largura do dito canal, e dous mais pequenos hum de cada 
lado para serventia dos passeios, e embarque dos gêneros, que se quizerem conduzir por 
elle”. 23 
 Santa Anna considera ainda que para que a cidade fosse mais saudável e fresca que 
não se deveria consentir que se abrissem ruas com larguras menores a 60 palmos, de tal 
forma que se pudessem entrar na cidade grandes colunas de ar. 
 
 
Maria Moura
23 SANTA ANA , Joaquim, op. cit. Página 21.
Maria Moura
22 SANTA ANA , Joaquim, op. cit. Página 7.
Maria Moura
21 SANTA ANA , Joaquim, “Memória sobre o enxugo geral desta cidade do Rio de Janeiro”, Rio de Janeiro,
Imprensa Régia, 1811.
 10
 Na legislação do Império encontraremos a consolidação destas idéias sobre as 
intervenções de caráter sanitário nas cidades, idéias estas que estavam em curso no Brasil 
desde as últimas décadas do período colonial 
 A estrutura relativa à prática da medicina no Brasil estabelecida quando da vinda da 
família real vigorou até 1827. Quando já independente o Brasil-Império, o deputado pela 
Província do Rio Grande do Sul e farmaceutico Xavier Ferreira propôs a extinção dos 
cargos de Physico-mór e de Cirurgião-mór do Império, alegando os abusos praticados ou 
consentidos por essas autoridades. A moção do deputado rio-grandense foi sancionada por 
decreto de 30 de agosto de 1828, determinando a abolição dos referidos cargos e atribuindo 
às câmaras municipais, através de seus regimentos, as respectivas funções. 
 Em 1 de outubro de 1828 o Imperador sancionava e mandava executar o decreto 
legislativo em que se estabelecia a forma das eleições dos membros das câmaras municipais 
das cidades e vilas do Império e marcava as suas funções e a dos empregados respectivos. 
Nesta lei orgânica das câmaras municipais deveria estar incluído o primeiro Código de 
Posturas do período, cujas recomendações relativas ao assunto estariam incluídas nos 
artigos 66 a 73 da mesma lei e eram denominadas Posturas Policiais. Nestas estava 
estabelecido que as câmaras das cidades e vilas deveriam ter a seu cargo os seguintes 
objetos: “alinhamento, limpeza, illuminação, e desempachamento das ruas, cães, e praças, 
conservação e reparos de muralhas feitas para segurança dos edifícios, e prisões publicas, 
calçadas, pontes, aqueductos, chafarizes, poços, tanques, e quaesquer outras construções em 
benefício commum dos habitantes, ou para decoro, e ornamento das povoações”. A lei 
prescrevia ainda : “Sobre o estabelecimento de cemitérios fora do recinto dos templos, 
conferindo a esse fim com a principal autoridade ecclesiastica do lugar, sobre o 
esgotamento de pantamos, e quaesquer estagnação de agoas infectas; sobre a economia e 
asseio dos curraes, e matadouros publicos, sobre a collocação de cortumes, sobre o 
deposito de immundicias, e quanto possa alterar, e corromper a salubridade da 
atmosphera”. 24 
 Estas PosturasPoliciais deveriam ainda prescrever regulamentações a cerca do 
transito do gado de consumo diário na cidade e prover sobre os lugares onde o mesmo 
pudesse pastar e descansar quando o conselho não tivesse o seu próprio curral. Determinava 
ainda que só nos matadouros públicos ou nos particulares com licença das Câmaras as rezes 
poderiam ser matadas e esquartejadas. 
 Em Salvador as Posturas Municipais foram organizadas pela Câmara Municipal e 
aprovadas pelo Conselho Geral da Província na sessão de 21 de julho de 1829. 
 As posturas prescreviam: “He absolutamente prohibido o enterrarem-se corpos 
dentro das Igrejas, e nos seus adros...”. 25 Esta postura só deveria entrar em vigor, todavia, 
somente dois anos depois da sua publicação, quando as Confrarias e Parochos deveriam 
estabelecer seus Cemiterios em lugares aprovados pela Camara, fora da Cidade”. As 
Posturas prescreviam ainda que: “os hospitaes ou casa, em que se recebão doentes para 
serem tractados de suas enfermidades só poderão ser estabelecidos fora do recinto da 
Cidade” e que as “babricas de curtir coisas, salgal-as, e fazzer colla” não poderiam ser 
levantadas na cidade e povoados. 
 O trânsito dos animais na cidade também será regulamentado pela legislação que 
recomendava que os mesmos descansassem na Campina da cidade destinada a este fim e 
que fossem conduzidos ao matadouro público somente no dia anterior da matança. 
 Quando nos terrenos particulares da cidade e subúrbios atravessassem valas e 
riachos, caberia aos proprietários ou locatários mantê-las limpas e desimpedidas assim 
Maria Moura
25 “Posturas approvadas pelo Conselho Geral de Província em sessão de 21 de julho de 1829”(organizadas
pela Camara Municipal de Salvador), Salvador, Livro de Posturas (119.5) 1829 – 1859, Arquivo Público
Municipal, Fundação Gregório de Mattos.
Maria Moura
24 Lei de 1 º de outubro de 1828, in “Collecção das Leis do Império do Brasil”, Rio de Janeiro, Thpographia
Nacional, 1878.
 11
como dessecar os terrenos com pântanos e águas estagnadas. Proibia-se ainda o despejo de 
imundícies das casas nas ruas obrigando-se a despeja-las no mar, à noite, em vasilhas 
cobertas. Para os lixos e entulhos das casas a Câmara deveria designar por editais os lugares 
em que se poderiam depositá-los. 
 A mesma legislação estabelecerá parâmetros para as construções prescrevendo que 
as novas edificações deveriam respeitar o alinhamento que era determinado por prospecto, 
feito público por edital, para cada rua. Estas e as estradas que de novo se abrissem, e as 
existentes susceptíveis de amplo melhoramento teriam pelo menos seis braças de largura e 
os cais de desembarque oito. Ficariam proibidas por esta lei os balcões ou sacadas na frente 
das casas na cidade. 
 No Rio de Janeiro as Posturas seriam organizadas pela Câmara Municipal da Côrte 
em 4 de outubro de 1830 e aprovadas por lei imperial em 28 de janeiro de 1832. 
 No capítulo sobre a Saúde Pública a lei trata Sobre cemitérios e enterros 
prescrevendo: “Fica absolutamente prohibido enterrarem-se corpos dentro das Igrejas, ou 
sachristias, clautros dos Conventos, em quaesquer outros lugares nos recintos dos 
mesmos...”.26 Esta disposição também só deveria ter seu efeito depois de estabelecidos os 
cemitérios fora da cidade , ou de ter sido designado pela Câmara Municipal os lugares em 
que se fariam os enterros. 
 A mesma lei trata do Esgotamento de pantanos, e aguas infectadas, e tapamentos de 
terrenos abertos determinando que “aquelle, que tiver algum terreno pantanoso, onde se 
estagnem aguas, será obrigado a aterral-o”. 
 As prescrições relativas à Economia e asseio dos curraes, e matadouros, açougues 
publicos ou talhos, proibiam, entre outros, que se matasse ou esquartejasse rezes para 
consumo público sem ser nos matadouros públicos ou particulares que tivessem licença da 
Câmara; aquelas relativas aos hospitaes, e casas de saude, e molestias contagiosas 
estabeleciam que “os hospitaes publicos, ou de irmandades, que se acham actualmente 
nesta cidade, serão conservados, até que se possam ser transferidos para lugares mais 
apropriados. Nenhum particular, ou corporação poderá estabelecer em qualquer parte mais 
hospitaes, ou casas, em que se recebam doentes a tratar sem licença da Câmara”. 
 A mesma legislação regulamenta, ainda, Sobre a collocação de cortumes, e sobre 
quaesquer estabelecimentos de fabricas, e manufacturas, que possam alterar, e corromper 
a salubridade da atmosphera, e sobre deposito de immundicies, proibindo o 
estabelecimento de curtumes na cidade e nos seus arrabaldes e vedando também dentro da 
cidade os fornos de cozer, ou torrar tabaco, “ou quaesquer outras fabricas de sebo e sabão, 
azeites, oleos, ou outras, em que se trabalhe com ingredientes, que exhalam vapores, que 
alteram e corrompem a salubridade da atmosphera, as quaes não se poderão estabelecer sem 
licença da Câmara”. Caberia à Câmara também determinar os lugares próprios para o 
depósito de “immundicies”. A lei prescreve também sobre differentes objetos, que 
corrompem a atmosphera, e prejudicam a saude publica como por exemplo a proibição de 
criação de porcos em quintais. 
As Posturas Policiais, contidas no corpo da referida lei, prescrevia, entre outras 
questões, Sobre o alinhamento de ruas, e edificação. Segunda ela a Câmara deveria 
levantar planos, segundo os quais seriam formadas as ruas, praças e edifícios na cidade e 
seu termo, e caberia aos arruadores alinhar e perfilar o edifício regulando sua frente 
conforme o plano adotado pela Câmara. Todas as ruas, estradas ou travessas que se 
abrissem na cidade e seu termo deveriam ter pelo menos 60 palmos de largura, devendo os 
rocios, praças e largos formarem quadrados perfeitos sempre que o terreno permitisse. 
Maria Moura
26 “Collecção das Leis do Império do Brasil”, Rio de Janeiro, Typographia Nacional, 1878.
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Muitas das recomendações prescritas nas Posturas Policiais do final da década de 
trinta serão paulatinamente incorporadas nas práticas dos engenheiros responsáveis pelas 
intervenções nas cidades. Observaremos, por exemplo, que os sepultamentos deixariam de 
ser no chão e nos pátios das igrejas e passariam a realizar-se em áreas abertas, nos 
chamados campos santos ou cemitérios secularizados. O enterro fora das igrejas, em 
campos de sepultamento ensolarados, que antes eram reservados aos acatólicos, 
protestantes, judeus, muçulmanos, escravos e condenados, foram prescritos por lei, 
inspirada na correlação que se fez entre transmissão de doenças e miasmas concentrados 
nas naves e criptas. 27 
As medidas adotadas referentes à prática do enterramento foram precedidas de 
debates e resistências, visto que eram consideradas práticas profanas. Uma das formas mais 
temidas da morte era aquela sem enterramento adequado, pois era indispensável repousar 
em solo sagrado e perto de casa. Para os luso-brasileiros, até pelo menos a metade do 
oitocentos, esse lugar ainda era a igreja. Esta representava uma espécie de portal do paraíso. 
Ao mesmo tempo era o lugar perfeito e desejável para se aguardar a ressureição no dia do 
Juízo Final, concepção amplamente difundida no mundo católico desde a Idade Média. Em 
1764, em Salvador, os irmãos negros de Santa Ifigênia protestaram contra a maneira 
desrespeitosa como eram sepultados os cadáveres dos pretos pela Santa Casa de 
Misericórdia, pondo em perigo a imortalidade de suas almas e a futura ressurreição de 
seus corpos. A doutrina da imortalidade da alma no Inferno e a ressurreição do corpo 
penetrara o pensamento dos irmãos negros, associada à idéia de sepultura adequada.28 
 As mudanças de hábito talvez tenham sido facilitadas pela prática dos protestantes 
ingleses que dispunham de seus próprios cemitérios, em geral fora do perímetro urbano. As 
cidades do Rio de Janeiro, Recife e Salvador terão os seus cemitérios ingleses, sempre 
muito arborizados em áreas afastadas da cidade, bastante aeradas. 
 Os cemitérios dos ingleses no Brasil foram certamente dosmais antigos que se 
construíram no sistema de inumação em terreno ensolarado. Foram eles instalados a partir 
do segundo quartel do século XIX, amparados por permissão de Carta Régia de D. João VI. 
No Rio de Janeiro trata-se do cemitério da Gamboa; no Recife, do Cemitério Anglicano de 
Santo Amaro, situado entre Recife e Olinda; e, em Salvador, do Cemitério dos Ingleses que 
se instalaria numa área de promontório, na encosta do mar. 
 Em 29 de setembro de 1832, Maria Graham visitou o cemitério dos ingleses no Rio 
de Janeiro, localizado na Praia da Gamboa: “Fui hoje a cavalo ao cemitério dos ingleses, na 
Praia da Gamboa , que julgo um dos lugares mais deliciosos que jamais contemplei, 
dominando lindo panorama, em todas as direções”. 29 Maria Graham destaca ainda as 
árvores magníficas ali presentes expressando seu conforto em encontrar algo familiar no 
mundo dos trópicos: “Na minha doença, muitas vezes entristecia-me por não conhecer este 
cemitério. Estou agora satisfeita, se a fraqueza, que ainda me resta, atirar-me aqui, os muito 
poucos que vierem ver onde jaz a amiga não sentirão o aborrecimento da prisão”. Esta 
descrição contrasta com a narrativa lacônica que faria do cemitério da Santa Casa da 
Misericórdia: “é tão pequeno que chega a ser desagradável e, segundo creio, insalubre para 
a vizinhança”.30 
 Em Recife, após a abertura dos portos , nos primeiros anos marcados pelo início da 
imigração inglesa, não havia cemitérios públicos e os cadáveres eram inumados nas igrejas 
e conduzidos em procissões noturnas de um lúgubre aspecto. Esse uso era privativo dos 
católicos, de sorte que os protestantes, fora dessa comunhão, eram sepultados em lugares 
profanos, sem respeito tributado aos mortos. A pressão da colônia inglesa para que se 
Maria Moura
30 GRAHAM, Maria, op. cit. , página 366.
Maria Moura
29 GRAHAM, Maria, “Diário de uma viagem ao Brasil, e de uma estada neste país durante parte dos anos
1821, 1822 e 1823”, São Paulo, Companhia Editora Nacional, 1956, página 347.
Maria Moura
28 REIS, João José , O cotidiano da morte no Brasil oitocentista, in “História da vida privada no Brasil”, São
Paulo, Companhia das Letras, 1997, v. 2, página 96 e 141.
Maria Moura
27 VALLADARES, Clarival do Prado, “Arte e sociedade nos cemitérios brasileiros”, Rio de Janeiro/Brasília,
Imprensa Nacional, 1972.
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pudesse fazer o sepultamento adequado dos seus membros assim como para que se tivesse a 
liberdade de culto fez com que fosse estabelecido no “Tratado de Navegação e 
Commercio”, celebrado entre Portugal e Inglaterra, firmado em 19 de fevereiro de 1810, 
cláusulas relativas ao assunto. Assim, através do artigo 12 do tratado, o governo português 
permitiria enterrar os vassalos britânicos em lugares convenientes. Em virtude desta 
concessão, representou ao governo o embaixador inglês residente na côrte do Rio de 
Janeiro contra a “a pratica indecente que existia em Pernambuco de serem enterrados nas 
praias os vassalos britânicos de religião protestante que falleciam na capitania, e nos 
mesmos lugares em que eram sepultados os negros africanos não baptisados” , e requereu 
que se lhe destinasse um terreno para o estabelecimento do dito cemitério. O terreno 
escolhido seria o de Santo Amaro das Salinas, entre Recife e Olinda. 
 No mesmo tratado se assegura aos súditos britânicos nas possessões portuguesas a 
liberdade de consciência e de religião “para assistirem e celebrarem o serviço divino... , 
quer seja dentro de suas casas particulares, quer nas suas particulares igrejas e capellas” 
lhes concedendo “a permissão de edificarem e manterem dentro dos seus domínios, 
contanto porem, que as sobreditas igrejas e capellas serão construidas de tal modo que 
externamente se assemelhem a casas de habitação; e tambem que o uso dos sinos lhe não 
seja permitido para o fim de annunciarem publicamente as horas do serviço divino”. Fica 
clara a preocupação por parte da coroa portuguesa com a possível propagação da igreja 
protestante no Brasil. Estes templos anglicanos seriam construídos com uma linguagem 
arquitetônica neoclássica e foram instalados em área abertas, geralmente praças, nos 
arredores das cidades, como é o caso do templo construído em Salvador. 
Segundo Sérgio Buarque de Holanda, o século XIX, sobretudo em sua primeira 
metade, foi, no Brasil, o século inglês por excelência, e tudo teria começado com a chegada 
da família real portuguesa, devendo-se aos ingleses “a introdução do gosto pela residência 
em casas isoladas, por jardins bem tratados, e longe do centro da cidade, freqüentemente 
em contato direto com a natureza agreste.31 
 Maria Graham ao comentar um período de tensão na cidade do Recife, em 1821, 
quando a população necessitou se prevenir de um possível ataque, descreve o hábito dos 
ingleses morarem em áreas afastadas do centro: “Muita gente, com suas mulheres e 
famílias, deixou as casas nos arredores da cidade e refugiou-se junto aos ingleses. Os 
últimos que, na maior parte, dormem pelo menos em casas de campo das vizinhanças, 
chamados sítios, abandonaram-na e concentraram-se nos escritórios junto ao porto”.32 
 Segundo Pereira da Costa, o viajante inglês, Henrique Koster, depois de dois anos 
de ausência, voltando a Pernambuco no início do século XIX, descreve o diferente aspecto 
da cidade, marcado pela presença destes ingleses: “as novas e elegantes construções 
urbanas, de par com as campestres com seus jardins e pomares, as carruagens substituindo 
os vetustos palanquins ou cadeirinhas”.33 
 Contudo será Gilberto Freire 34quem brilhantemente chamaria atenção para a 
introdução do gosto inglês nos novos hábitos de morar. O historiador observaria que das 
relações com o Oriente e a África desenvolvera-se entre nós a predominância dos estilos e 
modas asiáticas ou africanas, como, entre outros, o palanquim como meio de transportes; 
os móveis de estilo indiano em algumas casas mais fidalgas; a arquitetura das casas, cheia 
de reminiscências orientais ; os hábitos de higiene pública e doméstica. “E ingleses que se 
foram estabelecendo no Rio passaram a residir em casas em cuja arquitetura havia muita 
reminiscência do Oriente: de longe algumas deviam dar aos europeus já conhecedores da 
China a impressão de pagodes. As gelosias, arrancadas tão repentinamente e violentamente 
Maria Moura
34 FREYRE, Gilberto, “Ingleses no Brasil – aspectos da influência britânica sobre a vida, a paisagem e a
cultura do Brasil”, Rio de Janeiro, Livraria José Olympio Editora/MEC, 2 ª edição, 1977.
Maria Moura
33 PEREIRA DA COSTA, F. A, op. cit. , página 527.
Maria Moura
32 GRAHAM, Maria, op. cit. , página 107.
Maria Moura
31 HOLANDA, Sérgio Buarque de, “História geral da civilização brasileira”, Rio de Janeiro, Editora Bertrand
Brasil, 1993, Tomo 2.
 14
das melhores casas das principais cidades brasileiras, não eram, afinal, o único traço do 
Oriente na arquitetura ou na decoração doméstica no Brasil. Também o eram os azulejos, os 
leões ou dragões de louça nos umbrais dos portões, as telhas côncavas, os telhados 
acachapados, as esteiras, as colchas”. 35 
 Segundo Gilberto Freire os ingleses se tornariam no Rio de Janeiro, na Bahia e em 
Pernambuco dos princípios do século XIX os descobridores dos melhores e mais saudáveis 
recantos de residência. Sob a influência dos hábitos britânicos de conforto e de higiene 
doméstica, se alteraria no Brasil o gosto da casa burguesa, marcado pela preferência dos 
ingleses às casas isoladas e não aos sobrados um junto ao outro. As escolhas dos ingleses 
para local de moradia dariam origem aos novos bairros burgueses, nas áreas suburbanas das 
cidades antes ocupadas por chácaras e sítios. Ao escolherem estes locais para moradia, 
aliados à substituição do meio de transporte, do palanquim ou cadeirinhas, para a 
carruagem, também introduzidas pelos ingleses, assistiríamos a uma das principais 
transformações no padrão urbanístico das cidades do Império. Antes, no período colonial, a 
cidade configurava-se como uma área extremamenteadensada, onde as residências, coladas 
umas às outras formavam o panorama arquitetônico característico do período. As áreas 
próximas das cidades, não se configuravam como urbanas, eram ocupadas por sítios e 
chácaras. A partir das escolhas dos ingleses em transformar estas casas rurais em suas 
residências, lembrando que os ingleses eram essencialmente comerciantes e não sitiantes, 
possuindo sua loja de comércio na cidade e para lá afluindo diariamente, utilizando para tal 
suas carruagens como transporte, se formariam os subúrbios, que se constituiriam mais 
tarde, nos bairros burgueses das cidades. Os ingleses ao dar preferência às residências 
isoladas entre arvoredos no lugar dos sobrados foram dando origem a estes novos bairros 
burgueses: “como na Tijuca (Rio ) ou na Vitória (Bahia); perto dos rios como em Apipucos, 
no Monteiro, no Poço da Panela (Pernambuco); à beira-mar como em Botafogo e Olinda. 
Velhos casarões isolados, antigas chácaras e até casas-grandes de engenho, com puxadas ou 
telheiros semelhantes a pagodes chineses e onde se fazia farinha ou se abrigavam cavalos, 
foram por eles adaptados aos seus gostos e o mais possível incorporados ao espaço urbano 
das capitais. Um gosto bem diverso do luso-brasileiro, o britânico, quanto a lugar de 
residência burguesa. Entre os portugueses e seus descendentes brasileiros a moda era a 
gente das cidades morar em sobrados um junto do outro, sem árvores, por muito tempo 
sem vidraças – só com urupemas ou gelosias de sabor oriental; as alcovas no centro das 
casas. Apenas iam os grandes burgueses “passar as festas” em chácaras nos arredores das 
cidades. Os britânicos fizeram desses arredores pontos de residência e não de simples 
passamento de festas. Em 1821, Maria Graham informa que era em casas de sítio que seus 
compatriotas do Recife residiam ou pelo menos, passavam as noites, mantendo nas cidades, 
perto do porto, as “couting-houses”, isto é , as casas comerciais. Um ou outro residia nos 
próprios sobrados comerciais.”36 
 Para Giberto Freire, “esta foi sem dúvida uma das revoluções mais significativas 
causadas ou operadas pelos britânicos nos hábitos ainda coloniais e meio mouriscos, ou 
antes, orientais, do Brasil: o deslocamento – que se verificou lentamente – das residências 
mais nobres de habitantes das cidades, de sobrados situados no centro, para subúrbios que 
passaram a ser elegantes, tornando-se deselegante para o burguês fino e rico residir no 
centro comercial. Pois o exemplo inglês foi imitado por brasileiros e portugueses: os 
anúncios de jornais da época indicam a valorização das casas de sítio ou das chácaras para 
residências – e não apenas para passamento de festas”.37 
Maria Moura
37 FREYRE, Gilberto, op. cit. , página 137.
Maria Moura
36 FREYRE, Gilberto, op. cit. , página 136.
Maria Moura
35 FREYRE, Gilberto, op. cit. , página 136.
 15
 Na cultura urbanística inglesa do século XVIII se estabelece uma relação com a 
natureza que marcará as novas tipologias urbanísticas. Além das novas concepções de 
moradia, com a residência isolada nos lotes nas áreas suburbanas e os cemitérios rurais 
protestantes em áreas arborizadas, os parques botânicos aliam o desejo do desenvolvimento 
científico à oportunidade de realização de grandes áreas verdes próximas ao tecido urbano. 
Com D. João VI, temos inclusive a criação do Jardim Botânico no Rio de Janeiro, além da 
introdução das primeiras medidas de caráter sanitário no Brasil. 
 
 
 
1 Professora Dra. Faculdade de Arquitetura e Urbanismo / Pontifícia Universidade Católica de Campinas 
2 VICQ D’AZIR, Essai sur les lieux et les dangers des sepultures , in: “Oevres de Vicq d’Azir”, Paris, L. 
Duprat-Duverger, 1805, tome sizième. Trata-se de um tratado de medicina com 6 volumes cujo exemplar 
consultado encontra-se no Real Gabinete Português de Leitura do Rio de Janeiro. 
3 VICQ D’AZIR, op. cit., página 78. 
4 TELLES, Vicente Coelho de Seabra Silva, “Memória sobre os prejuisos causados pelas sepulturas dos 
cadaveres nos templos, e methodo de os prevenir”, Lisboa, Officina da Casa Litteraria do Arco do Cego, 
1800. Silva Telles era natural da Província de Minas Gerais, onde nascera no ano de 1764, em Congonhas do 
Campo, e fora abastado fazendeiro. Era formado em Filosofia pela Universidade de Coimbra. Indagando sem 
descanso tudo quanto de novo e adiantado havia na ciência, desenvolveu uma aplicação tal que ainda 
estudante escreveu um compêndio de química, cujo primeiro volume foi publicado antes de sua formatura e 
foi nesta ocasião que foi admitido como sócio na Academia Real das Sciencias de Lisboa. A seu turno, a 
universidade, conhecendo avaliando seu mérito, conferiu-lhe o lugar de lente substituto de zoologia, botânica, 
mineralogia e agricultura na Universidade de Coimbra. 
5 TELLES, Vicente Coelho de Seabra Silva, op.cit. página 2. 
6 TELLES, Vicente Coelho de Seabra Silva, op.cit. página 24. 
7 PICANÇO, José Corrêa , “Ensaio sobre o perigo das sepulturas nas cidades e nos seus contornos”, Rio de 
Janeiro, Imprensa Régia, 1812. 
8 PIATOLLI, Scipião, “Saggio in torno al luogo del seppellire”, 1774. 
9 MARET, “Mémoire sur l’usage où l'on est d'enterrer les morts dans les églises et dans l’enceinte des villes”, 
Dijon, 1773. 
10 PATTE, Pierre, “Mémoires sur les objets les plus importants de l’Architecture”, Genève, Minkoff Reprint, 
1973. Pierre Patte escreve ainda duas obras, dentre outras, de caráter urbanístico: em 1766, “De la manière la 
plus avantageuse d’éclairer les rues d’une ville pendant la nuit, en combinant ensemble la clarté, l’économie 
et la facilité du service”; e, em 1799, “De la translation des cimitières hors de Paris”. 
11 PATTE, Pierre, “Mémoires....”, página 25. 
12 SOLON, J – F. “Sources d’Histoire de la France Moderne”, Paris, 1972, p 
13 Filho de cirurgião barbeiro Francisco Corrêa Picanço, nasceu no dia 10 de novembro de 1745, na Vila de 
Goiana, Província de Pernambuco, onde aprendeu as primeiras letras e concluiu o curso primário. Com a 
transferência do seu genitor para a cidade do Recife, já mostrando pendor para a profissão paterna, iniciou o 
aprendizado e logo em seguida veio a substituir o pai no exercício da cirurgia, clinicando na capital da 
Província. 
14 FREITAS, Geraldo Gomes de, “Discurso do Professor Geraldo Gomes de Freitas de Posse na Academia 
Pernambucana de Medicina”, Recife, Academia Pernambucana de Medicina, 1983, página 9. Picanço 
cultivou grande amizade com Sebatier, casando-se com sua filha Catarina. 
15 BARBOSA, Plácido e REZENDE, Cassio Barbosa, “Os Serviços de Saude Publica no Brasil – 
Especialmente na Cidade do Rio de Janeiro 1808-1907 (esboço Histórico e Legislação)”, Rio de Janeiro, 
Imprensa Nacional, 1909, página 6. 
16 BARBOSA, Plácido e REZENDE, Cassio Barbosa, op.cit. página 7. 
17 VIEIRA DA SILVA, Manoel, “Reflexões sobre alguns dos meios propostos por mais conducentes para 
melhorar o clima da cidade do Rio de Janeiro”, Rio de Janeiro, Imprensa Régia, 1808. 
18 VIEIRA DA SILVA, Manoel, op. cit. , página 11. 
19 VIEIRA DA SILVA, Manoel, op. cit. , página 14. 
20 VIEIRA DA SILVA, Manoel, op. cit. , página 13. 
 16
 
21 SANTA ANA , Joaquim, “Memória sobre o enxugo geral desta cidade do Rio de Janeiro”, Rio de Janeiro, 
Imprensa Régia, 1811. 
22 SANTA ANA , Joaquim, op. cit. Página 7. 
23 SANTA ANA , Joaquim, op. cit. Página 21. 
24 Lei de 1 º de outubro de 1828, in “Collecção das Leis do Império do Brasil”, Rio de Janeiro, Thpographia 
Nacional, 1878. 
25 “Posturas approvadas pelo Conselho Geral de Província em sessão de 21 de julho de 1829”(organizadas 
pela Camara Municipal de Salvador), Salvador, Livro de Posturas (119.5) 1829 – 1859, Arquivo Público 
Municipal, Fundação Gregório de Mattos. 
26 “Collecção dasLeis do Império do Brasil”, Rio de Janeiro, Typographia Nacional, 1878. 
27 VALLADARES, Clarival do Prado, “Arte e sociedade nos cemitérios brasileiros”, Rio de Janeiro/Brasília, 
Imprensa Nacional, 1972. 
28 REIS, João José , O cotidiano da morte no Brasil oitocentista, in “História da vida privada no Brasil”, São 
Paulo, Companhia das Letras, 1997, v. 2, página 96 e 141. 
29 GRAHAM, Maria, “Diário de uma viagem ao Brasil, e de uma estada neste país durante parte dos anos 
1821, 1822 e 1823”, São Paulo, Companhia Editora Nacional, 1956, página 347. 
30 GRAHAM, Maria, op. cit. , página 366. 
31 HOLANDA, Sérgio Buarque de, “História geral da civilização brasileira”, Rio de Janeiro, Editora Bertrand 
Brasil, 1993, Tomo 2. 
32 GRAHAM, Maria, op. cit. , página 107. 
33 PEREIRA DA COSTA, F. A, op. cit. , página 527. 
34 FREYRE, Gilberto, “Ingleses no Brasil – aspectos da influência britânica sobre a vida, a paisagem e a 
cultura do Brasil”, Rio de Janeiro, Livraria José Olympio Editora/MEC, 2 ª edição, 1977. 
35 FREYRE, Gilberto, op. cit. , página 136. 
36 FREYRE, Gilberto, op. cit. , página 136. 
37 FREYRE, Gilberto, op. cit. , página 137. 
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