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A FILOSOFIA: DEFINIÇÃO, SURGIMENTO E PRÁTICA Vamos iniciar a nossa investigação começando pelo primeiro problema da filosofia, o seu próprio significado, e tentar construir juntos uma definição. Uma boa sugestão para tentar entender um conceito é ver se a etimologia da palavra pode nos ajudar a descobrir seu significado. A palavra filosofia vem do grego e é um substantivo composto de duas outras palavras: philia, que significa amizade e respeito entre os iguais, e sophia, que significa sabedoria e conhecimento. Ou seja: Filosofia, etimologicamente falando, é amizade pela sabedoria ou, ainda, amor e respeito pelo saber. O QUE É A FILOSOFIA? Mas o que é ser amigo do saber ou da sabedoria? Sabedoria se relaciona com conhecimento. Podemos aceitar, a princípio, que sabedoria é um acúmulo de conhecimentos. Ainda simplificando, podemos dizer que conhecimento é um conjunto de ideias concatenadas para produzir algum conceito. A Filosofia, ou melhor, a amizade pela sabedoria, seria então a investigação de ideias para torná-las em conceitos. Quem faz Filosofia então? Essa parece uma pergunta fácil: ora, os filósofos fazem filosofia. Podemos propor, agora, uma primeira definição de filósofo: O filósofo é uma pessoa que busca encontrar; analisar e se relacionar com ideias para transforma-las em conceitos. É alguém que busca compreender as razões de suas ideias, das concepções que foram recebidas de outros, transformando-as em conceitos e, dessa forma, apropriando-se delas. Na História da Filosofia, há uma figura que encarnou de maneira especialmente exemplar essa ideia de filosofia: O filósofo grego Sócrates, que viveu na cidade de Atenas entre 470 e 399 a. C. Seu impacto na História da Filosofia foi tão grande que os historiadores costumam dividir o período inicial da História da Filosofia em dois: antes e depois de Sócrates. A influência de Sócrates ainda hoje inspira muitos filósofos. Sócrates - 470 - 399 a.C Foi o primeiro grande filósofo grego. Nasceu e viveu em Atenas. Estava sempre miseravelmente vestido e descalço. Passava os dias perambulando por Atenas, fazendo perguntas básicas sobre moralidade e política a quem pudesse ouvi-Io. Ele acreditava que a felicidade era levar uma boa vida. Mas o que é bom? Essa era a grande questão. Sócrates acreditava que descobriria isso se conversasse com muitas pessoas. Quanto mais questionasse, mais saberia, e o conhecimento era sem dúvida uma coisa boa. Sócrates foi um filósofo peculiar. Consta que, por escolha própria, nunca escreveu nenhuma obra. Recusava-se a se apresentar como professor ou como sábio, mesmo reconhecido por muitos como mestre e exemplo acabado de sabedoria. O exemplo de Sócrates ajuda-nos fixar com mais clareza a ideia de filosofia apresentada em nossa primeira definição. Como foi dito, Sócrates não nos deixou nenhum texto escrito. Conhecemos sua história e seu pensamento apenas por intermédio dos testemunhos de alguns de seus contemporâneos. Um deles, o filósofo Platão, deixou-nos um grande número de escritos, na forma de diálogos, em que Sócrates, freqüentemente, assumia um papel importante. Vamos aqui nos referir a duas obras platônicas, importantes tanto para refletirmos sobre a figura de Sócrates quanto sobre a questão "o que é a Filosofia?". A primeira dessas obras é conhecida como a Apologia (ou a Defesa) de Sócrates. Esse é o famoso quadro do pintor francês David, concluído em 1787, que mostra Sócrates prestes a beber o veneno que o mataria. No quadro, Sócrates aponta para o reino superior, que considerava ser seu destino final. Essa obra relata o que teria sido o julgamento de Sócrates em Atenas. Sócrates sofreu um processo, movido especialmente por seus inimigos, sob a acusação de impiedade (foi acusado de não reconhecer os deuses da religião oficial de Atenas) e de corromper a juventude com suas ideias. Por isso, foi levado a julgamento e, finalmente, condenado à morte. No julgamento, os juízes ofereceram a Sócrates uma saída negociada: à pena de morte, geralmente atribuída aos seus supostos crimes, poderia ser trocada pela pena de banimento ou pela de reclusão e de silêncio. Ou seja, Sócrates poderia continuar vivo e afastar-se de Atenas ou, se quisesse permanecer em sua cidade, encerrar-se em sua casa e parar de filosofar. Sócrates, para surpresa dos juízes, recusou ambas as propostas e se submeteu, portanto, à pena de morte. Para justificar sua recusa, contou a história de como e por que começou a fazer Filosofia - história que, se não for verdadeira, ao menos é uma bela ilustração da maneira como Sócrates entende a tarefa do filósofo. A história é a seguinte: Havia, na Grécia antiga, um importante e venerado templo, dedicado ao Deus Apolo na cidade de Delfos. Nesse templo, funcionava um oráculo, que atraia multidões de peregrinos de toda a Grécia. Sócrates contou que um velho amigo, Xenofonte, indo uma vez a Delfos, perguntou ao oráculo, um pouco de brincadeira, se havia em toda a Grécia alguém mais sábio do que Sócrates - e o oráculo, para sua surpresa, teria respondido que não. Ora, para os que acreditam no oráculo, seria o próprio deus Apolo que estaria falando - e um deus, supostamente, não deveria dizer uma mentira. Diante da resposta do oráculo, Sócrates, então, que não se sentia sábio de maneira nenhuma, começou a se perguntar: - Como pode ser que eu seja o mais sábio, quando eu mesmo conheço muitos outros que sabem mais coisas, que são mais corajosos, que são mais justos etc.? Diante da resposta surpreendente do oráculo, Sócrates começa a refletir seriamente, voltando seu pensamento para ele próprio, adotando como lema pessoal um dos preceitos da religião délfica (referente ao Oráculo de Delfos): Conhece-te a ti mesmo. Mas Sócrates percebeu que só a reflexão não seria suficiente. Logo procurou aqueles que julgava mais sábios que ele próprio, a fim de testar a veracidade do oráculo. Mas cedo percebeu que a "sabedoria" deles era falsa ou sem fundamento: eles pareciam sábios, até mesmo acreditavam que o eram, mas não tinham nenhuma sabedoria real. Ou seja, não conheciam a si mesmos, desconheciam sua própria ignorância. Sócrates então entendeu o que o oráculo teria dito: ele era o mais sábio, não porque sabia mais coisas, mas porque sabia que não sabia nada - e sabendo isso, estava pronto para começar a aprender, enquanto que aquele que achava que sabia, mas não sabia, não se esforçava para superar sua própria ignorância. Esse trabalho de reflexão é, segundo essa concepção socrática de Filosofia, essencial à tarefa do filósofo. Ainda no seu discurso de defesa, diante dos juízes que o condenariam à morte, Sócrates disse: "uma vida sem exame não vale a pena ser vivida" - ou seja, para que tenha pleno valor, a vida precisava incluir a reflexão. E, por essa razão, sugeriu Sócrates, ele não poderia aceitar as alternativas propostas pelos juízes: se saísse de Atenas, indo para outra cidade, lá seria estrangeiro e não teria a mesma liberdade de filosofar que tinha em sua cidade natal; se aceitasse se retirar para sua privacidade e parasse de fazer Filosofia, também estaria abrindo mão daquilo que ele pensava, tornar sua vida valiosa; assim, preferiu aceitar a pena de morte. A segunda obra de Platão a que gostaríamos de fazer referência aqui, sempre em relação à figura de Sócrates e à ideia de filosofia que se encarna nela, é um de seus mais famosos diálogos, intitulado O Banquete. O Banquete tem como pano de fundo um encontro de amigos que se reúnem para celebrar a premiação de um deles em um concurso de poesia. Reunidos, resolvem fazer uma espécie de concurso entre eles próprios: cada um, a seu turno, deveria fazer um discurso de elogio ao amor. Ao chegar a vez de Sócrates, logo fica claro que um dos temas implícitos do diálogo não é o amor em geral, mas um tipo específico de amor: o amor à sabedoria, ou seja, a própria filosofia. Sócrates, ao invés de fazer um elogio ao amor, relatou uma conversa que teria tido, quando jovem, com uma mulher chamada Diotima de Mantinéia, na qual ela associava o desejo ou a aspiraçãoamorosa com a aspiração à sabedoria - com a filosofia, portanto. Ela diz: "Nenhum deus filosofa ou deseja ser sábio - pois já é -, assim como se alguém mais é sábio, não filosofa. Nem também os ignorantes filosofam ou desejam ser sábios; pois é nisso mesmo que esta o difícil da ignorância, no pensar, quem não e um homem distinto e gentil, nem inteligente, que lhe basta assim. Não deseja portanto quem não imagina ser deficiente naquilo que não pensa lhe ser preciso. - Quais então, Diotima - perguntei-lhe - os que filosofam, se não são nem os sábios nem os ignorantes? - É o que é evidente desde já - respondeu-me - até a uma criança: são os que estão entre esses dois extremos, e um deles seria o Amor. Com efeito, uma das coisas mais belas é a sabedoria, e o Amor é amor pelo belo, de modo que é forçoso o Amor ser filósofo e, sendo filósofo, estar entre o sábio e o ignorante." O diálogo, que inicialmente parecia girar em torno do tema do amor, transforma-se, com Sócrates, em uma reflexão sobre a Filosofia. Uma última reviravolta é introduzida no final do texto, com a chegada inesperada de mais uma pessoa: o que começou como uma série de elogios ao amor e transformou-se em um elogio da Filosofia, termina como um elogio a Sócrates, que é mostrado, assim, como a própria personificação da Filosofia. O exemplo de Sócrates mostra algumas características importantes da Filosofia: está comprometida essencialmente com a reflexão; impõe exigências de rigor para nossos conceitos; tem um caráter pedagógico, no sentido de que pretende nos pôr a caminho da sabedoria. Sobretudo, a Filosofia implica a promessa de alcançar um tipo de compreensão (por meio da apreensão de conceitos) que não seria alcançável de outra maneira. Os historiadores geralmente concordam em dizer que a Filosofia nasceu na Grécia, no início do século VI a.C. Mais precisamente, a Filosofia, segundo a tradição historiográfica, nasceu no ano de 585 a.C., ano em que um pensador chamado Tales de Mileto teria previsto um eclipse solar. Tales de Mileto é, de modo geral, considerado como o primeiro filósofo. Ficou conhecido por esse nome por ter nascido na cidade de Mileto, que, naquela época, era um atribulado porto grego na costa da Ásia Menor, que hoje conhecemos como Turquia. Note que o fato que o tornou célebre e determinou que fosse qualificado como "sábio" - ou seja, a previsão da ocorrência de um eclipse solar - não é algo que normalmente associamos à Filosofia; prever eclipses é, diríamos hoje, próprio dos astrônomos, não dos filósofos. Mas isso é significativo: no início, o que chamamos hoje de Filosofia e de Ciência se confundiam. Ciência e Filosofia eram uma coisa só; depois, ao longo dos séculos, as duas vão se separar. Entretanto, pelo menos até o século XVII, o que hoje chamamos de ciências fazia parte da Filosofia. Essa aproximação que havia entre Filosofia e Ciência permite que entendamos melhor a novidade do tipo de pensamento que estava surgindo. COMO NASCEU A FILOSOFIA? O ponto é: o que estava em jogo naquele momento inicial, lá no século VI a.C., era a busca de explicações para o mundo, o surgimento de um modo específico de explicar as coisas, pela ação e pela reflexão. Esse foi o novo modo de explicação que caracterizava o início da Filosofia. Desde sempre, as pessoas se interessaram em explicar o mundo. Qual é a origem de todas as coisas? Como podemos explicar que o mundo está sempre mudando, mas, ainda assim, permanece o mesmo? O que é esta ordem que podemos frequentemente entrever por trás do aparente caos e da enorme multiplicidade dos fenômenos naturais? Antes dos filósofos e dos cientistas - e não apenas entre os gregos antigos, mas em todas as culturas humanas - as pessoas já se colocavam questões como essas e buscavam respostas para elas. Nas religiões e na literatura, por exemplo, encontramos inúmeras tentativas de respondê-las. Qual a novidade da Filosofia (e da Ciência)? Para entender isso, vamos comparar dois textos. O primeiro é um trecho do poema intitulado Teogonia (ou seja, “origem dos deuses"), do poeta grego Hesíodo, que viveu no século VII a.C. O segundo, um texto de Aristóteles, filósofo que viveu bem mais tarde, no século IV a.C., sobre Tales de Mileto (nada de que Tales teria escrito chegou até nós). Teogonia Salve, ó filhas de Zeus, assegurai um doce canto E celebrai a sagrada raça dos imortais que existem para sempre, Os que nasceram da Terra e do Céu estrelado E da Noite escura, e aqueles que o Mar salgado criou. Dizei como no princípio os deuses e a terra passaram a existir, E os rios e o ilimitado mar de impetuosas vagas, E os astros fulgurantes e o amplo céu acima (...). Dentre todos, primeiro veio o Caos; seguindo-se A Terra de amplo seio, morada perene e segura de todos Os imortais que guardam as alturas do nevado Olimpo, E o nevoento Tártaro nos recessos do chão de largos caminhos, E o Amor, o mais formoso dentre os deuses imortais (...). Do Caos nasceram a negra Escuridão e a Noite; E da Noite nasceram o Éter e o Dia Aos quais ela concebeu e pariu depois de unir-se em amor com a Escuridão. Primeiro pariu a Terra, igual em extensão a si mesma, O Céu estrelado, para que a encobrisse por inteiro (...). E pariu as altas Montanhas (...). E pariu ainda a infatigável profundeza de impetuosas vagas, O Mar, desprovido de amor desejável; e depois Deitou-se com o Céu e pariu o Oceano de profundos torvelinhos E Coió e Crio e Hipérion e Jápeto E Teia e Reia e Justiça e Memória E Febe, coroada de ouro, e a amorosa Tetis. E depois deles, o mais jovem, o voluntarioso Crono, nasceu, o mais terrível dentre sua prole; que a seu vigoroso pai odiava. (Hesíodo, Teogonia) [Diziam os primeiros filósofos] que o elemento e o princípio originário das coisas que existem é aquilo de que todas são constituídas, do qual primeiros se originam e em que por fim se dissolvem, permanecendo sua substância e alterando-se suas propriedades (...). Deverá existir alguma natureza - quer uma ou mais de uma - da qual as outras coisas se originam, ela mesma mantendo-se preservada. (...) Tales, o fundador desse tipo de filosofia, afirma tratar-se da água (por isso declara que a terra repousa sobre a água). Talvez tenha sido levado a essa concepção ao observar que o nutrimento de todas as coisas é úmido e que o próprio calor disso provém e disso vive (sendo aquilo de onde provém algo o seu princípio originário) - chegou à sua concepção tanto por essa razão como pelo fato de as sementes de todas as coisas apresentarem uma natureza úmida, e a água é o princípio natural das coisas úmidas. (Aristóteles, Metafísica) O que podemos dizer sobre esses dois textos? De início, podemos dizer que tocam em uma mesma questão: a origem de todas as coisas. Poderíamos imaginar alguém perguntando a Hesíodo: "Qual é a origem de toda esta multiplicidade que observamos no mundo - mares, montanhas, céu e terra? Como essas coisas vieram a existir da forma como existem? Como explicar as mudanças pelas quais passam e a ordem que observamos nessas mudanças?" A resposta de Hesíodo teria um caráter peculiar: é uma longa genealogia - é a história de urna família. No início, havia o Caos e a Terra. Do Caos, vieram a Escuridão e a Noite. Da Terra, o Céu, o Mar, e assim por diante. Hesíodo, contando essa história, quis oferecer uma explicação do mundo tal como o conhecemos. Já uma explicação diferente é oferecida por Tales, segundo Aristóteles. Imaginemos agora alguém dirigindo aquelas mesmas questões a Tales. Sua resposta teria um caráter bem diferente e, em certa medida, desconcertante. Tales diria, simplesmente: toda a multiplicidade que vemos se origina de modificações da água; a regularidade que essa multiplicidade de fenômenos manifesta deve-se, primeiro, justamente, ao fato de, "por trás" dessa multiplicidade e das transformações que sofrem, estar uma mesma "base", uma mesma "substância", a água; e, segundo, ao fato de existir uma "lei" que rege as modificações da água, não ocorrendo simplesmente ao acaso. Em que a resposta de Tales difere da resposta deHesíodo? A interpretação que Aristóteles oferece do pensamento de Tales fornece algumas indicações interessantes. Aristóteles diz que Tales pode ter chegado à sua tese a partir de um raciocínio, que poderíamos reconstruir assim: (a) o nutrimento de todas as coisas é úmido; (b) o próprio calor vive do úmido; (c) as sementes de todas as coisas apresentam natureza úmida; (d) aquilo de onde provém algo é o seu princípio; (e) a água é o princípio natural das coisas úmidas; (f) logo, a água é o princípio de todas as coisas. Vamos analisar mais de perto esse raciocínio. Tales, segundo Aristóteles, parte de determinadas observações (expressas nas sentenças a, b, c), e, também, de determinados pressupostos conceituais, como o expresso na sentença d, que faz menção ao conceito de princípio, extremamente importante para os primeiros filósofos. Com esse conceito, Tales está direcionando sua investigação e organizando sua resposta àquelas questões que colocamos antes. Ele está dizendo-nos que nossa curiosidade sobre a origem das coisas pode ser respondida por uma investigação acerca dos princípios. Disso tudo, segue-se urna conclusão, expressa na sentença f. Assim, ao contrário de Hesíodo, Tales está em melhores condições para nos dizer por que acredita ser a água o princípio de todas as coisas e por que essa tese funciona como uma resposta àquelas perguntas que fizemos. Ele pode apresentar suas razões. Hesíodo, por sua vez, pode apenas dizer, como sugere no início de seu poema, que aquela história lhe foi contada pelas Musas, aquelas "filhas de Zeus" a que alude no início. Segundo Aristóteles, Tales pode fazer outro uso da sua tese de que a água é o princípio de todas as coisas. Tales, diz Aristóteles, afirmava que a terra repousava sobre a água. Isso era usado por ele como parte de uma explicação dos terremotos. Por que ocorrem terremotos? Porque a terra repousava sobre a água, princípio de todas as coisas, e o movimento eventual da água se refletia na terra, causando os terremotos. Ou seja, Tales é capaz de ampliar a sua tese, explicando novos fenômenos naturais a partir de um único princípio, ampliando nossa compreensão da natureza e de suas regularidades. Enfim, na estranha tese de Tales - a tese de que tudo é água - encontramos uma série de elementos (mesmo que ainda em germe) verificados também nas sofisticadas teorias científicas da ciência moderna. Embora hoje digamos que a tese de Tales é simplesmente falsa, sua estrutura, o modelo de explicação que implica, não é muito diferente do que atualmente aceitamos como uma explicação cientifica. Foi a introdução dessa forma nova de explicar a realidade, no inicio do século VI a.C., que marcou o nascimento da filosofia (e da ciência). Você terá adiante a oportunidade de conhecer um pouco mais sobre a evolução da filosofia ao longo de sua história. Como se faz Filosofia? Atitude filosófica e reflexão filosófica: perguntar, duvidar, problematizar, investigar. Agora que temos um conceito sobre o que é Filosofia, e já estudamos sobre o seu nascimento, podemos nos indagar: como se faz Filosofia? Por exemplo, voltemos ao exemplo do conceito de FELICIDADE. Como já falamos, temos algumas ideias prévias sobre o conceito de FELICIDADE, ideias comuns e compartilhadas por muitas pessoas - ideias que, muitas vezes, aceitamos justamente por serem comuns e compartilhadas. Como dissemos antes, aproximamos-nos da Filosofia quando buscamos refletir mais profundamente sobre um conceito, quando procuramos saber como ele realmente funciona, como ele se relaciona com outros conceitos. Ou seja, fazer Filosofia implica duas características principais: 1) A primeira seria negativa, pelo fato de negarmos um conceito recebido e tido como "verdadeiro". 2) A segunda seria mais positiva, pois no momento em que nos predispomos a avaliar um conceito tido como "verdadeiro" para a maioria das pessoas, interrogando-o para saber o que é, como é, por que é, estamos assumindo uma atitude filosófica, pois estamos nos afastando das ideias comuns e investigando mais detalhadamente sobre elas. Examinemos mais de perto. Quando nos perguntamos: O que é? Estamos nos questionando sobre o que é a coisa ou a ideia que pretendemos investigar - qual é sua realidade ou natureza, qual é a sua significação. Como é? Estamos indagando qual é a sua estrutura e quais são as relações que a constituem. Por que é? Estamos nos indagando sobre a origem ou a causa de uma coisa ou uma ideia. Como vimos, a Filosofia está comprometida com uma reflexão sobre ideias pré-concebidas, buscando as causas e as razões dessas ideias, para que sejam apropriadas na forma de conceitos fundamentados. Essa reflexão se inicia quando adotamos uma atitude filosófica, indagando: O que é? Como é? Por que é?, que são perguntas sobre a essência, a significação, a estrutura e a origem dessas ideias. Essa atitude filosófica se aproxima da atitude tomada por Sócrates quando começou a interrogar as pessoas que julgava mais sábias do que ele próprio. Sócrates logo percebeu que essas pessoas, na verdade, não tinham nada a ensinar que não fossem as ideias comumente repetidas por todos, sem maior crítica ou preocupação com o rigor. Em muitos casos, as pessoas com quem ele falava se sentiam ofendidas - não por acaso. Sócrates acumulou muitos inimigos ao longo de sua vida. Em outros casos, as pessoas percebiam que lhes faltava alguma coisa, e mudavam sua atitude, como dizia Sócrates, colocavam-se na posição de começar a filosofar. Essa atitude filosófica lembra-nos também uma outra ideia, vista em Platão e Aristóteles, os quais diziam estar a Filosofia ligada ao espanto, à admiração. Platão afirmava no diálogo de Teeteto ser a admiração a verdadeira característica do filósofo e que a Filosofia não teria outra origem. Aristóteles declarou: "Foi, com efeito, pela admiração que os homens, assim hoje como no começo, foram levados a filosofar (...), [pois justamente] quem duvida e se admira, julga ignorar" (Aristóteles, Metafísica, Livro l). Esse trabalho inicial de questionamento - essa admiração - desdobra-se, então, na reflexão filosófica, que dirige as questões iniciais em busca de respostas a elas. A Filosofia não é uma pesquisa de opinião, não é um "eu acho que...". Ela trabalha com ideias e conceitos precisos, construídos de forma rigorosa. Quando buscamos um encadeamento entre eles é que conseguimos sair do "eu acho que" e chegamos ao "eu penso que". Assim nos distanciamos do que chamamos de senso comum para construirmos um conhecimento filosófico. PARA QUE SERVE A FILOSOFIA? Qual é a finalidade de estudarmos Filosofia? Ou ainda, qual a sua utilidade para o homem? Estamos sempre nos perguntando o para quê das coisas, qual a sua utilidade na nossa vida. Parece muito fácil entendermos, por exemplo, a utilidade das ciências: Biologia, Química, Física etc. Para começar, parece que o objeto de estudo dessas ciências é bem definido e fácil de ser encontrado. Por exemplo, sabemos que a Biologia estuda a vida em seus diferentes contextos, a Química estuda as propriedades e as características das substâncias e dos elementos, a Física, os fenômenos físicos da natureza. E, então, como fica a Filosofia? Qual seria o seu objeto de estudo? A Filosofia não é uma ciência no mesmo sentido daquelas que mencionamos, mas se preocupa em alcançar um tipo de conhecimento. O seu objeto de estudo é o mundo em todas as suas dimensões e o homem enquanto ser racional que vive neste mundo. Por ter um objeto de estudo tão abrangente, muitos acham que a Filosofia não serve para nada. Ou, ainda, que serve para tudo. Qual seria então a sua utilidade? Veja, a seguir, o texto da filósofa Marilena Chauí, que tenta dar algumas respostas à questão: Qual seria, então, a utilidade da Filosofia? Se abandonar a ingenuidade e os preconceitos do senso comum for útil; se não se deixar guiar pela submissão às ideias dominantes e aos poderes estabelecidos for útil; se buscar compreender a significação do mundo, da cultura, da história for útil; se conhecer o sentido dascriações humanas nas artes, nas ciências e na política for útil; se dar a cada um de nós e à nossa sociedade os meios para serem conscientes de si e de suas ações numa prática que deseja a liberdade e a felicidade para todos for útil, então podemos dizer que a Filosofia é o mais útil de todos os saberes de que os seres humanos são capazes. (Marilena Chauí - Convite à Filosofia) O texto nos ajuda a pensar que a filosofia está presente em nossas vidas em diferentes contextos. E ainda, se ela é útil ou não para a nossa vida dependerá da forma como escolhemos viver. Assim, lembrando do exemplo de Sócrates, podemos escolher ou não seguir seu lema pessoal "Conhece-te a ti mesmo". E para que serve a Filosofia hoje? Devido à abrangência do campo de estudos da Filosofia, ela sempre fez parte da vida das pessoas. Mesmo quando não sabemos o que é a Filosofia, muitas vezes nos encontramos naquele estado de admiração ou de espanto que nos faz refletir. Muitas vezes, adotamos uma atitude filosófica, mesmo sem ter Iido o que os filósofos escreveram ou sem conhecer as teorias filosóficas. Assim, podemos dizer, a princípio, que todos nós podemos fazer Filosofia, ou seja, temos a capacidade de pensar, de usá-Ia como um método de construção das nossas ideias em todas as áreas do conhecimento. Você deve ter notado que muitos filósofos são entrevistados em jornais, TV e rádios para comentarem sobre os acontecimentos cotidianos. Isso porque a Filosofia os prepara para pensar claramente sobre os problemas da vida, devido ao seu extenso campo de atuação. Conhecer o que os filósofos já acumularam ao longo do tempo, os conceitos que propuseram, os argumentos que apresentaram, o exemplo de reflexão que nos deixaram ajuda a enriquecer nossa própria reflexão. Oráculo de Delfos Durante mais de 15 séculos, do nascimento ao fim da cultura grega antiga, o Oráculo de Delfos, ou templo de Apolo, serviu como local onde os peregrinos, vindos das mais diversas latitudes do mundo helênico, consultavam as pitonisas, as sacerdotisas oraculares, para saber qual o seu destino, o de sua família ou o de sua pátria. Delfos tornou-se um dos lugares sagrados mais venerados pelos gregos, sendo que suas previsões e predições tiveram enorme repercussão nos destinos de reis, de tiranos e de muita gente famosa daqueles tempos. Aprendendo a filosofar A Filosofia é um modo de pensar que acompanha o ser humano na tarefa de compreender o mundo e agir sobre ele. Mais que postura teórica, é uma atitude diante da vida, tanto nas condições corriqueiras como nas situações-limites que exigem decisões cruciais. Por isso, no encontro com a tradição filosófica não devemos nos restringir a recebê-lo passivamente como um produto, mas sermos capazes, cada um de nós, de nos aproximarmos da filosofia como processo, ou seja, como reflexão crítica e autônoma a respeito da realidade vivida. Lembrando Jaspers, a filosofia é a procura da verdade, não a sua posse, porque “fazer filosofia é estar a caminho; as perguntas em filosofia são mais essenciais que as respostas e cada resposta transforma-se numa nova pergunta”. (Extraído de: ARANHA, M. Lucia A.; MARTINS, M. Helena P. Filosofando; introdução à Filosofia. 3 ed. Revista. São Paulo: Moderna, 2003. p. 91)