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Biblioteca online – sem valor comercial. Proibida a venda e a reprodução. 0 Textos extraídos do livro: Economia e Gestão em Saúde, de Paola Zucchi e Marcos Bosi Ferraz. Biblioteca online – sem valor comercial. Proibida a venda e a reprodução. 1 Sumário Introdução...................................................................................................................... 2 Parte 1 Medidas e Evidências em Saúde................................................................................... 3 Capítulo 1: Medidas e Evidências em Saúde.................................................................. 3 Capítulo 2: Do Outro Lado do Balcão............................................................................. 9 Parte 2 Serviços de Saúde e sua Regulação.............................................................................. 16 Capítulo 3: A Política de Saúde no Brasil....................................................................... 16 Capítulo 4: O Sistema Privado de Saúde no Brasil......................................................... 33 Capítulo 5: Regulação e Fiscalização da Saúde Suplementar......................................... 39 Parte 3 Fundamentos da Teoria Econômica e Avaliação em Saúde...................................... 52 Capítulo 6: Fundamentos da Teoria Econômica I- Microeconomia............................... 52 Capítulo 7: Fundamentos da Teoria Econômica II- Macroeconomia............................. 66 Capítulo 8: Avaliação Econômica em Saúde.................................................................. 79 Capítulo 9: Avaliação de Tecnologias para a Saúde....................................................... 89 Referências..................................................................................................................... 105 Atividades Avaliativas................................................................................................... 107 Textos extraídos do livro: Economia e Gestão em Saúde, de Paola Zucchi e Marcos Bosi Ferraz. Biblioteca online – sem valor comercial. Proibida a venda e a reprodução. 2 Introdução Caros alunos, Em nosso meio, é bastante frequente a utilização de guias ou manuais procedentes de instituições universitárias internacionais para a consulta rápida e objetiva de jovens estudantes de medicina, residentes e profissionais da área da saúde. Entretanto, apesar de a procedência dessa literatura ter inquestionável valor científico, raramente está adaptada à realidade médica de nosso país, apresentando diferenças relacionadas à disponibilidade dos meios de diagnóstico e de medicamentos, à incidência e à importância de determinadas doenças. Sem dúvida, a continentalidade do Brasil é um fator relevante, que deve ser considerado no desenvolvimento de estudos e pesquisas médicas de estudantes e profissionais. Este estudo foi organizado em três partes: Medidas e Evidências em Saúde; Serviços de Saúde e sua Regulação; Fundamentos da Teoria Econômica e Avaliação em Saúde; abrangendo aspectos relevantes como: o custo e o gerenciamento de doenças; tendências da política de saúde no país e micro e macroeconomia. Ao longo dos capítulos, são abordados aspectos significativos, como a política de saúde e o sistema privado de atendimento no Brasil, com sua necessária regulação e fiscalização da saúde suplementar. Chamamos a atenção para o fato de que, por meio de uma abordagem moderna, mas acessível aos profissionais da área, são apresentados dados essenciais para o entendimento econômico, como fundamentos da teoria econômica, microeconomia e macroeconomia. São abordados ainda aspectos importantes como a avaliação econômica em saúde e a avaliação de suas tecnologias, temas de abrangência nacional. Desejamos a todos, bons estudos! Textos extraídos do livro: Economia e Gestão em Saúde, de Paola Zucchi e Marcos Bosi Ferraz. Biblioteca online – sem valor comercial. Proibida a venda e a reprodução. 3 Parte 1 Medidas e Evidências em Saúde Capítulo 1 Medicina e Evidências em Saúde INTRODUÇÃO A medicina baseada em evidências (MBE) é o uso consciente, explícito e criterioso da melhor evidência para a tomada de decisão sobre o cuidado de um paciente. Isso significa integrar a experiência individual com a melhor evidência clínica disponível de pesquisas científicas (Sackett et aí., 1996). A prática médica tradicional era baseada na observação, conhecimento e experiência pessoal não sistematizada. Esses fatores permanecem essenciais, mas insuficientes, devendo ser associados a resultados de pesquisas clinicamente relevantes, com métodos adequados para responder uma questão clínica. A prática da medicina baseada em evidências requer novas habilidades, incluindo a busca eficiente da literatura científica e a aplicação de regras de avaliação dessa literatura. Sua prática está baseada nas seguintes etapas: • formulação da pergunta, ou seja, da questão clínica sobre a qual há necessidade de informação: prevenção, tratamento, diagnóstico e causa; • busca eficiente da literatura científica para identificação da melhor evidência para responder a pergunta; • o seleção das melhores e mais relevantes pesquisas clínicas; o análise crítica da evidência quanto à validade, ao impacto e à aplicabilidade; • integração das evidências com os valores pessoais e aspectos culturais do paciente. Para cada questão clínica, há um tipo de estudo clínico ideal para respondê-la, e a busca da resposta apropriada passa pelo conhecimento dos métodos adequados para avaliação crítica da literatura médica. PREVENÇÃO E TRATAMENTO Textos extraídos do livro: Economia e Gestão em Saúde, de Paola Zucchi e Marcos Bosi Ferraz. Biblioteca online – sem valor comercial. Proibida a venda e a reprodução. 4 A questão a ser respondida é se determinado tratamento ou intervenção preventiva causará mais benefícios do que danos. Para essa questão, as melhores respostas são os resultados de ensaios clínicos controlados randomizados, em que participantes são aleatoriamente alocados em dois (ou mais) grupos: um experimental recebendo a intervenção que está sendo testada e outro grupo-controle, recebendo placebo ou um tratamento alternativo. Os grupos são seguidos prospectivamente e comparados quanto à diferença nos desfechos estudados (Figura 1.1). A randomização assegura que os grupos são comparáveis, diferindo apenas no tipo de intervenção recebida, portanto, qualquer diferença observada no desfecho entre os dois grupos pode ser atribuída à intervenção. Além da randomização, o mascaramento é importante para assegurar os resultados da pesquisa. O mascaramento significa que nenhum dos envolvidos no estudo sabe que tratamento está sendo dado a cada paciente, eliminando assim noções preconcebidas de como o tratamento deve agir. Sem o mascaramento, é difícil ou antiético como num procedimento cirúrgico, um investigador “cego1’ é necessário para interpretar os resultados. O seguimento dos pacientes deve ser o mais completo possível, com o mínimo de perdas (inferior a 20%). No final, a análise deve ser com intention to treat, ou seja, todos os pacientes incluídos devem ser analisados, incluindo as perdas. Figura 1.1 Estrutura do ensaio clínico. A estimativa do tamanho do efeito da intervenção em estudo é realizada pelo cálculo do risco relativo (RR), que expressa a probabilidade relativa que um evento ocorre quando comparados o grupo- intervenção e controle. Calcula-se dividindo a proporção do desfecho no grupo-intervenção pela proporção do desfecho no grupo-controle. A diferença de risco (DR) ou redução absoluta de risco é definida como a diferença absoluta entre a proporção do desfecho no grupo-intervenção e grupo-controle. Indica a medidaabsoluta do efeito da intervenção, possibilitando o cálculo do número necessário tratar (NNT), seu inverso (1/diferença de risco). RISCO O risco é a probabilidade de ocorrer um evento adverso. Fatores de risco a doenças são as exposições às quais determinada pessoa pode estar exposta e que aumentam a probabilidade de adquirir doenças. O conhecimento dos fatores associados à maior ocorrência de doenças é importante tanto para o processo diagnóstico quanto para o planejamento de estratégias de prevenção. Para a determinação de fatores de risco, os estudos clínicos são observacionais, ou seja, o investigador apenas observa o curso natural dos eventos, analisando a associação entre a exposição e a doença. Existem dois tipos de estudos analíticos observacionais, os estudos coorte e os caso-controle. Estudos coorte Amostra Randomização Intervenção Intervenção Sim Controle Não Desfecho Textos extraídos do livro: Economia e Gestão em Saúde, de Paola Zucchi e Marcos Bosi Ferraz. Biblioteca online – sem valor comercial. Proibida a venda e a reprodução. 5 O termo coorte era utilizado na Roma antiga para denominar um grupo de soldados que marchavam juntos em uma batalha. Na epidemiologia clínica, uma coorte significa um grupo de indivíduos seguidos juntos através do tempo. Nesse tipo de estudo, o investigador seleciona dois grupos, um de indivíduos expostos e outro de não-expostos a determinado fator (variáveis preditivas), e acompanha-os prospectivamente para comparar a incidência de doenças (ou taxa de mortalidade causada pela doença) nos dois grupos. Se existir uma associação positiva entre a exposição e a doença, pode-se esperar que a proporção de indivíduos que desenvolvem a doença no grupo exposto (incidência no grupo exposto) seja maior do que a proporção de indivíduos que desenvolvem a doença entre os não-expostos (incidência do grupo não-exposto). Associações entre uma exposição e determinada doença são descritas em termos de RR, que representa a razão entre a incidência no grupo exposto e a incidência no grupo não- exposto. O estudo coorte prospectivo é o melhor desenho para descrição acurada da incidência e da história natural de uma condição. Muitas vezes é a única maneira de estabelecer a sequência temporal de uma exposição e a doença. O aspecto fundamental do estudo coorte é definir o grupo de indivíduos 110 início do trabalho. A característica essencial é que, nessa etapa, todos devem estar livres da doença em estudo; e, para isso, deve-se utilizar testes diagnósticos sensíveis para a seleção. Como em qualquer estudo, eles devem ser selecionados na população apropriada para responder às perguntas da pesquisa. O tamanho da amostra deve conter número suficiente de pessoas para possibilitar a análise dos resultados e preferencialmente ser uma amostra probabilistic da população para quem a pergunta da pesquisa é importante. Porém, esse tipo de amostra raramente é utilizado por causa da dificuldade operacional e alto custo. A qualidade dos resultados dependerá da qualidade das medidas da variável preditiva. A separação entre expostos e não-expostos deve ser realizada por métodos confiáveis, assim como a medida de variados graus de exposição. Um acompanhamento completo da coorte é particularmente importante, pois mesmo uma pequena perda de participantes pode causar erros nas medidas da real incidência da doença. O diagnóstico da condição em estudo deve ser realizado por meio de critérios definidos e estudo cego, ou seja, sem o conhecimento da condição de exposição. Estudos caso-controle Para investigar as causas da maioria das doenças, os estudos coortes são caros e podem necessitar do acompanhamento de milhares de indivíduos para identificar um fator de risco. Portanto, para doenças pouco frequentes é necessário escolher um grupo de referência, para que a prevalência da exposição nos indivíduos com a doença (casos) seja comparada com a prevalência da exposição nos indivíduos sem a doença (controles). Enquanto os estudos coortes começam com pessoas de risco e as segue através do tempo, os casos-controle são retrospectivos: partem de indivíduos doentes ou não-doentes e então determinam se há diferenças nos fatores preditivos que possam explicar porque os casos ficaram doentes e os controles não. O ponto vital deste tipo de estudo é o seu delineamento, pois pode oferecer grandes oportunidades de erros sistemáticos. O estudo começa, como sempre, com uma pergunta. Em seguida, o investigador especifica critérios de inclusão, para selecionar da população os indivíduos que têm a doença (casos) e aqueles que não têm a doença (controles). A partir dessa amostra, analisa-se e mede-se as variáveis preditivas, ou seja, os fatores de risco envolvidos na hipótese a ser testada. Já foi demonstrado que a comparação da frequência de exposição entre os casos e os controles oferece uma medida de risco que conceitualmente e matematicamente similar ao risco relativo. Trata-se do cálculo do odds mtio (OR). Como pode ser visto, o OR pode ser obtido pela divisão dos produtos cruzados do Quadro. Quando a frequência de exposição é maior entre os casos, o OR será maior que 1, indicando risco. Portanto, quanto maior a associação entre a exposição e a doença, maior será o OR. Analogamente, se a frequência de exposição for menor nos casos, o OR será menor que 1, indicando fator de proteção. O OR aproxima-se do risco relativo somente quando Textos extraídos do livro: Economia e Gestão em Saúde, de Paola Zucchi e Marcos Bosi Ferraz. Biblioteca online – sem valor comercial. Proibida a venda e a reprodução. 6 a incidência da doença for pequena. Os casos devem ser selecionados a partir de critérios de inclusão preestabelecidos, utilizando-se métodos diagnósticos sensíveis, devendo ser constituídos de uma amostra representativa de todos aqueles que preencherem esses critérios da população em estudo. Em razão da frequente dificuldade de obter dados populacionais, os casos muitas vezes são obtidos em serviços, como hospitais e ambulatórios, o que pode prejudicar a generalização dos resultados, pois estes estarão refletindo principalmente a população específica que procura o serviço. Outra importante consideração é a utilização de casos incidentes (novos casos) ou prevalentes (casos já existentes) na amostra do estudo. A melhor amostra seria aquela de casos incidentes pois, nos casos prevalentes, estaremos estudando apenas os sobreviventes da doença. Mas, na maioria das doenças, a obtenção de casos incidentes levaria longo período de tempo, enquanto os casos prevalentes frequentemente já estão disponíveis para o estudo. A maior fonte potencial de erro sistemático nos estudos caso-controle está na escolha dos controles, pois estes são selecionados pelos investigadores. A seleção dos controles adequados é, portanto, o maior desafio do estudo. O conceito fundamental é que os controles devem ser similares aos casos em todos os aspectos, a não ser ter a doença em questão. Isto inclui que tanto casos como controle tenham tido a mesma chance de serem expostos às variáveis preditivas em estudo. Após selecionar casos e controles, o próximo desafio é medir, de maneira válida, a exposição anterior à instalação da doença. Nesse momento, tem-se outra fonte potencial de erro sistemático, o viés de memória (recall bias). Muitas das informações relacionadas à exposição envolvem a coleta de dados por meio de entrevistas, e as pessoas possuem variados graus de habilidade de lembrar de informações. Além disso, pessoas doentes (casos) tendem normalmente a se lembrar de possíveis exposições de maneira diferente dos não doentes. Para evitar esses tipos de problema, uma estratégia possível é a utili- zação de dados obtidos antes da pesquisa, por exemplo, fichas médicas, ou a entrevista ser realizada com parentes ou amigos próximos. Outra medida a ser adotada é obter a entrevista com investigador-cego, ou seja, este desconhecea natureza da pergunta que está sendo testada. Idealmente, tanto o entrevistado quanto o entrevistador deveriam ser “cegos”, porém, na prática, isso frequentemente se torna difícil de realizar. DIAGNÓSTICO O estabelecimento do diagnóstico é um processo imperfeito, que resulta em uma probabilidade, em vez de uma certeza (Fletcher, 2005). Ao pedir um exame, é preciso considerar as características dos testes solicitados, como sensibilidade, especificidade, valor preditivo positivo ou negativo e acurácia, ou seja, sua real utilidade. A acurácia de um teste diagnóstico é medida através de sua aplicação simultânea a um padrão- ouro em um grupo de pessoas sadias e doentes, e da comparação de seus resultados. O padrão-ouro é o método diagnóstico padrão disponível no momento que dará o maior grau de certeza de classificar corretamente o doente e o não-doente. Normalmente, esse padrão-ouro é mais caro, invasivo, ou difícil de ser realizado (p. ex., biópsia). Na análise do desempenho do teste diagnóstico, calcula-se a sua acurácia - frequência dos verdadeiros positivos e verdadeiros negativos, ou seja, sua eficiência. A sensibilidade do teste é a proporção de testes positivos nos realmente doentes, e a especificidade é a proporção de testes negativos nos sadios. Essas características são próprias para cada teste diagnóstico e não variam conforme a população na qual o exame é aplicado. Por outro lado, o valor preditivo positivo, que é a probabilidade de a pessoa ser realmente doente, dado que o teste é positivo, e o valor preditivo negativo, que é a probabilidade da pessoa ser realmente sadia, dado que o teste é negativo, varia conforme a prevalência da doença na população na qual o teste foi aplicado. AVALIAÇÃO CRÍTICA DE LITERATURA Textos extraídos do livro: Economia e Gestão em Saúde, de Paola Zucchi e Marcos Bosi Ferraz. Biblioteca online – sem valor comercial. Proibida a venda e a reprodução. 7 A avaliação crítica da literatura é uma das etapas do processo da prática clínica baseada em evidências - tomada de decisão apoiada na melhor evidência disponível. Para a determinação da melhor evidência, é necessário avaliar a qualidade das pesquisas publicadas, quanto a seus métodos e resultados. A avaliação crítica oferece uma maneira sistematizada de avaliar a validade, os resultados e a aplicabilidade das pesquisas. REVISÃO SISTEMÁTICA E METANÁLISE O rápido desenvolvimento das pesquisas científicas observado nas últimas décadas está refletido nas milhares de publicações da área de saúde com estimados dois milhões de artigos novos publicados por ano. Nesse número crescente de publicações, o problema da qualidade dos estudos é uma questão ainda não resolvida. Consequentemente, as boas evidências, aquelas que o profissional deveria rapidamente tomar conhecimento, ficam perdidas, misturadas às pesquisas com resultados não confiáveis em decorrência de problemas metodológicos. Em resposta a esse problema, as revisão sistemática pode auxiliar o profissional resumindo essa grande quantidade de informações, com a aplicação de estratégias científicas que limitam os vieses para localizar, avaliar criticamente e sintetizar todos os estudos relevantes sobre uma questão clínica específica. A revisão sistemática é, portanto, uma síntese de estudos primários, que contém objetivos, material e métodos estabelecidos por metodologia explícita e reprodutível. Essa revisão sistemática pode incluir uma metanálise, método estatístico para integrar os resultados de mais de um estudo para produzir uma estimativa resumida do efeito de uma intervenção. A metanálise, portanto, é apenas uma ferramenta estatística da revisão sistemática, e nem todas revisões necessariamente incluem a metanálise. Ela é realizada quando a revisão inclui mais de um trabalho quantitativo, quando os resultados são homogêneos permitindo sua síntese. ETAPAS DE UMA REVISÃO SISTEMÁTICA 1. A primeira etapa é a formulação de uma pergunta em que serão definidos o tipo de paciente/doença, a intervenção (terapia, teste diagnóstico, risco) e o desfecho a ser analisado. 2. Localização e seleção dos estudos, que deve ser abrangente, visando à obtenção de todos os estudos que preencham o critério de inclusão. A busca deve envolver as bases eletrônicas disponíveis (Pubmed, Embase, Lilacs, Cochrane Controlled Trails Data- base) e busca manual em anais de congressos, banco de teses e revistas não indexadas, além das referências dos artigos localizados. 3. Avaliação crítica dos artigos localizados, realizada por dois investigadores que devem entrar em concordância quanto à separação de artigos localizados em artigos de alta qualidade (baixo risco de viés), qualidade regular (algum risco de viés) e baixa qualidade (alto risco de viés) que deverão ser excluídos da revisão. 4. Coleta de dados, em que todas as variáveis relevantes devem ser analisadas. 5. Análise e interpretação dos resultados, em que estudos quantitativos homogêneos serão sintetizados em uma metanálise. Na interpretação, é determinada a força da evidência localizada e a aplicabilidade dos resultados, determinando os limites dos riscos e benefícios. NÍVEIS DE EVIDÊNCIAS Com a rápida e crescente disseminação e aplicação dos conceitos da MBE, praticamente todos os protocolos clínicos, consensos e recomendações atualmente publicados utilizam essa metodologia para a busca, avaliação e síntese da literatura. As evidências localizadas são classificadas quanto à sua qualidade, possibilitando saber o grau de confiança de cada recomendação. Existem atualmente vários sistemas de classificação das evidências e das recomendações em uso, e o sistema utilizado é definido no início de cada documento. Para questões de terapia, por exemplo, tem- Textos extraídos do livro: Economia e Gestão em Saúde, de Paola Zucchi e Marcos Bosi Ferraz. Biblioteca online – sem valor comercial. Proibida a venda e a reprodução. 8 se a seguinte classificação: Graus de evidências • Ia: revisão sistemática e/ou metanálise de ensaios clínicos randomizados; • Ib: pelo menos um ensaio clínico; • IIa: pelo menos um estudo controlado sem randomização; • IIb: pelo menos um estudo observacional tipo coorte; • III: estudos descritivos bem desenhados como caso-controle e estudo de casos; • IV: opinião de especialista. Portanto, ao consultar um documento baseado em evidências, deve-se avaliar qual o método utilizado para localizar, selecionar, avaliar e classificar as evidências apresentadas. 1- Por que dizemos que o estabelecimento do diagnóstico é um processo imperfeito? _____________________________________________________________________________ _____________________________________________________________________________ _____________________________________________________________________________ _____________________________________________________________________________ _____________________________________________________________________________ _____________________________________________________________________________ _____________________________________________________________________________ _____________________________________________________________________________ _____________________________________________________________________________ 2- O que é a randomização? _____________________________________________________________________________ _____________________________________________________________________________ _____________________________________________________________________________ _____________________________________________________________________________ _____________________________________________________________________________ _____________________________________________________________________________ _____________________________________________________________________________ _____________________________________________________________________________ __________________________________________________________________________________________________________________________________________________________ 3- Explique como funcionam os dois tipos de estudos analíticos observacionais: os estudos coorte e os caso-controle. _____________________________________________________________________________ _____________________________________________________________________________ _____________________________________________________________________________ _____________________________________________________________________________ _____________________________________________________________________________ _____________________________________________________________________________ _____________________________________________________________________________ _____________________________________________________________________________ Textos extraídos do livro: Economia e Gestão em Saúde, de Paola Zucchi e Marcos Bosi Ferraz. Biblioteca online – sem valor comercial. Proibida a venda e a reprodução. 9 Capítulo 2: Do Outro Lado do Balcão INTRODUÇÃO Este capítulo foi redigido com duas preocupações: mostrar que a antropologia desempenha um papel relevante na compreensão dos comportamentos dos clientes nas ações em saúde, e explicar tais comportamentos e sua racionalidade. Falar da população-alvo pelas suas próprias perspectivas, ou seja, adotar a visão de mundo do consumidor, é como passar para o outro lado do balcão; é falar dos mesmos temas abordados pela economia da saúde por outro ângulo, expondo as costuras do tecido social, suas razões e sua extensão. Neste texto, apenas alguns traços importantes da população nacional são abordados. A tarefa de comprimir a variedade imensa da vida social nacional em três ou quatro conceitos é um exercício delicado de seleção de conceitos empíricos, o que, obviamente, empobrece a realidade, mas é o que se faz num artigo. Por isso, optamos por desenvolver o tema enunciado mostrando apenas o essencial de algumas das relações sociais e culturais que ele suscita. Assim, a sociedade pode ser iluminada de forma a revelar seu gigantesco sistema de trocas (Mauss, 1950), que a todos inclui, instituindo regras a serem cumpridas, tanto do lado da produção quanto do consumo. Cada indivíduo - e todos eles - é, ao mesmo tempo, um ser produtivo e, também, consumidor. Ninguém escapa dessas duas posições que, embora antagônicas entre si, são indissoluvelmente coexistentes e presentes em cada decisão, interferindo em cada ação que qualquer indivíduo seja capaz de empreender. De modo geral, o indivíduo realiza seu lado produtivo nas suas ocupações profissionais, ou seja, de alguma forma ele fabrica resultados que sejam de interesse a outrem. Ao produzir, o indivíduo avalia outrem, cria para o seu público e desvenda o interesse dos outros pelo objeto que põe à disposição. Como consumidor, o indivíduo sente e avalia sua própria inserção na sociedade, no seu grupo de lazer, no seu esquema de saúde. Enquanto ser produtivo, o indivíduo emprega certas lógicas específicas inerentes ao seu trabalho, ao seu modo de produzir e, fundamentalmente, encaminha suas preocupações, seus modos particulares de pensar, para o terreno da interpretação imediata da vontade dos outros, visando à manutenção do seu trabalho (leia-se da sua capacidade produtiva). Como consumidor, emprega outra lógica e, ao contrário do seu lado produtivo, tenta exercer a sua vontade, o seu desejo, tornando-se opinativo na sua qualidade de consumidor, pois não está submetido às exigências de um emprego. Em certos casos, o indivíduo nem precisa produzir para manter seu status de consumidor. Poder-se-ia dizer que ele “trabalha para consumir”, ou seja, primeiro se submete às regras dos outros para, em seguida, poder realizar suas necessidades e escolher para si. Isto é, ele tem o olho fixo no consumo próprio, por isso produz. Esse é um esquema explicativo simples, mas suficiente, que nos permite um ponto de partida para compreender as grandes linhas determinantes do comportamento socioeconômico da população nacional. Por razões práticas, podemos dissociar ambos os aspectos, produção e consumo, que coexistem no mesmo indivíduo, e considerá-los separadamente, como se pertencessem a pessoas distintas. Assim, assumindo o ponto de vista do consumidor de saúde, verificamos que as racionalidades e os comportamentos são notavelmente diversos daqueles do médico, do enfermeiro e de qualquer outro produtor de saúde. Adotando o lado do consumidor como alvo deste texto, deslocamos também o foco da explicação, para mostrar que esse lado, o do comportamento do consumidor, possui sua própria autonomia de existência, pensando e agindo de forma independente do produtor, quase sempre completamente díspar, Textos extraídos do livro: Economia e Gestão em Saúde, de Paola Zucchi e Marcos Bosi Ferraz. Biblioteca online – sem valor comercial. Proibida a venda e a reprodução. 10 embora sem poder negar a existência dele. Igualmente, para mostrar também que ambos, embora contraditórios, se aproximam um do outro e que, para isso, empregam uma mediação entre si, exercida pelo serviço ou objeto material que os une. Dito de outra forma, a lógica da produção altera-se profundamente pela passagem na pedra de toque “serviço ou produto a ser negociado” entre produtor e consumidor, ou, por outro lado, há uma mediação que transforma o objeto fabricado em coisa a ser consumida. É fato que ambos nunca podem ocorrer ao mesmo tempo na mente de uma pessoa, embora ali estejam presentes cada um num momento diferente (Marx, 1946). A racionalidade empregada se retorce e muda quando passa a exprimir o outro lado desse poderoso par de oposições (Lévi-Strauss, 1958) produção-consumo. Esse ponto de inversão é tão dominante que, na nossa sociedade (e em outras), apenas ele salta aos olhos, merecendo até um espaço próprio, conhecido como mercado. É o mercado que opera a transformação de um indivíduo que produz em outro que consome. No mercado, o indivíduo vende o seu feijão e compra o queijo de outro indivíduo, ou então, vende suas ações e sai do mercado com o capital para a casa nova. Na realidade, o produtor almeja estar do outro lado do balcão, quer ser cliente, freguês, mas só é possível realizar isso se seu produto oferecido passar pelo teste do mercado. Um momento de crise do sistema, incidente inevitável em qualquer economia capitalista, esclarece bastante como funciona a consciência individual das coisas produzidas e não consumidas. O mercado não impede sua própria crise. Nesse contexto explicativo, a crise é simplesmente a suspensão do consumo. É o momento no qual aquele que compra não pode exercer sua vontade ao comprar e, portanto, não compra, e, consequentemente, aquele que vende não consegue se livrar de seu estoque. Nesse momento, o mercado se paralisa e o produtor transpõe a mediação entre venda e compra, tentando se tornar um consumidor de sua própria produção. Essa transgressão é irracional, pois no interior de um sistema capitalista de produção, um fabricante de bicicletas em crise, por exemplo, poderá consumir uma delas, mas não o estoque todo; as demais peças do estoque, que eram valores a realizar, subitamente perdem seu ar comerciável e transformam-se em bicicletas simplesmente. O indivíduo dobra-se ao mercado, mas não consegue movimentá-lo e, então, tenta enxergar-se como produtor e consumidor ao mesmo tempo, sem poder ser nenhum dos dois. Como se fosse uma televisão quebrada que, sozinha, troca de canal a cada segundo, ele transpõe a mediação de mercado tentando aboli-la no seu desespero de escapar às regras, como se a própria ideia de mercado fosse uma elaboração de alguém, uma invenção a ser ultrapassada. A crise revela, então, a natureza misteriosa do mercado, como o instante mágico e incompreensível no qual um indivíduo passa de um modo de operar a economia (como fabricante, produtor ou emprestador de dinheiro) para outro (como consumidor, fruidor das benesses da renda),sem saber como ou por quê. O mercado mostra que não pode ser controlado pela vontade nem pela consciência dos seus participantes. Seu mistério está, efetivamente, em operar em outro plano de abstração, inacessível à consciência individual. A crise de consumo, portanto, é a cessação da própria vida, do modo que ela é imaginada em uma sociedade capitalista, como a brasileira. O centro de interesse das pessoas concentra-se no consumo. O produtor perspicaz é aquele que elabora continuamente um produto de massa, cuja qualidade se liga à aparência imutável, de modo a ser continuamente escoado pelo mercado. Aliás, sua preocupação está em produzir o mais homogeneamente possível. Há exceções, é claro, que estão localizadas nos poucos ramos da produção de artesanato, nos quais a homogeneidade desaparece cedendo lugar à imperfeição e à desigualdade como marcas da produção manual. Quando se trata de automóvel, cadeira, televisão, iogurte, submetralhadora, papel, enfim, o rico trivial variado que recheia o cotidiano nacional, porém, a homogeneidade é associada à ideia de qualidade e, esta, à marca do fabricante. Do ponto de vista daquele que produz, portanto, qualquer alteração pessoal no produto é indesejável. O produtor visivelmente se dobra ao mercado, mas em aparência. Do outro lado, o do consumo, a pessoa acredita exercer efetivamente sua vontade no momento da escolha. Compara produtos, experimenta-os e, enfim, decide. Ao decidir, emprega critérios que avalia como seus, mas que, no fundo, são coletivos e variam no decorrer do tempo. Há, portanto, um ritual que Textos extraídos do livro: Economia e Gestão em Saúde, de Paola Zucchi e Marcos Bosi Ferraz. Biblioteca online – sem valor comercial. Proibida a venda e a reprodução. 11 antecede a compra a ser observado. Aqui, observa-se o emprego de lógicas diversas, de origem obscura, que evidenciam a influência da cultura. No plano das aparências, surge como moda. Aquele que consome segue a moda. Uns poucos a lançam e, quando ela tem sucesso, acabam alterando o fluxo de mercadorias que passa pelo mercado. No fundo, esses consumidores lançadores de novidades continuam obedecendo às lógicas profundas da cultura, mas orientam suas preferências de forma original, pretendendo se inserirem socialmente também de forma inovadora. Nota-se que raramente essas novidades são o produto de consumidores novidadeiros, embora eles se mostrem como tal, pois, geralmente, são manipulações de produtores desejosos de conquistar ou de manter mercados. A ilusão, contudo, permanece na mente dos vanguardeiros, alimentada pela onipotência inerente ao exercício do seu próprio desejo, que lhes aparece como triunfo social e os faz se comportar como indivíduos especiais acima dos demais. Quando se faz uma pesquisa de mercado procurando conhecer o que o consumidor compra e como opina sobre suas compras, o que se obtém são enunciados sobre a moda. Às vezes, são mais argutos, originais; outras vezes, são mais opacos, pobres; mas sempre refletem padrões de consumo em vigor naquele momento. Podem acontecer casos excepcionais de opiniões que não reflitam o padrão de consumo do produto pesquisado, mas quando isso acontece, o pesquisador deve procurar a origem das disparidades que provocam o deslocamento das opiniões para termos conflitantes com posturas obser- vadas e tentar buscar motivos profundos para tal ocorrência. Isso poderia ser chamado de justificação da substituição de modas efetivamente seguidas por modas meramente informadas pelo consumidor de determinado produto. PARA ENTENDER O INDIVÍDUO QUE CONSOME Compreender a exposição que se segue demanda justamente o emprego dos conceitos e das noções mencionadas anteriormente. Neste texto, o objetivo está em compreender o consumidor de um setor peculiar da economia, a saúde. Não é como os demais setores econômicos, pois aqui se trata da sobrevivência do indivíduo que consome e se apropria do jargão técnico do setor, imaginando estar, assim, exercendo seu poder de decisão. Passemos aos exemplos concretos, a melhor maneira de se observar e analisar a realidade. As linhas a seguir podem ser lidas como uma apresentação de um modelo simples e abrangente da realidade, apontando para uma certa ideia: o consumidor nacional como cliente de serviços de saúde. Isso se faz a partir de dados quantitativos e qualitativos obtidos em pesquisas coordenadas por nós. Podemos, para fins introdutórios, apresentar o consumidor nacional como um indivíduo que funciona em três planos: no plano pessoal, em que a escolha narcisista predomina e impera a emoção; no plano grupai ou comunitário, em que o consumidor escolhe principalmente pertencer ao grupo; e no plano nacional ou total, no qual predominam a dominação e a aliança. No plano pessoal, a escolha segue o princípio hedonista do prazer, conciliando a emoção pessoal e o desejo narcisista, compondo uma equação pessoal única. O limite dessa subjetividade está na necessidade irrecusável da vida em grupo, isto é, a equação pessoal se dobra à vida em conjunto com outras pessoas. O “eu” redefine-se amadurecendo como um “eu e a sociedade”. Seu padrão de consumo o conduz cada vez mais ao plano comunitário. Esse é o plano de funcionamento da família. No plano comunitário, o indivíduo também se adapta ao grupo, acata as regras grupais e cultiva sua inserção. Ele procura o reconhecimento dos demais e especializa- se, retendo para si alguma habilidade grupai positiva em termos de convivência. Este é o plano do trabalho, das preferências esportivas, dos aperfeiçoamentos pessoais, do aprimoramento da formação e das escolhas sexuais. Nesse plano, pouco afloram suas preferências íntimas, as quais cedem espaço à necessidade de se pertencer socialmente. No plano nacional, o indivíduo submerge no anonimato dos códigos legais, das carteiras de identidade, das exigências da equidade e da justiça. Nesse plano, não há prazer, apenas obrigações. Nos interstícios desses três planos de existência, há inúmeros outros que o indivíduo frequenta Textos extraídos do livro: Economia e Gestão em Saúde, de Paola Zucchi e Marcos Bosi Ferraz. Biblioteca online – sem valor comercial. Proibida a venda e a reprodução. 12 igualmente. Esse conjunto define um ser único, pois ninguém se insere exatamente da mesma forma que ele, e também define um ser comum que participa da vida social, comunitária e nacional, exatamente como os demais, o que lhe confere um caráter de cidadão, de membro de uma sociedade como os demais. Ele é comum sendo único. O consumidor nacional concreto Para ilustrar as linhas anteriores, selecionamos três exemplos concretos. O primeiro é de um survey nacional, que foi coordenado entre 1996 e 1997, sobre consumo de antibióticos no lar. A amostra foi obtida de um estudo paralelo sobre consumo de outras coisas do lar e o questionário foi assim estendido para cobrir as questões pertinentes. A Tabela 2.1 mostra a distribuição geográfico-econômica dos lares abordados. Observa-se que as duas grandes áreas metropolitanas, São Paulo e Rio de Janeiro, foram tratadas isoladamente das respectivas regiões, seguindo a experiência acumulada em estudos do gênero. Vê-se também que a distribuição das classes de consumo socio- econômicas acompanham de perto a distribuição real da população. Em metade dos domicílios havia crianças, e as opiniões das donas de casa, respondentes habituais desse tipo de estudo, não foram formuladas por uma só classe de idade; apanharam uma gama que varia em termos de maturidade. Em suma, uma grande e muito bem selecionada amostra, por uma agência de pesquisa tradicional. A revelação mais significativa Um estudo sobre o uso doméstico de antibióticos revelou aspectos muito interessantes. Um deles, extremamente significativo, relaciona-se ao aconselhamento recebido para o tratamento, se por decisão própria, conselho do farmacêutico ou de amigo, ou se por recomendação médica. Esta última mostra que 4de cada 5 pessoas usaram antibióticos Tabela 2.1 Distribuição dos 6.000 domicílios, segundo diferentes planos de agregação: região, classe, moradores do domicílio, presença de crianças, grupo de idade das donas de casa. Região ou cidade Número Norte-Nordeste 1.240 Centro-oeste 440 Leste 680 Grande Rio de Janeiro 850 Grande São Paulo 900 Interior de São Paulo 900 Sul 990 Classe socioeconômica Em % A + B 23,1 C 36.4 D + E 40,4 Número de integrantes do domicílio Em % 1 a 2 pessoas 19 3 a 4 pessoas 49 5 a 6 pessoas 24 7 pessoas ou mais 8 Presença de criança até 12 anos Em % Com criança 54 Sem criança 46 Faixa etária das donas de casa Em % Até 29 16 30 a 39 27 40 a 49 22 50 ou mais 35 Fonte: Marlière, Ferraz e Quirino, 2000. Textos extraídos do livro: Economia e Gestão em Saúde, de Paola Zucchi e Marcos Bosi Ferraz. Biblioteca online – sem valor comercial. Proibida a venda e a reprodução. 13 por receita médica. Essa altíssima taxa de usuários de remédios com receita médica parece, sobretudo, surpreendente por não ser confirmada por outras pesquisas. Nelas a porcentagem dos que usam receita médica ficava entre 20 e 30%, conforme o estrato social. Além disso, quando essa informação é cruzada com a classe socioeconômica, espera-se o surgimento de comportamentos diferenciados entre as diversas classes - alta, média e baixa. Contudo, novamente de maneira surpreendente, não foi uma diferenciação que se revelou, mas, sim, uma curiosa homogeneidade. Em todas as classes sociais, 4 entre 5 indivíduos declaram comprar antibióticos com receita médica; são ricos e pobres agindo em uníssono, como revela a Tabela 2.2. Tabela 2.2 Quem decidiu ou orientou o tratamento, segundo a classe de consumo socioeconômica (EM%) Indicação Classe A +B Classe C Classe D + E Receita médica Conselho do farmacêutico Conselho de amigo Decisão própria 85,7 5,9 2,5 10,7 80,7 9,1 3,4 11,4 81,8 7,3 2,6 12 Fonte: Marlière, Ferraz e Quirino, 2000. Nessa tabela, a alta taxa de compra de antibióticos com receita médica (aproximadamente 82,6% dos casos) é nítida, vindo em segundo lugar, distante, a compra por decisão própria (cerca de 11,5% dos casos) e os aconselhamentos (amigo e vendedor, somando aproximadamente 9% dos casos). A tabela é realmente muito curiosa e mostra, antes de tudo, que em todos os lares pesquisados, sem exceção, consomem-se antibióticos. Isso, por si, já é revelador, no plano da cultura brasileira, de um padrão de consumo nacional de remédios. Mostra, também, que todos sabem responder qual é a fonte de decisão de compra e uso de seus antibióticos e tratam do assunto sem se recusarem a falar a respeito. A Tabela 2.3 é mais reveladora ainda. Por ela, sabe-se que, entre os usuários de receita médica, quase todos (4 em cada 5 pessoas, ou 80,4%) seguiram o tratamento até o fim; entre aqueles que ouviram os conselhos do vendedor da farmácia, apenas a metade (54,4%) seguiu o tratamento até o fim, assim como aqueles que ouviram o amigo ou decidiram por si o que fazer. Assim, a primeira constatação é que, entre os que usam receita, a grande maioria segue seu tratamento até que ele se complete e, entre os demais, a metade abandona o tratamento ao se sentir melhor, o que polariza os respondentes em dois grupos opostos: os zelosos e os desmazelados, estes últimos aumentando na medida em que se aproximam da decisão de tratamento. Tabela 2.3 Como foi a adesão ao tratamento com antibióticos, segundo quem decidiu ou aconselhou (EM%) Tratamento Com receita Médica Conselho do Farmacêutico Conselho de amigo Decisão Própria Tratamento Completo 80,4 54,4 42,3 48,4 Tratamento com Falhas 4 7,5 16,5 4,5 Parou Tratamento e Sintomas Sumiram 13,3 37,3 42,3 50,8 Continua Ingerindo 2 1,6 1 1,6 Fonte: Marlière, Ferraz e Quirino, 2000. Os que seguem receita médica até completarem o tratamento nada decidem, apenas obedecem instruções; aqueles que recebem conselhos do farmacêutico já opinam por aceitar ou não o tratamento; aqueles que ouvem os amigos têm um campo de decisão maior; e, finalmente, aqueles que decidem por si Textos extraídos do livro: Economia e Gestão em Saúde, de Paola Zucchi e Marcos Bosi Ferraz. Biblioteca online – sem valor comercial. Proibida a venda e a reprodução. 14 têm 100% da decisão. Pela tabela, verifica-se que essa progressão existe (os que pararam o tratamento assim que desapareceram os sintomas) e parece razoável. Isto é, na medida em que decidem mais, fazem mais escolhas pessoais, praticando um auto diagnóstico improvisado. Claramente, nessas tabelas, há algo que escapa à lógica explicativa, justamente entre aqueles que seguem receitas médicas e seu tratamento até o fim. Parece que respondem assim para aquietar o pesquisador, para elidir a questão, para livrar-se da pergunta de forma aceitável, até mesmo de maneira desejável, pois, evidentemente, procuram ocultar seu comportamento real. É isso que revelam as respostas à outra questão, do abandono do tratamento. Essa, sim, mostra uma progressão de casos, a única, aliás, em dois quadros que refletem uma sociedade de indivíduos que ocultam sua ação social real. Des- cobrimos, depois, o oferecimento de um brinde a quem respondesse a todas as questões do questionário. Esse fato reforçou a tendência a completar respostas, mas não obrigou ninguém a se agrupar em uma mesma categoria, a dos “politicamente corretos”. Entretanto, foi isso o que ocorreu. Nas outras pesquisas, sem interesse quantitativo, empregamos a técnica das entrevistas semi- roteirizadas, treinando-se os pesquisadores em minúcia, informando-os a não sugerir nenhuma categoria de discurso aos entrevistados, apenas pedindo-lhes que sugerissem o tema geral da saúde. Esse procedimento teve como resultado preliminar um acúmulo de formulações, mostrando que as pessoas opinam voluntariamente sobre praticamente os mesmos temas, pelas mesmas vias, com pouca variação. Procuramos as lógicas subjacentes às opiniões exaradas. Em uma das pesquisas, todos os entrevistados, sem exceção, discorreram sobre o médico, escolhendo a via da crítica. Foram duros e emitiram opiniões com a marca da perenidade, fizeram poucos elogios, e, ao elogiar, eram econômicos, se não monossilábicos; ao xingar, verborrágicos. A análise revelou, entre outras coisas, que “o que é bom é exclusivo” é somente narrado em grupo restrito e ligeiramente, com reservas. Porém “o que é mau é grupai” é aberto a grandes coletividades e tratado com o desdém da diferenciação social, como um padrão rebaixado de consumo, sem mistérios. Novamente, o consumo de serviços e produtos de saúde detectado mostra que há um padrão de comportamento visível ligado à correção e, ao lado dele, um padrão real de consumo. Há, também, uma espécie de caça à novidade, não àquela explícita, mas, sim, àquela outra oculta, seleta, acessível para poucos, que é descartada assim que se generaliza. A recíproca também é válida: o que é exclusivo é bom, o que é igualizante é mau. Passemos, agora, a outro exemplo sobre o tema do consumo em saúde. Em entrevistas feitas em hospitais de São Paulo, as pessoas falaram do atendimento em hospitais públicos e privados. No seu entender, falaram sobre suas relações com as questões de saúde que julgam as mais importantes, mencionaram invariavelmente os produtos e serviços que compraram. Em resumo, os entrevistados fizeram uma comparação entre os dois sistemas de saúde, o público e o privado. Invariavelmente, o sistema privado foi descrito como imperfeito, caro, mas não como coisa inaceitável. O sistema público, contudo, mereceu dois tipos de consideração: ora foi descrito como último recurso, para aqueles que, por motivos econômicos, não podem ter outra espécie de atendimento - e gostariam de ser atendidos por uma operadora privada ora foi francamente elogiado pelos egressos do sistema privado, os quais, ao seremlançados no sistema público por necessidade econômica, surpreenderam-se com a qualidade do atendimento que passaram a receber. Nessa vertente do atendimento hospitalar, o consumo nacional padrão assume sua forma habitual e estereotipada quanto ao consumo de serviços privados e quanto ao consumo de serviços públicos, repetindo o modo exclusivista de consumir ou de imaginar que consome com exclusividade, no qual o consumo segue a regra da desigualdade entre as pessoas. CONCLUSÃO Nos exemplos citados, há a presença constante de comportamentos coletivos que oscilam em uníssono. Verificamos que esse acompanhamento geral das evoluções da vanguarda se assemelha à noção Textos extraídos do livro: Economia e Gestão em Saúde, de Paola Zucchi e Marcos Bosi Ferraz. Biblioteca online – sem valor comercial. Proibida a venda e a reprodução. 15 de “moda”, associando-a a componentes tipicamente humanos de exclusão e escárnio, de afeto, reconhecimento, imitação e aliança, conforme o plano em que seja estudado. Estar “na moda” significa acompanhar as tendências detectadas, ser como aqueles que são realmente invejáveis e afastar-se dos demais (risíveis), aderindo a inovações sem motivo aparente, intrigando-se com as evoluções da vanguarda, que alteram a direção sem saber claramente porque o faz. O cerne da moda está longe do mundo das aparências, seu segredo é inviolável e dele os seguidores de modas se fazem apenas pálidas representações arbitrárias, pois o plano em que funcionam as estruturas da cultura permanece necessariamente oculto, como condutor de pensamentos coletivos, assim como, para cada um, em sua “escolha” esta lhe aparece como real, como realização da vontade, e não como necessidade, o que efetivamente é. Cabe, aqui, a famosa elipse novecentista que diz: a coruja de minerva não alça vôo senão ao cair da noite. Isto é, o conhecimento não surge senão quando tudo mudou e é útil apenas como história. No exemplo anterior, das considerações populares sobre o atendimento hospitalar, há uma outra instância importante a ser anotada. É o caso dos antigos associados de planos de saúde que se viram obrigados a os abandonar e a aderir ao sistema público de saúde. Em 2004, os 43 milhões de aderentes de serviços privados caíram para 34 milhões, inflando o sistema público em 9 milhões, embora não tenha havido aumento correspondente no número total de afiliados ao Sistema Único de Saúde (SUS), o que faz suspeitar de fugas na direção cla miserabilidade não-consumidora de serviços de saúde. Aqueles que migraram para o sistema público saíram da parte da sociedade que escolhe seu consumo e passaram para outra parte, em que se oferecem serviços muito aceitáveis, mas não se dá alternativas de escolha ao cliente. As opiniões recolhidas desse segmento, composto por aqueles que se degradaram economicamente, mostram sua surpresa ao perceberem a existência de outra ordem de consumo, insuspeitada, na qual a vontade individual não se manifesta, sendo até irrelevante. Isto é, começaram a perceber que há consumo por fora da moda e de suas pretensas escolhas. Isso, entretanto, trata-se de simples exceção às regras do consumo nacional padrão. O consumo de remédios, apresentado anteriormente, assim como as narrativas pessoais que avaliam os serviços médicos e o atendimento hospitalar, também anteriormente mencionadas, embora díspares em seus objetos, métodos e alcance, apontam inegavelmente para um mesmo padrão de consumo em saúde. Esse padrão inclui, primeiro, o aparente exercício personalista e individualista da vontade, orientando-se mais pela noção de exclusividade (confundida com efetividade) que pela noção de eficácia real, racional, nos termos em que a razão aparece ao mesmo consumidor, em outras instâncias. Em segundo lugar, o padrão inclui dois planos de funcionamento, um que é explícito, aberto, sociabilizador, capaz de fornecer aos seus adeptos uma ideia de tranquila participação social e política, porém insossa e sem graça; e outro que é reservado, no qual a vontade real parece se exercer sem subterfúgios ou tenta se exercer configurando uma área de diferenciação social que anima certos consumidores intimamente, aqueles que possuem a certeza de dispor de bens e serviços de melhor qualidade, inacessíveis aos demais. Assim, entre a aparência da manifestação da vontade que se procura realizar e a racionalidade do real, entre o desejo de cada um e o seu mundo, opera uma redução àquilo que é possível, face à existência. A compreensão desse complexo processo e sua elucidação exigem análise que vai muito além do material numérico disponível. __________________________________________________________________ __________________________________________________________________ _____________________________________________________________________________________ _____________________________________________________________________________________ _____________________________________________________________________________________ _____________________________________________________________________________________ _____________________________________________________________________________________ _____________________________________________________________________________________ _____________________________________________________________________________________ Textos extraídos do livro: Economia e Gestão em Saúde, de Paola Zucchi e Marcos Bosi Ferraz. Biblioteca online – sem valor comercial. Proibida a venda e a reprodução. 16 Parte 2 Serviços de Saúde e sua Regulação Capítulo 3 A Política de Saúde no Brasil Este capítulo procura organizar cronologicamente os maiores eventos da saúde no Brasil e tecer comentários a respeito de alguns fatos. Parte do relato é fruto de estudos e pesquisas (até 1960), o restante é quase toda a história de vida de um profissional de saúde que viveu e conviveu com as alternâncias dos sistemas de saúde público e privado durante meio século aproximadamente. Para analisarmos a história das políticas de saúde no país, devemos traçar algumas premissas importantes: 1. A evolução histórica das políticas de saúde está relacionada diretamente à evolução político-social e econômica da sociedade brasileira. 2. A lógica do processo evolutivo sempre esteve subordinada aos avanços e percalços do capitalismo na sociedade brasileira. 3. A saúde nunca ocupou lugar central nas políticas do Estado brasileiro, sendo sempre deixada na periferia do sistema, tanto no que diz respeito à solução dos grandes problemas de saúde que afligem a população quanto à destinação de recursos exclusivos ao setor da saúde. 4. A conquista dos direitos sociais (saúde e previdência) tem sido sempre resultante do poder de luta, organização e reivindicação dos trabalhadores brasileiros e da sociedade civil organizada, nunca uma dádiva do estado, como alguns governos querem fazer parecer. 5. Em razão da falta de clareza e de definição em relação à política de saúde, a história da saúde confunde-se com a história da previdência social no Brasil em determinados períodos, desde a década de 1920. 6. A dualidade entre medicina preventiva e curativa sempre foi uma constante nas diversas políticas de saúde implementadas pelos vários governos. Somente nos momentos em que algumas endemias ou epidemias se apresentam como importantes, com alguma repercussão econômica ou social, é que passam a ser alvo de maior atenção por Textos extraídos do livro: Economia e Gestão em Saúde, de Paola Zucchi e Marcos Bosi Ferraz. Biblioteca online – sem valor comercial. Proibida a venda e a reprodução. 17 parte do governo, até serem novamente destinadas a um plano secundário, quando deixam de ter importância. Note-se o comportamento das autoridades sanitárias no que se refere à epidemia da dengue, tratada em surtos espasmódicos ou de forma descontinuada. Podemos afirmar que, de modo geral, os problemas de saúde tornam-sefoco de atenção quando se apresentam como epidemias e deixam de ter importância quando se transformam em endemias. Um país colonizado basicamente por degredados e aventureiros desde o descobrimento até a instalação do império, não dispunha de nenhum modelo de atenção à saúde da população, nem mesmo de interesse em criá-lo por parte do governo colonizador. Desse modo, a atenção à saúde limitava-se aos recursos da terra (plantas, ervas) e àqueles que, por conhecimentos empíricos (curandeiros), desenvolviam as suas habilidades na arte de curar. A vinda da família real ao Brasil, em 1806, criou a necessidade de organização de uma estrutura sanitária mínima, capaz de dar suporte ao poder que se instalava na cidade do Rio de janeiro. Até 1850, as atividades de saúde pública estavam limitadas à delegação das atribuições sanitárias às juntas municipais e ao controle de navios e saúde dos portos. A carência de profissionais médicos no Brasil Colônia e no Brasil Império era enorme e a inexistência de uma assistência médica estruturada influenciou a proliferação dos boticários pelo país (farmacêuticos). Em 1808, Dom João VI fundou, na Bahia, o colégio médico-cirúrgico no Real Hospital Militar da Cidade de Salvador e, em novembro do mesmo ano, foi criada a Escola de Cirurgia do Rio de Janeiro, anexa ao real Hospital Militar. Ainda no Império, a economia do Brasil era dominada por um modelo agro-exportador. A região Sudeste tinha sua economia baseada na monocultura cafeeira, e a região Nordeste, na cultura da cana. O sistema exigia uma política definida que se deu mediante o saneamento dos espaços de circulação para o controle das doenças que poderiam prejudicar a exportação. No início do século XX, a cidade do Rio de Janeiro apresentava um quadro sanitário caótico, caracterizado pela presença de diversas doenças graves que acometiam a população, como a varíola, a malária, a febre amarela e, posteriormente, a peste, o que acabou aerando sérias consequências tanto para a saúde coletiva quanto para outros setores, como o do comércio exterior, visto que os navios estrangeiros não mais queriam atracar no porto do Rio de Janeiro em função da situação sanitária que existia na cidade. Rodrigues Alves, o então presidente do Brasil, nomeou Oswaldo Cruz como diretor do Departamento Federal de Saúde Pública que, por sua vez, se propôs a erradicar a epidemia de febre amarela na cidade do Rio de Janeiro. Foi criado um verdadeiro exército com 1.500 pessoas que passaram a exercer atividades de desinfecção no combate ao mosquito vetor da febre amarela. A falta de esclarecimentos e as arbitrariedades cometidas pelos guardas sanitários causaram revolta na população, que receava as medidas de desinfecção e o trabalho realizado pelo serviço sanitário municipal. A onda de insatisfação agravou-se com outra medida de Oswaldo Cruz, a Lei Federal n. 1.261, de 31 de outubro de 1904, que instituiu a vacinação antivaríola obrigatória para todo o território nacional. Surgiu, então, um grande movimento popular de revolta que ficou conhecido na história como a Revolta da Vacina. Apesar das arbitrariedades e dos abusos cometidos, o modelo campanhista obteve importantes vitórias no controle das doenças epidêmicas, conseguindo, inclusive, erradicar a febre amarela da cidade do Rio de Janeiro, fortalecendo o modelo proposto e tornando-o hegemônico como proposta de intervenção na área da saúde coletiva durante décadas. Em 1918, o Brasil foi assolado pela chamada gripe espanhola, que matou milhares de brasileiros. Nessa época, pós-Primeira Guerra Mundial, difundiu-se o espírito nacionalista e se criou emergencialmente uma liga pró-saneamento preocupada com o controle de epidemias. Como consequência dessa liga, surgiu o Departamento Nacional de Saúde, com a missão de preencher funções de organização sanitária nacional. Textos extraídos do livro: Economia e Gestão em Saúde, de Paola Zucchi e Marcos Bosi Ferraz. Biblioteca online – sem valor comercial. Proibida a venda e a reprodução. 18 Na reforma promovida por Oswaldo Cruz, foram incorporados como elementos das ações de saúde o registro demográfico, possibilitando conhecer a composição e os fatos vitais de importância da população; a introdução do laboratório, como auxiliar do diagnóstico etiológico, e a fabricação organizada de produtos profiláticos para uso em massa. Ainda em 1920, Carlos Chagas, sucessor de Oswaldo Cruz, reestruturou o recém-criado Departamento Nacional de Saúde, então ligado ao Ministério da Justiça, e introduziu a propaganda e a educação sanitária, inovando o modelo campanhista de Oswaldo Cruz. Criaram-se órgãos especializados na luta contra a tuberculose, a lepra e as doenças sexualmente transmissíveis. A assistência hospitalar infantil e a higiene industrial destacaram-se como problemas individualizados. Expandiram-se as atividades de saneamento para outros estados além do Rio de Janeiro e criou-se a Escola de Enfermagem Anna Nery. A partir de então, houve a criação de postos e unidades de saúde com atividades estritamente sanitárias. Essa situação perdurou por anos a fio. Com a preocupação sempre crescente de melhorar a qualidade de vida da população, muito se discutiu e pouco se fez. Na área assistencial, continuou-se com o modelo das santas casas de misericórdia e hospitais estatais, em sua maioria voltados para o atendimento de endemias (hanseníase e tuberculose) ou tratamento psiquiátrico. Continuávamos a ter um segmento da população sem recursos financeiros que era atendida nas santas casas e nos postos de saúde, e outro segmento, dos mais bem aquinhoados, que custeava sua assistência à saúde. Os imigrantes, especialmente os italianos, traziam consigo a história do movimento operário na Europa e dos direitos trabalhistas que já tinham sido conquistados pelos trabalhadores europeus e, dessa forma, procuraram mobilizar e organizar a classe operária do Brasil na luta pela conquistas dos seus direitos. Por meio desses movimentos, os operários começaram a conquistar alguns direitos sociais. Assim, em 24 de janeiro de 1923, foi aprovada pelo Congresso Nacional a Lei Eloy Chaves, marco inicial da previdência social no Brasil. A partir dessa lei, foram instituídas as Caixas de Aposentadoria e Pensão (CAP). Essa lei tinha algumas peculiaridades: • deveria ser aplicada somente ao operariado urbano. Para que fosse aprovada no Congresso Nacional, dominado na sua maioria pela oligarquia rural, foi imposta a condição de que esse benefício não seria estendido aos trabalhadores rurais, fato que perdurou até a década de 1960 na história da previdência do Brasil, quando foi criado o Fundo de Assistência ao Trabalhador Rural (Funrural); • a criação de uma CAP não era automática, dependia do poder de mobilização e organização dos trabalhadores de determinada empresa para reivindicar a sua criação. A primeira CAP criada foi a dos ferroviários, o que pode ser explicado pela importância que este setor desempenhava na economia do país naquela época e pela capacidade de mobilização que a categoria dos ferroviários possuía. A comissão que administrava a CAP era composta por três representantes da empresa, um que assumia a presidência do comissão e dois representantes dos empregados, eleitos diretamente a cada três anos, O regime de representação direta das partes interessadas, com a participação de representantes de empregados e empregadores, permaneceu até a criação do Instituto Nacional de Previdência Social (INPS) em 1967, quando foram afastados do processo administrativo. O Estado não participava propriamente do custeio das CAP, que eram mantidas por empregados das empresas (3% dos respectivos vencimentos); empresas (1% da renda bruta); e consumidores de seus serviços. A Lei Eloy Chaves não previa a contribuição da União. Havia uma participação no custeio dos usuários das estradas de ferro, provenientes de um aumento das tarifas, decretado para cobrir asdespesas das Caixas. A extensão progressiva desse sistema, abrangendo número cada vez maior de usuários de Textos extraídos do livro: Economia e Gestão em Saúde, de Paola Zucchi e Marcos Bosi Ferraz. Biblioteca online – sem valor comercial. Proibida a venda e a reprodução. 19 serviços com a criação de novas Caixas e Institutos, veio, afinal, fazer o ônus recair sobre o público em geral e, assim, constituir-se efetivamente em contribuição da União. O mecanismo de contribuição tríplice (em partes iguais), contribuição pelos empregados, empregadores e União, foi obrigatoriamente instituído pela Constituição Federal de 1934. Além das aposentadorias e pensões, os fundos proviam serviços funerários e médicos, conforme explicitado no art. 9a da Lei Eloy Chaves: 1° Socorros médicos em caso de doença em sua pessoa ou pessoa de sua família, que habite sob o mesmo teto e sob a mesma economia. 2° Medicamentos obtidos por preço especial determinado pelo Conselho de Administração. 3° Aposentadoria. 4° Pensão para seus herdeiros em caso de morte. 5° Dar assistência ao acidentado no trabalho. Em 1930, o sistema já abrangia 47 caixas, com 142.464 segurados ativos, 8.006 aposentados e 7.013 pensionistas. A crise de 1929 imobilizou temporariamente o setor agrário-exportador, redefinindo a organização do Estado, que imprimiria novos caminhos à vida nacional. Assim, a crise do café e as ações dos setores agrários e urbanos proporiam um novo padrão de uso do poder no Brasil. No governo de Getulio Vargas, foram efetuadas mudanças na estrutura do estado, que objetivavam promover a expansão do sistema econômico, estabelecendo-se, paralelamente, uma nova legislação que ordenasse a efetivação dessas mudanças. Foram criados 0 Ministério do Trabalho, o Ministério da Indústria e Comércio, o Ministério da Educação e Saúde e as juntas de arbitramento trabalhista. Em 1934, com a nova Constituição, o Estado instituiu uma política social de massas no capítulo sobre a ordem econômica e social. Em 1937, foi promulgada nova Constituição que reforçou o centralismo e a autoridade presidencial (ditadura). A maior parte das inversões no setor industrial foi feita na região Centro-sul (São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte), reforçando ainda mais a importância econômica e financeira desta área na dinâmica das transformações da infra-estrutura nacional. Essa concentração de recursos de grande monta na região Sudeste agravou desequilíbrios regionais, especialmente no Nordeste, com grandes êxodos rurais, e a proliferação das favelas nos grandes centros. A crescente massa assalariada urbana passa a se constituir no ponto de sustentação política do novo governo de Getulio Vargas, por meio de um regime corporativista. São promulgadas as leis trabalhistas, que procuram estabelecer um contrato capital- trabalho, garantindo direitos sociais ao trabalhador. Ao mesmo tempo, cria-se a estrutura sindical do Estado. Essas ações, cujo fundamento era manter o movimento trabalhista contido dentro das forças do Estado, transparecem como dádivas daquele, não como conquista dos trabalhadores. No que tange a previdência social, a política do Estado pretendeu estender a todas as categorias do operariado urbano organizado os benefícios da previdência. Dessa forma, as antigas CAP foram substituídas pelos Institutos de Aposentadoria e Pensões (IAP), nos quais os trabalhadores eram organizados por categoria profissional (marítimos, comerciários e bancários). Em 1933, foi criado o primeiro Instituto de Aposentadoria e Pensões, o dos Marítimos (IAPM), garantindo um aumento dos benefícios assegurados aos associados: • aposentadoria; • pensão em caso de morte; • assistência médica e hospitalar, com internação até trinta dias; • socorros farmacêuticos, mediante indenização pelo preço do custo acrescido das despesas de Textos extraídos do livro: Economia e Gestão em Saúde, de Paola Zucchi e Marcos Bosi Ferraz. Biblioteca online – sem valor comercial. Proibida a venda e a reprodução. 20 administração. O custeio dos socorros de assistência médica não podia exceder o valor de 8% da receita anual do Instituto, apurada no exercício anterior, e as despesas eram sujeitas à aprovação do Conselho Nacional do Trabalho. Os IAP foram criados de acordo com a capacidade de organização, mobilização e importância da categoria profissional em questão. Assim, em 1933, foi criado o primeiro instituto, o de Aposentadoria e Pensões dos Marítimos (IAPM); em 1934, o dos Comerciários (IAPC) e dos Bancários (IAPB); em 1936, o dos Industriários (Iapi); e, em 1938, o dos Estivadores e Transportadores de Cargas (Iapetec). Além de servir como importante mecanismo de controle social, os IAP tinham, até meados da década de 1950, papel fundamental no desenvolvimento econômico desse período, como instrumento de captação de poupança forçada, por meio de seu regime de capitalização. Até o final dos anos 1950, a assistência médica previdenciária não era considerada importante. Os técnicos do setor consideravam-na secundária no sistema previdenciário brasileiro e os segurados não faziam parte importante de suas reivindicações. Em 1949, foi criado o Serviço de Assistência Médica Domiciliar e de Urgência (Samdu) mantido por todos os institutos e caixas ainda remanescentes. A partir da segunda metade da década de 1950, com o maior desenvolvimento industrial e a consequente aceleração da urbanização, bem como o assalariamento de parcelas crescentes da população, ocorreu maior pressão pela assistência médica via institutos, e viabilizou-se o crescimento de um complexo médico hospitalar para prestar atendimento aos previdenciários, em que se privilegiam as contratações de serviços de terceiros. Esse privilegiamento foi decorrente da não-existência de estruturas assistenciais governamentais suficientes para o atendimento de uma demanda sempre crescente, além de não ser propósito dos Institutos investir em imobilizados da área da saúde. Com a abertura, a disseminação da assistência e a facilidade de acesso, as despesas com assistência médica representaram apenas 7,3% do total geral das despesas da previdência social. Em 1960, subiram para 19,3% e, em 1966, atingiram 24,7% do total geral das despesas, confirmando a importância crescente da assistência médica previdenciária. A escassez de recursos financeiros associada à pulverização desses recursos e de pessoal entre diversos órgãos e setores e a superposição de funções e atividades fizeram com que a maioria das ações de saúde pública no Estado Novo se reduzisse a meros aspectos normativos, sem efetivação no campo prático de soluções para os grandes problemas sanitários existentes no país naquela época. Além disso, a expansão da assistência médico-hospitalar determinou aumento substancial dos dispêndios dos Institutos, forçando o governo, em 1954, a aumentar o valor da contribuição de 3 para 5%. Em 1953 foi criado o Ministério da Saúde (MS), que, na verdade, limitou-se a um mero desmembramento do antigo Ministério da Saúde e da Educação sem que isso significasse uma nova postura do governo ou uma efetiva preocupação em atender aos importantes problemas de saúde pública de sua competência. Em 1956, foi criado o Departamento Nacional de Endemias Rurais (DNERU), incorporando os antigos serviços nacionais de febre amarela, malária e peste. Os trabalhadores rurais só seriam incorporados ao sistema três anos mais tarde, quando foi promulgada a Lei n. 4.214, de 2 de março de 1963, que instituiu o Funrural. Em 1960, foi promulgada a Lei n. 3.807, denominada Lei Orgânica da Previdência Social, que estabeleceu a unificação do regime geral da previdência social, destinado a abranger todos os trabalhadores sujeitos ao regime da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), exceto os trabalhadores rurais, os empregados domésticos e, naturalmente, os servidores públicos e de autarquias e que tivessem regimes próprios de previdência.A lei previa uma contribuição tríplice com a participação do empregado, do empregador e da União. O Governo Federal nunca cumpriu a sua parte, o que, evidentemente, comprometeu seriamente a estabilidade do sistema. O processo de unificação previsto em 1960 efetivou-se em 2 de janeiro de 1967, com a Textos extraídos do livro: Economia e Gestão em Saúde, de Paola Zucchi e Marcos Bosi Ferraz. Biblioteca online – sem valor comercial. Proibida a venda e a reprodução. 21 implantação do Instituto Nacional de Previdência Social (INPS), reunindo os seis Institutos de Aposentadorias e Pensões, o Samdu e a Superintendência dos Serviços de Reabilitação da Previdência Social. Ao unificar o sistema previdenciário, o Governo Militar viu-se obrigado a incorporar os benefícios já instituídos fora das aposentadorias e pensões. Um deles era a assistência médica, oferecida pelos vários IAP, sendo que alguns desses IAP já possuíam serviços e hospitais próprios. No entanto, ao aumentar substancialmente o número de contribuintes e, consequentemente, de beneficiários, era impossível ao sistema médico previdenciário existente atender a toda população. Diante dsso, o governo tinha de decidir onde alocar os recursos públicos para atender à necessidade de ampliação do sistema, tendo optado, ao final, por direcioná-los à iniciativa privada. Assim, foram estabelecidos convênios e contratos com a maioria dos médicos e hospitais existentes no país, pagando-se pelos serviços produzidos (pró-labore), o que propiciou a esses grupos se capitalizarem, provocando um efeito cascata com o aumento no consumo de medicamentos e de equipamentos médico-hospitalares. Esse sistema tornou-se cada vez mais complexo, tanto do ponto de vista administrativo quanto do financeiro dentro da estrutura do INPS, que acabou levando à criação de uma estrutura administrativa própria, o Inamps, em 1978. Em 1974, o sistema previdenciário saiu da área do Ministério do Trabalho para se consolidar como um ministério próprio, o Ministério da Previdência e Assistência Social. Junto a esse Ministério, foi criado o Fundo de Apoio ao Desenvolvimento Social (FAS). A criação desse fundo proporcionou a remodelação e ampliação dos hospitais da rede privada por meio de empréstimos com juros subsidiados. Somente na década de 1970 algumas categorias profissionais conseguiram tornar-se beneficiárias do sistema previdenciário, como os trabalhadores rurais, com a criação do Prorural, em 1971, financiado pelo Funrural, e os empregados domésticos e os autônomos, em 1972. No campo da organização da saúde pública no Brasil, foram desenvolvidas várias ações no período militar. O Decreto-lei n. 200 (1967) estabeleceu como competências do MS a formulação e coordenação da política nacional de saúde, a responsabilidade pelas atividades médicas ambulatoriais e ações preventivas e o controle de drogas, medicamentos e alimentos. Em 1970, foi criada a Superintendência de Campanhas da Saúde Pública (Sucam), para executar as atividades de erradicação e controle de endemias, e houve, consequentemente, extinção do DNERU, trazendo novo enfoque à campanha de erradicação da malária. Em 1975, foi criado, no papel, o Sistema Nacional de Saúde, que estabelecia o campo de ação na área de saúde, dos setores público e privado, para o desenvolvimento das atividades de promoção, proteção e recuperação da saúde. O documento aponta para a dicotomia das questões da saúde, indicando que a medicina curativa seria de competência do Ministério da Previdência, e a medicina preventiva, de responsabilidade do MS. O Governo Federal, porém, destinou poucos recursos ao MS, impossibilitando o desenvolvimento das ações propostas, o que significou, na prática, a manutenção da medicina curativa que, apesar de mais cara, contava com recursos garantidos pela contribuição dos trabalhadores para o INPS. Podemos, então, inferir que o MS tornou-se muito mais um órgão burocrático e normativo que um órgão executivo de política de saúde. Em um momento de recomendações internacionais e necessidade de expansão da cobertura assistencial e preventiva, em 1976, inicia-se o Programa de Interiorização das Ações de Saúde e Saneamento (Piass). O Piass configura-se como o primeiro programa de medicina simplificada do nível federal e permite a entrada de técnicos dedicados aos sanitarismo no desenvolvimento de políticas de saúde. O programa foi estendido a todo o território nacional, resultando em uma grande expansão da rede ambulatorial pública; porém, foi descontinuado por uma série de desentendimentos e conflitos entre sanitarismo e assistencialismo. Textos extraídos do livro: Economia e Gestão em Saúde, de Paola Zucchi e Marcos Bosi Ferraz. Biblioteca online – sem valor comercial. Proibida a venda e a reprodução. 22 A ideia de que era preciso fazer crescer a economia para depois redistribuí-la para a população não se confirmou no plano social. Os pobres ficaram mais pobres e os ricos mais ricos, sendo o país um dos que apresenta os maiores índices de concentração de renda em nível mundial. A população com baixos salários, contidos pela política econômica e pela repressão, passou a conviver com o desemprego e suas graves consequências sociais, como o aumento da mortalidade infantil. Assim, o modelo de saúde previdenciário começou a mostrar as suas dificuldades. Por ter priorizado a medicina curativa, o modelo proposto foi incapaz de solucionar os principais problemas de saúde coletiva, como as endemias, as epidemias e os indicadores de saúde (mortalidade infantil, p. ex.). Outros problemas da saúde coletiva eram: • e os aumentos constantes dos custos da medicina curativa, centrada na atenção médi- co- hospitalar de complexidade crescente; • a diminuição do crescimento econômico com a respectiva repercussão na arrecadação do sistema previdenciário reduzindo suas receitas; s • a incapacidade do sistema em atender uma população de marginalizados cada vez maior que, sem carteira assinada e contribuição previdenciária, via-se excluída do sistema; • os desvios de verba do sistema previdenciário para cobrir despesas de outros setores e para realizar obras por parte do Governo Federal; • o não-repasse pela união de recursos do tesouro nacional para o sistema previdenciário, visto ser esse tripartite (empregador, empregado e união). Com a Lei n. 6.229, em 1976, foi reorganizado o MS, com vistas a enfrentar a deteriorada situação epidemiológica da população. Contudo, essa iniciativa também foi abortada em razão da diminuição do orçamento, resultado da crise econômica do começo dos anos 1980. Também aquele ano, foi implantada a informatização do sistema. Criou-se o convênio empresa, no qual a empresa descontava uma contribuição na folha de pagamento dos funcionários e fixava um convênio diretamente com a previdência social e com o INPS para dar assistência ao seu empregado. Em 1977, foi criado o Sistema Nacional de Previdência Social (Sinpas), que reuniu o INPS, o Inamps e o Instituto de Administração da Previdência e Assistência Social (lapas). O Sinpas foi uma tentativa de modernizar administrativamente o sistema previdenciário devido à sua inoperância e à baixa eficiência dos serviços de saúde. Em 1978, foram separadas as funções previdenciárias (pecuniárias) das de assistência médica individual, que passou a ser prestada por uma nova autarquia desse mesmo ministério, o Inamps. O Inamps manteve a hegemonia da prestação de serviços médicos no país por meio, sobretudo, de hospitais contratados com o segmento privado. Paralelamente, o MS foi fortalecido com a atribuição de formular a política nacional de saúde, mas, apesar disso, manteve lugar secundário no setor, mesmo porque seu orçamento não foi reforçado. Instituiu-se a Legião Brasileira de Assistência (LBA) e o lapas, responsável pela arrecadação. Na década de 1980, o INPS passou a ser denominado INSS, o lapas desapareceu, o INSS ficou responsável
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