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O que é o ato de criação ?*172 Gilles Deleuze (1925–1995) Tradução João Gabriel Alves Domingos A ciência e a filosofia não são menos criativas do que a arte, porém certamente as suas criações não são análogas. Além disso, elas podem se comunicar entre si apenas a partir do seu próprio ato criativo. Ou seja, não cabe à filosofia tirar o seu objeto do exterior e, ao modo de um julgamento, pensar sobre a arte (afinal, se artistas já pensam por si, por que precisariam de um filósofo ?). A filosofia só teria algo a dizer à arte mediante seus próprios conceitos, produzidos de forma autônoma. Trata-se não somente de problematizar a relação vertical entre os diferentes domínios do pensamento, assim como entre quaisquer procedimentos criativos. Como conceitos filosóficos encontram blocos de sensação ? E como o cinema encontra a literatura ? Como é possível o encontro entre Kurosawa e Dostoiévski ? Até então inédito em português em sua versão integral, o presente texto é uma transcrição da apresentação oral feita por Gilles Deleuze (1925–1995) em 1987, poucos anos antes da publicação de seu livro O que é a Filosofia ?, escrito em colaboração com Félix Guattari. A preocupação no livro e na conferência era marcar a especificidade de cada domínio do pensamento (filosofia, ciência e arte) e as suas possibilidades de encontro. Temas : transdisciplinaridade, política, cinema. 172* Domingos. DELEUZE, G. “Qu’est-ce que l’acte de création ?”. Deux Régimes de Fous : Textes et Entretiens (1975-1995). Org. David Lapoujade. Paris : Éditions de Minuit, 2003. p. 291-302. [“Qu’est-ce que l’acte de création ?” in Deux régimes de fou, 2003 © Les Editions de Minuit]. O que é o ato de criação ?173 Gostaria também de colocar questões. Colocá-las a vocês e colocá-las a mim. Seria do gênero : o que vocês fazem exatamente, vocês que fazem cinema ? E eu : o que faço exatamente quando faço ou espero fazer filosofia ? Poderia colocar a questão de outro modo : o que é ter uma ideia em cinema ? Se fazemos ou queremos fazer cinema, o que significa ter uma ideia ? O que ocorre quando dizemos : “Pronto ! Eu tenho uma ideia” ? Porque, por um lado, todo mundo sabe bem que ter uma ideia é um acontecimento que ocorre raramente, é uma espécie de festa, pouco comum. E, por outro lado, ter uma ideia não é uma coisa geral. Não se tem uma ideia em geral. Uma ideia, assim como quem tem a ideia, já é voltada para um domínio específico. Ou uma ideia em pintura, ou uma ideia em romance, ou uma ideia em filosofia, ou uma ideia em ciência. E, evidentemente, não é o mesmo que pode ter tudo isso. É necessário tratar as ideias como potenciais, já engajados em um modo de expressão peculiar e inseparável desse modo de expressão, ainda que não possa dizer : eu tenho uma ideia em geral. Em função das técnicas que conheço, posso ter uma ideia em tal domínio, uma ideia em cinema, ou talvez em outro, uma ideia em filosofia. Portanto, eu parto do princípio segundo o qual faço filosofia e vocês fazem cinema. Dito isso, seria muito fácil dizer que a filosofia estando pronta para refletir sobre qualquer coisa, por que não refletiria sobre o cinema ? É estúpido. A filosofia não é feita para refletir sobre qualquer coisa. Tratando a filosofia como uma potência de “refletir sobre”, tem-se o ar de lhe dar muito quando, na verdade, tira-lhe tudo. Pois ninguém tem necessidade da filosofia para refletir. As únicas pessoas capazes de refletir efetivamente sobre o cinema são os cineastas, os críticos de cinema ou aqueles que amam cinema. Eles não têm absolutamente necessidade da filosofia para refletir sobre o cinema. A ideia segundo a qual os matemáticos teriam necessidade da filosofia para refletir sobre as matemáticas é uma ideia cômica. Se a filosofia deveria servir para refletir sobre algo, ela não teria nenhuma razão de existir. Se a filosofia existe, é porque ela tem seu próprio conteúdo. É muito simples : a filosofia é uma disciplina criativa, tão inventiva quanto qualquer outra disciplina e consiste em criar ou em inventar conceitos. E os conceitos não existem em uma espécie de céu onde eles aguardariam que um filósofo os apreendesse. Os conceitos, é necessário fabricá- los. É claro, isso não se fabrica assim. Não se diz um dia : “Pronto, eu vou inventar tal conceito”, do mesmo modo como um pintor não diz um dia : “Certo, vou fazer um quadro assim” ; ou um cineasta, “Eu vou fazer um filme de tal modo !”. É necessário que haja uma necessidade, tanto em filosofia quanto em outros domínios, do contrário, não há absolutamente nada. Resta que essa necessidade – que, quando existe, é uma coisa muito complexa – faz com que um filósofo (aqui, eu sei ao menos do que ele se ocupa) se comprometa a inventar, a criar conceitos e não se ocupar em refletir, mesmo se for sobre o cinema. Digo que faço filosofia, ou seja, tento inventar conceitos. Se digo, vocês que fazem cinema, o que vocês fazem ? Vocês, o que vocês inventam não são conceitos (não é o seu negócio), mas blocos de movimento-duração. Se alguém fabrica um bloco de movimento-duração, talvez faça cinema. Não se trata de invocar uma história ou de a recusar. Tudo tem uma história. A filosofia também conta histórias. Ela conta histórias com conceitos. O cinema conta histórias com blocos de movimento- duração. A pintura inventa um outro tipo de blocos. Não são nem blocos de conceitos, nem blocos de movimento-duração, mas blocos de linhas-cores. A música inventa outro tipo particular de blocos. Ao lado de todas elas, a ciência não é menos criativa. Não vejo uma oposição entre as ciências e as artes. Se pergunto a um cientista o que ele faz, ele também inventa. Ele não descobre – a descoberta existe, mas não é o que define a atividade científica enquanto tal, ao contrário, ele cria tanto quanto um artista. Um cientista, não é complicado, é alguém que inventa ou que cria funções. E não há outro como ele. Um cientista enquanto tal não tem nada a fazer com conceitos. Por isso mesmo, felizmente, é que há a filosofia. Em contrapartida, há algo que só um cientista sabe fazer : inventar e criar funções. O que é uma função ? Há função desde que se estabeleça uma lei de correspondência entre dois conjuntos pelo menos. A noção de base da ciência – e não desde ontem, mas desde muitíssimo tempo – é a de conjuntos. Um conjunto não tem nada a ver com um conceito. Desde que vocês coloquem conjuntos sob correlação ordenada, vocês obtêm funções e podem dizer : “eu faço ciência”. Se qualquer um pode falar a qualquer um, se um cineasta pode falar para um homem de ciência, se um homem de ciência pode ter algo a dizer para um filósofo e vice-versa, é em função da atividade criativa própria a cada um. Não que seja possível falar da criação (pois ela é muito mais algo extremamente solitário), mas é em nome de minha criação que tenho algo a dizer para alguém. Se alinho todas as disciplinas que se definem por sua atividade criativa, diria que há um limite que lhes é comum. O limite que é comum a todas essas séries de invenções (invenções de funções, invenções de blocos duração-movimento, invenções de conceitos, etc.) é o espaço-tempo. Se todas as disciplinas comunicam em conjunto, é no nível de algo que não decorre jamais por si mesma, mas é inerente em toda disciplina criativa, a saber, a constituição de espaços-tempo. Em Bresson – sabe-se muito bem –, há raramente espaços inteiros. São espaços, diríamos, desconectados. Por exemplo, há um canto, o canto de um quarto. Depois veremos outro canto ou um local da parede. Tudo se passa como se o espaço bressoniano se apresentasse como uma série de pequenos pedaços cuja conexão não é predeterminada. Há grandes cineastas que, ao contrário, empregam espaços de conjunto. Não digo que seja mais fácil manejar um espaço de conjunto. Mas Bresson foi um dos primeiros a fazer o espaço com pequenos pedaços desconectados, ou seja, pequenos pedaços cuja conexão não é predeterminada. E eu diria : no limite de todas as tentativas de criação, há espaços-tempo. Há isso apenas. Os blocos de duração-movimentosde Bresson vão tender ao tipo de espaço, entre outros. Então, a questão é : esses pequenos pedaços de espaços visuais, cuja conexão não é dada de antemão, pelo que são conectados ? Pela mão. Não é teoria, nem filosofia. Não se deduz assim. Ou seja, o tipo de espaços de Bresson é a valorização cinematográfica da mão na imagem. O acordo de pequenos pedaços de espaço bressoniano – pelo fato mesmo de serem pedaços, fragmentos desconectados de espaço – pode ser apenas um acordo manual. Por isso, a exaustão da mão em todo o cinema de Bresson. Por isso, o bloco de extensão-movimento de Bresson recebe, portanto, como caráter próprio a esse criador, a esse espaço, o papel da mão que sai diretamente de lá. Não há mais que a mão que possa efetivamente operar conexões de uma parte à outra do espaço. E Bresson é, sem dúvida, o maior cineasta a ter reintroduzido no cinema os valores táteis. Não apenas porque ele sabia tomar em imagem, admiravelmente, as mãos. Se ele sabia tomar admiravelmente as mãos na imagem, é porque tinha necessidade delas. Um criador não é um ser que trabalha por prazer. Um criador faz apenas o que ele tem absoluta necessidade de fazer. Novamente, ter uma ideia em cinema não é a mesma coisa que ter uma ideia alhures. Entretanto, há ideias em cinema que poderiam valer também em outras disciplinas, que poderiam ser excelentes ideias em romance. Mas elas não teriam inteiramente o mesmo aspecto. E, depois, há ideias em cinema que só podem ser cinematográficas. Isso não impede, ainda quando se trata de ideias em cinema que poderiam valer no romance, que elas já estejam engajadas em um processo cinematográfico que faz com que elas estejam de antemão direcionadas. É uma maneira de colocar uma questão que me interessa : o que faz um cineasta desejar verdadeiramente adaptar, por exemplo, um romance ? Parece-me evidente que é porque ele tem ideias em cinema que ressoam com o que o romance apresenta como ideias em romance. E aí se fazem frequentemente grandes encontros. Eu não coloco o problema do cineasta que adapta um romance notoriamente medíocre. Ele pode ter necessidade do romance medíocre, e isso não impede que o filme seja genial ; seria um problema interessante de tratar. Porém, coloco uma questão um pouco diferente : o que se passa quando o romance é um grande romance e que se revela essa afinidade pela qual alguém tem em cinema uma ideia que corresponde ao que era ideia em romance ? Um dos mais belos casos é o caso Kurosawa. Por que Kurosawa se encontra em familiaridade com Shakespeare e com Dostoiéviski ? Por que é necessário um japonês para estar em familiaridade com um Shakespeare ou Dostoiéviski ? Proponho uma resposta que diz respeito também um pouco à filosofia, eu creio. De onde os personagens de Dostoiévski, isso pode ser um pequeno detalhe. Com os personagens de Dostoiévski se passa frequentemente uma coisa bastante curiosa, que pode estar contida em um pequeno detalhe. Geralmente eles são muito agitados. Um personagem sai, desce a rua e diz “Tânia, a mulher que amo, pediu-me ajuda. Eu vou, Tânia vai morrer se eu não for até lá”. Ele desce sua escada e encontra um amigo ou ele vê um cachorro esmagado, quase morrendo, então ele esquece, esquece completamente que Tânia o espera. Ele se põe a falar, cruza outro camarada, vai tomar um chá com ele e, de súbito, ele diz de novo : “Tânia me espera, preciso ir”. O que isso quer dizer ? Em Dostoiévski, os personagens são perpetuamente pegos em urgência. Mas ao mesmo tempo que são pegos nessas urgências que são questões de vida e de morte, eles sabem que há uma questão ainda mais urgente – e eles não sabem qual. Isso os paralisa. Tudo se passa como na pior urgência – “há o fogo, é necessário que eu vá” – eles se dizem : “não, há algo mais urgente. Não me moverei enquanto não souber o quê”. É o Idiota. É a fórmula do Idiota : “Vocês sabem, há um problema mais profundo. Qual problema, eu não vejo bem. Mas me deixe. Tudo pode queimar... É necessário encontrar o problema mais profundo”. Não é por Dostoiévski que Kurosawa o aprende. Todos os personagens de Kurosawa são assim. Um encontro : um belo encontro ! Se Kurosawa pode adaptar Dostoiévski, é ao menos porque ele pode dizer : “eu tenho algo em comum com ele, um problema em comum, aquele problema”. Os personagens de Kurosawa são pegos em situações impossíveis, mas, atenção, há algo mais urgente. É preciso que eles saibam qual é o problema. Viver é talvez um dos filmes de Kurosawa que vai mais longe nesse sentido. Mas todos os seus filmes vão nessa direção. Os sete samurais, por exemplo : todo o espaço de Kurosawa depende dele, forçosamente um espaço oval, coberto pela chuva. Em Os sete samurais, os personagens são pegos em uma situação de urgência – eles aceitaram defender a vila – e, de um extremo ao outro do filme, eles trabalham uma questão mais profunda, que será dita no fim, pelo chefe dos samurais, quando eles se vão : “O que um samurai ? O que é um samurai, não em geral, mas o que é um samurai naquela época ?”. Alguém que já não é bom para nada. Os senhores não tem mais necessidade deles e os camponeses vão em breve defender-se sozinhos. Durante todo o filme, a despeito da urgência da situação, os samurais são assombrados por esta questão, digna de O Idiota : nós, os samurais, o que nós somos ? Uma ideia em cinema é desse tipo, uma vez que ela já está engajada em um processo cinematográfico. Portanto, vocês me dirão : “Eu tenho uma ideia”, mesmo se vocês a tomassem de Dostoiévski. Uma ideia, é muito simples. Não é um conceito, não é da filosofia. Ainda que de toda ideia, pode-se talvez tirar um conceito. Penso em Minnelli, que tem uma ideia extraordinária sobre o sonho. Ela é muito simples, pode-se dizer, e ela está engajada em todo um processo cinematográfico que é a obra de Minnelli. A grande ideia de Minnelli sobre o sonho é que ele diz respeito sobretudo àqueles que não sonham. O sonho daqueles que sonham concerne àqueles que não sonham. Por que isso os concerne ? Porque, desde que há sonho do outro, há perigo. O sonho é uma terrível vontade de potência. Cada um de nós é mais ou menos vítima do sonho dos outros. Mesmo quando é a mais graciosa jovem, é uma terrível devoradora, não pela sua alma, mas pelos seus sonhos. Desconfiem do sonho do outro, porque se vocês são pegos no sonho do outro, vocês estão perdidos. Uma ideia cinematográfica é a famosa dissociação ver/falar em um cinema relativamente recente, seja – tomo os casos mais comuns – Syberberg, os Straub, ou Marguerite Duras. O que há de comum e como a dissociação entre ver e falar é uma ideia propriamente cinematográfica ? Por que isso não pode se fazer no teatro ? Isso pode se fazer, mas aplicado aí, salvo exceção, a menos que o teatro tenha os meios de o fazer, poderá dizer que o teatro tomou a ideia do cinema. O que não é necessariamente ruim, mas é uma ideia de tal modo cinematográfica assumir a disjunção do ver e do falar, do visual e sonoro, que isso responderia à questão de saber o que é, por exemplo, uma ideia em cinema. Uma voz fala de algo. Falam-nos de algo. Ao mesmo tempo, fazem-nos ver outra coisa. E, enfim, isso sobre o que nos falam se passa sob o que nos fazem ver. É muito importante isso, esse terceiro ponto. Vocês percebem bem como é nesse instante que o teatro não poderia sobreviver. O teatro poderia assumir as duas primeiras proposições : falam-nos de algo e fazem-nos ver outra coisa. Mas do que nos falam simultaneamente se coloca sob o que nos fazem ver – e é necessário ao menos as duas primeiras operações, do contrário, elas não teriam nenhum sentido, nem o menor interesse – poder-se-ia dizer de um outro modo : a palavra eleva-se no ar, a palavra eleva-se no ar, ao mesmo tempo, a terra que a gente vê se afunda mais e mais. Ou ainda : enquanto a palavra se eleva no ar, isso sobre o que ela nos fala afunda na terra. O que é isso ? Não é apenas o cinema que pode fazê-lo ? Não digo que ele deva fazer, mas que ele o fez duas ou três vezes, posso dizer simplesmente que são grandes cineastas quetiveram essa ideia. Eis uma ideia cinematográfica. É prodigiosa, porque garante, no cinema, uma verdadeira transformação de elementos, um ciclo dos grandes elementos que faz com que, de um só golpe, o cinema ecoe uma física qualitativa dos elementos. Produz-se uma espécie de transformação, uma grande circulação dos elementos no cinema a partir do ar, da terra, da água e do fogo. Em tudo o que digo, ademais, não se suprime uma história. A história está sempre lá, mas o que nos interessa é : por que a história é de tal modo interessante senão porque há tudo isso atrás e junto ? Nesse ciclo que acabo de definir tão rapidamente – a voz que se eleva ao mesmo tempo que aquilo sobre o que a voz fala se afunda na terra – vocês reconheceram a maior parte dos filmes de Straub, o grande ciclo dos elementos nos Straub. O que a gente vê é unicamente a terra deserta, mas essa terra deserta é como uma cobertura sobre o que há embaixo. E vocês me dirão : “mas o que há embaixo dela, o que nós sabemos ?”. É justamente aquilo sobre o que a voz nos fala. Como se a terra se molhasse do que a voz nos diz, e que acaba de surgir sob a terra, em sua hora e em seu lugar. E se a terra e se a voz nos fala de cadáveres, de toda a linhagem de cadáveres que acaba de surgir sob a terra, nesse momento, a menor passagem do vento sobre a terra deserta, sobre o espaço vazio que vocês têm na frente dos olhos, o menor buraco nessa terra, pode assumir um sentido. Em todo caso, ter uma ideia não é da ordem da comunicação. Nesse ponto é que gostaria de chegar. Tudo sobre o que temos falado é irredutível à qualquer comunicação. Não é complexo. O que isso quer dizer ? Em um primeiro sentido, poder-se-ia dizer que a comunicação é a transmissão e a propagação de um informação. Ora, uma informação, o que é ? Não é complicado, todo mundo sabe : uma informação é um conjunto de palavras de ordem. Quando alguém lhes informa, alguém lhes diz o que vocês supostamente devem crer. Em outros termos : informar é fazer circular uma palavra de ordem. As declarações da polícia são ditas, com justo título, comunicados. Alguém nos comunica uma informação, ou seja, alguém nos diz o que nós supostamente estamos em estado ou dever de crer, o que nós temos de crer. Ou mesmo não crer, mas fazer como se acreditássemos. Ninguém nos obriga a crer, mas sim a nos comportar como se acreditássemos. É isso a informação, a comunicação e, sem essas palavras de ordem e sua transmissão, não há comunicação. O que importa : a informação é exatamente o sistema de controle. É evidente e nos diz respeito, atualmente em particular. É verdade que entramos em uma sociedade que se pode chamar uma sociedade de controle. Um pensador como Michel Foucault analisava dois tipos de sociedades bastante próximas de nós. As que ele chamava de sociedades de soberania e outras que chamava de sociedades disciplinares. Foucault identificava a passagem típica de uma sociedade de soberania para uma sociedade disciplinar com Napoleão. A sociedade disciplinar se definia – as suas análises são justamente célebres – pela constituição de meios de enclausuramento : prisões, escolas, ateliês, hospitais. As sociedades disciplinares tinham necessidade disso. Mas isso engendrou um pouco ambiguidades com certos leitores de Foucault, porque se acreditou que era o último pensamento de Foucault. Evidentemente não. Foucault jamais acreditou – e ele disse muito claramente – que essas sociedades disciplinares fossem eternas. Bem mais, ele pensava evidentemente que entraríamos em um tipo de sociedade nova. Claro, há todos os tipos de restos das sociedades disciplinares, e haverá por vários anos, mas sabemos já que estamos em sociedades de outro tipo, que precisaríamos chamar, segundo a palavra proposta por Burroughs – e Foucault teve uma vivíssima admiração por ele –, de “controle”. Entramos nas sociedades de controle que se definem muito diferentemente das sociedade disciplinares. Aqueles que trabalham para o nosso bem não têm necessidade (ou não terão) mais necessidade de um meio de enclausuramento. Atualmente, as prisões, as escolas, os hospitais já são lugares em discussões permanentes. Não é melhor cuidar nos domicílios ? Sim, é sem dúvida o futuro. Os ateliês, as usinas, estão se arruinando por todos os lados. Não é melhor os regimes de contrato e, mesmo, de trabalho em domicílio ? Não há outros meios de punir as pessoas além da prisão ? As sociedades de controle não passaram pelos meios de enclausuramento. Mesmo a escola. Mesmo a escola, é necessário bem vigiar os temas que nascem, que se desenvolverão nos próximos quarenta ou cinquenta anos e que nos mostram que o incrível seria fazer simultaneamente escola e profissão. Interessante saber qual será a identidade da escola e da profissão na formação permanente, que é nosso futuro, não implicará necessariamente o agrupamento dos estudantes em um meio de enclausuramento. Um controle não é uma disciplina. Com uma rodovia, vocês não enclausuram as pessoas, mas, fazendo rodovias, vocês multiplicam os meios de controle. Eu não digo que isso seja a finalidade única da rodovia, mas as pessoas podem girar ao infinito e “livremente” sem ser enclausuradas de nenhum modo, tudo perfeitamente controlado. É esse o nosso futuro. Coloquemos assim : a informação é o sistema de controle das palavras de ordem, palavras de ordem que circulam em uma sociedade dada. O que a obra de arte pode ter a ver com isso ? Não falamos da obra de arte, falamos ao menos que há a contrainformação. Há países nos quais, em condições particularmente duras e cruéis, há contrainformação. No tempo de Hitler, os judeus que chegavam da Alemanha eram os primeiros a nos contar que havia campos de exterminação fazendo contrainformação. O que é necessário constatar é que jamais a contrainformação bastava para fazer o que quer que fosse. Nenhuma contrainformação jamais incomodou Hitler. Salvo em um caso. Qual é o caso ? Aí está o importante. A única resposta seria : a contrainformação se torna efetivamente eficaz quando ela é (e ela é assim por natureza) ou torna-se um ato de resistência. E o ato de resistência não é informação nem contrainformação. A contrainformação só é efetiva quando ela se torna um ato de resistência. Qual é a relação da obra de arte com a comunicação ? Nenhuma. Nenhuma, a obra de arte não é um instrumento de comunicação. A obra de arte não tem nada a ver com a comunicação. A obra de arte não contém estritamente a menor informação. Em contrapartida, há uma afinidade fundamental entre a obra de arte e o ato de resistência. Visto desse modo, sim : ela tem algo a fazer com a informação e a comunicação à título de resistência. Qual é a relação misteriosa entre uma obra de arte e um ato de resistência já que os homens que resistem não têm tempo e, por vezes, nem mesmo a cultura necessária para ter qualquer relação com a arte ? Não sei. Malraux desenvolve um conceito filosófico, diz uma coisa muito simples sobre a arte : ela é a única coisa que resiste à morte. Voltemos ao começo : o que se faz quando se faz filosofia ? Inventa-se conceitos. Acho que é a base de um belo conceito filosófico. Reflita... O que resiste à morte ? Basta ver uma estátua de três mil anos antes de nossa era para achar que a resposta de Malraux é uma boa resposta. Então, sob nosso ponto de vista, poder-se-ia dizer : a arte é o que resiste, ainda que não seja a única coisa que resiste. Por isso, a relação tão estreita entre o ato de resistência e a obra de arte. Nem todo ato de resistência é uma obra de arte, ainda que, de certo modo, ele seja. Nem toda obra de arte é um ato de resistência e, entretanto, de certo modo, ela é. Peguem o caso, por exemplo, dos Straub quando eles operam essa disjunção voz sonora e imagem visual. Eles a elaboram da seguinte maneira : a voz se eleva, ela se eleva, se eleva e isso sobre o qual ela nos fala passa sob a terra nua, deserta, como se a imagem visual estivesse prestes a se mostrar, imagem visual que não tinha nenhuma relação direta com a imagem sonora. Ora, qual ato defala que se eleva no ar enquanto o seu objeto passa sob a terra ? Resistência. Ato de resistência. E, em toda a obra de Straub, o ato de fala é um ato de resistência. De Moïse ao último Kafka passando pelo, não cito na ordem, Não reconciliados ou Bach. O ato de fala de Bach é sua música, que é o ato de resistência, luta ativa contra a repartição do profano e do sagrado. E esse ato de resistência na música culmina em um grito. Tal qual há um grito em Wozzeck, há um grito em Bach : “Fora ! Fora ! Vá embora, eu não quero vê-lo”. Quando os Straub desenvolvem o grito, o grito de Bach, ou quando eles desenvolvem o grito da velha esquizofrênica de Não reconciliados, tudo isso deve levar em conta um duplo aspecto. O ato de resistência tem duas faces. É humano e é também o ato da arte. Apenas o ato de resistência resiste à morte, seja sob a forma de uma obra de arte, seja sob a forma de uma luta dos homens. Qual relação há entre a luta dos homens e a obra de arte ? A relação mais estreita e, para mim, a mais misteriosa. Exatamente o que Paul Klee queria dizer quando ele dizia “Vocês sabem, o povo que falta”. O povo que falta e, simultaneamente, que não falta. O povo que falta, isso quer dizer que essa afinidade fundamental entre a obra de arte e um povo que não existe ainda não é e não será jamais clara. Não há obra de arte que não faça apelo a um povo que não existe ainda. 173 O presente texto é a retranscrição da conferência filmada, pronunciada na FEMIS em 17 de março de 1987, sob o convite de Jean Narboni e exibida em FR3/Océaniques em 18 de maio de 1989. Charles Tesson, em acordo com Deleuze, efetuou a transcrição parcial do texto, publicado sob o título “Ter uma ideia em cinema”, na ocasião de homenagem ao cinema de Jean-Marie Straub e Danièle Huillet (Jean-Marie Straub, Danièle Huillet, Aigremont, Éditions Antigone, 1989. p. 63-77). A versão integral da conferência foi publicada pela primeira vez em Trafic, n.27, outono de 1998. Título Prefácio à 1ª edição �⠀㤀㤀㠀) Prefácio à 2ª edição Platão Livro III de A república 1 Aristóteles Poética Poesia é imitação. Espécies de poesia imitativa, classificadas segundo o meio da imitação. Plotino Sobre o belo �⠀䔀渀愀搀愀 䤀Ⰰ 㘀) 1 Tomás de Aquino Contra gentios e Suma teológica I. Trechos de Contra gentios II. Trechos da Suma teológica Alexander Gottlieb Baumgarten Estética Prolegômenos Parte I : Estética Teórica David Hume Do padrão do gosto 1 Immanuel Kant Crítica da faculdade do juízo Primeira Seção Johann C. Friedrich Schiller Sobre a educação estética do homem em uma sequência de cartas Vigésima segunda carta Friedrich W. Joseph von Schelling Sistema do idealismo transcendental Dedução de um Órgão Geral da Filosofia ou Proposições Principais da Filosofia da Arte segundo os Princípios do Idealismo Transcendental Georg Wilhelm Friedrich Hegel Cursos de estética 1 Arthur Schopenhauer O mundo como vontade e representação 1 Karl Marx Manuscritos econômico-filosóficos e Grundrisse Manuscritos Econômico-Filosóficos Grundrisse Friedrich Wilhelm Nietzsche O nascimento da tragédia 1 Sigmund Freud O poeta e o fantasiar O poeta e o fantasiar �⠀㤀 㠀) Walter Benjamin A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica �⠀猀攀最甀渀搀愀 瘀攀爀猀漀 攀洀 愀氀攀洀漀) Arthur Danto O mundo da arte O mundo da arte Benedito Nunes Da arte como poesia 1 Theodor Adorno Teoria estética 1 Vilém Flusser Nossa embriaguez 1 Gilles Deleuze O que é o ato de criação ? O que é o ato de criação ? Copyright
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