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75 PATOLOGIA DOS SISTEMAS Unidade II 5 SISTEMA GASTROINTESTINAL: PATOLOGIAS DO TUBO DIGESTIVO O sistema gastrointestinal tem a função de gerenciar as funções do organismo. Seguem as patologias do tubo digestivo. 5.1 Atresia do esôfago Atresia de esôfago (AE) é uma anomalia da formação e separação do intestino anterior e primitivo em traqueia e esôfago, que ocorre na quarta ou quinta semana de desenvolvimento embriológico. Há interrupção da luz esofagiana, podendo existir ou não comunicação entre ambos. Atresia é a anomalia congênita mais importante do esôfago, representa mais de 80% das malformações do órgão, resulta da falta de septação normal do intestino anterior em esôfago e traqueia. A lesão acontece preferencialmente na altura da carina e pode ser de dois tipos: atresia pura, sem fístula esofagotraqueal; atresia com fístula esofagotraqueal. A atresia pura, sem fístula esofagotraqueal, representa 9% das atresias do esôfago e, em metade dos casos, associa‑se a outras malformações. A porção cefálica do esôfago termina em fundo cego e une‑se ao estômago através de um fino segmento fibroso, sem luz, de extensão variável. A atresia com fístula esofagotraqueal é uma anomalia que constitui um dos elementos da síndrome de Valter (atresia do esôfago com fístula esofagotraqueal, anomalia vertebral, malformação anal e displasia do rádio, às vezes associada a anomalias renal e vascular), podendo ser dividida em: atresia do esôfago com fístula esofagotraqueal na porção proximal, atresia do esôfago com fístula esofagotraqueal na porção distal do esôfago e atresia do esôfago com fístula esofagotraqueal nas porções proximal e distal. Observação A atresia do esôfago ocorre em 1 a cada 3 mil nascimentos, dos quais 30% são prematuros e 50% estão associados a defeitos congênitos. Os sintomas de atresia do esôfago variam de acordo com a topografia acometida. Há falha na tentativa de sondagem gástrica, impossibilidade de deglutição, ocorrendo salivação abundante e aerada. Associa‑se também a defeitos cardíacos congênitos, malformações geniturinárias e doenças neurológicas. Quando a AE estiver relacionada à fístula esofagotraqueal, haverá distensão gasosa abdominal, e quando não houver tal associação haverá abdome escavado. 76 Unidade II O tratamento para a patologia é cirúrgico e depende das condições clínicas da criança e do tipo de atresia que ela possui. Saiba mais Para obter mais informações a respeito da atresia de estômago, leia: ROMAGNA, E. S; OLIVEIRA, V. F.; BALLARDIN, P. A. Z. Atresia de esôfago – relato de caso. Arquivos Catarinenses de Medicina, v. 39, n. 3, p. 70‑72, 2010. Disponível em: <http://www.acm.org.br/revista/pdf/artigos/819.pdf>. Acesso em: 10 jul. 2017. 5.2 Fístulas do tubo digestivo Fístula digestiva (FD) ou fístula gastrointestinal (FGI) é conceituada como comunicação anormal entre duas superfícies epiteliais, entre tubo digestivo e qualquer víscera oca ou cavidade abdominal (fístula interna), ou ainda com a superfície cutânea (fístula externa), da qual ocorre a drenagem dos líquidos digestivos. Pode ser congênita ou adquirida, sendo a última de origem pós‑operatória, traumática ou espontânea. Seu aparecimento constitui sérias complicações, por vezes de alta gravidade, podendo espontaneamente ser procedente de doenças inflamatórias intestinais, traumas abdominais fechados, tuberculose intestinal, blastomicose, doenças pancreáticas que evoluem com calcificação e obstrução ductal, entre outros. Cerca de 85 a 90% das fístulas digestivas ocorrem devido a complicações cirúrgicas, sobretudo em situações de urgência, normalmente entre o quinto e o décimo dia pós‑operatório, por problemas na linha de sutura como tensão excessiva, má vascularização e técnica inadequada e/ou incorreta. Há poucos problemas cirúrgicos que necessitam mais de atenção do que a fístula digestiva. A sua formação procede de qualquer circunstância em que haja um defeito na parede do órgão ou condições que interfiram de alguma forma na cicatrização normal; as causas menos comuns de ocorrência espontânea da fístula são isquemias, inflamações, câncer e irradiação. A incidência das fístulas digestivas está associada à importante taxa de mortalidade, que varia de 10% a 70%. As principais causas de morte são a desnutrição, o desequilíbrio hidroeletrolítico e a sepse. Entre as diversas etiologias, a deiscência de anastomoses digestivas é a mais frequente (80%), ocorrendo geralmente entre o 4º e 10º dia pós‑operatório, e ainda há uma mortalidade de 50 a 70% em cerca de 6 a 8% das anastomoses gástricas por ressecções oncológicas. Outro fator relevante relacionado a pior prognóstico é o alto débito inicial pela fístula. Quando o débito é inferior a 500 ml, define‑se fístula de baixo débito, e de alto débito, quando maior de 500 ml ao dia; nas doenças benignas, se o débito for superior a 200 ml/dia, os índices de mortalidade girarão em torno de 40%. Outros motivos que implicam o aparecimento das fistulas compreendem doença de Crohn, radioterapias, perfurações durante o ato operatório, traumas e doenças como a tuberculose e a 77 PATOLOGIA DOS SISTEMAS amebíase em países subdesenvolvidos. A prevalência de desnutrição em pacientes com fístula varia de 30 a 78% dos casos, uma vez que a estimativa dos pacientes de cirurgia geral que no ato da admissão hospitalar apresentam algum grau de desnutrição vai de 35 a 40%, condição que pode interferir de modo exorbitante nos resultados cirúrgicos. Existem ainda alguns fatores com grande influência, mas que podem ser controlados, diminuindo o número de incidência das fístulas, como preparo pré‑operatório adequado, técnica cirúrgica precisa e presença de drenos em tempo adequado, uso correto de antibióticos e/ou corticoides, suturas adequadas, manutenção de transporte apropriado de oxigênio no pós‑operatório, fatores sistêmicos, entre outros. Para o tratamento primário da fístula digestiva, existe a necessidade de reconhecer os fatores que estabelecem seu aparecimento como tipo de abordagem cirúrgica, correção efetuada, lesões preexistentes, presença de corpos estranhos, radioterapia prévia, neoplasias, doenças inflamatórias, distúrbios hidroeletrolíticos, sepse, uso de antibióticos e corticoides etc. Para as complicações mais ameaçadoras, deve‑se intervir com medidas como hidratação adequada, uso criterioso de antibióticos, correção da anemia, suporte nutricional adequado, drenagem de abscessos provenientes de inflamações, e controle do débito fistuloso são indicados. Ainda deve haver investigação do sítio fistuloso em questão por meio de exames como fistulografia, tomografia computadorizada (TC) e endoscopias. Quando diagnosticada a fístula digestiva, suas manifestações locais e sistêmicas devem ser controladas. Depois de definida a opção de tratamento inicial, a princípio com o objetivo de ocorrer fechamento espontâneo, porém sempre considerando os detalhes anatômicos e fisiológicos. 5.3 Disfunções motores do esôfago: acalasia Acalasia é a mais conhecida doença motora do esôfago, distúrbio motor primário que acomete a musculatura lisa do órgão; é um transtorno infrequente que pode se apresentar em qualquer idade, afeta igualmente homens e mulheres, e na maioria das vezes não há relação hereditária. A doença se caracteriza pela ausência de contrações peristálticas no corpo esofágico – aperistalse – e também pelo relaxamento parcial ou ausente do esfíncter inferior do esôfago (EIE) ou pelo seu aumento de tônus; um espessamento muscular localizado na união do esôfago com o estômago que permite a passagem dos alimentos para o estômago, e evita o refluxo do conteúdo gástrico para o esôfago, consequentemente impedindo a adequada passagem dos alimentos para o estômago. Na maioria dos casos, a acalasia que tem origem por alterações das estruturas nervosas do esôfago – falha dos neurônios inibitórios esofágicos distais – é de causa idiopática, por definição acalasia primária. A acalasia secundária podesurgir na doença de Chagas, consequência de infecção pelo Trypanosoma cruzi, protozoário flagelado agente etiológico da doença que causa destruição do plexo mioentérico, falha no peristaltismo e dilatação esofágica. No Brasil, há um número considerável de pacientes que desenvolvem esofagopatia chagásica. As manifestações clínicas têm amplo espectro, com sintomas distintos entre faixas etárias. Nas crianças mais velhas, são semelhantes aos apresentados por adultos, com disfagia para sólidos e sucessivamente 78 Unidade II para líquidos, além de regurgitação logo após as refeições ou durante o sono; é classificada como disfagia progressiva, por isso muitas vezes é confundida com doença do refluxo gastroesofágico (DRGE), retardando seu diagnóstico. Já na criança pequena, a doença é inespecífica, apresentando deficiente progressão ponderal, dor retroesternal, recusa alimentar, pirose, vômitos, halitose, tosse crônica ou noturna e pneumonias aspirativas de repetição. Na acalasia, quando realizado o exame radiológico, é encontrada retenção do meio de contraste no esôfago, descoordenação no trânsito esofágico – motilidade esofágica–, afilamento regular da transição esofagogástrica e dor torácica. Há muitas opções de tratamento disponíveis para as acalasias primária e secundária, como medicações, miotomia laparoscópica e dilatação por balão pneumático. Observação A injeção de neurotoxina botulínica também pode ser eficaz, uma vez que inibe os neurônios colinérgicos. 5.4 Hérnia do hiato esofágico A hérnia do hiato ocorre quando existe migração ou deslizamento da porção mais alta do estômago em direção ao tórax através do hiato, orifício natural existente no diafragma. A hérnia muda a dinâmica da transição esofagogástrica, diminuindo sua capacidade de conter o refluxo, e é comum haver a associação com refluxo gastroesofágico (RGE), embora haja um grande número de pessoas com refluxo e sem hérnia de hiato, e aqueles com hérnia de hiato e que não têm refluxo. Existem ainda relatos da relação de influência da hérnia hiatal na DRGE e no desenvolvimento de suas complicações, como a esofagite de refluxo (ER) e o Esôfago de Barrett (EB). A hérnia hiatal ressurgiu nos últimos anos como importante fator patogênico na DRGE, estando associada à maior exposição ácida esofagiana e sempre presente nas formas mais graves e complicadas da doença. O mecanismo pelo qual a hérnia hiatal se associa à DRGE mais grave estaria relacionado a maior alteração na função esfincteriana (aumento dos relaxamentos transitórios do esfíncter inferior do esôfago (EIE)), promoção do refluxo ácido e, principalmente, redução da depuração esofágica observada, sobretudo em hérnias volumosas e não redutíveis. Observação A hérnia do hiato é relativamente frequente, sendo referida em mais de um terço dos idosos; é uma lesão mais comum em mulheres, uma vez que a frequência aumenta com a idade, 85% ocorrem depois dos 45 anos de idade. 79 PATOLOGIA DOS SISTEMAS De maneira geral, existem quatro exemplos de hérnia de hiato: • Tipo I ou esôfago curto, ou ainda, hérnia fixa: é aquela em que parte do estômago é tracionada, passa através do diafragma e ali permanece. • Tipo II, hérnia paraesofágica ou por rolamento: a posição distal do esôfago permanece no fundo gástrico, mas em alguns momentos partes do fundo gástrico infiltram‑se no tórax. Ocorre devido à evolução geralmente avançada da doença. • Tipo III: hérnia esofagogástrica ou por deslizamento: é o tipo mais comum de hérnia. Acontece quando a porção subdiafragmática do esôfago e parte do estômago deslizam para dentro do tórax. Hérnias por deslizamento tendem a ser pequenas, geralmente assintomáticas e podem não necessitar de tratamento. • Tipo IV: além do estômago, outros órgãos como intestinos e baço sofrem herniações. Existem ainda as hérnias mistas, como é o caso da hérnia hiatal gigante (HHG), enfermidade pouco frequente; corresponde a uma hérnia de tipo III mista, uma vez que é composta de características de deslizamento e paraesofágica ao mesmo tempo, contendo mais de 30% do estômago em âmbito torácico. A hérnia tipo I é resultado de defeitos ou lesões congênitas que causam encurtamento do órgão, como esofagites crônicas ou câncer de esôfago; já o que ocasiona o desenvolvimento das hérnias tipo II e III está descrito em dois fatores: primário, representado por fraqueza do músculo diafragma, que permite a passagem de parte do estômago pelo hiato (comum depois dos 40 anos de idade ou após doenças crônicas), e secundárias, associadas a condições que aumentam a pressão intra‑abdominal, por exemplo, tosse, vômitos, obesidade, gravidez, ascite, cifoescoliose, esforços evacuatórios ou até levantamento de pesos, entre outros, capazes de empurrar parte do conteúdo abdominal para o tórax. As hérnias de hiato podem ou não apresentar sintomas, sendo os refluxos gastroesofágicos as primeiras manifestações, uma vez que a esofagite de refluxo consiste em uma das complicações das hérnias, agravando episódios de regurgitação do conteúdo gástrico, pirose e dores torácicas e/ou epigástricas. Uma hérnia de grandes dimensões pode, ainda, causar disfagia, dificuldade na deglutição dos alimentos, e em casos mais graves há presença de hemorragia, moderada ou acentuada, que leva a quadros de anemia e hematêmese. Elas têm complicações além da doença de refluxo gastroesofágico, como estreitamento do esôfago (estenose esofágica) por danos, devido à exposição prolongada ao ácido, que pode levar à formação de tecido cicatricial, que, por sua vez, estreita a via alimentar, causando disfagia e EB, pelas longas exposições ao suco gástrico, que transformam o revestimento normal do esôfago em algo diferente, com células intestinalizadas, obstrução gástrica etc. Seu diagnóstico é geralmente feito através da realização de exames como endoscopia digestiva alta e exames de imagem, radiografia de tórax e tomografia computadorizada torácica ou abdominal. Hérnias assintomáticas não necessitam de tratamento, já aquelas que apresentam sintomas e compreendem grandes dimensões requerem correção cirúrgica, seja por cirurgia aberta, seja por laparoscópica. Nos casos de refluxo gastroesofágico, há prescrição 80 Unidade II de medicamentos destinados a diminuir a secreção de ácido pelo estômago; além disso, mudanças dietéticas adequadas, principalmente em casos de obesidade e também no estilo de vida, melhoram as condições físicas de pacientes acometidos por esta patologia. 5.5 Doença do refluxo gastroesofágico DRGE é uma das afecções mais frequentes na prática médica; condição clínica associada à esofagite de refluxo, uma das mais importantes afecções digestivas, tendo em vista as elevadas incidências, a gravidade das complicações, e a variância das características clínicas com sintomas como a pirose ocasional, a tosse crônica e a asma refratária, além de apresentar condições endoscópicas muito variadas, como EB, ulceração esofágica, hematêmese, melena, entre outros. Caracteriza‑se por refluxo e/ou fluxo retrógrado e repetido de conteúdo gástrico para o interior do esôfago. Em condições normais, aberturas periódicas do esfíncter esofágico inferior, que permitem o refluxo de pequenas quantidades de conteúdo, podem ocorrer, porém sem repercussões clínicas, uma vez que são de caráter fisiológico. No entanto, o aumento recorrente deste refluxo gástrico ou maior sensibilidade da mucosa gástrica em componentes distintos (bile, suco gástrico, entérico e pancreático) do conteúdo refluído pode ocasionar sintomatologia e injúria da mucosa, principalmente no terço distal do órgão. As condições que contribuem para a DRGE são aquelas que diminuem o tônus do esfíncter esofágico inferior ou aumentam a pressão abdominal como tabagismo e etilismo, obesidade, gravidez, hérnia de hiato e depressores do sistema nervoso central. A DRGE acomete homens e mulheres, em qualquer idade, embora sua incidência aumente acima dos 40 anos de idade, sendo que mais de50% dos pacientes acometidos se encontram na faixa de 45 a 65 anos; também ocorre em crianças e bebês, na maioria das vezes de evolução benigna, e caracteriza‑se pela presença de regurgitações, que, junto à abdominal e à constipação intestinal, constituem uma das principais causas de consultas ao gastroenterologista pediátrico. A patologia está relacionada a alterações anatômicas e funcionais das barreiras da junção esofagogástrica (JEG), que impedem o refluxo constante do conteúdo gástrico para o esôfago. Tais barreiras são basicamente compostas de ações dos seguintes componentes: integridade do esfíncter inferior do esôfago (EIE), um segmento circular de músculo liso localizado no esôfago terminal que atua como uma válvula, adaptado para gerar zona de alta pressão, que pode variar de 15 a 40 mmHg, constituindo a principal barreira contra refluxo; ligamento frenoesofágico, formado pela fáscia subdiafragmática, e sua função é impedir que o EIE sofra pressão intratorácica negativa; compressão anatômica diafragmática e presença da angulação de His na JEG; His é um ângulo fisiologicamente agudo formado pelo esôfago abdominal e pelo fundo gástrico cuja finalidade é aumentar a pressão no esôfago abdominal por compressão extrínseca da distensão do fundo do estômago. Os sintomas clínicos da DRGE classificam‑se em típicos, como disfagia – dificuldade na deglutição; pirose, ou azia, que consiste na sensação de queimação retroesternal, proveniente do epigástrio alto, e que pode irradiar para região cervical, geralmente desencadeada pela ingestão de alimentos gordurosos ou picantes, cítricos, café, refrigerantes, carnes, álcool, refeições volumosas, tabaco, medicamentos, e situações que propiciam o aumento da pressão intra‑abdominal, menos frequente, além de regurgitação 81 PATOLOGIA DOS SISTEMAS de conteúdos gástricos com sabor ácido. Também há sintomas atípicos, como dor torácica de origem indeterminada, que podem ser confundidas com dor cardíaca, sendo esta de difícil discriminação em alguns casos; sintomas otorrinolaringológicos (ORL), que compreendem refluxo laringofaríngeo com manifestações comuns de laringite, rouquidão, dor de garganta, apneia, espasmo laríngeo; e sintomas pulmonares como tosse crônica, asma, bronquite crônica e gotejamento pós‑nasal, entre outros. Ainda que os sintomas da DRGE sejam severos e mesmo assim não estejam diretamente ligados à gravidade dos danos histológicos, eles tendem a aumentar de acordo com a duração da patogenia. 5.6 Úlceras gástricas As úlceras gástricas (UG) são defeitos focais da mucosa gástrica que se desenvolvem agudamente pelas complicações da terapia dos anti‑inflamatórios não esteroides e também podem aparecer após estresse fisiológico grave. Algumas úlceras recebem nomes específicos, baseados na localização e nas associações clínicas, por exemplo: úlceras de estresse, úlceras de Curling e úlceras de Cushing. As UG variam em profundidade, desde erosões superficiais até lesões profundas que penetram na mucosa. Podem ser arredondadas e ter menos de 1 cm de diâmetro. A base da úlcera é frequentemente corada de marrom a preto pela digestão ácida do sangue extravasado e pode estar associada à inflamação transmural e serosite local. Diferentemente das úlceras pépticas, as quais surgem na condição de injúria crônica, as úlceras de estresse aguda são encontradas em qualquer parte do estômago. As pregas rugosas gástricas são essencialmente normais, e as margens e a base das úlceras não são endurecidas; embora elas possam ocorrer isoladamente, existem mais frequentemente múltiplas úlceras por todo estômago e duodeno. O papel do H. pylori na gênese da UG é menor, mas mesmo assim importante. A associação da bactéria com a UG é variável, sendo em alguns estudos aproximadamente igual à de pacientes dispépticos não ulcerosos. Além disso, na maioria dos casos de UG, os pacientes estão infectados por cepas CagA positivas, relacionadas à maior produção de citocinas, resposta inflamatória mais vigorosa e, portanto, maior grau de lesão epitelial. Assim, alterações no muco gástrico e lesões epiteliais provocadas diretamente pelo H. pylori parecem contribuir para a quebra da barreira da mucosa, facilitando a retrodifusão de H+ e, portanto, a digestão ácido‑péptica. Os pacientes mais criticamente doentes admitidos nas unidades de terapia intensiva dos hospitais apresentam evidências histológicas de danos à mucosa gástrica. O sangramento de erosões gástricas superficiais ou de úlceras que podem requerer transfusões se desenvolve em 1% a 4% dos pacientes. Os antagonistas do receptor de histamina H2 e dos inibidores de bombas de prótons profiláticos podem aliviar o impacto de ulceração por estresse, mas o determinante mais importante do resultado clínico é a habilidade de corrigir as condições subjacentes. A mucosa gástrica consegue se recuperar completamente se o paciente não sucumbir à doença primária. 82 Unidade II A cura da UG é ainda discutível. É bem sabido que podem haver cicatrização completa da lesão e regeneração do epitélio, assim permanecendo por períodos variáveis. No estômago, a cicatriz é retraída e forma convergência das pregas da mucosa para o centro da úlcera (aspecto estrelado), podendo tal local ser reconhecido muitos anos depois. 5.6.1 Úlcera péptica A úlcera péptica (UP) é uma lesão em forma de ferida, na camada mais externa (chamada de mucosa) do trato digestivo. Quando está localizada no estômago, é chamada de úlcera gástrica, mas quando se encontra na primeira porção do intestino delgado é denominada úlcera duodenal. Na maioria das vezes, a lesão se apresenta de forma redonda ou oval, com diâmetro variando de 0,5 a 2,0 cm e bordas regulares, pouco elevadas e cortadas a pique, tendendo a se afunilar na medida em que se aprofundam na parede do órgão. Geralmente o fundo é limpo, mas pode estar coberto por material branco, por tecido de granulação avermelhado ou por tecido fibroso. De acordo com a profundidade da lesão e a intensidade da reação conjuntiva, a UP pode ser classificada em superficial, localizada na submucosa; profunda, quando atinge as camadas mais profundas do tecido gástrico; perfurante, quando ultrapassa todas as faixas da parede e se abre na cavidade peritoneal e penetrante, quando, além de ultrapassar todas as camadas, fica tamponada por órgãos vizinhos (pâncreas, fígado, omento). Embora a doença péptica seja multifatorial, diversos fatores etiológicos estão bem estabelecidos como infecção pela bactéria Helicobacter pylori (H. pylori) e drogas anti‑inflamatórias não esteroides (Aines), por exemplo, a aspirina e o ibuprofeno. Outras causas menos comuns de úlcera incluem gastrinoma, mastocitose, pâncreas anular, doença de Crohn, infecção gástrica por outras espécies de Helicobacter, como o Helicobacter suis e possivelmente por outros microrganismos como Herpes simplex tipo I. Também sido descrita em indivíduos que fazem uso de medicamentos contendo potássio, em pacientes submetidos à quimioterapia, usuários de cocaína, e mais recentemente sob tratamento para osteoporose com bifosfonatos de cálcio (como alendronato e risedronato). A grande maioria das úlceras pépticas aparecem devido à presença do H. pylori, a bactéria enfraquece a cobertura protetora de muco do estômago e duodeno, permitindo a passagem do ácido através dela até a parede mais sensível do estômago. Com isso, o ácido e a bactéria irritam a parede e ocasionam a úlcera. A H. pylori é capaz de sobreviver ao ácido clorídrico porque ele secreta enzimas para neutralizá‑lo, este mecanismo permite que a bactéria faça seu caminho para a zona mais segura do estômago (a camada protetora de muco), entocando‑se em seu interior a fim de preservar sua sobrevivência. A utilização de Aines é, provavelmente, a causa mais comum de lesões na mucosa gastrointestinal; seu uso é responsabilizado por aproximadamente 25% das UP, sendo considerada o motivo mais frequente de úlceras não decorrentes da infecçãopelo H. pylori. A UP assintomática pode ser encontrada endoscopicamente em cerca de 15 a 45% das pessoas que fazem uso crônico de Aines. 83 PATOLOGIA DOS SISTEMAS O tratamento da úlcera péptica consiste em curar a lesão e prevenir possíveis complicações. Caso o paciente seja etilista ou consuma álcool, é recomendado que o consumo seja cessado e que o uso de Aines seja o mais adequado possível. 5.7 Hemorragia digestiva alta O conceito de hemorragia digestiva alta (HDA) é o sangramento que ocorre desde a cavidade oral até o ângulo de Treitz. As principais causas de HDA são varizes de esôfago e estômago decorrentes de hepatopatias, rotura de úlceras e lacerações da mucosa gástrica ou esofagiana. Clinicamente, a HDA é caracterizada por um sangramento ativo e de sangue vivo através da cavidade oral (quando em grandes quantidades) ou escurecimento e mau cheiro das fezes (presença de melena), nos casos de menor intensidade. Observação A HDA pode provocar um choque hipovolêmico e até a morte caso não receba o devido tratamento em tempo oportuno. 5.8 HDA varicoza As varizes esofágicas são dilatações das veias localizadas nos plexos submucoso e periesofágico nas porções média e distal do esófago, próximas do estômago. Geralmente seu aparecimento é secundário à hipertensão porta ou hipertensão portal (HP), condição na qual o fluxo pelo sistema porta intra‑hepático fica comprometido e o sangue venoso, que deveria retornar diretamente para o coração, reflui para as vias hepáticas e é liberado no fígado através da veia porta; trata‑se de uma síndrome caracterizada pelo aumento da pressão venosa em níveis acima dos fisiológicos. Disfunções que impedem o fluxo podem ser ocasionadas por doenças que levam à hipertensão porta e consequentemente ao desenvolvimento das varizes esofágicas. Tais varizes são semelhantes às veias varicosas encontradas em algumas pessoas ao longo das pernas, sua ruptura na luz do órgão pode ocorrer pela condição de dilatação associada à localização muito próxima ao revestimento interno do esôfago e pela condição superficial das veias. As varizes esofágicas se desenvolvem em 90% dos pacientes cirróticos. Comumente associada à hepatite alcoólica, a esquistossomose hepática, menos frequente, é a sua segunda maior causa; também trombose da veia hepática (síndrome de Budd‑Chiari), trombose da veia porta e compressão da veia porta por tumores são causas das varizes do esôfago. Embora os fatores que levam à ruptura das varizes não estejam bem definidos, há diversos mecanismos que podem provocar hemorragias: primeiramente citamos o ingurgitamento dos vasos e sua proximidade à mucosa da superfície do esôfago, que estão sujeitos a traumas e rupturas por alimentos ásperos e sólidos; a condição fisiológica das paredes das varizes de espessura delgada as tornam frágeis 84 Unidade II e suscetíveis a rupturas; o aumento súbito da pressão venosa hidrostática associada ao vômito e aos seus esforços; erosão péptica ou ulcerações da mucosa por refluxo do conteúdo gástrico, pois as varizes alteram a atividade do esfíncter gastroesofágico; em cirróticos, trombocitopenia e hipoprotrombinemia, que alteram a hemostasia e contribuem para os sangramentos mais graves, entre outros fatores. Contudo, as hemorragias decorrentes da ruptura das varizes esofágicas deverão ser tratadas como emergência médica e submetidas a uma série de intervenções com métodos medicamentosos como escleroterapia por injeção endoscópica de agentes trombolíticos, drogas vasoativas, cirúrgicos, colocação de balão endoscópico tamponado ou ligação elástica endoscópica. A dieta deverá ser restituída o mais precocemente possível, 24 horas após a estabilização do sangramento. Observação A mortalidade por HDA varicosa varia entre 30% e 50%, sendo altamente prevalente, uma vez que quase metade dos pacientes morre do primeiro episódio de sangramento. 5.9 Lacerações Síndrome de Mallory‑Weiss é representada por lacerações lineares e longitudinais, de até 4 cm de extensão (em média 1,5 cm) e 2 a 3 mm de largura, na maioria das vezes restritas à mucosa da junção esofagogástrica, as quais raramente se aprofundam até a submucosa. As grosseiras lacerações lineares da síndrome de Mallory‑Weiss são longitudinalmente orientadas e variam em comprimento desde milímetros até vários centímetros. Em cerca de 75% dos casos, a lesão limita‑se à região cárdica do estômago; nos restantes, atinge a junção esofagogástrica ou apenas o esôfago. A lesão é mais comum no gênero masculino (75%) e ocorre em qualquer idade. Embora mais frequente em alcoólatras, após uso de ácido acetilsalicílico ou em pacientes com hérnia de hiato, a doença surge também após vômitos ou esforços de qualquer natureza. A lesão foi descrita após traumatismo abdominal, tosse, defecação, gastroscopia, levantamento de peso e reanimação cardíaca. Normalmente, o relaxamento reflexo da musculatura gastroesofágica precede a onda contrátil antiperistáltica associada ao vômito. Especula‑se que este relaxamento fracasse durante o vômito prolongado, fazendo com que conteúdos do refluxo gástrico recubram a abertura gástrica e levem a parede esofágica a se esticar e a se romper. Na maioria dos casos, a síndrome acha‑se associada a outras lesões também causadoras de hemorragia digestiva, como esofagites, varizes esofágicas, lesões agudas da mucosa gastroduodenal, gastrites e úlcera péptica. Embora para muitos o álcool seja o elemento iniciador da síndrome, outros admitem que as lesões possam desencadear crises de vômitos, as quais seriam responsáveis pelas lacerações. 85 PATOLOGIA DOS SISTEMAS A manifestação mais importante é a hematêmese (85% dos pacientes), nos casos clássicos precedida de vômitos ou esforços (afecção é causa de 10 a 15% das HDAs). Em 80% dos eventos, as lacerações não requerem intervenção cirúrgica, a cicatrização e a cura tendem a serem rápidas e completas entre 48 e 72h. Lembrete As grosseiras lacerações lineares da síndrome de Mallory‑Weiss são longitudinalmente orientadas e variam em comprimento, desde milímetros até vários centímetros. 5.10 Doença diverticular do cólon Por definição, diverticulose, de etiologia idiopática, em geral, é a existência de bolsas, cuja formação é externa à mucosa e submucosa colônica através da camada muscular do cólon, denominados divertículos colônicos, em que a disposição das artérias nutrientes no cólon, com o aumento da pressão intraluminal no cólon sigmoide, contribui para a ocorrência dos divertículos colônicos. Associa‑se ao conjunto de manifestações relacionadas à doença diverticular e à diverticulite. Tais divertículos são sacos em forma de cantil, pequenas dilatações que variam de 0,5 a 1 cm de diâmetro, formados por uma parede fina composta de uma camada interna de mucosa achatada ou atrófica, uma submucosa comprimida e uma muscular própria atenuada ou totalmente ausente; possuem espessuras muito finas e estão próximas aos vasos que nutrem o intestino. A diverticulose é uma doença adquirida, comum entre homens e mulheres, principalmente entre as pessoas idosas acima de 60 anos, e rara entre aquelas abaixo dos 30 anos de idade. Acredita‑se que tenha como principal fator etiológico hábitos dietéticos relacionados à diminuição da ingestão de fibras (legumes, verduras, frutas e grãos) na dieta e ao refinamento da dieta industrializada. O seu aparecimento ocorreu no início do século passado, momento no qual a Revolução Industrial trouxe novos hábitos alimentares, caracterizados pela redução da ingestão de fibras, que levou à produção de fezes volumosas e com baixo teor de água, o que pode alterar o trânsito intestinal e contribuir para o aumento da pressão intracolônica e se correlaciona com o aparecimento da doença diverticular sintomática. Como consequência de uma herniação da mucosa do intestino grosso por entre as fibras musculares da parede intestinal, a diverticulose pode ter um caráter benigno de evolução e ser totalmente assintomática.Entretanto, uma pequena parcela dos pacientes portadores de diverticulose pode expressar sinais e sintomas agressivos, sobretudo dor e/ou desconforto abdominal, distensão e mudança no hábito intestinal, passando a apresentar a doença diverticular, que, para confirmação do diagnóstico e identificação das complicações, pacientes sintomáticos devem ser investigados, sendo submetidos a exames laboratoriais, exames radiológicos e exame endoscópico (colonoscopia). A grande maioria dos pacientes com doença diverticular necessita de tratamento clínico baseado principalmente na correção dos hábitos alimentares e eventualmente no uso de analgésicos para alívio das dores. 86 Unidade II Várias complicações podem advir da doença diverticular, destacando‑se a hemorragia digestiva e a diverticulite, que ocorre em 10 a 25% dos indivíduos com diverticulose. Ela consiste na presença de inflamação e de infecção de divertículos colônicos, e pode evoluir para diverticulite não complicada, que, apresenta peridiverticulite ou flegmão; já a diverticulite complicada resulta em obstrução intestinal, formação de abscesso, fístula, perfuração com peritonite e estenose com obstrução colônica. Observação Não há relação direta entre os divertículos e o câncer de intestino, apenas alguns sintomas são parecidos. 5.11 Enterocolites O termo enterite (do grego énteron, que significa intestino). É a inflamação do intestino delgado; quando acompanhada de inflamação do cólon, denomina‑se enterocolite. As enterocolites se dividem em: enterocolites infecciosas, enterocolites bacterianas, enterocolites virais e enterocolite necrosante. As enterocolites infecciosas ocorrem em todo mundo, mas são particularmente importantes em países menos desenvolvidos, como o Brasil, em que, com a desnutrição, constituem as principais causas de morbidade e mortalidade infantis. Infecções intestinais podem ser provocadas por bactérias, vírus ou protozoários e são mais comuns na infância, embora possam ocorrer em qualquer faixa etária. Clinicamente, as enterocolites manifestam‑se com diarreia e em geral induzem resposta inflamatória na mucosa intestinal similar para diferentes agentes etiológicos, razão pela qual a inflamação é muitas vezes inespecífica. A enterocolite infecciosa pode se apresentar com uma ampla série de sintomas, incluindo diarreia, dor abdominal, urgência, desconforto perianal, incontinência e hemorragia. As infecções bacterianas, tal como a Escherichia coli enterotoxigênica, são frequentemente responsáveis, mas os patógenos mais comuns variam conforme idade, nutrição e estado imunológico do hospedeiro, assim como influências ambientais. Enterocolite bacteriana ocorre quando as bactérias induzem enterocolite e diarreia por diferentes mecanismos, que incluem invasão da mucosa e produção de toxinas (infecção alimentar); outras vezes, há a ingestão de toxinas pré‑formadas em alimentos (intoxicação alimentar). Nestes casos, a mucosa intestinal não apresenta lesões morfológicas, com a secreção de líquidos e eletrólitos, sem evocar resposta inflamatória. Exemplos das bactérias que causam enterocolite são: Escherichia coli, Campylobacter jejuni, Shigella, Salmonella, Vibrio cholerae, Clostridium difficile e Clostridium perfringens. Enterocolite viral é a infecção humana sintomática causada por diversos grupos distintos de vírus, que são: norovírus, rotavírus e adenovírus. Tais vírus causam diarreias agudas em crianças abaixo de 2 anos, adolescentes e adultos. O diagnóstico é confirmado pela identificação das partículas virais, por microscopia eletrônica, nas células epiteliais da mucosa intestinal. 87 PATOLOGIA DOS SISTEMAS A enterocolite necrosante é uma síndrome clínico‑patológica caracterizada por sinais e sintomas gastrointestinais e sistêmicos de intensidade variável e progressiva, consequente à necrose de coagulação do trato gastrointestinal, localizada em geral no íleo terminal, colo ascendente e parte proximal do colo transverso e ocorre em prematuros e recém‑nascidos de baixo peso. Trata‑se da emergência gastrointestinal mais comum no período neonatal. Manifesta‑se nas duas primeiras semanas de vida com quadro de distensão abdominal, diarreia e hemorragia digestiva que evolui rapidamente para choque e óbito se não for tratada. Observação A ocorrência de asfixia, prematuridade, policitemia, cateterismo umbilical, gemelaridade, distúrbios respiratórios, persistência do canal arterial, progressão rápida da dieta e administração de leites artificiais poderiam predispor à doença. 5.12 Patologias de má absorção intestinal – doença celíaca A doença celíaca (DC) é uma intolerância à ingestão de glúten, uma proteína contida em cereais como, por exemplo: cevada, centeio, trigo e malte. A doença se caracteriza por um processo inflamatório que envolve a mucosa do intestino delgado, levando à atrofia das vilosidades intestinais, má absorção e variedade de manifestações clínicas. As proteínas do glúten são relativamente resistentes às enzimas digestivas, resultando em derivados peptídeos que podem ocasionar resposta imunogênica em pacientes com DC. A manifestação desta doença não depende somente da presença de glúten na dieta, mas, também, de fatores genéticos, imunológicos e ambientais. A DC pode afetar qualquer órgão e não somente o trato gastroentérico. A eclosão e o aparecimento dos primeiros sintomas ocorrem em qualquer idade. Três formas de apresentação clínica da DC são reconhecidas: clássica ou típica, não clássica ou atípica e assintomática ou silenciosa. A forma clássica (típica) é o padrão mais frequente e manifesta‑se nos primeiros anos de vida, com quadros clínicos de diarreia crônica, vômitos, irritabilidade, anorexia, emagrecimento, dor e distensão abdominal, diminuição do tecido celular subcutâneo, comprometimento variável do estado nutricional, palidez por anemia ferropriva e atrofia da musculatura glútea. Esta forma pode ter evolução grave, conhecida como crise celíaca, ocorrendo quando há retardo no diagnóstico e no tratamento, em particular entre o primeiro e o segundo anos de vida, e frequentemente desencadeada por infecção. A forma não clássica (atípica) caracteriza‑se por ser o quadro em que as manifestações digestivas estão ausentes ou, quando presentes, ocupam um segundo plano. Os pacientes podem apresentar manifestações isoladas, por exemplo, anemia ferropriva, anemia por deficiência de ácido fólico e vitamina B12, osteoporose, artralgias ou artrites, irregularidade do ciclo menstrual, esterilidade, abortos de repetição, epilepsia (isolada ou associada à calcificação cerebral), neuropatia periférica, manifestações 88 Unidade II psiquiátricas (depressão, autismo, esquizofrenia), úlcera aftosa recorrente, edema de surgimento abrupto após infecção ou cirurgia, dispepsia não ulcerosa, entre outros. A forma assintomática, comprovada fundamentalmente entre familiares de primeiro grau de pacientes celíacos, vem sendo reconhecida com maior frequência nas últimas duas décadas após o desenvolvimento de marcadores sorológicos específicos. A realização de rastreamento sorológico com os anticorpos específicos é aceita como diagnóstico definitivo quando os resultados são positivos e confirmados pela biópsia intestinal, seguida pela resposta sorológica à dieta isenta de glúten. O tratamento da doença celíaca baseia‑se nos seguintes pontos: iniciar uma dieta sem glúten, controlar o progresso clínico, assegurar apoio regular com dietista, fornecer suplementos de nutrientes, se necessário ferro, ácido fólico, cálcio, monitorizar adesão à dieta com testes seriados com anticorpos e realizar a biopsia intestinal se a evolução clínica não for adequada. 5.13 Transtornos vasculares do cólon Seguem as formas mais habituais de transtornos vasculares do cólon. 5.13.1 Hemorroidas Hemorroidas – varizes anais –, também referida como doença hemorroidária (DH), é a dilatação de vasos submucosos de parede fina que se projetam abaixo da mucosa anal ouretal, pressão venosa persistentemente elevada no plexo hemorroidário, uma estrutura venosa normal que se localiza nas regiões anorretais submucosas. Isso ocorre porque as veias localizadas na região não possuem válvulas para impedir o refluxo do sangue e a pressão que propicia seu ingurgitamento. As hemorroidas são verdadeiros coxins de tecido conjuntivo fibroelástico, ricos em plexos vasculares e com múltiplas anastomoses arteriovenosas, situados na submucosa da região anorretal, que se comportam como uma almofada, ajudando na continência anal e permitindo a chamada oclusão anal de repouso. A DH pode ser categorizada de acordo com a localização anatômica em internas, que se originam do plexo hemorroidário, cuja dilatação das veias, situadas de 1,5 a 2 cm acima do esfíncter anal, são recobertas pela mucosa intestinal e classificadas em graus de acordo com o prolapso do canal anal e com sangramento; hemorroidas externas são dilatações de veias externas ao ânus, formadas no plexo hemorroidário inferior, situadas abaixo do esfíncter anal, sendo recobertas por pele modificada do canal anal e classificadas em agudas (trombo hemorroidário) ou crônicas (plicomas), e mistas, aquelas formadas nas extensões internas do canal anal e da região externa ao ânus, logo os dois plexos estão envolvidos. A tradicional classificação das hemorroidas internas de acordo com o sangramento e o prolapso do canal anal são divisões em quatro graus: • Primeiro grau: ocorre apenas o sangramento anal sem prolapso (tecido hemorroidário não se exterioriza). 89 PATOLOGIA DOS SISTEMAS • Segundo grau: sangramento e prolapso apenas durante o esforço evacuatório, porém com retorno espontâneo ao interior do canal anal. • Terceiro grau: sangramento e prolapso, requerendo redução manual. • Quarto grau: sangramento e prolapso irredutível, tecido hemorroidário permanece constantemente prolapsado. As hemorroidas afetam cerca de 5% da população, com maior incidência em pessoas com faixa etária acima de 50 anos e antes dos 30 anos, sendo esta última pouco comum, exceto em gestantes. Além de se formarem em consequência do aumento da pressão venosa no plexo hemorroidário, há influências predisponentes para a doença; as mais comuns são esforço na defecação por causa da constipação intestinal, estase venosa na gravidez e inflamações locais. Entre as características clínicas presentes na DH estão o sangramento retal como um dos principais sintomas relatados pelos portadores da doença, sendo pouco volumoso e intermitente; dor e/ou desconforto anal e/ou tenesmo anal, prolapso do mamilo hemorroidário, geralmente aumento crônico do esforço evacuatório, sensação de esvaziamento incompleto do reto pós‑evacuação, presença de muco, prurido local, irritações e/ou dermatites perianais, entre outros. Suas complicações mais frequentes são tromboses com ou sem sinais de flebite, estrangulamentos, hemorragias graves – podem levar a anemias, embora não muito frequentes –, ulcerações com infecção secundária e abscessos. É comum a associação da DH com outras doenças anais mais incidentes, como as papilites, as criptites, as fissuras, as fístulas, os prolapsos e os pólipos inflamatórios, porém doenças mais raras podem estar associadas, como os condilomas anais acuminados, as DSTs anorretais, a doença de Crohn, os tumores etc. Lembrete As hemorroidas afetam cerca de 5% da população, com maior incidência em pessoas com faixa etária acima de 50 anos e antes dos 30 anos. 5.13.2 Isquemia mesentérica A isquemia mesentérica ocorre quando a perfusão dos principais órgãos irrigados pela circulação mesentérica (artéria celíaca, artéria mesentérica superior, artéria mesentérica inferior e ramos colaterais), incluindo intestino delgado, intestino grosso, estômago, fígado, vesícula biliar e pâncreas, é insuficiente para supri‑los em suas necessidades metabólicas. Esta insuficiência pode ocorrer por diferentes mecanismos, por exemplo, obstruções arteriais, venosas e da microcirculação, ou mesmo na ausência de obstrução vascular, quando existe um transtorno expressivo da perfusão tecidual, como nos casos de insuficiência cardíaca, choque, desidratação e 90 Unidade II hipotensão arterial. As lesões intestinais, por sua vez, são consequentes à falta de suprimento sanguíneo (isquemia) e, também, da reperfusão. As causas importantes de obstrução arterial incluem aterosclerose grave (geralmente proeminente na origem das veias mesentéricas), aneurisma aórtico, estado hipercoagulável, uso de contraceptivos orais e embolização de vegetações cardíacas ou ateromas aórticos. A hipoperfusão intestinal ainda pode estar associada a falência cardíaca, choque, desidratação ou drogas vasoconstritoras. As vasculites sistêmicas, tais como a poliartrite nodosa, a púrpura Henoch‑Schönlein, ou a granulomatose de Wegener, também danificam as artérias intestinais. As tromboses venosas mesentéricas, que levam à doença isquêmica, são incomuns, mas podem resultar de estados hipercoaguláveis herdados ou adquiridos, neoplasmas invasivas, cirrose, trauma ou massas abdominais que comprimem a drenagem portal. A isquemia mesentérica pode ter consequências clínicas graves, causando necrose intestinal com repercussão sistêmica intensa, acompanhada de sepse, choque, ocorrendo o óbito ou evoluindo com síndrome do intestino curto. Portanto, o diagnóstico e o tratamento da doença deve ser realizado em caráter de urgência. O tratamento é obtido com o restabelecimento do fluxo sanguíneo, seja por meio de tratamento clínico, cirúrgico, endovascular, seja pela combinação deles. Com o maior entendimento da doença, novas alternativas terapêuticas têm sido desenvolvidas para a obtenção de melhores resultados. As síndromes isquêmicas mesentéricas são classificadas de acordo com vários aspectos: quanto à obstrução do fluxo – oclusivas x não oclusivas, quanto à apresentação da sintomatologia – aguda x crônica e quanto à sua origem vascular – arterial x venoso. A isquemia mesentérica aguda é caracterizada por alterações súbitas do fluxo sanguíneo ao intestino que são provocadas pela obstrução da artéria mesentérica superior. Raramente, a obstrução da artéria mesentérica inferior ocasiona infarto intestinal. O infarto é causado por embolia arterial, trombose arterial aguda ou trombose venosa mesentérica. A revascularização do intestino deve ser realizada até 6 a 8 horas após o início dos sintomas, quando a isquemia é reversível, a fim de evitar a progressão para a necrose intestinal. A isquemia mesentérica crônica é uma entidade rara. Ela se apresenta com sintomas inespecíficos, por exemplo, dor pós‑prandial abdominal, medo de comer, perda de peso e diarreia. Pacientes sintomáticos não tratados podem evoluir para desnutrição grave e morte devido a complicações sépticas da isquemia mesentérica. Sua causa mais comum é a aterosclerose, embora possam haver outros motivos como displasia fibromuscular, trauma, dissecção mesentérica, aneurisma, poliarterite nodosa, e doença de Takayasu. 91 PATOLOGIA DOS SISTEMAS 6 SISTEMA GASTROINTESTINAL – PATOLOGIAS DO FÍGADO, VIAS BILIARES E PÂNCREAS Veremos agora as partes que acometem fígado, vilas biliares e pâncreas. 6.1 Cirrose A cirrose hepática é caracterizada por subversão difusa da arquitetura hepática normal por nódulos de hepatócitos em regeneração circundados por tecido conjuntivo. É o estágio final comum de uma grande variedade de doenças de causas diversas, sobretudo alcoolismo, hepatites virais (sendo hepatite B e C as mais comuns), e autoimunes, além de processos de natureza metabólica e vascular. Outras etiologias incluem doença biliar e sobrecarga de ferro. A cirrose, como estágio final da doença hepática crônica, é definida por três características morfológicas principais: fibrose em ponte dos septos, nódulos parenquimatosos e desorganização da arquitetura de todo o fígado. Sua origem depende da inter‑relação de três elementos fundamentais; necrose hepatocelular, proliferaçãode componentes do tecido conjuntivo (fibrose e neoformação de vasos) e regeneração hepatocitária. A primeira é desencadeada por agressões hepatocelulares de grande porte, como as causadas por mecanismos imunitários, vírus hepatotrópicos ou agentes químicos (por exemplo, álcool). A extensão das lesões leva ao comprometimento da arquitetura hepática, resulta em fibrose iniciada por colapso da trama reticulínica, e, depois, por neoformação de colágeno. A associação de cirrose hepática com nódulos de regeneração é clássica. Observação Aproximadamente 40% dos indivíduos com cirrose são assintomáticos até um ponto tardio na evolução da doença. Quando sintomáticos, apresentam manifestações clínicas inespecíficas: anorexia, perda de peso, fraqueza, e, na doença avançada, sinais e sintomas de insuficiência hepática. Insuficiência hepática incipiente ou franca pode se desenvolver geralmente precipitada por uma carga metabólica superposta ao fígado, em geral decorrente de infecção sistêmica ou hemorragia gastrointestinal. A perda da função hepática afeta o organismo de diversas maneiras, sendo problemas comuns ou complicações causadas pela cirrose: edema e ascite, sangramentos, icterícia, prurido, toxinas no sangue ou cérebro, sensibilidade às medicações, hipertensão portal, varizes de esôfago e problemas em outros órgãos, por exemplo, insuficiência renal. Seu dano hepático geralmente é pouco reversível, mas o tratamento pode interromper a progressão da doença e reduzir suas complicações. O tratamento dependerá da causa e das complicações presentes. Por exemplo: cirrose causada por álcool é tratada pela cessação do seu consumo, já o 92 Unidade II tratamento de cirrose decorrente de hepatites envolve medicamentos usados para o tratamento delas, como interferon para as hepatites virais e corticoides para hepatite autoimune. Ou seja, tudo dependerá da causa subjacente. 6.2 Hipertensão portal O aumento da resistência ao fluxo sanguíneo portal pode desenvolver‑se em uma variedade de circunstâncias, que se dividem em causas pré‑hepáticas, intra‑hepáticas e pós‑hepáticas. As principais condições pré‑hepáticas consistem em trombose obstrutiva, estreitamento da veia porta antes da ramificação no interior do fígado ou esplenomegalia maciça com aumento do fluxo sanguíneo venoso esplênico. Na esplenomegalia ocorre o aumento significativo do baço, causando uma sensação de desconforto no quadrante superior esquerdo e, através da pressão no estômago, provoca desconforto depois da alimentação, além de aumentar o risco de rompimento do órgão após trauma. Pode ter manifestações consequentes ao hiperesplenismo, como leucopenia, trombocitopenia e anemia, e ser responsável por queixas relacionadas à anemia e aos sangramentos. O hiperesplenismo é atualmente conceituado como sendo a associação de esplenomegalia, anemia, plaquetopenia e leucopenia com hiperplasia da medula óssea para compensar a pancitopenia do sangue periférico. As principais causas de esplenomegalia são: doenças hematológicas como leucemias agudas, leucemias crônicas, doenças mieloproliferativas crônicas, linfomas, mieloma múltiplo; doenças congestivas como obstrução da veia esplênica, trombose da veia porta, hipertensão porta (sobretudo por esquistossomose e cirrose hepática), hemocromatose, insuficiências cardíaca congestiva; doenças infecciosas como tuberculose, septicemia, brucelose, mononucleose infecciosa, hepatites, malária, paracoccidioidomicose, hidatidose; hiperplasias funcionais como anemia hemolítica, esferocitose; doenças de depósito, sarcoidose, lúpus e artrite reumatoide. Na esplenomegalia congestiva há a obstrução crônica do fluxo de saída venosa, gerando uma forma de dilatação esplênica. A obstrução venosa pode ser motivada por desordens intra‑hepáticas que retardam a drenagem da veia porta ou originar‑se a partir de doenças extra‑hepáticas (cirrose hepática, insuficiência cardíaca congestiva e fibrose hepática da esquistossomose mansônica), que prejudicam diretamente as veias porta e esplênica. Todas estas desordens resultam em hipertensão das veias porta ou esplênica. A cirrose é a principal causa da esplenomegalia congestiva. A fibrose hepática em “haste de chumbo” na esquistossomose ocasiona particularmente uma esplenomegalia congestiva grave, enquanto a cicatrização fibrosa difusa na cirrose alcoólica e na cirrose pigmentar também provoca dilatação profunda. Outras formas de cirrose têm menor envolvimento. Diferentemente de outros órgãos do sistema hemolinfopoiético, a abordagem do baço por biópsia para a confirmação da doença é difícil pelos riscos de ruptura e hemorragia. Desta forma, em esplenomegalias sem causa conhecida, quase sempre é necessária a esplenectomia para o diagnóstico definitivo da patologia. 93 PATOLOGIA DOS SISTEMAS 6.3 Ascite É denominado ascite o acúmulo de líquido (transudato ou exsudato seroso) na cavidade peritoneal, cuja principal função é a proteção da cavidade abdominal, lubrificando a região e reduzindo o atrito entre os órgãos, permitindo melhor mobilidade durante o processo da digestão. De origem patológica, é uma manifestação frequente em inúmeras doenças, um tipo de edema que na maioria dos casos decorre de hipertensão portal e cirrose hepática (85%). Pode ainda ser consequência de hiponatremia por lesão dos hepatócitos, síndrome nefrótica ou desnutrição; neoplasia peritoneal e de órgãos abdominais; e doença infecciosa ou decorrente de insuficiência cardíaca, como é a hiperemia passiva crônica. Portanto, deve‑se desenvolver um raciocínio clínico com base nas informações de anamnese e exame físico para que a causa envolvida seja definida. O aspecto e a composição do líquido variam de acordo com o motivo, podendo se apresentar com aparência leitosa, quando há ruptura ou obstrução do ducto torácico e a ascite passa a ser denominada quilosa. O composto líquido seroso possui menos de 3g/dl de proteína, em grande parte albumina e uma parte de soro, que varia entre 1,1 g/dl. Ainda há um percentual de solutos, como sódio, potássio e glicose, cuja concentração é semelhante à do sangue. Na maioria das vezes, cerca de 80 a 90% dos casos de ascite são secundários à cirrose hepática, sendo que aproximadamente 50% dos pacientes com cirrose compensada desenvolvem ascite em um período de dez anos, quando observados. Na maior parte das situações, seu desenvolvimento é lento e gradativo, acompanhado de outros sinais e sintomas de doença originária que também deverão ser verificados. Assim é de extrema importância o diagnóstico precoce da ascite, uma vez que, além das formas benignas da doença, que possuem bons prognósticos, existem aquelas que, no entanto, expressam patologias agressivas com alto potencial de letalidade, mas quando descobertas no início indicam chances de cura. Por ser complexa, a patogenia da ascite envolve alguns mecanismos que estão presentes na hipertensão portal, como: hipertensão sinusoidal que altera as forças de Starling (aumento da pressão hidrostática e redução da pressão coloidosmótica no território portal), impelindo o líquido para o espaço de Disse (área existente entre os capilares sinusoides e os hepatócitos), sendo removidos pelos linfáticos hepáticos; percolação da linfa hepática para a cavidade peritoneal, uma vez que na cirrose há aumento no fluxo linfático hepático, que excede a capacidade do ducto torácico; além de vasodilatação esplâncnica e circulação hiperdinâmica, fazendo que a vasodilatação arterial presente na circulação esplâncnica diminua a pressão arterial – tal evento ativa os vasoconstritores e a secreção de hormônios diuréticos em busca da estabilidade. A hipertensão portal em conjunto com vasodilatação e retenção do sódio e água eleva pressão de perfusão dos capilares do interstício, o que leva ao extravasamento de líquido na cavidade abdominal. A ascite em estágios iniciais não exibe sintomas, é diagnosticada apenas por exames de imagem, principalmente a ecografia, que é realizadaem pacientes cirróticos; por isso, além da história clínica e do exame físico, a análise do líquido ascítico é o melhor método para definição diagnóstica. A coleta 94 Unidade II da amostra em pacientes com suspeita de ascite tem seu diagnóstico confirmado pela ultrassonografia, que detecta a variação de volumes variados de fluído. Entre os tratamentos para a ascite estão a abstinência do álcool (em casos de cirrose hepática), uma vez que tal prática diminui os danos ao fígado, podendo reduzir a hipertensão portal; restrição de sódio e água, sendo este último nos casos de hiponatremia severa; tratamento com diuréticos, quando a ascite for secundária à hipertensão portal; e paracentese abdominal, procedimento médico que consiste na introdução de uma agulha no abdome para a extração do líquido ascítico. 6.4 Icterícia Icterícia é definida como coloração amarelada da pele, das mucosas e dos fluídos corporais, devido ao aumento dos níveis plasmáticos de bilirrubina no organismo (hiperbilirrubinemia). Deve‑se levar em conta que esta condição de amarelamento da pele e das mucosas pode ser ocasionada por outros fatores como fotoativação de carotenos ou uso de medicamentos específicos, como antimaláricos. Os níveis de bilirrubina necessários para desenvolver icterícia variam de acordo com a cor da pele de cada indivíduo; em pessoas claras ela é clinicamente detectada quando a concentração sérica de bilirrubina total gira em torno de 2,5 mg/dL a 3 mg/dL, uma vez que o valor normal varia de 0,3 a 1,0 mg/dL. No período neonatal mudam os níveis de bilirrubina para diagnóstico de icterícia, que é um dos problemas mais frequentes desta fase; a hiperbilirrubinemia é definida como a concentração sérica de bilirrubina indireta (BI) – maior que 1,3 a 1,5 mg/dL, ou de bilirrubina direta (BD) – superior a 1,5 mg/dL, desde que ela represente mais do que 10% do valor de bilirrubina total (BT). A detecção da icterícia possui importante valor semiológico, pois é resultado de distúrbio em um ou mais níveis da via metabólica da bilirrubina, que é o produto final da degradação do heme. A maior parte da produção de bilirrubina diária (0,2 a 0,3 g), ou seja, 85%, deriva da decomposição de eritrócitos, principalmente no baço, no fígado e na medula óssea. A parte restante (15%) origina‑se da destruição prematura de precursores dos eritrócitos na medula óssea por eritropoese ineficaz e do metabolismo do heme ou de hepatoproteínas hepáticas, a principal molécula na qual o ferro (Fe++) está presente. A quebra do grupo heme com a liberação do ferro e a quebra dos anéis da porfirina, os quais formam a proteína biliverdina, que sofre oxigenação, constituem a bilirrubina. A bilirrubina originada neste último processo, fora do fígado, é insolúvel em soluções aquosas e pH fisiológico, assim requer ligação à albumina sérica para ser transportada. A bilirrubina não conjugada (BNC) ou indireta surge nos casos de hemólise, sobrecarregando as vias metabólicas pela grande quantidade de bilirrubina formada, isto ocorre nas anemias hemolíticas, e destacando a eritroblastose fetal, que leva ao risco de kernicterus (complicação da icterícia neonatal que provoca lesões cerebrais no RN); a BNC pode ainda derivar da destruição de precursores anormais de eritrócito, chamado eritropoese ineficaz. Também é encontrada nos fluidos corpóreos de acordo com seu conteúdo de proteína, o que explica sua maior concentração em exsudatos do que em transudatos, e liga‑se reversivelmente à albumina para ser transportada no plasma. 95 PATOLOGIA DOS SISTEMAS O fígado possui papel central no metabolismo da bilirrubina, sendo responsável por sua captação, conjugação e excreção, momento no qual a BNC é captada pelos hepatócitos, que adicionam duas moléculas de ácido glicurônico à bilirrubina por molécula, tornando‑a hidrossolúvel; em seguida torna‑se bilirrubina conjugada (BC) ou direta, que será secretada pelos hepatócitos para o interior dos canalículos biliares. A BC ou direta é polar e não absorvida no intestino delgado, mas no íleo e no cólon é hidrolisada por enzimas bacteriana (β‑glicuronidases), formando os urobilinogênios, que, por sua vez, são incolores; estes são oxidados a compostos corados, chamados urobilinas, que dão cor às fezes. Parte das urobilinas são reabsorvidas pelo intestino (ciclo enterro‑hepático) e excretadas na urina, dando‑lhe a coloração amarela. A excreção da bilirrubina é manifestação clínica de inúmeras doenças hepáticas e não hepáticas, podendo ser o primeiro ou o único sintoma de hepatopatias. Devido a tais fatores, é de suma importância que o paciente seja examinado em ambiente com luz natural, uma vez que ela favorece o procedimento que deve ser realizado com destreza, principalmente nos locais onde a icterícia é frequentemente evidenciada, como conjuntiva ocular, esclera, pele, língua e outras regiões que possuem elastina, devido à grande afinidade da bilirrubina e capacidade do pigmento biliar se alojar nos tecidos. Ainda, alguns fluidos como urina, lágrima, suor, sêmen e leite podem apresentar coloração amarela em estágios avançados por causa do acúmulo de bilirrubina conjugada, que refluem para a corrente sanguínea por obstrução mecânica das vias biliares, resultando na sua incapacidade de chegar ao intestino para ser excretada. 6.5 Colestase Colestase é a condição patológica resultante da redução da síntese dos ácidos biliares ou da interrupção do fluxo biliar para o intestino, com fluxo retrógrado ou refluxo de todos os componentes da bile para a corrente sanguínea, levando à retenção e/ou ao acúmulo de pigmento biliar e de outras substâncias excretadas na bile no parênquima hepático. É comum tanto na colestase obstrutiva quanto na não obstrutiva. Tal interrupção pode ser consequência da obstrução extra‑hepática ou intra‑hepática de canais biliares ou ducto hepático comum, bloqueios da secreção de bile pelos hepatócitos, por atresia, cálculos ou tumores. Trata‑se da principal manifestação da doença hepatobiliar, no recém‑nascido (RN), especialmente nos prematuros. A predisposição à colestase (hipercoleremia fisiológica) é maior, tendo como causa a imaturidade hepática relacionada ao metabolismo dos ácidos biliares, baixa capacidade de síntese de ácidos biliares hepatotóxicos, da redução de ácidos biliares decorrentes da síntese diminuída e da ausência de reabsorção pelo íleo. O total diário de secreção de bile é cerca de 600 mL, fenômeno osmótico que varia de acordo com a quantidade da secreção ativa de solutos, principalmente sais biliares, na luz dos canalículos biliares, seguido de atração osmótica de água. Os íons inorgânicos, em especial, o sólido e a água, passam para a bile por meio de difusão através de junções íntimas que podem permitir o refluxo da bile para dentro do hepatócito na colestase. 96 Unidade II Os pacientes diagnosticados com colestase apresentam icterícia, prurido, xantomas cutâneos (acúmulo de colesterol nas dobras e áreas de atrito da pele), má absorção intestinal com deficiências nutricionais das vitaminas lipossolúveis A, D ou K, colúria, hipocolia ou acolia fecal; este último geralmente em atresia biliar extra‑hepática. O diagnóstico das suas várias causas é demasiadamente complexo, uma vez que são grandes as possíveis etiologias a serem investigadas, e a pesquisa de cada uma delas pode ser um processo demorado; o ideal é que haja diagnóstico precoce e imediata conduta terapêutica para a resolução do problema e/ou para minimizar os agravos. A definição diagnóstica é através de exames laboratoriais, exames de imagem, e muitas vezes biópsia hepática; é um procedimento invasivo que não constitui o método padrão para o diagnóstico pré‑operatório de uma doença hepática, principalmente quando realizado em crianças. A obstrução da árvore biliar, seja intra‑hepática, seja extra‑hepática, causa distensão dos ductos biliares pela bile antes do ponto da lesão. A obstrução extra‑hepática é frequentemente sujeita àintervenção cirúrgica, no entanto a colestase procedente da obstrução da árvore intra‑biliar ou de insuficiência secretora hepatocelular não recebe vantagem com a cirurgia, a não ser que ela seja de transplante, mas, pelo contrário, em caso de intervenção cirúrgica, a condição do paciente pode se agravar. 6.6 Complicações da insuficiência hepática As insuficiências hepáticas podem trazer diversas complicações, teremos a seguir alguns exemplos. 6.6.1 Encefalopatia hepática A encefalopatia hepática (EH) é uma disfunção cerebral, uma das complicações neuropsiquiátricas mais frequentes e debilitantes causada por insuficiência hepática. Associadas às hepatopatias agudas ou crônicas, as EHs são graves complicações das cirroses; o comprometimento cognitivo requer maior utilização de recursos de saúde. Esta doença se apresenta por amplo espectro de manifestações neurológicas ou psiquiátricas caracterizadas por distúrbios de atenção, alterações do sono e distúrbios motores que progridem desde simples alterações subclínicas como letargia a estupor ou coma. Embora o mecanismo fisiopatológico da EH não tenha sido totalmente esclarecido, estudos sugerem que o acúmulo de amônia resultante do comprometimento do clearance hepático esteja diretamente relacionado aos efeitos prejudiciais sobre a função cerebral. Estão envolvidas alterações no sistema Gaba, nas concentrações de neurotransmissores e de aminoácidos circulantes, que também favorecem na patogênese da doença. Suas manifestações clínicas resultam dos efeitos neurotóxicos das substâncias nocivas que se acumulam na corrente sanguínea, ocasionando frequentemente a perda da função metabólica hepática após redução significativa do parênquima hepático, seja em doenças hepáticas agudas – como nas hepatites fulminantes, seja nas crônicas – como acontece em cirrose hepática, que, por sua vez, está associada com o desenvolvimento de circulação colateral. Portanto, encefalopatia surge quando há incapacidade do fígado em eliminar ou transformar as 97 PATOLOGIA DOS SISTEMAS substâncias tóxicas provenientes da alimentação e do próprio fígado, pela destruição das suas células e/ou porque o sangue que vem do sistema digestivo desvia seu caminho habitual, indo direto para a circulação geral sem passar pelo fígado. Existem três tipos de EH, e elas são diferenciadas de acordo com a origem da hepatopatia associada, com a duração do quadro e com o tipo de manifestações neurológicas apresentadas. A do tipo A é consequência de insuficiência hepática aguda de uma hepatite fulminante, e sugere‑se que as causas mais frequentes deste tipo de encefalopatia sejam as hepatites virais e as tóxico‑medicamentosas; a denominada EH tipo B associa‑se à presença de neurotoxinas na circulação portal devido à existência de desvios circulatórios, sejam de origem artificial, congênitas ou espontâneas; por fim, EH tipo C, forma mais comum, tem ligação com a presença de cirrose hepática. Levando em consideração sua evolução ao longo do tempo, a EH subdivide‑se em EH episódica, com ocorrência de infeções, hemorragias gastrointestinais, alterações eletrolíticas, constipação, excesso de diurese, entre outros; EH recorrente indica episódios com intervalo de tempo menor ou igual a seis meses, apresentando as mesmas intercorrências da EH episódica; e EH persistente, que indica um padrão de alterações comportamentais que estão sempre presentes. Não há qualquer exame específico para o diagnóstico da EH, uma vez que ele deve ser um diagnóstico de exclusão, com a necessidade do conhecimento da existência de doença hepática aguda ou crônica, de um fator precipitante e a história pregressa de EH. A tomografia computadorizada do crânio, o exame do líquor e o eletroencefalograma (EEG) são indicados nos pacientes com características sugestivas da doença, e ainda há os testes psicométricos, que quantificam o comprometimento nas fases iniciais e intermediárias da doença. Existem diversos tratamentos para a doença, a maior parte dos pacientes tende a apresentar melhora clínica dos sintomas de 24 a 48h após o início do tratamento, e a ausência de resposta em 72 horas indica que outra causa deve ser pesquisada. O tratamento farmacológico possui grande eficácia quando a maior parte dos fármacos empregados ao tratamento atua diminuindo a produção de amônia, um dos principais agentes causais; o transplante hepático é uma opção e deve ser considerado como definitivo à doença e às complicações associadas. Além da deterioração da função hepática, é de fundamental importância o reconhecimento de um fator precipitante associado, pois tal ação direciona melhor o tratamento da EH, um distúrbio metabólico, portanto potencialmente reversível. Observação A reversibilidade não reduz a importância de sua identificação imediata e do tratamento, fatores que diminuem consideravelmente a sua potencial morbimortalidade. 98 Unidade II 6.6.2 Síndrome hepatorrenal A síndrome hepatorrenal (SHR) é definida como a ocorrência de insuficiência renal oligúrica, uma condição clínica grave que consiste em uma rápida deterioração da função renal. Trata‑se de uma complicação comum em pessoas com cirrose, insuficiência hepática e hipertensão portal, uma vez que a doença hepática grave pode acarretar anormalidades funcionais nos rins. Esta síndrome atinge cerca 18% dos pacientes cirróticos com ascite no período de um ano, e, se não for tratada, evolui sistematicamente para a morte; todavia, uma abordagem rápida, correta e eficaz é essencial para possível reversão do quadro e estabilização da situação do paciente. Ocasionada por uma patologia hepática aguda ou crônica, a SHR tem como principal causa da alteração na função renal a vasoconstrição das artérias renais, geralmente pela formação de ascite, que, por consequência, leva ao hipofluxo renal e à retenção de água e sódio, propiciando insuficiência renal aguda. Tal falência pré‑renal é também pré‑isquêmica e pode ocasionar necrose tubular, quando há diminuição da perfusão sanguínea, resultando em morte celular. Na maioria dos casos, a patologia de base é a cirrose que desencadeia hipertensão portal, influenciando na formação de varizes esofágicas e consequentemente de hemorragias que causam hipovolemia e infecções. A SHR é classificada em tipo 1 e 2, sendo a do tipo 1 a mais temível evolução clínica da doença; caracteriza‑se pelo aumento rápido e progressivo dos níveis de ureia e creatinina séricas em um reduzido período de tempo e comumente se desenvolve em pessoas que já apresentam a SHR tipo 2 associada a um fator precipitante, mas também pode ocorrer em pacientes com função renal prévia preservada. A SHR do tipo 2 define‑se por moderada diminuição da função renal, permanecendo estável durante o período de meses, e não tende a progredir ao longo do tempo. A SHR do tipo 2 geralmente acontece em pessoas que apresentam função hepática relativamente preservada, e em grande escala com ascite refratária; já na SHR do tipo 1, se não tratados, a maioria dos pacientes (95%) morrem depois de duas a três semanas do início da deterioração da função renal. A sobrevida dos pacientes com SHR é ruim e a recuperação espontânea muito rara. A prevenção da síndrome é baseada não só na melhora da função hepática e na diminuição da vasoconstrição renal, mas em evitar ou tratar tal afecção de forma precoce e efetiva. Seu diagnóstico baseia‑se em critérios clínicos e laboratoriais e deve ser feito após a exclusão de outras causas de insuficiência renal. Em primeiro lugar devem ser descartadas as perdas digestivas e renais decorrentes dos eventos de vômitos, diarreias e doses excessivas de diurético, que podem ser os fatores causais de insuficiência renal e pré‑renal. O diagnóstico da SHR ainda deve quantificar os valores séricos de ureia e creatinina, bem como a taxa de filtração glomerular, isto através de exames laboratoriais que referem os mínimos e máximos para mensurar os índices. Não há nenhum dado clínico ou laboratorialespecífico, pois se trata de um diagnóstico de exclusão, por isso se dá a importância ao descarte de outras possíveis causas de insuficiência renal. Seu desenvolvimento deve‑se, na maioria das vezes, à vasodilatação das artérias esplâncnicas e à diminuição do volume circulante. De modo geral, o tratamento dos pacientes portadores da doença 99 PATOLOGIA DOS SISTEMAS varia de acordo com o estado severo de insuficiência renal e das complicações associadas. Embora o transplante hepático seja o único método efetivo de tratamento para a SHR, o tratamento clínico de cuidados intensivos e intermediários da doença aumenta os índices de sobrevida do paciente que aguarda o transplante, logo, ele é realizado através do uso de agentes farmacológicos, da administração de vasoconstritores que melhoram a perfusão renal e também a taxa de filtração glomerular, sendo a terlipressina o fármaco mais utilizado; albumina, como expansor de volume; nos pacientes com SHR do tipo 2, emprega‑se o uso de diuréticos para o tratamento de ascite. Tips (transjugular intrahepatic portosystemic shunt) é um procedimento radiológico percutâneo que consiste em estabelecer uma comunicação intra‑hepática entre um ramo da veia porta e a veia cava inferior com objetivo da descompressão da veia porta e diminuição da pressão portal para evitar ou reduzir as complicações em pacientes com hepatopatia crônica. Parece também ser efetivo no tratamento; enquanto o Tips melhora a função circulatória e reduz a atividade dos sistemas vasoconstrictores, a perfusão renal se mantém, resultando em aumento da taxa de filtração glomerular, e redução nos níveis séricos de creatinina. A prevenção da SHR deve ser baseada na melhora da função hepática e redução da vasoconstrição renal, evitando os fatores precipitantes ou tratando‑os de forma precoce e efetiva, uma vez que a doença pode aparecer de forma espontânea ou por conta da presença destes fatores. São seus exemplos: peritonite bacteriana espontânea (PBE) decorrente de infecções bacterianas, cirrose hepática, ascite refratária, hemorragia gastrointestinal, entre muitos outros. 6.7 Hepatites agudas O termo hepatite inclui o conjunto de lesões necróticas e inflamatórias que acometem o fígado de modo difuso, embora com distribuição heterogênea, e que se expressam clinicamente por icterícia, colúria, acolia fecal, astenia e outras manifestações sistêmicas. Hepatites são provocadas sobretudo por vírus, e são menos frequentemente por outras causas, como medicamentos, distúrbios autoimunes e transtornos metabólicos. As hepatites existentes (A, B, C, D) são causadas pelos chamados vírus hepatotrópicos. Saiba mais Através do Manual proposto pelo Ministério da Saúde do Brasil, será possível aprofundar os conhecimentos sobre o diagnóstico da doença. Leia: BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Vigilância em Saúde. Departamento de DST, Aids e Hepatites Virais. Manual técnico para o diagnóstico das hepatites virais. Brasília: Ministério da Saúde, 2015a. Disponível em: <http://www.aids.gov.br/sites/default/files/anexos/ publicacao/2015/58551/manual_tecnico_hv_pdf_75405.pdf>. Acesso em: 7 jul. 2017. O vírus da hepatite A (VHA) ocasiona uma infecção causada por um vírus RNA classificado como sendo da família Picornavírus. É transmitida por via fecal‑oral e atinge mais frequentemente crianças e adolescentes. A água e os alimentos contaminados com fezes com VHA são os grandes veículos de 100 Unidade II propagação da doença. Água contaminada pode provir de esgotos e, de alguma maneira, entrar em contato com os alimentos. Os indivíduos afetados por esta infecção apresentam sintomas inespecíficos, como fadiga e perda do apetite, e frequentemente desenvolvem icterícia. O tratamento mais eficaz para prevenir a infecção está disponível desde 1992, é a vacina contra o VHA. O vírus da hepatite B (VHB) é o único vírus de DNA reconhecido como causador de hepatite aguda na espécie humana, podendo ocasionar também hepatite crônica não progressiva e doença crônica progressiva, terminando em cirrose, hepatite fulminante com necrose hepática maciça e um estado de portador assintomático. A doença hepática crônica induzida pelo VHB é um precursor importante para o desenvolvimento de carcinoma hepatocelular. Os principais mecanismos envolvidos na transmissão do VHB estão relacionados à exposição percutânea de sangue e seus derivados, transmissão perinatal (vertical) e transmissão sexual. Outros mecanismos de transmissão seriam em ambientes fechados onde ocorram respingos, nas paredes, através de sangue contaminado pelo VHB, como em unidades de hemodiálise. Aproximadamente 70% dos indivíduos com VHB não apresentam sintomas ou eles são leves e não desenvolvem icterícia. Os demais 30% têm sintomas como anorexia, febre, icterícia e dor no quadrante superior direito. A VHB pode ser prevenida pela vacinação, tendo em vista que ela eleva a produção adequada de anticorpos em 95% nos adultos e pela triagem de sangue, órgão e tecido de doadores. O vírus da hepatite C (VHC) é hoje a principal causa de hepatite crônica no mundo todo. Suas altas taxas de prevalência estão diretamente relacionadas com os chamados grupos de riscos: hemofílicos; pacientes hemodialisados; receptores de múltiplas transfusões de sangue; recém‑nascidos de mães portadoras; toxicômanos. O VHC cursa de forma assintomática (70 a 80%), fazendo com que estes casos sejam raramente diagnosticados. Aqueles que apresentam sintomas (20 a 30%) o fazem com intensidade menor do que nas demais formas de hepatites. Sintomas como náuseas, vômitos, mal‑estar, fadiga, febre e icterícia podem marcar a hepatite C. Apesar das múltiplas tentativas, ainda não há vacina contra a hepatite C, tampouco uma profilaxia eficaz pós‑exposição. A redução da infecção (e das doenças a ela relacionadas) requer a implementação de atividades de prevenção primárias e secundárias. As primárias, para reduzir a incidência da infecção; as secundárias, para diminuir o risco de hepatopatia e de outras doenças entre os portadores do VHC. O vírus da hepatite D (VHD), considerado um mutante de viroides vegetais, depende do envoltório do VHB para sua replicação e expressão. Ambos podem ser transmitidos concomitantemente a indivíduos suscetíveis (coinfecção): ou o VHD superinfecta um portador doente ou assintomático do VHB. Sua transmissão é via parenteral, percutânea, sexual e perinatal. 101 PATOLOGIA DOS SISTEMAS A superinfecção por VHD em um portador crônico de HVB pode se manifestar com hepatite aguda severa em portador de HVB previamente não reconhecido ou como exacerbação da hepatite B crônica preexistente. A infecção crônica por VHD ocorre em 80 a 90% destes pacientes. O VHD é detectável no sangue e no fígado imediatamente antes e nos primeiros dias de doença sintomática aguda. O tratamento da infecção por VHD é limitado aos agentes antivirais. O vírus da hepatite E (VHE) é uma infecção de transmissão entérica, pela água, que ocorre primariamente em adultos jovens até meia‑idade; infecção esporádica e doença manifestada são raras em crianças. Um aspecto característico da infecção por VHE é a alta taxa de mortalidade entre gestantes, chegando a 20%. Na maioria dos casos, a doença é autolimitada; ele não está associado à doença hepática crônica ou viremia persistente. Observação Antes do início da doença clínica, o VHE pode ser detectado por PCR nas fezes e no soro. O período de transmissibilidade ocorre duas semanas antes do início dos sintomas até o fim da segunda semana da doença. 6.8 Hepatopatia alcoólica A hepatite alcoólica, isto é, doença Hepática Alcoólica (DHA), ou ainda esteato‑hepatite alcoólica, é a hepatopatia induzida pelo consumo abusivo de álcool (etanol), que leva à degeneração do fígado; este agente é a principal causa de doença hepática nos países ocidentais, moléstia em que convergem fatores biológicos, clínicos, epidemiológicos e psicológicos. A hepatite alcoólica é uma doença humanadesencadeada por ação do próprio homem, desenvolvida e articulada por diversos fatores, por isso tem se tornado um grave problema de saúde pública. Dados epidemiológicos possibilitaram mostrar que em países como Estados Unidos, França, Canadá e Suécia há relação direta de mortes por cirrose associadas ao consumo per capita de bebidas alcoólicas. Além da DHA, o alcoolismo crônico pode apresentar padrões de doenças hepáticas em um amplo espectro, como esteatose, cirrose hepática descompensada e carcinoma hepatocelular. As doenças alcoólicas estão entre as mais importantes no mundo, uma vez que o álcool pode afetar os mais diversos órgãos e sistemas, lesionando‑os. A hepatopatia alcoólica é provocada por uso abusivo e prolongado de etanol, não necessariamente dependência, e é associada a outros fatores predisponentes, genéticos e ambientais (nutrição, VHB e VHC etc.). O etanol é absorvido rapidamente pelo trato gastrointestinal e distribuído nos tecidos, menos de 10% são eliminados pelos pulmões e rins, todo o restante é oxidado no fígado, tornando‑se assim o órgão mais afetado. O metabolismo nos hepatócitos ocorre por três vias, que, por oxidação no citosol, são responsáveis pela formação da álcool desidrogenase (ADH). Então, produzem acetaldeído, que é convertido em acetil‑CoA no retículo endoplasmático pelo CYP2E1 (citocromo P450), gerando radicais livres que reagem com ácidos graxos, 102 Unidade II formando ésteres (acil etanol ésteres), causando peroxidação das membranas celulares e agressão às células, logo lesões. O sistema microssomal de oxidação do etanol, que envolve a CYP2E1, quando o aumento da atividade pode ser induzido pelo maior consumo de álcool, explica a tolerância em alcoolistas crônicos, aumentando assim o estresse oxidativo e se tornando responsável pela metabolização do álcool quando em altas concentrações. Já a ADH é o sistema responsável pelo metabolismo do álcool em baixas concentrações. Na hepatite alcoólica umas manifestações podem ser discretas enquanto outras muito graves, como a insuficiência hepática. O quadro clínico da doença apresenta sintomas como anorexia, perda de peso, dor, desconforto abdominal, aumento das enzimas hepáticas e, em alguns casos, febre, tremores, colestase, leucocitose etc., assim designando a afecção como hepatite aguda alcoólica; isso ocorre porque suas características advêm das lesões do álcool no organismo transformado em ácidos nocivos às células hepáticas. O diagnóstico da doença deve se basear em anamnese, exame físico, exames por imagens, exames histológicos e abstinência alcoólica, que pode resolver o caso para alguns pacientes, enquanto para outros não impede a progressão para cirrose. Trata‑se de uma doença grave que pode levar o paciente ao coma e ao óbito. Seu tratamento pode ser subdividido em específico e não específico. A abstenção total de bebidas alcoólicas pode diminuir a insuficiência hepática, melhorar o prognóstico e as lesões histológicas, reduzir a pressão portal e a progressão para a cirrose, contudo só é efetiva através do tratamento da dependência etílica, da correção da desnutrição, dos distúrbios hidroeletrolíticos e metabólicos, das deficiências vitamínicas e de ácido fólico; o repouso é uma medida que pode contribuir de modo geral nas formas descompensadas da DHA, como ascite, icterícia ou encefalopatia. Embora não tenha sido demonstrado como terapêutica eficaz, ainda há o tratamento dos sintomas com o uso de analgésicos, se necessário. 6.9 Hepatopatias metabólicas Estudaremos a seguir os tipos mais comuns de hepatopatias metabólicas. 6.9.1 Hemocromatose A hemocromatose (também conhecida como hemocromatose primária ou hereditária) é um distúrbio hereditário homozigoto recessivo causado por absorção excessiva de ferro, resultando em armazenamento excessivo deste elemento, com dano estrutural e funcional, no fígado, no pâncreas, no coração, nas articulações, nas gônadas e em outros órgãos. O gene responsável pela hemocromatose é o HFE, que codifica uma molécula similar à MHC classe I, a qual regula a absorção do ferro da dieta. HFE, presente na superfície basolateral dos enterócitos, com o receptor de transferrina 1 e a própria transferrina, é responsável pela endocitose de ferro do sangue, mantendo o pool intracitoplasmático do metal que regula a expressão das proteínas incumbidas pela absorção de ferro ingerido. Defeito no gene HFE resulta em perda da regulação e, portanto, em absorção excessiva de ferro. O início da doença é insidioso, com sintomas inespecíficos, que incluem astenia, letargia, fadiga, artralgias, perda da libido ou impotência sexual entre os homens e amenorreia entre as mulheres. A 103 PATOLOGIA DOS SISTEMAS hepatomegalia está presente em cerca de 95% dos pacientes sintomáticos e geralmente precede o desenvolvimento de sintomas ou alterações dos testes de função hepática. Com o decorrer do tempo, outros sintomas e sinais aparecem, tais como: dor abdominal, Diabetes mellitus, anormalidades endócrinas, manifestações cardíacas, hiperpigmentação cutânea, artropatia hemocromatótica, sinais de insuficiência hepática, crônica e predisposição a infecções. A hemocromatose pode ser diagnosticada muito antes da ocorrência de dano tissular irreversível. A pesquisa envolve a demonstração de níveis muito elevados de ferro sérico e ferritina, exclusão de causas secundárias de sobrecarga de ferro e biopsia hepática se indicada, sendo que a triagem dos familiares é de suma importância. Atualmente, a maioria dos pacientes com hemocromatose é diagnosticada no estágio subclínico, pré‑cirrótico, devido a medidas de rotina do ferro sérico (como parte de outras avaliações diagnósticas). O tratamento deve ser instituído o mais precocemente possível, pois em fases em que ainda não há lesões irreversíveis de órgãos a expectativa de vida é normal. O tratamento tem como base a realização de sangrias. A frequência delas vai depender da gravidade do caso e da tolerância do paciente ao procedimento. Preconiza‑se a realização de sangrias de 350‑450 ml (retirada de 200‑250 mg de ferro), uma a duas vezes por semana, com o objetivo de atingir valores de ferritina <50 μg/L e de saturação de transferrina <30%. O tempo para se atingir tais valores pode ser longo, demorando de dois a três anos. Após alcançar estes valores, as sangrias devem ser espaçadas para uma sessão a cada dois ou três meses, mantendo‑se os valores de ferritina <100μg/L e de saturação de transferrina <50%. Quanto mais precoce o início do tratamento, melhor, pois pode prevenir lesões nos órgãos e melhorar a sobrevida. Algumas lesões, uma vez estabelecidas, não podem ser revertidas, embora sua progressão possa ser diminuída. Incluem‑se, neste caso, a cirrose, o hipogonadismo, a artrite destrutiva e o diabetes insulinodependente. 6.9.2 Doença de Wilson Descrita pela primeira vez por Kinnear Wilson, em 1912, a doença de Wilson (DW) é uma afecção transmitida por herança autossômica recessiva que produz defeito no metabolismo do cobre. É associada ao seu acúmulo no fígado, no sistema nervoso central, nas córneas e nos rins. A afecção decorre da mutação do gene ATP7B, localizado no cromossomo 13 e responsável pela codificação da proteína ATPase 2, transportadora de cobre, que tem por função levar os metais através das membranas celulares. Nos hepatócitos, a proteína transfere o cobre à ceruloplasmina, glicoproteína que transporta o metal pelo organismo. Entretanto, quando for alta a quantidade de cobre nos hepatócitos, a proteína o elimina pela bile. A mutação do gene ATP7B causa defeitos na proteína, o que leva à redução na excreção de cobre pelas vias biliares, redução da incorporação de cobre à ceruloplasmina e dificuldade de secreção de ceruloplasmina para o sangue. Apesar da alteração que realiza na função hepática, a DW não é fator que predispõe ao aparecimento de câncer no fígado. 104 Unidade II A absorção de cobre proveniente da dieta excede as quantidades diáriasnecessárias, e, como consequência, seu acúmulo gera lesões hepatocelulares cirrotizantes, demência, distúrbios neuropsiquiátricos, alterações de função renal e cardíaca. Manifestações clínicas são muito variáveis na DW, com sintomatologia caracterizada por manifestações neurológicas, hepáticas, psiquiátricas e oculares, que podem ocorrer desde os 5 até os 60 anos de vida, sendo o período entre 8 e 20 anos o de maior incidência. Inicialmente as manifestações em 40% dos casos estão relacionadas ao comprometimento hepático, 40% de manifestações neurológicas e 20% de manifestações psiquiátricas. Os sintomas hepáticos são diversos, como alterações no peso, anorexia, ascite, indisposição, icterícia e aminotransferases aumentadas, podendo ser verificados em intervalos de meses, até anos, ou podendo estar presentes até que os sintomas neurológicos se desenvolvam; ocorrem discretas alterações do comportamento até psicose ou manifestações semelhantes às mudanças da doença de Parkinson. A apresentação clínica mais comum é a doença hepática, aguda ou crônica, e outro sinal clínico importante é o anel corneano de Kayser‑Fleischer. Observação A doença de Wilson é uma hepatopatia rara, e seu diagnóstico pode ser difícil, pois as manifestações podem ser atípicas e não há um único exame de investigação. O diagnóstico é feito através de alterações laboratoriais. O tratamento precoce é de fato eficaz, evita complicações graves e sem ele o comprometimento das lesões tornam‑se invariavelmente fatais. Existem tratamentos específicos disponíveis para cada caso, uma vez que eles são de caráter farmacológico, baseado no uso de drogas quelantes do cobre, a penicilamina, a trientina e o tetratiomolibdato, que agem removendo e detoxificando o cobre intra e extracelular e os sais de zinco, que diminuem a absorção intestinal de cobre; por meio do transplante hepático, para pacientes com doença hepática terminal ou fulminante; e também pela indicação de dieta com baixa quantidade de cobre, importante principalmente nas fases iniciais da doença, porém essa terapêutica isoladamente não é suficiente para o tratamento efetivo. O tratamento tem por objetivo remover o excesso ou prevenir o acúmulo de cobre, e a terapia deverá ser mantida por toda a vida. 6.10 Hepatopatias congênitas Destacaremos a seguir os tipos mais comuns de hepatopatias congênitas. 6.10.1 Cirrose biliar primária A cirrose biliar primária (CBP) é uma doença autoimune inflamatória que afeta sobretudo os ductos biliares intra‑hepáticos. A característica principal desta doença é a destruição inflamatória não supurativa dos ductos biliares intra‑hepáticos de tamanho médio. Ela é acompanhada por inflamação portal, cicatrização e eventual desenvolvimento de cirrose e insuficiência hepática. 105 PATOLOGIA DOS SISTEMAS Os níveis séricos de fosfatase alcalina e colesterol estão quase sempre elevados, mesmo no início da doença; a hiperbilurrubina é um desenvolvimento tardio e geralmente indica descompensação hepática incipiente. Anticorpos antimitocondriais estão presentes em 90 a 95% dos pacientes. Estes achados são altamente característicos de CBP e constituem um elemento essencial para o diagnóstico. Embora a origem da CBP permaneça desconhecida, vários motivos indicam etiologia autoimune: elevada associação com outras doenças autoimunes (tireoidite, artrite reumatoide, esclerose sistêmica etc.). Fatores genéticos também parecem ter importância: a taxa de concordância entre gêmeos monozigóticos é de até 60%, a mais alta entre as doenças autoimunes; em contrapartida, não há concordância entre gêmeos dizigóticos. Outras doenças autoimunes podem associar‑se também à CBP em cerca de 70% dos pacientes. Entre elas, destacam‑se a esclerodermia, a síndrome de Sjögren e a síndrome de Crest (calcinose, fenômeno de Raynaud, dismotilidade esofagiana, esclerodactilia, telangiectasia). Integrando estes aspectos, acredita‑se que a CBP seja uma doença autoimune que se desenvolve em indivíduos geneticamente suscetíveis expostos a algum fator ambiental ainda desconhecido, que leva à perda de tolerância imunológica. Em geral, os pacientes são assintomáticos por anos ou mesmo décadas e não são conhecidos os indicativos do aparecimento dos sintomas. Não há correlação entre sintomas e gravidade da doença hepática. Na prática, pacientes assintomáticos são diagnosticados quando se detectam, em exames de rotina, ou em investigações clínicas de causas de hepatomegalia ou esplenomegalia. É também frequente o seu diagnóstico nos familiares de portadores de CBP. As manifestações mais comuns dos pacientes sintomáticos são pruridos (coceira) e fadiga. Outros ainda incluem icterícia (coloração amarelada dos olhos e da pele), depósitos de colesterol na pele, retenção de líquidos, e boca e/ou olhos secos. Algumas pessoas com CBP também têm osteoporose, artrite e problemas de tireoide. O tratamento específico para CBP é o uso do ácido ursodesoxicólico (UDCA). O UDCA é um ácido biliar hidrofílico natural com propriedades menos hepatotóxicas do que os ácidos biliares endógenos, que têm sido amplamente utilizados na atualidade no tratamento da CBP. Seu mecanismo de ação não é completamente conhecido, mas sabe‑se que tem diversas funções relacionadas, como expansão do total de ácidos biliares hidrofílicos, ações colerética direta e anti‑inflamatória, além de efeitos antiapoptóticos sobre o epitélio hepático. UDCA é uma droga segura e apresenta poucos efeitos colaterais. Cerca de 30% dos pacientes têm resposta completa ao tratamento, com normalização bioquímica e melhora ou estabilização das lesões histológicas. 106 Unidade II 6.10.2 Colangite esclerosante primária A colangite esclerosaste primária (CEP) é marcada por inflamação e fibrose obliterativa dos ductos biliares intra‑hepáticos e extra‑hepáticos, com dilatação dos segmentos preservados. A formação de “pérolas” de meio de contraste, característica nas radiografias da árvore biliar intra‑hepática e extra‑hepática, é atribuída a estenoses e dilatações irregulares dos ductos biliares afetados. CEP é um distúrbio colestático crônico assinalado por inflamação inespecífica, fibrose e estenoses dos ductos biliares intra e extra‑hepáticos. Vários aspectos da doença sugerem que ela seja o resultado de uma lesão mediada dos ductos biliares. Eles incluem a detecção de células T no estroma periductal, a presença de uma pletora de autoanticorpos circulantes e a associação com a colite ulcerativa. Em geral, ela é vista em associação à doença intestinal inflamatória, particularmente a colite ulcerativa crônica, que coexiste em aproximadamente 70% dos indivíduos com CEP. O curso da doença varia de um paciente para outro, mas na maioria dos casos ocorre de modo lento, embora irreversível, podendo evoluir para doença hepática terminal, com cirrose biliar e hipertensão porta. Existe ainda alta associação (até 80%) com adenocarcinoma das vias biliares. Atualmente CEP é a indicação mais importante para o transplante hepático. Sua origem ainda é desconhecida, havendo forte associação com colite ulcerativa idiopática (cerca de 75% dos casos) e, menos frequentemente, com artrite reumatoide, doença celíaca, doença de Crohn, fibrose retroperitoneal, tireoidite de Riedel, pseudotumor orbitário, lúpus eritematoso sistêmico e pancreatite crônica. A manifestação inicial da doença varia desde sintomas inespecíficos de fadiga, astenia e perda de peso até quadro mais característico de colestase, com icterícia, colúria, acolia fecal e/ou prurido. Um terço dos pacientes pode apresentar, inicialmente, episódios recorrentes de colangite aguda. Hoje em dia, a maioria dos pacientes é diagnosticada por elevação de enzimas hepáticas detectadas em exames de rotina. A doença segue um curso prolongado de cinco a 17 anos, e os pacientes gravemente afetados apresentam sintomas usuais de doença hepática crônica, incluindo perda de peso, ascite, sangramento de varizes e encefalopatia. Aproximadamente7% dos indivíduos com CEP desenvolvem colangiocarcinoma. Não existe tratamento específico satisfatório para a CEP. Alguns dos tratamentos de suporte voltados para o controle dos sintomas e das complicações da colestase são: prurido, fadiga, osteoporose e deficiência das vitaminas hidrossolúveis. Pacientes com colangites agudas intercorrentes devem ser agressivamente tratados com antibióticos e avaliados para elegibilidade de transplante de fígado. Na presença de estenoses dominantes, tratamento endoscópico, preferencialmente com dilatação sem colocação de prótese biliar, pode ser tentado após exclusão de colangiocarcinoma. 107 PATOLOGIA DOS SISTEMAS 6.11 Colelitíase e colecistite Colelitíase é o termo usado para denominar os cálculos da vesícula, sendo a doença mais prevalente do trato biliar, afetando de 10 a 20% das populações adultas nos países desenvolvidos. Existem dois tipos principais de cálculos da vesícula, os cálculos de colesterol, contendo mais de 50% de colesterol cristalino monoidratado e os cálculos pigmentares, compostos predominantemente de sais de cálcio de bilirrubina. Cálculos de colesterol são formados quando o colesterol é solubilizado na bile pela agregação aos sais biliares hidrossolúveis e às lecitinas insolúveis em água, que atuam como detergentes. Quando as concentrações de colesterol excedem a capacidade de solubilização da bile (supersaturação), o colesterol pode já não permanecer disperso e é nucleado em cristais monoidratados de colesterol sólido. Cálculos da vesícula pigmentar são misturas complexas de sais de cálcio insolúveis anormais de bilirrubina não conjugada com sais de cálcio inorgânicos. Os cálculos da vesícula biliar são constituídos por várias combinações de componentes insolúveis da bile, incluindo‑se colesterol, bilirrubinato de cálcio, sais orgânicos e inorgânicos de cálcio, sais biliares e glicoproteínas. Os cálculos podem ser pequenos como um grão de areia e grandes como uma bola de golfe. Na vesícula podem se desenvolver apenas um grande cálculo, centenas de cálculos pequenos, ou qualquer combinação deles. Os fatores de risco mais comumente associados ao desenvolvimento de cálculos da vesícula são: idade acima de 60 anos, sexo feminino, elementos ambientais, distúrbios adquiridos, fatores hereditários, obesidade, gestações, perda rápida de peso, Diabetes mellitus, dieta rica em gordura e colesterol e pobre em fibras. Na minoria dos casos, os cálculos podem obstruir o fluxo normal de bile se eles se alojarem em qualquer dos ductos que levam a bile do fígado ao duodeno. Isto inclui os ductos hepáticos, que trazem a bile do fígado; o ducto cístico, que conduz bile à vesícula e pelo qual ela se esvazia; e o ducto biliar comum (ou colédoco), que transporta a bile ao duodeno. Se qualquer destes ductos persistirem bloqueados por um período significante de tempo, pode ocorrer a infecção das estruturas do sistema biliar; o que talvez seja grave e até mesmo fatal. Sinais de alarme de problemas séricos são febre, icterícia e dor persistente. Clinicamente, a maioria dos pacientes com colelitíase é assintomática. A principal manifestação é a cólica biliar, em consequência, sobretudo de obstrução das vias biliares por cálculo impactado; colecistite associada também contribui para a dor. O risco de obstrução biliar depende do tamanho do cálculo; quando pequeno, migra para as vias biliares e pode obstruí‑las. Muitos pacientes queixam‑se de dor no hipocôndrio direito e intolerância a alimentos gordurosos. A ultrassonografia é o método de escolha para seu diagnóstico, pois detecta virtualmente todos os cálculos maiores que 3 mm de diâmetro. 108 Unidade II Existe consenso de que a colecistectomia é o tratamento de escolha para a colelitíase sintomática. A colecistite aguda, sempre que possível, deve ser tratada de maneira conservadora, com antibióticos, hidratação, correção de distúrbios eletrolíticos e medidas gerais para o alívio dos sintomas. A colecistectomia é indicada logo após a fase aguda, a fim de evitar aderências ao redor da vesícula inflamada. Sugere‑se a cirurgia de urgência nos casos de obstrução biliar. Observação A inflamação da vesícula biliar pode ser aguda, crônica, ou aguda superposta à crônica. Quase sempre ocorre em associação com cálculos de vesícula. A colecistite calculosa aguda é uma inflamação aguda da vesícula biliar, precipitada em 90% das vezes por obstrução do colo ou do ducto cístico. Esta é a complicação primária dos cálculos biliares e o motivo mais comum para colecistectomia de emergência. A colecistite sem cálculos, chamada de colecistite acalculosa, pode ocorrer em pacientes com doenças graves e representa aproximadamente 10% dos pacientes com colecistite. Além de obstrução por cálculo impactado e contaminação secundária por bactérias (por exemplo, Escherichia coli, enterococos e alguns anaeróbios), a ação de fosfolipases do epitélio gera lisolecitina, a qual altera a camada de muco protetora da mucosa e expõe o epitélio à ação de sais biliares. Liberação de prostaglandinas também contribui para a inflamação. Em 10% dos pacientes, colecistite aguda não é acompanhada por litíase. Nestes casos, a inflamação parece ser precipitada por isquemia. As principais condições associadas são traumatismos graves, cirurgias, parto, queimaduras, doenças sistêmicas (por exemplo, Diabetes mellitus, câncer), transfusões sanguíneas múltiplas, septicemia, obstrução da vesícula biliar não calculosa (carcinoma, fibrose, anomalia congênita) e artrites. O paciente não costuma mostrar sintomas prévios de uma doença da vesícula biliar, até que experimenta dor repentina e agudíssima na parte superior do abdome, podendo surgir febre de origem desconhecida, leucocitose e hiperamilasemia, sem dor ou sensibilidade no hipocôndrio direito. A colecistite crônica pode ser uma sequela de surtos repetidos de colecistites agudas leve à severa, mas, em muitos casos, se desenvolve na ausência aparente de ataques antecedentes. Uma vez que está associada à colelitíase em mais de 90% dos casos, as populações de pacientes são as mesmas observadas para os cálculos de vesícula. A origem da colecistite crônica é pouco conhecida. Ao contrário da aguda, obstrução biliar não é necessária. Microrganismos são isolados em cerca de 30% dos casos. A maioria das vesículas removidas por colelitíase apresenta algum grau de inflamação crônica. Os sintomas da colecistite calculosa crônica são semelhantes aos da forma aguda e variam desde cólica biliar até uma dor indolente no quadrante superior direito e desconforto epigástrico. 109 PATOLOGIA DOS SISTEMAS A colecistite crônica não apresenta as manifestações notáveis das formas agudas e geralmente é caracterizada por ataques recorrentes de dor estáveis ou em cólica no epigástrio ou no quadrante superior direito. Náusea, vômitos e intolerância a alimentos gordurosos são acompanhantes frequentes. O diagnóstico de colecistite aguda e crônica é importante pelas seguintes complicações: superinfecções bacterianas com colangite ou sepse, perfuração da vesícula biliar e formação local de abscesso, ruptura da vesícula com peritonite difusa, fístula entérica biliar (colecistérica), com drenagem de bile nos órgãos adjacentes, entrada de ar e bactérias na árvore biliar e possível obstrução intestinal induzida por cálculo (íleo), agravamento de condições médicas preexistentes, com descompensação cardíaca, pulmonar, renal ou hepática e vesícula em porcelana com maior risco de câncer. 6.12 Pancreatites Pancreatites são as inflamações que atingem o pâncreas. 6.12.1 Pancreatite aguda A pancreatite aguda é uma lesão reversível do parênquima pancreático associada à inflamação. As doenças dos tratos biliares e o alcoolismo são responsáveis por aproximadamente 80% dos casos da doença. Os cálculos estão presentes entre 35 a 60% dos eventos de pancreatite aguda, e cerca de 5% dos pacientes com cálculos biliares desenvolvem pancreatite. Trata‑se de uma doençadesencadeada pela ativação anômala de enzimas pancreáticas e liberação de uma série de mediadores inflamatórios, cuja etiologia corresponde, em cerca de 80% das situações, à doença biliar litiásica ou à ingestão do álcool. Na maioria das vezes, esta doença é autolimitada ao pâncreas e com mínima repercussão sistêmica; tal forma leve se caracteriza por apresentar boa evolução clínica e baixos índices de mortalidade. A magnitude das lesões pancreáticas, geralmente, correlaciona‑se com a gravidade da doença, podendo classificá‑la em branda ou grave. Na forma branda, que inclui a grande maioria dos casos, as manifestações cursam com mínima repercussão sistêmica, que melhora com a reposição de líquidos e eletrólitos. Por outro lado, na forma grave, além das complicações locais, há falência de órgãos e sistemas distantes, o que, via de regra, não responde às medidas iniciais e pode ter duração de semanas ou meses. As causas menos comuns de pancreatite aguda incluem: obstrução do sistema de ductos pancreáticos por cálculos, neoplasias periampulares, pâncreas divisum, coledococeles e parasitas; medicações como furosemida, azatioprina, estrogênios etc.; infecções, incluindo caxumba; distúrbios metabólicos como hipercalcemia, hipertrigliceridemia, hiperparatireoidismo, entre outros; lesões isquêmicas por choque, trombose vascular, embolia pulmonar e vasculite; traumas como os abdominais e alterações herdadas nos genes que codificam enzimas pancreáticas e seus inibidores, com mutações genéticas que ocasionam a pancreatite hereditária. 110 Unidade II Na chamada pancreatite hereditária, que é uma lesão associada a anormalidades genéticas, os defeitos mais comuns são alterações nos genes do tripsinogênio (PRSS1) ou do inibidor de proteases tipo 1 (SPINK1). No primeiro caso, a tripsina torna‑se resistente à inativação, enquanto no segundo a tripsina não sofre inibição. Nos dois eventos, a maior atividade de tripsina leva à autodigestão pancreática. A pancreatite aguda geralmente começa com dor no abdome superior e pode durar por poucos dias. A dor se acentua e se torna constante – só no abdome – ou se irradia para as costas e outras áreas. Ela pode ser súbita e intensa ou começar como uma dor fraca, que se torna pior durante a ingestão do alimento. Outros sintomas relacionados são: abdome distendido e sensível, náuseas, vômitos, febre, pulso rápido; nos casos graves podem causar desidratação e queda da pressão sanguínea. A dor abdominal é a principal manifestação da pancreatite aguda. Caracteristicamente, a dor é constante e intensa, sendo muitas vezes referida na parte superior das costas, e ocasionalmente está associada a uma dor no ombro esquerdo. Sua gravidade pode variar de leve e desconfortável à grave e incapacitante. As consequências e complicações da pancreatite aguda são: hipertensão arterial, choque, dano alveolar difuso (Sara), coagulação intravascular disseminada, insuficiência renal aguda, abscesso pancreático, pseudocisto e obstrução duodenal e do colédoco (icterícia). As bases do tratamento são o suporte clínico e a suspensão da ingesta oral, já que ainda não há tratamento específico para a pancreatite. O suporte clínico consiste em manutenção da perfusão tecidual através de reposição volêmica vigorosa e manutenção da saturação de oxigenação, analgesia e suporte nutricional. 6.12.2 Pancreatite crônica A pancreatite crônica é definida como uma inflamação do pâncreas com destruição irreversível do parênquima exócrino, presença de fibrose, e, na fase tardia, destruição do parênquima endócrino. De acordo com a extensão das lesões, pode ser classificada como discreta, moderada ou grave. Habitualmente, evolui com quadro doloroso abdominal e insuficiência pancreática, acompanhada ou não de crises repetidas de pancreatite aguda. A maioria das pessoas com pancreatite crônica tem dor abdominal, algumas delas não apresentam sintomas. A dor pode tornar‑se pior ao beber ou comer, espalhando‑se para as costas ou tornando‑se constante e incapacitante. Em certos casos, a dor abdominal desaparece com a progressão da doença, provavelmente porque o pâncreas não está mais produzindo enzimas digestivas. A doença pode se desenvolver totalmente silenciosa, até que a insuficiência pancreática e o Diabetes mellitus sejam notados; este último devido à destruição das ilhotas de Langherans. Em outros casos, ataques recorrentes de icterícia ou esporádicos ataques de ingestão podem sugerir doenças pancreáticas. A causa mais comum da pancreatite é o alcoolismo. Os pacientes com pancreatite crônica têm geralmente história de ingestão alcoólica prolongada (10 a 15 anos), são homens em sua maioria e situam‑se 111 PATOLOGIA DOS SISTEMAS preferencialmente na 4ª década de vida. A pancreatite crônica pode ainda ser hereditária, estar associada a outras doenças (por exemplo, hiperparatireoidismo) ou representar complicações de radioterapia abdominal. Embora comum, o alcoolismo não é a única causa da pancreatite crônica. As principais causas são: alcoolismo, ducto pancreático estreitado ou bloqueado em virtude de traumatismo ou formação de pseudocisto, causas hereditárias e idiopáticas. Suas causas menos comuns incluem: obstruções em longo prazo nos ductos pancreáticos causadas por cálculos, neoplasias e pâncreas divisum; pancreatite tropical, que é encontrada na Ásia e África, sendo que alguns casos apresentam base genética e mutações no gene CFTR, que diminuem a secreção de bicarbonato pelas células dos ductos pancreáticos, promovendo a adesão de proteínas e o desenvolvimento de pancreatite crônica. A origem da pancreatite crônica ainda não é bem compreendida. Quase todos os indivíduos com repetidos episódios de pancreatite aguda a acabam desenvolvendo posteriormente. Tem sido proposto que a pancreatite aguda inicia uma sequência de fibrose perilobular, distorções ductais e alterações nas secreções pancreáticas. Os múltiplos episódios ao longo do tempo podem provocar fibrose e levar à perda do parênquima pancreático. Os eventos sugeridos para a explicação do desenvolvimento da pancreatite crônica incluem: obstrução ductal por concreções, efeitos tóxicos e estresse oxidativo. O objetivo do tratamento do paciente é o alívio da dor para que ela não interfira nas atividades laborais e na vida familiar. Como regra geral, o controle deve seguir abordagem sequencial e escalonada, começando com a eliminação de fatores exógenos tóxicos como álcool, seguidos pela suplementação de enzimas pancreáticas e uso criterioso de analgésicos. A abstinência do consumo de álcool é imprescindível, especialmente quando este é o pilar da causa da doença, uma vez que a manutenção de sua ingestão excessiva exacerba o dano pancreático e aumenta a mortalidade. Pacientes com sintomas persistentes após essa abordagem inicial podem ser candidatos a tratamentos mais invasivos. Estima‑se que até 50% deles desenvolvam sintomas progressivos ou intratáveis clinicamente e que se tornem, portanto, candidatos ao tratamento cirúrgico A principal indicação cirúrgica é a dor abdominal intratável. A opção pelo tratamento cirúrgico também é indicada nas complicações da pancreatite crônica, tais como pseudocistos, fístulas pancreáticas, estenoses, comprometimento de órgãos adjacentes ou suspeita de neoplasia. Resumo As patologias do sistema gastrointestinal são causas frequentes de morbidade e mortalidade. Didaticamente, podemos estudá‑las divididas entre patologias do tubo digestivo e do fígado, vias biliares e pâncreas. No tubo digestivo ocorrem más‑formações ou distúrbios mecânicos que levam o indivíduo a fenômenos obstrutivos, desenvolvimento de fístulas, sangramentos, além de inflamação provocada pelo refluxo gastroesofágico. 112 Unidade II Nas doenças que acometem fígado, vias biliares e pâncreas destacam‑se a cirrose hepática e todas as suas causas genéticas, comportamentais, ambientais e infecciosas. Já nas vias biliares destacam‑se cálculos e inflamações agudas davesícula biliar. Por fim, no pâncreas, inflamações agudas e crônicas podem provocar morbidades severas e até a morte. Exercícios Questão 1. (Progepe 2017 (UFPR), adaptada) Com relação à doença do refluxo gastroesofágico (DRGE), analise as afirmativas a seguir: I – A esofagite por refluxo representa a maioria dos casos de DRGE. II – Os relaxamentos transitórios do esfíncter esofágico inferior respondem por pelo menos 90% do refluxo em pessoas normais ou sem hérnia hiatal. III – A hipersecreção do ácido gástrico é o fator predominante na patogenia da esofagite. IV – Os sintomas típicos da DRGE são pirose e regurgitação. Assinale a alternativa que apresenta apenas a(s) afirmativa(s) correta(s): A) Está correta apenas a I. B) Estão corretas I, II e III. C) Estão corretas II e III. D) Estão corretas I, II, III e IV. E) Estão corretas II e IV. Resposta correta: alternativa E. Análise das afirmativas I – Afirmativa incorreta. Justificativa: a maior frequência de DRGE está associada com a hérnia de hiato e, quanto maior seu tamanho, maior o risco de refluxo gastroesofágico anormal. 113 PATOLOGIA DOS SISTEMAS II – Afirmativa correta. Justificativa: o principal fenômeno motor associado ao refluxo gastroesofágico é o relaxamento transitório do esfíncter inferior do esôfago. III – Afirmativa incorreta. Justificativa: a inflamação da mucosa do esôfago devido ao retorno ou permanência do conteúdo estomacal no esôfago são os principais fatores da esofagite. IV – Afirmativa correta. Justificativa: os principais sintomas de DRGE são azia persistente, também conhecida como pirose e regurgitação de ácido. Questão 2. (Fundatec TJ/RS, 2010) Em relação à cirrose, é correto afirmar que: A) A função de síntese do hepatócito pode ser avaliada através da medida das transaminases séricas. B) As infecções crônicas pelos vírus das hepatites A, B e C estão entre as principais causas de cirrose no mundo ocidental. C) A esteato‑hepatite não alcoólica pode resultar em cirrose, se a condição básica não for corrigida. D) A insuficiência cardíaca esquerda crônica está entre as causas de cirrose. E) Em uma fase inicial da cirrose, ocorre um aumento da capacidade renal de excretar sódio. Resolução desta questão na plataforma.