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DIREITO PENAL E PROCESSO PENAL Teoria Geral do Delito e Principiologia Constitucional TEMA 01 - Evolução das Ideias Penais Evolução das Ideias Penais Objetivos A aula tem por objetivo elucidar temas relacionados à evolução das ideias penais. Passando pelos principais autores da escola clássica, da escola positiva, chegando a escola moderna e estudos contemporâneos. Após a leitura do presente texto, você terá todo o embasamento necessário para construir o alicerce histórico do tema. 1. Antecedentes da Escola Clássica Como alertado por Dotti1, a imposição de um castigo àquele que ofendeu a esfera de poder e da vontade de outrem esteve presente em todos os tempos e em todos os povos. Entretanto, arcaicas formas de punição de culturas com origens místicas e religiosas não podem ainda ser consideradas como Direito Penal, tendo em vista que não questionam a legitimidade do direito de punir e estão pautadas em parâmetros destituídos da racionalidade e do respeito à humanidade de cada pessoa. De igual forma, o sistema punitivo do Antigo Regime das monarquias europeias, marcado pelo pensamento absolutista, também não obedecia aos requisitos do Direito Penal, especialmente pelo agigantamento do Poder Real frente aos indivíduos de outras classes menos nobres. Na realidade, a confusão entre Direito e moral acarretou na vinculação entre o poder político e o poder religioso, de forma que toda conduta criminosa era vista como um pecado a ser combatido e exterminado. Nessa fase, a pena era concebida como uma vingança e um mecanismo de reafirmação do poder central por meio do medo, culminando com a sombria adoção de métodos que infligiam profunda dor e sofrimento, em que o aterrorizante cerimonial do castigo físico ostentava humilhação e crueldade2. Por essa razão, especialmente no período absolutista europeu, a perda da liberdade de locomoção não funcionava como uma solução final, mas mero rito de transição para impor o suplício. Como as definições dos atos proibidos eram vagas e exigiam interpretações pelos seus aplicadores, havia ampla margem para arbitrariedades, tornando impossível qualquer forma de segurança jurídica. Influenciado pela concentração de poder nas mãos do monarca, os julgamentos não continham garantias e estavam entregues a casuísmos, geralmente com privilégios aos nobres e fidalgos e tratamento sem qualquer benevolência para todos que não gozassem destes status. Entretanto, esse cenário começa a mudar com a lenta erosão do pensamento absolutista, advindo pelo crescimento intelectual da classe burguesa. Como o sistema vigente era baseado na impossibilidade de ascensão social, a burguesia emergente era uma casta destituída de meios para atingir o poder e, ainda, estava à mercê da vontade de um soberano, somente investido nesta categoria por conta de sua origem nobre. Gradualmente, doutrinas baseadas na igualdade entre as pessoas começam a circular e o ideário absolutista passa a ser questionado, em todos seus segmentos. Incumbiu ao Iluminismo funcionar como essa corrente filosófica inovadora, contrapondo às verdades absolutas das monarquias do Século XVIII. Com o florescimento do pensamento iluminista, não tardou para que suas luzes atingissem o sistema punitivo, retirando-o de sua sombria condição. Sem objetivo de esgotar a complexidade do pensamento iluminista, podemos mencionar algumas de suas características que foram essenciais para alteração do quadro do sistema punitivo: 1. Adoção das teorias contratualistas: com ênfase nas lições de Jean Jacques Rousseau, apresentadas no livro “O Contrato Social”, o contratualismo refutava a tese de que o poder político derivava de intervenção divina, mas aparecia como uma necessidade para a convivência harmônica da coletividade humana. Para assegurar a paz e a segurança de todos, cada membro teve de ceder parcela de sua liberdade para o poder central, delegando a este a tarefa de defender a sociedade pelo poder punitivo. 2. Secularização: conforme exposto por Luigi Ferrajoli, em sua densa obra “Direito e Razão: Teoria do Garantismo Penal”, a confusão entre Direito e moral representou retrocesso para as ciências penais, uma vez que ao não distinguir o crime do pecado, restou ao sistema punitivo tutelar a fé e coibir qualquer ato contrário a religião. Por não separar o Estado do religioso, o castigo passa a ser aplicado com base nas características indesejadas de algumas pessoas. Em outros termos, a pessoa poderia ser condenada pelo que ela era (bruxo, herege, homossexual etc) e não necessariamente pelo que poderia ter praticado. A secularização busca romper os laços entre a moral e o Estado e evitar que qualquer ação pecaminosa seja considerada como prejudicial para o convívio social. 3. Racionalismo: para o Iluminismo, era imprescindível extirpar as enraizadas doutrinas seculares baseadas em códigos éticos e morais, pois a razão humana deveria permear todas as áreas do conhecimento e do poder político. 4. Legalismo/Legalidade: com objetivo de cessar com as arbitrariedades da imputação do delito devido a vagueza da redação das leis, geralmente com conteúdo gerado a partir de interpretações religiosas pouco claras, fato que prejudicava o efetivo gozo da liberdade e da segurança jurídica, uma das principais preocupações dos adeptos da corrente iluminista era dispor de um código ou uma sistematização das condutas que realmente demandavam uma reação estatal para proteção da sociedade e que devem estar previamente estipuladas. Nesse efervescente cenário, a publicação da obra “Dos delitos e das penas”, de Cesare Beccaria, para grande parte da doutrina, marcou o surgimento da Escola Clássica das Ciências Penais, uma vez que fora o primeiro trabalho a tratar especificamente do fenômeno punitivo, sob a ótica iluminista. 2. Escola Clássica Na realidade, não podemos falar que a Escola Clássica teve um posicionamento único ou que apresenta características uniformes, pois sua denominação e sistematização surgiu por Enrico Ferri, um dos principais expoentes da Escola Positiva, em uma tentativa de abranger todas as ideias penais desde Beccaria até o advento das primeiras concepções de sua corrente de pensamento. Dessa forma, alguns posicionamentos antagônicos gerados em período anterior à Escola Positiva foram incluídos como do mesmo sistema, embora possam ser constatadas diferenças quanto a finalidade do Direito Penal e as funções da pena. Entretanto, a sistematização não se baseou somente no critério temporal, como também levou em consideração alguns aspectos que foram profundamente explorados pelos estudiosos da ciência penal de parte do século XVIII e XIX. Podemos dividir em duas categorias: 1. Orientação político-social: como a Escola Clássica intentava criar um sistema divergente da justiça penal medieval e arbitrária, seus adeptos estabeleceram os fundamentos e os limites do poder punitivo estatal, assim como se opuseram às penas cruéis e infamantes e criaram um sistema de garantias para o acusado, com objetivo de evitar julgamentos injustos. 2. Orientação filosófico-jurídica: percebe-se que os partidários da Escola Clássica adotaram o método racionalista, estudando o Direito Penal com o método lógico- abstrato3; o fundamento da responsabilidade penal está baseado no livre arbítrio (vontade livre e consciente de que se optou pela prática de determinada conduta, sem influência de fatores biológicos, sociais, étnicos etc.) e na imputabilidade moral do homem; o delito como ente jurídico e não de fato, isto é, o crime não é uma ação, mas uma infração e; por fim, a pena é vista como retribuição, como um ato de reprovação ao injusto cometido. Os principais expoentes da Escola Clássica foram Cesare Beccaria, Francesco Carrara, Giandomenico Romagnosi e Anselm V. Feuerbach. Nos próximos tópicos, vamos explorar suas principaisideias. 2.1 Etapa Inicial de Cesare Beccaria Conforme apontado anteriormente, a obra “Dos Delitos e das Penas”, de Cesare Beccaria, publicado durante o século XVIII foi o primeiro trabalho a explorar o sistema punitivo vigente sob a perspectiva das ideias iluministas. Nesse sentido, Luiz Flávio Gomes expõe: Beccaria, que foi o máximo catalisador de todas essas ideias filosóficas e políticas do Iluminismo, bastante progressistas para a época (...), estruturou seus pensamentos em várias construções filosóficas, destacando-se: (a) a racionalista de Descartes, depois aprofundada por Montesquieu (que estudou Filosofia, a política e o direito sob o império da razão e da moderação); (b) a iusnaturalista de Pufendorf e John Locke (sobrevalorização do direito natural, que fixa limites ao Estado); (c) a utilitarista (defendida por Francis Hutchenson – 1694 -1746 – e seguida por Bentham, da máxima felicidade repartida entre o maior número possível de pessoas); e (d) a contratualista de Rousseau, Hobbes e John Locke (as leis e o próprio poder do Estado são frutos de pactos da sociedade)4. Sem dúvida, as ideias propostas representaram a maior crítica ao sistema criminal da época, em notória reprovação a irracionalidade selvagem existente e marcaram o início de um Direito Penal de cunho liberal, com ênfase na proteção do indivíduo frente ao aparato sancionador do Estado. Com efeito, o horror dos castigos infligidos pelo Antigo Regime, com base em superstições e aplicados com propósito de gerar sofrimento e humilhação exigiam urgente humanização, sob risco de completa perda de legitimidade. Nesse aspecto, indiscutível a importância do livro de Beccaria, como um divisor de águas do Direito Penal, representando o início da limitação do direito de punir do Estado e exigindo racionalidade para manuseio desse perigoso e danoso aparato sancionador. Publicada (inicialmente de forma anônima) em 1764, “Dos Delitos e das Penas” é, sobretudo, uma obra política, pois não contém caracteres propriamente jurídicos ou científicos. De índole contratualista, a concepção de Beccaria considera a outorga do direito de punir decorria do pacto social e era uma exigência para controlar o espírito despótico de cada indivíduo, em nome da coletividade. Igualmente, a sanção imposta não poderia ser mais rigorosa do que o necessário para restabelecimento da ordem social, figurando como abusiva e ilegítima qualquer manifestação de poder punitivo além do imprescindível5. Embora boa parte da doutrina considere Beccaria como precursor da Escola Clássica, a maior parte dos autores deste segmento são jusnaturalistas, isto é, acreditam em uma ordem imposta desde o começo da humanidade, sendo o pacto social apenas ratificador dos direitos naturais do homem, mas não uma exigência para a segurança de todos. Como Beccaria seguia teorias contratualistas, esse diferente ponto de partida poderia significar sua exclusão dessa Escola. Vale ressaltar que Beccaria condenava a tortura (por não enxergar sua utilidade), mas era a favor de penas corporais, assim como da pena de escravidão (com nítida importância para o sistema capitalista burguês emergente). Todavia, o ponto característico essencial da Escola Clássica (a existência do livre arbítrio, com a capacidade do homem ser racional e optar pela prática do bem e do mal) também permanece obscura e questionável no livro “Dos Delitos e das Penas”, pois Beccaria apresenta características deterministas (homem guiado naturalmente para a prática de crimes como método de satisfação de suas paixões), quando sugere a existência de uma classe perigosa, formada por homens escravos, mais cruéis que os homens livres6. Assim, o método racionalista e a de humanização, fundamental para a Escola Clássica, não ficam claros em Beccaria, permanecendo, todavia, o espírito liberal e individualista, percebido em todos os adeptos da Escola Clássica, independente de sua inclinação para o contratualismo ou jusnaturalismo. 2.2 A Escola Clássica Italiana de Carrara e Romagnosi A corrente clássica italiana teve muitos penalistas de renome, como Romagnosi, Carmignani, Rossi e Pessina, mas Francesco Carrara fora seu maior representante. Discípulo direto de Carmignani, o mérito de Carrara pode ser percebido em sua obra “Programma di Diritto Criminale”, cuja sistematização fora direcionada para seus alunos e tinha como objetivo apenas tratar dos principais aspectos da ciência penal, mas terminou por explorá-la completamente. Assim como seu mestre, Carrara refutava a teoria contratualista, sendo partidário do jusnaturalismo, pois compreendia que Rousseau estaria equivocado ao pensar em um primeiro estágio selvagem e posterior organização por meio de um contrato social, pois a associação civil é natural ao ser humano desde sua criação7. Segundo sua concepção, para fundamentar a criação de uma autoridade central para regulamentar, fiscalizar e punir determinadas condutas consideradas lesivas, Carrara sugere que a lei natural [...] teria sido, pois, impotente para manter a ordem no mundo moral, porque mais fraca do que a lei eterna reguladora do mundo físico. Essa é sempre obedecida; aquela, com demasiada frequência, conculcada e negligenciada8. Por essa razão, para organização da sociedade civil e para a defesa da humanidade, surge o Direito Penal, incumbido da imposição das sanções necessárias para harmonia social. No tocante a conduta criminosa, Carrara considera o crime como um ente jurídico, isto é, se trata de uma violação de um direito. Em outros termos, a infração penal surge no âmbito da sociedade e somente é proibida e castigada por representar perturbação da ordem social, sendo que a pena figura como um meio para restabelecimento do status quo. Logo, a pena assume função de meio de tutela jurídica e retribuição da culpa moral9. Por sua vez, o livre arbítrio desenvolve importante papel em sua teoria, pois Carrara entende que [...] o direito não pode ser atingido, a não ser por atos exteriores precedentes de uma vontade livre e inteligente, esse primeiro conceito vinha determinar a constante necessidade, em cada delito, das suas duas forças essenciais: vontade inteligente e livre; fato exterior lesivo do direito, ou a ele ameaçador10. Assim, apenas uma conduta (portanto, ato exteriorizado e não interno ao sujeito), cuja vontade esteja liberta de qualquer imposição física ou moral pode infligir algum dano ao direito. Portanto, pode ser constatado que Carrara dividia o delito em elementos subjetivo (imputabilidade penal – vontade livre e consciente) e elemento objetivo (ato exteriorizado que viola o direito). Essa delimitação de elementos é considerada por Bitencourt, como um início da construção dogmática da Teoria Geral do Delito, “com grande destaque para a vontade culpável. A pena era, para os clássicos, uma medida repressiva, aflitiva e pessoal, que se aplicava ao autor de um fato delituoso que tivesse agido com capacidade de querer e de entender”11. Igualmente jusnaturalista e utilitarista, a concepção de Romagnosi compartilhava de diversos pontos da teoria de seu discípulo. Para Romagnosi, o Direito Penal constitui um direito de defesa da sociedade12, sendo que a pena desempenhava a função de contraestímulo ao impulso criminoso que colocou em risco a ordem social. Apesar do crime ser um requisito essencial para a aplicação da pena, de forma que sua razão de existir reside no passado, sua imposição visa o futuro, pois intenta dissuadir outros indivíduos de cometerem as mesmas infrações, uma vez que a impunidade poderia levar a uma epidemia de crimes13. 2.3 A Escola clássica alemã de Feuerbach Anselm V. Feuerbach é considerado como o precursor do Direito Penal alemão e, assim como seus colegas italianos da Escola clássica, concebe sua teoria baseada nos ideais iluministas, pautadas peloracionalismo, pela limitação do direito de punir e pelo utilitarismo da sanção penal. Sua maior contribuição para as ciências penais foi conferir a função preventiva negativa a pena, ou seja, a sanção previamente fixada servia como um mecanismo intimidador, isto é, como uma forma de coação psicológica que afastava todos os indivíduos da prática de delitos14. Se algum indivíduo optasse por praticar a conduta proibida por lei, a aplicação da sanção seria obrigatória, como meio demonstrativo da eficácia da ameaça. Tendo como ponto de partida essa função da pena, Feuerbach estabelece como imprescindível o Princípio da Legalidade (uma vez que as condutas consideradas como proibidas deveriam constar em lei anterior a sua prática) e, ainda, dispõe a exigência do livre-arbítrio, pois incumbiria ao cidadão, de forma livre e inteligente, desconsiderar a ameaça do castigo penal e cometer determinado crime. 3. Escola Positiva Apesar de a Escola Clássica ter apresentado muitos avanços, se comparada com o sistema punitivo do Antigo Regime, o descrédito sofrido pelas doutrinas espiritualistas e metafísicas (essenciais para a fundamentação de seus paradigmas), sua demasiada atenção ao individualismo abstrato e a ineficácia para diminuição da criminalidade tornaram dificultosa sua sustentação no ambiente intelectual da segunda metade do século XIX, cujo período fora marcado pelo crescimento dos estudos científicos do pensamento positivista. O surgimento da Escola Positiva ocorre em contexto de intenso desenvolvimento das ciências sociais (Antropologia, Psicologia, Sociologia etc.), de modo que a metodologia empregada nestas áreas do conhecimento fora aplicada também no Direito e, especialmente, no Direito Penal. Entretanto, se as ciências sociais e naturais permitiam a utilização do método indutivo- experimental, a instabilidade do cenário da atividade jurídica tornava inaplicável qualquer espécie de estudo com base na observação e investigação. Por esse motivo, os positivistas não concebiam a atividade jurídica como ciência (algo inaceitável e que reduzia a relevância do Direito), de modo que a consideração jurídica do delito deveria ser substituída por uma sociologia ou antropologia do delinquente, chegando ao nascimento da Criminologia15. Desde esse momento, constata-se que o foco de proteção do Direito Penal incide somente ao corpo social, enquanto o delinquente se torna objeto de estudo e sujeito a ser combatido por sua inerente inclinação a prática de delitos. Basicamente, para a Escola Positiva, a sanção penal é uma reação natural do corpo social contra as atividades anormais de seus membros. Ao contrário dos classicistas, o delito não é um ente jurídico, mas um fato natural e que surge devido a fatores antropológicos, físicos e sociais. Em outros termos, o livre-arbítrio da Escola Clássica era irrelevante, pois alguns indivíduos sempre estariam predispostos a cometer crimes (independentemente de sua vontade livre e consciente) e, igualmente, era desnecessário fundamentar o direito de punir e a responsabilidade penal em conceitos morais, pois o crime e o criminoso são patologias sociais e que devem ser enfrentados, uma vez que a sociedade está legitimada a se defender contra aqueles indivíduos que estão fatalmente determinados a colocar a segurança em risco. Por fim, com a ampla difusão do pensamento positivista, a possibilidade de aplicação dos métodos de observação ao estudo do homem, os novos estudos estatísticos realizados pelas ciências sociais, que possibilitavam a comprovação de certa regularidade e uniformidade nos fenômenos sociais (inclusive da criminalidade) e o crescimento de novas ideologias políticas que exigiam uma postura mais ativa do Estado na prestação de direitos sociais, mas que também consideravam a proteção penal aos direitos individuais muito complacentes, terminando por afetar o gozo dos direitos coletivos, os posicionamentos da Escola Clássica foram gradualmente rechaçados e substituídos pela Escola Positiva. Geralmente, a doutrina considera que a Escola Positiva apresentou três fases distintas, tendo cada uma seu expoente: Fase antropológica de Cesare Lombroso; Fase sociológica de Enrico Ferri e Fase jurídica de Rafael Garofalo. 3.1 A Corrente Lombrosiana do “Homem Delinquente” Cesare Lombroso era médico e, por conta de forte influência dos estudos de Auguste Comte e Charles Darwin, buscou elencar as categorias de criminosos com base em determinadas características, cujas anomalias constituiriam um tipo antropológico específico, pois entendia que haviam delinquentes natos. Seu conceito de criminoso nato, com base no estudo antropológico do criminoso e publicado na obra “O homem delinquente”, em tentativa de desvendar a origem causal do comportamento antissocial, representou a mais distinta característica da Escola Positiva, pois ela indica que existe uma predisposição natural de alguns indivíduos para a prática de delitos, sendo que o homem delinquente possui esses “sintomas” que tornam dificultoso seu ajustamento ao código de ética e à conduta social, podendo favorecer a manifestação do fenômeno criminoso, de acordo com seu contexto social. Seu método de estudo, compartilhado pelos positivistas de sua geração, era baseado em um minucioso levantamento de todos os dados biológicos e psicológicos dos criminosos, de forma que poderia avaliar quais circunstâncias aparecem na maioria e, assim, determinar a influência dessa condição para inclinação delituosa. Lombroso apresentou uma classificação de criminosos: (I) natos; (II) loucos; (III) por paixão; (IV) de ocasião e; (V) epilético. Conforme enfatizado por Bitencourt, [...] o criminoso nato de Lombroso seria reconhecido por uma série de estigmas físicos: assimetria do rosto, dentição anormal, orelhas grandes, olhos defeituosos, características sexuais invertidas, tatuagens, irregularidades nos dedos e nos mamilos etc.16 A título de exemplo, Lombroso tecia as seguintes considerações sobre estupradores: Muitos estupradores tem lábios grossos, cabelos abundantes e negros, olhos brilhantes, voz rouca, alento vivaz, frequentemente semi-impotentes e semi- alienados, de genitália atrofiada ou hipertrofiada, crânio anômalo, dotados de muitas vezes de cretinice e raquitismo17. Por sua vez, os loucos eram irresponsáveis, diante de sua inimputabilidade. Os criminosos por paixão são dementes emocionais, frios e dissimulados, mas desprovidos de senso moral. Os de ocasião possuem as condições para manifestação do fenômeno criminoso, entretanto não estarão sempre em estado de degenerescência. Os epiléticos não possuem controle sobre suas emoções e poderiam manifestar descontrole de ânimos. Apesar das teses de Lombroso conterem muitas falhas e nunca terem sido efetivamente comprovadas, elas tiveram o mérito de criar a Antropologia Criminal e trouxe para as ciências penais a observação do delinquente por meio do estudo indutivo-experimental. 3.2 Sociologia Criminal de Ferri Enrico Ferri foi um dos maiores expoentes da Escola Positiva e fundador da Sociologia Criminal, de forma que seu ponto de partida continha caracteres da tese de Lombroso, mas expandia a explicação do fenômeno criminoso para três causas: fatores antropológicos, físicos e sociais. Além de criticar profundamente os paradigmas da Escola Clássica, rechaça absolutamente a existência de livre-arbítrio, pois a pena não era aplicada pela capacidade de autodeterminação de cada indivíduo, mas pelo fato de ser membro da sociedade. Em outros termos, por acolher a teoria determinista, o criminoso é restrito a obedecer aos comandos de seus prazeres, sendo que é influenciado pelas circunstâncias do ambiente a sua volta a cometer delitos a fim de satisfazê-los. Se acolhido o livre arbítrio, o delinquente poderia ser uma pessoa normal, pois qualquer condutacriminosa seria fruto de uma vontade incondicionada. Dessa forma, os delinquentes são pessoas anormais e sem livre-arbítrio, pois o homem normal é aquele adaptado a vida social, que não reage com ações criminosas ao receber estímulos externos. Ferri reconhecia que a ideia criminosa poderia surgir para qualquer homem, entretanto no indivíduo atávico, com condições degeneradas e patológicas, essa ideia se enraíza e se intensifica até exteriorizar-se, enquanto no homem normal essa ideia se dissiparia. Logo, a própria função da pena fica prejudicada, pois a finalidade preventiva por meio da ameaça da sanção não surte efeitos para um indivíduo predisposto a cometer um delito. Essa perspectiva de coação através do poder punitivo somente teria efetividade para o homem normal. Por esse motivo, aquele que não pode avaliar a ameaça da sanção penal não pode ser sujeito a ela, em caso de transgressão, afinal não poderia ter agido de forma diversa. Assim, essa pessoa anormal será submetida à medida de segurança, caso seja perigosa. Constata-se que o foco de Ferri e dos adeptos da Escola Positiva não recai sobre o crime, mas sobre o delinquente. Curiosamente, ao contrário da maioria dos adeptos da Escola Positiva, cuja vertente opinava pela supremacia da defesa social, Ferri entendia que a maioria dos delinquentes era readaptável, sendo que apenas os habituais eram irrecuperáveis e, ainda sim, uma minoria. Um dos maiores méritos de Ferri fora a criação da Sociologia Criminal como ciência geral sobre a criminalidade. A sociologia criminal era dividida em ramo biossociológico e um ramo jurídico. Enquanto o primeiro estudava antropologia criminal, as causas individuais do crime e com a estatística criminal, as causas do ambiente físico e social e, com os resultados desses estudos, categorizaria os delinquentes e indicaria os melhores remédios preventivos e repressivos para o legislador adotar para a defesa social contra a criminalidade. Por sua vez, o ramo jurídico estudava a organização jurídica de prevenção direta (polícia e órgãos investidos da persecução criminal) e a organização jurídica repressiva (crime, pena, juízo e execução). Ferri se empenhou pela independência da Sociologia criminal no contexto de apreciação dogmática do delito, embora estivessem interligadas18. 3.3 O Estudo da Criminologia Surgida em Garofalo Rafael Garofalo foi um jurista da primeira fase da Escola Positiva e sua obra fundamental foi Criminologia (1885), na qual sistematiza as teorias da Antropologia e Sociologia criminal. Garofalo acreditava que o delito é um fenômeno natural, de forma que o conceito de crime era obtido por forma sociológica e não jurídica, isto é, a palavra delito é uma construção popular e não dada inicialmente pelo plano jurídico. Entretanto, pelo seu ponto de vista, o delito natural era uma ofensa ao senso moral formado pelos sentimentos altruístas de piedade e de probidade, sobretudo nas partes que mais sofreriam com a violação deste patrimônio indispensável de todos os indivíduos da sociedade. Lombroso e Ferri consideram o delinquente como um anormal social, um indivíduo cujo desajuste o torna incompatível com a vida social19. Entretanto, as repercussões para Garofalo eram diferentes, pois, em sua concepção, influenciada por Charles Darwin, a reação do corpo social ao desajustado era sua expulsão. Por não se adaptar ao ambiente, a seleção natural biológica seria operada na sociedade com a eliminação do indivíduo desajustado por meio da pena de morte. 4. A “Terza Scuola” Italiana Com a “terza scuola” italiana se inicia uma nova etapa nas escolas penais. Enquanto as Escolas Clássica e Positiva continham características antagônicas e incompatíveis entre si, algumas escolas penais posteriores adotaram parte das teses de ambas e buscaram atingir um meio termo, conciliando os postulados das escolas pioneiras. Inicialmente, a corrente eclética da “terza scuola” italiana (também conhecida como escola crítica, naturalismo crítico ou positivismo crítico), teve como seus principais expoentes Manuel Carnevale, João Impallomeni e Bernardino Alimena. Por sua índole intermediária, adotavam algumas posições da Escola clássica, mas reconheciam os avanços da positiva. Como acolhiam o princípio da responsabilidade moral, consequentemente, separavam os imputáveis dos inimputáveis, mas rechaçavam o livre- arbítrio, substituindo-o pelo determinismo psicológico20. Em outros termos, os adeptos dessa escola não aceitavam a teoria do delinquente nato e sua anormalidade social, mas afastavam do livre-arbítrio clássico, pois a imputabilidade surge da capacidade de dirigibilidade do sujeito para a prática da conduta criminosa e também da sua capacidade de sentir a intimidação proveniente da proibição da lei. Em suma, enquanto se aproximam da Escola clássica ao separar os imputáveis dos inimputáveis, fica mais próxima da Escola Positiva por não aceitar o livre-arbítrio. 5. A Escola Moderna Alemã de Liszt Franz Von Liszt, um dos maiores penalistas de todos os tempos, fora discípulo de grandes mestres, como Adolph Merkel e Rudolph Von Ihering, sendo que os ensinamentos deste último podem ser percebidos na construção teórica de Liszt, especialmente quanto à finalidade do Direito. A Escola moderna alemã (também conhecida como Terceira Escola Alemã ou Escola Sociológica Alemã) teve como seus principais expoentes Liszt, o belga Adolph Prins e o holandês Von Hammel e os três formaram a União Internacional de Direito Penal (hoje conhecida como Associação Internacional de Direito Penal). Os adeptos da Escola moderna alemã enxergavam o Direito Penal como uma estrutura complexa e que continha múltiplas áreas, especialmente criminológicas, como a Política Criminal. Apesar de explicitar a importância da Política Criminal, esta era independente e separada do Direito Penal, embora estivesse destinada a analisar o delinquente e verificar se a sanção cominada tinha potencial para cumprir sua função. Devido sua capacidade de sistematização, o “Programa de Marburgo” de Liszt ofereceu novo suporte dogmático para o Direito Penal, pois retira de seu âmbito a análise do delinquente (maior enfoque da Escola Positiva), deixando essa tarefa para a Política Criminal apenas. Para Liszt, a função do Direito Penal é a tutela de determinados interesses humanos, que são denominados como bens jurídicos, após sua consideração jurídica. Por sua vez, a sanção penal opera dupla finalidade, direcionada para grupos de indivíduos diferentes: para os que respeitam as leis, a proibição de violação de algum interesse humano demonstra que o Estado possui os mesmos parâmetros e para os criminosos, a pena imposta é um desestímulo para a prática de delitos21. Segundo sua concepção, a função da pena para a coletividade teria uma função preventiva geral, freando as tendências criminosas e, ao mesmo tempo, demonstra para os ofendidos que os atentados contra seus interesses não passará despercebido e sem punição. Para os delinquentes, visa converte-lo em um membro útil para a sociedade (adaptação artificial), intimidando o aparecimento de manifestações criminosas e modificando seu caráter22. Assim, a utilização consciente da pena como principal arma da ordem jurídica na luta contra a criminalidade demanda um estudo científico sobre como surge a manifestação exterior material do delito e as causas internas do delinquente. Essa área incumbe unicamente à Criminologia, mas não ao Direito Penal. Como intimidação decorrente da sanção e a imposição da pena demanda capacidade de discernimento, pois busca recuperar o delinquente, Liszt não se afasta completamente do livre-arbítrio clássico, de modo que faz a separação entre imputáveis e inimputáveis. Mas, Liszt compreendia que não se poderia falar em livre-arbítrio, mas sim em uma normalidade de determinação que deveria conduziro indivíduo. Em outras palavras, a imputabilidade penal existiria em qualquer ser humano mentalmente desenvolvido e são, podendo ser responsabilizado pela prática de seus atos. Necessariamente, o indivíduo deve conseguir sentir os efeitos da pena23, de modo que aqueles que não conseguem, são inimputáveis e, se perigosos, demandam medida de segurança. Segundo Bitencourt, as principais características da Escola Moderna alemã foram: 1. Adoção do método lógico-abstrato (da Escola Clássica) e indutivo-experimental (da Escola Positiva e destinado para as demais ciências penais, como a Criminologia e a Política Criminal). 2. Distinção entre imputáveis e inimputáveis. 3. O crime é concebido como fenômeno humano-social e fato jurídico; d) função finalística da pena, advinda da presença do caráter retributivo, mas priorizando a finalidade preventiva (especialmente a prevenção especial, com objetivo de “consertar” o delinquente e evitar a reincidência). 4. Eliminação ou substituição das penas privativas de liberdade de curta duração24. No tocante a este último ponto, Liszt considerava que a pena somente é justa quando for necessária para manutenção da ordem jurídica25, de forma que não existe motivo razoável para que a punição seja abusiva, sob risco de perder sua legitimidade. 6. Escola Técnico-Jurídica de Rocco A Escola Positiva utiliza o método indutivo-experimental, com base nas ciências naturais, que decorria da observação e constatação da realidade dos fenômenos. Para tanto, não poderiam permitir que o ramo do Direito fosse uma construção humana abstrata, pois isto tornaria impossível seu estudo, de modo que importaram outras searas do conhecimento humano e abrigaram no Direito. Igualmente, com objetivo de atingir seu fim, os positivistas focaram a ótica do Direito Penal na figura do delinquente. Todavia, em dado momento, o Direito Penal se confundia com a Criminologia e a Política Criminal, havendo excessiva mistura entre aspectos antropológicos e sociológicos, sem preocupação com o essencial: o jurídico. Contra esse afastamento do plano jurídico, a Escola técnico-jurídica de Arturo Rocco busca resgatar o verdadeiro objeto do Direito Penal, isto é, o crime como fenômeno jurídico26. Por essa objeção a intromissão de outras ciências no ramo da ciência criminal, a maior característica dessa Escola é a negação da investigação filosófica no campo do Direito Penal. Como o Direito é uma ciência normativa, Rocco defende que seu método de estudo adequado será o lógico-abstrato, diverso das ciências causais- explicativas ou políticas. Para os adeptos da Escola técnico-jurídica, o objeto da ciência penal é apenas o ordenamento jurídico positivo, isto é, a mera legislação criminal vigente, sendo que o método de criação será composto por três partes: exegese, dogmática e crítica. A ciência penal estuda a disciplina jurídica do fato humano e social chamado delito e do fato social e político chamado pena, ou seja, trata do “estudo das normas jurídicas que proíbem as ações humanas imputáveis, injustas e nocivas, indiretamente geradoras e reveladoras de um perigo para a existência da sociedade juridicamente organizada”27. Por negar o caráter empírico (vista na Escola Positiva), a função deste método é a elaboração técnico-jurídica do Direito Penal positivo e vigente no seu conhecimento científico. De tal maneira, a elaboração do sistema penal tem caráter jurídico, regido pela lógica deôntica (dever ser), distinto de outras ciências causal-explicativas, pertencentes ao mundo ôntico (ser)28. Em outras palavras, a criação do ordenamento jurídico penal formula como será a persecução criminal desejada para manutenção da ordem social e não pela realidade sensível. Os principais caracteres dessa Escola são: a) o delito é pura relação jurídica, de conteúdo individual e social; b) a pena é uma reação e consequência do delito praticado, com função preventiva geral (intimidativa) e especial (centradas no delinquente e voltadas a coibir a reincidência) para os imputáveis; c) medida de segurança aplicada aos inimputáveis; d) responsabilidade moral (vontade livre); e) método técnico-jurídico e; e) negação da intromissão da Filosofia no campo penal29. Os principais defensores da Escola técnico-jurídica, além de Rocco, foram Manzini, Massari, Bettiol, Maggiore, Conti, Delitala, Vannini, Petrocelli e Battaglini30. 7. A Escola Correcionalista Influenciado pelas ideias de Karl Krause (adepto do idealismo romântico alemão da primeira metade do século XIX e que estava baseada na piedade e no altruísmo) que em monografia de 1839, intitulada “Comentatio na poena malum esse debeat”, lançou as primeiras linhas da Escola Correcionalista, em que defende a aplicação da sanção penal como método de correção moral do delinquente. Entretanto, sua teoria correcional voltada para modelar a vontade do criminoso não recebeu grande repercussão em solo alemão, tendo recebido acolhida entre doutrinadores espanhóis, em destaque Giner de los Rios, Rafael Salillas, Concepción Arenal e Pedro Dorado Montero, sendo este último seu principal expoente. Para a Escola Correcionalista, a finalidade única da pena é o tratamento do delinquente, visto como um indivíduo doente, portador de uma patologia que o inclina a prática de condutas contrárias à ordem social vigente. Pode ser percebido que essa escola tivera influência dos positivistas, enquanto considera o criminoso como um indivíduo predisposto para cometer delitos, mas se distancia das teorias de Lombroso e Garofalo por não acreditar na ideia de um criminoso nato e irrecuperável. Como a distinção desta teoria correcionalista reside na cura do criminoso, subvertendo sua vontade aos comandos aceitáveis do ordenamento jurídico e da ética moral e social, a pena não era encarada como uma obrigação decorrente da prática de um crime, mas um direito a ser exigido pelo delinquente. Em outros termos, a sanção penal era um bem para o criminoso, pois sua anomalia que o torna incapaz de viver em sociedade seria expurgada. Por esse motivo, como o delinquente era portador de uma doença e a pena era o único remédio cabível para sua cura e reinserção na coletividade, o juiz funcionava como médico social, encarregado da higienização do sistema31. Dessa maneira, devido ao perigo social representado pelo delinquente, não se questionava a imputabilidade ou inimputabilidade do indivíduo, uma vez que era indiferente. Consequentemente, o livre-arbítrio tinha pouca relevância. Por decorrência da concepção de que a pena era um direito do delinquente, eram desnecessárias garantias penais e processuais penais. Igualmente, pela investidura de médico social, o juiz detinha amplos poderes para individualizar a pena cabível para os propósitos correcionalistas. Vale ressaltar, devido a “patologia de desvio social” sofrida pelo delinquente e como a pena buscava sua cura, a sanção tinha tempo indeterminado, com duração até que fosse completada a conversão do criminoso. 8. A Nova Defesa Social de Marc Ancel e Fillipo Gramatica Embora seus primeiros caracteres apareçam na filosofia grega, no direito medieval e, posteriormente, na revolução da Escola Positiva, a defesa social ressurge no século XX em Adolphe Prins, que faz sua primeira sistematização. Entretanto, a nova Defesa Social nasce com Fillipo Gramatica em 1945, quando este funda o Centro Internacional de Estudos de Defesa Social, com objetivo de renovar os meios disponíveis para combate da criminalidade. Gramatica advogava pela abolição do Direito Penal e sua substituição por um Direito de Defesa Social, voltado para adaptar o indivíduo à ordem social e não à sanção de seus atos32. Para tanto, a extinção do Direito Penal demanda mudanças nas concepções de crime, responsabilidade e pena. Basicamente, a responsabilidade penal pela antissociabilidade, baseadanas características subjetivas do criminoso; o crime seria considerado como fato, pelo índice de antissociabilidade e; por fim, a pena seria alterada por medidas sociais. O extremismo de Gramatica angariou seguidores, mas também culminou com a objeção parcial de Marc Ancel, o qual distinguia a Defesa social em dois períodos: a) Antigo: voltado para a proteção da sociedade por meio do combate à criminalidade e; b) Moderno: a defesa social funciona como uma reação contra as antigas Escolas que entendiam a pena como singela retribuição do delito e passa a entender que o crime com base nas ciências sociais e na criminologia. Ancel ainda defende uma política criminal humanista quanto ao delinquente, definida como uma “proteção social contra o crime”, isto é, as alternativas para prevenção e repressão do delito também seriam incumbência de outras searas além do Direito Penal, especialmente com adoção de métodos extrapenais para a ressocialização do criminoso. Há, portanto, interesse na luta contra a criminalidade, com adoção de instrumentos preventivos (pré- delito) e de ressocialização (pós-delito) de diferentes áreas do conhecimento humano. A utilização destes meios tem escopo de proteger toda sociedade e evitar que outros indivíduos da coletividade cometam crimes. Sobretudo, as marcas maiores desta Escola foram sua constante crítica ao sistema vigente; o uso de todas as ciências humanas para estudo pluridisciplinar do fenômeno criminoso e; a proteção da dignidade da pessoa humana e afastamento do sistema puramente punitivo- repressivo clássico. Em suma, conforme expõe Prado, seus caracteres nucleares são o antidogmatismo, a mobilidade, o dinamismo e a universalidade33. TEMA 02 Princípios Constitucionais Penais Aula 02 | Princípios Constitucionais Penais Princípios Constitucionais Penais Objetivos Nesta aula, você terá acesso aos detalhes relacionados ao princípio da legalidade, o princípio da humanidade, o princípio da culpabilidade, da lesividade/ofensividade, da intervenção mínima/fragmentariedade e por fim do tão debatido princípio da proporcionalidade. Com a leitura deste, você saberá os pontos relacionados aos princípios informadores do Direito Penal em harmonia com a Constituição Federal de 1988. 1. Princípio da Legalidade A proteção dos direitos, liberdades e garantias no Estado de Direito se dá, em alguma medida, não apenas por meio do direito penal, mas também perante o direito penal. O direito penal, ao longo da história, deu inúmeras amostras da necessidade de estabelecimento de limites estritos à intervenção estatal. Fundamentalmente em razão do perigo, sempre à espreita, de a intervenção penal tornar-se, na ausência de limites claros, arbitrária ou excessiva. A fórmula encontrada para evitar o arbítrio e os excessos consistiu em submeter a intervenção penal a um rigoroso princípio da legalidade, traduzido pelo axioma latino “nullum crimen nulla poena sine lege”, segundo o qual “não pode haver crime, nem pena que não resultem de uma lei prévia, escrita, estrita e certa”1. O princípio da legalidade exprime o avanço de um importante estágio civilizacional. Se de um lado é uma forma de insurgência contra os abusos perpetrados durante o absolutismo, de outro, corresponde a uma afirmação de nova ordem, na qual o poder estatal via limitado o seu poder de intervenção penal e, ao mesmo tempo, obrigava o ente estatal a garantir a segurança do indivíduo contra o seu próprio poderio. O princípio da legalidade “constitui a chave mestra de qualquer sistema penal que se pretenda racional e justo.”2 Encontrando já alguma expressão na Magna Charta Libertatum de João Sem Terra (1215) e também no Bill of Rights (1689), o princípio da legalidade teve a sua verdadeira consagração, em tempos modernos, na Constituição dos Estados da Virgínia e de Maryland em 1776, encontrando a sua expressão definitiva na Déclaration des droits de l’homme et du citoyen francesa de 1787, sendo então replicado para inúmeros instrumentos internacionais de proteção dos direitos humanos (Declaração Universal dos Direitos do Homem, Convenção Europeia de Direitos Humanos, Convenção Americana de Direitos Humanos, Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos, inúmeras Constituições de países democráticos etc).3 O princípio da legalidade, para além de assegurar a possibilidade do prévio conhecimento dos crimes e das penas, “garante que o cidadão não será submetido a coerção penal distinta daquela predisposta na lei”.4 Na Constituição da República, o princípio da legalidade está explicitamente previsto entre os direitos e garantias fundamentais - “art. 5º, inciso XXXIX - Não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal”. No Código Penal, vem encampado já no art. 1º. Ao princípio da legalidade são atribuídas quatro funções, conforme serão explicitadas. 1.1 Proibição da Retroatividade da Lei Penal “in malem partem”(“nullum crimen nulla poena sine lege praevia”) A proibição da retroatividade penal afirma que tudo o que se refira ao crime e à pena não retroagirá in malem partem, isto é, em desfavor do agente. Pode suceder que ao tempo do fato a conduta não era prevista como crime, tendo ocorrido a sua tipificação em seguida. Pode suceder que após a prática do fato lei nova torne a pena mais gravosa, seja na modalidade da pena (prisão versus multa) ou quantitativamente (tempo de pena maior). Nesses casos não será possível a retroatividade legal. De outro lado, a lei penal retroagirá sempre que beneficiar o agente (lex mellior), podendo ocorrer seja pela revogação da norma incriminadora (abolitio criminis), seja por qualquer outro modo, ainda que na existência de sentença condenatória transitada em julgado (art. 2º, CP).5 Constituem exceção à retroatividade da lei mais favorável (lex mellior) as chamadas leis excepcionais e leis temporárias (art. 3º, CP). A razão que justifica a não aplicação da lei mais favorável a esses casos é a de que a modificação legal operou-se em função não de uma alteração de concepção legislativa, mas unicamente em decorrência de circunstâncias fáticas que serviram de base à lei. Não existiriam, nesse sentido, expectativas merecedoras de tutela, ao passo que razões de prevenção geral positiva sustentariam essas exceções6. Afirma-se que o Tribunal de Nuremberg teria violado o princípio da legalidade, a rigor no que tange à irretroatividade da lei penal. No Brasil, Nilo Batista refere que o caso mais escandaloso teria sido a imposição, por decreto, da pena de banimento aos presos cuja liberdade era reclamada como resgate de diplomatas sequestrados por organizações políticas clandestinas, fato ocorrido no período dos governos militares.7 Cristalino, nesse rumoroso caso, a imposição de penas sem lei prévia. Esfumaçara-se, nesse episódio, o princípio da legalidade. 1.2 Proibição de Criação de Crimes e Penas pelo Costume (“nullum crimen nulla poena sine lege scripta”) Somente a lei formal-escrita, isto é, editada em conformidade com o processo legislativo- constitucional do Estado, pode ter por objeto a tipificação de crimes e penas, o que por si exclui o costume8. Entretanto, o costume não está de todo abolido do direito penal. Continua tendo grande importância para a elucidação do conteúdo do ilícito- típico. Ademais, o direito consuetudinário, sempre que beneficie o cidadão, constitui verdadeira fonte do direito penal, operando como causa de exclusão da ilicitude (causa supralegal), de atenuação da pena ou da culpa9. 40 Entende-se que para o nascimento do direito consuetudinário são requisitos essenciais o reconhecimento geral e a vontade geral de que a norma costumeira atue como direito vigente, o que significa que a mera tolerância ou omissão das autoridades não são suficientes para o afastamento da ilicitude da conduta.101.3 Proibição da Analogia (“nullum crimen nulla poena sine lege stricta”) O conceito de analogia, no contexto jurídico-penal, pode ser apreendido como “a aplicação de uma regra jurídica a um caso concreto não regulado pela lei através de um argumento de semelhança substancial com os casos regulados”11. Explicado de outro modo, a analogia está presente sempre que é atribuído a um caso que não dispõe de regulamentação legal a regra prevista para um caso semelhante12. Por força do princípio da legalidade, no direito penal, é totalmente inaplicável a analogia a toda e qualquer norma que defina crimes ou agrave penas. Os regimes políticos totalitários normalmente utilizam a analogia para a perseguição de seus opositores políticos e dos indesejados. No nacional-socialismo, por exemplo, uma lei de 1935 alterou o § 2º do Código Penal de 1871, consignando que: “Será punido quem cometer um crime declarado punível pela lei, ou que mereça uma sanção segundo a ideia fundamental da lei penal e o são sentimento do povo”13. Do mesmo modo, a analogia foi largamente admitida no Código Penal soviético de 1922 (mantida no diploma de 1926), o qual dispunha no art. 6º que: Como delito deve ser considerada toda ação ou omissão socialmente perigosa, que ameaça os princípios básicos da Constituição soviética e a ordem jurídica criada pelo governo dos operários e camponeses, para o período de transição ao Estado comunista. Tal formulação foi substancialmente garantida no CP de 1926, sendo a periculosidade da conduta a fonte essencial para a incriminação. Os bens jurídicos protegidos continham conformação extremamente fluida, tais como o sistema jurídico, a ordem jurídica, o regime dos operários e camponeses etc14. Vale referir ainda o Código Penal dinamarquês de 1930, o qual estipulava, em seu art. 1º, que “ninguém pode ser punido com pena senão por atos cujo caráter criminoso esteja consignado em lei, ou que sejam inteiramente assimiláveis a tais atos”. O Estado chinês, mesmo após o código de 1979, manteve em seu diploma penal um conceito material de crime definido como [...] um ato que ofenda a soberania do estado, integridade do território, o regime da ditadura do proletariado, a revolução e a edificação socialistas, a ordem pública, os bens públicos, os bens coletivos das massas trabalhadoras e os bens pessoais dos cidadãos, os direitos individuais e democráticos dos cidadãos e ainda todo ato socialmente nocivo. Tal delineamento do conceito de crime deixa um campo fértil ao indiscriminado emprego da analogia15. Em termos de Brasil, é possível citar o Decreto-Lei nº 4.166, de 1942, o qual autorizou expressamente em seu art. 5º, § 3º, o uso da analogia: Art. 5° A ação ou omissão, dolosa ou culposa, de que resultar diminuição do patrimônio de súdito alemão, japonês ou italiano ou tendente a fraudar os objetivos desta lei, é punida com a pena de 1 a 5 anos de reclusão e multa de 1 a 10 contos de réis, se outra mais grave não couber. § 1º A redução, em contrário aos usos e costumes locais, do valor das prestações devidas a tais súditos, é considerada ação dolosa, para os fins deste artigo. § 2° Pelas pessoas jurídicas responderão solidariamente os seus administradores e gerentes. § 3° Para a caracterização do crime o juiz poderá recorrer à analogia. Outro exemplo que ilustra o recurso à analogia foi a punição do apoderamento ilícito de aeronaves (então fato atípico) a título de sequestro, pelos tribunais, durante a ditadura militar. Tema ainda controvertido, mas que vem obtendo reconhecimento nos tribunais é a questão da admissão de pessoas jurídicas na posição de sujeito passivo dos crimes de calúnia e difamação. Para Nilo Batista, a extensão do elemento do tipo “alguém” (caracterizador de pessoa humana) para as pessoas jurídicas representa o emprego de analogia16. 1.4 Proibição de Incriminações Vagas e Indeterminadas (“nullum crimen nulla poena sine lege certa”) O princípio da legalidade exige um determinado nível de clareza dos tipos penais, os quais não devem deixar margem para dúvidas e tampouco abusar no emprego de “normas muito gerais ou tipos incriminadores genéricos, vazios”.17 A norma penal deve ser inteligível por todos os cidadãos. O uso de conceitos vagos e indeterminados pode resultar em situações nefastas e perigosas. Não por acaso este foi um expediente largamente utilizado por estados totalitários e autoritários, conforme alguns exemplos supramencionados. No Brasil, as leis de segurança nacional constituem o exemplo mais expressivo do perigo representado pelas incriminações vagas e indeterminadas. Cita-se a lei nº 7.170/83, a qual previa no art. 15 o crime de “Praticar sabotagem contra instalações militares, meios de comunicações, meios e vias de transporte, estaleiros, portos, aeroportos, fábricas, usinas, barragem, depósitos e outras instalações congêneres”.18 O que é sabotagem e o que são instalações congêneres de depósitos, meios e vias de transporte são questionamentos que ficarão sem resposta e, por isso, configuram afronta ao princípio da legalidade. O § 2º do art. 15 citado foi ainda mais longe ao prever a punição dos atos preparatórios de sabotagem. O que seriam, afinal, os atos preparatórios do crime de sabotagem talvez somente os persecutores soubessem, o que é típico de tempos sombrios. As modalidades mais frequentes na violação do princípio da legalidade pela criação de tipos incriminadores vagos e indeterminados, segundo Eugenio Raúl Zaffaroni,19 são: (a) a ocultação do núcleo do tipo, por exemplo, no revogado crime de “praticar adultério”; (b) emprego de elementos do tipo sem precisão semântica, exemplos dos incisos do art. 247 do CP; (c) tipificações abertas ou amplas. 2. Princípio da Humanidade A República Federativa do Brasil tem como um de seus fundamentos a dignidade da pessoa humana (art. 1º, inciso III, Constituição Federal) e é deste postulado que é deduzido o princípio da humanidade. É com fundamento no princípio da humanidade que o Constituinte proibiu, de modo taxativo (art. 5º, inciso XLVII, CF), a cominação, aplicação e execução de penas aviltantes à dignidade da pessoa, tais como as penas: (a) de morte, (b) perpétuas, (c) de trabalhos forçados, (d) de banimento, (e) cruéis, como castrações, mutilações, esterilizações, ou qualquer outra pena infamante ou degradante do ser humano.20 Em sua clássica obra “Dei Delitti e delle Pene”, Cesare Beccaria já havia consignado que “Non vi è libertà ogni qual volta le leggi permettono che in alcuni eventi l’uomo cessi di esser persona e diventi cosa”21. O princípio da humanidade confere ao homem a qualidade de pessoa, condição inata a todos os seres humanos, independentemente de qualquer vinculação política ou jurídica. O reconhecimento do valor do homem enquanto o homem faz surgir um núcleo duro de direitos e prerrogativas fundamentais, aos quais o Estado fica subordinado, servindo de barreira ao exercício do poder oficial. A dignidade da pessoa humana – atente-se à natureza humana da pessoa, conforme Luiz Regis Prado – antecede, em muito, “o juízo axiológico do legislador e vincula de forma absoluta sua atividade normativa, mormente no campo penal”. Daí o entendimento de que toda a lei violadora da dignidade da pessoa humana não resistiria ao mínimo exame de constitucionalidade22. Estritamente vinculada ao princípio da humanidade está a garantia da integridade física e moral do preso, cujo comando está assentado no art. 5º, inciso XLIX, da Constituição Federal e ratificado por disposições do Código Penal (art. 38) e da Lei de Execução Penal (art. 40). De fundada importância a disposição do art. 3º da Lei de Execução Penal, segundo o qual “ao condenado e ao internado serão assegurados todos os direitos não atingidos pela sentença ou pela lei”. Igualmente importante à referência no sentido de que “oprincípio da humanidade não se limita a proibir a abstrata cominação e aplicação de penas cruéis ao cidadão livre”, mais do que isso, o princípio da humanidade proíbe o aviltamento concreto da dignidade da pessoa humana. Sob esse prisma, o cumprimento de pena nas penitenciárias brasileiras, facilmente verificável pelas condições desumanas e indignas (fruto da omissão estatal), configuram cristalina violação ao princípio da humanidade, cabendo a responsabilização estatal. Também o Regime Disciplinar Diferenciado comporta latente violação ao princípio da humanidade, dado o tratamento desumano e degradante ínsito ao isolamento forçado do preso.23 3. Princípio da Culpabilidade O princípio da culpabilidade pode ser lido, em primeiro lugar, como uma resposta à responsabilidade objetiva (fundada em uma mera associação causal entre a conduta e o resultado de lesão ou perigo de lesão ao bem jurídico), na medida em que impõe a subjetividade à responsabilidade penal. Além disso, o princípio da culpabilidade inclui a questão da personalidade na responsabilidade penal, da qual derivam, para Nilo Batista,24 duas consequências: a intranscendência e a individualização da pena. Por intranscendência da pena entendemos a impossibilidade de a pena ultrapassar a pessoa do autor do crime, o que implica afirmar que a responsabilidade penal é sempre pessoal (isto é, a pena é intransmissível aos sucessores e à família do condenado). Já a individualização da pena reflete “a exigência de que a pena aplicada considere aquela pessoa concreta à qual se destina”. Exsurge, assim, a teoria da coculpabilidade (ou corresponsabilidade), a qual trata de considerar, no juízo de reprovabilidade do ilícito-típico (essência da categoria dogmática da culpabilidade), [...] a concreta experiência social dos acusados, as oportunidades que se depararam e a assistência que lhes foi ministrada, correlacionando sua própria responsabilidade a uma responsabilidade geral do estado que vai impor-lhe uma pena.25 O instituto da coculpabilidade pode operar, no direito penal brasileiro, tanto como causa supralegal de atenuação de pena quanto como causa supralegal de exculpação (inexigibilidade de conduta diversa)26. Voltando ao princípio da culpabilidade, expresso na fórmula “nulla poena sine culpa”, fica claro que este expressa a proibição de punir pessoas sem os requisitos do juízo de reprovação. Assim, de acordo com o estágio atual da teoria da culpabilidade, as seguintes circunstâncias excluiriam o juízo de reprovação: 1. Pessoas incapazes de saber o que fazem (inimputáveis). 2. Pessoas imputáveis que, realmente, não sabem o que fazem porque estão em situação de erro de proibição inevitável. 3. Pessoas imputáveis, com conhecimento da proibição do fato, mas sem o poder de não fazer o que fazem porque realizam o tipo de injusto em contextos de anormalidade definíveis como situação de exculpação27. Sobre as circunstâncias suprarreferidas que excluem o juízo de reprovação (a culpabilidade), vale dizer que o princípio da culpabilidade não permite a punição de pessoas inimputáveis porque elas “são incapazes de compreender a norma ou de determinar-se conforme a compreensão da norma”. Entretanto, de acordo com Juarez Cirino dos Santos, “não proíbe a aplicação de medidas de segurança fundadas na periculosidade criminal de autores inimputáveis de fatos puníveis”, já que enquanto a relação culpabilidade pena tem natureza subjetiva, a relação periculosidade/medida de segurança teria natureza objetiva de proteção do autor (terapia) e da sociedade (neutralização) – segundo o discurso oficial da teoria jurídica das medidas de segurança28. Em relação à proibição de punir pessoas imputáveis em situação de desconhecimento inevitável da proibição do fato, isso se daria porque “o erro de proibição inevitável exclui a possibilidade de motivação conforme a norma jurídica, que fundamenta o juízo de reprovação”. Por outro lado, nas situações em que o erro sobre a proibição da norma é evitável (por insuficiente reflexão ou informação do autor), é possível a punição, pois presente a culpabilidade29. Já as situações em que o agente imputável realiza o injusto penal com conhecimento da proibição do fato, mas o realiza em situações de anormalidade sem o poder de não fazer o que fazem, não tem a sua culpabilidade perfectibilizada justamente pela exclusão ou redução da exigibilidade de comportamento diverso30. 4. Princípio da Ofensividade ou Lesividade O emprego do poder punitivo requer a completa satisfação do princípio da ofensividade (nullum crimen sine iniuria), reconhecidamente um dos mais preciosos legados do pensamento jurídico-penal liberal. Sob uma perspectiva dogmática, o princípio da ofensividade explicita um modelo de crime traduzido na ofensa a interesses objetivos, correspondendo na lesão ou exposição a perigo de bens jurídicos protegidos. É um princípio penal que se opõe, portanto, “à simples violação objetiva do dever”31. Condutas puramente internas (seja pecaminosa, imoral, escandalosa ou diferente), per si, são incapazes de legitimar a intervenção penal se ausente a efetiva ofensividade/lesividade a determinado bem jurídico. Nilo Batista advoga quatro funções principais ao princípio da lesividade, quais sejam: (a) proibir a incriminação de atitudes interna: consistentes em desejos, aspirações, sentimentos etc.; (b) proibir a incriminação de conduta que não exceda o âmbito do próprio autor: verificáveis nos atos preparatórios ou simples conluio entre pessoas para cometer crime, quando não iniciada a execução, e ainda nas situações em que há autolesão. A conduta do usuário de drogas ilícitas seria um exemplo de autolesão, sob esse prisma, que não deveria ser objeto de incriminação; (c) proibir a incriminação de simples estados ou condições existenciais: implica dizer que o homem responde pelo que faz, não pelo o que ele é; (d) proibir a incriminação de condutas desviadas (desaprovadas socialmente) que não afetem qualquer bem jurídico: eis a função primordial do princípio da ofensividade/lesividade, relacionada à efetiva ofensa (dano ou perigo) a determinado bem jurídico32. É possível inferir que o princípio da ofensividade (ou lesividade), tendo por objeto o bem jurídico determinante da criminalização, opera em uma dupla dimensão. Isto é, sob um viés qualitativo, em que tem por objeto a natureza do bem jurídico lesionado; e sob um viés quantitativo, no qual é apurada a extensão da ofensa ao bem jurídico33. A partir do ponto de vista qualitativo, afirma-se que o princípio da lesividade impede a criminalização primária ou secundária que exclui ou reduz as liberdades constitucionais garantidas pela Constituição Federal sem qualquer restrição. No que trata do viés qualitativo, o princípio da lesividade atuaria no sentido de excluir a criminalização primária ou secundária de lesões irrelevantes a bens jurídicos34. É de se destacar que o princípio da ofensividade dirige-se não apenas ao legislador, mas fundamentalmente ao intérprete, o qual, com a detida análise do caso concreto, poderá verificar a presença/ausência de efetiva lesividade ao bem jurídico protegido pela norma. 5. Princípio da Intervenção Mínima e da Fragmentaridade Em que pese não esteja o princípio da intervenção mínima expressamente insculpido na Constituição da República e no Código Penal, dito princípio é integrante da política criminal. A rigor, a despeito de figurar como princípio da política criminal (dirigido ao legislador), o princípio da intervenção mínima impõe-se também ao intérprete, enquanto princípio imanente ao arcabouço jurídico dos estados de direito democráticos, interrelacionando-se com outros princípios jurídico-penais35. Do princípio da intervenção mínima é possível extrair o comando dirigido ao legislador e ao intérprete segundo o qual “o direito penal só deveatuar na defesa dos bens jurídicos imprescindíveis à coexistência pacífica dos homens e que não podem ser eficazmente protegidos de forma menos gravosa”. Nunca é demais lembrar que a sanção de natureza penal é a que impõe as restrições mais gravosas aos direitos fundamentais. Por essa razão, deve a intervenção penal ficar restrita a situações-limite, em que a sua aplicação se mostra “absolutamente necessária para a sobrevivência da comunidade”36. A ideia norteadora do princípio da intervenção mínima é a de que o direito penal é a ultima ratio do sistema normativo, o que implica dizer que “deve atuar somente quando os demais ramos do direito revelarem-se incapazes de dar a tutela devida a bens relevantes na vida do indivíduo e da própria sociedade”37. O postulado da fragmentaridade advém da noção de que nem todas as ações que lesionam bens jurídicos são proibidas pelo direito penal, assim como nem todos os bens jurídicos são tutelados pelo direito penal. O qualitativo fragmentário traz consigo a compreensão de que o direito penal “se ocupa somente de uma parte dos bens jurídicos protegidos pela ordem jurídica”38. 6. Princípio da Proporcionalidade Parte da doutrina sustenta a existência do princípio da proporcionalidade com um dos postulados implícitos no art. 5º da Constituição da República. Dito princípio tem plena operação na proibição de penas excessivas ou desproporcionais em face do desvalor da ação ou do desvalor do resultado do crime. É um princípio que se desdobra em duas dimensões: abstrata e concreta. A dimensão abstrata é dirigida ao legislador, limitando a criminalização primária às hipóteses de graves violações aos direitos humanos e delimitando a cominação de penas de um modo a não extrapolar a natureza e extensão da ofensa ao bem jurídico. Juarez Cirino dos Santos refere que [...] a hierarquização das lesões de bens jurídicos é essencial para adequar as escalas penais ao princípio da proporcionalidade abstrata: por exemplo, penas por lesões contra a propriedade não podem ser superiores às penas por lesões contra a vida. A dimensão concreta do princípio da proporcionalidade é dirigida ao juiz, a quem cabe o equacionamento dos custos individuais e sociais da ação punitiva concreta, situada na aplicação e execução da pena criminal39. O princípio da proporcionalidade é constituído por três subprincípios, cujo emprego é sucessivo e complementar: (a) o princípio da adequação (Geeignetheit); (b) o princípio da necessidade (Erforderlichkeit), e; (c) o princípio da proporcionalidade em sentido estrito, denominado também de princípio da avaliação (Abwägungsgebote)40. Desse modo, o exercício de aplicação do princípio da proporcionalidade no direito penal pode ser realizado com o emprego de três questionamentos, quais sejam: “a) a pena criminal é um meio adequado (entre outros) para realizar o fim de proteger um bem jurídico?” Caso a resposta à primeira indagação seja positiva: “b) a pena criminal é, também, meio necessário (outros meios podem ser adequados, mas não seriam necessários) para realizar o fim de proteger um bem jurídico?” Caso vencida a segunda pergunta, caberia ainda a derradeira pergunta: “c) a pena criminal e/ou aplicada (considerada meio adequado e necessário, ao nível da realidade) é proporcional em relação à natureza e extensão da lesão abstrata e/ou concreta do bem jurídico?”41 Dito de outro modo, o princípio da proporcionalidade visa a garantir “um equilíbrio abstrato (legislador) e concreto (judicial) entre a gravidade do injusto penal e a aplicação da pena”. Não se deve confundir o princípio da proporcionalidade com a razoabilidade, embora ambos tenham similitudes e estejam ligados a um outro em inúmeras oportunidades. Enquanto reputa-se a origem germânica à proporcionalidade, a razoabilidade seria fruto de construção jurisprudencial da Suprema Corte norte- americana. De acordo com a concepção norte-americana, “razoável é aquilo que tem aptidão para atingir os objetivos a que se propõe, sem, contudo, representar excesso algum”42. Para melhor explicitar a diferença, vejamos um exemplo da antiguidade. Enquanto a Lei de Talião expressava, a sua maneira, um exemplo concreto de princípio da proporcionalidade (com o famigerado olho por olho, dente por dente), o princípio da razoabilidade, na conformação disposta acima, teria o condão de afastar a invocação do princípio da proporcionalidade, justamente por representar um desmedido excesso (ou não razoável) na intervenção estatal43. 7. Breves Considerações Finais O estudo que ora se encerra demonstra, em certa medida, o desatendimento constante do direito penal brasileiro aos princípios básicos do direito penal. Das mazelas do sistema carcerário, da produção legiferante à aplicação diária do direito penal, os princípios se fazem presentes. Em inúmeros momentos são flagrantemente violados. Cabe aos estudiosos do direito penal, com base na silenciosa e por vezes solitária ponderação, persistir na busca por respostas aos problemas penais, tendo o vivaz conhecimento de que seu papel social “não é o de querer transformar o mundo, mas, antes, TEMA 03 Teoria do Tipo Penal 03 Teoria do Tipo Penal Objetivos Caro aluno, neste texto você terá acesso as vicissitudes da teoria do fato punível, passando pela evolução histórica da doutrina geral do fato punível, a concepção clássica, a concepção neoclássica, a concepção finalista e por último o funcionalismo penal. Com relação a teoria do tipo, você estudará o tipo, a tipicidade e as funções do tipo penal e detalhes a respeito do tipo incriminador no fato punível. Seja bem vindo a esta excursão pela dogmática penal. 1. A Teoria do Fato Punível A teoria do fato punível, também chamada teoria do delito ou teoria do crime, é o segmento da dogmática penal que se ocupa dos pressupostos jurídicos gerais da punibilidade de uma ação1. Justamente por ocupar-se dos pressupostos gerais, dir-se-á que a teoria do delito estuda os elementos comuns a todos os fatos puníveis2. O primeiro passo para obtermos êxito em nossa perquirição é a definição do nosso objeto de estudo: a conceituação de fato punível (o crime). A rigor, o fato punível pode ser definido por conceitos de natureza material, formal ou operacional. Nesse sentido, em sua vertente material, é o fato punível compreendido como a lesão do bem jurídico protegido no tipo legal. Uma definição formal o comportaria como a violação a uma norma penal. E, em sua definição operacional, enquanto conceito analítico, o fato punível é decomposto de acordo com categorias dogmáticas do tipo: crime é um fato típico, ilícito/antijurídico e culpável (exemplo do modelo tripartite)3. As definições operacionais do fato punível atendem, com efeito, a uma necessidade de conferir maior segurança jurídica aos casos concretos, mediante a fixação de elementos gerais, permitindo com isso um lastro de objetividade e racionalidade na análise do delito4. A exigência de analisar os elementos estruturantes de cada crime e de colocá-los sob uma ordem lógico-sistemática é parte essencial do estudo científico da dogmática penal. Tomando como correta a expressão de que cada elemento do crime é pressuposto indispensável para a aplicabilidade da pena no caso concreto,5 o crime poderia, então, ser expresso por uma fórmula matemática do tipo: se estão presentes a + b + c, etc., há crime e, portanto, é possível a aplicação de uma pena6. Sob um ponto de vista meramente formal, todas as categorias estruturais do crime (tipicidade, ilicitude/antijuridicidade e culpabilidade) se colocam no mesmo plano, em pé de igualdade. Entretanto, se o questionamento se dirige à função exercida por cada uma dessas categorias estruturantes do crime, as respostas passam a ser necessariamente diferentes7. A dogmática penal contemporânea nãotrabalha com um modelo analítico estanque. Pelo contrário, desde o século XIX, a doutrina penalística vem desenvolvendo distintos modelos analíticos de crime, de modo que é possível falar, nos dias atuais, nos modelos bipartite, tripartite e, até mesmo, no modelo quadripartite. Para bem situar o leitor, discorreremos sobre a evolução histórica da doutrina geral do fato punível, de acordo com as concepções que permearam a história recente do direito penal, a saber: concepção clássica, neoclássica e finalista. 2. Evolução Histórica da Doutrina Geral do Fato Punível 2.1. Concepção Clássica A base da concepção clássica de delito, defendida na Alemanha desde a segunda metade do século XIX, era o conceito de ação – entendida esta por ErnstLudwig von Beling e Franz von Liszt de maneira totalmente naturalística como “movimento corporal (ação em sentido estrito) e modificação do mundo exterior (resultado)”, unidos pelo vínculo da causalidade – (teoria da equivalência)8. A autonomia do conceito de tipo adveio com a obra Die Lehre vom Verbrechen de Beling, quando então foi erigida como uma categoria desprovida de conteúdo, neutra, com função de mera descrição formal da conduta criminosa9. Havia uma clara distinção entre a tipicidade e a antijuridicidade, de modo que a simples correspondência de conduta ao tipo legal já bastava para tornar a conduta típica10. O tipo cumpria um papel de indiciador da antijuridicidade (ratio cognoscendi). A concepção clássica sofreu forte influência do naturalismo imiscuído no pensamento científico no início do século XIX. O pensamento naturalista queria submeter às ciências do espírito o ideal de exatidão e completude típico das ciências naturais. Por corolário, o direito penal – mais propriamente a teoria do fato punível – foi levado a absorver componentes que pudessem ser mensuráveis e empiricamente verificáveis11. Todos os problemas do direito seriam comportados pelo direito positivo e sua exegese era mediada por conceitos limitados, perceptíveis aos sentidos. As valorações filosóficas, os conhecimentos psicológicos e os dados sociológicos ficariam excluídos da dogmática jurídica12. Uma vez afirmada a ação13, o próximo passo consistia no exame da concorrência da tipicidade, antijuricidade e culpabilidade. Na concepção clássica, a parte objetiva do tipo (o tipo objetivo) refletia-se nos elementos da tipicidade e da antijuridicidade, enquanto a parte subjetiva do tipo (tipo subjetivo) era o lugar da culpabilidade14. Explica-se: conforme Beling, “para a comprovação de que uma ação tenha ocorrido, bastava a certeza de que o autor agiu voluntariamente ou permaneceu sem agir. O que o agente pretendia é, aqui, indiferente.” O conteúdo da vontade só tinha significado, só importava, quando da análise da culpabilidade.15 De acordo com essa divisão, o tipo restou desprovido de qualquer dimensão valorativa. Consistia apenas numa descrição puramente externa de realização da ação. A valoração jurídica do fato somente tinha efeito no plano da antijuridicidade. Como exemplo, Jescheck16 afirma que se um soldado matasse uma pessoa em uma situação de guerra, a justificativa da ação somente se daria na análise da antijuridicidade. O evento, na perspectiva clássica, seria um fato tipicamente justificado e não fato atípico. A presença da tipicidade era indiciária da ilicitude/antijuridicidade (ratio cognoscendi)17. Em síntese, a ação (movimento corporal determinante de uma modificação do mundo exterior) se tornaria ação típica sempre que possível sua subsunção lógico-formal a um tipo legal de crime. Não se cogitava, até aqui, a existência de qualquer atributo no tipo dirigido a valores e a sentidos. A ação típica tornar-se-ia ilícita no caso de ausência de alguma causa de justificação (legítima defesa, estado de necessidade etc.). Caso se fizesse presente alguma causa de justificação, a ação típica seria, então, lícita e permitida pelo direito. Eis a vertente objetiva do fato punível (crime): tipicidade e antijuridicidade18. Por sua vez, a vertente subjetiva do fato punível vinha concentrada na categoria da culpabilidade. A ação típica e ilícita seria também culpável sempre que possível comprovar a relação entre os processos espirituais e psicológicos que se desenvolviam no interior do agente imputável e o fato delituoso. Daí a razão pela qual a categoria da culpabilidade tenha ficado marcada na concepção clássica pelo seu aspecto psicológico. Poderia recair sobre o agente a imputação a título de dolo (quando presente o conhecimento e a vontade de realizar o fato) ou a título de negligência19. O dolo e a imprudência eram compreendidos como formas ou classes de culpabilidade20. Crítica. Vários foram os problemas levantados na concepção clássica que mereceram posterior reparo. O conceito causal da ação, elaborado a partir de seus três elementos básicos (conduta humana, voluntariedade e modificação do mundo exterior), não era capaz de absorver o fenômeno omissivo. A crítica trazida à tipicidade clássica circunscreve-se na redução desta a uma mera operação lógico-formal de subsunção, descartando “as unidades de sentido social” que estão presentes nos tipos. De modo que teriam, conforme Jorge de Figueiredo Dias, que ser igualadas como típicas tanto a ação do cirurgião que salva a vida do paciente quanto a do sujeito que, por vingança, esfaqueia a sua vítima21. No mesmo sentido, a redução do juízo de ilicitude à ausência de uma causa de justificação configuraria também uma compreensão simplista e mesmo inexata do que se deve entender por contrariedade à ordem jurídica22. Na concepção estritamente psicológica da culpabilidade, houve problemas de variados matizes, como: (i) o esquecimento de que também o inimputável pode atuar com dolo ou negligência; (ii) na negligência inconsciente – em que não há previsão do resultado – não existe qualquer relação psicológica entre o agente e o fato; (iii) o esquecimento de que situações como a falta de consciência da ilicitude ou de inexigibilidade de outro comportamento também são suscetíveis de excluir a culpa23. 2.2. Concepção Neoclássica A concepção clássica de delito de Franz von Liszt e Ernst von Beling foi logo submetida a algumas transformações. Não se tratou, com efeito, de um giro copernicano, senão de uma reforma que visava adequar a estruturação do delito segundo os fins perseguidos pelo direito penal (teoria teleológica do delito)24. Sob a influência da teoria do conhecimento do neokantismo – que buscou apartar-se do naturalismo ao devolver um fundamento autônomo às ciências do espírito25, lançou-se mão de um método próprio de compreensão e valoração. O direito penal voltou-se, pelo impulso de nomes como Gustav Radbruch, Max Ernst Mayer e Edmund Mezger, a uma orientação de valores e ideais26. A reforma começou pelo conceito de ação, o qual, em sua acepção clássica, encontrava dificuldades de sustentação, dada a primazia alcançada pelos valores na nova sistemática penal. Desse modo, os exageros naturalistas foram, de certo modo, substituídos pela ideia de relevância social, em que pese a ação tenha continuado a ser concebida como um comportamento humano causalmente determinante de uma modificação do mundo exterior ligada à vontade do agente”27. Na seara da tipicidade é que houve mudanças de maior vulto. À preocupação meramente naturalística presente na concepção clássica somaram-se elementos normativos, os quais somente resultariam aplicáveis pelo conteúdo valorativo atribuído pelo juiz28. Ademais, mais do que a descrição formal de comportamentos, a tipicidade passou a ser materialmente informada enquanto comportamento lesivo a bens jurídicos protegidos29 ou mesmo lesivo a qualquer situação estatal de conveniência, não havendo ainda uma referência real acerca do objeto de tutela (prevalência dos objetivos visados pelo legislador)30. Essa
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