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2017 Introdução ao antIgo testamento Prof. Gesiel Anacleto Prof. Jean Rafael Giese Copyright © UNIASSELVI 2017 Elaboração: Prof. Gesiel Anacleto Prof. Jean Rafael Giese Revisão, Diagramação e Produção: Centro Universitário Leonardo da Vinci – UNIASSELVI Ficha catalográfica elaborada na fonte pela Biblioteca Dante Alighieri UNIASSELVI – Indaial. 231.044 F333i Fenili, Romero Introdução ao antigo testamento / Gesiel Anacleto; Jean Rafael Geise: UNIASSELVI, 2017. 222 p. : il. ISBN 978-85-515-0088-0 1.Teologia. I. Centro Universitário Leonardo Da Vinci. III apresentação Caro acadêmico! Neste Livro de Estudos que é uma Introdução ao Antigo Testamento, você compreenderá que os livros que compõem a Bíblia ou Sagradas Escrituras, em sua composição e estrutura, possuem gêneros literários e eles são diferentes entre si. Os gêneros literários utilizados para compor os textos da Bíblia são as formas de linguagem e contexto em que é inserido o texto. Caro acadêmico, você compreenderá que na Bíblia não se esgotam os gêneros literários, pois existem muitos outros, que em conjunto com as outras formas literárias garantem forma ao texto bíblico. Devemos descobrir e conhecer esta variedade de linguagens nos textos da Bíblia, sendo um fator muito importante que deve ser acrescentado ao estudo das Sagradas Escrituras para compreendermos a sua finalidade e obtermos o seu conhecimento. Assim, vamos então conhecer os principais gêneros literários presentes nos textos que compõem o Antigo Testamento, a saber: jurídico, narrativo, literário poético, literário profético, literário apocalíptico e literário sapiencial. O gênero literário jurídico está presente em todos os cinco livros que compõem o Pentateuco. Este gênero trata sobre as normais e leis para a observância e obediência do povo de Deus. Assim, correspondem a dois tipos de leis: apotídicas e casuísticas. Quando os mandamentos têm início com um não são então classificados como leis apotídicas. Temos então as leis dos dez mandamentos (Êx 20, 3-17) como um exemplo disso. E as leis casuísticas são então as leis direcionadas para situações consideradas específicas, como podem ser conferidas nos livros de Levítico (Lv 20, 9-18, 20, 21) e Deuteronômio (Dt 15, 7-17). Com a intenção de transmitir uma mensagem e sendo de fácil entendimento, o gênero narrativo apresenta-se em forma de ‘epopeia’, ‘épica’, ‘tragédia’ e ‘romance’. A epopeia aparece quando a narrativa é sobre os feitos de um herói nacional ou com grandes conquistas militares, a vida dos israelitas no deserto e a conquista de Canãa etc. Como exemplo, em Abraão, Gedeão e Davi temos o gênero épico. Já a tragédia aborda a história da decadência de um indivíduo, da fama e honradez de um dos personagens bíblicos ou ao desastre e a miséria de um outro personagem (Sansão, Saul e Salomão). E, por fim, o romance apresenta a relação da vida amorosa entre um homem e uma mulher, aparecendo este nos livros de Rute e nos livros de Cântico dos Cânticos. IV Em se tratando do gênero literário poético, no Antigo Testamento encontra-se muitas vezes em formas de paralelismo entre as frases, como podemos constatar no próprio Livro dos Provérbios. Podemos classificar de gênero poético a composição dos demais livros sapienciais como os livros de Jó, Salmos, Eclesiastes e Cântico dos Cânticos. Além disso, observa-se também a presença desse tipo de gênero no próprio Pentateuco e nos livros proféticos. O gênero profético, que é bastante presente na Bíblia, não tem por objetivo adivinhar, mas sim de ser a intenção do profeta em manifestar ao povo a vontade de Deus com o uso de sermões e palavras duras, com sinais, exortações e oráculos. Ou seja, o sucesso do profeta não está no cumprimento de suas profecias, mas sim em que o povo destinatário das profecias mude de vida a fim de realizar a vontade de Deus e evitar o castigo. O castigo em si é consequência da não observância das leis e da vontade de Deus. O gênero literário apocalíptico se faz presente a partir do uso de símbolos, imagens, visões e revelações. Essa literatura aparece frequentemente em momentos de grande perseguição contra os israelitas. Neste gênero literário é apresentado o confronto entre os justos (os judeus) e os ímpios (outros povos), sendo o Livro de Daniel um perfeito exemplo em que se encontra este tipo de gênero. Apocalíptico no sentido literal da palavra no que se refere à revelação em si. E, por fim, temos o gênero literário que tem por finalidade mostrar a sabedoria dos simples, que é a sabedoria da vida cotidiana (Provérbios); ou apresentar uma sabedoria que reflete a crise da ideia de Deus (por exemplo, a própria história de Jó); uma sabedoria que mostra a crise da própria sabedoria em si como sendo a sabedoria: “vaidade das vaidades, tudo é vaidade” (BÍBLIA DE JERUSALÉM, Eclesiastes, 12, 8). Porém, a sabedoria buscada e atingida pelo homem deve servir a ele como o meio pelo qual o homem saberá valorizar a dignidade que a sua vida contém e também iluminar o caminho de suas escolhas e ações nesta vida para consigo e, principalmente, na relação social e interacional com as diferentes pessoas que passam por sua vida, bem como as instituições em que fará parte. Caro acadêmico, a Bíblia, ou melhor, as Sagradas Escrituras, tanto a parte do Pentateuco (primeira parte do Antigo Testamento, O Antigo Testamento e o Novo Testamento como um todo, não são apenas gêneros literários e, portanto, não podem ser apenas entendidos através de estudo de gêneros literários. É palavra, conhecimento e sabedoria encarnada em espaços geográficos reais e em contextos históricos, sociais, econômicos, políticos, religiosos e culturais que também são testados e atestados tanto pela história (arqueologia, para citar um exemplo) e por diversas pesquisas científicas. E, como sabemos, a Teologia é a Ciência por Excelência, pois está pronta e acabada. Pois é considerada revelada por Deus aos Homens V Você já me conhece das outras disciplinas? Não? É calouro? Enfim, tanto para você que está chegando agora à UNIASSELVI quanto para você que já é veterano, há novidades em nosso material. Na Educação a Distância, o livro impresso, entregue a todos os acadêmicos desde 2005, é o material base da disciplina. A partir de 2017, nossos livros estão de visual novo, com um formato mais prático, que cabe na bolsa e facilita a leitura. O conteúdo continua na íntegra, mas a estrutura interna foi aperfeiçoada com nova diagramação no texto, aproveitando ao máximo o espaço da página, o que também contribui para diminuir a extração de árvores para produção de folhas de papel, por exemplo. Assim, a UNIASSELVI, preocupando-se com o impacto de nossas ações sobre o ambiente, apresenta também este livro no formato digital. Assim, você, acadêmico, tem a possibilidade de estudá-lo com versatilidade nas telas do celular, tablet ou computador. Eu mesmo, UNI, ganhei um novo layout, você me verá frequentemente e surgirei para apresentar dicas de vídeos e outras fontes de conhecimento que complementam o assunto em questão. Todos esses ajustes foram pensados a partir de relatos que recebemos nas pesquisas institucionais sobre os materiais impressos, para que você, nossa maior prioridade, possa continuar seus estudos com um material de qualidade. Aproveito o momento para convidá-lo para um bate-papo sobre o Exame Nacional de Desempenho de Estudantes – ENADE. Bons estudos! (Dei Verbum), cabendo ao homem, com o uso de suas múltiplas inteligências, acercar-se e introduzir-se nessa Sabedoria (Ciência Teológica) que não tem por função confortar o homem, apenas, e sim, dizer ao homem qual é a sua origem, qual deve ser o seu proceder e qual é o seu último destino. Bons estudos e sucesso em sua via acadêmica!Os autores. UNI VI VII UNIDADE 1 - INTRODUÇÃO PARA A COMPREENSÃO DO ANTIGO TESTAMENTO ... 1 TÓPICO 1 - COMPOSIÇÃO DO PENTATEUCO ............................................................................ 3 1 INTRODUÇÃO .................................................................................................................................... 3 2 FORMAÇÃO DO PENTATEUCO .................................................................................................... 4 3 AUTORIA DOS LIVROS DO PENTATEUCO ............................................................................... 11 4 CONTEXTO HISTÓRICO DA COMPOSIÇÃO DO PENTATEUCO ....................................... 24 5 ESTRUTURA DOS LIVROS DO PENTATEUCO ......................................................................... 28 6 O PENTATEUCO E A HISTÓRIA DE ISRAEL .............................................................................. 33 RESUMO DO TÓPICO 1 ....................................................................................................................... 37 AUTOATIVIDADE ................................................................................................................................ 38 TÓPICO 2 - O PENTATEUCO E O INÍCIO DA HISTÓRIA DE ISRAEL ................................... 39 1 INTRODUÇÃO .................................................................................................................................... 39 2 O LIVRO DO GÊNESIS ..................................................................................................................... 40 2.1 COMPOSIÇÃO ................................................................................................................................ 41 2.2 AUTORIA DE GÊNESIS ................................................................................................................ 42 3 CONTEÚDO E ESTRUTURA DO LIVRO DO GÊNESIS ........................................................... 43 3.1 A HISTÓRIA DAS ORIGENS ........................................................................................................ 44 3.2 HISTÓRIA DOS PATRIARCAS .................................................................................................... 45 4 FONTES E GÊNEROS LITERÁRIOS .............................................................................................. 51 RESUMO DO TÓPICO 2 ....................................................................................................................... 52 AUTOATIVIDADE ................................................................................................................................ 53 TÓPICO 3 - A SAGA DO POVO ESCOLHIDO ............................................................................... 55 1 INTRODUÇÃO .................................................................................................................................... 55 2 O LIVRO DO ÊXODO ........................................................................................................................ 55 2.1 COMPOSIÇÃO ................................................................................................................................ 56 2.2 AUTORIA ......................................................................................................................................... 57 2.3 CONTEXTO HISTÓRICO .............................................................................................................. 59 3 CONTEÚDO E ESTRUTURA DO LIVRO DO ÊXODO .............................................................. 61 4 GÊNERO LITERÁRIO ........................................................................................................................ 64 LEITURA COMPLEMENTAR .............................................................................................................. 66 RESUMO DO TÓPICO 3 ....................................................................................................................... 70 AUTOATIVIDADE ................................................................................................................................ 71 UNIDADE 2 - DEUS E OS HEBREUS FIRMAM UMA ALIANÇA .............................................. 73 TÓPICO 1 - A RESPOSTA CULTURAL DO POVO DE ISRAEL AO DEUS DA ALIANÇA ................................................................................................................... 75 1 INTRODUÇÃO .................................................................................................................................... 75 2 O LIVRO DE LEVÍTICO .................................................................................................................... 77 3 COMPOSIÇÃO .................................................................................................................................... 84 4 AUTORIA .............................................................................................................................................. 91 sumárIo VIII 5 CONTEÚDO E ESTRUTURA DO LIVRO ...................................................................................... 91 6 GÊNERO LITERÁRIO ........................................................................................................................ 95 RESUMO DO TÓPICO 1 ....................................................................................................................... 96 AUTOATIVIDADE ................................................................................................................................ 97 TÓPICO 2 - A LEI DA PEDAGOGIA DIVINA ................................................................................ 99 1 INTRODUÇÃO .................................................................................................................................... 99 2 O LIVRO DOS NÚMEROS ............................................................................................................... 100 3 COMPOSIÇÃO .................................................................................................................................... 103 4 AUTORIA .............................................................................................................................................. 110 5 CONTEÚDO E DIVISÃO DO LIVRO ............................................................................................ 111 6 GÊNERO LITERÁRIO ........................................................................................................................ 113 RESUMO DO TÓPICO 2 ....................................................................................................................... 115 AUTOATIVIDADE ................................................................................................................................ 116 TÓPICO 3 - CENTRALIZAÇÃO DO CULTO, DENTRO DO PRINCÍPIO DA ALIANÇA .... 117 1 INTRODUÇÃO .................................................................................................................................... 117 2 O LIVRO DE DEUTERONÔMIO .................................................................................................... 118 3 COMPOSIÇÃO .................................................................................................................................... 123 4 AUTORIA .............................................................................................................................................. 127 5 TEXTO E CONTEXTO ........................................................................................................................ 129 6 DIVISÃO ............................................................................................................................................... 134 7 GÊNERO LITERÁRIO........................................................................................................................ 146 LEITURA COMPLEMENTAR .............................................................................................................. 148 RESUMO DO TÓPICO 3 ....................................................................................................................... 151 AUTOATIVIDADE ................................................................................................................................ 152 UNIDADE 3 - A FORMAÇÃO DOS LIVROS DO ANTIGO TESTAMENTO ........................... 153 TÓPICO 1 - OS LIVROS HISTÓRICOS ............................................................................................ 155 1 INTRODUÇÃO .................................................................................................................................... 155 2 DIVISÃO HISTÓRICA DO PERÍODO DA COMPOSIÇÃO DOS LIVROS .......................... 155 2.1 ANTES DA MONARQUIA OU REINADO ................................................................................ 160 2.2 O PERÍODO DO REINADO OU MONARQUIA ....................................................................... 167 2.2.1 O reino unido ............................................................................................................................. 167 2.2.2 O reino dividido ........................................................................................................................ 169 2.3 O EXÍLIO E PÓS-EXÍLIO ............................................................................................................... 171 LEITURA COMPLEMENTAR .............................................................................................................. 173 RESUMO DO TÓPICO 1 ....................................................................................................................... 175 AUTOATIVIDADE ................................................................................................................................ 176 TÓPICO 2 - OS LIVROS POÉTICOS ................................................................................................. 177 1 INTRODUÇÃO .................................................................................................................................... 177 2 A POESIA HEBRAICA ....................................................................................................................... 177 2.1 OS ARTIFÍCIOS POÉTICOS DO ANTIGO TESTAMENTO ..................................................... 178 2.1.1 Linguagem figurada ................................................................................................................. 178 2.1.2 Paralelismo ................................................................................................................................. 179 2.1.3 Ritmo ........................................................................................................................................... 179 2.1.4 O uso da música ........................................................................................................................ 179 3 OS LIVROS ........................................................................................................................................... 181 3.1 O LIVRO DE JÓ ............................................................................................................................... 181 3.2 O LIVRO DOS SALMOS ................................................................................................................ 182 3.3 OS LIVROS DE PROVÉRBIOS E ECLESIASTES ........................................................................ 184 IX 3.4 O LIVRO DO CÂNTICO DOS CÂNTICOS ................................................................................ 186 LEITURA COMPLEMENTAR .............................................................................................................. 187 RESUMO DO TÓPICO 2 ....................................................................................................................... 190 AUTOATIVIDADE ................................................................................................................................ 191 TÓPICO 3 - OS PROFETAS .................................................................................................................. 193 1 INTRODUÇÃO .................................................................................................................................... 193 2 A PROFECIA EM ISRAEL ................................................................................................................. 193 3 PROFETAS PRÉ-CATIVEIRO ........................................................................................................... 196 3.1 O PROFETA OBADIAS .................................................................................................................. 196 3.2 O PROFETA JOEL ........................................................................................................................... 197 3.3 O PROFETA JONAS ....................................................................................................................... 199 3.4 O PROFETA AMÓS ........................................................................................................................ 200 3.5 O PROFETA OSÉIAS ...................................................................................................................... 202 3.6 O PROFETA MIQUÉIAS ................................................................................................................ 204 3.7 O PROFETA ISAÍAS ....................................................................................................................... 204 3.8 O PROFETA NAUM ....................................................................................................................... 207 3.9 O PROFETA SOFONIAS ................................................................................................................ 207 3.10 O PROFETA HABACUQUE ....................................................................................................... 208 4 PROFETAS NO CATIVEIRO E DURANTE O CATIVEIRO ....................................................... 208 4.1 O PROFETA JEREMIAS ................................................................................................................. 209 4.2 O PROFETA EZEQUIEL ................................................................................................................ 211 4.3 O PROFETA DANIEL .................................................................................................................... 212 5 PROFETAS PÓS-CATIVEIRO ........................................................................................................... 213 5.1 O PROFETA AGEU ......................................................................................................................... 213 5.2 O PROFETA ZACARIAS ............................................................................................................... 214 5.3 O PROFETA MALAQUIAS ........................................................................................................... 215 LEITURA COMPLEMENTAR .............................................................................................................. 216 RESUMO DO TÓPICO 3 ....................................................................................................................... 219 AUTOATIVIDADE ................................................................................................................................ 220 REFERÊNCIAS ........................................................................................................................................221 X 1 UNIDADE 1 INTRODUÇÃO PARA A COMPREENSÃO DO ANTIGO TESTAMENTO OBJETIVOS DE APRENDIZAGEM PLANO DE ESTUDOS A partir dos estudos desta unidade você será capaz de: • conhecer a estrutura do Pentateuco; • entender sobre a sua formação e formulação; • conhecer a sua autoria, composição e gênero literário. Esta unidade está dividida em três tópicos, e em cada um deles você encontrará atividades visando à compreensão dos conteúdos apresentados. TÓPICO 1 – COMPOSIÇÃO DO PENTATEUCO TÓPICO 2 – O PENTATEUCO E O INÍCIO DA HISTÓRIA DE ISRAEL TÓPICO 3 – A SAGA DO POVO ESCOLHIDO 2 3 TÓPICO 1 UNIDADE 1 COMPOSIÇÃO DO PENTATEUCO 1 INTRODUÇÃO Caro acadêmico, antes de iniciarmos e prosseguirmos no estudo de uma introdução ao Antigo Testamento, precisamos concordar que a Bíblia foi também constituída a partir de um contexto histórico-geográfico. Geográfico no sentido de que o espaço habitado pelo povo hebreu era a Palestina (Terra de Israel: 2Cr 2, 17; 1 Sm, 13, 19; Canaã: Gn 11, 31; Êx 15, 15; Terra Santa: Zc 2, 16; Judá: Lc 1, 5; Terra Prometida: Hb 11, 9). A região da Palestina está situada na bacia do Mar Mediterrâneo, tendo o Egito ao Sul, a Mesopotâmia ao Norte, a Europa ao Ocidente, estando então incluída dentro da meia-lua fértil oriental ou Crescente Fértil. Sendo assim, a Palestina é uma terra situada entre duas grandes e antigas civilizações, a saber: a civilização mesopotâmica e a civilização egípcia. A civilização mesopotâmica é situada numa região fértil e por isso enfrentou com frequência vários problemas políticos e econômicos, pelo fato de muitos outros povos ambicionarem essas terras. Nessa região ocorreram muitos movimentos de tribos nômades, pois mudavam com frequência com seus rebanhos atrás de novas e férteis pastagens. É a partir desse contexto que se encontra e constitui-se a figura do patriarca Abraão e sua família em sua trajetória da cidade de Ur, Haarã para Canaã (Gn 12-13). Caminhada essa que será observada no livro do Êxodo como sendo então uma caminhada de fé. A civilização egípcia se constituiu há 4.500 anos antes de Cristo. Estava constituída no Vale do Rio Nilo. A região do Nilo, por causa das frequentes inundações, também era uma região fértil, sendo propícia para a lavoura de trigo. É a partir dessas condições naturais que ocorre o episódio de José e seu irmãos no Egito. Entre essas duas civilizações havia um corredor de acesso que possibilitava o movimento de caravanas comerciais. O povo que vivia nesse corredor de acesso entre ambas as civilizações era massacrado por elas, sendo ora dependente dos egípcios, ora dependente dos mesopotâmicos. Esse corredor era uma região considerada chave, pois ficava entre a África, Ásia e Europa, recebendo a Bíblia influência de diversas culturas, principalmente as culturas egípcias e as mesopotâmicas. Portanto, o lugar em que a Bíblia é escrita não é uma região isolada. UNIDADE 1 | INTRODUÇÃO PARA A COMPREENSÃO DO ANTIGO TESTAMENTO 4 2 FORMAÇÃO DO PENTATEUCO FIGURA 1 – OS LIVROS DO PENTATEUCO FONTE: Disponível em: <http://files.cursodeteologia6.webnode. com/200000152-9ef079feac/pentateuco.png>. Acesso em: 15 fev. 2017. De acordo com Félix García López (2002), em sua obra O Pentateuco: Introdução à Leitura dos Cinco Primeiros Livros da Bíblia, o Pentateuco em si é uma grande composição literária, integrada e constituída por narrações e leis. Segundo esse autor, os personagens principais do Pentateuco vivem e se desenvolvem, de forma geral, num marco espacial (geográfico) e temporal bastante amplo, quando mesmo não o transcendem, como é no caso de Javé (Deus). Segundo o autor, em muitos aspectos, o Pentateuco é semelhante às obras literárias modernas. A organização dos livros do Antigo Testamento na literatura hebraica é diferente da organização cristã, pois nela, segundo López (2002), é feita inclusive a união de alguns livros, que na literatura cristã são separados. São os livros dos 12 profetas menores, os dois livros de Samuel, os dois livros de Reis, os dois livros das Crônicas, assim como também é feita a junção dos livros de Neemias e Esdras, chegando ao total de 24 livros e não 39, como foi feita na nossa tradução do Pentateuco. No entanto, em relação a essas diferenças, apenas foram mudadas a forma estética e a organização, mas os conteúdos são equivalentes nas diferentes formas de tradução. López (2002) traz em sua obra, na página 17, um esquema de organização do Antigo Testamento de acordo com a tradição judaica, como podemos constatar a seguir: TÓPICO 1 | COMPOSIÇÃO DO PENTATEUCO 5 DIVISÃO DOS LIVROS DO ANTIGO TESTAMENTO JUDAICO A Lei 5 Livros (A Torah) Os Proféticos 8 Livros (Os Neviym) Os Escritos 11 Livros (Os Kethuvym) 1 - Gênesis a. Profetas Anteriores a. Livros Poéticos 2 - Êxodo 1 - Salmos 3 - Levítico 1 - Josué 2 - Provérbios 4 - Números 2 - Juízes 3 - Jó 5 - Deuteronômio 3 - Samuel 4 - Reis b. Cinco rolos (Megiloth) b. Profetas Posteriores 1 - O Cântico dos Cânticos 2 - Rute 1 - Isaías 3 - Lamentações 2 - Jeremias 4 - Ester 3 - Ezequiel 5 - Eclesiastes 4 - Os doze c - Livros Históricos 1 - Daniel 2 - Esdras - Neemias 3 - Crônicas QUADRO 1 – A DIVISÃO DOS LIVROS DO ANTIGO TESTAMENTO JUDAICO FONTE: López (2002, p. 17) Como podemos notar no quadro anterior, todos os livros do Antigo Testamento da tradução segundo a versão cristã eram reconhecidos pelo povo judeu e considerados também como divinamente inspirados, e aceitos inclusive pelo próprio historiador Flávio Josefo, em que ele apresenta uma divisão da estrutura não de 24 livros, mas de apenas 22 livros. Pois na divisão de 22 livros, adotada por Flávio Josefo, o livro de Rute está junto com o de Juízes e o livro de Lamentações com o de Jeremias. Devemos entender que a formação do Cânon do Antigo Testamento se deu de forma gradual, ocorrendo num espaço de tempo de aproximadamente 1.255 anos, desde o personagem de Moisés até Esdras. Segundo as fontes de pesquisas, “[...] isto vai desde o período em que Moisés esteve entre os midianitas (quando, segundo a tradição judaica, teria escrito o livro de Jó), por volta de 1700 a.C., até UNIDADE 1 | INTRODUÇÃO PARA A COMPREENSÃO DO ANTIGO TESTAMENTO 6 Esdras (445 a.C.)” (LÓPEZ, 2002, p. 18). Em relação à redação final do Antigo Testamento, Esdras não pode ser considerado como o redator final. Esdras não foi o último escritor na formação do Cânon do Antigo Testamento; os últimos foram Neemias e Malaquias, porém, de acordo com os escritos históricos, foi ele que, na qualidade de escriba sacerdote, reuniu os rolos bíblicos, ficando assim o Cânon encerrado em seu tempo. Os profetas e os homens de Deus que compuseram os livros do Antigo Testamento não tinham consciência de como suas contribuições se enquadrariam a uma unidade global, formando assim o Antigo Testamento (LÓPEZ, 2002, p. 18). Devemos considerar que cada época (em se tratando de diferentes culturas e sociedades) tem a sua própria forma de ler, no sentido de compreender, a Bíblia, e de acordo com as correntes intelectuais que vigoram no dado momento. Nesse sentido, López (2002) conclui que os trabalhos de Fr. Luís de León e de Arias Montano refletem as correntes humanistas do período do Renascimento (séculos XIV e XV). Por outro lado, atesta o autor, durante o período do Iluminismo (século XVIII), em relação às pesquisas referentes às Sagradas Escrituras, começaram a ser aplicados os métodos histórico-críticos. No entanto, López recorda que bem mais tarde, a filosofia de Hegel, o positivismo de Comte, evolucionismo e estudos antropológicos, psicológicos e sociológicos contribuíram também para o desenvolvimento da investigação bíblica. É a partir de metade do século XX que a tendência mais apurada na interpretação bíblica é a corrente da nova crítica literária. Essa corrente de pesquisa bíblica apresenta os estudos histórico-críticos que haviam se estabelecido durante mais de dois séculos eque nas últimas décadas têm aberto possibilidades para a existência ou ocorrência para novos métodos literários. Assim, foram se diversificando os métodos histórico-críticos e também foi se multiplicando a definição dos novos métodos literários (LÓPEZ, 2002). Portanto, de acordo com López (2002), a pluralidade dos estudos sobre o Pentateuco é um sinal dos tempos atuais. De acordo com Albert de Pury (1996), organizador da obra “O Pentateuco em questão”, a primeira etapa propriamente literária da formação do Pentateuco pode ser situada pelo ano 1000, à época de Davi. Foi na corte do rei que foram redigidos cinco textos bem curtos que contam as histórias “primitivas” das origens de Abraão, de Isaac, de Jacó e de José. Esses pequenos documentos, segundo Pury, independentes uns dos outros, foram escritos a fim de responder aos adeptos da casa de Saul que contestavam a legitimidade do poder exercido pelo homem de Hebron. “A unidade do documento que fornece ao Pentateuco sua trama fundamental é, portanto, menos de ordem teológica do que de ordem política” (PURY, 1996, p. 164). O Pentateuco é uma classificação dada aos cinco primeiros livros que compõem a Bíblia, sendo eles: Gênesis, Êxodo, Levítico, Números e Deuteronômio. Os cinco primeiros rolos em hebraico são chamados de Torah, verbo hebraico yarah que tem por significado “mostrar com o dedo”, “indicar”, significando então TÓPICO 1 | COMPOSIÇÃO DO PENTATEUCO 7 “instruir, ensinar”. O Pentateuco das Igrejas Cristãs é também conhecido como o Livro da Torá da religião judaica, segundo Anderson Vicente Gazzi, autor da obra “Introdução ao Estudo do Pentateuco”. Para uma melhor compreensão do conjunto dos livros que formam o Pentateuco, Gazzi (2013, p. 63) afirma que: Os primeiros cinco livros da Bíblia (Gênesis, Êxodo, Levítico, Números e Deuteronômio), geralmente chamados de “a Lei” ou “o Pentateuco”, integram a primeira e mais importante seção do Antigo Testamento, tanto na Bíblia Judaica como na Cristã. A divisão tripartida da Bíblia Hebraica em Lei, Profetas e Escritos (Salmos) pode ser encontrada no Novo Testamento (Lc 24.44.: “E disse-lhes: São estas as palavras que vos disse estando ainda convosco: convinha que se cumprisse tudo o que de mim estava escrito na Lei de Moisés, e nos Profetas, e nos Salmos”) e no Prólogo de Siraque (c.180 a.C.). A distribuição dos livros do Antigo Testamento nas Bíblias Cristãs, baseada na do Antigo Testamento Grego (a Septuaginta; c.150 a.C.), também concede ao Pentateuco esta primazia. Enquanto um projeto de tradução do Pentateuco, a Septuaginta é considerada como a Torá greco-helenística. Assim, a versão da Septuaginta constituiu-se numa obra da exegese judaica antiga (SMEND, 1996). A Septuaginta deu-se, segundo Gazzi, como consequência da popularização da língua grega com o ápice do Império de Alexandre o Grande: Como consequência dos setenta anos de cativeiro na Babilônia, e em virtude da forte influência do aramaico, a língua hebraica enfraqueceu- se. Todavia, fiéis à tradição de preservar os oráculos em sua própria língua, os judeus não permitiam ainda que os livros sagrados fossem vertidos para outro idioma. Alguns séculos mais tarde, porém, essa atitude exclusivista e ortodoxa teria de dar lugar a um senso mais prático e liberal. Com o estabelecimento do império de Alexandre o Grande, a partir de 331 a.C., a língua grega popularizou-se a ponto de tornar imprescindível que para ela se fizesse uma tradução das Sagradas Escrituras (GAZZI, 2013, p. 63). Com a tradução do hebraico para o grego, passou então a ser chamado de Pentateuco, que tem por significado “cinco rolos onde está contida a Lei de Javé (Iahweh)”. Até o século XVIII, Moisés era reconhecido como sendo o único autor do Pentateuco pelas tradições judaica e cristã. Porém, do século XIX em diante surge a crítica literária que faz observações a alguns traços do Pentateuco, sugerindo a possível existência de mais de um escritor. Pois em diversas passagens as narrações estão em versões diferentes, com estilos, vocabulários e tempos diferentes. UNIDADE 1 | INTRODUÇÃO PARA A COMPREENSÃO DO ANTIGO TESTAMENTO 8 FIGURA 2 - A TORÁ JUDAICA FONTE: Disponível em: <http://cylkow.pl/wpcontent/uploads/2015/07/tora. png>. Acesso em: 15 fev. 2017. Segundo Pury, a questão da origem e do desenvolvimento do Pentateuco não é uma questão de interesse apenas a um grupo de pesquisadores da crítica literária. Uma coisa deve ficar bem clara: a questão das origens e do desenvolvimento não é um problema marginal que só interessaria a um círculo restrito de profissionais da crítica literária. As implicações dos estudos do Pentateuco para o conjunto da ciência veterotestamentária – inclusive para a nossa própria percepção da história de Israel – são evidentes (PURY, 1996, p. 17). Para Pury (1996), o Pentateuco é o cânon mais antigo de uma comunidade de fé. Por conseguinte, seu devir (o vir a ser – desenvolvimento) também deve ser compreendido como um processo espiritual. Por isso é necessário estarmos atentos tanto ao aspecto literário quanto ao aspecto teológico. O Pentateuco não foi escrito em uma única vez e não pode ser considerado como sendo a obra de um único autor. O Pentateuco deve ser entendido como escrito a partir de tradições orais e escritas diferentes que foram juntadas de forma progressiva e se unificando ao longo da história. A união de todo esse material só se deu na época depois do exílio da Babilônia. “Seja qual for a resposta à questão da formação do Pentateuco, esta resposta terá que levar em conta o fato de que o Pentateuco deve ser compreendido, de qualquer forma, como uma resposta à catástrofe política e, mais ainda, à crise religiosa e espiritual do exílio” (PURY, 1996, p. 178). A fonte Javista, pelo fato de chamar Deus de Javé, é oriunda do reinado do rei Salomão por volta dos anos 960-930 a.C. Os textos dessa fonte podem ser verificados nos livros de Gênesis, Êxodo e Números. E também nos livros de Josué TÓPICO 1 | COMPOSIÇÃO DO PENTATEUCO 9 e Juízes. Essa fonte fala diretamente da história de Israel, desde a criação, passando pelo êxodo até a posse da terra em Canaã. Essa fonte retrata o pensamento do povo da tribo do Sul (Judá), sendo que não dá para identificar diretamente os seus autores. Apenas há o conhecimento das tribos do Sul e de suas cortes. A fonte de tradição Javista apresenta a história de Israel no estilo de uma grande “Epopeia Nacional” em que todos têm marcada em suas memórias históricas “essa história” que é repassada da tradição oral secular recontada no contexto dos reis, privilegiando então as tribos do Sul. A fonte Eloísta (por chamar a Deus de Elohim) foi composta entre os anos 900-850 a.C., depois da separação das tribos do Norte (Israel) e do Sul (Judá). Essa fonte apresenta as mesmas concepções da fonte sulista (apresentada na tradição Javista) e nos mesmos livros, porém, com uma nova perspectiva e olhar, próprio do povo nortista Israel. Propositalmente, Eloísta é advindo do nome de Deus anterior ao êxodo, onde a divindade é invocada como Elohim, o Deus Altíssimo. Sua narrativa dá ênfase a locais (santuários, montes e locais sagrados) onde é forte a experiência de suas lideranças embrionárias (patriarcas, profetas) com a manifestação divina. Também é enfatizada a aliança com o povo (ao contrário da fonte Javista que dá ênfase ao reinado e templos) enquanto coletividade. Esta fonte valoriza mais o campo, a natureza, as tradições primitivas anteriores à monarquia, as relações interpessoais com a divindade, bem diferente da tradução javista que tem um perfil estatal e faz uso de personagens que atuam como mediadores entre Deus e o povo. A fonte sacerdotal foi então composta no final do exílio dos judeus na Babilônia e no começo da restauração entre os anos de 550-450 a.C., pelos sacerdotes hebreus. A partir de Gênesis, Êxodo e passando pelos livros de Levítico e Números, os textos dessa fonte narrativasão fortemente constituídos e elaborados em genealogias, na observação da lei sabática, nas leis religiosas, na circuncisão, no tratamento de todas as enfermidades, no convívio social, no jeito e nas formas de prestar culto à divindade, a importância de toda a casta sacerdotal, dos símbolos religiosos e da interpretação da própria história através dos sacerdotes como sendo os mediadores entre Deus e os homens do povo. A influência da narrativa sacerdotal é bastante significativa no tempo da restauração e na conservação e observação dos costumes religiosos. E, por fim, a fonte denominada de Deuteronomista (fonte que aponta para a observância irrestrita da lei) foi elaborada no reinado de Israel, ou seja, da tribo do Norte. A fonte Deuteronomista é considerada crítica e refinada. Quando no ano de 722 a.C. houve a queda do reino do Norte, essa tradição Deuteronomista foi então guardada por hebreus simpatizantes que habitavam o reino do Sul. Nessa fonte literária é forte a ideia da releitura da história da tribo do Norte a partir da aliança e do momento que o Reino do Sul está passando, de forma que teve o mesmo fim, que foi a sua destruição e o seu exílio. A fonte Deuteronomista em sua releitura da história dá ênfase na pré-história israelita desde os tempos de Moisés até o início do reinado, dando então valor àquilo que constitui a terra e o povo como sendo um dom e uma herança sagrada de Deus. UNIDADE 1 | INTRODUÇÃO PARA A COMPREENSÃO DO ANTIGO TESTAMENTO 10 Gazzi (2013) afirma que depois da destruição de Jerusalém no ano 70 depois de Cristo, a própria versão da Bíblia chamada “a versão dos Setenta” perdeu muito do seu valor entre os teólogos judeus da época, em parte e também em consequência do modo pelo qual os próprios cristãos a usavam para fundamentar as suas crenças e as doutrinas de Cristo, e também, em parte, pelo fato de seu estilo ser falho de elegância. Por causa disto, os judeus então fizeram no segundo século três novas versões dos livros canônicos do Antigo Testamento (GAZZI, 2013): (1) A tradução de Áquila. Este autor era natural do Ponto e prosélito do judaísmo, viveu no tempo do imperador Adriano. Tentou fazer uma versão literal das Escrituras hebraicas, com a finalidade de contradizer a forma que os cristãos faziam dos Setenta para fundamentar as suas doutrinas. (2) A revisão dos Setenta feita então por Teodócio. Este era judeu prosélito, natural de Éfeso, segundo Ireneu, e segundo Euzébio, Teodócio era também um ebionita que acreditava na missão do Messias, mas não na divindade de Cristo. (3) A versão de Símaco, também ebionita. Esta versão foi incluída por Orígenes em sua Hexapla e na Tetrapla, que alinhavam lado a lado versões do texto com a Septuaginta. Alguns dos poucos fragmentos do texto de Símaco que chegaram até nossos dias, remanescentes da também perdida Hexapla, permitiram que os acadêmicos modernos elogiassem a pureza e elegância do grego de Símaco, que também foi admirado por Jerônimo para compor a Vulgata. Orígenes organizou o texto hebreu em quatro versões diferentes, em seis colunas paralelas para efeito de estudo comparativo. Na primeira coluna tinha-se o texto hebreu; na segunda coluna, o texto hebreu com caracteres gregos; na terceira coluna, a versão de Áquila; na quarta coluna, a versão de Símaco; na quinta coluna, a dos Setenta; e na sexta coluna, a revisão feita por Teodócio. Em virtude destas seis colunas, tomou o nome de Hexapla. Na coluna destinada ao texto dos Setenta, marcava com um sinal palavras que não encontrava no texto hebreu. Emendava o texto grego, suprindo as palavras do texto hebraico que lhe faltavam, assinalando- as por um asterisco. Conservou a mesma grafia hebraica para os nomes próprios. Orígenes preparou uma edição de menor formato, contendo as últimas quatro colunas, que se ficou chamando Tétrapla (GAZZI, 2013). Porém, em relação aos outros escritos que compõem o Antigo Testamento, existiram outros grupos de redatores ou escolas e discípulos de algum outro personagem importante, por exemplo, alguns dos profetas. Também deve ser considerada a tradição oral partindo da memória do povo que relatava as histórias de geração em geração. Assim, Pury conclui que: O Pentateuco, quanto à sua matéria, se divide em duas partes quase iguais, em textos legislativos e textos narrativos. Abrem-se, portanto, duas vias tradicionais à interpretação: para a tradição judaica, o Pentateuco é antes de tudo compreendido como a Lei de Israel. Para a tradição cristã, ao contrário, o Pentateuco é lido antes de tudo como a história de Israel (PURY, 1996, p. 72). TÓPICO 1 | COMPOSIÇÃO DO PENTATEUCO 11 3 AUTORIA DOS LIVROS DO PENTATEUCO FIGURA 3 – O ESCRIBA SAGRADO FONTE: Disponível em: <https://www.irmaos.net/v2/img/escriba.jpg>. Acesso em: 15 fev. 2017. De acordo com López (2002), a tradição judaica e a cristã atribuíram, desde os primórdios, a Torá à autoria de Moisés. Conforme Filón e Josefo, Moisés escreveu inclusive o relato de sua morte (Dt 34, 5ss). Essa tradição foi unânime por muitos séculos, tomando ao pé da letra algumas afirmações do Pentateuco sobre as funções de Moisés como sendo o seu escritor. Afirma-se, por exemplo, que Javé encarregou a Moisés escrever num “Livro de memórias” a vitória de Israel sobre os amalecitas (Êx 17, 14) e que Moisés escreveu o “Código da Aliança” (Êx 24, 4) e o “Direito de privilégio de Javé” (Êx 34, 27). Assim mesmo Nm 33, 2 nos informa que Moisés foi registrando, numa espécie de diário ou livro de viagens, as diferentes etapas da caminhada pelo deserto. Finalmente, Dt 31, 9.24 alude a Moisés como escritor da Torá (LÓPEZ, 2002, p. 32). No entanto, algumas das indicações anteriores, segundo López (2002), nos convidam muito mais a pensar que Moisés não pode ser o único autor de todo o Pentateuco. Já Ibn Ezra (+1167) advertiu que Dt 31, 9 se refere a Moisés na terceira pessoa (“Moisés escreveu”), quando o normal seria que o fizesse em primeira pessoa se fosse o autor do livro do Deuteronômio. Cabe duvidar, assim mesmo, que se Josefo e Filón se viram na necessidade de afirmar que Moisés escreveu o relato de sua morte é porque havia boas razões para duvidar disso. Não é estranho, pois, que o Talmud o coloque em dúvida, ao mesmo tempo nos indica que o Dt 34, 5-12 foi acrescentado por Josué. Ibn Ezra aponta para outras possibilidades adicionais à Torá, posteriores a Moisés. Mas tanto ele como os demais comentaristas medievais aceitaram a tradição mosaica do Pentateuco. “A exegese pré-crítica é fundamentalmente a-histórica. Interessa-se sobretudo pelas ideias teológicas, subjacentes nos textos. O problema do autor o admite pacificamente, sem deter-se em sua discussão” (LÓPEZ, 2002, p. 32). De acordo com os estudos histórico-críticos clássicos, a crítica histórica se caracteriza pela utilização dos métodos histórico-críticos. Estes métodos têm como principal objetivo analisar o processo da formação dos textos. Para isso, servem-se UNIDADE 1 | INTRODUÇÃO PARA A COMPREENSÃO DO ANTIGO TESTAMENTO 12 de critérios “científicos”, buscando então a maior objetividade possível. Trata-se, assim, de analisar os textos bíblicos com os mesmos métodos empírico-racionais empregados para o estudo de outros textos antigos. O Iluminismo supôs uma mudança de orientação: os textos bíblicos começaram a ser considerados como textos do passado muito mais que textos inspirados. Mas, concretamente, que tipo de textos formam o Pentateuco? Em seguida saltaram aos olhos as duplicações, as repetições, as tensões, as mudanças frequentes de estilo etc., que teriam que pensar que o Pentateuco não podia ser obra de um só autor. Ao precaver-se da complexidade dos textos, a crítica literária, primeiro, e a crítica da forma, em seguida, se perguntaram: como pode um só autor ter escrito isto? Mas a crítica literária e a da forma não são mais que as primeiras etapas de um processo que, com o passar do tempo, desembocou na crítica dastradições e na crítica da redação. Todas juntas constituem os métodos histórico-críticos (LÓPEZ, 2002, p. 32-33). De acordo com López (2002), a primeira tarefa da crítica literária consiste em determinar se um texto é homogêneo ou não, isto é, se dentro dele há a presença de um ou mais autores de acordo com o estilo literário etc. Assim, conclui que a literatura bíblica não é uma literatura moderna, cuja unidade não é colocada. Na Bíblia hebraica, ao lado dos textos perfeitamente acabados e coerentes, com uma unidade inegável, há a presença de outros compostos. Neste caso, a crítica literária se preocupa em separar os elementos acrescentados dos originais, determinando a unidade ou heterogeneidade do texto. As análises da crítica literária conduziram para soluções muito diferentes, a saber: O Tostado e Simon: Alfonso de Madrigal (ca. 1410-1455), conhecido como O Tostado, marca o final da época pré-crítica e permite prever o início do período crítico. O Tostado se interessou pelas novas correntes humanísticas do Renascimento, nas quais surgiu a Poliglota Complutense, qualificada de peça mestra [...] (LÓPEZ, 2002, p. 33). López (2002) conclui que se pode considerar que Simon (1638-1712) foi o verdadeiro inaugurador da crítica bíblica moderna. Na sua obra Historie critique du Vieux Testament (1678), observa a existência de duplicações, tensões, mudanças de estilo e outra série de aspectos formais e temáticos, que seriam os critérios sobre os quais seriam trabalhados normalmente pela crítica literária. Essas observações, segundo ele, vêm a confirmar as dúvidas de que Moisés não pode ter sido o autor do Pentateuco. Simon defende que no Pentateuco existem fontes, anteriores a Moisés, e acréscimos (adições) posteriores a ele. Em sintonia com O Tostado e avançando sobre o que foi apontado por esse autor, reconhece a Esdras como o compilador do Pentateuco. Segundo Simon, uma verdadeira cadeia de “escritores públicos”, que trabalharam desde a época de Moisés até a de Esdras, foram registrando os principais acontecimentos da História de Israel, assim como os textos legislativos que foram sendo transmitidos de geração para geração até a sua definitiva compilação por Esdras (LÓPEZ, 2002, p. 34). TÓPICO 1 | COMPOSIÇÃO DO PENTATEUCO 13 Hipótese documentária antiga encabeçada por Witter e Astruc aponta que, em algumas passagens do Pentateuco, Deus se chama Elohim, enquanto que em outras é chamado de Javé. Witter limita seu estudo aos primeiros capítulos do livro do Gênesis. Astruc, de outra forma, estende esse trabalho para todo o restante do livro do Gênesis e aos primeiros capítulos do livro do Êxodo. E é dessa aplicação do critério da mudança dos nomes divinos que surge então a hipótese documentária da formação do Pentateuco, ou seja, a existência de dois documentos, o documento elohista e o documento javista, ao menos nas seções analisadas por estes pesquisadores. De acordo com López (2002, p. 34), “além das duas fontes ou documentos principais, Astruc admitia a existência de outras fontes secundárias. Moisés serviu-se de outras formas para compor o Pentateuco”. A hipótese dos fragmentos surgida no final do século XVIII, que corresponde aos pesquisadores Geddes e Vater, recebeu os primeiros impulsos da dificuldade de se encontrar fontes contínuas que estejam fora do livro do Gênesis, sobretudo nas partes legais do Pentateuco. Os seus expoentes máximos foram Geddes, em 1792, e Vater, em 1802-1805. Segundo Geddes, o Pentateuco é uma coleção de fragmentos mais ou menos longos, que são independentes entre si e sem continuidade, cuja colocação atual se deve a dois grupos diferentes de recompiladores: o elohista e o javista. E Vater centraliza a sua atenção na “Lei”, pois a considera como sendo o fundamento do Pentateuco. O núcleo dessa lei se encontrava no livro do Deuteronômio, composto na época davídico- salomônica e redescoberto e reeditado na época de Josias. Embora essa hipótese esclarecesse vários problemas do Pentateuco, especialmente das seções legais, deixava sem explicação muitos outros, sobretudo das seções narrativas menos fragmentadas (LÓPEZ, 2002, p. 35). A hipótese dos complementos firmada por Kelle e Ewald é contrária à hipótese dos fragmentos. Isso se dá pelo fato de Ewald afirmar uma certa unidade na trama narrativa do Pentateuco. Porém, não desconsiderava certas divergências nos textos. Por isso pensou que a melhor forma de explicar a composição do Pentateuco era aceitar “um escrito fundamental” (elohista, que em seguida receberia o nome de sacerdotal), completado pela adição de outros textos (LÓPEZ, 2002). A hipótese da datação proposta por Wette afirma que não basta distinguir os documentos, é preciso datá-los. O grande feito de Wette (1780-1849) está em ter identificado o “Livro da lei”, que foi encontrado no templo na época de Josias (2Rs 22), com o livro do Deuteronômio e sabiamente utilizar esse livro como sendo a base para a datação do Pentateuco (LÓPEZ, 2002). Para ele, as medidas adotadas por Josias como consequência da descoberta do “Livro da lei”, em especial as da centralização do culto, se correspondem com as leis deuteronomistas (comparar 2Rs 23, 4-20 com Dt 12-26). A centralização do culto se transforma no “ponto arquimédico” (Eissfeldt) para a datação do Pentateuco: as leis que pressupõem a centralização do culto são contemporâneas ou posteriores à reforma de Josias (622 a.C.); e não anteriores (LÓPEZ, 2002, p. 34-35). UNIDADE 1 | INTRODUÇÃO PARA A COMPREENSÃO DO ANTIGO TESTAMENTO 14 Já a nova hipótese documentária fundada por Hupfeld, Graf e Wellhausen, é entendida como um estudo feito sobre “as fontes do livro do Gênesis” (1853). Hupfeld propôs uma nova versão para a antiga hipótese documentária. Ele concluiu que a fonte elohista não é homogênea, o que o levou a distinguir então três diferentes fontes presentes na autoria do Livro do Gênesis: E1, E2 e J. A primeira fonte (E1), que mais tarde se identificou como fonte Sacerdotal P, é a fundamental, pois contém a essência da “Lei”. E2, como sendo a fonte elohista, é uma fonte independente e que surgiu posteriormente, como também ocorreu com a fonte J (Javista), sendo esta última considerada a mais antiga das três fontes literárias que compõem o Pentateuco (LÓPEZ, 2002). O desdobramento da fonte elohista, segundo López (2002), foi considerada um passo importante na crítica literária, pois vinha reconhecer que o nome divino Elohim não bastava, por si só, para atribuir alguns textos a um documento. Uma operação desse gênero teria sido puramente mecânica. Mas a crítica literária não tem apenas um caráter técnico, é também uma arte, que requer uma sensibilidade educada e habituada para aplicar adequadamente os critérios que permitam decidir quando uma peça é homogênea ou não. Como um excelente crítico, Hupfeld não se limitou a separar alguns textos uns dos outros, mas analisou-os cuidadosamente em seus vocabulários, estilos, conteúdos etc., chegando à conclusão de que nem todos os textos que utilizam o nome Elohim pertencem ao mesmo autor ou documento. Apresentando então um novo caminho, bastante significativo, ao afirmar que a união das três fontes literárias que compõem o Pentateuco numa só obra se deve a um redator, cujo trabalho consistiu em ordenar e unir os textos das três fontes. Graf aceitou a hipótese proposta por Hupfeld, mas mudou a ordem e a datação das fontes, apoiando-se em algumas observações de seu mestre E. Reuss. Numa obra sobre “os livros históricos do Antigo Testamento” (1886), Graf observa que nem o livro do Deuteronômio, nem os livros históricos de Josué-Reis, nem os livros proféticos pré-exílicos oferecem indícios claros de haver conhecido as leis sacerdotais do Pentateuco (argumento do silêncio). Estas, juntamente com seu marco narrativo, deviam ser datadas, consequentemente, numa época exílica ou pós- exílica. Desta observação, e para estes estudos, colaboraram outros contemporâneosseus, chegando à conclusão de que o documento sacerdotal (= E1/P) era o mais recente e J, o mais antigo (LÓPEZ, 2002, p. 36-37). Outro importante pesquisador da formação e composição do Pentateuco, segundo López (2002), foi Wellhausen. Este escreveu duas obras muito influentes na investigação do Pentateuco: uma sobre a composição do Hexateuco e outra sobre a História de Israel. No final da primeira, sintetiza desta forma a composição do Hexateuco: da fonte literária javista e eloista surgiu JE a fonte literária Jeovista. E esta última uniu-se com a fonte literária D; e a fonte literária Q (= P) é uma obra independente. Ampliada como Código Sacerdotal, Q se uniu com JE + D, de onde surgiu o Hexateuco. De acordo com esse esquema, o Hexateuco consta de quatro diferentes fontes ou documentos de diferentes épocas, o J (Javista/Iavista) e E (Elohista), sendo que as mais antigas serviram de base para o Jeovista (JE), uma composição literário-redacional do século VIII. E a fonte D (= Deuteronômio) TÓPICO 1 | COMPOSIÇÃO DO PENTATEUCO 15 corresponde à época de Josias, enquanto que a fonte sacerdotal pertence à época pós-exílica. A redação final do Pentateuco foi realizada no contexto da reforma de Esdras. Wellhausen colocou em destaque, como ninguém o teria feito até este momento, o substrato histórico dos textos do Hexateuco, com repercussões consideráveis para o modo de conceber a evolução da religião de Israel. Interessava-lhe em especial a evolução das instituições cultuais, refletidas nas fontes (LÓPEZ, 2002, p. 37). Um aspecto fundamental da exegese crítica é o estudo das formas literárias. Pois a forma é individual e concreta, sendo o próprio texto em particular, enquanto o gênero é abstrato, sendo um tipo de texto. Na literatura real não existem mais que as formas; o gênero é um resultado teórico da ciência, uma forma “ideal” ou “típica”. Quando duas ou mais unidades, literariamente independentes, apresentam uma forma idêntica ou similar em sua constituição, se pode falar de um “Gênero”. Muitos textos do Antigo Testamento foram compostos originariamente para uma ocasião determinada e específica. A análise das formas textuais busca determinar qual a situação e quais as circunstâncias vitais em que os textos surgiram. O estudo da tradição consiste fundamentalmente na análise da pré- história dos textos. O termo tradição designa um conteúdo oral ou escrito que se transmite de uma geração para outra, no sentido apresentado em 1Cor 15, 3-4. Uma tradição pode ser narrativa, legislativa etc. A crítica das tradições deve começar pela forma dos textos; pressupõe, pois, a crítica da forma. Os dois aspectos metodológicos estão muito próximos entre si. Gunkel se interessou sobretudo pela forma dos textos, mas os seus estudos deram as bases para a crítica das tradições. Esta adquiriu maior peso na obra de Von Rad e de Noth (LÓPEZ, 2002, p. 38-39). De acordo com López (2002), para a formulação dessas tradições, o Israel pré-monárquico serviu-se de cinco temas considerados fundamentais, como: a saída do Egito, a entrada na terra prometida, a promessa feita aos patriarcas, a caminhada de 40 anos pelo deserto e a Aliança no Monte Sinai. Esses temas foram se unindo e enriquecendo e transformando-se progressivamente com a integração de outras tradições secundárias, como: as pragas do Egito e a Páscoa, episódios da conquista, Jacó em Siquém e na Transjordânia, Isaac e Abraão, a montanha de Deus e os madianitas etc. Tanto os temas fundamentais como os secundários remontam a tradições orais de tipo cultual e popular. A sua fixação por escrito se deve aos autores das fontes do Pentateuco, que lhes imprimiram os seus próprios aspectos literários e teológicos. As semelhanças e diferenças entre J e E o levam a pensar num “documento básico” comum às duas fontes. Por sua vez, a fonte P é essencialmente narrativa; em princípio continha poucas leis. A fonte P serviu de armadura para a redação final do Pentateuco (LÓPEZ, 2002, p. 40). A autoria do Pentateuco é tradicionalmente conferida a Moisés pelo senso comum, pelo fato de o próprio judaísmo e cristianismo antigo terem atribuído a autoria a este personagem do povo hebreu. Atualmente, entende-se que a nenhum dos livros do Pentateuco pode-se atribuir a autoria de um único autor e muito UNIDADE 1 | INTRODUÇÃO PARA A COMPREENSÃO DO ANTIGO TESTAMENTO 16 menos a autoria ao próprio Moisés. Pois além das referências diretas a Moisés, os livros que compõem o Pentateuco possuem sequências temáticas em que descrevem o surgimento do povo de Israel. Pode-se dizer, portanto, que “o estado de Moisés no deserto é o primeiro modelo verificado de poder que integra a seu funcionamento o controle ideológico e a manipulação do consenso” (CHATELET; DUHANEL; PISIER; 1993, p. 833). No Pentateuco, a citação de dois nomes diferentes para tratar sobre Deus (Javé e Elohim) levou o pastor alemão H. B. Witter (1711) a sugerir duas fontes distintas que foram então transmitidas a Moisés pela própria tradição oral. Assim, esse critério para os dois nomes dados a Deus foi somente explorado por Astruc e por Eichhorn a partir de 1760. Esses dois pesquisadores apresentaram a tese de que se deve distinguir dois documentos. Um que adotaria o nome Javé e o outro Elohim. E que ambos seriam então apresentados por Moisés. “Embora não se afirme no próprio conjunto do Pentateuco que este haja sido escrito por Moisés em sua totalidade, outros livros do Antigo Testamento citam-no como sendo obra dele, como podemos conferir em: Js 1, 7-8; 23, 6; 1Re 2, 3; 2Re 14, 6; Ed 3, 2; Ne 8, 1; Dn 9, 11-13” (GAZZI, 2013, p. 67). Muitas partes importantes do Pentateuco são atribuídas a Moisés (Êx 17, 14; Dt 31, 24-26). No entanto, os escritores do Novo Testamento estão de acordo com os escritores do Antigo Testamento em confirmar a autoria mosaica do Pentateuco. Falam dos cinco livros em geral como “a Lei de Moisés” (At 13, 39; 15, 5; Hb 10, 28). Para eles, “ler o livro de Moisés” equivale a ler os livros que formam o conjunto do Pentateuco (GAZZI, 2013). Moisés, mais do que qualquer outro homem, tinha preparo, experiência e gênio que o capacitavam para escrever o Pentateuco. Considerando- se que foi criado no palácio dos faraós (At 7, 22: “foi instruído em toda a ciência dos egípcios; e era poderoso em suas palavras e obras”), foi testemunha ocular dos acontecimentos do êxodo e da peregrinação no deserto. Mantinha a mais íntima comunhão com Deus e recebia revelações especiais. Como hebreu Moisés tinha acesso às genealogias bem como às tradições orais e escritas de seu povo, e durante os longos anos da peregrinação de Israel, teve o tempo necessário para meditar e escrever. E, sobretudo, possuía notáveis dons e gênio extraordinário, do que dá testemunho de seu papel como líder, legislador e profeta (GAZZI, 2013, p. 67). Porém, a partir disso, diferentes questões foram levantadas acerca da transmissão, a forma de como foram transmitidos e de que maneira devem ser imaginados esses documentos transmitidos por Moisés e o que esses documentos continham e como foram reunidos para a formação do Pentateuco. Surgiram então três hipóteses para buscar responder a essas interrogações e tentar explicar a presença de partes literárias de diferentes origens nos mesmos relatos: a hipótese “documentária”, a hipótese dos “fragmentos” e a hipótese dos “complementos”. TÓPICO 1 | COMPOSIÇÃO DO PENTATEUCO 17 A teoria documentária aponta que existem no fundamento do Pentateuco até quatro formas de tramas narrativas que são contínuas e que foram redigidas em épocas diferentes, com meios e formas diferentes, sucessivamente por diferentes redatores e sendo então justapostas. Essa questão foi apresentada, porém a solução para a questão da formação do Pentateuco não acabou sendo esclarecida e definida. A Teoria Documentária da Alta Crítica afirma que os primeiros cinco livros da Bíblia são uma compilação de documentos redigidos, emsua maior parte, no período de Esdras (444 a.C.). No entender dos autores dessa teoria, o documento mais antigo que se encontra no Pentateuco data do tempo de Salomão (GAZZI, 2013). Durante os séculos XVIII e XIX, nas universidades alemãs, foram aplicados à Bíblia métodos de investigação e de análise que os historiadores haviam desenvolvido para reconstruir o passado. Procuraram descobrir a data de cada livro, seu autor, seu propósito e as características do estilo e da linguagem. Perguntaram-se: Quais são as fontes originais dos documentos bíblicos? São dignas de confiança? Qual é o significado e o fundo histórico de cada um deles? A este movimento deu-se o nome de Alta Crítica. A Baixa Crítica, por outro lado, é a que se ocupa do estudo do texto em si. Observa os manuscritos existentes para estabelecer qual o texto mais aproximado do original. Suas investigações têm deixado textos muito exatos e dignos de confiança. A crítica bíblica, tanto a textual como a alta, pode lançar muita luz sobre as Escrituras se aplicada com reverência e erudição. Os pais da Igreja, os reformadores e os eruditos evangélicos têm realizado tais estudos com grande benefício. Não obstante, os críticos alemães, sob a influência do racionalismo daquele tempo, chegaram a conclusões que, comprovadas, poderiam destruir toda a confiança na integridade das Escrituras: Os críticos alemães aproximaram-se do estudo da Bíblia com certos pressupostos ou preconceitos: 1) Rejeitaram todo o elemento milagroso. Isto é, para eles a Bíblia não é inspirada por Deus, porém um livro a mais, um livro como outro qualquer. 2) Aceitaram a teoria ideada pelo filósofo Hegel de que a religião dos hebreus tinha seguido um processo evolutivo. Segundo esta teoria, no princípio Israel acreditava em muitos espíritos, depois foi desenvolvendo a crença em um só Deus, e mais tarde chegou à fase sacerdotal. Também o culto hebreu evoluiu quanto aos seus sacrifícios, suas festas sagradas e seu sacerdócio (GAZZI, 2013, p. 68-69). De acordo com Gazzi (2013), os críticos racionalistas desenvolveram a teoria de que o Pentateuco não foi escrito por Moisés, mas é uma recompilação de documentos redigidos, em sua maior parte, no século V a.C. Jean Astruc (1753), professor de medicina em Paris, iniciou esta teoria, notando que se usava o nome “Eloim” (Deus) em algumas passagens do Gênesis, e “Jeová” em outras. Para Astruc, isto era prova de que Moisés havia usado dois documentos como UNIDADE 1 | INTRODUÇÃO PARA A COMPREENSÃO DO ANTIGO TESTAMENTO 18 fontes, cada um com sua maneira especial de designar a Deus, para escrever o Gênesis. Mais tarde, os estudiosos alemães descobriram o que lhes pareciam certas repetições, diferenças de estilo e discordância nas narrativas. Chegaram à conclusão de que Moisés não escreveu o Pentateuco; o escritor foi um redator desconhecido que empregou várias fontes ao escrevê-lo. Para fins do século XIX, Julius Wellhausen e Karl H. Graf desenvolveram a “Hipótese Graf-Wellhausen”, que foi aceita como a base fundamental da Alta Crítica. Usaram a teoria da evolução religiosa de Israel como um dos meios para distinguir os supostos documentos que constituiriam o Pentateuco. Também a utilizaram para datar esses documentos. Por exemplo, se lhes parecia que determinado documento tinha uma teologia mais abstrata do que outro, chegavam à conclusão de que havia sido redigido em data posterior, já que a religião ia ficando cada vez mais complicada. De modo que estabeleceram datas segundo a medida de desenvolvimento religioso que eles imaginavam. Relegaram o livro de Gênesis, em sua maior parte, a uma coleção de mitos cananeus, adaptados pelos hebreus. (GAZZI, 2013, p. 68-69). Wellhausen e Graf denominaram os supostos documentos da seguinte maneira (GAZZI, 2013, p. 68-69): 1) O “Jeovista” (J), que prefere o nome Jeová. Teria sido redigido possivelmente no reinado de Salomão e considerado o mais antigo. 2) O “Eloísta” (E), que designa a Deus com o nome comum de Eloim. Teria sido escrito depois do primeiro documento, por volta do século VIII a.C. 3) O Código Deuteronômico (D) compreenderia todo o livro de Deuteronômio. Teria sido escrito no reinado de Josias pelos sacerdotes, que usaram esta fraude para promover um despertamento religioso (2Rs 22, 8). 4) O Código Sacerdotal (P) é o que coloca especial interesse na organização do tabernáculo, do culto e dos sacrifícios. Poderia ter adquirido corpo durante o cativeiro babilônico, e forneceu o plano geral do Pentateuco. Consideraram que os documentos, com exceção do “D”, correm paralelamente através dos primeiros livros do Pentateuco. A obra final teria sido redigida no século V a.C., provavelmente por Esdras. Esta especulação de Wellhausen e Graf chama-se “A Teoria Documentada, J.E.D.P.”. Os eruditos conservadores rejeitam de plano a teoria documentária J. E. D. P. Dizem que os títulos de Deus não estão distribuídos no Gênesis de maneira tal que se possa dividir o livro como sustentam os da teoria documentária. Por exemplo, não se encontra o nome de Jeová em 17 capítulos, mas os críticos atribuem porções de cada um desses capítulos ao documento “Jeovista”. Além do mais, não deve causar-nos estranheza que Moisés tenha designado a Deus com mais de um título. No Corão (livro sagrado dos mulçumanos), há algumas passagens que empregam o título divino “Alá” e outros “Rabe”, e nem por isso se atribui o Corão a vários autores. TÓPICO 1 | COMPOSIÇÃO DO PENTATEUCO 19 E que dizer então quanto aos relatos duplicados e contraditórios que os críticos supostamente encontram em Gênesis? Os conservadores explicam que alguns são compilações, tais como as ordens de que os animais entrem na arca (Gn 6, 19 e 7, 2); o primeiro era uma ordem geral e o segundo dá um entalhe adicional. Os dois relatos da criação (Gn 1, 1-2, 4a e 2, 4b-2, 25) são suplementares. O primeiro apresenta a obra geral da criação, e o segundo dá o enfoque do homem e seu ambiente. Também, chamam a atenção certas diferenças de linguagem, estilo e ponto de vista entre os diferentes documentos. Contudo, estes juízos são muito subjetivos. Não nos deve estranhar que quando Moisés escreveu as partes legais e cerimoniais tenha empregado um vocabulário e estilo um tanto diferentes do que empregou nas partes históricas. Ademais, Gordan Wenham, erudito contemporâneo, versado em Antigo Testamento, diz que as diferenças de estilo, usadas para distinguir as fontes do Pentateuco, já não têm significado à luz das antigas convenções literárias. Diz outro erudito moderno, R. K. Harrison, que inclusive certo defensor da Alta Crítica admite que “as diferenças são poucas e podem ser classificadas como acidentais” (GAZZI, 2013, p. 70-71). Os arqueólogos descobriram muitíssimas evidências que confirmam a historicidade de grande parte do livro do Gênesis e por isso já não se pode denominá-lo “uma coleção de lendas cananeias adaptadas pelos hebreus”. Mas não encontraram prova alguma de supostos documentos que tenham existido antes do Pentateuco. Muitos estudiosos conservadores acham provável que Moisés, ao escrever o livro do Gênesis, tenha empregado genealogias e tradições escritas (Moisés menciona especificamente “o livro das gerações de Adão”, em Gn 5, 1). William Ross observa que o tom pessoal que encontramos na oração de Abraão a favor de Sodoma, no relato do sacrifício de Isaque, e nas palavras de José ao dar-se a conhecer a seus irmãos, “é precisamente o que esperaríamos, se o livro de Moisés fosse baseado em notas biográficas anteriores”. Provavelmente, essas valiosas memórias foram transmitidas de uma geração para outra desde os tempos muito remotos. Não nos cause estranheza que Deus possa ter guiado Moisés a incorporar tais documentos em seus escritos. Seriam igualmente inspirados e autênticos (GAZZI, 2013, p. 71). Também pelas referências feitas com relação a certos materiais do tabernáculo, deduzimos que o autor conheciaa península do Sinai. Por exemplo, as peles de texugos se referem, segundo certos eruditos, às peles de um animal da região do Mar Vermelho; a “onicha”, usada como ingrediente do incenso (Êx 30, 34) era da concha de um caracol da mesma região. Evidentemente, as passagens foram escritas por alguém que conhecia a rota da peregrinação de Israel e não por um escritor no cativeiro babilônico, ou na restauração, séculos depois. Do mesmo modo, os conservadores mostram que o Deuteronômio foi escrito no período de Moisés. O ponto de referência do autor do livro é o de uma pessoa que ainda não entrou em Canaã. A forma em que está escrito é a dos tratados entre os senhores e seus vassalos do Oriente Médio no segundo milênio antes de Cristo. Por isso, estranhamos que a Alta Crítica tenha dado como data destes livros setecentos ou mil anos depois (GAZZI, 2013, p. 72-73). UNIDADE 1 | INTRODUÇÃO PARA A COMPREENSÃO DO ANTIGO TESTAMENTO 20 A arqueologia também confirma que muitos dos acontecimentos do livro de Gênesis são realmente históricos. Por exemplo, os pormenores da tomada de Sodoma, descrita no capítulo 14 do Gênesis, coincidem com assombrosa exatidão com o que os arqueólogos descobriram. (Nisto se incluem: os nomes dos quatro reis, o movimento dos povos, e a rota que os invasores tomaram, chamada “caminho real”. Depois do ano 1200 a.C., a condição da região mudou radicalmente, e essa rota de caravanas deixou de ser utilizada). O arqueólogo Albright declarou que alguns dos detalhes do capítulo 14 nos levam de volta à Idade do Bronze (período médio, entre 2100 e 1560 a.C.). Não é muito provável que um escritor que vivesse séculos depois conhecesse tais detalhes. Além do mais, nas ruínas de Mari (sobre o rio Eufrates) e de Nuzu (sobre um afluente do rio Tigre) foram encontradas tábuas de argila da época dos patriarcas. Nelas se descrevem leis e costumes, tais como as que permitiam que o homem sem filhos desse sua herança a um escravo (Gn.15.3), e uma mulher estéril entregasse sua criada a seu marido para suscitar descendência (Gn 16. 2). Do mesmo modo, as tábuas contêm nomes equivalentes ou semelhantes aos de Abraão, Naor (Nacor), Benjamim e muitos outros. Por isso, tais provas refutam a teoria da Alta Crítica de que o livro do Gênesis é uma coletânea de mitos e lendas do primeiro milênio antes de Cristo. A arqueologia demonstra cada vez mais que o Pentateuco apresenta detalhes históricos exatos, e que foi escrito na época de Moisés. Há razão ainda para duvidar de que o grande líder do êxodo foi seu autor? (GAZZI, 2013, p. 73). De acordo com Gazzi (2013, p. 74), é percebível que o conjunto do Pentateuco com frequência se refere a Moisés como sendo o seu autor, a começar pelo Livro do Êxodo em 17, 14: “Então, disse o SENHOR a Moisés: Escreve isto para memória num livro e repete-o a Josué, porque eu hei de riscar totalmente a memória de Amaleque de debaixo do céu”. E em Êxodo 24, 4 lemos: “Moisés escreveu todas as palavras do SENHOR [...]”. Lemos, ainda, no versículo 7: “E tomou o livro da aliança e o leu ao povo [...]”. Outras referências ao fato de Moisés ter escrito o Pentateuco encontram-se em Êxodo 34, 27, Números 33, 1-2 e Deuteronômio 31, 9, das quais, na última temos: “Esta lei, escreveu-a Moisés e a deu aos sacerdotes [...]”. Dois versículos adiante encontramos uma exigência severa a respeito do futuro: “[...] quando todo o Israel vier a comparecer perante o SENHOR, teu Deus, no lugar que este escolher, lerás esta lei diante de todo o Israel”. Essa norma sabidamente percorre Êxodo, Levítico, Números e a maior parte de Deuteronômio. Mais tarde, após a morte de Moisés, o Senhor deu estas instruções a Josué, sucessor de Moisés: “Não cesses de falar deste livro da lei; antes, medita nele dia e noite, para que tenhas cuidado a fazer segundo tudo quanto nele está escrito; então, farás prosperar o teu caminho e serás bem-sucedido” (Js 1, 8). Negar a autoria de Moisés significa que todos os versículos acima citados são infundados e indignos de aceitação. Josué 8, 32-34 registra que a congregação de Israel estava reunida fora da cidade de Siquém, no sopé do monte Ebal e do monte Gerizim, quando Josué leu em voz alta a lei de Moisés, escrita em tábuas de pedra, e os trechos de Levítico e de Deuteronômio referentes às bênçãos e às maldições, como Moisés havia feito anteriormente (Dt 27, 28). Se a hipótese documentária estiver correta, esse relato também deve ser rejeitado por se tratar de mera invencionice. Outras referências do TÓPICO 1 | COMPOSIÇÃO DO PENTATEUCO 21 Antigo Testamento à autoridade mosaica do Pentateuco são 1Rs 2, 3; 2Rs 14, 6; 21, 8; Ed 6, 18; Ne 13, 1; Dn 9, 11-13 e Ml 4, 4. Todos esses testemunhos também deveriam ser totalmente rejeitados por se tratar de erros. (GAZZI, 2013, p. 74). Cristo e os seus Apóstolos também confirmaram a autoria do Pentateuco (Torá) a Moisés, pois podemos confirmar no Livro de João (BÍBLIA DE JERUSALÉM, João, 5, 46-57), em que Jesus disse: “Porque, se de fato crêsseis em Moisés, também creríeis em mim; porquanto ele escreveu a meu respeito. Se, porém, não credes nos seus escritos, como crereis nas minhas palavras?”. Deverás! De maneira semelhante, em João 7, 19 Jesus afirmou que: “Não vos deu Moisés a Lei? Contudo, ninguém dentre vós a observa [...]”. Cristo é personagem histórico. Não podemos negar a sua existência, não pelo fato de termos os relatos que a comprovam, mas sim de existir as provas materiais de documentos históricos da época que comprovam a sua existência, caso o testemunho oral não for o suficiente. Se a confirmação de Cristo de que Moisés foi de fato o autor do Pentateuco é descartada – como de fato o faz a teoria da crítica moderna –, segue-se indubitavelmente a negação da autoridade do próprio Cristo. Pois, se o Senhor estava enganado a respeito de uma verdade factual e histórica desse tipo, poderia enganar-se também a respeito de princípios e doutrinas que estivesse ensinando. (GAZZI, 2013, p. 74). Em Atos 3, 22 Pedro diz a seus compatriotas: “Disse, na verdade, Moisés: O Senhor Deus vos suscitará dentre vossos irmãos um profeta semelhante a mim; a ele ouvireis em tudo quanto vos disser” (BÍBLIA DE JERUSALÉM, Atos, 3, 22). Afirmou Paulo em Romanos 10, 5: “Ora, Moisés escreveu que o homem que praticar a justiça decorrente da lei viverá, por ela”. Mas a teoria J.E.D.P., de Wellhausen, e a crítica moderna racionalista negam que Moisés tenha escrito quaisquer destas coisas. Isso significa que Cristo e os apóstolos estavam totalmente enganados ao julgarem que Moisés as tenha escrito de fato. Um erro dessa categoria, tratando-se de fatos históricos que podem ser testados, levanta séria dúvida quanto a poderem os ensinos teológicos que tratam de assuntos metafísicos fora de nossa capacidade de comprovação, ser aceitos como dignos de confiança ou cheios de autoridade. Assim vemos que a questão da autenticidade de Moisés como escritor do Pentateuco é assunto da maior importância para o cristão. A autoridade do próprio Cristo está em jogo nessa questão (GAZZI, 2013, p. 75). De acordo com Gazzi (2013), além dos testemunhos de personagens existentes no Novo Testamento afirmarem a autoria de Moisés, existe também no próprio Pentateuco o testemunho de acontecimentos ou questões da época, de situações sociais ou políticas ou de assuntos relacionados ao clima ou à geografia. Podemos então conferir algumas delas, como: o clima e as condições atmosféricas citadas no Livro do Êxodo são tipicamente egípcios, não da região da Palestina; as árvores e os animais a que se faz referência no Livro do Êxodo até o Livro do Deuteronômio são todos naturais do Egito ou da península do Sinai, e nenhum deles se encontra na região da Palestina. A árvore chamada acácia é nativa do Egito e do Sinai, mas não encontrada na região de Canaã, a não ser em parte ao redor do Mar Morto. UNIDADE 1 | INTRODUÇÃO PARA A COMPREENSÃO DO ANTIGO TESTAMENTO 22 Para
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