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A DOUTA IGNORÂNCIA Pormenor do monumento a icolau de Cu a no seu túmulo na Igreja de San Pietro in Yincoli, em Roma A DOUTA IGNORÂNCIA Nicolau de Cusa 4.aEdição Tradução, introdução e notas de ]OÃO MARIA ANDRÉ FUNDAÇÃO CALO USTE GULBENKIAN Tradução do original latino inrirulado DE DOCfA IGNORANTIA de NICOlAU DE CUSA baseada na edição bilingue da Academia de Heildelberg na Felix Meiner Verlag Reservados todos os direitos de harmonia com a lei Edição da FUNDAÇÃO CALOUSTE GULBENKIAN Avenida de Berna I Lisboa 2018 ISBN 978-972-31-1439-3 INTRODUÇÃO 1. Vida e obras A 12 de Fevereiro de 1440 o Cardeal alemão Nicolau Krebs conclula em Cusa, sua terra natal e que lhe daria o nome com que posteriormente viria a ser conhecido, a redacção da obra que mais o notabilizaria nos séculos seguintes e cujo titulo, A douta ignorância, se tornaria emblemático como resposta tanto aos dogmatismos quanto aos cepticismos que frequentemente ameaçam a aventura humana do saber. Nascido em 1401, nas margem do rio Mosela, tinha então percorrido já várias etapas da sua formação: a educação juvenil (onde parece não ter tido lugar a frequência da Escola dos Irmãos da Vida Comum, em Deventer, centro da espiritualidade da "devotio moderna"1), a sua matrícula, em 1416, na Facul- dade das Artes da Universidade de Heidelberg, a frequência da Universidade de Pádua, entre 1417 e 1423, na qual obteve o grau de 'floctor decretorum': e o estudo de Filosofia e de Teologia na Universidade de Colónia, onde contacta com o pemamento de Raimundo Lu/lo e de Hemérico de Campo que o hão-de influenciar significativamentt?. Quando termina a redacção do 1 Cf. , tanto para estes pormenores quanto para uma panorâmica geral da vida de Nicolau de Cusa, a obra de Erich MEliTHEN, Nikolaus von lúw, 1401-464. Zkizzr rina Bibliographir, 7.• ed., Münster, Aschendorff, 1992. 2 Cf. Eusebio COI.OMER, Nikolaus von Kua und & imund Uull aus Hand.sch- riftm tÚr Kuan- Bilioth~k. Berlin , Walter de Gruyter, 1961 e, do mesmo autor, o breve artigo, em porruguês, • icolau de Cusa e Raimundo Lulo através dos manus- critos da Biblioteca de Cusa", &vista Portuguaa ek Filosofoz, 15 (1959), pp. 245-25 1. M seu De docta ignorantia, deixava também para trás a participa- ção no Concílio de Basileia, onde havia tomado posição ao lado dos conciliaristas e onde conheceu João de Segóvia, a quem o viria a ligar uma profund4 amizade que as divergências poste- riores sobre o primado do Concílio ou do Papa não seriam sufi- cientes para pôr em causa, unidos que estavam num projecto ecu- ménico com muitos pontos em comurrr3. Da reflexão eclesiológica então aprofund4d4 resulta a obra De concordantia catholica, na qual o autor expõe os seus pontos de vista não só sobre a orga- nização tÚl Igreja e a relação tÚls diversas partes do corpo eclesial, mas também sobre as relações entre a Igreja e o Império, traba- Lhando material que recebe sobretudo do Defensor pacis de Marsílio de Pádua. O aprofund4mento do conceito de unitÚltk e tÚls suas implicações práticas levá-lo-á, entretanto, a abraçar a posição dos partidários do Papa. Concluído, pois, em Cusa, em 1440, as referências incluí- tÚls na "Epístola auctoris" permitem-nos estabelecer que o De doera ignorantia terá sido escrito entre 1438 e essa tÚlta. Com efeito, é aí declarado que a "douta ignorância" lhe é inspiratÚl no mar, durante uma viagem de regresso tÚl Grécia; ora, em 1438 desembarcava o Cardeal em Veneza, vindo de uma missão a Constantinopla, que visava preparar um concílio para a união tÚl Igreja de Roma com as Igrejas Orientais. Nos anos seguintes continua a sua activitÚltk especulativa, de que resultará, por um lado, a sua seguntÚl grande obra filosó- fica, De coniecturis, mais marcatÚl por uma inspiração clara- mente neoplatónica e por uma metafisica tÚl unitÚltk ou, em ter- mos mais rigorosos, uma henologia, e de que resultará também, por outro lado, um significativo conjunto de opúsculos, em que são aprofund4dos temas relacionados com a teologia negativa, com a metafisica tÚl Luz, com a filiação de Deus e com a herme- nêutica biblica, como o De deo abscondito, o De quaerendo 3 Cf. ICOI.AU DE CuSA, A paz da ft sq;Wáa tÚ ÚtTtll a joáq tÚ &góvia, int. e rrad. de João Maria André, Coimbra. Minerva Coimbra, 2002. [VI] Deum, o De ftliatione Dei, o De dato patris luminum, e o De genesi, todos eles escritos entre 1441 e 1447. Dedica-se também, entretanto, a investigações e especulações matemáticas, como o mostram os escritos De transmutationibus geometricis e De arithmeticis complementis. Naturalmente que a novidade e a ousadia das suas teses, por um lado, e, por outro, o modo como se perfilava na linha de um autor como Mestre Eckhart, cujas afirmações, um século antes, tinham sido parcialmente condenadas pelo Papa João XXIL não poderiam deixar de despertar à sua volta o olhar crí- tico dos adversários. t assim que, em 1443, João Wenck de Her- renberg, que por três ocasiões chegou a ser reitor da Universidade de Heidelberg, escreve um texto intitulado De ignota litteratura, que comtitui uma forte crítica às posições de Nicolau de Cusa no De docta ignorantia4• Como resposta a esse texto, surge a Apo- logia doctae ignorantiae, sob a forma de carta de um discípulo a outro discípulo, em que o autor procura defender-se das acusa- ções que lhe são feitas, sublinhando tanto as virtualidades do método da "douta ignorância': como a legitimidade do "princí- pio da coincidência dos opostos': e esclarecendo que os seus argu- mentos e o seu conceito de ser e de forma não o conduzem neces- sariamente ao panteísmo. Se em 1449 Nicolau de Cusa é nomeado Cardeal, em 1450, ano em que recebe o chapéu cardinalício e o título de S. Pedro in Vinco/i, é também nomeado Bispo de Brixen, uma dio- cese que lhe traria muitos dissabores nos anos seguintes. Mas este ano é também o ano em que o autor redige uma terceira obra filosófica de grande fllego, constituída por quatro livros sob a forma platónica do diálogo, em que o protagonista, um idiota (iletrado} que dá o título a estes escritos e que vive da sua activi- dade de artesão fabricante de colheres, contrapõe a sua sabedoria ao orador humanista formado nos livros e ao filósofo escolástico • Cf. E. VANSTEENBERGHE, ú 'D~ igrwtll littmzrura' tÚ Jean Wmck tÚ H=m- bng. Tau inldit n muk, Münster, Aschendorff, 1910. [VII] sujeito ao princípio da autoritfade5. Dois desses diálogos abordam precisamente o conceito de sabedoria, o terceiro o conceito de mente e o último avança com algumas conjecturas extremamente interessantes sob o ponto de vista da ciência experimentaL resul- tantes das experiências com a balança. Os anos que se seguem correspondem, por um lado, a um dos perlodos mais perturbados da vida de Nicolau de Cusa, devido às diflceis relações quer com o capitulo da sua diocese que reclamava um outro bispo, quer com Segismundo de Austria que reclamava o seu direito sobre aquelas terras, mas, por outro lado, dão-lhe oportunidade para a elaboração e o aprofUndamento de algum dos traços mais originais do seu misticismo. Ainda antes de tomar posse da sua diocese, empreende uma viagem reforma- dora por vários pontos da Alemanha, Austria, Flandres e pelas regiões renanas, por ocasião do jubileu. Entra em Brixen em 1452, acentuando-se de tal modo os conflitos que o Papa Pio II (Aeneas Silvio) se vê obrigado a chamá-lo a Roma em 1458, para o retirar daquele ambiente hostil. Apenas as relações com a comunidade monacal de Tegernsee lhe proporcionam algum con- forto e é a troca de correspondência com o prior do convento, Bernardo de Wáging, e com o abade Gaspar Aindorjfer que o estimula à redacção de duas das suas maiores obras místico-ji.los6- jicafi: o De visione Dei7 e o De beryllo. 5 Sobre o Idiota, o conceito cusano de sabedoria e a sua articulação com outros aurores do humanismo renascentista, cf. Leonel Ribeiro dos SAI'ITOs, "A sabe- doria do idiota",in J. M . ANo~ e M . Al.VAREZ GOMEZ (Eds.) , Coincidincia dos oposUJs ~ concórdüz. Caminhos do pmsamnzUJ = Nicoltzu tÚ Cusa, Coimbra, Faculdade de Lerras, 2002, pp. 67- 1 00. 6 Para essa troca de correspondência, cf. E. V ANSTEENBERGHE, "Aurour de la doere ignorance", &icrãg~ zur G=hichk tÚr Philosophu t:ks Mirulalun, XIV (1955), 107- 162. Cf. também M. SCH MIDT, • ikolaus von Kues im Gesprach mir den regemseer Monchen über Wesen und Sinn der Mystik", Mituilungm und Forschungr- brinãg~ tÚr Cwanw-~lJschafi, 18, 1989, pp. 25-49. 7 Desta obra existe já tradução portuguesa: ICOI.AU DE C USA, A vi.siio tÚ DnlS, trad. e im:rod. de João Maria André, 4.• ed. rev., Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 20 12. [VIII] Tanto uma obra como outra partem da exploração de uma metáfora, visando as duas conduzir a uma aproximação da coincidência dos opostos. No De visione Dei, escrito em 1453, é um ícone do olhar divino, um rosto pintado com tão subtil arte que, qualquer que seja o ponto do qual é olhado, parece ter sem- pre o olhar voltado para o seu observador, realizando ao mesmo tempo movimentos tão contrários quanto os movimentos dos que nesse quadro fixam os seus olhos: constitui-se assim um bom ponto de partida para abordar não só alguns temas centrais da teologia mística e da cristologia, mas também questões gnosiológi- cas e metafisico-ontológicas de primeira importância e ainda pro- blemáticas de natureza antropológica e ética, centrais no pensa- mento do autor. O De beryllo, concluído em 1458, compara o princípio da coincidência a um berilo, permitindo concebê-lo assim como uma lente para a nossa visão mental, através da qual será possível não só ver a coincidência dos contrários nos exem- plos das figuras geométricas, mas também a coincidência do inte- lecto com a vontade e a uni-trindade do princípio de tudo, que é unidade, igualdade e nexo, mas que é também matéria, forma e nexo. E ainda neste mesmo período e no ano em que redige o De visione Dei que Nicolau de Cusa, preocupado com as guerras e as perseguições religiosas subsequentes à queda de Constantinopla, escreve o De pace fidei8, um diálogo notável sobre a concórdia entre as religiõel, onde terá surgido pela primeira vez a expres- são "paz perpétua': que Kant utilizará para título de uma das suas obra/0. Datam também do mesmo ano tanto o De mathe- s Cf. IUpra, nora 3. ' Cf. João Maria ANDRt, "Pluralidade de crenças e diferença de culturas: dos fundarnenros filosó ficos do ecumenismo de icolau de Cusa aos princípios actuais de uma educação inrercultura", in: Anselmo BORGES, António Pedro PITA e João Maria A oRt (Eàs.) - An intapmandi - Diáwgo ~ tnnpo. Hommagnn a MigtUl Baptista P"ára. Porto, Fundação Eng.• António de Almeida, 2000, 451-500. 1° Cf. Mariano ÁLVAAEZ. G OMEZ, "Hacia los fu ndarnenros de la paz perpetua en la religión según icolás de Cusa", Ciudad tÚ Dios, CCXII/2 (1999), pp. 299- -340 e IDEM, "Consenso y verdad en la religión según icolás de Cusa", in Mariano ÁLvAAEZ. G OMEZ (Ed.), PluralidAd y smtido tÚ las rdigion~ Salamanca, Ed.iciones Universidad de Salamanca, 2002, pp. 47-72. [IX] maticis complememis, como o Complementum theologicum e se, já em 1450, se tinha dedicado ao problema da quadratura do círculo com dois textos sobre essa questão, em 1457 volta ao mesmo tema, com o Dialogus de circuli quadratura e com o De caesarea circuli quadratura. Os últimos seis anos da vida do Cardeal correspondem ao seu período romano, em que Nicolau desempenha as jUnções de Vigário Geral do Estado Pontiftcio. Tendo ftito ainda uma última tentativa de regressar a Brixen, em 1460, foi cercado no castelo de Buchemtein, acabando por se render ao cerco de Segis- mundo. As suas preocupações especulativas levam-no, neste período, a escrever algum dos seus textos mais demos e inovadores. Assim, continua a reflexão sobre os termos com que se pode filosofica- mente caracterizar o princípio de todas as coisas, acentuando-se, por um lado, a influência de Proclo e do neoplatonismo da Escola de Chartres e, por outro, a do Pseudo-Dionísio. Em 1459 escreve dois opúsculos, o De aequalitate e o De principio. O pri- meiro toma como epigrafo o versículo do 1. o capitulo do Evange- lho de João, "vita erat lux hominum"11, e o segundo, do mesmo evangelho, a resposta de jesus à pergunta "Tu quis es?':· "Princi- pium, qui et loquor vobis"12• Continuando à procura da fórmula menos desadequada para exprimir esse princípio, escreve em 1460 o De possest, em que a partir do cruzamento de "posse" com "est" procura reformular os conceitos de acto e potência na sua aplicação a Deus enquanto "coincidência de opostos': e, em 1462, o De non aliud, em que o infinito é pemado, por impira- ção dionisiana, a partir da dialéctica entre a alteridade e a não alteridade e que tem a particularidade de incluir como interlo- cutor do diálogo o português Fernando Martim, clérigo oriundo de Viseu, C6nego da Sé de Lisboa e Mestre em Medicina13• 11 jo I, 4. 12 Jo 8, 25. 13 t este mesmo Fernando Martins que serve de intermediário à troea de cor- respondência enue Paolo Toscanelli , amigo do Cardeal desde os seus estudos em Pádua, e Cristóvão Colombo, a propósiro do empreendimento que este projecrava e [X] Entretanto, a preocupação com as outras religiões não é posta de laeúJ e, por isso, faz, no inverno de 1460-61, uma and- lise minuciosa da religião muçulmana, exposta numa obra em três livros intitulada Cribratio Alchorani. Finalmente, no ano de 1463, inicia um conjunto de textos que comtituem, toCÚJs eles, uma abordagem serena e amadurecida CÚJs principais temas tratados nas obras anteriores. O primeiro, tomanCÚJ como metdfora e pretexto o jogo, e por isso se intitula De ludo globi, aprofunda mais uma vez o processo de ascemão CÚJ homem a Deus, mas fo-lo a partir de incursões não s6 antro- pológicas e éticas, mas também gnosiol6gicas e cosmol6gicas. O segundo, recorrenCÚJ a uma nova metdfora, agora de impiração venat6ria, compara o seu percurso especulativo a uma caça pelos campos da sabeeúJria, sendo possível identificar algum CÚJs princi- pais campos enumerados no De venatione sapientiae com os títulos das suas obras mais significativas e originais. Por último, em 1464, escreve os seus CÚJis últimos textos, cujos títulos indi- ciam também a comciência de uma caminhada que se aproxi- mava do fim: o Compendium oferece-nos uma slntese das suas principais teses, não s6 no que se refere ao conhecimento, mas também no que se refere ao papel CÚJ homem como sujeito e aos nomes de Deus que continuam a furtar-se a qualquer fixação precisa; o De apice theoriae oferece-se mesmo como 'o cume da sua teoria" e o termo da sua caminhada, propondo a substituição de toCÚJs os outros nomes avançaCÚJs para designar Deus por um extremamente simples e significativo, posse ipsum, o Pr6prio Poder ou o Poder-ele-pr6prio, essa "silenciosa força CÚJ possíve/''~4. A 11 de Agosto de 1464, Nicolau de Cusa morre em Todi, no decurso de uma viagem para Ancona, onde o seu amigo e que viria a traduz.ir-se na viagem que o levaria à América. Cf., a este propósi10, António Domingues de Sousa COSTA, "Cristóvão Colombo e o Cónego de Lisboa Fernando Manins de Reriz, destinatário da carta de Paolo Toscandli sobre os desco- brimenros marítimos", Antonianum, 65 (1990), pp. 187-276. ,. A expressão é de Heidegger (~n und ilit, § 76), mas não é dissonante do próprio conceito de posu iprum de icolau de Cusa. Cf., a este propósito, Peter J. ÚSAREU.A, " icholas of Cusa and the Power of Possible", Ammcan Carholic PhiÚJso- phiCJzl Quizrtuly, 64 (I 990), especialmenre pp. 30-34. [XI] papa Pio II assistia aos preparativos para a partida de uma nova Cruzada. A cabeceira tinha não só o seu amigo desde os tempos de Pádua, Paolo Toscanelli, mas também o seu médico e igual- mente seu amigo, o português Fernando Martins. Se o corpo foi sepultado na Igreja de S. Pedro in Vinco/i, de que era cardeal titular, o seu coraçãoregressou a Cusa, sua terra nata4 repou- sando na capela do asilo que mandara construir e onde ainda hoje se encontra a sua riqufssima biblioteca. 2. Estrutura de A douta ignorância A obra que agora se apresenta em tradução portuguesa constitui uma autêntica contracção, para utilizar uma categoria central do discurso filosófico do autor, na qual se concentram os principais motivos do seu filosofar que, posteriormente, outros textos virão a "explicar" em diversas direcções, ora devido a dife- rentes solicitações, ora motivado por novas leituras, ora impelido por outros e mais originais aprofundamentos. Divide-se em três livros, internamente articulados na sua unidade e na convergên- cia dos conceitos em que se exprime a tripla realidade que abor- dam. O primeiro pretende aprofundar o estudo do Máximo absoluto, em si inominável, mas venerado como Deus na religião de todos os povos. O segundo volta o olhar para o universo, de que o Máximo absoluto é a causa e o prindpio e que, existindo assim fora da unidade desse Máximo de que provém, não pode subsistir sem a pluralidade em que se apresenta, razão pela qual não recebe, como o primeiro, a designação de Máximo absoluto, mas sim de máximo contraido. Finalmente o terceiro livro pro- cura encontrar o mediador entre o primeiro máximo e o segundo máximo, e que, para isso, tem de participar simultaneamente da natureza absoluta do primeiro e da natureza contraida do segundo: jesus, sendo Deus, é, por isso, absoluto, e, sendo homem, é por isso contraido, estabelecendo-se, pois, como unidade e unifi- cação de todas as coisas. No aprofundamento destes três temas é todo o universo filosófico do autor que vai sendo atravessado ao [XII] longo do discurso, e dele gostaríamos de evidenciar algum traços como abertura ao seu pemamento e iniciação à leitura dos textos em que se exprimiu. 3. Sentidos e dimensões da "douta ignorância" Em primeiro lugar, deve reter-se que, embora dedicado ao Máximo absoluto, o que no primeiro livro se evidencia é mais o saber máximo da nossa ignorância do que uma explanação do que seja esse Máximo absoluto. E é precisamente porque, a pre- texto do saber de Deus, se opera uma inflexão para o saber do pr6prio saber {que se revela um saber do não saber} que o perna- menta de Nicolau de Cusa foi já comiderado uma forma prévia da metafisica moderna15. Inicia-se aqui uma reflexão sobre o sujeito e as possibilidades {com os respectivos limites} do seu conhecimento que alguns pressentiram antecipar Descarte/6, outros conduzir até Kanr7 e outros ainda vir a desembocar em Hegel e na sua noção de sujeito absoluto18• Parece-nos, no entanto, que a leitura de um autor, quando demasiado condicio- nada pelo pemamento de outros autores posteriores, poderá sacri- ficar elementos que comtituem verdadeiramente a sua especifici- dade, a sua originalidade e a sua radicalidade. E a novidade que se pressente no aprofUndamento que o Cardeal alemão foz deste tema, se ultrapassa em muito os seus precedentes socráticos ou augustinianas, não pode também enquadrar-se devidamente 15 Cf. K.-H. VOLKMANN-SCHLUCK, "Die Philosophie des ikolaus von Kues. Eine Vorform der neuuitlichen Meraphysik", Archiv for Phi/QJophü, 3 (1949), 379-399. 16 IDEM, Nicolaus Cusanus. Di~ Philosophi~ im Obugang tÚT Mitulaltu zur N=it, 2. Auf. , Frankfun am Main, Viccorio Klosrermann, 1968, esp. pp. 174-190. 17 Cf. E. Ú.SSIRER, Ei probkma tÚ[ conocimimto m la filosofoz y las cimciaJ motÚTnaJ, I, Buenos Aires, Fondo de Culrura Económica, 1953, pp. 79-80 e tam- bém M. de GANOILU.C, La philosophü tÚ Nicolas tÚ Cun, Paris, Aubier-Moncaigne, 1941 , p. 149. 18 Cf. W SCHU!Z, Du Gott tÚT n=itlichm M~taphysik, Pfullingen, eske, 1957, pp. 11-30 e ram!Xm E. FRJ.NTzKJ, Nikolaus von Kun und das Probkm tÚT absolutm Subj~ktiivitiit, Meisenheim am Glan, Anrón Hain, 1972. [XIII] no apriorismo tramcendenta/ de Kant ou na subjectividade do idealismo alemão. Com efeito, são múltiplas as dimemóes que definem esta atitude perante a ciência humana. A "douta ignorância': como saber do não saber, comporta, em primeiro lugar, uma dimemão lógica e gnosiológica, mos- trando como o pemamento do infinito escapa às leis que marcam a finitude do nosso pemar e também o nosso pemamento da fini- tude. Ela é marcada pela regra da disproportio, segundo a qual não pode haver proporção entre o finito e o infinito e, por isso, o modo humano de conhecer, que avança gradualmente, através do método da proporção e da analogia, do conhecido para o desco- nhecido, não nos permite o acesso a um conhecimento de Deus. O motivo místico-teológico é, assim, determinante para a defini- ção da "douta ignorância"19. Com ele, o autor imcreve-se na tra- dição do primado da teologia negativa ou apofática de influência dionisiantil0 sobre a teologia afirmativa ou catafática, embora, em última análise, nem sequer a teologia negativa, em sentido rigoroso, seja o modo mais adequado para o discurso sobre o divino. Como diz Nicolau de Cusa, no Idiota de sapientia, "há um modo de comiderar Deus, pelo qual não lhe convém nem a afirmação, nem a negação, mas, estando ele acima de qualquer afirmação e negação, a resposta nega então a afirmação, a nega- ção e a sua união "21 • Parece ecoar aqui a via eminentiae do Pseudo-Dionlsio como uma espécie de superação da aporia entre a teologia positiva e a teologia negativa, mas de um modo tal que, para ficar permanentemente salvaguardada a distância, e, como ta/, a possibilidade do discurso, a negação, longe de expri- mir privação, exprime o excesso e a plenitude absoluta de sen- 19 Cf. J. STAUMACH, "Der 'Zusarnmenfall der Gegensatu' und der unendli- che Gon", in K. jAXOBI (Hrsg.), Nilrolaus von KJUS. Einfohrung in snn phiwsophischa Dmlrm, Freiburg!München, Karl Alber, 1979, pp. 69-73 e, do mesmo STAUMACH, lnúrufaU da G~msiit:u und Wrishút da Nichtwissms. Grundzüg~ da Phiwsophü da Nilrolaus von Kun, Münster, Aschendorff, 1989, esp. pp. 19-36. 20 Cf., a este propósito, a excelente tese de D. Dua.ow, Th~ ú=d lgno- ranu: ln Symbolism, l..ogic and Founáanons in Dionyrius th~ Anopagiu, John Scotus Eriugma aná Nuholas ofCusa, Bryn Maur CoUege, 1974. 21 ICOLAU DE C USA, ltÜJJUI tk sapimtia, L II, h V, n.• 32, linhas 14-17, p. 65. [XIV] tido. Neste contexto, Nicolau de Cusa irá recuperar, posterior- mente, a noção de uma theologia sermocinalis, uma teologia do discurso ou da fala, uma teologia dialógica, que assenta precisa- mente na força da palavra: "Se devo mostrar-te o conceito, que tenho, de Deus, é necessário que a minha locução, se te deve ser- vir, seja tal que as suas palavras sejam significativas, para que assim possa conduzir-te, na força da palavra, que é conhecida pelos dois, àquilo que é procurado. Ora o que é procurado é Deus. Por isso, a teologia da fala é esta pela qual procuro condu- z ir-te a Deus pela força da palavra do modo mais fácil e mais verdadeiro que posso. "22 Esta teologia dialógica, pela qual se supe- ram as Limitações do discurso por negações, é simultaneamente uma teologia e uma filosofia do símbolo e da interpretação, assente no motivo paulincl3 que Leva o autor a declarar no capi- tulo 11 de A douta ignorância que "todos os nossos doutores mais sábios e divinos estiveram de acordo em que as coisas visf- veis são verdadeiramente imagens do invisível e que, assim, o criador pode ser cognoscivelmente visto pelas criaturas como que num espelho e por enigmas'!Z4. A partir daqui a reflexão assume a forma de uma symbolica investigatio que, aplicada ao divino, é sobretudo uma aenigmatica scientia que postula uma atitude profundamente interpretativa, mas sempre acautelada pela dis- tância crítica da "douta ignorância"!25, que implica um duplo salto pormenorizadamente teorizado no capítulo 12 desta obra. 22 IDEM, Idiota t:Ú sapimtia, L. I, h V n.• 33, linhas 5- 11, p. 66. Sobre a uo/Qgia urmocinalis e as suas raizes, cf. Peter CAsAREl.U., Nicho/as of Cusa's Th~oÚJgy ofWord, YaleUniversity, 1992, pp. 87- 144. Cf. ainda, do mesmo autor, "Language and thro/Qgia s~ocinaw in icholas of Cusa's Idiota t:Ú sapimtia", in: 0/d and N= in th~ Fifomth Cmtury, XVIII , 1991 , pp. 131 -142. 23 Cf. Cor 13, 12. Cf. também Rm 1, 20. " ICOLAU DE CUSA, A douta ignorância, L. I, cap. 11 , n.• 30, infta, pp. 22-23. zs Sobre a leitura do pensamento cusano como uma ftlosofia do símbolo e da interpretação incidiu particularmente a nossa dissertação de doutOramento Smtido, simbolimw ~ inurpmação no discurso ji/Qsófico t:Ú Nicolau t:Ú Cusa, Coimbra, Funda- ção Calouste Gulbenkian/Jun ta acional da Investigação Cientifica e Tecnológica, 1997. Cf. rambém o nosso artigo de sfmese "La port~ de la philosophie de icolas de Cues. La doe/a ignorantia en tant que philosophie de l'interprétation", in: J. A. AERTSEN u. V. A. SPEER (Hrsg.) - Misc~llan~a M~dUuvaEa, XXVI , Was ist Phi/Qso- phic im Miru~, lkrlin!New York, Walter de Gruyter, 1998, 724-730. [XV] Sublinhe-se, no entanto, que a "douta ignorância" não diz apenas respeito ao nosso saber das "coisas divinas ': mas atinge também, como veremos a seguir, os nossos conhecimentos do mundo empfrico, e se as nossas proposições, como sfmbolos sobre o divino, são enigmas, são, no que se refere ao conhecimento em geraL conjectura, ou seja, "afirmação positiva que participa, na alteridade, da verdade tal como ela é" e é neste sentido que alguma negatividade caracterfstica do De docta ignorantia não é contraditória, mas sim complementar, com a positividade reco- nhecida ao discurso humano no De coniecturis26 . Por isso, a dialéctica inerente a este saber do não saber é uma dialéctica em que se cruza um movimento de redução tramcendentaL que do conhecimento finito ascende à incompreemibilidade do infinito, com um movimento de dedução tramcendental, em que desse incompreemfvel fundamento último se ganha a compreemão do finito em que ele se reflecte e exprimtF . Não é, no entanto, apenas este jogo entre a negatividade e a positividade que marca a originalidade com que o Cusano se apropria do motivo da "douta ignorância': t que, para além da dimemão gnosiológica referida, ela comporta igualmente uma dimemão ôntica, ontológica28 e ainda antropológica, na medida em que define o ser do homem, na sua incompletude, como ser de desejo intelectuaL como caminho e tarefo, como abertura ao dom que nele se perfaz. A estas dimemões outras poderão e deverão ser acrescenta- das, cuja actualidade é inquestionável: é que as implicações da "douta ignorância" reflectem-se igualmente no plano ético, no plano estético e no plano pedagógico. No plano ético, a "douta ignorância': pelas suas fontes e nas suas múltiplas comequências, 26 C( J. RilTER, Docta ignorantia. Di~ Th~om tÚs Nichtwllinu b~i Nicolaw Cwanus, Leipz.ig/Berlin, B. G. Teubner, 1927, pp. 85-95. u C[ ]. STAl.l.MACH, lnnnsfall tÚr G~gmsiitu und Wtishút tÚs Nichtwi.ssnu. Grundzjjg~ tÚr Philosophic tÚs Nikolaw von Kues, M ünster, Aschendorff, 1989, esp. p. 24. 21 C( W. DUPR.t, "Von det dreif.tchen lkdeutungen der 'docta ignorantia' bei ikolaus von Kues", Wusnzschaft und ~/rbild, IS (I 962), 264-276. [XVI] implica um alcance profundamente terapêutico, pressupondo a função "purgativa" que corresponde ao momento da catharsis da ascensão dionisiantl9. Mas, ao mesmo tempo que purifica o espí- rito de preconceitos e presunções, a "douta ignorância': sem signi- ficar relativismo ou cepticismo, é o outro nome da tolerância e do respeito pela liberdade de religião e pela diferença das cultu- ras. Neste sentido, a obra escrita em 1453, A paz da fé, é a indispensável tradução em termos ético-políticos dos princípios gnosiológicos afirmados em A douta ignorância e em As conjec- turas, de tal modo que, inserindo-se numa tradição ecuménica que vem de longl!0, abre o caminho para um conjunto de textos renascentistas em que é central o motivo da concórdia31 . Pode, aliás, considerar-se a dimensão antropológica da "douta ignorân- cia" como um dos grandes fundamentos dessa tradução prática e das suas implicações éticas: é porque a natureza humana não pode ser encarada numa perspectiva estática mas dinâmica e, por isso, plural, que a sua relação com Deus implica necessariamente o respeito pela pluralidade de ritos, com toda a fecundidade implícita na expressão "una religio in rituum varietate''32. O significado estético da "douta ignorância" torna-se tam- bém evidente quando nos damos conta de que o saber do não saber conduz naturalmente, nos seus múltiplos caminhos, a uma scientia laudis perante a beleza do mundo que exprime a suma "' Cf. M. L. FUEHRER, "Purgation, illumination and perfection in Nicholas ofCusa", Downsitk &vi=, 89 (1980), pp. 169-189. 30 Cf. Walter Andreas EULER, "Gewohnheit ist kein Amibut Gottes: Die Incencion des Religionsdialoges bei Abaelard, Lull und Cusanus", in Kazuhiko YAMAKJ (Ed.), Nicho/as of Cusa. A M~diroa/ Think~r for th~ Motkrn Ag~. Waseda/Curzon Internacional Series, 2002, pp. 153-166. 31 Cf. o nosso texto "Piuralidad de creencias y diferencia de culturas: de la concórdia rcnaccncista a la cducación incerculcural", in Mariano ÁLVAREZ GOMEZ {ed.), Pluraliáad y smtido tÚ las u/igion~ Salamanca, Ediciones Universidad de Sala- manca, 2002, pp. 167-198 e também, de nossa autoria, o texto "Coincitkntia oppositorum, Concórdia c o sentido existencial da transsumptio em icolau de Cusa", in João Maria ANDRf e Mariano ÁI.VAREZ GOMEZ (Eds.), Coincidbuia dos opostos ~ concórdia. Caminhos do pmsammto = Nicolau tÚ Cusa, pp. 213-243. 32 ICO!.AU DE CusA, D~ paufoki, h IX, n.• 6, linhas 10-11 , p. 7. [XVII] beleza do seu autor33• Trata-se, mais uma vez, da influência da "erótica dionisiana" que Nicolau de Cusa repete, num dos seus sermões, nestes termos: "Tudo o que é é a partir do belo e do bom, no belo e no bom e ao belo e ao bom retorna'54. O capítulo 13 do Livro II de A douta ignorância, intitulado 'a admirável arte divina na criação do mundo e dos elementos" é a conclusão natural de uma scientia laudis que descobre, pela "douta igno- rância': que Deus tudo criou em número, peso e medidd5, e que o leva a exclamar: "Quem, pois, não admirará este artífice que se serviu de uma tal arte nas esferas, nas estrelas e nas regiões dos astros, que, sem precisão alguma, estando a concordância de todos na diversidade de todos, dispõe, num único mundo, a grandeza das estrelas, os Lugares e os movimentos e ordena de tal modo a distância das estrelas que, se cada região não fosse como é, nem ela poderia ser, nem estar em tal sítio e ordenada daquele modo, nem o próprio universo poderia ser?'56 A fonte desta beleza e desta harmonia, esse "admirável artífice" é, no entanto, uma plenitude tão excessiva de beleza e de harmonia que escapa ao nosso ouvido finito e Limitado, levando o autor a reconhecer: "Ascende por aqui ao conhecimento de como a harmonia 33 A rcimtia laudi.r, sendo teorizada especificamente com esta designação na carta a Albergari (publicada por G. von BREDOW em Dar Vmniichmis t:Úr Nikolaus von Ku~s. D~r Brüf an Nikolaus Albn-gati n~bst t:Úr Pr~digt in Montoliv~to (1463}, Heidelberg. Karl Winrer, 1955), é afirmada também explicitamente no D~ vmatioM sapimtia~. onde o louvor constitui o quinto campo da caça da sabedoria e do qual se diz {cap. 18, H . XH, n.• 53, linhas 8-10, p. 50): "Deprehendi igirur in hoc laudis campo sapidissimam scientiam consisrere in laude dei, quae omnia ex suis laudibus ad sui laudem constituir". Sobre a articulação enrre "doera ignoranria", "sacra igno- rantia" e "scientia laudis" cf. P. CAsAREU..A, "Sacra ignorantia. sobre la doxología filo- sófica dei Cusano", in João Maria ANDRJ'. e Mariano ÁLVAREZ GOMEZ (Eds.), Coinci- dbuia tÚJr opostos~ concórdia: caminhos tÚJ pmsammto =Nicolau tÚ Cusa, pp. 51-65. ~ ICO!.AU DE CUSA, Tota pu/era ~s amica =a (ramo tÚ pulchritudiM), edi- zione cri tica e inrroduzione di G. Santindlo, Padova, Socierá Cooperativa Tipográ- fica , 1959, p.35. Sobre a tonalidade estética de rodo o pensamento do autor, cf. também G. SANTINELLO, II pmsi"o di Nocolõ Cusano n~lla rua prosp~ttiva mltica, Padova, Liviana, 1958, obra em que nas pp. 1-38 procede a uma análise minuciosa deste sermão do Cardeal alemão. JS C( ICOlAU DE C USA, A tÚJuta ignorância, L II, cap. 13, n.• 176, infra p. 125. 36 IDEM, ibidtm, n.• 178, in&a pp. 126-127. [XVIII] máxima e com a maior precisão é a proporção na igualdade, que o homem vivo não pode ouvir na carne"37. E no reconhecimento desta inacessibilidade da fonte da beleza que a estética cusana se cruza com a "douta ignorância': como se afirma explicitamente em A visão de Deus: "Ora a tua face, Senhor, tem beleza e este ter é ser. Por isso, ela é a beleza absoluta, que é a forma que dá o ser a toda a forma bela. Ó face excessivamente bela, para admirar a tua beleza não são suficientes todas as coisas com as quais é dado olhá-la. Em todas as faces aparece a face das faces de modo velado e enigmático. Não aparece realmente a desco- berto, enquanto se não penetra, para além de todas as faces, num secreto e oculto silêncio onde nada resta da ciência ou do conceito de face. '58 Porque a beleza não pode ser representada objectiva- mente, só no silêncio e na sua plenitude podemos beber os seus vestígios, numa transgressão de todas as fronteiras do saber cientí- fico e das nossas representações do mundo. Por último, a "douta ignorância" é extremamente fecunda nas suas implicações pedagógicas. Se toda a filosofia começa com o espanto e a admiração, toda a aprendizagem começa com o reconhecimento da própria ignorância e dos limites do saber. E esta máxima aplica-se ao discípulo porque se aplica antes de mais ao próprio mestre. Todos somos, ou devemos ser, sujeitos de uma consciente ignorância, e nisso todos somos iguais e nos deve- mos assumir nessa igualdade radical de quem possui uma razão que sabe que não sabe. A dimensão subversiva da "douta igno- rância" está nesta sua mensagem de libertação: libertação de cer- tezas feitas, libertação de desigualdades tidas como naturais, libertação da distância entre o mestre e o discípulo que vive da 37 IDEM, ibidnn, L. II, cap. I , n.• 93, infra p. 67. 38 IDEM, D~ vision~ Dá, Cap. 6, h VI, n.• 20, linhas 13-17 ~r n.• 21 , linhas 1-4, pp. 22-23. f a consciência desr~ "fundo" indizível para que r~mere aqui o mis- ticismo esrécico qu~ nos ~rrnir~ ~nsar numa ~rra aproximação ~n~ a ex~riência arústica e a ex~riência religiosa ~ a rroescobrir rarnbém aqui a acrualidade do ~nsa menro de Nicolau de Cusa, d~ modo a r~rmos r~nrado uma aproximação com algu- mas das afirmações de Mikel Dufrenn~ no artigo que publicámos r~nremenr~: "A acrualidade do ~nsamenro de icolau de Cusa: a 'doura ignorância' ~ o seu signifi- cado hermenêutico, érico e estético", &vista Fiwsófica tÚ Coimbra, YJ20 (2001), pp. 313-332. [XIX] perpetuação do discípulo como condição de sobrevivência do mes- trt?9. A manuductio, o levar pela mão os espíritos mais jovensr não assenta, assim, numa pretema posse de um saber absoluto, mas no reconhecimento de que eles poderão, de modo originaL elevar-se depois aos mais altos mistérios intelectuais. E se A douta ignorância fala de um "conduzir, com segurança, pela mão (manuductione indubitata)"40, já no De coniecturis não deixará de se articular claramente esta condução dos mais jovens com o reconhecimento das próprias limitações de quem os con- duz. Por isso, aí dirá primeiro o autor: "Acolhe, pois, como minhas conjecturas, estas descobertas que abaixo exponho, extraí- das das possibilidades do meu modesto engenho, através de não pequena meditação, talvez bastante inferiores às maiores fUlgura- ções intelectuais, as quais, embora tema que possam ser despreza- das por muitos, devido à inépcia do meu modo de as comunicar, eu distribuo, todavia, às mentes mais altas, como se fossem ali- mento não de todo desadequado a ser transformado em ideias intelectuais mais claras. " E depois acrescenta: "É necessário, porém, que atraia, como que guiando-os pela mão, os mais jovem, privados da luz da experiência, à manifestação daquilo que se oculta, de tal maneira que possam elevar-se gradualmente ao que é menos conhecido. "11 E, já numa clara alusão aos limites do saber, dirá o De visione Dei: "Tentarei, do modo mais sim- ples e comum, conduzir-vos pela mão (manuducere) duma forma experienciáveL até à mais sagrada obscuridade. '>12 Assim, a manuductio faz parte integrante do processo dialógico em que a relação "mestre-discípulo" se perfaz configurada pela "douta ignorância': 39 Cf., a propósito da acrualidade da "douta ignorância" na experiência edu- cativa, João Maria ANDRf, "Virtualidades hermenêuticas da "douta ignorância' na rdação pedagógica", Caduno tk Fiúuofias, 617 (Março de 1994), pp. 109-151. Cf. também K. G. POPPEL, Die tÚJcta ignorantia tks Nicolaus Cusanus ah Bildungrprinzip. Eini! piiáadogischt! Unurruchung übi!T tkn &griff tks Wmms und Nichtwissms, Frei- burg, Lamberrus Verlag. 1956. 40 JCO!AU DE CuSA, A tÚJuta ignorância, L I, cap. 10, n.• 29, pp. 21-22. 41 IDEM, Di! coniecturis, L. I, Prologus, h III, o.• 3, linhas 7-13 e n.• 4, linhas 1-3, p. 5 . • , IDEM, Di! visioM Dd, h VI , n.• I , linhas 11-13. [XX] 4. A "douta ignorância" e os "nomes divinos" Marcada, pois, pela "douta ignorância': toda a reflexão do primeiro livro desta obra, que toma como motivo central o Máximo absoluto, não pode deixar de criar um permanente dis- tanciamento face aos termos humanos com que esse máximo acaba por ser caracterizado. O De docta ignorantia é, deste modo, o primeiro passo de uma hermenêutica dos nomes divinos, profundamente influenciada pela obra do Pseudo-Dionísio como já foi referido, que só terminará com a última obra, o De apice theoriae. Neste primeiro texto não há, como em outros textos, um nome privilegiado para designar Deus, mas há uma abertura plural para os diferentes nomes que posteriormente virão a ser teorizados. Claro que parece evidenciar-se, a partir dos primeiros capftulos, o nome de Máximo a ponto de alguns intérpretes terem considerado este como o "maior nome de Deus"13, mas penso que, nesta obra, o conceito de Máximo mais que sobrede- terminar os outros conceitos, acaba por ser sobredeterminado, por um lado, pelo conceito de coincidência e, por outro, pelo conceito de infinito, sendo sobretudo a insistência nesses traços que per- mite estabelecer alguma demarcação do Máximo anselmiano44. H C( W. HOYE, "Gon - Das maximum. Eine Untersuchung zur Rangord- nung der Gottesbegriffe in der Theologie des Nikolaus von Kues", Th~o/ogi~ HI!Uú, 74 (1984) , p. 379. « Alguns dos autores que mais se evidenciaram na aproximação de Anselmo foram: K. FLA.SCH, Dü M~taphysik tks Einm bá Niko/ous von Kut!s. Probkmg~chich tlich~ SuUung und systmuztúch~ &tkutung, Leiden, E. J. BriU, 1973, pp. 161-168; H. BLUMENBERG, Asp~ku da Epochmschwt!lk: Cusanu und No/onu, Frankfurt am Main, Suhrkamp, 1976, pp. 40-42; e S. DANGELMAYR, Gott~ukmnmis und Go=b~ffin tÚn phi/osophischm Schriftm tÚs Niko/ous von Ku~s. Meisenheim am Glan, Anron Hain, 1969, pp. 64-65. Um dos aurores que mais contundentemente criticou esta aproximação foi J. H OPKJ 5 em A Concis~ lntroduction to th~ Phi/osopphy of Nicho/os ofCusa, Minneapolis, Universiry of Minnesota Press, 1978, pp. 14-15 e noras 51-55 (pp. 163-164), e em Nicho/os ofCusa's Diakctical Mysticism. Tat. Trans/otion and lnurp"tativ~ Study of "D~ visiom Dá~ Minneapolis, The Anhur Banning Press, 1985, pp. 57-60. C( também, a este propósito, Mariano Ál.VAREZ GóMEZ, '"Coinci- dentia opposirorum' e infinirud, codeterminantes de la idea de Dios según icolás de Cusa", Ciudad tÚ Dios, 176 (1963), p. 671. [XXI] O Máximo, com efeito, é imediatamente caracterizado como aquele que é de um modo tal que com ele coincide o mínimo45, superando assim toda a oposição, incluindo essa oposição entre máximo e mínimo46. Alids, na carta do autor que se publica comocomplemento à obra, é justamente a coincidência dos opos- tos que é apontada como tema central do primeiro Livro: "Mas, nestes [mistérios} profondos, todo o nosso engenho humano deve esforçar-se por se elevar à simplicidade em que coincidem os con- traditórios; é nisso que trabalha a concepção do primeiro Livro. •>ll Não se peme, no entanto, que a "coincidência dos opostos': sejam os contrdrios ou os contraditórios (Nicolau de Cusa recorre tanto a uma como a outra fórmula), se apresenta como uma boa defi- nição de Deus. Outros textos posteriores, nomeadamente o De coniecturis e o De beryllo, esforçar-se-ão por demomtrar que Deus não é a coincidência, mas se situa mesmo para Ld da pró- pria coincidência, chegando até o De visione Dei , quando o define como "oposição dos opostos'>~8, a situd-lo para Ld do muro do paraíso, que é o muro da coincidência, onde habita na sua inacessibilidade49. Curiosamente, o capitulo do De visione Dei em que é introduzida a expressão "oposição dos opostos" é o que mais radicalmente afirma a infinitude divina, tendo justamente como titulo "Deus aparece como a infinidade absoluta" e fazendo uma curiosa articulação entre a infinidade e a inominabilidade: '/I infinidade nenhum nome pode convir. Com efeito, todo o nome pode ter um contrdrio. Mas à infinidade inomindvel nada pode ser contrdrio. "50 Assim, a caracterização do infinito como 41 Cf. NJCOU.U DE C USA, A douta ignorância, L. I, cap. 4, n.• 11 , infra p. 9. 46 Cf. IDEM, ibidnn, L. I, cap. 16, n.• 43, infra p. 33. 47 IDEM, ibidnn, "Cana do autor", n.• 264, infra p. 187. 48 Cf. IDEM, D~ vision~ Dá, cap. 13, h VI , n.• 54, p. 46. Sobre o conceito de Deus como "oppositio oppositorum", cf. W. BEIERWALTES, "Deus oppositio opposito- rum icolaus Cusanus D~ vision~ Dá, XIIl)", Salzburgn- }ahrbuch for PhiÚJiophi~. 8 (1964}, pp. 175-185. 49 Sobre a metáfora do muro da coincidência, cf. R. HAuBST, "Die erkenm- nistheoretische und mystische Bedeurung der 'Mauer der Koinzidenz'", Miruilungm und Forschungsbritriig~ tkr Cwanw-Gmlhchaft, 18 (1989), pp. 167-191. 10 ICOU.U DE CUSA, D~ vision~ Dri, Cap. 13, h VI, n.• 55, linhas 7-9, p. 47. [XXII] infinito e a sua adjectivação como infinito é a única forma de manter a legitimidade dos outros nomes, já que aquele cujo nome é infinito é aquele que pode ser chamado com todos os nomes, sem ter, como nome preciso, nenhum desses nomes: "Todos esses nomes são nomes que explicam a complicação do único nome inefável. E, pelo facto de o nome apropriado ser infinito, assim ele complica tais nomes, em número infinito, de perfeições particulares. Por isso, por muito numerosos que sejam os nomes que o explicam, nunca serão tantos e tão grandes que não possam ser ainda mais. Qualquer um desses nomes está para o nome pró- prio e inefável como o finito está para o infinito. "51 Neste contexto, a fecundidade do conceito de infinito para nomear, sem nomear, a divindade manifesta-se na pluralidade de designações a que A douta ignorância recorre. Assim, para além do conceito de Máximo ou do conceito de "coincidentia opositorum': poder/amos ainda referir, no primeiro Livro, o recurso aos conceitos de unidade (que atravessa os capítulos 5 a 9), que Lhe permite igualmente tematizar a sua natureza trinitá- ria j untando-Lhe os conceitos de igualdade e de conexão. Mas outros nomes se vão insinuando, entretanto, nesta pri- meira obra filosófica do autor. É assim que o conceito de idem, que constituirá o nome divino aprofundado no pequeno opúsculo De genesi, aparece aqui introduzido no movimento pronominal do hoc para o id e do id para o idem, ou da unitas para a idi- tas e da iditas para a identitas52. Acrescente-se ainda que, em A douta ignorância, não surge o nome divino "Não-outro" (non aliud), que só o diálogo que ficará conhecido com este título, mas que teria como título origi- nal Directio speculantis, aprofundará como outra face do idem com a dialéctica implícita na categoria de 'ínfinitus". Mas, em H IDEM, A douta ignorância, L I, cap. 25, n.• 83, infra p. 60-1. Um dos primeiros esrudos a chamar a atenção para a importância do conceito de infinito no pensamento de Nicolau de Cusa e a propor uma rei nterpretação de roda a sua filoso- fia a panir desta categoria foi o de Mariano ÁLVAREZ GOMEZ, Di~ vorborgm~ G~m wart des Unnui/ichm bú Nikolaus von Kun, München/Salzburg. Anton Puster, 1968. 52 Cf. ICO!.AU DE CUSA, A douta ignorância, L I, cap. 9, n.• 25, infra p. 19. [XXIII] contrapartida, surgem já outras caracterizações do Máximo tam- bém como infinito que contêm implícitos dois dos nomes divinos mais originais no discurso cusano: o possest e o posse ipsum. O que a adopção desses dois nomes traduz é uma progressiva substi- tuição, na definição de Deus, do primado do esse pelo primado do posse, de tal maneira que o posse ipsum, o poder-ele-pró- prio, acaba por surgir no discurso cusano como sucedâneo do ipsum esse subsistens, adoptado, por Tomás de Aquino, como nome divinrr3. Quando, no capítulo 4 do Livro !, Nicolau de Cusa diz do Máximo que ele, "sendo tudo o que pode ser, é com- pletamente em acto "54, está a atribuir-Lhe uma plena coincidên- cia entre potência e acto, não apenas entre a sua potência e a sua actualidade, mas mais radicalmente e de forma abrangente entre toda a potência ou a potência de todas as coisas e a sua (do Máximo) actualidade. Ora é precisamente este o sentido da fór- mula possest que ele criará em 1460 como nome divino. A anteceder tal fórmula estão precisamente as mesmas considera- ções: "Sendo a potência e o acto o mesmo em Deus, então Deus é em acto tudo aquilo de que se pode verificar o poder ser. Com efeito, nada pode ser que Deus não seja em acto. ·~5 i destes pres- supostos que o autor parte para a sua original e inovadora desig- nação: "Admitamos que uma expressão signifique, com signifi- cado simplicíssimo, quanto {significa} esta expressão complexa: o poder é: por outras palavras, que o próprio poder seja. E porque o que é é em acto, então, que o poder seja é o mesmo que poder ser em acto. Chame-se possest. Nele são complicadas todas as coisas e é um nome de Deus bastante apropriado segundo o con- ceito humano que dele temos. i um nome que abraça todos e cada um dos nomes e ao mesmo tempo nenhum. '~6 Sabemos, entretanto, que já no final da sua vida Nicolau de Cusa optará H Cf. TOMÁS DE A QUI O, Summil th~o/ogUu, l, q. 4, a. 2. ~ ICOI.AU DE CuSA, A douta ignorância, L I, cap. 4, n.• 11 , infta, p. 9. Cf. também, L I, cap. 22, n.• 68, infta pp. 50-51 , onde o ser em acto rudo o que pode ser ~ traduzido pdo conceito da complicatio divina. ss ICOI.AU DE CuSA, D~ po=t, h Xl2, n.0 8. S6 I DEM, ibidnn, n.• 14, linhas 3-10, pp. 17-18. [XXIV] por uma fórmula, ainda mais simples para traduzir a mesma ideia: "Compreendi então que devo admitir que a hipóstase das coisas, isto é, a subsistência, é o poder. E porque pode ser, sem o poder-ele-próprio [posse ipsum] níúJ pode ser. Como poderia sem poder? Por isso, o poder-ele-próprio [posse ipsum] sem o qual nada pode o que quer que seja é aquilo relativamente ao qual nada pode haver de mais subsistente. '57 No entanto, ao desenvol- ver esta noçiúJ de posse ipsum o autor mais não fará do que tor- nar explicito aquilo que já estava verdadeiramente complicado na definição de Máximo como "omne id quod esse potest" apre- sentada em A douta ignorância58 . Os três últimos capitulas do Livro !, abordando sucessiva- mente o nome de Deus no quadro da teologia afirmativa, os nomes atribuldos pelos gentios a Deus e a teologia negativa, com- tituem um bom epilogo para a reflexão sobre o Máximo desen- volvida desde as primeiras páginas, mas, simultaneamente, ao porem a questão da nominabilidade divina, abrem o caminho para um fecundo aprofundamento da natureza da linguagem que virá a ser desenvolvida em obras posteriores. Com efeito, é já aqui estabelecido o principio segundo o qual "todos os nomes sÍÚJ impostos por uma certasingularidade própria da razão, em vir- tude da qual se faz a distinção entre uma coisa e outra" e, por isso, "onde todas as coisas são uma só, nenhum nome pode ser apropriado"59. Compreende-se, assim, que o autor diga que "qualquer um desses nomes está para o nome próprio e inefável como o finito está para o infinito '60. Mesmo a unidade, se por ela se entende algo que se opõe à multiplicidade, é um nome redutor quando aplicado a Deus, pois "pluralidade e multiplici- SJ IDEM, D~ apic~ th~orilu, n.• 4, linhas 6-10, p. 119. sa Sobre o poM~t e o poM~ ipsum como nomes divinos, para além do artigo de P. CAsAREu... " icholas of Cusa and the Power of the Possible", já anteriormente citado, cf. também A. BRÜNTRUP, Konnrn wui &in. Du Zusammmhang tkr Spiilm- schriftm dn Nikolaw von Kues, München/Salzburg, Anton Pustet, 1973, e ainda J. STAU.MACH, "Sein und das Kõnnen-sdbst bei ikolaus von Kues", in: K. FLASCH (Hrsg.), Parusia. Studim zur Phi/osophic Platons wui zur Probkmg~chichu dn Plato- númw, Frankfurt arn Main, Minerva, 1965, pp. 407-421. s9 ICOLAU DE CuSA, A tÚJUJII ignorância, L I, cap. 24, n.• 74, infra p. 55. 60 IDEM, ibilkm, cap. 25, n.• 84, infra p. 61. [XXV] dade opõem-se à unidade segundo o movimento da razão. Daí que não convenha a Deus a unidade, mas sim a unidade à qual não se oponha a alteridade, a pluralidade ou a multiplicidade. Este é o nome máximo que complica todas as coisas na simplici- dade da sua unidade, é este o nome inefável e que está acima de toda a intelecção. '151 Esse nome máximo é-o porque significa uma plenitude excessiva de sentido, sendo, por isso, a condição de possibilidade do nome de todas as coisas e o sentido que em todos os nomes se exprime e explica de uma forma plural, como se depreende do passo seguinte do De filiatione Dei: "Portanto, convém que suponhas que o uno, que é o princípio de todas as coisas, é inefável na medida em que é o princípio de todos os efá- veis. Tudo aquilo que se pode exprimir não exprime o inefáve~ mas toda a expressão diz o inefável. O uno, o pai ou o gerador do ~rbo é, com efeito, tudo aquilo que é dito em qualquer pala- vra, significado em qualquer sinal e assim sucessivamente. '152 Neste sentido, a imprecisão que caracteriza todo o nome com que pretendamos designar Deus repercute-se também numa certa imprecisão de toda a linguagem, na medida em que todas as palavras procuram exprimir o inexprimivel que, enquanto tal, escapa a toda e qualquer tentativa de fixação linguistica ou con- ceptua~ revelando-se também aqui, mais uma vez, o alcance profundo da "douta ignorância'153• 5. O universo, a natureza, e as concepções cosmológicas de Nicolau de Cusa Do segundo livro de A douta ignorância, três temas mere- cem a nossa particular atenção: a concepção sistémica e orgânica 61 IDEM, ibidnn, cap. 24, n.• 76, infra p. 56. 62 IDEM, D~ fi/Uuion~ Dá, cap. 4, h IV, n.• 72, linhas i-6, p. 54. 63 Sobre a filosofia da linguagem subjacente ao misticismo cusano, cf. K.-0. APEL, "Die ldee der Sprache hei Nikolaus von Kues", Arrhiv for &griffigDchichu, I (1995) , pp. 200-221. Cf. ram~m Hans-Gerhard SENGER, "Die Sprache der Meraphysik", in K. (Hrsg.), op. cit., pp. 74-100; cf. , ainda João Maria ANo~ "O problema da linguagem no pensamento filosófico-teológico de icolau de Cusa", &vista Filos6fica tÚ Coimbra, 11/4 (1993), pp. 369-402. [XXVI] do universo, a concepção dinâmica de natureza e as intuições cosmológicas dos últimos capítulos. A concepção do universo pressupõe, como bem sublinhou já há muito H Rombach, a tramição de uma ontologia da subs- tância para uma ontologia da re/ação64, e é por isso que, por um lado, ele é definido como unidade da multiplicidade ("universo significa universalidade, ou seja, unidade de muitas coisas 'r;5) e, por outro, é definido como contracção do Máximo, de tal maneira que é uma espécie de intermediário entre a unidade do Máximo e a pluralidade das coisas existentes. Assim, o universo é relaciona/idade plena, unificando, nessa relaciona/idade, a plura- lidade de tudo o que existe, quer no que se refere à reciprocidade que se estabelece entre as coisas existentes, quer no que se refere à relação entre o conjunto dos entes finitos e o seu principio fim- Jante. Contraindo, na sua unidade, a unidade do Máximo, exprime essa mesma unidade na contracção que cada ente em si realiza, tanto da plenitude máxima, como da realidade finita de todos os outros entes. Toda esta concepção do universo está assim marcada, pelo repemamento e aprofundamento de fragmento de Ana.xágoras tv navrlnavr6ç, recordado logo no inicio do capí- tulo 5: "Se comideras com agudeza o que já foi dito, não te será dificil ver o fundamento de verdade daquela frase de Anaxágoras 'qualquer coisa é em qualquer coisa: talvez ainda mais profunda do que o próprio Anaxágoras pensou. Com efeito, sendo mani- festo, segundo o livro primeiro, que Deus é em todas as coisas de um modo tal que todas são nele, e comtando agora que Deus é em todas as coisas como que mediante o universo, daí resulta que tudo é em tudo e que qualquer coisa é em qualquer coisa. 'u As comequências que, com Nicolau de Cusa, daqui podem ser reti- radas são profundas e extremamente actuais: no ser concreto de cada ente se contraem todos os outros entes no que são, no que foram e no que serão, como se contrai o próprio passado e o pró- 64 C( H. ROMBACH, Substanz, Sysum und Struktur. Di~ Onw~ da Funlr- tionalinnu.s und tÚr phiklsophisch~ Hintugrund tÚr modunm Wrssmschaft, l, Frei- burg/München, 1965, pp. 173-179. 65 ICOU.U DE CUSA, A doura ignorância, L II, cap. 4, n.• 115, infra p. 82. 66 IDEM, ibidnn, L II, cap. 5, n.• 117, infra p. 83. [XXVII] prio foturo desse mesmo ente. Pode, pois, dizer-se que o mundo de Nicolau de Cusa não é um aglomerado de individuas tomados na sua atómica singularidade, mas uma teia de relações, em que tudo tem a ver com tudo, como o postula a própria metáfora do organismé7 com que o autor reescreve a sua perspectiva sisté- mictf>B. Este paradigma relacional, revisitado no final do século XX coloca-nos, pois, na órbita do pensamento hollstico que caracteriza o paradigma que vai emergindo tanto na Biologia, como na Física, na Química ou na Antropologia69. Esta concepção relacional e sistémica repercute-se numa concepção também ela profUndamente dinâmica de natureza, desenvolvida sob uma marcada influência da Escola de Chartres na sua reinterpretação quer dos motivos do neoplatonismo, quer dos próprios princípios da Física de Aristóteles. Tal concepção é fUndamentalmente introduzida na exploração das várias catego- rias através das quais se explicita a trindade do universo que, contraindo a trindade divina, se transforma, neoplatonicamente, em teofonia. Possibilidade, necessidade de complexão e nexo, por um lado, potência, acto e movimento, por outro lado e, ainda, matéria, forma e esp írito do universo, são conceitos que vão per- mitindo ao autor desenvolver a sua perspectiva dinâmica da natureza que acaba por definir como a união complicativa do movimento descensivo da forma para a matéria com o movi- mento ascensivo da matéria para a forma, ou seja, o movimento de conexão da potência com o acto: "E, assim, da subida e da descida, surge o movimento que Liga ambas. Este movimento é o meio de conexão da potência e do acto, porque da possibilidade do móvel e do motor formal surge o movimento enquanto inter- 67 IDEM, ibidon, L. II, cap. 5, n.• 121 , infra p. 86. 61 Cf. João Maria ANDRt, "Da mlstica renasantista à racionalidade cientifica pós-moderna (a propósito da articulação enue Ciência, Filosofia e Misticismo em icolau de Cusa}", &vista FiloJ6jica tÚ Coimbra, TV/7 (1995}, esp. pp. 89-91. Cf. tam~m W . STROBLE, "EI pensamiemo de icolàs de Cusa y las ciências comem- poraneas", in Nico/às tÚ Cwa ma V Cmtmario tÚ su mrmu (1464-1964), MadJid, Instituto Luis Vrves de Elosofia, 1%7, pp. 99-106. 69 Cf. M. B. PEREIRA, MotÚmidiuk ~ umpo, Para uma kiturado di.Jcuno motÚmo, Coimbra, Livraria Minerva, 1990, pp. 216-234, e ainda, do mesmo autor "Do biocemrismo à bioética ou da urgência de um paradigma holístico", &vista FiloJ6fica tÚ Coimbra, l/ 1 (1992}, pp. 5-50. [XXVIII] medidrio. Este espírito estd difuso e contraído por todo o universo e por cada uma das suas partes e chama-se natureza. Por isso, a natureza é, de algum modo, a complicação de todas as coisas que acontecem através do movimento. '90 Se o que aqui se insinua é ainda a ideia aristotélica de que 'a natureza é um princípio e uma causa de movimento e de repouso para a coisa em que ela reside imediatamente como atributo essencial e não acidental'91, é jd também o par de conceitos complicatio/ explica tio e a ideia de que a natureza, à imagem de Deus, é do mesmo modo e simultaneamente complicação e explicação: complicação, como foi referido, de tudo o que acontece através do movimento, mas também explicação, pelo movimento, de tudo o que contém com- plicativamente, ou sej a, a natureza explica o posse fieri do mundo segundo as razões do intelecto divim!l. Acresce ainda que toda esta concepção dinâmica da natureza, no contexto do para- digma animista em que se inscreve, lhe introduz um vínculo amoroso de que resulta um cosmos harmónico, proporcional, ou seja, no seu sentido etimológico, belo: "E este é o movimento da conexão amorosa de todas as coisas para a unidade, de modo que de todas as coisas surja um universo uno'93. Também toda esta perspectiva se articula profUndamente com algumas visões actuais da natureza, permitindo inclusivamente a exploração do par de conceitos complicatio/explicatio não só algum paralelismo com certas ideias que têm vindo a ser apresentadas por determinados fisicos, como David Bohrrl4, mas também alguma convergência com determinadas teses de um certo evolucionismo cristãt!5. 70 NICOlAU DE C USA, A tÚJuta ignorância, L. II , cap. 10, n .~ 152- 153, infra pp. 109- 110. 71 AR.ISTóTEUS, Physica, L. II , cap. I. 72 Cf. NiCOlAU DE CUSA, D~ vmation~ sapimtia~. cap. 4, h XI I, n.• 10, linhas 12-15, p. 13. 73 IDEM , A tÚJuta ignorância, L. II , cap. 10, n .• 154, infra p. 110. 7 • Cf. David BOHM, La tota!itÚui y ~1 ordnr implica@, uad. cast. de J. Apfd- baume, Barcelona, Kair6s , 1988, esp. pp. 19-43 e 240-295 . 75 Cf. R. HAuBST, "Der Evolutionsgedank in der cusanischen Theologje", in IDEM , Strdfzüg~ in di~ cusani.sch~ Thrologie, Münster, Aschendorff, 199 1, pp. 216- 239. Cf. também S. SCH EIDER, "Cusanus als Wegbereiter der neuzeidichen atur- wissenschaft", Mittdlungm und For>chungsb~itriig~ tÚr CUSI1nus-Gmllschaft, 20 (1 992), esp. pp. 210-21 7. [XXIX] b precisamente a partir das concepções metafisicas subjacen- tes à sua visão do universo e da natureza que Nicolau de Cusa avança, nos últimos capítulos do segundo livro, um conjunto de intuições cosmológicas que virão a revelar-se decisivas na gestação da nova visão do mundo que vird a impor-se sobretudo a partir do século XVII. Ao avaliar o alcance dessas intuições é necessdrio, no entanto, acautelar três aspectos que nos parecem importantes: em primeiro lugar, essa vinculação à inspiração místico-teológica que as suporta; em segundo lugar, a novidade que, em determi- nados aspectos, as caracteriza; finalmente, em terceiro lugar, as limitações com que são formuladas e, por isso, a distância que ainda as separa da revolução cosmológica dos séculos seguintes. Que hd uma dependência incontestdvel entre estas intuições e as concepções filosóficas desenvolvidas ao longo do segundo livro é o que o próprio título do capitulo 11 jd deixa claramente esta- belecido: "coroldrios sobre o movimento': Tudo é, pois, introdu- zido nestes termos: "Sabemos agora por elas que o universo é trino e que nada hd no universo que não seja uno pela potência, o acto e o movimento de conexão, e que nenhum deles pode sub- sistir de modo absoluto sem o outro, de tal maneira que necessa- riamente eles estão em todas as coisas segundo graus muito diver- sos{ . .] E não se chega em algum género, mesmo de movimento, ao mdximo e ao minimo de modo simples. Por isso, é impossível que a mdquina do mundo tenha esta terra sens{vel, o ar, o fogo ou qualquer outro elemento como centro fixo e imóvel, considera- dos os vdrios movimentos das esferas. Não se chega, pois, ao minimo de modo simples, como o centro fixo, porque é necessdrio que o minimo coincida com o máximo. "76 E, logo a seguir, o desaparecimento da esfera das estrelas fixas é apresentado nestes termos: "como não é poss{vel que o mundo seja fichado entre um centro corpóreo e uma circunferência, o mundo é ininteiigivel e o seu centro e circunferência são Deus. "17 Tendo em conta esta con- textualização, não podemos deixar de reconhecer, no entanto, que é um passo grande aquele que é dado na passagem para a cosmo- 16 JCOU.U DE C USA, A tÚJuuz ignorância, L. II , cap. li , n .• I 56, infta p. 112. n IDEM, ibidnn, infoz pp. 112-113. [XXX] logia moderna enquanto passagem do "mundo fechado" ao "uni- verso infinito ': como a caracterizou A. Koyrf18: esbate-se, pelas razões referidas, a ideia de um centro do universo, elimina-se aquilo que o fechava, estabelece-se a homogeneidade entre a terra e os outros astros, admite-se a possibifidmie de estes serem habita- dos por seres com caracterlsticas próprias, afirma-se que a Terra não pode ser privada de movimento e questiona-se a finitude do mundo. Há, assim, um conjunto de elementos que nos permitem afirmar que Nicolau de Cusa vai, relativamente a certos aspec- tos, mais longe que Copérnico, na medida em que já não se trata apenas de uma substituição do centro do universo, mas do pró- prio questionamento desse centro. Todavia, a audácia com que estas propostas são avançadas e a consciência da sua novidade ("admirar-se-ão talvez os que Lerem estas coisas antes inauditas, posto que a douta ignorância mostra que elas são verdadeiras"19) não nos podem Levar a juizos precipitados e a confondir os traços desta cosmologia com os da de Giordano Bruno, em muitos casos influenciados pela percepção do carácter revolucionário das afir- mações daquele a quem ele chamava 'o divino Cusano ". Com efeito, por um Lado, ainda não é a infinitude do mundo que aqui é afirmada: "E embora o mundo não seja infinito, contudo não pode ser concebido como finito, porque está privado de Limi- tes entre os quais esteja encerrado. '60 Por outro Lado, se a terra não estd imóvel, isso não significa que se insinue aqui qualquer tipo de heliocentrismo, já que, afinal, ao mesmo tempo que se afirma que "assim como as estrelas estão em movimento em torno de pólos conjecturais na oitava esfera, assim a Terra, a Lua e os planetas são como estrelas que se movem em torno de um pólo': afirma-se também que a terra é "quase como uma estrela, mais próxima do pólo centra/'61, movendo-se também, mas "ainda menos que todos os outros astros'82. Mesmo assim, não há dúvida de que é mesmo uma nova cosmologia que, sobre este chão mís- p. 112. 78 Cf. A. KoYRf, Du montÚ cloJ à l"univ= infini, Paris, Gallimard, 1973. 79 NICOLAU DE CUSA, A douta ignorância, L. II, cap. li , n.• 156, infra 80 IDEM, ibitúm, infra p. 113. 81 IDEM, ibitúm, L. II , cap. II, n.• 160, infra p. 115. 82 IDEM, ibitúm, L. ll , cap. II , n.• 159, infra p. 114. [XXXI] tico-teológico, começa a emergir e a anunciar os tempos novos que se aproximam. 6. A Antropologia e a Cristologia de Nicolau de Cusa O terceiro livro constitui, na economia da obra, um momento importante e decisivo, na medida em que é através da reflexão que nele é desenvolvida que se estabelece, por um lado, a mediação entre o registo filosófico e o registo teológico do seu dis- curso e, por outro lado, a mediação entre o máximo absoluto e o máximo contraído num aprofundamento, correspondente àqueles dois registos, quer do lugar que o homem ocupa no pensamento do autor, quer do estatuto do Homem-Deus, jesus Cristo, no quadro da sua mundividênciamístico-teológica. Num texto bem expressivo da unidade que representa este terceiro livro, diz Nicolau de Cusa como introdução ao capitulo significativamente intitulado 'os mistérios da fé':- "Os nossos antepassados afirmaram em concordância uns com os outros que a fé é o início do conhecimento intelectual. Com efeito, em qual- quer disciplina pressupõem-se coisas como princípios primeiros, que só são aprendidos pela fé, dos quais brota a inteligência do que deve ser tratado. t necessário que todo aquele que quer ascender ao saber creia neles, sendo impossivel, sem eles, ascender. Diz efectivamente Isaías: 'Se não acreditardes, não entendereiS: Por isso a fé é o que complica em si tudo o que é inteligível. E o conhecimento intelectual é a explicação da fé. Assim, o conheci- mento intelectual é dirigido pela fé e a fé estende-se pelo conheci- mento intelectual. Dai que onde a fé não é sã, nenhum conheci- mento intelectual é verdadeiro. t bem manifesto a que conclusão conduzem o erro dos princípios e a debilidade dos fundamentos. Mas nenhuma fé é mais perfeita que a própria verdade que é jesus. '83 Se aqui se aprofunda a unidade entre a fé e o intelecto, não deixa, simultaneamente, de se pressupor a sua distinção: são efectivamente identificadas como duas instâncias diferentes de conhecimento para cuja articulação se apela mais uma vez ao 83 lDEM, ibükm., L III, cap. 11, n.• 244, infoz pp. 171-172. [XXXII] par de conceitos complicatio/explicatio84 . Invocando Isaías (7, 9) e pressupondo tanto Agostinho como Anselmo, considera-se a fé, enquanto complicatio, o início do intelecto e considera-se o processo discursivo tÚl mente humana uma explicação do que a fé contém complicativamente. Significa isto que há um núcleo de princípios que são proporcionados ao pensamento pela revelação e pela fé, mas que podem ser explicitados e desenvolvidos no plano racional, CÚlndo assim um sentido muito particular àquilo a que se poderá chamar filosofia cristã ou pensamento cristão. AintÚl no quadro desta distinção e, ao mesmo tempo, desta aproximação entre o registo filosófico e o registo teológico, com claras implica- ções para a antropologia cristocêntrica que procura elaborar, sublinhe-se a identificação operatÚl entre jesus e a vertÚlde, ins- crevendo assim nesta reflexão a teologia do logos divino que desempenha um lugar central no pensamento cusano, de que são exemplo os numerosos sermões que glosam os versículos joaninos "no princípio era o Verbo " e "o verbo fez-se carne': Assim, a pers- pectiva cristocêntrica não resulta apenas do facto de a Encarna- ção de Cristo constituir um motivo central na economia tÚl redenção, mas também tÚls implicações inerentes à reinterpreta- ção tÚl seguntÚl pessoa tÚl TrintÚlde como logos. Neste contexto, o terceiro livro não entra directa e imediata- mente na temática cristológica, mas estabelece, como etapa inter- média para chegar a ela, uma reflexão sobre o lugar específico do homem no universo, retomando e aprofontÚlndo o tema, bebido nos autores antigos, do homem como microcosmo85• O carácter 14 Cf. , para as diversas interpretações desre passo, A. BONETTI , La riurca mf!tajlsica na pmsim1 di Nico/à Cwano, Brescia, Paideia, 1973, pp. 16-1 7, nora 4. Ainda sobre a an:iculação entre fé e intelecto, cf. S. OANGEI.MAYR, "Vernunfr und G1aube bei ikolaus von Kues", Tübing" Th~ologiJch~ Quartalschrift. 148 (1968), pp. 429-462. as Para as fontes de Nicolau de Cusa na abordagem desre rema, cf. as noras críticas à edição de Heidelberg da sua obra: h I, p. 127, nora à linha 2 e ss., h III, p. 143, nora à linha 10 do n.• 143 e h XII , p. 91, nora à linha 9 do n.• 15. Sobre o rraramento que a tradição deu a este tema, cf. R. Al..U.RS, "Microcosmos from Anaximandro t0 Paracelsus", Traáirio, II (1 944), pp. 318-407; M. KuRDZIALLEK, "Der Mensch als Abbild des Kosmos", in: A. Zimmerman (H rsg.), D" &griff dn- 1?f>raesmtario im Mitulaku. Misalitt=a MedianJaJUJ, 8, Berlin- ew York, Walrer de Gruyrer, 1971 , pp. 35-75; C. RICCATI, "Proc=io" er "Explicatio ~ La doctri= tk la criarion cha Jean Scot et !Vuolas tk Ú«s, apoli, Bibliopolis, 1983, pp. 178-183. [XXXIII] mediador de Cristo assenta, asszm, no carácter mediador da natureza humana, que, como "imago Dei': é uma contracção do máximo absoluto, mas, ao mesmo tempo, reúne em si o que nos entes do universo aparece plurificado, determinando, deste modo, a posição intermédia da humanidade no conjunto do universo e realçando, assim, a sua excelência. A natureza humana repre- senta o ponto mais alto das naturezas inferiores, aproximando-se do ponto mais baixo das naturezas superiores e é por isso que é chamada microcosmo: "Mas a natureza humana é aquela que é elevada acima de toda a obra de Deus e é pouco inferior à natu- reza angélica. Ela complica a natureza intelectual e a natureza sensível e reúne tudo em si, pelo que os antigos a chamaram com razão microcosmo, ou seja, pequeno mundo. '86 A abordagem que Nicolau de Cusa fará deste tema não s6 em outras obras mais marcadamente filos6ficas, como o De coniecturis, o De ludo globi e o De venatione sapientiae, mas também em alguns dos seus sermões, inscrevem-no de uma maneira muito peculiar entre os autores que, no Renascimento, prestaram particular atenção à dignidade do homem81, com especial destaque para Pico de/la Mirando/a e para a sua Oratio de hominis dignitate88• Mas se à humanidade são reconhecidas prerrogativas que permitem estabelecê-la como mediação entre Deus e o universo, Nicolau de Cusa não deixa de acusar, mesmo aqui, as influên- cias de um certo nominalismo na sua resposta à questão dos uni- versais e, por isso, vê-se forçado a afirmar que não é a humani- dade, enquanto tal, que desempenha esse papel mediador, mas ICOLAU DE C USA, A douta ignorância, L. III , cap. 3, n.• 198, infra p. 139. 117 Sobre o rema do microcosmo em Nicolau de Cusa e, sobrerudo, o seu carácrer dinâmico, cf. W. DuPRt., "Der Mensch ais Mikrokosmos im Denken des Nikolaus von Kues", Miruilungm und Fonchungsbritriig~ tÚr Cusanus-Gm/Jschaft, 13 (\978), pp. 68-87. Cf. também o desenvolvimenro que demos a este tema em João Maria ANoRt., "O homem como microcosmo. Da concepção dinâmica do homem em icolau de Cusa à inflexão espirirualisra da anuopologia de Ficino", Phiw•ophica 14 (1999), pp. 7-30. 11 Sobre a presença do rema da "dignitas homini" em alguns dos autores renascemisras, cf. Miguel A. GRANADA, El umbral tk la Motkrnidad. Emu:lioJ wb" ftwwf/4, raigión y cimcia mm P~trarca ~ Descarm, Barcelona, Herder, 2000, pp. 193-259. [XXXIV] sim um homem em quem, por um lado, a humanidade atinja a sua plenitude sem deixar de ser humanidade e, por outro, a divindade se presentifique sem abancúmar a maximidade que a caracteriza. Deste modo, só um ser concreto e individual, que seja simultaneamente criador e criatura, Deus e homem, pode constituir o complemento e a plenitude do universo e a realiza- ção plena da humanidade: '.ít humanidade, no entanto, não é senão de modo contraído nisto ou naquilo. E assim não seria pos- sível que mais do que um só homem verdadeiro pudesse ascender à união com a maximidade e este, certamente, seria homem de um modo tal que seria Deus e seria Deus de um modo tal que seria homem, perfeição do universo, tendo entre todas as coisas o primado e, nele, as naturezas mínima, máxima e média, unidas à maximidade absoluta coincidiriam de tal modo que seria a perfeição de todas as coisas e todas as coisas, enquanto contraídas, repousariam nele como na sua perfeição. '69 Ora esse homem só pode ser, na perspectiva do autor, jesus: "E assim em jesus, que é a igualdade de ser todas as coisas, não só existem, como sendo Filho na divindade, que é a pessoa intermédia, o Pai eterno e o Espírito Santo, mas existem também todas as coisas, como sendo o verbo, e toda a criatura é nessa humanidade suprema e suma- mente perfeita que complica, de modo universal, tudo o que é criável de modoque toda a plenitude o habita. '90 Todavia, ao afirmar-se, assim, a concretização da plenitude da mediação na figura de jesus, este constitui-se em modelo do homem como tarefo, acentuando ainda mais todo o dinamismo inerente a esta antropologia: se o Verbo, enquanto Filho, é a igualdade (na trin- dade da unidade, da igualdade e da conexão}, o homem é ten- dência para a igualdade, e se a filiação divina, realizada em Cristo, é igualdade da identidade, a afiliação a realizar pelo homem é semelhança dessa igualdade. E se a primeira é uma filiação natural e absoluta, a segunda é aquilo a que Nicolau de Cusa chama uma "filiação por adopção'91. Tal filiação por adop- ção é entendida também ela como um processo, o processo da 19 ICOLAU DE CUSA, A douta ignorância, L. III , cap. 3, n. o 199, infra p. 140. 90 IDEM, ibidnn, L. III, cap. 4, 0 .0 204, infra p. 145. " IDEM, Ih filúuWru Dri, cap. I, h TV, n.o 54, linhas 22-26, p. 42. [XXXV] deificatio ou da deiformitas, que inscreve uma dimensão escato- lógica como configuradora de toda esta antropologia e que se prende com a concepção do homem como imago viva, ou simbolo vivo, dotado da capacidade de se tornar cada vez mais seme- lhante àquele de quem é imagerrr2, tomando como modelo (ou seja, como "caminho': como "verdade" e como "vida"93) Cristo, mediador universal. Toda a antropologia cusana é, pois, uma antropologia cristocêntrictl4 e escatológica e é assim que ele ins- creve, nos últimos capitulos de A douta ignorância, uma pro- blemática ética e praxlstica que conflui para a afirmação da caridade como a "forma" em que se realiza a plenitude da ft, que "não pode ser máxima sem a caridade'95, aquela que, em outros textos, é justamente considerada 'a forma ou a vida de todas as virtudes'96 e que foi já considerada a componente fim- damental de todo o ser7. E, por isso, natural que esta obra encerre com um capitulo dedicado à Igreja como forma de con- cretização dessa mesma caridade. 7. Influências e recepfão do pensamento cusano Apesar de toda a sua estatura e da densidade do seu pen- samento, a História nem sempre reconheceu a Nicolau de Cusa o 92 C( IDEM, Carta a Albn-gati, ed. cit. , n." 6, p. 28, linhas 8-13. Esta ideia é transposta para a metáfora do homem como auto-retrato vivo do pintor divino, apresentada também na Carta a Albn-gati, n." 8, p. 28, linhas 19-23 e retomada do Jdiouz tk mmu, cap. 13, H. V, n." 149, linhas 1-12, pp. 203-204. 91 }o 13,13 e 14, 6. Cf. NICOL\U DE CUSA, A douuz ignorânciJZ, L. III , cap. 8, n." 229, infra p. 161. Cf. também Dt visiont Dt~ cap. 25, h Vl , n." 119, linhas 1-3, p. 89. " Sobre a C ristologia de Nicolau de Cusa, cf. R. HAUBST, Dit Chrirtoklgit dn Niltolaus von Kun, Freiburg, Herder, 1956. 91 Cf. IDEM, A douuz ignorânciJZ, L. III , cap. 11 , n." 250, infra p. 176. 96 IDEM, Sumo XU, Can.fo.k, filia, H . XVII, n." 23, linhas 3-4. Segundo H . G . SENGER ("Zur frage nach einer philosophischen Ethik des ikolaw von Kues", Wwnuchtrji wui Wt/bild, 33 (1970) , p. 117), uma ética baseada assim na caridade é plenamente convergente com uma ética baseada na igualdade e na jwriça, virtudes também defendidas por icolau de Cusa em outros textos como alicerces de toda a ética. '17 C( W. DuPR.Jô, "Liebe ais Grundbestandteil allen Seins und 'Form oder Leben aller Tugenden'", Miruiúmgm uná Forschung>btitrãgt tkr Cusanus-Gru/Jschaft, 26 (2000), pp. 65-91 . [XXXVI] lugar que lhe é devido no panorama do pemamento europet/8. Assim, se é certo que ele terá sido conhecido em algum cfrculos humanistas do século XV italiano, nomeadamente no que se refere aos pensadores neoplatónicos, se o conhecimento da sua obra se espalhou um pouco por toda a Europa devido às quatro edições então publicadas (Estrasburgo, 1488; Milão, 1502; Paris, 1514, revista por Lefevre d'Étaples; Basileia, 1565) e se acabou, como já foi referido, por influenciar significativamente Giordano Bruno, depressa passou, no entanto, ao esquecimento, salvo em algum escritos matemáticos que continuaram a ser lidos e estudados em determinados círculos especializados. O próprio Descartes apenas se lhe refere de passagem, a propósito da infini- tude do universo, e por isso a sua presença no pemamento euro- peu, até ao século XIX, é mais a de um pemamento esquecidtl9, do que a de um autor claramente identificado e reconhecido. P certo que, numa conferência pronunciada em 1940, E. Ho./f- mann o comidera "o fundador da filosofia alemã ''~00, mas tam- bém é certo que em outra conferência pronunciada no mesmo ano avançará com a proposta de que, afinal, Bruno foi uma espécie de pseudónimo através do qual o Cardeal alemão chegou ao século XVIII, com· o comequente empobrecimento da demi- dade metafisica do seu pensamento101• Assim, apesar da forma como terá influenciado o idealismo alemão, Hegel não lhe con- cede qualquer lugar na sua História da Filosofia. E a partir da segunda metade do século XIX que se inicia a redescoberta deste pemador e o retomo à sua filosofia. Primeiro, é o movimento neotomista, numa certa ambiência apologética, estabelecendo-se um confronto com Giordano Bruno, sempre em torno da questão da imanência ou não de Deus e do comequente 98 Para uma s(nres(: geral da reapção do pensamento cusano entre os séculos XV c XX, veja-se João Maria AND!lt, Smtido, Jimbolismo t inttrprruzção no dúcurso filosófico tÚ Nicolau tÚ Cuuz, pp. 19-44. 99 Cf. S. MElER-ÜSER, Dic Priiimz da Voxromm. Zur &:uption tÚr Philoso- phic dn Nikolaw Cwanw von 15. bú zum 18. }ahrhulUÚrt, Münster, Aschcndorff, 1989. 100 Cf. E HOFFMANN, • ikolaus von Kues und seine Zeit", in IDEM, Niko- law von Kr=. Zwri W>nragt, Heidelberg. F. H . Kerre, 1947, p. 38. 101 Cf. IDEM, ikolaus von Kues und dic dcurschc Philosophic", in Nikolaw von K=s. Zwri W>nragt, p. 57. [XXXVII] panteísmo daí resultante. Depois, surgem as interpretações de Cassirer e de J Ritter, no quadro do movimento neokantiano do princípio do sécuÚJ XX Em terceiro lugar, deve considerar-se o início da publicação dos Opera ornnia pela Academia de Heidel- berg, que, em 1932, dá à estampa o De doera ignorantia, por iniciativa de E. Hojfmann e de R. Klibansky. Este trabalho, ainda em curso, mas de que resultou já a edição de praticamente todas as obras fiwsóficas e de um significativo conjunto de ser- mões, veio proporcionar aos estudiosos o material indispensável para o estudo deste autor e, assim, provocar uma verdadeira reno- vação do interesse pela sua fiwsofia. Finalmente, na década de sessenta, dá-se, em primeiro lugar, a fondação da "Gesellschaft for Cusanusforschung" que deu origem ao '1nstitut for Cusanus- forschung': primeiro a foncionar em Mainz e depois transferido para Trier. Tem sido este Instituto a continuar, em conjunto com alguns investigadores ligados ao Thomas lnstitut de Colónia, o trabalho de investigação conducente à conclusão da edição crítica ainda em curso sob os auspícios da Academia de Heidelberg, como também tem sido ele a organizar com regularidade sim- pósios em Trier sobre o pensamento cusano e a assegurar a publi- cacão da série Mitteilungen und Forschungsbeitrage der Cusanus-Gesellschaft e da colecção "Buchreihe der Cusanus- Gesellschaft '~ Note-se que esta sociedade cusana, para além de ter crescido significativamente, conta já com mais duas congéneres, uma na América e outra no Japão. Ainda na mesma década registam-se as comemorações do quinto centenário da morte de Nicolau de Cusa, que, com os simpósios organizados em diversos países, atraíram mais a atenção dos estudiosos sobre a obra deste autor. Se a isto acrescentarmos, no primeiro ano deste sécuÚJ, as celebrações do VI centenário do seu nascimento, com Congressos amplamente participados na Europa, na América e na Asia, e a que Portugal e Espanha não foram alheio102, damo-nos conta do 102 Os livros Coincüiinria dos oposros ~ conc6rdia. Gzminhos do pmsammro nn Nicoúzu tk Cusa, e Coincitkncia tk op~U</:QS y concordia. Los caminos tkl
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